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ROBERTO DA MATTA

* Uma versão completa


deste trabalho se acha no Se você entrevistar dez membros da o perigo das globalizações normativas,
livro organizado por mim,
Universo do futebol,
elite brasileira, pedindo a cada um a porque estas podem deixar de lado a
Edições Pinakotheke, Rio lista do que gosta e do que odeia, cer- questão da sociedade brasileira. E não
de Janeiro, que também
congrega artigos de Luiz tamente o futebol, o carnaval, o jogo há duvida de que sem passar a sociedade
Felipe Baêta Neves, Simone
Guedes e Arno Vogel. do bicho e a cachaça surgirão na coluna e seus sistemas de classificação pelo crivo
Uma versão resumida das coisas detestáveis, do lado massifi- da interpretação crítica estaremos todos
apareceu em Le Debat, n.°
19, Fev. 1982, Gallimard, cador e alienante da vida em geral e do muito longe de uma visão realmente
Paris. Gostaria de deixar
clara aqui a minha dívida Brasil em particular. E, muito curiosa- transformadora do Brasil.
intelectual para com os
referidos trabalhos de Baeta
mente para o seu inquérito e para a re- E o país, sabemos, não é fácil. Vale
Neves e Arno Vogel. flexão sociológica, certas formas de "ra- dizer: estamos descobrindo que não há
dicalismo chic" irão aparecer entre as coi- um modelo único do Brasil, embora se
sas "que eu mais admiro", junto com a possa falar num "modelo brasileiro" ou
música barroca, os quadros de Pancetti, usar paradigmas europeus e norte-ameri-
as calças jean, os autores franceses e, canos para esclarecer o caso do Brasil.
naturalmente, o Lula. Explicar essa an- Como diria Geertz, temos muitos mode-
tinomia tem sido um dos objetivos da los para o Brasil, e isso talvez seja o
minha carreirinha como antropólogo so- grande avanço das nossas Ciências So-
cial, pois entendo que essa relação apa- ciais nos últimos anos, mas não temos
rentemente casual e contraditória é coe- mais um modelo exclusivo do Brasil.
rente numa sociedade onde se preza a Básico, parece-me, é descobrir que esta-
liberdade e até mesmo a igualdade, desde mos nus e sós diante de nós mesmos e
que se pertença à família apropriada, que cabe a nós e não a Freud, Marx,
tenha-se estudado no lugar certo e se Weber ou Durkheim, nos dar de pacote
possua a ideologia a mais "aberta". ou presente — a teoria do Brasil.
Como as pessoas que escrevem são Tenho salientado no meu trabalho
justamente os filhos, enteados, maridos, (cf. Da Matta, 1973, 1979, 1981 e 1982)
afilhados, amigos e sócios desta elite, que uma das dificuldades para se enten-
eles naturalmente só falam dos temas no- der o Brasil é a nossa mentalidade linear,
bres para a chamada "vida nacional". que situa uma coisa depois da outra,
Como, por outro lado, ninguém da elite Estou convencido de que o Brasil é uma
vai ver futebol, carnaval ou jogar no bi- sociedade muito mais dada a relações e
cho, deixa-se de lado tudo o que é clas- simultaneidades do que a linearidades e
sificado como do "povo", porque aqui rupturas. Na nossa terra, é mais fácil
teríamos a revelação da alienação que ter uma combinação "teoricamente im-
uma sociologia generosa e bem-intencio- possível", do ponto de vista histórico-
nada deveria tratar de erradicar. Sem social, do que romper com a constelação
discutir o generoso e as boas intenções institucional que a sustenta, e que nossa
d e s t a p o s tu ra , c h a m a r ia a a t e n ç ã o p a r a te o r ia i n s is t e e m p e rc e b e r c o m o u m a

54 NOVOS ESTUDOS Nº 4
"etapa histórica" que milagrosamente funciona na sociedade brasileira) é um
sobrevive entre nós. O fato, porém, é veículo para dramatizações de problemas
que a sociedade brasileira é pródiga em importantes. Se estudo o esporte, quero
combinações e ligações que, à primeira me aproximar desta atividade buscando
vista, são inteiramente deslocadas ou até entendê-la como parte da sociedade e
mesmo impossíveis. Assim, é mais fácil não em oposição reificada a ela. Acho
ser católico e umbandista, milionário e que quanto mais estudo o futebol prati-
