You are on page 1of 8

O abismo da liberdade

"Longe de que a loucura seja para a liberdade um insulto é sua mais fiel companheira..."
Propos sur la causalité psychique,
Jacques Lacan

Encontrarmo-nos obedece a que a loucura se dissemina como só um gás sabe

fazê-lo e se alastra junto com a extensão das indicações da psicanálise. Não

nos surpreendamos, pois Lacan já dizia que "a loucura, longe de ser um fato

contingente, é a permanente virtualidade de uma falha aberta na essência do

homem”.1 Tal virtualidade, realizando-se nessa época em que a inexistência

do Outro não pode mais ser velada, introduz a questão ética que nos convoca.

Lacan advertia há mais de cinqüenta anos, que se a ciência chegasse a fabricar

ideais à prova de crítica chegaríamos a poder produzir loucura.

Colegas espanholas aqui citadas apontaram já o caminho: A ciência e a

psicose conduzem ao mesmo lugar, à segregação crescente, só que a ciência o

faz massivamente, conduz os normais como o flautista de Hamelin soube

fazer.

A saúde mental, prioridade atual da ordem pública globalizada, responde

completando um conjunto cada vez mais vasto de comportamentos e práticas

1
Lacan Jacques. 'Acerca de la causalidad psíquica" Suplemento a los Escritos, Ed. Siglo XXI, 1984, p. 177.
consideradas salubres, conjunto que, de tão ambicioso é inconsistente, o

campo do mental.

O fracasso do Estado terapêutico, guardião do rebanho, e a ingovernabilidade

das sociedades, secretam o pesadelo que prescreve o ideal do autogoverno,

gerando o desgoverno radical do sujeito contemporâneo jogado no consumo,

época da toxicomania generalizada como diagnosticou Miller. Tal o destino

dos normais.

Aportando um verdadeiro efeito de elucidação, o recente e polêmico filme

Clube da luta, realiza a fantasia contemporânea fazendo voar os prédios da

American Express e congêneres. Não posso deixar de indicar aqui a conexão

entre ato e liberdade articulada a propósito de Schelling por Slavoj Zizek2 em

recente livro sobre a enigmática função da liberdade de suspender o princípio

da razão suficiente. A falta de poder desenvolver a questão nessa ocasião

resgato o nome do mesmo como título da minha intervenção.

A hipótese da disseminação da loucura poderia autorizar-se na própria

etimologia da palavra loucura, folie: fou, um adjetivo derivado do latim follis,

que significa soprar, e que com o tempo passa a significar fátuo, metido,

inchado como um balão. Bolha louca então, que leva Lacan a abordar o

fenômeno a partir do vento da enfatuação imaginária.

2
Zizek, Slavoj, The abyss of freedom/Ages of the world by W. J. Schelling, USA: Ann Arbor, The University
of Michigan Press, 1997.

2
Num texto onde se pergunta pela ética, Lacan diz que a força do delírio nasce

do amor a si mesmo. Fala da borbulha vital que estala e dissemina sua

unidade. Loucura narcisista.

Não nos surpreendamos ainda com a "extensão e o sentimento de diluição"3 da

psicanálise, a mais eminente prática contemporânea, disso que Michel

Foucault chamou o ‘cuidado de si’, diz Miller. O cuidado de si e o amor de si

como fonte do delírio já instalam uma primeira contradição ética.

Lacan fez da loucura uma questão de ética e, se procurava uma ética que a

psicanálise pudesse constituir à altura do nosso tempo,4 não era porque se

identificasse à época.

Nossa clínica parte do que não funciona e se a época nos interessa é pelo viés

do seu sintoma. Porque nos identificamos ao sintoma e não à época, como

ensinou precisamente Javier Aramburu5, não partimos da normativa, da

extensão megavirtuosa do "ideologema" da saúde, como fazem o discurso

médico preventivista ou o discurso da auto-ajuda.

Um dos sintomas da disseminação da loucura como amor de si, consiste em

identificar o bem mais prezado hoje, critério global de saúde: "a auto-estima,

descoberta equivalente à descoberta do átomo cinqüenta anos atrás", diz um

3
Miller, Jacques-Alain. Les contre-indications au traitement psychanalytique, Mental 5, juillet 1998.
4
Lacan, Jacques. ¿Es el psicoanálisis constituyente de una ética a la medida de nuestro tiempo?" en Uno por
Uno, revista Mundial de Psiconanálisis, N 39, Barcelona:, 1994, p7-17.
5
Aramburu, Javier, La época y la pulsión. http: //www.wapol.org/news/etext/aramburu001/htm

3
expert californiano. Os filósofos a estudam,6 milhares de exemplares circulam

no mundo criando um verdadeiro gênero literário de antecedentes estóicos.

Pode declinar-se esse conjunto nas terapêuticas de auto-ajudas, nos auto-

relax, na autodiversão até na autoprocriação, auto-afirmação, verdadeiro

ensimesmamento promovido pela cultura.

O sintagma completo e inconsistente, saúde mental, que cobre o campo da

época não cobre o campo freudiano e só nos interessa quando o próprio campo

que pretende cobrir faz sintoma, ou continuando com Miller, saúde mental e

psicanálise mantém uma relação dialética complexa.

