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CENAS DE UM CONSULTÓRIO PSIQUIÁTRICO

Drama em Três Atos


GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
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Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo


Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que
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Índice
Introdução pág. 4
Primeiro Ato pág. 5
Segundo Ato pág. 26
Terceiro Ato pág. 48

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Todos os atos se passam na sala de espera de um consultório psiquiátrico. Numa das
paredes, um painel, mostra um bosque onde as folhas das árvores estão avermelhadas,
várias delas se espalham pelo chão, indicando o outono que chega; um banco tosco de
madeira, estragado pelo tempo, é visto à beira de um estreito e curto caminho. Não se
vê o fim dessa estrada.

Vasos antiquados, com plantas desbotadas, esforçam-se para ornamentar ambiente.


Em frente ao painel, vê-se um sofá simples com duas cadeiras dispostas ao lado deste.
De cada lado da sala estão caixas de som e delas sai uma melodia mística, serena. (The
Light Of The Spirit de Kitaro)

No centro da sala, mal iluminada por quatro lâmpadas fracas, vê-se uma mesa, jornais
e revistas espalhados e um pote azulado cheio de balas coloridas. Num dos cantos, uma
mesinha simples com uma cadeira de madeira onde se assenta a atendente.

Piedade, entra na sala de espera, saindo do gabinete do médico psiquiatra que já se


encontra no consultório, não sendo visto. Ela passa, displicentemente, nos móveis um
espanador, cantarolando uma velha canção do interior mineiro sem relação com a
música do ambiente.
Personagens:

Elisa, paciente esquizofrênica, 30 anos, solteira, psicóloga.

Jaime, 52 anos, paciente alcoólatra, bancário.

Heloísa, 82 anos, paciente caducando, viúva, do lar.

Mãe da paciente esquizofrênica, 49 anos, divorciada, do lar.

Nair, 40 anos, paciente agitada, ex-prostituta, do lar.

Pai da paciente esquizofrênica, 58 anos, divorciado, político.

Piedade, 26 anos, solteira, atendente, normalista.

Propagandista de laboratório, 64 anos, casado.

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Primeiro Ato

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Nair, uma paciente, entra na sala de espera do consultório onde se en-
contra Piedade limpando os móveis.

Nair – Boa tarde, Piedade. Como vai?

Piedade – Bem e a senhora? Hoje, eu estou bem. (examina as folhas de


um vaso, retira uma estragada, sem olhar para Nair, joga-a na terra do
vaso)

Nair (excitada, gesticulando muito, respirando fundo e andando pela


sala de um lado a outro) – Ah, eu nunca vou bem! Não gosto do lugar
onde moro. Já falei com o Castro que a gente devia mudar de lá. Lá nin-
guém presta. Ele nunca resolve nada.

Piedade (olhando ocasionalmente para Nair; certa do que pensara,


depois, em dúvida) – Eu… gosto tanto do meu quartinho… das minhas
coisas… do que encontro lá…

Nair (falando rápido, saindo de um lugar e indo para outro para ficar
mais perto de Piedade) – Ontem, para variar, ele bebeu feito um gam-
bá… chegou em casa, nem quis comer… desmaiou na cama. Sempre faz
isso. Bebe até no trabalho.

Piedade – Tinha um tio que bebia… bem… meu pai também… (conti-
nuando sua inspeção nas plantas)

Nair (furiosa, quase gritando, irritada) – Devia fechar aquela merda! Lá


só tem pinguço. Parece uma zona boêmia. Eu já te contei que fui puta?
(levantando-se e ficando frente a frente de Piedade).

Piedade (parando de examinar suas plantas; como se despertasse) –


Puta? Você tá brincando… não sabia não.(sem saber o que falar diante
da confissão). Pra mim, puta era uma mulher diferente, que fala alto,
nome feio, mexe com os homens… lá em Córrego das Lage, onde nasci,

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não conheci nenhuma.

Nair (com firmeza, ainda em pé, rindo da perplexidade de Piedade) –


Não precisa se espantar. Puta é uma profissão como qualquer outra.

Piedade – É… bem… eu sei… você sabe né… conheço pouco essas


coisas; pra mim as putas usavam calças compridas, pintavam o cabelo de
louro… fumavam, bebiam cachaça…

Nair (debochando, querendo provocá-la) – Tá assustada?

Piedade (tentando não demonstrar estar incomodada com a conversa)


– Um pouco… você é parecida com todas as pessoas que conheço, é boa
gente.

Nair (caminhando para assentar-se perto de onde Piedade estava) – Eu


já fui; não sou mais. Hoje sou casada. Casada não! Amigada.

Piedade – Eu sei… você já me disse.

Nair (sem ouvir e desejosa de fazer mais revelações, sabendo que iria
provocar a curiosidade da atendente) – Comecei a “fazer vida” cedo, lá
em Montes Claros. Foi depois de uma surra que levei de minha mãe…
resolvi fugir de casa… tinha doze anos, hoje tenho quarenta. Logo, arru-
mei um namorado… um safado, que me aconselhou a ganhar dinheiro
na zona. Ele ficava com tudo que eu recebia.

Piedade (interessada, largou o que fazia, indo se assentar na sua mesi-


nha; enquanto isso, olhava para as mãos, passando uma sobre a outra
como se as limpasse de algum sujo imaginário) – Eu também…

Nair (interrompendo rapidamente a fala de Piedade; admirada) – Já foi


puta também?

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Piedade – Não! Deus me livre! (assustada e tentando consertar, le-
vantando-se e, automaticamente, voltando a passar o espanador nos
móveis). Eu, com treze anos, sem ter o que fazer na minha terra, um
dia, com raiva de tudo, peguei uma carona no primeiro caminhão que
passou. Fugi de casa, como você.

Nair – Ah! Você também não aguentou sua família. Então nunca fez
vida?

Piedade – Já te disse que não! Eu não! Mas não estou te criticando.

Nair – Já me acostumei com as críticas… sou criticada sem parar.

Piedade – Não sabia onde desejava chegar… queria era sair de lá…
acabei vindo parar aqui. Tive sorte; encontrei uma moça que também
pegou carona – não tava fugindo não – foi ela quem arrumou meu pri-
meiro emprego em BH.

Nair ( lembrando do passado, olhando para cima e para fora) – Minha


sorte foi ter encontrado o Castro. Ele apaixonou-se por mim; eu não
era feia como sou agora. Tive muitos homens antes dele. (abre a bolsa e
retira dela uma fotografia encardida).

Piedade (educadamente, pega a foto examinando-a e a compara com a


Nair atual) – Você ainda é vistosa, bonitona.

Nair – Foi o Castro que me forçou a largar aquela vida. Andei com todo
tipo de gente: homens bêbados, aleijados, brancos e negros, meninos
e velhos-caducos; até com mulheres eu transei; tudo quanto foi gente.
Desde que ganhasse alguns trocados, eu ia para cama… (imitando um
e outro enquanto ia enumerando-os; fazendo gestos com as mãos como
se tivesse recebendo níqueis e, ao falar “até com mulheres”, olhando por
todo o corpo de Piedade, assustando-a)

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Piedade ( demonstrando asco e medo do olhar de Nair) – Puxa! (pa-
rando e, depois caminhando na sala, indo até a porta de entrada do
consultório do psiquiatra, olhando para dentro dele). – Não sei como
aguentou.

Nair – Fiquei lá sete anos. (gesticulando e mostrando sete com os dedos;


com os braços indicando longe). Nesse tempo morei também fora da
zona, por uns poucos meses, com um e outro homem. Muitos se apaixo-
naram por mim, mas, por pouco tempo…

Piedade – Você gostava de lá, é da… dessa vida?

Nair – Tenho saudade de alguma coisa: a gente fazia o que queria…


(olhando internamente, sem fitar em nada) mas tinha coisa ruim; nunca
gostei de homem (mudando o semblante, fechando a cara) e tinha que
deitar, conversar e sorrir para eles, bandidos e policiais…

Piedade – Eu nem namorado… não tolero homem me pegando, agar-


rado o meu corpo. (tremendo o corpo, demonstrando asco ao contato,
fechando os olhos por segundos)

Nair – Muitos me bateram, outros me roubaram. Eu era uma boba e


mole. (rindo sem graça, soltando e amolecendo a musculatura corporal;
retomando um tom de voz mais firme) – Gosto do Castro porque ele me
ajudou muito. Ele me dá tudo que preciso. O Doutor tá aí? (levantando-
-se e caminhando até a porta do consultório do médico)

Piedade – Tá. Tá examinando as fichas dos clientes de hoje. Não deve


demorar; assenta e lê uma revista ou o jornal.

Nair – Lê? Não sei não. Nunca li; fui à escola por uns poucos anos e
parei. (demonstrando um certo orgulho por não saber ler). Acho que
esqueci tudo que me ensinaram. Vivo bem sem a leitura. Para que ela
serve? Será que os remédios que estou tomando fazem mal para a me-

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mória? (torna a levantar e chega perto de Piedade, assustando-a)

Piedade (em dúvida) – Sei não. (presa às confissões de Nair, relembra


fatos de sua vinda para a capital) -Eu nunca tive vontade de ser puta.
Recebi conselhos para ser…

Nair – Não é tão ruim assim não, boba; (num tom de voz maternal,
como dando um conselho) a gente aprende muita coisa, fica mais sabida.

