You are on page 1of 6

V i c t o r O o l d s o - h m l d t

Os diálogos de
PL
ESTRUTURA E MÉTODO DIALÉTICO

TRADUÇÃO:
Dion Davi Macedo

SBD-FFLCH-USP

lilli
III
254239

Edições Loyola
OS DIÁLOGOS APORETICOS NASCIMENTO DO DIALOGO

C) Partida do Diálogo explicar os poemas homéricos. E Sócrates pergunta: o que é a beleza, a


retórica, a virtude, a rapsódia? — Um velho se gaba por sua riqueza, ela
12. Sócrates tinha o costume, para suas improvisações dialéticas, lhe permitirá livrar-se de suas dívidas para com os deuses e os homens e
de recrutar interlocutores em plena agora. A entrada no assunto deveria morrer como homem justo. E Sócrates: o que é a justiça?
ser com freqüência trabalhosa. É claro que ele podia encontrar na praça Tantos fatos diversos que nem todos comportam contradição interna
pública pessoas que se ocupavam de cavalos de raça, mas os Antístenes evidente, mas dos quais Sócrates tira partido para "estimular a reflexão"
que se ocupavam da "cavalidade", mesmo que fosse para disto zombar, de seus interlocutores.
deveriam ser mais raros. Do mesmo modo não se fala quase nada da Nos diálogos chamados escolares, as incursões em tais assuntos se-
virtude, mas todos, os modestos e os vaidosos, as línguas benevolentes riam inúteis. O Sofista, o Político, o Filebo, o Timeu colocam sem dificul-
e as más, falam sem cessar de pessoas honestas ou desonestas. Por isso, dade os problemas. Estamos, neste momento, em plena Escola, entre
em matéria de moral corrente, a qualidade nos toca mais do que a homens que não esperaram, para se pôr questões, que algum espanto
essência. Sócrates jamais pergunta repentinamente: o que é a virtude, fortuito os "convocasse" a isso.
a coragem, a sabedoria?
Nos degraus do Palácio da Justiça, Sócrates encontra o adivinho
Eutífron. Uma conversa banal se estabelece, cada um diz ao outro o que D) Os Diálogos aporéticos
foram fazer ali: Sócrates é convocado em razão do processo de impiedade
movido contra ele por Meleto. Eutífron é acusador. Contra o seu próprio 13. Eis como Sócrates compreende a sua missão junto aos atenien-
pai, ele defende a causa dos deuses ofendidos. Como percebe a admira- ses. Toda vez, diz ele no Tribunal do Povo, que eu encontro um de vós,
ção de Sócrates, explica-lhe o assunto detalhadamente e procura justi- tenho o costume de lhe dizer: "Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais
ficar-se. Devemos perseguir uni malfeitor sem considerar os laços de importante e mais reputada por sua cultura e seu poderio, não te pejas
parentesco que podem nos unir a ele. E Eutífron apela a seus conheci- de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não
mentos profissionais, pois é um adivinho. — Pois seja! Mas, porque sabe te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto
muito bem que o seu pai cometeu um ato ímpio, ele sem dúvida poderá mais a tua alma?1 — E se algum de vós redargüir que se importa, não me
ensinar a Sócrates o que é a Piedade. E este tomará isto em seu proveito irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e refutar2 e, se
quando tiver de responder sobre as impiedades de que o acusa Meleto. me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de
— Assim se opera a passagem da qualidade à essência. Pois, assim-como repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale me-
o olho não sabe discernir as qualidades do dedo, também a opinião não nos"3. Sócrates acrescenta: "Tais são as ordens que o deus me deu, ficai
sabe julgar as qualidades de um homem ou de seus atos. Se Eutífron se certos. E eu acredito que jamais aconteceu à cidade maior bem que minha
julga piedoso ao acusar o próprio pai, outros poderiam ver aí o cúmulo obediência ao deus"4. É que ele cura os atenienses do maior mal, da
da impiedade. E, por sua vez Eutífron não partilha de modo algum os doença da alma5, assim como da ignorância extrema e daquilo que é a
sentimentos de Meleto em relação a Sócrates e o considera inocente de coisa mais perniciosa6: "Nada saber e crer que se sabe"7.
toda impiedade. A contradição que desperta a reflexão não se produz somente no
Assim começa a maior parte dos diálogos. Celebra-se a amizade que conhecimento sensível. É exatamente no mundo sensível que ela nos
liga o jovem Lísis a Menexeno, exalta-se a beleza e a sabedoria de Cármides, perturba menos e que a alma, "apelando para que a socorram o raciocí-
discute-se para saber se o conhecimento da heplomaquia* torna os rapazes
mais corajosos. A cada vez Sócrates se presta ao jogo. Mas em um dado 13. ' ippo\iÍCTEü)c 5è xai âXtiSeíaç xai tf]Ç vtcuxfiç õítax; wç íotai oúx èmpcÂij oiJ8è
momento ele passa à essência: o que é a amizade, a beleza da alma (a cppovriÇEiç.
2
sabedoria), a coragem? — Hípias anuncia conferências sobre as belas pro- oiix eii9í)ç â(pf|o(fl UÚTOV oúô'â7iEi(j\. àXX'Èpr|oo|iai aiiròv xai È^Etáaio xai é\é~tya.
3
Defesa de Sócrates, 29 d-e.
fissões para os jovens; Górgias pretende formar oradores hábeis; Protágoras, " Ibid., 30 a.
cidadãos virtuosos; íon apresenta-se como um rapsodo renomado que sabe 5
Górgias, 477 c.
6
Primeiro Alcibíades, 118 b 6 (ò|ja6ía ènxarri); a 7-8 (ctuccSía xaxoupYOTatti xai
12. * Do grego ÉTtXonaxía, arte de combater com armas pesadas (Leis, 813 3; Xeno- .
7
fonte, Anabase, 2, l, 7) (N. do T.). Sofista, 229 c 5 (tradução Diès).

