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C R I S T I A N A B A R R E T O S I M B O L I S M O S E X U A L N A A N T I G A A M A Z Ô N I A
U R N A S , E S T A T U E T A S E T A N G A S M A R A J O A R A

O P R I M E I R O R E G I S T R O E S C R I T O de que temos das mulheres amazônicas é o das legendárias guer-


reiras do mito grego, o qual não só transpôs para os trópicos o nome para o grande rio, mas também
deu início a uma longa história de teorias controversas sobre o papel das mulheres nas antigas
sociedades amazônicas.
Esta história começa em 1542, quando frei Gaspar de Carvajal, cronista da pioneira expedição de
Orellana ao Amazonas, registrou o encontro memorável com as mulheres guerreiras. Ele as descreveu
como mulheres poderosas e temidas, muito altas e fortes, andando despidas, mas com as partes privadas
cobertas, tão valentes quanto dez homens índios (Medina, 1894).
Durante séculos, o mito das Amazonas e de terras governadas por mulheres foi retomado em uma
série de crônicas de viagens, quase sempre acompanhadas de relatos sobre grandes e numerosas
aldeias habitadas por povos surpreendentemente avançados, ocupando toda a margem do grande rio e
suas ilhas (Barreto & Machado, 2001). Essas primeiras descrições dos antigos povos amazônicos, para
além dos personagens fantasiosos, como as Amazonas, vieram a contrastar fortemente com os
pequenos e dispersos assentamentos encontrados alguns séculos depois pelos primeiros naturalistas
e antropólogos que se aventuraram na região e que prontamente rejeitaram estas antigas crônicas
como fontes seguras para o estudo dos povos pré-coloniais da Amazônia (Porro, 1994).
Hoje, a pesquisa arqueológica moderna volta à questão do denso povoamento da Amazônia e da com-
plexidade social que certas sociedades atingiram em período pré-colonial (Heckenberger et al., 1999; Neves,
2004; Roosevelt, 1991; 1999). Alguns arqueólogos reconhecem a possibilidade de que as mulheres podem
ter tido um papel social e posição de prestígio importantes, e que certos cacicados podem até mesmo ter
se tornado grandes e poderosos matriarcados (Roosevelt, 1991). Contudo, outros arqueólogos sugerem que,
ao contrário, com a emergência de cacicados maiores e com as sociedades rapidamente se tornando
menos igualitárias, as divisões sociais baseadas em gênero perdem sua relevância, levando as mulheres a
ocuparem posições menos prestigiosas e a lutarem para reafirmarem suas identidades pessoais, na qual-
idade de mulheres e especialmente como indivíduos diferenciados (Barreto, 2003; Schaan, 2001b; 2003a).
A análise de alguns objetos produzidos pelos antigos povos da ilha de Marajó durante esse período
de formação de grandes cacicados (isto é, de 400 a 1400 d. C., período reconhecido pelos arqueólogos
como a fase Marajoara da Tradição Policrômica da Amazônia) pode fornecer algumas pistas sobre o que
aconteceu com as mulheres na Amazônia em tempos pré-coloniais.
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O S C A C I C A D O S D A A M A Z Ô N I A E A I C O N O G R A F I A D A C U LT U R A M AT E R I A L A representação dessas figuras, e especialmente a forma como os corpos humanos são concebidos
Desde os anos 80 pesquisas recentes vêm confirmando um verdadeiro florescimento de diferentes têm sido uma fonte de inspiração particularmente rica para se entender o cosmos e o éthos Marajoara
culturas na região, sobretudo no baixo Amazonas, durante o primeiro milênio da Era Cristã. Estas cul- (Roosevelt, 1988; Heckenberger, 1999; Schaan, 2001a e b).