socialista, aristocrata e populista, ao mes- cado no Brasil, mais terei possibilidades
mo tempo, do que ser uma só dessas de entender a sociedade brasileira, que
coisas num dado momento da existência. também se manifesta pelo esporte. A
Tal como ocorre no plano da sociedade, noção de drama social, que se inspira
onde combinamos, de forma teoricamente na obra de Max Gluckman (1958) e
complexa, autoritarismo estatal, pa- Victor Turner (1957, 1974), é o conceito
tronagem familística e um capitalismo fundamental que permite articular o
moderno que opera eficientemente em observado no dia-a-dia (os jogos de fu-
muitas áreas. Geralmente somos ideoló- tebol e a infra-estrutura do esporte) com
ligos na rua, e adotamos o senso comum valores sociais mais básicos. Isto porque
tradicionalista em casa, quando funcio- o drama, conforme tem indicado Turner,
namos governados por uma ética das re- é uma ocasião onde as normas sociais en-
lações pessoais e da família. O que é, tram em crise e são pensadas de forma
porém, fascinante em tudo isso é não reflexiva. Não são mais vividas como
nos darmos conta das implicações sociais trilhos por onde pode correr tranqüila-
e políticas destes dois modos avessos de mente a vida social, mas são vistas como
ler ou interpretar a nossa realidade. questões e obstáculos que impedem a
Assim, não conseguimos perceber bem realização das vontades de grupos, cate-
até hoje que a questão não está somente gorias e pessoas. Os dramas servem como
em termos um capitalismo "selvagem" indicadores de normas, relações e insti-
e autoritário. A questão está em desco- tuições nas suas operações concretas e
brir que vivemos numa sociedade que em processos sociais. Um dos pressupos-
relaciona intensa e funcionalmente dois tos básicos da idéia de drama social é
sistemas: um de mercado, acoplado a um que uma sociedade sempre se reproduz
aparato legal, fundado em leis universais a si mesma em quaisquer domínios so-
e no indivíduo como sujeito; e outro, ciais que institui em seu meio. Assim,
de redes imperativas de relações pes- as dramatizações da esfera econômica se
soais, que funcionam hierarquicamente, traduzem no plano político, religioso e
mantendo os velhos privilégios elitistas. até mesmo na culinária, conforme a de-
O problema não seria ter capitalismo monstração de Claude Lévi-Strauss.
em excesso mas ter capitalismo pela me- O futebol praticado, vivido e teori-
tade. Isto é, um sistema onde o mercado zado no Brasil seria um modo especí-
e as leis universais somente operam para fico — entre outros — pelo qual a
baixo, no sentido dos que não têm uma nossa sociedade fala, apresenta-se, revela-
representatividade por meio do nome, se, exibe-se, deixando-se descobrir.
das relações ou dos bens de família. A Apreciar sociologicamente a singularida-
capitalismo raiz do nosso autoritarismo, deste modo, de desta "leitura" do nosso sistema so-
em excesso ou estaria nesta simultaneidade ou nesta ca- cial por nós mesmos através do futebol
capitalismo pacidade de relacionar laços de família,
amizade e compadrio (com suas éticas
é um dos principais objetivos deste tra-
balho.
pela metade de patronagem e considerações) e um
sistema de leis universais que são cons- A especificidade do futebol
tantemente colocadas em xeque pela ló- brasileiro
gica dos laços pessoais.
Penso que é neste quadro social que Estudemos comparativamente o signi-
poderemos interpretar a popularidade e ficado relativo do futebol em diferentes
a importância de um esporte como o sociedades. Vejamos como o esporte (e
futebol. o futebol) são conceituados na sociedade
inglesa e norte-americana, em contraste
O conceito do drama com o modo como essas mesmas ativida-
des são concebidas no Brasil. Para ame-
Não estabeleço neste trabalho a fa- ricanos e ingleses, o football, o tennis, o
mosa dicotomia esporte/sociedade. En- baseball, o soccer, o golf etc. são sports;
tendo que o futebol (como tudo o que ao passo que, para os brasileiros, a pa-

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FUTEBOL: ÓPIO DO POVO OU DRAMA DE JUSTIÇA SOCIAL?