22 23
NASCIMENTO DO DIÁLOGO
OS DIÁLOGOS APORÉTICOS

Eis fortes motivos para fugir da contradição, para ignorá-la, para


nio e a inteligência", dela triunfa mais facilmente. A miragem do dedo fazer ouvidos moucos, enfim, para resistir com todas as nossas forças ao
que nos parece grande e ao mesmo tempo pequeno, pesado e leve, não "despertar" e à reflexão. Ou então, se é mesmo preciso a qualquer preço
resiste diante da medida e do cálculo do peso8. Há como que um tribunal discutir, discutamos para a nossa própria defesa e por todo tempo que a
que arbitra as sensações contraditórias, sem apelo possível. E é a pró- vitória nos pareça assegurada10. Para além disso, abandonemos a parti-
pria alma que, acometida por seus depoimentos, assume o papel de juiz da11, acusemos o adversário de não fazer um jogo limpo12, bombardeemo-
e que decide com uma autoridade inconteste, porque tem um código ao lo com injúrias de todo tipo13. Se o assunto é importante, encolerizemo-nos
qual se referir. e cheguemos às vias de fato14.
Mas imaginemos que essas sensações divergentes não se produzam
14. Somos desculpáveis de abusar da sorte: se o amor-próprio, ou,
mais na alma de um único homem, imaginemo-las transportadas cada
segundo a ocasião, o amor de si, nos persuade tão facilmente de que
uma para uma alma diferente. Os homens que assim experimentariam
nossas opiniões são justas, é porque nenhum árbitro conhecido e reconhe-
sensações opostas ainda poderiam apelar à ciência do cálculo, da medi- cido nos convence de que são falsas. Nesta luta que opõe constantemente
da ou do peso para se pôr de acordo. Menos facilmente, sem dúvida, opiniões sobre o Belo e sobre o Bem, "não conseguimos chegar a uma
nenhum deles sofrerá em si mesmo o estímulo de duas impressões con- decisão satisfatória"1.
trárias, cada um se inclinará a aprovar a sua. Mas não importa. Que
Quando o testemunho contraditório das sensações nos causa embara-
cada um, em favor de sua impressão pessoal, impulsione a boa-fé até a ço, obtemos tal decisão pelo recurso às ciência^ (da medida, do cálculo, do
obstinação, que ele seja dominado pelo amor-próprio ou pelo interesse, peso). Se se trata de opiniões de ordem técnica, como, no curso de uma
porém, é impossível, finalmente, subtrair a impressão à prova científica travessia, saber a melhor maneira de conduzir o timão? A arte da navega-
e contestar o seu resultado. Acontece de modo diferente quando se trata ção ou, conforme o caso, outras técnicas serão suficientes para nos colocar
dos Valores. de acordo com nós mesmos ou com os outros. Por isso, em circunstância
Aí também as contradições são freqüentes e opõem não sensações, semelhante, consultamos imediatamente um técnico em vez de julgar em
mas opiniões. Raramente, aliás, opiniões assentadas em uma mesma alma, matérias que ignoramos e que não pretendemos saber2.