turas são reconhecidas pelos diferentes estilos de cerâmica funerária, quase sempre representando fig-
uras humanas, como por exemplo as urnas funerárias Guarita (no médio Amazonas), e as Marajoara, A MULHER NA CERÂMICA MARAJOARA
Maracá, Aruã, e Aristé (no baixo Amazonas) (McEwan et al., 2001). Outros tipos de artefatos cerâmicos, A idéia de sociedades lideradas por mulheres, ou ao menos organizadas em torno de figuras femini-
como tigelas, pratos, vasos e estatuetas, altamente decorados, assim como alguns raros objetos nas, tais como linhagens ancestrais ou clãs femininos, parece, a princípio, particularmente atraente em
esculpidos em pedra, como os muiraquitãs, são encontrados em sítios muito densos nas férteis planí- Marajó, onde a mudança para uma organização social mais complexa e para uma sociedade mais
cies ao longo dos rios. Essa profusão de objetos decorados, provavelmente usados em contextos ceri- desigual corresponde claramente a um crescente número de objetos cerâmicos que apresentam temas
moniais, tem sido interpretada como resultado da rápida transformação de pequenas sociedades trib- femininos. Representações femininas aparecem tanto na pintura dos potes e urnas funerárias como
ais em grandes cacicados rivais, onde a intensificação de rituais e cerimônias legitimariam novas estru- também em estatuetas cerâmicas.
turas de poder. Muitos dos objetos eram provavelmente usados como símbolos de prestígio e poder dos Os melhores exemplos são as urnas funerárias policromadas de um estilo particularmente popular
chefes e elites locais. Enquanto alguns dos cacicados parecem ter desaparecido antes mesmo da con- na ilha de Marajó (comumente denominado Joanes Pintado), usadas para enterramentos secundários.
quista, como é o caso de Marajó (Schaan, 2001a), outros perduraram até o contato com os europeus, Parecem representar sempre a mesma figura feminina, talvez uma figura ancestral ou mítica, que com-
como os Tapajó em Santarém (Gomes, 2001), mas acabaram se desintegrando rapidamente em conse- bina traços humanos e animais, lembrando em seus olhos e membros uma espécie de coruja (Schaan,
qüência do contato. 1997) (figuras 1, 2 e 3). Estes recipientes podem variar consideravelmente em tamanho, de trinta cen-
Em Marajó, a rápida formação de cacicados parece ter ocorrido a partir do século V de nossa era. tímetros até mais de um metro de altura, provavelmente refletindo a idade e a importância social do
Nessa época, uma grande quantidade de tesos – montes artificiais – começa a ser construída na porção indivíduo à qual se destinava, mas os atributos femininos representados nas urnas são constantes, seja
leste da ilha, aparentemente destinada à formação de áreas mais elevadas, protegidas das inundações qual for o sexo do indivíduo nela enterrado.
anuais tão intensas na ilha. Os arqueólogos acreditam que, ao longo do tempo, esses tesos se tornaram Em contextos funerários, referências a aves noturnas ou aves de rapina, como as corujas, podem ser
símbolos físicos de prestígio de cada comunidade e de liderança e capacidade de mobilização das consideradas de várias maneiras: uma representação da vigilância noturna que protegeria o indivíduo na
chefias locais (Schaan, 2001b). Grupos de tesos de diferentes tamanhos são encontrados nos pequenos escuridão pós-morte ou uma referência à capacidade do animal de engolir um corpo inteiro e regurgitar
rios e lagos nessa parte da ilha, e enquanto certas áreas parecem ter sido usadas para a habitação e seus ossos, trazendo-o de volta após a morte. Alusões semelhantes à idéia de renascimento ou de outra
fabricação de uma grande quantidade de cerâmica, outras eram usadas como cemitérios. Nestes últi- vida pós-morte podem também explicar a razão dos enterramentos em recipientes com formas de cor-
mos, encontra-se uma variada gama de objetos mortuários. As urnas cerâmicas são enterradas con- pos femininos grávidos, ou “ginecoformes”, nos quais a decoração enfatiza os órgão sexuais femininos,
tendo não só os ossos dos indivíduos, mas também pequenos vasos, estatuetas, e objetos pessoais, tais como mamilos, púbis, e útero (este representado por círculos). Muitas vezes estes marcadores sex-
como bancos, utensílios de pedra e adornos corporais – tangas, pingentes e colares, (Meggers & Evans, uais são pintados em cores mais fortes, como o vermelho (figura 1). Outras vezes, em vez de úteros, criat-
1957; Palmatary, 1950; Schaan, 2000; 2001a e b). uras são representadas no interior dos ventres, como uma alusão gráfica à gravidez (figura 3).
