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Resumo
Utilizando como perspectiva de análise o modelo de competências, mais precisamente a
importância dos eventos, este artigo analisa o trabalho de peritos do setor de criminalística.
Inicialmente, realizou-se uma pesquisa documental na legislação sobre o assunto e também
naquela específica sobre a Polícia Civil de Minas Gerais, para identificar como é a
prescrição do trabalho desses profissionais. Com base nestes documentos, realizou-se um
estudo de caso de uma Seção Técnica Regional de Criminalística do interior de Minas
Gerais. O estudo mostra a grande variedade de eventos com que esta categoria profissional
lida no seu dia-a-dia. Embora estes profissionais gozem de certa autonomia no exercício de
suas funções, o estudo mostra o enfrentamento de situações não previstas – eventos – de
grande diversidade e, muitas vezes, em levantamentos de locais externos, sob fortes
intempéries, além de riscos e da complexidade da função.
Palavras-Chave: Criminalística, Eventos, Competência.
1. Introdução
As mudanças políticas, econômicas e sociais que ocorreram no final do século XX afetaram o
modo das empresas atuarem, devido, principalmente, ao acirramento da competição. Neste
cenário de competição, globalização e disponibilidade de novas tecnologias, o mundo do
trabalho também passa por mudanças, com algumas as organizações procurando valorizar os
seus ativos intangíveis, sendo fundamental atrair, desenvolver e reter talentos (ABREU et al,
2003; SARSUR, et al, 2003; GRAMIGNA, 2002). A gestão por competências, já amplamente
difundida nos Estados Unidos e na Europa, ganha corpo também no Brasil.
O setor público também sofreu pressões do ambiente, com a redefinição do papel do Estado e
de suas atribuições, obrigando-o a diminuir de tamanho, ao mesmo tempo em que as
demandas sociais cresciam, principalmente, em países do terceiro mundo (HOBSBAWN,
1996). Da mesma forma, o modelo weberiano não atende mais aos anseios de uma sociedade
diversificada e fragmentada em seus desejos e aspirações. Esse contexto criou um ambiente
propício ao surgimento de novas formas de gestão do serviço público, diversas da burocracia
tradicional, como, por exemplo, o New Public Management (HOOD, 1991) e a proposta na
obra de OSBORNE e GAEBLER (1992), Reinventing Governament. Ambas as abordagens
têm como idéia central a aplicação de metodologias econômicas e a lógica do mercado à
gestão dos serviços públicos, tais como a autonomia, o foco no cidadão, agora tratado como
cliente/consumidor e o gerencialismo, entre outras.
Ao mesmo tempo, a população assiste ao crescimento da violência, que de uma forma mais ou
menos intensa atinge cada uma das diferentes regiões do país. O tema é a segunda
preocupação dos brasileiros, sendo superado apenas pelo desemprego (IBOPE, 2003). Tem
mobilizado, além do poder público, diversos segmentos da sociedade civil, como por exemplo
a ONG Viva Rio, universidades e centros de pesquisa, tais como o Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo e o Centro de Estudos de Segurança Pública
(CRISP), da Universidade Federal de Minas Gerais. Neste contexto, principalmente após a
pelo menos, comunicar-se” (ZARIFIAN, 2001, p.45). Serviço, porque “trabalhar é gerar um
serviço, ou seja, uma modificação no estado ou nas condições de atividade de outro humano,
ou de uma instituição, que chamaremos de destinatários do serviço (cliente no setor privado e
usuário no setor público)” (ZARIFIAN, 2001, p. 48). O evento
“ocorre de maneira parcialmente imprevista, inesperada [...] em resumo, tudo o que
chamamos de acaso [...] no que consiste trabalhar? Trabalhar é, fundamentalmente,
estar em expectação atenta a esses eventos, é ‘pressenti-los’ e enfrentá-los, quando
ocorrem. Enfrentá-los com sucesso, dominando o evento [...] um evento é, então,
alguma coisa que sobrevém de maneira parcialmente imprevista, não programada,
mas de importância para o sucesso da atividade produtiva. É em torno destes
eventos que recolocam as intervenções humanas mais complexas e mais importantes
[...] O indivíduo deve confrontar o evento, deve resolver os problemas que revela ou
que gera.” (ZARIFIAN, 2001, p. 41).