e menos freqüente ainda opiniões "próprias para despertar a reflexão". É um grave problema saber se aprendemos a virtude, se sabemos
Constantemente julgamos, com ou sem razão, nós e nossos semelhantes, com perfeito conhecimento de causa o que se deve chamar belo e feio, bom
os pensamentos e os atos, distribuindo fartamente epítetos como bom e e mau, justo e injusto. Protágoras não somente inscreve a virtude em seu
mau, belo e feio, justo e injusto. Mas outras pessoas não partilham nossa programa de ensino, mas também estima que a Cidade, desde o ensino
opinião e, muitas vezes, julgam em sentido inverso. Donde as contradi- fundamental até a vida política, coloca o indivíduo na escola, graduada
ções, que suscitam querelas em vez de reflexão. Cada pessoa tem mil mas constante, da virtude3. Ânito não concede nenhum crédito aos profes-
razões para dar razão a si mesma. Não é somente o interesse que nos .sores ambulantes de virtude, mas acredita que a sua cidade natal está
move. Ou, antes, é um interesse refinado, um amor-próprio muito sutil, repleta de pessoas honestas que aprenderam a virtude de seus pais e que
uma pretensão com nobre aparência: não sabemos muito bem se o bom são muito capazes, por sua vez, de ensiná-la4.
senso é a coisa mais bem distribuída do mundo, mas sabemos muito bem
que nós mesmos somos abundantemente providos dele9. Esse bom senso 10
Em oposição a Filebo, 14 b 5-7: Nw yàp oii 8r|7toi> tpóç TE o-inò tirúto ipiXovixoüfiev,
aplica-se essencialmente a duas ordens de coisas: ao que é belo e ao que õnwç avio Ttftenoa, Torôt'Éotoa tá vixcòv-ra, i\ laíQ' ã aií>, i& S'àXr|9£OTáT(p 6eí Jto« ai>ii(iaxEtv
é bom (útil). Toda crítica dirigida a nossos atos ou a nossos julgamentos, 11
até mesmo o simples fato de que alguém possa julgar diferentemente de Górgias, terceira parte, passim; Protágoras, 335 b 1-2: oròc Ê9EXr|ooi Éxrâv eivai
âjtojcpivójiEvoç SiaXÉyEcOai.
nós, é-nos insuportável. Pois desse modo também são postas em questão 12
Górgias, 457 d 3-4; República, I, 338 d, 340 d, 341 c, e Laques, 195 a 7: 8i8áaxcon£v
tanto a nossa inteligência como a nossa honestidade, e nos atemos ao que crÜTÓv, ctA.Aà (ifi Xoi5opó>HEv.
13
as duas nos fazem reconhecer. 14
Eutífron, l c 11-12: èxSpoí ?£ âv àÀXiíÀoiç EÍTDIEV xai òpyiÇoínEOa.
Eutífron, 8 a 1-2: otccoiáÇoixjí TE xai TtoXEUOúoiv àXXr|Àoic.
8
14. ] Eutífron, 7 d 3-4: ox> 5x>váp£voi ÈTIÍ íxavf|v xpímv aúiwv ÈXOEÍv.
Geralmente: a arte do cálculo, da medida, do peso: Eutífron, 7 b-c, República, X, 602 2
Primeiro Alcibíades, 117 c-d.
d, Filebo, 55 e. 3
Protágoras, 328 b, 325 c-326 c.
9
Filebo, 49 a 1-3: TCÕV àpetrâv S Sp' ox> ootpíaç rápi to iti.r\&x, návaoç àvtex°uevov HEOTOV 4
Mênon, 92 e-93 a.
èpífxov xai SoÇoaoipiccç ècti yEt)5ofiç.

