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O dia em que eu nasci, moura e pereça (1960)

O dia em que eu nasci, moura e pereça,


Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,


Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,


As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,


Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

Tema: Desconcerto pessoal

onsiderações de ordem autobiográfica (como nos sonetos «Erros meus, má


fortuna, amor ardente» ou «O dia em que eu nasci, moura e pereça», que
transmitem a concepção desesperançada, pessimista, da vida própria),
Assunto: O sujeito poético fala sobre o tempo em que nasceu, revelando sentimentos
disfóricos de que esse acontecimento nunca se devia ter acontecido.
O seu nascimento foi maldito. O fatalismo. Diferencia-se dos outros homens até na
desgraça. Ele é superior, o seu nascimento foi apocalíptico. O eclipse corresponde ao
fim do mundo, era uma intenção divina.

Recursos de Estilo

Anáfora: “Não/ Não”

Hipérbole: “Mais desgraçada que jamais se viu” “Nasçam-lhe monstros, sangue chova
o ar”

Metáfora: “Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar”

Recusa do dia em que nasceu. Desconcerto.

Divisão em partes:

 1ª. parte: 1ª. quadra - Maldição ao mundo.


 2ª. parte: 2ª. quadra e 1º. terceto - Recriação de um cenário monstruoso para
uma eventual repetição do dia em que nasceu.
 3ª. parte: 2º. terceto - Recusa do dia em que nasceu.

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Recursos estilísticos

 Pleonasmo: "moura e pereça" - Reiteração da maldição.


 Hipérbole: "Não o queira jamais… destruiu", "Que este dia… que jamais se
viu" - Acentuar bem toda a maldição que lança sobre o dia do seu nascimento.
 Modo conjuntivo: "lhe falte", "se escureça", "nasçam-lhe" - Traduz o intenso
desejo de amaldiçoar tudo.
 Adjectivação: "pasmadas, perdida, temerosa" - Palavras carregadas de
negativismo.
 Nomes carregados de negativismo: "eclipse, monstros, sangue, lágrimas" -
Terror, medo.
 Rima: ABBA / ABBA / CDE / CDE - Emparelhada e interpolada.

Continuando a análise, explicita que o nascimento do ente em


questão é maldito, há o voto de morte e uma punição apocalíptica,
caso esta vontade não se cumpra. Afirma ainda, categoricamente,
que tal maldição é o mesmo que “maldizer-se a si próprio” e desejar
não ter nascido. Ao nosso ver, nada mais evidente que o desencanto
com o mundo, outra particularidade da lírica camoniana.

A definição para a força superior, que é classificada como Destino ou


Fortuna, proposta por Maria Vitalina Leal de Matos, é muito
convincente. Veja:

Estando atentos, verificamos que esta força adquire uma enorme presença na obra
camoniana. É difícil dizer exactamente o que ela é, e como se concilia com a visão
cristã da vida (o que de certo modo não constitui grande problema num tempo em
que se tentava conciliar filosoficamente tudo, e em que a astrologia fazia parte da
bagagem cultural de todos os intelectuais). O que podemos dizer a respeito dela é
que aparece por vezes como num acaso cego, mas mais frequentemente como
entidade malévola, empenhada no sofrimento do poeta, no seu fracasso, na sua
desgraça, e conduzindo não só a própria vida mas toda a sociedade para um
desconcerto angustiante que tem por denominador comum o sem-sentido, a «sem-
razão», aquilo a que chamaríamos – o absurdo. Ora esta forca aparece
frequentemente relacionada com elementos astrológicos. Tanto que Camões
substitui de vez em quando a expressão meu destino por minha estrela. (LEAL DE
MATOS, 1974, p. 25)

O primeiro terceto aponta para uma multidão que assiste,


aterrorizada, ao cataclismo apocalíptico. Esta multidão funciona como
uma platéia, aqueles a quem ele se dirige e fala, os seus
interlocutores.

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Uma excelente explicação foi feita para o segundo terceto, sobre a
formulação do voto, pois o subjuntivo é o tempo da possibilidade, do
desejo, como a gramática bem nos ensina; da mesma forma, a força
realística dos verbos no imperativo. Traçada esta análise, a autora do
artigo define a sua teoria, a qual chama hipertrofia do eu.

Vejamos, pelas palavras do texto, como se caracteriza tal teoria:

Camões fala só de si. É ele o centro e a causa do que deseja e imagina passar-se.
Camões distingue-se nitidamente da multidão: frente a essas «pessoas pasmadas,
de ignorantes» está um homem só, contrabalançando o número e muito maior em
importância. A multidão é ignorante. Camões sabe e esclarece-a. A multidão é
passiva. Camões fala, explica e é, até certo ponto, o autor do cataclismo, o agente.
A multidão é temerosa, chora, amedronta-se. Camões desesperado, não teme. a
situação, deseja-a, encara-a de frente. Esta multidão, se serve a Camões como
ouvinte dos últimos versos e como hipérbole dos primeiros, tem sobretudo a função
de salientar o carácter heróico do sujeito: o herói que se destaca sobre a multidão.
Herói desgraçado; herói desesperado; mas herói. Portanto, se o poema é uma
maldição, um voto de destruição e morte, é também uma afirmação hipertrofíada
do eu do carácter desmesurado, excessivo, da personagem-Camões. (LEAL DE
MATOS, 1974, p. 26)

É aludida a imagem da “personagem-Camões”. Portanto, trata-se de


uma “pessoa de papel”, ou seja, um ente literário. No entanto,
poucos parágrafos depois, Leal de Matos faz uma referência apenas a
Camões, como se o autor real fosse a personagem cantada: saímos
da ficção para uma realidade (física, histórica), hipertrófica. Observe
atentamente a passagem:

Façamos agora incidir a atenção sobre o que chamei a hipertrofia do eu. Porque é
que Camões se concebe como um ser único, excepcional, imenso? O soneto só
aponta uma resposta: a desmesura do sofrimento, o carácter excepcional da
desgraça fazem de Camões um ser à parte. (LEAL DE MATOS, 1974, p. 27)

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Poderíamos supor que tal assimilação entre o sujeito lírico, fictício,
criado, literário, com o sujeito real, carnal, histórico, fosse um lapso
escritural ou algo que o valha.

Poderíamos, se tal idéia não fosse retomada na conclusão do texto.

(...) Este soneto não nos permite ir mais longe. Mas outros passos da lírica confir-
mam esta impressão: de facto o poeta concebe-se um ser humano decaído porque
privado de liberdade, e portanto abúlico, incapaz de vencer o destino; falhado e
desgraçado; mas por outro lado um ser superior, porque marcado por uma estrela
excepcional (ainda que o preço seja o sofrimento), responsável – essa estrela –
pela genialidade da sua obra.(LEAL DE MATOS, 1974, p. 27)

Um texto precioso e virtuoso, publicado na revista Colóquio-Letras,


que enriquece a literatura portuguesa!

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