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A VONTADE DE GUARDAR: LOGICA DA ACUMULAGAO EM ARQUIVOS PRIVADOS* ‘Aurélio Vianna Mauricio Lissowsky Paulo Sérgio Moraes de S4** 0 arquivo considerado como efeito de acumulagdo de documentos. Re- flexdes sobre o sentida original © 0 arquivador™ enquanto sujeito do provesso de acumulagéo, Tipologia dos modas de articulagdo dos docu- mentos em arquivos privades de homens pablices. “0 emprcendimento de qualquer movimenta de reorganizacdo deve partir da coms- stragéo de nosa edicdo da coisa a ser reorganicada ¢ continua simatleancaente de modo @ esiubeecer Utia porte enare 0 retrocesio « @ progress, 12m que ambos wofram woluedo de Cantineilade. do $e destroi primeiramense 0 que #318 feito embora nio corresponds ts iecessidaides o1uais. O que foi construido representa trabalho © tem qualquer coisa de subitancial op tempo em que fol realizado: vai-se previando ao exclarecimento do passa do ate que possa ser assimilado pelo que hoje se vais wustrutnclo muna era de taiares fect fidades mas em por isto copar dle diypevsar 0 cox rsa da mentalidade anterior. ‘Assim € que vamos reorganizar a grande massa de papéis que alguém denominava de erquive si pelos anos de mil serecentos e tantos.” Acrises Goncalves has Santos farqutrisia de Gustave Capanema no Ministerio da Educapio e Sede) 4305/4943 1 INTRODUGAO © presente trabalho pretende realizar uma reflexo sobre um campo particular da ‘experiéncia arquivistica, agul interpretade como historicizagdo de paptis privados. A dis- eussio pareceu-nos aproprinda na medida em que o tratamanto de fontes historias oriun- ‘das de arquivos privados, além ge envolver um conjunto de decisdes © procedimentos iée- Inicos. requer um ceria consenso em torno de nogdes como as de meméria, documento, ‘Tratatho apresentado na Seusba de Temas Livres do dia 16 de abel de 1986, no 69 Congreie Ma salina de Arquivo jitado ne Rio de feneuo, de 14.4 18 oe sbed de 1986, [entio pewguitadotes do Setor de Documentacko de Centro de Pesquisa # Dacumentacdo de Hirt tur Comtemporinen do Brasil da Pundapso Gatibo Varga o Ara. & Asm. lo de Saneieo, 19: (2)62-70, jase, 1908 pessoa, pillico e privado, arquivo ¢ principalmente, historia, Reservase este texto o dire to de discutiralgurnas destas nogGet, no nivel em que informam a prética arquivistica a setvige da histéria; ao mesma tempo, procuramos estabelecér alguns modelos abstratas, tums espécie de tipologia dos arquivos privadot de homens pablicos em seu estado pré tamento, isto é, no modo como estes arquivos costumam estar “organizados™ por oca- sitio de sua chegada 20 centro de documentacio historia. Estender 0s horizontes para um momento anterior 20 ingresso de um arauivo privae do em uma instituigéo de preservacso de memoria significa rergulhar no wniverso que © onfigurou, apreciando a relapSo que o “titular” mantém com o3 seus documentos. ‘0 estudo da trajetora realizada pot um arquivo no interior do-iew processe de gera- Go beses dpreencar oy tnpgnetsicn Gis leva os honieas.pblioor a acummarscsiatrge, © dispi+-los sob diversas formas de ordenamento, a reté-los por toda vida. A eles se afeigoan: do a ponto de tratélos mesmo como termo de relacfo homem-obvra, como seu legado pese soa! € intransferirel, matea do que scalizou e edificau em vida € com o que inrenta ser feconhecido pelas gerayies seguintes, lembrada, quando nfo celebrado, por seus Feitos € ensagens. ‘Este estudo nio-visa uma avaliagdo técnica da eficiéncia na preservagdo ou a re nigga de um ou outro modelo aricinal ste nenanemenie de dow fique d margem de tai quest6es, Busca uma prospecgfo sobre © modus operand do cole: ionador, a meionalidade de seus atos para com seus papéis. 2. AMEMORIA E SEUS REGISTROS 21.4 CONTINUIDADE ‘A sceledade ¢ uma sintese singular de pessoas, nfo se reduzindo a um somatério de individuos. Os individuos x80 mortals, mas o organismo social ¢, pretensamnente, imortal.’ ‘Os individuos. participa de expetiéncias institucionalse pessoais que, mortats Como eles, passam. Mas além dos individucs exister pessoas, com posigdes relagOes a serem prescr- vadas? A continuidade da sociedade, sua imortalidade, necessita das marcas das posigdes ¢ relagoes que ficam gravedss nas mentes dou indiv{duos, no ambiente e em abjetos eri dos para este fim, Essas mareas, nurn momento original, eram hievofanias — a manifest odo sagrado. A hierofinia fundava 0 cosmos ~ 0 nosso mundo ~ a partir do amarfo. do caos. Ax atitudes dos homens, para se tornarers humanas, deveriam ter uma ligagio ‘com o sobrenatural: “Ao nivel das civilizagdes primis, tudo 0 que o homem faz term ‘um modelo tranthemano; portanto, mesmo fora do tempo-festivo, os seus gestos imitam ‘08 modelos exemplares fexados pelos Deuses © pelas Antepassados miticos. Mas esta imk- tego corre 0 risco de tomnanse cada vez menos correta, 0 modelo corre o risce de ser des figurado ou até esquecido. S20 as reatualizagdes periddicas dos gestos divinos, uma pal ta, a5 estas religiosas que voltam a ensinar aos homens sacralidade dos modelos [ELIA: DE. (sd), pig, 100]. A reatualizagia dos. gestos divinos atravis de ritos ¢ mitas garant- am acontinuidade da soctedade humana, tememorando a esséncia do set humane. ‘As hierofonias hierarquizaram o mundo através da insituigo do heterogtneo, onde nando “coisas” comuns que através de ritos ganhavarn valor: “Cada cofsa sagrada deve es: tar em seu lugar, notava corn profundera, um pensador indigena. Poderse.ia mesmo dizer que € iss0 que a torna sagrada, pois, suprindo-, ainda que por pensamento, tod. a ordem do universo 3 encantaaria destruida; ela contribu, pois, para manté-ta 40 ocupat o lugar {que the cabe" [LEVESTRAUSS (1970), pig. 30}, O exercicio da memdria, parte primeira a formardo da identidade de uma saciedade, toma como objeto as “coisas” — momentos € relagoes socials ~ de valor, as relativas 4 origem causal dos acontecimentos. Portanto, Aim. & Adm. Roo de lanevo, 10-14 (2): 62.76, puter. 19865 eo “a meméria pessoal nfo entra em jogo: © que conta, & tememorarse @ acontecimente, mitico, © Gnico digno de interesse, porque ¢ 0 Gnico criadar. E ap mito primordial que ‘sabe contervar a verdadeira Historia, 2 histéria da condig&o humana: 4 nele que ¢ preciso procurat ¢ reencontrar os prineipios e ot paradigm? de toda a cultura” [ELLADE (3.4.), pig. 114], Este mundo do homem religioso, um mundo visto como “do passado™ e prim. tivo, prescindia da escrita para a transmist4o e manutengio da memoria, ‘A medida que a tecnologia aplicow seus conhecimentas em favor da idéia de conti- uidade social, o homem passou a ter ovtras formas, alfm.dos mitos orais ¢ ritos para transmit ox modelos da sociedade, do sagrado. A diversidade de suportes para a8 lom- brangas — mareas dos fatos e relagtes socials — aumenta, astim como a profanizagio do esmcn © do homer. A febtiopfO do papel prea err osm dvds sigan, uma grande inovagio tecnolégica que disseminoa 1 preservagto da informasto esc tamibam s fotografia, quando so Torna Gbjeto oo cance de popelarto, trnafor 9 toot em produtores potenclals de documentos fotogrificos. As Fotografias do album de fari- lia, por exemplo, “evocam © transraitem a recordago dos aconiecimentos que merecem ser conservados porque o grupo vé um fator de unificago nos movimentos da sa wnidade ppasmada ou, © qued equivalente, porque retém do seu pastado-as confirmaybes da sua uni- dade presente”. [BOURDIEU (1965), pigs. 53, $4]. A-contiauidade, a repredupto social a0 nivel da organizagdo e dar reprosentagOes, sd através da passage de modelos de ge- ago a geraggo, Neste sentido, dima sociedade, ¢ er larga medida, a lembranga do que fot e4 memoria informa os