Piedade – Coisas que eu não gostaria de aprender. Falaram-me que


eu, com meu corpo… (fica em pé e olha para seu próprio corpo, passa
suas mãos sobre os seios e nádegas ) – poderia ganhar muito dinheiro,
fazendo-vida. Poderia comprar um quarto para morar…

Nair – Ah, Ah… não é bem assim; (chega bem perto do ouvido de
Piedade, como se fosse um segredo, sussurra) – A gente gasta tudo o que
ganha… sem pensar no dia de amanhã. Quando ganhava um dinheiro,
torrava ele em seguida, com qualquer coisa: bebida, carteado, roupas,
presentes; quando não era tomado antes pelo gigolô. No outro dia, pas-
sava fome, usava droga ou pinga vagabunda para aguentar. (sai de perto
e caminha para onde estava, balança o corpo imitando um drogado)

Piedade – Droga ou pinga? Já usou droga? (pensativa e medrosa). Estou


com a cabeça cheia. Você parece bem… já vi pessoas aqui no consultório
que usam drogas. Elas são estranhas, não parecem com você. (levanta-se
olhando para porta de entrada como se verificasse se tinha alguém que
pudesse ouvir)

Nair – Não uso mais. Não é bem como você pensa. Lá no prédio onde
moro, vários filhinhos do papai usam drogas… eles falam que são estu-
dantes… (pausa longa; imita um livro aberto sobre as mãos e conclui).
– Hoje em dia todo mundo bebe, jovens e velhos.

Piedade – Eu, não. Ouvi dizer que fumar maconha é divertido, que a

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gente fica mais calma vendo coisas interessantes. (pára, imita uma fuma-
ça saindo dos lábios, olha para cima como se notasse algo atraente). Já
tive vontade de experimentar… mas tenho medo. O meu mundo é tão
chato. (decisiva) – Mas não quero, não! Tenho medo.

Nair – Você é nova. Ainda tem tempo… (divagando, ao olhar a revista


que está em suas mãos e entusiasmada com a fotografia de um rapaz)

Piedade – Eu? Nunca! Não quero nem pensar nisso! ( endurecendo o


corpo, olhando firme para Nair)

Nair (sorrindo) – Olha que bonitão. Esse aqui (mostrando). Com ele, eu
largaria o Castro. Também, não preciso sonhar… ele não ia me querer…

Piedade – Largava seu marido por causa de um homem bonito?

Nair – Por que não? O quero mais? Castro não é mau não, devo muita
obrigação a ele pelo que ele me fez e faz. Mas sei lá… poder abraçar um
homem assim… (quase abraça Piedade que afasta-se assustada)

Piedade – Que esquisito, você falou que não gosta de homem; agora
afirma que largaria o marido por um bonitão… Não é melhor continuar
com ele?

Nair – Isso é idéia da Igreja: “até que a morte nos separe”. (faz um “nome
do padre”, beija suas próprias mãos) – Não mais existe isso, na zona… e,
também, no prédio onde moro, é uma bagunça total. (balança as pontas
dos dedos uns contra os outros). Na zona, às vezes, a polícia dava batida
lá; eu, “de menor”, escondia-me. Mas, eles me pegaram várias vezes.

Piedade – Foi presa?

Nair – Sim; depois de pouco tempo era solta; sempre depois de me “co-
merem” (bate a mão direita aberta sobre a esquerda fechada) e roubarem

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o dinheiro que tinha comigo. (abre a mão esquerda e roda o polegar
direito aberto sobre a palma da outra mão, imitando a mímica de roubo)

Piedade – “Comiam” você? Eles não iam lá dar batidas?

Nair – Você é boba mesmo. Não conhece nada!. Precisa sair mais para
saber o que existe do outro lado do mundo. É tudo esculhambação; cada
um por si.

Piedade – Não é assim; conheço pessoas honestas; vivem de acordo com


a religião. (olha para o teto do consultório)

Nair – Só um soldado não quis nada comigo. Era até bonzinho… para
um policial, é claro. Mas sua fama era de ser “bicha”. Aqui vem “bicha”?
Não gosto de “bicha” não.

Piedade – Não sei … tem clientes que requebram um pouco, falam


cantado, têm as mãos moles; tudo muito esquisito. Eu fico curiosa; mas
nunca perguntei. Não entendo bem disso… é, de uns tempos para cá fui
forçada a entender.

Nair (Sem prestar atenção ao que Piedade queria dizer) – Lá na zona


de Montes Claros tinha um homem que era “bicha”. Fazia vida também
como as mulheres. (levanta-se e caminha pelo consultório imitando seu
andar requebrando e os gestos com as mãos. Piedade fica apreensiva de
alguém chegar e ver a cena)

Piedade – Tá brincando. Como? Como as mulheres? É… não entendo


mesmo disso!

Nair – Não é bem como as mulheres… Engraçado, certos homens pre-


feriam transar com ele… não sei o que eles têm que nós não temos…
(contrai os músculos faciais demonstrando desdém para eles)

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Piedade – Já tive um amigo… começo a desconfiar dele. Antes… eu não
sabia nada…

Nair – Esse da zona eu me lembro dele até hoje. Era magro e alto, cintu-
ra fina, tinha uns “mamás” enormes, maiores do que os meus. (enquanto
fala, gesticula, andando pela sala, espicha o corpo, aperta a cintura e,
com as mãos, aumenta os volume dos seios). Dizem que encheu seu
peito de silicone. Seu nariz era bem feito, seus lábios grossos e sensuais,
muito vermelhos… uns cabelos castanhos, anelados, de dar inveja (con-
tinua “explicando” com as mãos, o que descreve). O homem era bonito
mesmo, mais bonito do que muitas de nós.

Piedade – Deus me livre! Homem fazendo vida. Que horror! Quê histó-
ria mais esquisita. Não sabia que existiam essas coisas quando morava
no interior. Lá era namoros, noivados, casamentos, família, filhos. (sua
voz é nostálgica, cheia de saudade)

Nair – Eu ainda não contei nada. Você ainda não tem idade de escutar.

Piedade – Minhas idéias estão ficando confusas, fico sem saber o que
é o certo. Vejo agora que existem vários tipos de vida diferentes da que
aprendi em Córrego da Lage…

Entra na sala um propagandista de remédios; já idoso, passadas lentas e


cansadas, voz baixa. Ele olha, timidamente, para as duas que, animadas,
conversavam. Piedade se cala de repente, assustada e envergonhada.

Propagandista – O doutor está? (quase sem som)

Piedade – Sim, espere um pouco, por favor. Não vai demorar. (olhando
de soslaio para Nair)

Nair (desinibida, falando alto) – O senhor é cliente também? O próximo


horário é meu. (voz firme e ameaçadora)

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Propagandista (educadamente, com uma voz baixa, medrosa, olhando
para o chão) – Não senhora, vim apenas fazer uma visita e entregar, ao
doutor, amostras.

Nair – Ainda bem. Assim você não vai me atrasar. Acho que já te vi
(examinando-o de cima a baixo). Foi bom você estar aqui; sempre tive
uma curiosidade. Você toma os remédios que vende?

Propagandista (acabrunhado com a pergunta, tossindo e limpando a


garganta) – Alguns, sim. Os que trago para o doutor; os do sistema ner-
voso… é, nunca tomei… nunca precisei deles, felizmente.

Nair (raivosa, vermelha, olhando-o e desafiando-o, levantando a voz)


– Tá fazendo pouco caso de mim? Você acha que sou louca? Só porque
estou aqui esperando uma consulta, estou mal arrumada e tomo remé-
dios para o sistema nervoso? (levanta-se de onde estava, olha-o, e fica
esperando a resposta)

Propagandista (confuso, sem graça, desculpando-se) – Não, não senho-


ra. Perdoa-me, por favor. Não quis ofendê-la. Não há nada de errado
tomar esses medicamentos; eles são muito eficazes.

Nair – Ah… tá dando uma de educado; falando palavras difíceis. Tá


parecendo os pastores lá da igreja, a que frequento.

Propagandista – Nada; sou um homem simples e pacato. Frequento a


igreja também.

Nair (animada, alegre, já sem raiva) – Você já me viu na igreja? Lá todos


gostam de mim. (novamente agressiva, desafiando-o) – Por que você fez
pouco caso de mim? Eu não te fiz nada.

Propagandista – Não minha senhora. Não pretendi, nem pretendo lhe

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tratar mal. (tenta acabar com a discussão)

Nair (crítica, brincando, sem raiva) – Você tem um modo de falar


parecido com as bichas, é muito delicado. Eu falo o que penso. Não sou
como você!. Sou grosseira mesmo e não escondo. Na hora que você che-
gou, tava falando com Piedade que já fui puta.

Propagandista (espantado) – O quê?

Nair – Isso mesmo que você ouviu. Puta da zona de Montes Claros.

Propagandista – Nasci lá perto. (falando mais baixo o final da frase,


arrependido de ter falado o que não desejava)

Nair – Quem sabe você já me visitou lá. (curiosa e depois, demonstran-


do ironia). Estou brincando; você é muito velho. Quando morava lá,
você não mais funcionava; pelo jeito não dá mais no couro há muitos
anos. Na igreja os pastores sempre me pedem para falar no “púpito”, é…
lá na frente, no lugar onde eles falam, contar o meu sofrimento e arre-
pendimento por ter sido puta.

Propagandista – Eu nunca fui homem de frequentar esses lugares. (pára,


fica em silêncio uns instantes e continua) – Como contar no púlpito sua
vida? A gente esconde o que fez de errado.