25
24
JNASCIMENTO ISO DIALSCb •

Mas, possa a virtude ser ensinada ou não, uma coisa é certa: todos A obrigação de conhecer as Formas faz que os Diálogos, com algumas
pretendem possuí-la e "todos devem declarar-se justos, sejam ou não, ou poucas exceções, se apresentem como ensaios de definição. Não no início,
que está louco o que não fingir justiça"5. visto que nascem no mundo das opiniões onde têm lugar unicamente as
O que pensar então das constantes divergências de nossas opiniões qualidades. Mas depois de um preâmbulo mais ou menos trabalhoso, a
sobre os Valores?6 — Se o vulgo opõe a esta questão uma maneira de
conversa se dirige para a essência e aborda a questão: O que é...?
declarar a oposição do adversário improcedente, o filósofo, assim como não
Podem-se, portanto, distinguir nos Diálogos a questão inicial e a
admite a contradição das sensações, não aceita as opiniões. Aqui como lá,
o desacordo é a prova inegável da ignorância7. questão prévia. Inicialmente, Hipotalo se pergunta como tornar-se o ami-
Porque sobre os Valores homens diferentes têm julgamentos con- go de Lísis, Sócrates pergunta a Eutífron se, em seu papel de acusador,
traditórios e que variam constantemente em um mesmo indivíduo, é ele acredita agir piedosamente. Para responder a estas questões, é neces-
preciso concluir que os Valores são ignorados. Resta-nos encontrar uma sário, previamente, se perguntar o que é a amizade, o que é a piedade. Às
ciência que nos possa ensiná-los e que, a respeito das opiniões, assuma vezes também é um fato inicial que serve de apoio à investigação dialé-
o papel que desempenham o cálculo, a medida e o peso na justa apre- tica, é o que acontece quando o jovem Alcibíades, seguro de seu talento e
ciação dás sensações. de seus conhecimentos, quer tratar da vida política. É necessário então
Este papel é justamente o de um critério que nos permite "chegar a perguntar-se previamente qual é o objeto da política e, sendo este objeto
uma decisão satisfatória''. Para julgar corretamente a piedade de tal ato, semelhante à arte de aconselhar sobre a paz e a guerra justas, interrogar-
devemos saber o que é a Piedade em si, isto é, é necessário conhecer a se sobre o que é a justiça. — O prólogo e a entrada na matéria são
essência da Piedade para poder reconhecê-la como qualidade ligada a tal consagrados a esta questão inicial. O diálogo propriamente dialético não
ato ou tal pessoa. É preciso aprender "a Forma do Piedoso, voltar sua principia senão com o enunciado da questão prévia.
atenção para ela e usá-la como um paradigma"8 para poder dizer que tal Poder-se-ia acreditar que a partir desse momento a questão inicial,
ato é piedoso e tal outro ímpio. na medida em que tiver desempenhado a sua função de "despertar a
15. Enquanto não encontrarmos este paradigma, nossas opiniões reflexão", não reterá mais a atenção dos interlocutores. É este, com efeito,