Neste contexto altamente ritual, a cerâmica é sempre muito decorada, em geral com pintura policro- Considerando-se o contexto mortuário, as referências à fertilidade feminina e reprodução podem ser
mada, mas também com incisões e apliques modelados. Estudos iconográficos da decoração dos obje- vistas como uma simples demarcação de ciclos de vida, reprodução e morte na sociedade Marajoara de
tos revelam a representação figurativa e estilizada de animais e humanos como expressão de mitos e então, e talvez não digam respeito nem ao papel diferente da mulher na sociedade nem a cultos a fig-
crenças que estruturaram o universo espiritual Marajoara (Schaan, 1997). Padrões decorativos simétri- uras femininas ancestrais. Contudo, o fato de que, em outras culturas pré-históricas amazônicas que
cos e símbolos geométricos são combinados de acordo com regras bastante rígidas, representando também enterram seus mortos em urnas antropomorfas, existam urnas de ambos os gêneros, tanto
criaturas de traços mistos, entre animais e humanos e lembrando as transformações animísticas que masculinas, com representação de órgãos sexuais masculinos, como femininas, às vezes em corre-
até hoje perduram nas lendas amazônicas. spondência ao gênero do indivíduo enterrado (como por exemplo as urnas Maracá em Guapindaia, 2001
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< FIGURA 1
A pintura decorativa das urnas
funerárias Marajoara representa
figuras femininas que combinam
traços humanos e animais. Em
geral, um círculo vermelho é
desenhado no ventre destes cor-
pos globulares, como uma pos-
sível representação do útero.
> FIGURA 2
A mesma figura mítica parece
estar representada na maioria
das urnas Marajoara. A constante
representação de círculos ver-
melhos pintados nestes corpos
tem sido interpretada como sim-
bologia da fertilidade feminina.
80cm (altura), 71cm (diâmetro)
> FIGURA 3
Algumas urnas apresentam uma
face humana no lugar do círculo,
uma provável referência à gra-
vidês e ao nascimento.
81cm (altura), 64cm (diâmetro)
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e Sousa et al., 2001), torna obrigatória a questão de por que, em Marajó, objetos tão importantes, imbuí- cialmente a região púbica, demarcada por triângulos, retângulos ou ovais. Algumas estatuetas parecem
dos de grande valor simbólico e ritual, sejam sistematicamente representados como figuras femininas. inclusive exibir intencionalmente seus ventres grávidos (figuras 7 e 8).
As estatuetas femininas, igualmente presentes na cerâmica Tapajônica, também encontram feições A grande maioria dessas estatuetas é encontrada fragmentada na altura do pescoço ou da cintura,
bem particulares em Marajó (figuras 4 e 5). À primeira vista, elas não parecem diferir muito do que nor- faltando a cabeça, um padrão que parece indicar a retirada intencional das cabeças previamente ao seu
malmente é interpretado nas artes pré-históricas como objetos utilizados em rituais de culto à fertili- descarte (figuras 7, 8 e 9). Observa-se que o que lhes dá uma identidade individual é justamente a
dade, ou a entidades espirituais femininas ligadas à reprodução e fertilidade (Roosevelt, 1988). cabeça, na qual as variações na forma de representação dos olhos, nariz, boca e cabelos são o que as
As estatuetas de Marajó parecem ter sido utilizadas em rituais de dança, pois muitas servem de tornam únicas e diferenciadas entre si.
chocalho, instrumentos que ainda são comumente utilizados em performances rituais em várias Muitas das estatuetas apresentam decoração pintada em variados motivos geométricos (figuras 4, 5
sociedades indígenas amazônicas. Algumas estatuetas apresentam orifícios laterais que possibilitari- e 8), lembrando a tradicional prática da pintura corporal amazônica. Alguns grupos de estatuetas pare-
am sua amarração para serem penduradas (figura 6), do mesmo modo que estatuetas similares de cem “vestir” os mesmos padrões de pintura corporal (figura 9), uma provável indicação de que as mu-
madeira são ainda usadas pelos xamãs Cuna e Choco em rituais de cura (Reichel-Dolmatoff, 1961). lheres representadas pertencem ao mesmo grupo social (tal como aldeia, linhagem, clã ou casa).