O autor afirma que há três procedimentos possíveis para lidar com os eventos: a expectação,
antes do evento; a intervenção, que ocorre em situação de evento, muitas vezes sob pressão de
prazos; e um reflexivo, posterior, para compreendê-lo e analisá-lo. Estes momentos delineiam
um ciclo de aprendizagem. Neste sentido, “o grau de experiência dos assalariados não
depende mais, primordialmente, da duração de sua permanência no posto de trabalho, mas
da ‘variedade dos eventos enfrentados’ e da qualidade da organização, que permite examiná-
los a fundo” (ZARIFIAN, 2001, p. 44).
Uma das conseqüências do conceito de evento é que as tarefas a serem executadas não podem
mais ser incluídas no trabalho prescrito. O saber tácito passa a ser essencial para dominar os
eventos. Para o autor, a competência deve ser “automobilizada” por aquele trabalhador que se
encontra na situação real, que depende da iniciativa do indivíduo. Neste caso, o trabalho passa
a se constituir de “uma seqüência de eventos, de situações singulares que se entrechocam”
(ZARIFIAN, 2001, p. 43).
A criminalística é uma atividade que lida essencialmente com o imprevisto, com eventos. Por
isso, este trabalho analisa o trabalho de campo de peritos criminais.
3. Análise de eventos na criminalística
A perícia criminal é constituída pela criminalística e pela medicina-legal e está inserida num
ambiente judicial, de segurança pública e de investigação. A atividade está disciplinada no
Código de Processo Penal (CPP), artigos 158 a 184, e deve ser realizada em toda a infração
penal que deixar vestígio (CPP, art. 158). O mesmo estatuto inclui os peritos entre os
auxiliares da justiça, aplicando-lhes à mesma disciplina judiciária (Art. 275) e suspeição dos
juízes (Art. 280). Os órgãos de Polícia Técnica apresentam diversas configurações, em um
continuum que vai desde a autonomia completa, como no Amapá, passando pela autonomia
mesmo estando dentro da Polícia Civil, como nos casos de São Paulo e do Distrito Federal,
até a sua subordinação à Políca Civil, como em Minas Gerais.
Devido à diversidade e especialização das infrações penais, a criminalística realiza exames de
diversas naturezas, tais como crimes contra a vida, contra o patrimônio, acidentes de trânsito,
meio ambiente, engenharia, balística, contabilidade, informática, fonética, física, química,
biologia, toxicologia e documentoscopia (TOCCHETTO & ESPINDULA, 2005). É
constituída por profissionais com nível superior de escolaridade (CPP, art. 159) em diversas
áreas do conhecimento, como engenheiros, bioquímicos, físicos, químicos, biólogos,
agrônomos, dentistas, matemáticos, veterinários, contadores, cientistas da computação,
advogados, realizando tanto trabalhos em laboratórios, quanto de campo.
Durante a pesquisa realizada nos arquivos da STRC, constatou-se que entre janeiro e
novembro de 2005 foram atendidas 727 ocorrências, tais como homicídios, suicídios,
acidentes de trânsito com vítimas, furto, roubo, meio-ambiente e tóxicos, entre outras. Dada à
diversidade de situações enfrentadas, pode-se afirmar que o levantamento no local, atividade
essencial do perito, enquadra-se no conceito de evento apresentado por Zarifian (2001),
porque estes eventos são aleatórios, imprevisíveis e diversos uns dos outros, mesmo quando
da mesma natureza.