permanecerão "cegas"1 e, por isso, danosas. o caso nos diálogos aporéticos. Visto que o fim da discussão não traz
Que a contemplação do Bem deva beneficiar os companheiros que nenhuma clareza para a questão preliminar, seria vão voltar à questão
continuaram na Caverna, que das Formas seja necessário voltar a descer ao inicial, se não for para tornar o fracasso mais sensível e para ressaltar,
mundo sensível, não é somente a República que o quer assim. Os diálogos uma vez mais, a necessária ligação entre as duas questões6. Mas alhures
chamados de juventude não têm uma linguagem diferente quando afirmam o problema inicial é resolvido: a República, após ter terminado a sua .
a necessidade de conhecer o Belo antes de dar aulas sobre as belas profis- investigação sobre a Justiça, volta à discussão inicial e conclui que o
sões2, conhecer a Coragem antes de discutir sobre o melhor meio de adquiri- homem justo é mais feliz do que o injusto. O Fedro comenta o juízo pouco
la3, conhecer a Justiça antes de matar uns aos outros nas guerras em que lisonjeiro que um anônimo pronunciou contra os discursos de Lísias. Põe-
cada parte pretende defender a própria causa4. Q conhecimento das Formas se previamente a questão de saber em quais condições um discurso é bom.
nos é necessário não talvez para viver, mas para bem viver5. Com esta questão resolvida, pode-se voltar aos discursos de Lísias e pro-
nunciar contra eles uma condenação, à qual, aliás, a cortesia de Sócrates
5
6
Protágoras, 323 b 6-8. confere uma forma hipotética7. — Deste modo são confirmadas a função
rã né^iOTa, diz Platão (por exemplo no Primeiro Alcibíades, 118 a 7, falando da prática da filosofia e a imposição para os fi:ósofos de voltar a descer para
tríade do Belo, do Bem e do Justo). o mundo das opiniões.
7
Postulado constante do platonismo, por exemplo no Mênon, 96 a-b, Górgias, 487 e,
Primeiro Alcibíades, 111 b, Hípias Menor, 372 d 7-e 1: èvíore HEVTOI MM toiivavriov 5oxeí noi 16. Os diálogos aporéticos não chegam a tanto, pois eles não resol-
Totmov xai nXavfitytai repi raCra, ôfjXoü õn Sià to nr| d5Évai.
s
vem sequer a questão preliminar. Esta solução deveria constituir o objeto
Eutífron, 6 e 4-6: icrórtiv noívuv |i£ avríiv SíSaÇov TÍ)V iSÉav TÍÇ note ÈOTIV, íva eic éxeívriv de um ensinamento. Mas ninguém é aberto a um ensinamento que não
àiroSXéiKov xai xfxtyievoç aúrfl Ttapa&ryuaTt xtX. se pretende necessário. Ora, os interlocutores desses diálogos são todos,
15. ' República, VI, 506 c.
2
Hípias Maior, 286 b-d. em qualquer grau, "eruditos". Se nem todas as suas respectivas compe-
3
Laques, 190 b-c.
4
Primeiro Alcibíades, 112 b-c; Eutífron, l d-e. ' Assim: Hípias Maior, 304 d 8-e 2, Lísis, 233 b, Loques, 200 e.
5 ;
Críton, 48 b 5-6: ox> to Çf^v Jtepi nXeíotou jtoitvrÉov. àXXa TO EÍ Çflv. Cf. Górgias, 512 e. Fedro, 277 a in fine -e.