Parecem, portanto, pertencer a um domínio extremamente cerimonial da vida Marajoara. Uma outra característica intrigante das estatuetas Marajoara é sua forma fálica geral, com a cabeça
A maioria das estatuetas Marajoara representa uma mulher acocorada, na tradicional posição de e corpo formando um pênis, e as pernas formando os testículos, combinando assim características
parto das sociedades amazônicas. Aqui também, a genitália feminina é claramente representada, espe- femininas e masculinas em um único objeto (figuras 11 e 12). Na cerâmica Marajoara, apesar de refe-

> FIGURA 4 < FIGURA 5


Estatueta chocalho mostrando A decoração do corpo das estatuetas
mulher com decoração corporal lembra a tradicional prática da pintura
e arranjo de cabeça diferencia- corporal entre os povos indígenas da
do. É comum que nestas esta- Amazônia, em geral servindo como mar-
tuetas braços e pernas sejam cador de identidades sociais, especial-
bastante estilizados, valorizan- mente durante cerimônias rituais.
do traços faciais e marcadores 17cm (altura), 10cm (largura)
sexuais.
15cm (altura), 10cm (largura)
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> FIGURA 6 < FIGURA 8


Algumas estatuetas chocalho apre- A maioria das estatuetas Marajoara
sentam furos laterais, o que permi- mostram mulheres acocoradas, na po-
tiria que elas fossem amarradas ou sição de parto tradicional das mulheres
penduradas durante rituais. indígenas da Amazônia.
6,5cm (altura), 3,5cm (largura) 5,5cm (altura), 6cm (largura)
> FIGURA 7 < FIGURA 9
A maioria das estatuetas Marajoara Estatuetas pintadas e descabeçadas
são encontradas intencionalmente podem representar a tensão entre a
fraturadas, com suas cabeças fal- identidade individual da mulher (repre-
tando. Estas duas estatuetas pare- sentada em seus traços faciais) e sua
cem exibir seus ventres grávidos. identidade social (representada em seu
9cm (altura), 8cm (largura) corpo). A remoção intencional das ca-
beças pode simbolizar a perda de suas
identidades individuais.
De 13cm a 8cm (altura), de 12cm a
6cm (largura)
12 > 12 AMAZÔNIA

rências à genitália masculina serem encontradas em outros objetos (como o vaso da figura 10), esta
combinação de traços masculinos e femininos aparece apenas nas estatuetas.
Os corpos fálicos, privados de suas cabeças e decorados da mesma maneira, parecem destituir-se
por completo de suas identidades originais, sendo transformados em meros corpos reprodutivos que
compartilham um mesmo lugar na sociedade. A remoção intencional das cabeças, isto é, de suas car-
acterísticas individuais, talvez se desse durante rituais específicos, rituais de passagem da vida da mul-
her, simbolizando talvez o conflito pelo qual passa a mulher Marajoara dessa época, entre a sua identi-
dade individual e o seu papel como reprodutora de seu grupo social. Assim, as interpretações tradi-
cionais de estatuetas femininas como objetos de culto a “deusas” da fertilidade parecem encontrar, em
Marajó, uma outra alternativa.

< FIGURAS 10
A cerâmica Marajoara apresenta
uma gama de símbolos e refe-
rências a órgãos sexuais, assim
como este vaso de forma fálica.
19cm (altura), 15cm (largura)
> FIGURA 11
Este conjunto de “família” repre-
senta um dos raros exemplos de
estatuetas Marajoara do sexo mas-
culino, provavelmente um menino.
De 14cm a 7cm (altura), de 10cm
a 4,5cm (largura)
> FIGURA 12
Par de estatuetas fálicas visto de
costas.
Estatueta maior: 13cm (altura),
10cm (largura)
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A S TA N G A S M A R A J O A R A E A I D E N T I D A D E F E M I N I N A cerâmicas como corpos de cobras. Estes padrões se repetem em pequenos conjuntos de tangas, e pare-
Outro tipo distinto de objeto na cerâmica da fase Marajoara que poderia corroborar a idéia de antigas cem constituir um número finito de variações gráficas.
linhagens, e talvez de elites femininas, é a tanga, também conhecida como “tapa-sexo”, encontrada em O terceiro campo decorativo, maior e mais chamativo, corresponde ao campo triangular do restante
grande número nos sítios arqueológicos de Marajó, inclusive dentro das urnas funerárias. da tanga. São composições com figuras geométricas (linhas, cruzes, setas, espirais, gregas e outros)
As tangas são objetos triangulares de cerâmica com orifícios nas extremidades para a amarração junto combinadas em arranjos únicos (figura 13).