Nair – Errado! Já contei muitas vezes o que já fiz. Todos ficam curiosos
para ouvir. Todos escutam sem dar um pio. Minha fala, na igreja, dá
“Ibope”. Até parece que eles nunca treparam. (Nair levanta-se; fala alto,
gesticula e faz gestos imitando sua fala)

Propagandista – Mas isso é um abuso, uma exploração de sua desgraça.


(fala mais alto, mudando seu modo habitual de falar) – Comentar seu
passado sofrido para desconhecidos da igreja!

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Nair – Isso, no seu modo de pensar. Eu gosto! Lá na frente de todos,
pareço uma artista no palco fazendo “estriptise”. Quando conto meus ca-
sos, todos ficam me comendo, só com os olhos. Ouviu?. (animada, como
se estivesse na Igreja, pregando)

Propagandista (indignado) – Os pastores deixam?

Nair – Claro, eles são os que mais gostam. Pedem para repetir as partes
mais emocionantes. Você entende, né? As bem íntimas, as cabeludas.
Sabe? Eles ficam excitados. (abre bem os olhos, fingindo-se de espanta-
da).

Piedade – Que vergonha!

Nair – Quando noto que eles estão muitos animados com minha his-
tória, invento outras, mais picantes ainda, umas que ouvi e que jamais
existiram. Ficam entusiasmados. Outras vezes, para apagar o fogo deles,
ou da platéia, conto um fato triste, no meio dos cabeludos… todo mun-
do chora, até os pastores… eles são uns bobos. Me divirto muito lá.

Propagandista – Eles não percebem que você está representando para


excitá-los?

Nair – E daí? Que diferença faz? O resultado é o mesmo… tudo que


emociona é bom, é bem aceito.

Propagandista – (confuso com o argumento, pigarreando ) – Deve ser…


Um relato é a realidade; o outro, a fantasia, a mentira.

Nair – Você é mesmo um bocó… não sabe de nada… (rindo debo-


chada) as pessoas gostam mais; ficam mais animadas, com as histórias
falsas… com as inventadas.

Propagandista – Gostam mais da mentira?

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Nair – A minha história, a de minha vida real, é conhecida… vivida
por muitas putas como eu. São todas iguais, por isso mesmo chatas… .é
preciso aumentá-la, pôr alguma coisa apimentada, inventar uma outra
história mais estranha acerca da história, fazer uma nova… diferente… .
é essa que provoca as emoções fortes que tanto apreciamos… (segura de
suas afirmações, colocando o dedo perto do rosto assustado do propa-
gandista)

Propagandista – Você está brincando com as pessoas, brincando com


coisas sérias. Devia ter mais respeito, pelo menos da igreja.

Nair – Está fora do mundo. A galera gosta disso… de atrações, do ex-


traordinário; é o falso que anima… Alguém vai à Igreja para aprender,
enxergar ou pensar acerca da realidade? Nunca! Eles vão ali para sonhar
e sentir. (levanta os olhos para cima, abre os braços e as mãos, contrain-
do-as)

Propagandista – Não acredito! Os pastores não participam disso… eles


não podem concordar… (empolgado com a conversa)

Nair – Que nada! Você só entende dessas porcarias que vende. (aponta
para a pasta). Alguns entusiasmados, perguntam-me detalhes; querem
saber tudo: que homem mais me excitou, o mais estranho deles, quanto
tempo durava, quanto recebia por cada serviço.

Propagandista (curioso acerca do que foi dito) – Como?

Nair – Você está querendo saber… é só ir à igreja. Mas vou falar: não
sentia nada! (agitada com as lembranças, falando rápido) – Além do
mais, lá tudo valia; não achava nada estranho; lá na zona era tudo nor-
mal.

Propagandista – Deve ter sofrido…

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Nair (balançando a cabeça para um lado e outro antes de responder) –
Não sei. Sei que detestava todos! (com raiva no olhar) – Como detesto
os homens da Igreja que me perguntam e exploram…

Propagandista – Então, por que vai lá?

Nair – Boa pergunta. Não sei. Acho que me acostumei… como na


zona… depois de um certo tempo, fico animada; acho que nos habitua-
mos com tudo… até com o que era insuportável.

Propagandista – Compreendo… (lembrando do seu próprio trabalho


que também detestava no início) – Os hábitos nos protegem…

Nair (admirada) – Não entendi bem o que disse, mas você tem razão.
São nada mais nada menos do que gigolôs engravatados e educados.
Ganham a vida, como muitos, com o sofrimento alheio, exploram a
desgraça.

Piedade (entrando desajeitadamente na conversa, medrosa) – Que isso


Nair! Eles ajudam muito às pessoas, são piedosos.

Nair – Piedosos? Selecionam os sofredores – detestam os que gostam da


vida – oferecem-lhes o mundo do futuro. Para quê?

Piedade (sem saber o que falar, medrosa) – Eu já fui à Igreja … agora


parei.

Nair – Arrumou um emprego, tem comida e não tem filhos. Se todos vi-
vessem bem, todos eles estariam desempregados. Vivem da desgraça dos
outros. Como você; (virando-se para o propagandista) – vende muitos
medicamentos quanto mais doentes existirem. Se todos fossem sãos…
você morreria de fome.

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Propagandista – Oh! Que idéia esquisita! A senhora está enganada. Levo
uma vida honesta e boa, além disso, gosto de frequentar a Igreja.

Nair (rindo, criticando) – Boa? Velho, cansado e trabalhando; isso é vida


boa? Você, meu amigo, que fala bonito e nada sabe da vida, já trepou
com putas?

Propagandista (boquiaberto, surpreendido com a pergunta indiscreta)


– Bem, quando era rapazinho… é… nem me lembro; isso foi há tanto
tempo. Por que essa pergunta? Respeite-me, por favor. Não vim aqui pra
isso! É um abuso! (irritado e tenso, dando a impressão de ir embora)

Nair – Ficou envergonhado, uai. Por quê? Vai ver que você não é muito
fanático por mulheres…

Propagandista (recompondo-se e enérgico) – O que você está dizendo?


Não admito que fale assim comigo! Já lhe disse! Sou um homem sério e
estou trabalhando.

Nair (inteiramente desbocada e desafiadora) – E você acha que era fácil


o meu trabalho… Gostaria de ver você debaixo de um homem sujo, em-
briagado, louco ou mendigo. Ele, enfiando um negócio dentro de sua …
Você ia preferir mil vezes fazer propaganda com os médicos.

Propagandista – Essa conversa não está me agradando. Há coisas que


são íntimas, a senhora está falando demais…

Nair (no mesmo tom anterior, sem ligar para as críticas) – Ser puta,
andar com vagabundos e doidos, é mais difícil do que vender remédios,
todo bonitinho como você, num consultório com ar refrigerado. No
quarto sujo, não tinha nada disso. Era um velho estrado com um col-
chão manchado de tudo que é imundice.

Propagandista – Eu sei; já vi isso; já lhe falei. Sinto mal em lembrar.

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Nair – Ah… Então, já entrou nos quartos imundos onde se vê paninhos
úmidos, que foram usados para limpar as sobras do sexo, pendurados,
num varal improvisado dentro do quarto, exalando aquele cheiro acre,
horrível… cheiro que jamais sumiu de meu nariz.

Propagandista – Insiste ainda em falar dessa vida podre que você teve?

Nair – Podre? E a sua? Será que sua vida é melhor do que a que tive?
Pelo menos, eu já larguei a minha antiga. E você, até quando vai conti-
nuar nessa merda de vida?

Propagandista – Trabalho há trinta e quatro anos nisso. Minha profissão


é mais digna do que a sua. Gosto dela! A sociedade sabe disso… conde-
na e proíbe a prostituição e aceita e concorda com a minha.

Nair – É muito pouco. Talvez, tenha aprendido mais nos meus sete anos
de profissão do que você nos seus trinta e quatro anos. O meu curso é
superior; o seu, primário.

Propagandista – Você aprendeu tanto que só fala idiotices. Você bem


sabe, esconde de si mesma, que sua vida foi terrível.

Nair – Não sei se foi pior do que a sua. Sofri muito. Quem não sofre? (dá
uma pausa, olha-o, falando com uma certa dose de sofrimento; o tom
alto e rápido, diminui para baixo e lento) – Certo? Suportei tudo e estou
viva ainda. O curso que nos faz aprender muito é sempre difícil e peno-
so. Tenho recordações que nunca mais saíram de minha cabeça.

Propagandista – Fiz e faço cursos para exercer minhas atividades; eles


são difíceis e puxados.

Nair – Ah, ah! Puxados! Lembro-me do velho guarda-roupa vazio,


contendo apenas uma garrafa de pinga, toalhinhas e sabão em barra – o

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único móvel do quarto além do estrado – quebrado, amarrado com bar-
bante para não se despedaçar. Vivia nisso. Nunca sabia se seria ou não
procurada e por quem. (fala a frase final, lamentando, lentamente)

Propagandista – Vive melhor ou pior do que antigamente?

Nair – Não sei! Como não sei se a sua vida é melhor do que a das putas.
Se bem que na sua idade, se você fosse uma delas, não teria nenhum
freguês. Ainda mais com essa cara feia e esses óculos fora de moda.

Propagandista – Era só o que faltava: vir aqui hoje. Maldito dia. (pen-
sando que já está na hora de largar tudo aquilo; levantando-se e cami-
nhando até a porta decidido a ir embora).