lavra futebol nunca surge sozinha, mas é tebol com a loteria esportiva são vários
sempre precedida do qualificativo jogo. os jogos de futebol que são "jogados",
Assim, no Brasil, vai acontecer um "jogo- em planos diferenciados, mas simulta-
de-futebol", o evento foi "um jogo bom neamente. Há um jogo que se passa no
ou ruim". Não é apenas uma questão de campo, jogado pelos jogadores como ati-
falar de futebol, mas de comentar ou vidade profissional e esportiva. Há um
discutir um "jogo-de-futebol". A posição outro jogo que se passa na vida real,
específica do futebol (e do esporte em jogado pela população brasileira, na sua
geral) varia em cada sociedade. No caso constante busca de mudança para seu
brasileiro, o fato de existir uma destino. E um terceiro jogo, jogado no
associação entre futebol e "jogo" denota "outro mundo", onde entidades são cha-
duas idéias que, no caso da sociedade madas para influenciar o evento e, assim
americana, seguem separadas. Uma delas fazendo, promover transformações nas
é a idéia de "jogo de azar" que, no Bra- diferentes posições sociais envolvidas na
sil, é indicada pela expressão "jogo", ocasião esportiva. Tudo isso revela como
mas nos Estados Unidos e na Inglaterra uma dada instituição, no caso o football
é designada por gamble, algo que está association, inventado pelos ingleses,
distante da atividade esportiva propria- pode ser diferencialmente apropriado.
mente dita, embora possa obviamente fa- Neste sentido, o futebol praticado no
zer parte de sua constelação ou das or- Brasil deve ser visto não só como um
ganizações que o esporte permite arti- esporte, mas também como o jogo de
cular. A outra é a idéia relativa à ativi- todo um outro conjunto de valores e
dade esportiva que, na definição consa- relações sociais.
grada do Dicionário Oxford, é "a diver- Paralelamente, sabemos que o futebol
sion of the nature of a contest, played brasileiro se distingue do europeu por
according to rules and decided by supe- sua improvisação e pela individualidade
1
rior skill, strenght, or good fortune".1 dos jogadores, que têm, caracteristica-
"Uma diversão, de espécie
competitiva, em que se atua Observo que a ênfase da conceituação mente, um alto controle da bola. Deste
segundo regras, e que é deci-
dida por habilidade, força ou
do "esportivo", no universo social anglo- modo, o futebol é, na sociedade brasilei-
sorte." saxão, está na competição, na técnica e na ra, uma fonte de expressão individual.
força, ficando a sorte em último lugar. Realmente, é pelo futebol praticado nas
Parece, pois, que nos Estados Unidos e grandes cidades que o povo brasileiro
na Inglaterra o domínio do esporte tem pode se sentir pessoalizado. Do mesmo
muito a ver com a ênfase no controle modo, é dentro de um time de futebol
do físico e na coordenação de indivíduos que um membro da massa anônima e
para formar uma coletividade. Ao passo desconhecida, o chamado "povão", pode
que, no Brasil, o esporte é vivido e tornar-se uma estrela e ganhar o centro
concebido como um jogo. É uma das atenções como pessoa, como uma
atividade que requer táticas, deter- personalidade singular, insubstituível e
minação psicológica, habilidades técni- capaz de despertar atenções (cf. Da
cas, mas também depende das forças in- Matta, 1979: Cap. IV).
controláveis da sorte e do destino. Real- Tomemos duas dramatizações bási-
mente, nos comentários após os jogos de cas do futebol no Brasil e passemos ao
futebol no Brasil, existem muitas situa- estudo de suas implicações sociais e po-
ções onde se sabe que um dos times não líticas mais importantes.
jogou somente contra o tempo e o adver-
sário, mas também contra o destino, que Duas dramatizações do futebol
deve ser modificado ou corrigido para
que a vitória possa lhe sorrir. a. Destino e biografia
Não deve ser por acaso que, em certos
países, o futebol esteja associado a um Tudo leva a crer que o destino como
sistema nacional de loteria. No caso es- categoria social é a tentativa que fazem
pecífico do Brasil, a chamada "loteria algumas sociedades de estabelecer uma
esportiva", inteiramente relacionada ao mediação entre o conjunto de forças im-
futebol, permite atualizar um conjunto pessoais, que move o mundo, e as pes-
de valores associados ao sistema brasi- soas, com suas biografias, desejos e ne-
o jogo de futebol leiro da sorte e do azar, inclusive com cessidades, que vivem neste mundo. A
como uma o apelo mágico às entidades sobrenatu- idéia de destino permite construir uma
rais das chamadas religiões afro-brasilei- "ponte" entre o plano individualizado
metáfora da ras (como a umbanda) e do catolicismo das biografias e as forças que naquele
própria vida popular. Através desta associação do fu- sistema são vistas como tendentes a "jo-

56 NOVOS ESTUDOS Nº 4
gar" com cada biografia e com cada von- que realizou a melhor campanha, será o
tade. É precisamente esse choque e essa campeão. É uma questão de justiça e de
luta que a idéia de destino parece expri- ordem. E, no entanto, no jogo decisivo,
mir. Creio que esse choque é um ponto este time invencível, que contava com
crítico em sistemas sociais marcados por tudo a seu favor, perdeu.