padides de reproducto social ‘A meméria se constitul de forma diversa nas diferentes sociedades. Ainda no inte- ior de uma mesma sociedade, distinguem-se locais sociais de actimulo de meméria, espa- {$05 privilegiadas para a manutengo ¢ disseminagla do que deva sex preserrado, coma o4 Xamis ou os Arquivos. Cada sociedade tem seu modo de produzis, acumullar ¢ propagat fas principals temiticas. Assim, se nas yociedades sem escuita a preverracan da memoria s2 di exclucvamente através da celebrasto de itos e mitos, as sociedades cor escrta tarn- lbém? se utilizam da elaboragfo de textos escritos aos quais atribuem um valor especial, devido 4 crenga em sua capacidade de munter intactas, através dos tempos, ax informa: ‘$0es. Outras propriedades como a de atestar a verdade, através do valor probatério. ou a ide armazenar maior volume de informagBes, aoentuam sua importincia. s sociedades que usam a membria excrta, as formas de acumulacte © contervago dos textos sto diferenciadas em fungdo da diversidade de grupos envolvidos nesta ativida- de e do valor social dado as formas de conservagto da informagdo. Neste sentido, a stig ‘$80 de Arquivos © a ctenga em sua funcionalidade, ocupa win lugar de destaque na prods- ‘$40 de meméria nas saciedades contemporineas, 2208 VESTIGIOS A unjetotia humana no planeta nfo se faz impunemente. Os vestigios e as lembran- ‘an dessa passagern, impresses sobre o corpo ¢ 0 mustdo, so sinals que s¢ abrem a0 exer fete da rememoragio, A memoria, consciente ou inconsciente, coletiva ou individual, pa- rece ser a sistematizagso dessa passagern. A linguagem € um lugar privifegiadis da memdrea, que a maiorin das técnicas mneumbnicas evidéncia, mas sua base no é outra sengo 0310 original da designago, que criou de uma ver para sempre uma relag$o entse palavras e coisas." ‘Qs sinais da trajetdria husmana, especialmente os escrito, constituemse na matétia- prima da operagda hist6rica, forma narrativa da meméria,¢ sio encarados ordinariamente -como integrando dois grupas: conforme sejum efeito da ciscunstincia ou da intengdo. o ‘Ara. Adm. Rice daneiro, 10-14 121:62-26 utes. 1986 Ty Gs sinais que a circunstincia produz podem sero resultado de atividade humana destiruida de linguagem ou, quando organizada como discurso, destinada i mudez ¢ 20 c3- ‘quecimento, Estes sinais slo, com relaglo A passagem, nada além de um rastro que se dei- ‘Xa. mais do que se lega. Os sina carregados de intengdo seriam os que, mesmo produzidas ‘elas mais pragmiticas razGes, Objetivam ainda funcionar como representacdo da passa- em." Os dois tipos de sinais 80 — com telagSo ao presente que os produziu © que seri passado para o historiador — 0 sintoma, um, ¢ a afirmacdo, o outro. Se-esta demarcagdo entre as duss categorias de sinas parece & primeira vista eviden- te — tanto quanto pode ser evidente a distinglo entse uma adazs © um obelisco — ela 6, ‘mesmo no mbito do que se convencionow chamar de cultura material, bastante peoble- mitica, Ela wpe a exisiéncia do objeto utiitério puro, para 0 qual todo simbolo ¢ um [Esse mundo de significantes puros ¢ mareade por sua fortuiiade, Somente 0 acaso permite que sobreviva 4 existéncia imediata ¢ venha a adquirir um novo estatuto entre aqueles.que investigam 0 pastado. O objeto desprovido de simbolos estd fadado 10 desa- pparecimento das coisas que nio circulam. O ingrediente das trocas — portanto, da pereni- dade das coisas ~ € este excesso que instaura o sentido. ‘Ao lidar com vestigios documentais da passagem humana imayinase ou estar obser: ‘ranxiy wim congumto oe documentos que escaparam da sombra a qual se destinam a3 coisas Adestituidas de sentido, ou deestar diante de garafas lancadas no mar do tempo, portado- tad de tevelagbes. sobre os maks insondivels mistériot. A esta avaliagSo, dois argumentos podem set contrapostos. O-primeito de ordem genética: 0 de que 80 poderiam existir obje- tos destituids de sentido fora da cultura, pois esta milo ¢ outra coisa se nia 0 hisgar onde: 8 procemo de significagdo se sealtza. O objeto utilitfrio puro, a rigor, nfo existiria, Lévi- ‘Strauss comentande um instrumento de pescaria da cultura tingit do Alaska, afima que rele “sua fungi ¢ seu simbolo parecer dabrados, um sobre © outro", © que “mesmo entre n6s, 08 utenstlios se prestam auma contemplagifo desinteressada”.