Nair (sem ligar para a ameaça de ir embora) – Já tive muitos clientes de


terno e gravata como o senhor e que na cama viravam outros. Um deles
me pedia para usar uma calcinha o dia todo. Na hora da relação, ele a
punha na boca e ficava mastigando-a. Era um dentista respeitável.

Propagandista (voltando para seu lugar, assentando-se e tornando a ficar


em pé) – Sua conversa está inconveniente; não está vendo que ela é mui-
to nova? Estamos num consultório médico e não na…

Nair – Ah! Ela precisa aprender. Esse dentista grã-fino ainda me pedia
uma calcinha, limpa – eu arrumava uma nova, ainda não usada – para
ele vestir durante a transa. Ele levava uma lata de creme de leite para que
eu lambuzasse seu corpo. Sujava tudo. Uma porcaria! Também, como ele
era rico, eu cobrava mais.

Piedade ( estupefata com o que ouvia) – Que nojeira!

Nair – Vocês, como todos os santos do pau oco, são parecidos. Gostam
de ouvir as histórias escabrosas e fingem estar horrorizados. Tudo de
mentira. Todos são iguais, todas as profissões são semelhantes.

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Propagandista – Não é à toa que você está aqui. No lugar certo.

Nair – Não percebo a diferença entre trabalhar com a cabeça e as mãos,


como você e o doutor fazem, e com a cabeça e as partes baixas do corpo,
como fazem as putas. Eu tinha que usar a cabeça também, além das
outras partes. Sabia?

Propagandista – Hoje é meu dia de azar.

Nair – Azar? Sorte, não? Você hoje terá assunto para conversar em casa
com sua mulher. A maioria dos casais não tem o que conversar.

Propagandista – Eu tenho amigos para conversar além de minha mu-


lher…

Nair – Amigos! Precisam sair aos pares, todos juntos, para arrumarem
assuntos, tão amolados que ficam com vocês próprios. E que assuntos!
Os de sempre: queixas e queixas.

Propagandista – Não sou disso; minha mulher gosta um pouco…

Nair – Quase sempre – desculpe-me, mas é o que escuto – como cada


um, marido e mulher, não se suportam, cada par decide, geralmente
após alguma bebedeira ou uma noite regada a pó, trocar de parceiro.
Você, que é casado, sabe disso. Já trocou sua mulher nessas festas parti-
culares?

Propagandista (irritado, surpreso com a pergunta inesperada e gros-


seira) – Não! Não sou de fazer essas coisas. Vivo bem. Além disso, não
converso certos assuntos com minha esposa e não quero falar sobre isso;
muito menos com você.

Nair – Oh, que mentira! Tudo é feito às escondidas. Se não conversar

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isso, terá que conversar coisas piores: o pão que a empregada roubou, a
camisa mal-passada, a toalha que não foi colocada no banheiro, as notas
ruins do filho, o nariz que está escorrendo, a gravidez da filha, a morte
do amigo, o casamento chato para ir e a falta de dinheiro. Não é mais
divertido conversar acerca de putaria?

Propagandista (Confuso, sem saber o que fazer ou falar) – A senhora


está indo longe demais.

Nair – Ninguém tem o que conversar. É preciso de algo excitante. Hoje


será um dia de festa para você. Terá assunto em casa. Devia me agrade-
cer por isso.

Propagandista – Tenho coisas melhores para dialogar com minha espo-


sa.

Nair – “Diabolar” palavras bonitas nada dizem. Mas, como amiga, te


dou um conselho: não chegue em casa e fale logo. Espere, espere bastan-
te tempo. Faça suspense, crie um clima de expectativa, fale com calma, já
na cama. Dá mais resultado. Por que as pessoas assistem novelas?

Propagandista – Que pergunta! Porque gostam, é claro!

Nair – Não! Porque não têm nada melhor para fazer e tem sexo nelas.
Todas giram em torno de historietas inventadas como as que conto na
igreja. Só que relacionadas com putaria doméstica, as que ocorrem entre
as famílias.

Propagandista – Eu não assisto novelas.

Nair – Mas garanto que vê filme pornô, lê a revista “PlayBoy”, “Eles e


Elas” e outras mais.

Propagandista – Não sou dado a isso.

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Nair – Então, é doente da cabeça; devia consultar. Eu também faço
outras coisas. Ouviu? Lá no prédio ajudo uma mulher que bebe muito e
também, frequento a igreja também para orar.

Piedade – Ainda bem, pensei que só ia à igreja para contar histórias de


sua vida?

Nair – É… mas se não fosse eu, com minhas histórias, não sairia nada
que preste. Com meus casos, ajudo as pessoas, de uma forma ou de ou-
tra. Cada um deve fazer sua parte. Não é assim que é ensinado?

Propagandista – Afinal, estamos concordando em alguma coisa.

Nair – Não estou mais aguentando a igreja; tá chato. Falar e ouvir as


mesmas coisas. Sempre o mesmo papo: pecado, orar, perdão, bondade,
Deus. Deviam inventar alguma novidade para atrair os crentes: discutir
um crime, estupro, incesto, isso sim, daria Ibope. Ah, Piedade, ia me
esquecendo, tô doida para mijar; posso entrar? Gostei muito do senhor,
sabe?

Propagandista (custando a falar) – Eu também, a senhora é espontânea e


simpática.

Nair – Eu sou assim mesmo. Gosto de todo mundo. Só não gosto da


irmã do Castro. Ela não presta. Vai lá na oficina só para tirar dinheiro
dele e do Clóvis. Dessa eu tenho raiva. Gostaria que ela morresse. Com
licença, meu querido.

O doutor chama sua secretária através da campainha. A atendente vai


até à sala e volta em seguida. Manda o Propagandista entrar. Este cami-
nha lentamente em direção à sala. Enquanto isso Nair entra no banheiro.
Logo depois retorna.

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Nair – Eu, quando entro na sala do doutor… como é que ele se chama
Piedade?

Piedade – Dr. Otávio.

Nair – Eu sempre confundo o nome dele com “otário”. Mas ele não
é bobo, não. Ele sabe cobrar e como! É gente fina. Eu entro e só saio
quando a campainha toca. Ele tem que me mandar embora, senão fico
falando sem parar.

Sai o Propagandista. Não se despede de ninguém.

Nair – O velho ficou com raiva. Também não quero nada com ele.

Piedade chama Nair para entrar.

Piedade – O Dr. está chamando você, Nair. É sua vez…

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Segundo Ato

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Chega à sala de espera, ligeiramente embriagado, o cliente, Jaime Caia-
do. Bem vestido, com um terno cinza, bem talhado, usa uma gravata
vermelha com desenhos e um óculos escuros. Piedade, cantarolando
uma canção de sua terra, limpa, com um espanador, as cadeiras e mesa.

Jaime (animado, desinibido, com a voz ligeiramente enrolada) – Como


está, Piedade? Alegre ou triste? Nunca te vi cantando. Estou no horário?
(estendendo a mão para ela e olhando, com cupidez, para seu corpo)

Piedade (envergonhada ao perceber o olhar e imaginando que será


cantada, como sempre, pelo cliente embriagado) – Bem e o senhor? Dr.
Otávio teve que ver um caso urgente no hospital e atrasou um pouqui-
nho, mas a cliente que está lá dentro não deve demorar.

Jaime (satisfeito por ter que esperar) – Estou sem pressa… cheguei
cedo… bem, nem tanto… (olhando o relógio) – Piedade, você está cada
vez mais bonita (torna a olhar para o seu bum-bum). Já arrumou um
namorado?

Piedade – Ainda não (aborrecida com a conversa e os olhares de sem-


pre). Não quer ler uma revista? A música está boa? Tá difícil arrumar
um namorado.

Jaime – Nada! Para você basta querer, o que não falta é homem (levan-
ta a voz). Tem até de mais. É uma bela música. (aos poucos vai ficando
mais tranquilo; tenta mais uma aproximação com Piedade; esta, evita
olhá-lo). – Gosto de vir aqui. Estou em boa companhia. ( nova investida
sem resposta). É um lugar bom para trabalhar… Dr. Otávio parece ser
um bom patrão (insinuando a possibilidade algo entre os ela e o doutor).
Você gosta muito dele, não é?

Piedade (amolada com as palavras) – Sim, é um bom lugar; ah… não sei
bem se é bom.

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Jaime – Como? Você está sempre de cara boa; parece sem problemas.

Piedade – Sim, felizmente… (secamente e mudando a voz, tenta encer-


rar à conversa)

Jaime (continuando sua conquista; orgulhoso, elevando a voz) – Eu


tenho muitos problemas; ocupo um cargo de chefia no Banco do Bra-
sil. (tossindo, para limpar a garganta seca e com uma voz ligeiramente
enrolada) – É… (suspirando e buscando um apoio para o que iria dizer
em seguida) – Sou um homem infeliz; bebo muito. É por isso que estou
aqui, bem… não só por isso.

Piedade – Já tinha notado.

Jaime – Você é boa observadora.

Piedade – Sim, sou. Meu pai bebia… bebe muito. Tenho horror ao álco-
ol. Sofri muito e ainda sofro com o que assisti, brigas, gritarias, interna-
ções…

Jaime – Mas eu nunca fui internado; bebo sem ficar bêbado.

Piedade – Todos falam isso…

Jaime – Nunca caí nas ruas; o máximo que faço é conversar demais ou
cantar, quando bebo, sou boêmio, desde rapaz. Fico alegre depois de uns
tragos, me torno galanteador,… acho que tenho que conquistar todas as
mulheres que encontro.