um individualismo não radical, diverso Como isso pôde acontecer?
daquele que parece caracterizar as socie- Essa foi a pergunta que todos fizeram
dades da Reforma protestante e da Re- no Brasil quando, em junho de 1950, a
volução Industrial. Em sistemas que es- equipe brasileira foi derrotada no Rio de
tão a meio caminho, a idéia de destino Janeiro, pela equipe uruguaia, no final
parece ser uma categoria básica. do campeonato mundial de futebol. Essa
Como o futebol é constituído de re- derrota tem um peso muito grande e
gras fixas, esse drama surge claramente. deve ser investigada de nossa perspecti-
Assim, o jogo de futebol demarca com va. Primeiro, ela é talvez a maior tra-
nitidez uma interação complexa entre gédia da história contemporânea do Bra-
regras universais (as regras do jogo) e sil. Porque envolveu a coletividade e
vontades individuais (das equipes e jo- trouxe uma visão solidária da perda de
gadores, em confronto). O resultado dis- uma oportunidade histórica. Segundo,
so, como vitória ou derrota, é uma boa porque ela ocorreu no início de uma dé-
metáfora para o jogo como destino e cada na qual o Brasil buscava marcar o
biografia, tema básico da própria socie- seu lugar como nação que tinha um gran-
dade brasileira. de destino a cumprir. O resultado foi
No futebol (como na chamada "vida uma busca incansável de responsabilida-
real"), os homens estão relacionados em des para essa vergonhosa derrota. E é
times (e famílias), pretendem vencer e neste processo de "alocação de responsa-
atuam com um certo estilo. Mas não po- bilidades" (cf. Gluckman, 1972) que de-
dem controlar as ações da equipe adver- vemos encontrar as razões sociais da dra-
sária, ou as coincidências, os erros e os matização em estudo.
acertos que decorrem do próprio jogo. Após a derrota, falou-se de destino e
Mesmo quando uma equipe apela para de má sorte. E o destino neste caso indi-
meios mágicos de vitória (o que é muito cava uma sociedade que pretendeu esca-
comum no futebol brasileiro), a vitória par de sua posição de derrotada. Tal
pode ser situada no plano do favorável, "golpe do destino" fez com que muitos
mas nunca no da certeza. Ora, é precisa- brasileiros fossem tomados de uma tre-
mente essa interação complexa do time menda desilusão quanto a planos e pro-
com o time adversário, do time com ele jetos detalhados. De que valia tudo isso,
mesmo, das duas equipes com as regras perguntavam amargamente, se no final
que governam o espetáculo e das equipes, eram derrotados e a boa sorte não lhes
regras e público com os controladores da sorria? Mas as explicações não ficaram
partida (juízes e bandeirinhas) que cria o neste nível geral. Vários jornalistas, con-
fascínio exercido pelo futebol enquanto forme revela o trabalho de Guedes
um jogo e um drama. É sem dúvida essa (1977), trataram de detalhar melhor
complexidade que permite tomar o jogo essas forças do destino, identificando-as
de futebol como uma metáfora da pró- nos fatores raciais. A derrota, portanto,
pria vida. foi explicitamente atribuída à nossa in-
2 Imagine uma equipe treinada, com feliz constituição racial e ao peso enorme
Mário Filho, autor de um
estudo que durante anos foi jogadores altamente motivados e habili- que carregamos como uma sociedade for-
singular como um trabalho dosos, todos excelentes em termos físi- mada por vários grupos inferiores como
de especulação sobre a im-
portância do nosso futebol, cos e disciplinares. Junto a esses fatores "índios" e "negros". Dois jogadores do
diz a propósito deste assun-
to: "A prova (da derrota de uma campanha futebolística perfeita. No selecionado brasileiro, ambos negros e
1950) estaria naqueles bodes
expiatórios, escolhidos a de-
último jogo desta equipe, decisivo para membros da defensiva do time nacional,
do, e por coincidência todos a conquista do título de campeão mun- foram situados como exemplos deste des-
pretos: Barbosa, Juvenal e
Bigode. Os brancos do es- dial de futebol, ela deverá defrontar-se tino triste e inferior. 2
crete brasileiro não foram com um outro time também poderoso, Fez-se aqui uma junção entre o "jogo
acusados de nada". Mário Fi-
lho, é claro, é um otimista. mas cuja campanha foi muito mais irre- de futebol" e o "jogo da vida". De modo
Os jogadores foram escolhi-
dos precisamente porque
gular e inferior. De fato, tão irregular que a derrota para o Uruguai foi tomada
eram pretos e mais, eram que só terá direito ao título de campeão como uma metáfora para as "derrotas"
todos membros da defensiva da própria sociedade brasileira, sempre
do time brasileiro. E nós se conquitar uma vitória. Um empate
sabemos que, na alocação das dará o campeonato ao nosso time per- submetida às forças impessoais do des-
responsabilidades da derrota,
a defesa é sempre mais cul- feito. Na mente de todos, não há dúvida tino. O futebol, portanto, trouxe à su-
pada que o ataque. Na vitó-
ria, a situação se inverte. (Cf.