26 27
OS DIÁLOGOS APORÉTICOS NASCIMENTO DO DIALOGO

tências figuram na lista da Defesa de Sócrates1, todas pretendem ter por libertados das opiniões arrogantes e intransigentes; está aí a melhor de
objeto os Valores2. Estas pretensões diferem entre si em natureza e em todas as libertações10 para o ouvinte11 e, para quem a sofre, a mais sóli-
qualidade. No grupo dos sofistas, a vaidosa presunção de Hípias contrasta da12. Há, na realidade, um princípio, meu jovem amigo, que inspira aque-
com a tranqüila segurança de um Górgias; entre os jovens, Lísis e les que praticam este método púrgativo; o mesmo que diz, ao médico do
Menexeno não têm nem a inteligência nem o conhecimento de um Teete- corpo, que da alimentação que se lhe dá não poderia o corpo tirar qual-
to. Mas todos têm opiniões sobre a questão prévia, e antes que estas quer proveito enquanto os obstáculos internos não fossem removidos. A
opiniões sejam reduzidas ao silêncio Sócrates saberá proveitosamente propósito da alma formaram o mesmo conceito: ela não alcançará, do que
começar o seu ensinamento. Pois, assim como não teremos a idéia de se lhe possa ingerir de ciência, benefício algum, até que se tenha subme-
recorrer às artes do cálculo e da medida por todo o tempo que o testemu- tido à refutação13, causando-lhe vergonha14 de si mesma, até que se tenha
nho das sensações nos parecer suficiente, assim também os interlocutores desembaraçado das opiniões que cerram as vias do ensino e que se tenha
não verão mais necessidade de silenciar o ensinamento socrático enquan-
to permanecerem persuadidos da justeza das próprias opiniões. 489 d 8-9: xol, S> OcrofiámE, npçtótEpóv ^E 7tpo5í6aaxE, íva HT) àitcxpoiníoa) Jtapà 006), chama Laques
à ordem (195 a 7: 8i5áa>ea>n£v oòróv, àXXà HT| XoiüopõHiEv) porque ele violou a regra da "bene-
. É necessário, pois, começar por "purgá-los" de suas opiniões, de acor-
volência" que é preciso observar nas discussões (Carta VII, 344 b 6; èv EÚHEVÉOW èXéyxoiç, cf.
do com o método dos educadores "modernos"3: "Propõem, ao seu interlo- República, VI, 499 a), felicita Trasímaco, èjtEiS^i nov npçioç èyévou xod xoXeraxívcov èraxíoco (Re-
cutor, questões4 às quais acreditando responder algo valioso ele não res- pública, I, 354 a 12-13), o Estrangeiro "adoça" (Sofista, 246 d 4-5: PEXTÍODC, oràtoíiç JIOIEIV e 247
ponde nada de valor; depois, verificando facilmente a vaidade de opiniões c 3) os materialistas que dificilmente se prestam a uma discussão, por oposição aos amigos
tão instáveis6, eles colocam sem cessar as opiniões à prova6, as aproxi- das Formas: itopà JÍEV TÔV EV eíSEonv crôrnv TiSenÉvrav pâov, f||iEpcí>T£poi yáp) (cf. § 9, final).
10
mam em seus raciocínios7 e as confrontam umas com as outras. Por meio raxoôv [TE] àiraXXotYÔv. Por razões de sintaxe mais do que por causa do testemunho
de Estobeu, parece difícil manter o TE. Em todo caso, consideramos que se deve construir
desse confronto, demonstram que a propósito do mesmo objeto, sob os jiacrôv com àjtaXXaY<õv (em vez de com SoÇôv), aproximação que retoma a doutrina do
mesmos pontos de vista, e nas mesmas relações, elas são mutuamente Górgias (477 e ss.): de todas as libertações, aquela que age sobre a alma é a mais bela
contraditórias. Ao percebê-lo, os interlocutores irritam-se contra si mes- e a mais útil.
mos8 mas se tornam conciliadores com os outros9 e, desta maneira, são 11
áxoÓEiv TE T|SíoTT|v. Enquanto as discussões entre erísticos degeneram em injúrias,
se bem que Txnx, Ttopóvtoç ãx6ea6ai írnep oqxõv avtfiv, ôn TOioíraov àv6ptí>rai>v fjÇíoxjav âxpoaTai