ao corpo. Eram provavelmente usadas por meninas e mulheres em contexto cerimoniais. Os únicos exem- Este grau de variação entre os campos decorativos faz com que mesmo que as tangas sejam bastante
plos etnográficos correlatos são protetores púbicos usados por mulheres de grupos Pano, no vale do Rio semelhantes entre si, elas nunca são exatamente iguais. Assim, a separação dos campos decorativos,
Ucayali, na outra extremidade da bacia amazônica. Lá, as meninas os vestem durante rituais de puberdade. com seus diferentes graus de variação, tem sido interpretada como uma forma de transmitir infor-
Em Marajó, as tangas parecem ter sido feitas sob medida, como atestam as variações de tamanho, mações sobre os diferentes níveis de inclusão social dos indivíduos que usavam as tangas, ou junto dos
curvatura e forma destes finos objetos cerâmicos (figuras 13, 14 e 15). Algumas mostram sinais de uso quais eram enterradas, seguindo uma ordem do grupo social maior (como talvez o gênero feminino, ou
intenso, com sinais de forte abrasão nas áreas de amarração. Outras, contudo, parecem intactas, e às a idade púbere), para outro mais específico (como a linhagem ancestral, a aldeia, ou a casa), até a iden-
vezes nem sequer apresentam os orifícios para amarrá-las. tidade individual da pessoa (Schaan, 2001a).
Apesar de as tangas Marajoara serem conhecidas já há mais de um século, em geral pouco se sabia Poderia se pensar que, em sociedades organizadas em matriarcados, com linhagens maternas ou
sobre os contextos em que foram encontradas. Pesquisas recentes em Marajó sugerem que elas eram clãs femininos diferenciados socialmente, ao longo do tempo, certos objetos estritamente relacionados
mais do que simples protetores ou ornamentos púbicos. As tangas parecem representar verdadeiros a universos femininos, como as tangas, acabassem por se tornar marcadores de origem social e
objetos emblemáticos, contendo uma variedade de informações visuais, claramente desenhadas para posição hierárquica para todos os indivíduos, homens, mulheres, e talvez até mesmo crianças.
acompanhar os mortos em contextos funerários. A repetição e combinação dos motivos geométricos que as tangas apresentam lembram fortemente o
A compilação e comparação de tangas em contextos escavados demonstra que a maioria eram tangas tipo de grafismo ainda produzido por grupos do alto Amazonas, com motivos visualizados em rituais xam-
lisas, acabadas apenas com um engobo vermelho (figura 15). De acordo com Schaan (1997 e 2001a), somente anísticos induzidos por transes alucinogênicos e reproduzidos em uma série de superfícies. Entre os Siona
um pequeno número de tangas era decorado, em geral com uma série de complexos motivos geométricos e os Cuna, representações estilísticas e simbólicas similares parecem se basear em um número finito de
pintados em vermelho ou preto sobre um fundo branco. Estas proporções podem representar diferenças de elementos geométricos, os quais, combinados de diferentes maneiras dentro de regras bastante precisas,
prestígio social entre mulheres, e confirmar a existência de uma elite feminina à qual se destinariam as pou- acabam formando um número infinito de desenhos diferentes. Os desenhos são únicos, mas sempre se
cas tangas decoradas. Isto parece se confirmar nos contextos funerários, em que urnas maiores e mais de- realizam conforme parâmetros definidos culturalmente como referências visuais (Reichel-Dolmatoff, 1978).
coradas contêm tangas também decoradas. Contudo, como nem todas as tangas parecem ter sido uti- Nas tangas, o campo de decoração maior e mais chamativo é justamente o motivo gráfico único, o
lizadas, e que essas são encontradas também em urnas de indivíduos masculinos (Schaan, 2001a), talvez que parece definir e reforçar a identidade do indivíduo no grupo social maior. No entanto, este campo
elas tenham se tornado ao longo do tempo um tipo de oferenda funerária prestigiosa ou, simplesmente, um segue também uma linguagem comum, uma combinação possível de motivos, que forma um desenho
meio de demarcar a origem social do indivíduo a partir de sua associação a grupos femininos. que se conforma ao que é aceitável ou desejável pelo grupo maior em que o indivíduo se insere.