de que o time mais motivado, treinado, perfície o dilema entre motivações vivas
Mário Filho, 1964.)

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FUTEBOL: ÓPIO DO POVO OU DRAMA DE JUSTIÇA SOCIAL?

e atuais, que desejam vencer, e as forças do futebol se pode realizar uma outra
da "raça" — impessoais e incontroláveis dramatização muito importante. Trata-se
— , que acabam conduzindo à derrota. da reificação que o jogo permite, quando
A derrota no futebol acabou reativando deixa que uma entidade como um "país"
um velho modelo cultural pessimista, ex- ou um "povo" seja experimentada empi-
presso no drama de uma sociedade que ricamente como algo visível, concreto,
se acredita "racialmente impura". determinado. Como uma equipe que so-
Se o futebol então é bom para ser fre, vibra e vence adversários. Como um
visto, ele também serve para dramatizar time que reage aos nossos incentivos po-
e pôr em foco os dilemas de uma socie- sitivos e negativos. Ora, num país onde
dade. Do mesmo modo, o tema do des- a massa popular jamais tem voz e quan-
tino, como uma categoria expressiva do do fala é através dos seus líderes, den-
conflito entre vontades individuais e for- tro das hierarquizações do poder, a ex-
ça coletiva impessoal, surge no racismo periência futebolística parece permitir
erudito dos intelectuais, para quem a sor- uma real vivência de "horizontalização
te do Brasil está (ou estava) lançada do poder" por meio da reificação espor-
pelas forças impessoais de uma história tiva. O povo vê e fala diretamente com
biológica cuja dinâmica estava longe da o Brasil, sem precisar dos intermediários
vontade dos homens. Por outro lado, no que totalizam o mundo social para ele,
carnaval e na música popular, isso para e em seu nome. É pelo futebol, então,
não falar de religiões brasileiras como a que se permite à massa uma certa inti-
umbanda, o destino ocupa um papel bá- midade com os símbolos nacionais. E é
sico como teoria explicativa do sofrimen- só nos dias dos jogos da "seleção brasi-
to e do sucesso humanos. leira" que se pode observar o povo ves-
Dentro deste quadro cultural, onde o tido com as cores da bandeira nacional,
destino ocupa um lugar tão importante, vivendo uma experiência concreta da
3
Veja-se, como documentário pode-se entender a conquista do tricam- "união nacional".3 Nestes momentos de
do que acabo de dizer, o
exaltado artigo de Otto Lara
peonato mundial de futebol, em 1970, "carnaval cívico", criados pelo futebol,
Resende, intitulado "Brasil como uma espécie de vingança nacional. os símbolos sagrados da pátria (que no
bola Brasil-Pelé pátria Pele", Brasil são cercados de regras em termos
publicado quando da vitória Um momento único em que toda uma
do tricampeonato mundial sociedade podia, finalmente, experimentar do seu uso) deixam de ser propriedade
de futebol em 1970 e
publicado no Jornal do a vitória contra essas forças impessoais do "governo" e das "autoridades", para
Brasil, no dia 29 de junho
de 1970.
que sempre a colocaram no fundo do se disseminarem pela massa anônima que
poço. Simultaneamente com esse pro- com eles celebra uma relação de franca
cesso, veio uma redefinição do valor da e desinibida intimidade.