Piedade – Está resfriado, doutor?

Jaime – Não, nada. Estou é num beco sem saída. Venho aqui há muito
tempo; você conhece alguns de meus problemas; eles são muitos… tem
um pior do que os outros.

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Piedade – Mas todo mundo tem… até eu.

Jaime – É… tem razão. A gente pensa que os nossos são piores. Sou
casado há mais de vinte anos. Você conhece Clara, ela veio aqui comigo
algumas vezes… sempre acompanhada de uma amiga.

Piedade – É … eu me lembro da amiga de Clara; uma mulher grande,


meio esquisita, até olhou para mim, como os homens olham.

Jaime – Exato; quase todas as amigas de Clara são assim. Ela sai para
dançar quase todas as noites. Outro dia resolvi ir ver onde era.

Piedade – Nunca vi mulher sair à noite sem o marido! Desculpe-me …


eu não tenho nada com isso.

Jaime – Pode falar; não me importo com mais nada. Cheguei lá; uma
espelunca, perto do mercado… subi por uma escada suja e estreita, tinha
até mau cheiro. No alto tem um salão e, aí o espanto… só vi mulheres
nas mesas. Umas dançando com as outras.

Piedade – Hoje em dia tá tudo normal. E se ela estivesse dançando com


um homem. Como se sentiria?

Jaime – Não sei. Talvez fosse menos ruim; seria mais esperado. Quando
ela me viu ficou trêmula. Lá tinha homem também, mas para servir às
mesas, o porteiro… Entende? Fiquei pouco tempo e retornei à minha
casa sem ela. Não dormi naquela noite.

Piedade – É estranho; estando casada com você há anos.

Jaime – Ela só chegou às três horas. Estava acordado. Entrou sem fazer
barulho mas notei que foi direto ao banheiro. Lá, guardou alguma coisa
na gaveta. De manhã fui ver o que era… convites diversos para bailes…

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todos onde as lésbicas se encontram.

Piedade – Você não sabia?

Jaime – Já desconfiava… mas ela é boa mãe… os filhos gostam dela; ela
gasta muito…

Piedade – Acho que vocês não vão se separar…

Jaime – Um dia cheguei em casa de surpresa e a flagrei abraçada à


cozinheira,… uma moça criada em nossa casa… é minha prima. A sala
estava escura… um lençol de casal cobria as pernas das duas.

Piedade – Um cliente veio contou-me que seu filho, um caminhoneiro,


apaixonou-se por um cabeleireiro. No início, ele brigou com o filho.
Hoje, anos depois, os dois, já casados, vivem muito bem, o pai os visita
sempre.

Jaime – Tive o desprazer de vê-la sendo massageada pela prima, desca-


radamente, com o quarto aberto, na nossa cama. Não sei o quê fazer?

Piedade – Não sei aconselhar ninguém, nem a mim mesma.

Jaime (sem ouvir, precisando desabafar) – Já fui aconselhado por mui-


tos; até pelo padre. Cada um fala uma coisa…

Piedade – Aqui muitos me contam problemas. Fico, a cada dia, mais


confusa. As idéias dos clientes entram na minha cabeça e afastam as
minhas… não sei o quê fazer…

Jaime – Eu noto que, de certo modo, estou preso às amigas de Clara; fico
dependendo da vontade de quem não conheço e pior, não gosto.

Piedade – Nessa confusão, onde tudo vale, começo a aceitar e a concor-

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dar com todas as opiniões… ou com nenhuma, nem isso mais eu sei…
enquanto sua mulher tem um objetivo certo, eu só tenho incertezas. Não
sei mais escolher.

Jaime – Enlouqueceu de vez!

Piedade – Exato! Perdi meu antigo rumo, meu ponto de apoio; não con-
segui arrumar outro. A casa está em ruínas, para piorar, não tenho uma
planta para me orientar; não sei se ergo, nos fundos, a parede do quarto
de dormir ou a privada. Enfim, não sei como agir diante de situações
que antes eram fáceis de decidir.

Jaime (ironizando, rindo) – Vou voltar a orar para Deus te orientar…

Piedade – Não brinque com isso. Estou falando sério. Para me aliviar
e fugir desse desespero passei a agir como uma cliente que aqui vem;
aprisionei-me, passei a prestar atenção, às pequenas coisas, assim esque-
ço as grandes.

Jaime – Nós todos fazemos isso. Para que servem as diversões? Para
fugirmos dos aborrecimentos, da realidade insuportável.

Piedade – Mas, no meu caso, é uma obsessão: ao chegar em casa, cansa-


da das idéias confusas e opostas que invadiram meu cérebro, deito-me.
No meu quartinho, fico horas, parada, olhando uma figura ou, sei lá, um
desenho maravilhoso… uma imagem que apareceu no teto.

Jaime – O quê está acontecendo com você?

Piedade – Nada, nada mesmo! É verdade. Não sei bem se quando alu-
guei o quarto a figura já existia. Só, há alguns meses, recebi essa reve-
lação. Sinto uma coisa por dentro… incrível; acho que ela nasceu para
mim… ora se parece com uma pomba ou cruz, ora com um homem de
barba e de olhar terno, cativante.

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Jaime – Você está com umas idéias esquisitas!

Piedade – Esquisitas? Essa figura é minha salvação, fico hipnotizada por


ela. Divago pensando no nascimento daquela mensagem tão doce…

Jaime – Pensando bem pode ser interessante…

Piedade – Imagino seu construtor; se foi fabricada ao acaso ou por dese-


jo de alguém; qual foi seu objetivo, há quanto tempo está ali. Extasiada
imagino o que sentiria caso ela fosse diferente: se possuísse outras cores,
outras formas.

Jaime – Você está apaixonada por este sujo?

Piedade – Você chamou minha imagem de “sujo”; está zombando de


mim. Para mim, na falta de coisa melhor, é a maior preciosidade que já
tive.

Jaime – Desculpe-me; não sabia que tinha tanta paixão ou adoração por
um suj… Como vou chamá-lo?

Piedade – O nome não importa. Diante dela meu coração bate mais
forte, minha respiração acelera. Ao olhar para cima e vê-la, sinto uma
felicidade indescritível.

Jaime – É como se fosse um namorado?

Piedade – Chame-o do nome que quiser, já lhe disse. É muito mais do


que tudo isso. Essa escultura, forma, desenho ou sei lá o quê, representa
para mim diversas coisas; todos os mistérios agradáveis desse mundo.
Devoto, parte de minha vida, a esse vulto, sem sua presença eu não seria
o que sou. Essa imagem me salvou, somente nela encontro a paz deseja-
da.

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Jaime – Salvou? (admirado) – Estranho! De qualquer forma, se ajuda,
tudo bem.

Piedade – Se ela não tivesse aparecido, eu já teria enlouquecido. Sinto


culpa quando, ocasionalmente, por cansaço ou sono, dispenso pouco
tempo para adorá-la e conversarmos.

Jaime – Ela aceita?

Piedade – Aceita qualquer conversa. Nos fins de semana, nosso encontro


é mais demorado e profundo pois posso dedicar mais tempo à ela. Espe-
ro, ansiosa, o fim de semana…

Jaime – Eu, nos fins de semana, passo o dia com minha mulher, ou
melhor, passava. Quase sempre, como pouco temos em comum, ela fica
louca para se ver livre de mim.

Piedade – Eu, não; o vulto é o amigo que tenho. Morro de medo de ele
sumir um dia, ir embora, não mais me querer.

Jaime – As manchas que aparecem nas paredes de minha casa nunca me


deram prazer, ao contrário, incomodaram-me.

Piedade – Deus me livre! Essa figura, fonte de devoção e orientação,


fortalece-me; inspira-me pensamentos e pressentimentos nobres, subli-
mes. Ela me permite tolerar às desgraças, às dúvidas e aos desesperos de
todo dia.

Jaime – Começo a te invejar; gostaria de ter uma ligação dessa nature-


za… que sirva de proteção.

Piedade – Ela é o caminho para o bem, afasta-me do mal diante das


seduções maléficas; é o fundamento de tudo; a paz para esse inferno no

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qual vivo. Bendita seja a hora em que ela nasceu, bem-aventurada seja a
mão que a construiu.

Jaime – Sempre tem o dedo de Deus no meio de tudo isso. Um coisa que
não compreendemos.

Piedade – Sem sua presença iria me destruir, acharia tudo normal, seria
atraída por qualquer coisa; transar com o primeiro que aparecer, ir para
cama com uma mulher, fazer até o que dá nojo; nada seria proibido…

Jaime – Cada um tenta escapar dos azares à sua maneira; cada um tem-
pera sua comida do seu jeito…

Piedade – As conversas ouvidas no consultório me confundiram; as ora-


ções ou súplicas, que tenho tido no meu templo, tem me confortado, me
fizeram reconquistar a tranquilidade perdida.

Jaime – Isso é bom…

Piedade – As minhas meditações solitárias, me lembram a harmonia,


a calma de Córrego da Lage. Num e noutro lugar, tudo é paz. Todos
sabiam sempre o quê fazer pois tudo estava escrito, ordenado e estabe-
lecido pela sábia lei; todos viviam felizes ao seguir os preceitos sagrados
imutáveis pregados pela irmandade. Os que discordavam eram interna-
dos no Hospital Raul Soares como loucos; uns poucos, aprisionados na
cadeia local. Era a ordem do lugar; isso nos acalentava.