16. * Que cita os políticos, os poetas e os artesãos (21 c-22 c). •yEvécrôai (Górgias, 457 d 7-9).
12
2
Defesa de Sócrates, 22 d 7: xai TÔXXa TO néyioTa. pE6aióraTa yiyvoiiévTiv. A refutação é definitiva (Teeteto, 210 b 4-5: i\ oüv £n xuoOnév
3
Por oposição ao método tradicional: àpxouotpEJtéç TI itáTpiov (Sofista, 229 e 4). •n xai.ib8ívop.£v, á> (píXE, itEpi ÈjnmT|p.iiç, fl JIÓVTCC ÈXTETÓXOUEV;), e a vantagem que o respondente
4
Sofista, 230 b-d. — SiEparaôoiv. O prevérbio marca simultaneamente: a) a insistência tira disto é a maior e melhor coisa conquistada, enquanto as outras artes de libertação
do interrogatório (assim: Górgias, 458 a 2) que Sócrates torna manifesto na Defesa de (Górgias, 477 e ss.) proporcionam apenas benefícios passageiros e instáveis (como a riqueza
Sócrates: ov> EÍiOw; óxpiíoü) OTOTÒV ox>5' ãra:i|u (29 e 3-4) e 6) o detalhamento das questões tanto ou a saúde), benefícios dos quais apenas o homem cuja alma é sã pode tirar proveito
irrita os respondentes: Górgias, 497 c 1: ÊpcÓTOt 5-f) cí> TO: onixpá TE xaiCTTEVÓ;Hípias Menor, (Górgias, 511 c ss.). Enfim, a clara consciência de nossa ignorância evita "hesitações" (cf.
369 c 1: xaTà anixpòv ÈipajtTÓpxvoc. nota 5) e torna firme a nossa conduta: oíxoíiv oi TOIOVCOI Trâv \i-í] EÍSÓTOIV àvap.ápTriToi Çóxnv 5ià
5
7cXava>névo>v. O melhor comentário desta expressão se lê no Primeiro Alcibíades, 117- TO ãXXoic JtEpí aikôv ÈJtnpÉTtEiv (Primeiro Alcibíades, 117 e 4-5).
13
118 b. ÈXÉYXIOV. Outro termo técnico que se encontra igualmente na passagem da Defesa
6
è^ETÓÇoixn, termo técnico que se encontra na passagem citada da Defesa de Sócrates de Sócrates, 29 e 5.
14
(29 e 4). riç cdoxiivnv xaTacmíoaç. Procedimento que tem uma aplicação freqüente nos Diá-
7
É o procedimento da recapitulação (Protágoras, 332 d 1: àvaXoyicú>n£9a Ta logos: República, I, 350 d 2-3: TÓTE xai EÍSov iyá>, jtpÓTEpov SE oiSitra, ©paoúnaxov Èpx>6picüvTa, mas
<í>Ho/U>mnéva T](ÚV) que aproxima duas teses contraditórias que o respondente havia con- que nem sempre consegue chegar em primeiro plano: Górgias, 494 d 3-5: ToiyópToi &
cedido separadamente, sem suspeitar do desacordo e, muitas vezes, espantando-se com o KaXXíxXeiç, OrôXov P.EV xai ropyíav xai èZ,éiü.-rf,a xai aiaxx>vEo6ai éitoírioa, cri) SE o-ú \ii\ ÈxTiXayfjç
que ele toma por uma questão que não pertence ao tema (por exemplo, Cármides, 164 a O-ÒSE P.-ÍI aiaxw 9fl;- àSpEtoc yàp EÍ. Poder-se-iam estudar também as concessões feitas pelo
6: ctXXà TÍ TOX)TO;). respondente tomado pela vergonha (cf. Eutífron, 8 c 9-d l, Primeiro Alcibíades , 109 c 1-3,
8
èa\)Toíç M.ÈV xaXEitaívowji (cf. Teeteto, 210 c 2-3, 168 a 5: O-ÚTOXI; ÔE mofiooxwi). Tal é. Sofista, 247 b 9-c 2), procedimento honesto, o que quer que digam Polo (Górgias, 461 c) e
por exemplo, a reação de Laques (194 a 8-9: xai úç àXt|9(íx; àYavaxTfi EÍ...fi vorá HT) oióç T'EÍ|JÍ Cálicles (482 d), porque a concessão sempre conduz a uma exigência essencial (cf. adiante
EÍTIEÍV). Outros, contudo (Defesa de Sócrates, 23 c 8-9), preferem voltar-se contra o questio- § 25) e constitui o que se poderia chamar uma braquilogia dialética que faz economia de
namento, como Cálicles, Hípias ou Ânito (Ménon, 95 a 2: "A. \iév noi SOXEI xaXcnaívEiv). uma demonstração não para esquivar-se dela (veja-se Sofista, 265 d), mas para tornar o
9
jipòç 8èTOÜÇãXXow; -fmtpowTat. Muitas vezes, no decorrer da discussão, Sócrates faz diálogo mais leve (cf. Essai sur lê Cratyle, p. 57): o "bom natural" do respondente dispensa
um apelo à "doçura" para o respondente (Górgias, 467 b 11: HTJ xaTrryópEi. w XÔOTE então que se leve mais longe a argumentação.