"raça", sobretudo da "raça negra", como
fundamentalmente positiva. Creio que é b. Regras universais e desejo de
desta posição que podemos entender o grupos e indivíduos
fenômeno Pelé e o seu coroamento como
"Rei do Futebol". Pois se o negro, visto Grande parte das discussões do fute-
como inferior pelos racistas brasileiros, bol no Brasil são sobre o problema da
é o responsável pela derrota trágica de aceitação (ou não aceitação) das regras
1950, o supernegro Pelé, com sua "arte" do jogo como um sistema imutável e
e sua "malandragem", é o responsável fora de questão. Ou seja: das regras
pela vitória do Brasil nos campeonatos como um sistema que está realmente
mundiais subseqüentes. Por outro lado, acima do poder político, religioso, eco-
essa valorização da "raça" veio acompa- nômico dos clubes e das equipes e, na-
nhada de uma explosão carnavalesca to- turalmente, da vontade dos torcedores,
das as vezes que a equipe do Brasil ven- sobretudo dos torcedores poderosos.
cia e chegava mais próxima do título. Muito do que se discute, portanto, re-
Assim, após cada jogo, multidões iam volve em torno da aceitação das regras
para as ruas cantar em coro slogans gros- do jogo como normas universais e das
seiros e depreciativos contra as equipes conseqüências disso quando sua aplica-
estrangeiras que haviam sido derrotadas. ção é realizada de modo automático pelo
Era como se o mundo tivesse sido tota- "juiz" da partida. Deste modo, a ques-
lizado pelo futebol, de modo que o de- tão do "espírito esportivo" ou "espírito
sempenho futebolístico servia de medida olímpico" é fundamental neste tipo de
para tudo. Não se tratava mais de equi- dramatização. Conforme falamos, os ti-
pes de futebol, mas de sociedades cuja mes "devem saber perder" e é certa-
essência era medida pelo futebol. mente por causa disso que o juiz e os
E isso não é tudo, pois que através bandeirinhas são freqüentemente culpa-

58 NOVOS ESTUDOS Nº 4
dos pela derrota de um time, tendo que fossem os interessados. É o regime do
pagar as conseqüências dos seus erros. privilégio, da lei particular, feita para
São, de fato, legião, as agressões a juízes uma pessoa ou para um grupo social.
e bandeirinhas neste contexto da aplica- Pois bem, a institucionalização da
ção das regras e a sua discussão pela disputa esportiva vai depender direta-
equipe que se sentiu prejudicada. mente da vigência de regras universais,
Mas "saber perder" significa aceitar a às quais todos se submetem. Esse é um
igualdade como o axioma fundamental do dos traços básicos do esporte como ati-
jogo. Princípio sem o qual a própria idéia vidade moderna, pois sem ele a compe-
de jogo torna-se impossível de ser pen- tição individualizada, tal e qual nós a
sada. Como indicou Lévi-Strauss, no entendemos, é impossível.
jogo a idéia básica é a da igualdade no Por outro lado, a aceitação de regras
início da atividade, quando começa a universais é uma mera reprodução — a
disputa. Mas é exatamente essa igualda- nível de um outro domínio — do prin-
de inicial que deverá transformar-se no cípio ético burguês da igualdade perante
decorrer da partida, cedendo lugar a uma o mercado e diante da lei.
dissociação no final (cf. Lévi-Strauss, No caso brasileiro, porém, essa igual-
1962: Cap. 1). Mas é preciso observar dade estrutural é um ponto de tensão
que o jogo só pode operar como institui- entre grupos, do mesmo modo que sa-
ção, caso ambos os partidos (e a socie- bemos que existem vestígios claros da
dade em geral) estejam de acordo com ordem tradicional no Brasil. Assim, mili-
a diferenciação final em vitorioso e der- tares e profissionais liberais, por exem-
rotado. A igualdade perante as regras plo, têm direito a prisão especial em
universais é, assim, o ponto central da caso de crimes, isso para não falar nos
atividade que denominamos "jogo". No "direitos" aceitos como legítimos, con-
caso do ritual, as coisas parecem se pas- feridos aos parentes de quem ocupa po-
sar de modo diverso. Aqui, o oficiante sições de prestígio e poder. De certo
sabe muito mais das "regras" ou da "eti- ponto de vista, portanto, o dilema brasi-
queta" do sagrado do que seu cliente leiro — conforme disse alhures (cf. Da
para quem ele está operando o rito. Deste Matta, 1979) — pode ser entendido
modo, a igualdade do jogo, em contraste como uma tensão entre relações pessoais
com a desigualdade do ritual, é uma que garantem um mundo pessoalizado,
igualdade dos disputantes perante regras feito de gradações, e leis universais que
que operam universalmente, tendo de ser exigem o oposto, pois conferem igualda-
acatadas por todos. Ao passo que no de teórica a todos e demandam a liqui-
ritual elas operam com gradações e dação dos privilégios pessoais e de famí-
hierarquias, pois o oficiante está mais lia. O Brasil, como outras sociedades
próximo do sagrado do que o cliente ou com um forte ranço tradicional (dado na
seguidor. ênfase nas relações pessoais, verticaliza-
Com essa idéia não será surpresa veri- das e hierárquicas), tem dificuldades
as regras como ficar que o advento do esporte como para aceitar o postulado da igualdade
um sistema uma atividade mobilizadora de recursos entre todos, sobretudo quando se trata
de regras ligadas aos processos de trans-
que está acima materiais e humanos nacionais e interna-
cionais é algo paralelo ao nascimento da missão do poder e decisão política entre
do poder sociedade individualista e igualitária mo- grupos.