Jaime – Que horror! É… todos sabiam o que tinha que fazer e como
deveriam pensar…

Piedade – Sim! É uma forma de viver com limites claros. (pensativa,


olhando para fora do consultório) – Que saudade tenho das idéias sim-
ples de minha cidadezinha.., bem diferentes dessas daqui.

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Jaime – ( continuando suas especulações) – Todos lutam para evitar obs-
táculos ( dá uma longa pausa, e continua): – existem muitas maneiras de
escaparmos.

Piedade – Lá era melhor! Aqui, se perder minha proteção, ficarei louca.


Vejo que arrumei o emprego errado. Devia ter ficado lá, onde todos pen-
sam iguais; onde não existem dúvidas. Aqui tudo é verdade e, ao mesmo
tempo, tudo é mentira.

Jaime – Quer sair daqui? Vou tentar arrumar um lugar para você. Sabe
datilografia? (Entusiasmado com a oportunidade da aproximação)

Piedade – Não é bem isso. Não sei mais se quero sair daqui; tomei um
amor – um ódio também – não devia ter falado assim – por tudo que
aprendi nessa cidade. A gente fica mais sabida, mais bem informada.
Será? Não sei mais quem eu sou. Está vendo?

Jaime – Se voltar estará fulminada, jamais será feliz… se eu continuar


com Clara estarei acabado, se terminar, perdido… é muito triste pensar
nisso: minha mulher deitada com outras… há uma saída: morrer…

Piedade – Cruz credo! Você está pensando em se suicidar?

Jaime – Sim, já pensei, muitas vezes. Por que não? Minha mulher tran-
sando com outras. É terrível, engolir o que mais tinha vontade de vomi-
tar. Morrendo, fico livre de tudo.

Piedade – Mas perde o que te atrai, o que é bom.

Jaime – Mas não sofro, pois não tenho consciência de que perdi.

Piedade – As coisas ruins passam… é, mas, pensando bem, as boas tam-


bém…

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Jaime – Estou sem saber o que fazer. Viver ou não com Clara? Viver ou
morrer? Tudo é possível; esse é o problema. Haverá uma outra vida?
Haverá outra saída?

Piedade – Ninguém jamais saberá…

Nesse momento, um silêncio invade a sala por segundos. Piedade tensa,


anda, de um lado ao outro, pensativa – olha para o alto como se estivesse
procurando algo. Jaime, parece longe, imaginando uma saída no labirin-
to onde foi encarcerado.

Heloísa sai da sala do Dr. Otávio. Trata-se de uma velhinha magra e


agitada, traz na mão uma receita. Piedade se sente aliviada. Está exausta
e aborrecida com a conversa. Antes de verificar com Dr. Otávio se pode
mandar Dr. Jaime entrar, Piedade avisa a D. Heloísa que o motorista que
veio trazê-la deu uma saída rápida e que ela deverá esperá-lo por mo-
mentos. Oferece-lhe uma cadeira e ajuda-a a sentar-se. Ao aproximar-se
da cadeira, D. Heloísa olha espantada para o bancário cabisbaixo e leve-
mente embriagado. Ela, em lugar de se assentar para esperar, caminha
em sua direção, olha-o fixamente, dirigindo-se a ele, quase gritando:

Heloísa – É você Alcides? Como vai, meu tio querido?

Jaime (Levantando a cabeça, perplexo e irritado com a intimidade) –


Não senhora; meu nome é Jaime, Jaime Caiado de Almeida.

Heloísa – Mentiroso. Sempre brincando, hein? Sou Heloísa, filha de


Álvaro, seu tio, irmão de seu pai.

Jaime – O quê?

Heloísa – Ora, não me reconhece. Quantas e quantas vezes já nos encon-


tramos, principalmente lá em Itapecerica; acho que você foi até no meu
casamento?

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Jaime – Está enganada minha senhora. Nem conheço Itapecerica. (mais
Irritado ainda). Não tive o desprazer de ir ao seu casamento. Quando
você se casou?

Heloísa – Em 1911; você se lembra muito bem; você é mais velho do que
eu.

Jaime – Você se casou em 1911. (duvidando da idade da paciente).


Quando a senhora nasceu? Em que ano?

Heloísa – Nasci em 1917, lá em Itapecerica?

Jaime – 1917? Ah, ah! que dizer que a senhora se casou antes de nascer.

Heloísa – Como? Está debochando de mim? Pensa que sou doida? O


que faz aqui? Veio passear?

Jaime – A senhora não sabe o que diz. Está trocando as datas. Não pode
ser tão velha para ter se casado em 1911 e, perdoa-me, minha cara ami-
ga, eu não sou seu parente. Já lhe disse!

Heloísa – Tem vergonha de ser meu parente? Não está tão novo assim…
cheio de olheiras, a pele do rosto caindo, a maioria dos cabelos brancos.
Está um trapo. Como vai Teresa?

Jaime – Que Teresa?

Heloísa – Ora, sua mulher! Ou você se casou de novo? É… faz tempo


que não encontro com vocês… mas também, nunca viveram bem…

Jaime – Continuo com a mesma esposa; com Clara; vivemos muito bem.

Heloísa – Sempre tive dó dela por ter se casado com você… tudo por

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causa do dinheiro que esperava herdar. Coitada, deu tudo errado… seu
pai perdeu tudo no jogo de baralho e com a queda do preço do café.

Jaime – Meu pai nunca foi fazendeiro e nem jogava baralho.

Heloísa – Bem feito! Ela também se casou outra vez? Ou já morreu?


(aproximando perto de seu ouvido, falando um segredo) – Ouvi dizer
que sua filha fugiu de casa – com uma amiga… É verdade?

Jaime – Minha senhora, já tenho problemas demais. Respeito-a muito


mas peço-lhe que não me amole, não há nada disso.

Heloísa – Não entendi… ando meio confusa…

Jaime – Não a conheço, não sou seu tio, nunca fui à sua casa, minha filha
mora comigo. Está tudo errado! Entendeu agora!

Heloísa – Essas coisas acontecem; não precisa ter vergonha. A única


pessoa que está escutando nossa conversa é Ofélia – ela trabalha comigo
há mais de cinco anos. (aponta para Piedade que já voltou da sala do Dr.
Otávio) – além disso ela é meio burrinha, não entende nada.

Jaime – Quem é ela? (apontando para Piedade) – Ah… a senhora sabe o


nome do médico que a senhora consultou ?

Heloísa – Ora essa! Esta é Ofélia, ela trabalha na minha casa, é minha
ajudante… agora lembrei-me, o nome do médico é Dr. Zeferino. Por
sinal, um ótimo médico de coração.

Jaime – Médico de coração? Ah… Ah… (dando boas gargalhadas e


relaxando-se)

Heloísa – Ele trata da minha pressão há tempos… ela está alta. Também,
com essa vida… atualmente todos os velhos, como nós, têm pressão alta,

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você também deve ter…

Jaime (continuando a rir, debochando desrespeitosamente) – Ah, Ah,


Ah, Não falei? Ele é psiquiatra, médico de cabeça e o nome dela é Pie-
dade; não é sua empregada. Não trata de pressão alta… minha pressão é
boa. Ouviu?

Heloísa (confusa) – Não precisa de gritar. (assustada) – Ela então me


largou? Não trabalha mais comigo?

Jaime (já preocupado com a cliente) – A senhora veio aqui sozinha…


sem acompanhante… é casada?

Heloísa (chorando copiosamente) – Meu marido morreu. Ele era tão


bom. Mataram-no de tanto que o maltrataram. Ele teve um enfarte.

Jaime – É uma causa de morte frequente…

Heloísa – Era forte ainda; bem mais novo do que você… faz dez anos,
não, vinte. Não sei bem as datas; minha cabeça anda tão ruim! Também,
o que importam as datas nessa nossa idade?

Jaime – Agora é que importam; para os mais velhos, o tempo passa mais
rápido.

Heloísa – Meus filhos me abandonaram. Ninguém mora comigo. (ale-


gremente, dirigindo-se para Jaime) – Por que você, que também mora
só, não vem morar comigo?

Jaime (espantado) Eu?

Heloísa – Em minha casa cabe nós dois: eu e você, Ofélia é uma boa
ajudante. (aponta novamente para Piedade)

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Jaime – Quem lhe falou que moro sozinho? Moro com minha mulher e
filhos.

Heloísa – Não faz mal. Eles podem vir também. A casa é grande, tem
lugar para todos.

Jaime (nervoso, sem saber o que falar) – É … tenho minha casa, não
preciso de ajuda de ninguém, que chatura…

Heloísa – Não fique zangado. Posso ajudá-lo, ainda mais sendo parente.
Meu filho mais velho, Eduardo, tem muito dinheiro, pôs até um moto-
rista para mim.

Jaime – Tem filhos, então?

Heloísa – Claro que tenho… escute aqui, (chegando, outra vez, bem
perto do ouvido de Jaime), não servem para nada. Eduardo, com essa
gentileza, fugiu das obrigações…

Jaime – Os filhos são bons…

Heloísa – Agora não precisa mais me visitar. A mulher dele é que, às


vezes, me telefona.

Jaime – Deviam ajudá-la… é difícil para senhora fazer o que necessita…

Heloísa – Se não fosse uma vizinha, eu já teria morrido… caí no banhei-


ro.

Jaime – Machucou-se?

Heloísa – Era um fim de semana, dia da folga dela, (aponta para Pieda-
de); ela também não ajuda nada. Agora, até do banho tenho medo. Foi
tão difícil!

