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Morrer de saudade
MIGUEL MADEIRA
Maria João Lopes
Quando se despediu de nós, o senhor Mafaldo disse-nos: “Escrevam-me uma carta, não me deixem morrer de tanta saudade”. Pois bem, senhor Mafaldo, cá vai. Escrevemos-lhe para não morrermos nós, também, de tanta saudade. Até do vento que nos fustigou em Cabo Verde sentimos falta. Estivemos aí na época da bruma seca ou tempo das brisas. O vento não nos deu descanso. Era de dia e de noite. Bastava andarmos a pé meia hora, com ele a empurr
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Morrer de Saudade - Cabo Verde - artigo Público por Maria João Lopes
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Morrer de saudade
MIGUEL MADEIRA
Maria João Lopes
Quando se despediu de nós, o senhor Mafaldo disse-nos: “Escrevam-me uma carta, não me deixem morrer de tanta saudade”. Pois bem, senhor Mafaldo, cá vai. Escrevemos-lhe para não morrermos nós, também, de tanta saudade. Até do vento que nos fustigou em Cabo Verde sentimos falta. Estivemos aí na época da bruma seca ou tempo das brisas. O vento não nos deu descanso. Era de dia e de noite. Bastava andarmos a pé meia hora, com ele a empurr
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Morrer de saudade
MIGUEL MADEIRA
Maria João Lopes
Quando se despediu de nós, o senhor Mafaldo disse-nos: “Escrevam-me uma carta, não me deixem morrer de tanta saudade”. Pois bem, senhor Mafaldo, cá vai. Escrevemos-lhe para não morrermos nós, também, de tanta saudade. Até do vento que nos fustigou em Cabo Verde sentimos falta. Estivemos aí na época da bruma seca ou tempo das brisas. O vento não nos deu descanso. Era de dia e de noite. Bastava andarmos a pé meia hora, com ele a empurr
Quando se despediu de nós, o senhor Mafaldo disse-nos: “Escrevam-me uma carta, não me deixem morrer de tanta saudade”. Pois bem, senhor Mafaldo, cá vai. Escrevemos-lhe para não morrermos nós, também, de tanta saudade. Até do vento que nos fustigou em Cabo Verde sentimos falta. Estivemos aí na época da bruma seca ou tempo das brisas. O vento não nos deu descanso. Era de dia e de noite. Bastava andarmos a pé meia hora, com ele a empurrar-nos, para parecer que tínhamos andado, sei lá, duas horas. Nem quando fomos à praia, aí perto da sua terra, no Tarrafal, ele amainou. Dentro de água, nem o sentíamos, mas cá fora a areia colava-se-nos ao corpo e não havia forma de estarmos deitados ao sol. Ficámos dentro de água, pois então. E a seguir fomos comer e beber para um restaurante, com vista para a praia. Comida com vista pelo mar fora é o que não falta em Cabo Verde. Também fomos visitar o campo de concentração. O seu sobrinho, que é o músico Maruka, lembra-se de ver os presos políticos saírem. Contou-nos muitas histórias, o seu sobrinho. E o senhor Mafaldo também. Ficámos a saber que, na infância, foi com a mãe para uma roça, em São Tomé. Que só o deixaram acabar a 4.ª classe muito tarde. Mas fê-lo e tornou-se monitor escolar. Ainda tem os diplomas guardados. ombros. Admito que sim, senhor equipa em todos os jogos. E o vento, já sabemos, Foi uma boa tarde a ouvir Mafaldo. É impossível contrariá-lo. Como contrariá-lo Sim, é verdade, senhor continuava. histórias. Quem não gosta delas? Mesmo quando nos diz que cura Mafaldo, quase não fizemos praia. Vamos voltar um dia, senhor Também falámos daquela lenda cancro e sida só com aloé vera se fala com Nem sequer fomos ao Sal. Mas Mafaldo. Da próxima vez, vamos sobre a origem de Cabo Verde. que nasce em frente da sua casa. passeámos pelo Mindelo, pela Baía para as praias! E, já sabe, se perder Aquela da distracção divina - Como contrariá-lo se fala com tanta tanta calma e das Gatas, pela Cidade da Praia, o medo de andar de avião, estamos lembra-se? Reza assim: quando calma e ponderação, se mastiga pelo Tarrafal, pela Cidade Velha… à sua espera. Ainda nos disse: “Um Deus acabou de criar o mundo, cada palavra e olha para nós, com ponderação, se Contra o vento que não parava. dia, meto-me num barco e nem sacudiu as mãos e caíram pequenos uma expressão nem sei se afável, Um vento de São Vicente que não é que demore um ano a chegar, vou. pedacinhos de barro no Atlântico, se séria? Olhe, senhor Mafaldo, não mastiga cada normal em Santiago, comentava-se Queria tanto conhecer Portugal”. perto de África. Houve quem sei se acredito que uma planta cure nas ruas. Nas nossas fotografias, as Venha que vai gostar. Agora, que chamasse Deus à atenção por ter sido tão descuidado. “Então e cancro e sida, mas acredito em si. Parece a mesma coisa, mas não é. palavra e olha palmeiras estão sempre penteadas só para um lado. penso bem, até o vento temos em comum. Não se chama harmatão agora que pessoas vais lá pôr? E que riquezas?” Mas Deus não se Nesse dia, fomos de propósito conhecê-lo. O seu sobrinho, que é para nós, com uma Quando nos despedimos de si, na Calheta, e regressámos à Praia, a nem lestada, nem vem do Sara, mas também é persistente como atrapalhou e disse que já havia muito sítio para habitar a terra, que músico e enfermeiro, fez connosco uns bons quilómetros para nos expressão nem noite caía. Na escuridão, os montes pareciam bichos meio adormecidos o vosso. Pelo menos, nas férias da minha infância, nas praias do ninguém iria para ali. Enganou- se, como sabemos. Ou não. Talvez apresentar o seu tio curandeiro. Foi um prazer conversar consigo, sei se afável, se e as casas com as luzes acesas assemelhavam-se a múltiplos olhos Alto Minho, lembro-me de haver sempre, durante todo o Agosto, houvesse naquele sacudir de mãos senhor Mafaldo. E andar pelo seu que nos vigiavam. nortada. E sabe que mais, senhor uma intenção maior. Escreve o país. Sabe que mais? Apesar de séria? Olhe, senhor Mafaldo? Também tenho saudades cabo-verdiano Germano Almeida: tão diferente do nosso em tanta dessas férias. É engraçado isto, “Criar um laboratório experimental coisa, na paisagem, tão árida – Mafaldo, não sei se porque não gosto de nada de vento de miscigenação de raças e culturas quase não vimos verde – sentimo- e tenho tantas saudades… e ver o que dessa miscelânea nos próximos de casa. A língua, acredito que uma poderia sair. E saiu o homem cabo- o Benfica... – meu Deus, eu, verdiano.” que não gosto de futebol, fiquei planta cure cancro O senhor Mafaldo, que é “100 envergonhada por não saber, como por cento católico”, não acredita devia, os médios e avançados da e sida, mas acredito em actos distraídos de Deus. Faz rapidamente contas de cabeça, em si. Parece a algures entre a criação do mundo e a chegada dos portugueses, e acha que algo não bate certo. “É só mesma coisa, mas uma história”, diz, encolhendo os não é