político derna. Vale dizer: de uma ordem social Em sociedades assim constituídas,
fundada no fato básico que é o reconhe- creio que a popularidade do futebol jaz
cimento de leis universais, aplicáveis a na capacidade do esporte possibilitar
todos os indivíduos. Um dos traços dis- uma experiência com "estruturas perma-
tintivos da sociedade tradicional é a de- nentes". Um permanente que se define
sigualdade vista como algo natural. O por meio de regras universais que nin-
resultado da institucionalização da desi- guém pode modificar. Assim, ao contrá-
gualdade em todos os níveis é a multipli- rio da política, onde após cada derrota
cidade de regimes legais e jurídicos vi- (ou ao simples vislumbrar da derrota)
gentes no mesmo corpo social. Assim, na os grupos dominantes buscam modificar
sociedade tradicional, o mesmo crime co- as regras do jogo, o futebol proporciona
metido por pessoas situadas em ordens uma experiência exemplar de legitimidade
sociais diversas era julgado de modo di- e de acatamento às leis. Aqui as regras
ferente. Havia leis particulares, já que não mudam e isso faz com que todos
se pensava que deveria existir tantas leis sejam iguais no campo da disputa.
q u a n ta s fo sse m a s situ a ç õ e s e q u a n to s D e rr o t a o u v it ó ri a é o p rê m i o a s e r e fe -

NOVEMBRO DE 1982 59
FUTEBOL: ÓPIO DO POVO OU DRAMA DE JUSTIÇA SOCIAL?

tivamente colhido por quem joga me- futebol são tão básicos no Brasil, tudo
lhor. Trata-se da utilização do futebol indica que, diferentemente de certos paí-
como um instrumento que permite ex- ses da Europa e América do Norte, nos-
perimentar a igualdade. Uma forma de sas fontes de identidade social não são
igualdade aberta e altamente democráti- instituições centrais da ordem social,
ca, pois que inteiramente fundada no como as leis, a Constituição, o sistema
desempenho. Diferentemente, portanto, universitário, a ordem financeira etc.,
das classificações rotineiras, onde as pes- mas certas atividades que, nos países
soas são definidas por meio de suas rela- centrais e dominantes, são tomadas como
ções (pertencer a uma família, ter um fontes secundárias de criação de solida-
título de doutor, receber um determi- riedade e identidade social. Assim, é a
nado espírito, tendo com ele relações música, o relacionamento com os santos
de compadrio, trabalhar para alguém po- e espíritos, a hospitalidade, a amizade,
deroso etc), no futebol, e em todas as a comensalidade e, naturalmente, o car-
atividades recreativas em geral, as clas- naval e o futebol que permitem ao brasi-
sificações são feitas pelo desempenho, leiro entrar em contato com o perma-
ou seja: são individuais. Deste modo, nente de seu mundo social. Nestes do-
ninguém pode ser promovido a astro de mínios, as regras não mudam e são acei-
futebol pela família, pelo compadre ou tas indistintamente por todos. Temos,
por decreto presidencial, mas deve pro- então, em comparação com os Estados
var suas qualidades numa experiência Unidos, uma relação plenamente inver-
empírica — experiência que é muito tida e muito interessante do ponto de
rara na sociedade brasileira, onde todas vista sociológico. Nos Estados Unidos a
as coisas têm o seu lugar e "quem é bom sociedade se reproduz através de sua
REFERÊNCIAS: já nasce feito". moldura cívica, moderna e individualista,
Em um meio altamente hierarquizan- que é idêntica à nação e à sociedade. No
DA MATTA, Roberto — O
carnaval como um rito de te, como é o caso da sociedade brasileira, Brasil, porém, a identidade nacional é
passagem. Ensaios de
Antropologia Estrutural, o espaço criado pelo futebol (e por ou- múltipla. De um lado ela é dada num
Petrópolis, Vozes, 1973.