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Jaime – O que ocorreu?

Heloísa – Eu, nua, caída com uma terrível dor aqui (aponta para as ná-
degas), pensei que tivesse quebrado; fui arrastando até o telefone e pedi
a Marilda que viesse me acudir.

Jaime – Não vai me dizer que a senhora deixa a porta da casa aberta?

Heloísa – Marilda tem a chave do meu apartamento. Se não fosse ela,


não sei o que seria de mim!

Jaime – Um amigo faz muita falta.

Heloísa – Ela é muito boa e religiosa: evangélica e católica… às vezes,


frequenta as sessões espíritas. Explica-me muito bem acerca da outra
vida – é no que mais presto atenção… não entendo nada não, mas gosto
muito do que ela fala; ela me trata melhor do os filhos.

Jaime – Nada, (mostrando seriedade) a gente, no fundo, reclama dos


filhos mas gostamos deles.

Heloísa – Dou razão a eles. Quem gosta de velho? Aposto que acontece o
mesmo com você que é mais velho do que eu!

Jaime – Não! Já lhe disse. Eu trabalho, sou funcionário do Banco do


Brasil , tenho família graças a Deus… e não sou velho como a senhora
pensa. Desculpe-me a grosseria, não sou disso, hoje não estou bem…

Heloísa – Já estou acostumada, todos me xingam e tratam-me desse


jeito. Peço a Deus Santíssimo, rezo, constantemente, para que ele me tire
a vida.

Jaime – Não pense nisso. A vida é tão boa…

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Heloísa – Para que uma pessoa como eu continua a viver?

Jaime – A senhora está forte e tem muito que fazer nesse mundo.

Heloísa – Tenho sim. Eu sei; minha única missão: aborrecer os outros,


parentes como você, que têm vergonha da gente.

Jaime (educadamente) – Gosto muito de conversar…

Heloísa – Acho que já vivi o que tinha direito; daqui para frente, qual-
quer dia a mais, tudo é lucro.

Jaime – Eu espero viver muitos anos; junto à minha mulher, ver meus
filhos casando, viajando, carregar os netos…

Heloísa – Ora… nessa idade, nem viajar a gente aguenta. Sou um trapo
que nada mais faz do que dormir, acordando várias vezes à noite; comer,
sem ter a mínima vontade e sem sentir o sabor dos alimentos; enxergar
mal e somente as desgraças da vida; ouvir, alguns poucos sons, geral-
mente xingamentos das pessoas. Ainda bem que escuto mal e vejo tudo
embaçado.

Jaime – Deve haver alguma coisa boa na sua vida…

Heloísa – Eu quase não saio; nem mais rezo…

Jaime – Devia passear; visitar as pessoas; isso faz bem.

Heloísa – Fora de casa, até na igreja, somos tratados como bichos estra-
nhas, seres que só atrapalham a ordem dos jovens apressados. Eles em-
purram a gente, fecham a cara para mostrar que estamos importunando
a rotina.

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Jaime – Mas isso não ocorre com todos…

Heloísa – Ao atravessar uma rua, os motoristas tentam, de todas as for-


mas, amedrontarem a gente; nós que já estamos em pânico.

Jaime – É, a senhora tem razão, em parte…

Heloísa – Uns motoristas jogam o carro em cima; outros buzinam es-


tridentemente para agredir-nos e, alguns, os mais gentis, que não fazem
nem uma coisa nem outra, fingem que não estão com raiva, demons-
trando claramente que estão com dó, devido a nossa fraqueza.

Jaime – Existem os educados que dirigem com cuidado. Eu sou um


deles.

Heloísa – Estes, não agridem porque percebem nossa impotência, ela é


tão grande que eles não têm o prazer de nos ferir.

Jaime – A senhora está exagerando…

Heloísa – Também, para que nos matar, se já estamos com um pé na


cova. Eu, sempre que posso, me vingo; só no pensamento, é claro. Torço
para que eles vivam bastante, para que sintam, quando velhos, o meu
sofrimento atual.

Jaime – É uma boa punição.

Heloísa – Ora, você que é velho me compreende, sabe de que estou fa-
lando. Ninguém gosta de velhos…

Jaime – Não sou velho e gosto deles…

Heloísa – Alguns toleram; os filhos fingem, por instantes, que gostam.


Nos trazem presentinhos inúteis e nos abraçam por segundos.

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Jaime – Está criticando o que existe de mais bonito nesse mundo: o
amor filial.

Heloísa – A sociedade inventou, erradamente, que certos gestos repre-


sentam amor. Nossos queridos filhos se utilizam desse engodo.

Jaime (duvidando) – Talvez a senhora tenha razão…

Heloísa – Mas o amor onde está? No meu aniversário ganhei panelas,


pratos e um chinelo que detesto.

Jaime – Não gosta de presentes? (tentando agora receber apoio de Pieda-


de)

Heloísa – Depende… criou-se uma lenda que dar presentes, qualquer


porcaria, significa amizade ou amor. Muitas vezes, pode simbolizar o
ódio, o deboche ou desprezo

Jaime – Vivemos para cumprir essas lendas, esses mitos…

Heloísa – Nas visitas, que sempre são rápidas, um fim de tarde de do-
mingo, por exemplo, percebo, na fisionomia deles, a pressa para ficar
livre daquela situação.

Jaime – Ficar livre da mãe? Isso não ocorre!

Heloísa – Eles querem voltar rápido à vida normal, a deles, longe dos
velhos. Quem gosta de cuidar de velho?

Jaime – Eu nunca vivi coisa parecida. (amargurado, lembra-se de sua


família, levanta o tom de voz). Eu não!

Heloísa – Não é difícil para mim ler, nas expressões dos filhos, a pressa

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para terminar a comédia do amor à mãe. Fazemos juntos um enorme e
cansativo esforço para fingir nossa alegria com o encontro.

Jaime – Esses encontros são salutares…

Heloísa – Essas visitas – tive uma pneumonia que quase me matou –


lembraram-me os velórios a que fui. Nesses, temos que ir para conso-
lar os parentes e, ao mesmo tempo, queremos sair dali, o mais rápido
possível.

Jaime – Creio que a senhora está generalizando, falando de sua expe-


riência… nem todos os filhos têm essa conduta. (incomodado com a
conversa que despertava seus problemas)

Heloísa – Oh, que inocência! Até as enfermeiras cobram mais caro


quando aceitam esse penoso trabalho.

Jaime – Não é bem assim…

Heloísa – Se adoecemos, pioram as coisas. Durante as visitas apressadas,


as expressões dos amáveis visitantes são de tédio, desprazer com a con-
versa tola e monótona que temos.

Jaime – De fato. Já visitei amigos no hospital e ia para cumprir as cha-


madas “obrigações sociais”.

Heloísa – A gente percebe quando a visita olha o relógio e se sente ali-


viada. Já visitou o necessário – um tempo mágico de 30 a 45 minutos…
cumpriu o dever, já pode ir.

Jaime – Gosto de conversar, de visitas prolongadas; não de 45 minutos.

Velha – Nesse momento a visita começa a imaginar coisas mais interes-


santes; depois dessa penitência ele já poderá ganhar indulgências. Então,

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a fisionomia muda, o parente torna-se mais alegre e descontraído. O
terrível castigo já foi cumprido com êxito; ninguém notou a farsa.

Jaime – Concordo em parte, existem certas visitas que são como a se-
nhora descreveu, mas outras…

Velha – Apenas, nos instantes finais da visita, somos tratamos com ca-
rinho, somos vistos como amigos e, não, como fonte de sofrimento. Os
bons momentos, os finais, duram pouco.

Jaime – Todo o tempo de visita é agradável quando os filhos amam seus


pais… eu amo minha família…

Velha – Chega o tempo de se despedir, de alívio. Então eles partem feli-


zes por serem bons filhos conforme o código social.

Jaime – Tenho dois filhos maravilhosos ( vieram lágrimas nos olhos,


lembrando dos filhos que tinha, das queixas que sempre fazia deles, de
sua vontade de abandonar sua família)

Velha – Sorte sua…

Jaime – Eles não me dão trabalho, são estudiosos, trabalhadores, ajudam


em casa, obedecem. (sua voz sai com dificuldade, falsa)

Velha – Não tenho visto isso na nossa família… .você faz parte dela. É
cada um para si.

Jaime – Nunca, felizmente…

Velha – Também temos culpa. Para existirem filhos maus é necessário


que os criemos desse modo. Nós é que construímos os monstros que
depois queixamos.

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Toca a buzina na rua. Piedade avisa para D. Heloísa que seu motorista a
espera e a ajuda a se levantar da poltrona. Ela, com dificuldade, ergue-se
suspirando:

Velha – Ah! Até logo, tio, gostei muito desse encontro. A conversa me
aliviou, tem muito tempo que não desabafo como hoje.

Jaime – Ainda bem…

Velha – É sua mulher que está consultando? Eu gosto muito desse gi-
necologista, consulto com ele desde minha menarca e foi ele quem fez
meus partos. Quando ela sair, dê minhas lembranças.

Jaime (sem saber o quê falar) – Não, ela não está aqui.

Velha – Fico esperando vocês dois para jantar. Farei o que você mais
gostava de comer lá na fazenda quando meu pai era vivo: frango ao
molho pardo com quiabo. Vamos lembrar nossa infância. Eu me lembro
bem; você era um rapaz muito peralta, mas, também, muito formoso.
Até logo.