28 29
levado ao estado de manifesta pureza e a acreditar saber justamente o
que ela sabe15, nada além".
Seria preciso citar, em toda a sua extensão, este texto tão importan-
te. Resta-nos apenas iniciar o estudo dos diálogos aporéticos para ver
como procede este método "purgativo". A pesquisa há de nos permitir ao
CAPÍTULO II
mesmo tempo tornar mais precisos alguns pontos sobre os quais nosso
texto não se exprime com muita clareza e que, mais facilmente talvez do
que por um ensaio de interpretação interna, poderão ser elucidados no
decorrer da análise dos Diálogos nos quais este método é aplicado. Em busca dos valores

OBSERVAÇÃO SOBRE o AGRUPAMENTO DOS DIÁLOGOS

17. Se a análise sumária do método que procuramos levar adiante


na "Introdução" é exata, ela deveria ser válida para todos os diálogos.
Isto quer dizer que, sendo aplicado a eles o mesmo método, seria em
todos da mesma maneira? Ninguém espere por isto. E, de fato, se se
podem reunir vários diálogos em grupos de estrutura idêntica, tal clas-
sificação jamais poderá ser sistemática. Para que fosse, seria preciso
supor que Platão tivera o desígnio bem determinado de compor, peça por
peça, um conjunto de diálogos que, em suas nuanças calculadas, ilus-
trasse as possibilidades do método dialético. Ora, segundo toda evidên-
cia, não há nada disto.
Além de não ser sistemático, este agrupamento não poderá ser
completo, a menos que "se extraia, por força de argúcias, da semelhan-
ça"1. Em particular, no grupo dos diálogos não-aporéticos, a análise com-
parativa deverá proceder com precauções infinitas e, malgrado as seme-
lhanças que terá ocasião de registrar, esforçar-s.e-á, no início, para con-
siderar cada diálogo em sua individualidade. Voltaremos mais adiante 2
a este ponto.
Entre os diálogos aporéticos, os agrupamentos são feitos de maneira
mais fácil, sob a condição de não inserir neles nenhum rigor. Restrição
perigosa, dir-se-á, e que abre a porta para o arbitrário e para todas as
facilidades. A respeito disso estaremos de acordo de boa vontade e sem
remorsos. Já ao reconstruir o sistema dogmático de Platão — ou o que se
toma por tal —, arrisca-se a inserir falsas janelas em todos os andares.
Com mais forte razão, quando se interrogam os Diálogos sobre a aplica-
15
É preciso insistir nesta frase que, nesta conhecida passagem, é geralmente a
menos notada. Ela demonstra que os diálogos "aporéticos" não carecem totalmente de 17.1 Crátilo, 435 c 4-5.
ensinamento positivo. 2
Cf. adiante § 68.

30 31

You might also like