— Carnavais, malandros e
tras modalidades de "recreação", como nível social pelas instituições populares
heróis: para uma sociologia o carnaval e as formas de religiosidade mencionadas antes. Mas de outro ela
do dilema brasileiro. Rio
de Janeiro, Zahar, 1979. popular) abre a possibilidade da expres- continua reproduzindo (ainda que com
— Universo do carnaval: são individualizada e livre, quando al- dificuldades) os modelos norte-america-
imagem e reflexões. Rio de
Janeiro, Edições
Pinakotheke, 1981. (Com
guém pode revelar-se como é, com suas nos e europeus ao nível da "nação" e
fotografias de João Poppe.) habilidades e fraquezas, sem que com do "governo", onde tais paradigmas são
— As raízes da violência
no Brasil: reflexões de um isso coloque em risco sua rede de rela- obviamente vigentes.
antropólogo social. In: A
violência brasileira. São
ções pessoais. Mas o ponto que quero O futebol no Brasil, assim, além de
Paulo, Brasiliense. demonstrar é a ligação estrutural das ser um esporte, é também uma máquina
GLUCKMAN, Max — An
analysis of a social situation possibilidades de expressão individuali- de socialização de pessoas, um sistema
in modern Zululand. zada com certos domínios da sociedade altamente complexo de comunicação de
Manchester University
Press, 1958. brasileira. O que se verifica, como já valores essenciais e um domínio onde se
— Moral crises: magical
and secular solutions. In: busquei revelar alhures (cf. Da Matta, tem a garantia da continuidade e da per-
The allocalion of
responsabilities. Manchester 1979), é que a chance de vencer pelo manência cultural e ideológica enquanto
University Press, 1972.
GUEDES, Simoni Lahud —
desempenho e pelos próprios méritos grupo inclusivo. Pois se as formas de
O futebol brasileiro: existe somente em áreas como o futebol, governo e a Constituição mudam cons-
instituição zero. Rio de
Janeiro, Programa de Pós- o samba, o carnaval, e todas as "artes" tantemente, e se as universidades, o pa-
Graduação em Antropologia em geral. drão monetário e os partidos políticos
Social, Museu Nacional,
1977. Em outras palavras, nas vertentes ins- fazem com que os brasileiros tenham dú-
LÉVI-STRAUSS, Claude .—
La pensée sauvage. Paris, titucionalizadas e "estruturadas" da so- vidas sobre sua sociedade enquanto na-
Plon, 1962.
MÁRIO FILHO — O ciedade brasileira, o modo de relaciona- ção moderna, aspirante a um lugar ao
negro no futebol brasileiro.
Rio de Janeiro, Civilização
mento dominante e explícito é a estrati- sol dentro de uma ordem mundial, é
Brasileira, 1964. ficação e a hierarquização por meio de sempre verdade que futebol, carnaval e
PICKFORD, R. W. — The
psychology of the history redes de relações pessoais. Neste plano, relações pessoais dizem que a sociedade
and organization of
association football. British tudo tem um lugar e as variações indi- brasileira é grande, criativa e generosa,
Journal o) Psychology, viduais são impossíveis. Nas áreas como tendo, como acontece com o futebol aqui
XXXI, 1, 1940. TURNER,
Victor — Schism and o futebol, o carnaval e a umbanda, varia- praticado, um glorioso futuro.
continuity in an Africal
society: a study of Ndembu ções individuais são possíveis, de modo
Village life. Manchester
University Press, 1937.
que o individualismo e o "estrelismo"
— Dramas, fields and são ideologias dominantes nestas áreas. Roberto Da Matta é professor de Antropologia no Museu
metaphors: symbolic action Nacional.
in human society. Ithaca & Essas considerações nos levam a um
London, Cornell University,
Press, 1974. outro ponto muito importante. Se, de Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
v. 1, 4, p. 54-60, nov. 82
fa to , c a rn a v a l, re lig io s id a d e p o p u la r e

60 NOVOS ESTUDOS Nº 4

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