Assim como em outros objetos cerâmicos da fase Marajoara, a decoração das tangas parece ter Em outras palavras, a iconografia das tangas pode expressar as tensões e conflitos entre indivíduos
seguido regras bastante precisas. A superfície externa triangular é quase sempre dividida em três cam- e a sociedade, entre o “eu” e a cultura coletiva, especialmente durante a transformação das comu-
pos decorativos. O primeiro é uma faixa superior, composta de triângulos, barras verticais e inclinadas, nidades de Marajó em cacicados. Apesar de estes conflitos serem certamente universais, atingindo
com um retângulo, ou |__| no centro, símbolo também utilizado nas estatuetas para indicar o púbis. Esse todos os indivíduos em qualquer sociedade em rápida transformação, em Marajó, a profusa produção
arranjo se repete em um grande número de tangas, com triângulos totalmente preenchidos ou com li- de objetos rituais ligados ao universo feminino pode testemunhar a necessidade maior em reafirmar as
nhas quadriculadas (figura 14). estruturas tradicionais que organizavam a sociedade. É possível que, com a emergência de estruturas
O segundo campo decorativo é uma outra faixa, em geral mais estreita, com motivos geométricos de poder mais complexas, surja também a necessidade de reforçar antigas divisões sociais relacionadas
compostos por ziguezagues, linhas, cruzes e pontilhados, em geral representados em outros tipos de às mulheres, principalmente o universo ancestral.
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CONCLUSÃO > FIGURA 13


Par de tangas decoradas. Ob-
A cerâmica e sua iconografia sugerem que as mudanças ocorridas nessa época em Marajó afetavam serva-se a repetição do padrão
profundamente as mulheres, dada não só a tendência a uma maior desigualdade social em geral, mas decorativo na faixa superior. A
repetição e distribuição de mo-
também às pressões para reforçar a identidade cultural entre grupos ascendentes e rivais, trazendo tivos decorativos nas tangas
necessariamente uma reorganização e hierarquização de divisões sociais anteriormente baseadas sugerem que elas servem de
suporte para transmitir dife-
apenas no gênero, e um maior compromisso de indivíduos perante a sociedade e suas lideranças como rentes tipos de informação
sobre a identidade da mulher
um todo. Em outras palavras, a comunidade das mulheres torna-se um grupo mais diferenciado e
que a veste.
menos coeso, ao mesmo tempo que seu papel como reprodutora de seu grupo social torna-se mais 12cm (altura), 15cm (largura)
relevante. Essas mudanças podem explicar portanto a necessidade de reafirmação das identidades > FIGURA 14
Cada tanga Marajoara parece ter
femininas através da cerâmica. sido feita para uma mulher em
Finalmente, é importante lembrar que a cerâmica é uma produção tradicionalmente feminina na particular, vista a variação nos
tamanhos, formas e decorações.
Amazônia e, apesar de não sabermos exatamente que tipo de controle as mulheres exerciam sobre a As tangas eram provavelmente
sua fabricação e decoração, é certo que este seria um meio bastante propício para expressarem seus usadas por mulheres e meninas
durante cerimônias rituais.
conflitos de identidade. 12cm (altura), 12cm (largura)
Por outro lado, desde os primeiros estudos sistemáticos dos diferentes estilos decorativos presentes > FIGURA 15
A maioria das tangas Marajoara é
nos sítios de Marajó encontra-se uma certa dificuldade em classificá-los de acordo com seqüências lisa, apenas com um acabamen-
cronológicas ou variações regionais. No entanto, se pensarmos que estes estilos correspondem a to vermelho. As tangas decora-
das eram provavelmente des-
padrões representados por diferentes linhagens ou clãs femininos, e que as ceramistas os levam con- tinadas às mulheres de maior
sigo quando se mudam de comunidade, a variação estilística encontrada em Marajó poderia fornecer prestígio social.
13,5cm (altura), 19cm (largura)
pistas para não só entendermos outros aspectos da organização social, como a circulação das mulheres
e os padrões de interação entre as várias comunidades, mas também como se deu a hierarquização
destas comunidades em cacicados e o papel das mulheres nestas transformações.
Talvez jamais saberemos se verdadeiros matriarcados de fato existiram em Marajó. Podemos apenas
especular que as valentes mulheres encontradas por Carvajal em 1542, andando despidas com suas
partes privadas cobertas (possivelmente com as suas tradicionais tangas), podem de fato ter sido as últi-
mas das mulheres Marajoara, as sobreviventes de uma cultura que desapareceu por volta de 1400, levan-
do consigo os segredos sobre como as mulheres Marajoara resolveram seus conflitos de identidade, mas
deixando-nos para sempre a sua elaborada arte cerâmica, repleta de significados simbólicos.

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