3.2 – Análise de eventos observados
Procedeu-se a observação não-participante de um levantamento de local, realizado por um
perito da STRC, em que faleceu um operador de trator em decorrência de acidente de
trabalho num cafezal. O acionamento pela PM se deu à tarde. Após obter informações com o
identificar onde foram os pontos de impacto. Examina o eixo longitudinal central da pista e
determina a segunda região de choque, resultado do choque do terceiro veículo. Para
determiná-la, o perito parte da posição final dos veículos, do ponto de impacto em cada um
deles, por fragmentos de ambos os veículos desprendidos no local e por montículos de terra
sobre o asfalto, mas tem dificuldade para determinar e localizar a região do primeiro choque,
aquela em que os dois veículos bateram de frente. Com uma trena e a ajuda de um dos
policiais rodoviários, inicia as medições e amarrações do local, após a interrupção do tráfego
no local. Mede a distância entre os veículos, a distância entre a 2ª região de choque e o
veículo mais próximo, o que colidiu duas vezes. Mede também a largura da pista, a extensão
de uma marca de frenagem deixada sobre a pista pelo terceiro veículo, na tentativa de evitar o
choque. Por fim, mede os sulcos, tanto a extensão quanto a sua localização em relação ao eixo
central da pista e em relação à 2ª região de choque. Analisa o sentido de produção dos sulcos.
Faz um comentário se um sulco está naquela posição, é porque o veículo estava parcialmente
sobre a outra pista. Com base nos sulcos e na posição dos dois primeiros veículos, determina e
localiza a 1ª região de choque. Libera a pista ao tráfego. Um veículo passa em alta velocidade,
sem que os policiais consigam pará-lo, mostrando os riscos da profissão. Por fim, com o
tráfego novamente interrompido pelos policiais rodoviários a pedido do perito, este passa a
fotografar o local. Primeiramente, faz uma tomada panorâmica do local, depois da marca de
frenagem produzida pelo terceiro veículo. Faz também uma tomada de cada um dos veículos,
tanto da posição, quanto do ponto de impacto nos mesmos. Fotografa as ranhuras no piso e
faz novas tomadas panorâmicas, mas no sentido inverso. Às 09:15h encerra o levantamento e
faz anotações.
A análise destes casos mostra como que a essência da atividade é lidar com o imponderável,
no sentido mais amplo da palavra, pois não se sabe se haverá ocorrência ou não, se houver, a
que horas será, em que condições climáticas (tempo bom, chuva, etc.), que tipo (homicídio?
acidente de trânsito? etc.), onde e qual o acesso, em que circunstâncias, qual a duração da
intervenção, qual o risco envolvido, dentre outras variáveis.
No segundo momento, o da reflexão, há articulação entre as circunstâncias do fato, as
evidências coletadas e a legislação pertinente ao assunto, que é materializada na peça judicial
probante: o laudo pericial. Sua elaboração, em ambos os casos de acidentes de trabalho,
exigiu estudo da legislação e situações de segurança do trabalho, para emitir um parecer
cientificamente fundamentado. No segundo caso, foi necessária uma discussão e análise do
evento entre o perito e um engenheiro de minas do Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM), que também inspecionou o local posteriormente, a fim de obter subsídios
técnicos para elaborar o seu laudo. No terceiro, é preciso recorrer à física, para estabelecer a
dinâmica do evento e respectivas velocidades dos veículos.
4. Considerações finais
O texto faz um estudo da atividade de perito criminal, utilizando como perspectiva de análise
a categoria evento, um dos três componentes do conceito de competências. Realizou-se uma
pesquisa documental na Polícia Civil de Minas Gerais, com o recorte na criminalística e,
posteriormente, entrevista com três profissionais e um estudo de caso em uma das 52 Seções
Técnicas Regionais de Criminalística existentes no interior do Estado.
O objetivo da atividade pericial é reunir evidências, que identifiquem autores de crimes,
utilizando a ciência, ou seja, a perícia prova. A característica essencial do trabalho é o evento,
tanto que é exigido que o candidato ao cargo tenha a habilidade para lidar com situações
novas muito desenvolvida. O estudo comprovou a grande variabilidade de eventos com que
estes profissionais lidam. Variabilidade em termos de natureza do evento, circunstâncias,