Jacques-Alain Miller generaliza a loucura como uma estrutura geral para todo

eu e a centra no desconhecimento do que se é no Outro:7 a crença de ser o que

se é, de um eu=eu produzida por uma identificação imediata, delírio de

identidade. "A loucura é assim a imediatez da identidade proveniente da

crença de um eu=eu, desconhecendo radicalmente que eu não sou sem o

Outro".8

Se eu sou sem o Outro sou radicalmente livre. O sujeito livre e autônomo,

interlocutor da ordem pública, é o reflexo jurídico do eu narcisista,

imaginariamente consistente, e sua responsabilidade individual é a pedra

angular do direito penal. O paradoxo consiste em que o louco não é

6
Abraham, Tomás: Psicologías en La empresa de vivir, Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1999..
7
Miller, Jacques-Alain. Curso Donc, aula 26/1/94, inédito.
8
Calderón de la Barca, Alicia. La locura del yo, en Freudiana 13, EEP-Catalunya- Barcelona: 1995.

4
considerado sujeito de direito, é tomado como irresponsável e sua palavra é

evacuada do espaço público. Lacan escutava Althusser, a quem o tribunal

negou a palavra.

Que o louco seja o homem livre não é uma tese passageira de Lacan, diz

Miller. A tese central de "Propósitos sobre a causalidade psíquica", de 1946,

foi construída em cima da resposta que a análise de uma psicose lhe

proporcionou.

A loucura como êxtase do ser numa identificação ideal, definição que Lacan

encontra em Hegel, e a liberdade possuindo o ser, que pesca em Heidegger,

lhe permitem abordar a pacificação de Aymée, quando esta perde sua

liberdade, quando é enclausurada, "menos louca quanto menos livre".9 Lacan

se separa assim tanto da psiquiatria como da antipsiquatria que, junto com a

literatura e o teatro, promovem a idealização do louco e da liberdade que este

encarna.

Em 1967 Lacan abandona a companhia de Hegel, mas não a hipótese do

ínfimo fio da liberdade. Desta vez não é o ideal a chave da liberdade, é o

objeto. O louco é livre porque carrega o objeto no seu bolso, porta sua causa

em si mesmo e então é livre respeito do Outro. No "Pequeno discurso aos

psiquiatras", no Hospital Saint Anne, e, mais tarde, no seu Joyce, o sintoma

vemos a hipótese da liberdade perseverar.


9
Chorne Miriam e outros, Lacan y la locura, Uno por Uno, 1991. p.24

5
De Hegel finalmente, Lacan extrai a "fórmula geral da loucura" que aloja a

causa numa "insondável decisão do ser". Abismo insondável então pois é o

próprio gesto do espirito fechar-se sobre si, o ato louco a retirada do Umwelt,

noite do mundo opacando a luz da razão. Que a loucura exija o inatacável

consentimento da liberdade do sujeito curto-circuita nossa fé escura em

supostos mecanismos desencadeantes da psicose e vincula inexoravelmente a

loucura à ética, o sujeito à responsabilidade que lhe cabe. Há variáveis e há

mecanismos deterministas, mas cabe ao sujeito dizer que sim, dizer que não.

Cabe ao sujeito dizer que não à passagem do real para o simbólico, não

sacrificar a liberdade do seu ser ao Outro do significante.

Lacan não é Erasmo e a liberdade aqui tem valor negativo. O rechaço do

inconsciente, ser um desabonado, serão os novos sintagmas que falarão da

liberdade num Lacan posterior.

Fragmento de fracasso

Apresentamos a estrutura examinando a defesa. Descartada a possibilidade de

qualquer processo orgânico, o registro hipocondríaco das suas preocupações

se põe em evidência e motiva a consulta. Um retorno do gozo sobre o corpo a

partir de uma identificação especular com um morto, familiar; recupera a

6
estabilização perdida quando o fracasso na obtenção de suporte imaginário

ideal o faz voltar, transgressor e rechaçado no real, de uma viagem

longamente idealizada. Uma interpretação persecutória localiza o gozo no

próprio corpo e, contrariamente ao que se vê nas psicoses de adolescentes,

onde o corpo não parece lhes dizer respeito, dedica-se a esse objeto que, até

hoje, parece ser o único objeto libidinal, o único merecedor de gestos e

miradas de amor.

Segregado de todas as normativas, é livre para cuidar de si, ouvir seu som,

olhar sua TV e preparar seu chocolate. Narcisismo do ocioso digno de um

Molière, redução do Outro ao Um, gozo do 'uniano' alvo freqüente de tiras

cómicas. Livre de aparecer ou de não aparecer no horário marcado e livre do

compromisso da fala, livre de trabalhar e de pagar, livre de todo tipo de laço

social a não ser o que mantém a duras penas com os sinais do trânsito, livre de

toda queixa. Ama Jô Soares não por acaso já que a loucura da comicidade

dessa figura nos conduz a supor=lhe um gozo, no que é abismo para o resto

dos mortais.

Impaciente, na experiência do tédio como desejo de Outra coisa tal como

Lacan o define no seminário das formações do inconsciente, cansada do pouco

trabalho de "secretária do alienado" que me era demandado, pergunto, pela

segunda vez, em dois anos de encontros, o que é que o traz por aqui. Com um

7
sorriso irônico que só uma ampla liberdade permite enunciar, diz: "Venho

porque aqui posso aprender espanhol...”

Vem desaparecendo desde então. O semblante de demanda o evaporou.

O abismo da liberdade é aquele que mantém separados o desejo de um analista

e o gozo de um UM.

Marcela Antelo,

2005.

You might also like