[LEVI-STRAUSS, 1970, pags. 47/49], O segundo argumento vinculs-se mais diretamente ao aficio do arqui- vista:a dificuldade em estabelecer com segurana as razbes da sobrevivéncia de alguns do- ccumentos em detsimento de outros, Na perspectiva do-arquivisa, portanto, tomna-se bastante problemitica qualquer ava lingfo fundada no destin ou no sentido histérico pare fixar privlégios entre os dbcw mentes. 230 ARQUIVO (0 arquivo, documentos scumulados por pessos fisica ou juridica, encontra sua unk dade em quem « produz caro Conjunto, ow sj, em quem acumula of documentos no sexereicio de suas atividades." Q agnipamento dos documentos, sus selecao dente too 0s passives de serem guardados, proparciona o setdo dos mesmos, O documento passa ‘ser parte de uma dupla totalidade: uma, no pensamente do colecionador, ¢ outra, no conjunto dos documentos acumlados, Isto ¢, © documento escollido tem wr lugar no conjunto de representagdes do colecionsdot que © seleciona, e este lugar no imapindrio ‘pode no-ser 0 meimo que aquele ocupado na colegio de dosumentor. © que acumulou um colecionadar ¢ tudo aquilo que no “descartou", tudo aquilo que de uma maneira ou outra fazia sentido pretervar. Isto no significa afirmar que 50+ mente 0 que leu, © que concretamente tomou em mSot, sobre o que expressamente emi tia juizo, venka a configura: o universo de sua coleslo, Se adotassemos tigorosarnente tal parimetro tornase-ia dificil, sem asa presenca fisica. determinar, por exemple, se e4stas que no tenham indicacko precisa de resposta foram efetivamente lidas. AO se adotar © fog. & Adm..lio-de teneieo, 10-14 (2h 62-76, jules. 1990 ss exitério de aeumulaggo como nortendor ds nogso de colegdo, os regstr0s por ele produzi- das somente so considerados quando acumulados, Caso: contririo est4r/am08 na contin- ‘gincia de empreender ingentes esforgos de busca junto a rede de relagaes pessoas © profi Sionais do: colecionados com a finalidade de “yeintegrar” a seu “fundo™ cartes, textos, Fotografias, fitas, bilhetes, etc.. porventura em poder de terceirox. Assim nem tudo que @ colecionador produc tornise parte integrante de sua colegio, da mesma forma como no ‘guarda tudo que toma er suas mios. Portanto, a logics do arquivo nfo retide nos documentos, mas na pestoa, o aujeito ‘que 05 seleciona ¢ arranja, Naot a produpie do documento que interesss, mas a.constitus (¢f0 da coleggo, Esse home comulator no ¢ somente o funciondrio que junta os doeu- ient0s, mas 0 titular, a pessoa fisiea ou juridica que produ fatos e situagbes.que tornam- se soclalmente velevantes e metegam set fetes, Ao sujeito desse processo de acumulagio, ‘que Se apropria privadamente de determinados documentos, chamaremos promssriarnen te de erquivador, em contraposigSo 20 arquivista, termo aqui reservado a0 personager en canregado do arquivo quando este for abandonado pelo titular em favor da histria 3.0. ARQUIVADOR 3.1 O ARQUIVADOR E OS EVENTOS "A verdadeira imagem do passade perpassa, veloz. 0 passado 6 se deixa Maar, como imagem que relampeja ineeversivelmente, ao momento-em que ésecanhecido,” [BENJAMIN (1985), p. 224] O plano da existéncis humana que se abse sos Hossos sentidos ¢ qué fornece através deles as lembrangas que constituem a memoria é, do ponto de vista de instante mesmo da percepeo, um mundo

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