Jaime – Foi um prazer. (levantando e dando-lhe um abraço) – Irei sim.


Pode esperar. (Virando-se para Piedade) – Com os diabos! Dr. Jaime,
acabrunhado, a pedido de Piedade, entra no consultório.

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Terceiro Ato

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Toca a campainha e Piedade atende. Diante da porta de entrada está
uma moça, de aproximadamente trinta anos, presa pelo braço a um
senhor, de terno amarrotado, que ali vai pela primeira vez. Acompanha
os dois, uma senhora, ligeiramente obesa, descuidada. A moça, bastante
magra, mostra, na face, duas olheiras que circundam os olhos esbuga-
lhados e vazios; dando a impressão de não dormir há dias. Veste uma
calça jeans velha, desbotada e suja. Nada fala. Esforça-se para sair da sala
a qualquer preço mas é contida pelo senhor que a impede de escapar.
O homem que a segura, demonstrando irritação, pergunta, de modo
áspero:

Pai – É aqui o consultório do Dr. Otávio? Marcamos uma consulta ur-


gente com ele, agora, as cinco horas. Já são cinco e quinze.

Piedade – Qual é o nome do senhor?

Pai – A consulta não é para mim! É para ela! Elisa Marcolina Peixoto. Eu
sou o pai dela, esta é a mãe.

Piedade (Verificando na agenda, demoradamente e cansada após um


dia tumultuado) – Está marcada, sim, para as cinco horas. (preocupada
com a reação do pai da paciente, que está nervoso, ela explica) – Acon-
teceu um imprevisto… ele atrasou um pouco, não muito… o doutor irá
atendê-la já; não vai demorar. Assenta um pouco, quer uma revista?

Pai (irritado e em voz alta) – Então, teremos que esperar? Ela, como
você vê, não está bem. Chegou a fugir de casa e foi um custo para encon-
trá-la. Dormiu junto à pedintes; esses vagabundos, sujos, que vivem
bêbados, deitados pelas ruas. Ela pregava para eles, dizendo ser Nossa
Senhora da Consolação, e que iria salvá-los.

Piedade (em voz baixa, amedrontada) – Não demora, não.

Elisa (olhando para Piedade, confundindo-a) – Meu amor, você por

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aqui? Vim te salvar. Onde andou? Desapareceu da igreja. Por quê? Não
gostou de minhas pregações? Estou voltando para você. (assustada, dan-
do um grito) – Oh! Meu Deus! Transformaram você em mulher! O que
fizeram com você…

Pai (bravo, ríspido) – Cale a boca; pare de falar bobagens… ela é uma
moça; não vê que estamos num consultório?

Elisa – Não fique triste meu bem. Tenho poderes, poderes que eles não
possuem, carrego, em minhas mãos, a força das orações… Deus encar-
nou em mim; fui escolhida, somente eu. Mudarei seu sexo novamente,
você voltará a ser um homem, o mais belo dos homens, tudo para me
amar. Construiremos nossa vida juntos, bem longe deste aí, (aponta para
o pai) desses malditos demônios que nos perseguem. Eu sempre te amei.
Vamos embora daqui comigo. Venha, venha meu amor, para bem longe
dos inimigos. Eu te salvarei.

(Todos ainda estão em pé, Elisa, nesse instante, tenta se soltar das mãos
do seu pai e pegar o braço de Piedade, que se afasta com medo da pa-
ciente. Elisa, depois de algum esforço, escapa, por instantes; o pai corre
para agarrá-la; ela tenta nova aproximação com Piedade, vira-se, de
repente e caminha para o lado da porta do Dr. Otávio. Parece assustada
com o lugar desconhecido; seus olhos inexpressivos estão longe, no infi-
nito. Seu pai irritado, com a ajuda da mulher que o acompanha, segura-
-a com mais firmeza, repreendendo-a e caminha até à mesinha onde
Piedade se escondeu ao fugir. A conversa prossegue:

Piedade – Coitada, ela está assim há muito tempo? Quer um copo


d’água?

Mãe – Quer, Elisa? ( ela não responde; começa a rir, ri muito, alto,
fazendo gestos com as mãos levantadas. Os movimentos ora são lentos
ora bruscos. Repentinamente, começa a chorar e a lamentar-se. Depois
canta uma canção religiosa: “com minha mãe estarei, na santa gloria um

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dia… “. pára, fica imóvel, numa posição estranha: um dos braços semi-
-levantados, uma perna adiante da outra e flete um dos braços sobre o
dorso, gira a face, olhando para a cima)

Pai – Ela sofre muito, quase não tem dormido; emagreceu demais. Ás
vezes fala sem parar, ás vezes, nada fala.

Mãe – Não é bem assim. (Intervém a mãe da paciente) – A primeira cri-


se foi pior, ela ficou mais agitada, até agressiva. Fugiu, como agora, mas
ficou desaparecida por três meses, morando debaixo do viaduto, chegou
a pedir esmola na rua para comer. Foi procurada, por toda parte, procu-
rada até pela polícia, ninguém a encontrou. Nessa época, ela cursava o
terceiro ano de Psicologia.

Pai – Era boa estudante, é inteligente, conseguiu terminar o curso, abriu


até um consultório . Mas quase não tinha clientes; também, assim…
quem iria procurá-la?

Mãe – Ela é uma boa menina. Namorou um engenheiro, de quem gos-


tava muito. Coitado, teve um câncer na garganta, foi ficando sem voz,
operou uma vez, duas e ficou com uma cara horrível. Elisa lhe deu todo
o apoio… até sua morte… (olhou para Elisa para obter sua concordân-
cia) – morreu nos braços dela. Foi sua maior paixão.

Elisa (nesse instantes ela saiu do seu estado cataléptico) – Ele não mor-
reu, mentirosa, (xingando) esconderam-no de mim, por inveja, todos
tinham inveja de mim. Devíamos ter fugido. Estão transformando tudo,
mudaram até a face dele; fizeram um buraco no seu pescoço, para que eu
não o reconhecesse e o abandonasse, pensando ser ele outra pessoa. Eu
sou a culpada por não ter tomado conta dele, eu o abandonei… por isso
ele sumiu. Estão acontecendo coisas estranhas comigo; sei quem está por
trás de tudo isso, quem comanda essa armação, conheço o culpado…
(dá uma risada sarcástica)

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Mãe – Que é isso minha filha? Você fez de tudo para ajudá-lo. Não podia
fazer mais. Ele morreu devido àquela doença ruim, feia que teve…

Elisa (ri escondendo o riso, em silêncio, virando a cara para o lado e


grita) – Mentira! Mentira(gritou novamente, depois de alguns segundos
sem nada falar) Morreu? É verdade? (chora; novo silêncio, seguido de
gargalhadas e risos estranhos). Ele está no céu, está brincando de roda
(grita e canta uma canção de criança: “esta rua, esta rua, tem um bos-
que/ que se chama, que chama, solidão/ dentro dele, dentro dele, mora
um anjo… ) – Mas ele não fala? Não pode cantar? Coitado! Quem fez
isso com ele?

Mãe (falando para Piedade, num tom de voz mais baixo) – Ele parou de
falar antes de morrer devido ao câncer. Ficou tão feio…

Elisa (chora novamente, dirigindo-se para sua mãe) – Você não é minha
mãe… minha mãe era rica, nova e bonita. Já vi o retrato dela. Eu tenho
ele, guardo-o comigo… ela usa outra roupa, é mais esbelta…

Mãe – Ela está sempre olhando o meu retrato de casamento, quando eu


tinha 20 anos. Também, eu era tão diferente… o vestido era do tempo
antigo.

Elisa – Minha mãe deixou-me uma herança para distribui-la com os po-
bres. Essa é minha missão aqui na Terra. Fui escolhida por Cristo. Esta
aí, que quer tomar tudo, é uma ladra (aponta para a mãe que chora).
Odeio vocês que me prendem, tudo por causa do dinheiro. (puxa a mão
presa à do pai tentando escapar dele, este a segura com mais firmeza).

Mãe (Virando-se para Piedade, que trouxe a água) – Ela é bem educada.
Agora ficou desse jeito. (Dá o copo d’água para Elisa, que toma um gole
e joga o resto na cara mãe)

Pai (repreendendo-a, a tomar o copo já vazio) – Merda, pare com isso.

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Tem hora que tenho vontade de meter a mão em você. Que sofrimento!
Minha paciência está se esgotando. Estou cansado dessa luta. O que está
acontecendo como você, minha filha? Seu pai gosta tanto de você…

Tira um lenço e enxuga a roupa da mãe da paciente. Piedade sai e volta


com um pano para passar na mesa que ficou respingada.

Elisa (olhando com rancor para o pai) – Você me pergunta? Cachorro!


Cachorro! Vou te responder, não vou mais esconder esse segredo. O que
acontecia com você, que me chama de filha, quando, sorrateiramente,
sem fazer barulho, entrava no meu quarto à noite? Eu tinha seis anos,
todos em casa dormiam. Ou fingiam dormir. Não é mamãe?

Pai – Pare! Já vem você com suas loucuras. Não vamos falar sobre isso. É
sempre assim, durante seus ataques…

Elisa – Você gostava de mim? Vinha, sim, passar suas mãos sujas e áspe-
ras na minha bunda, no escuro.

Mãe – Calma minha filha, quer mais água?

Elisa (sem se importar, continuando) – Era um tormento; eu ficava


horrorizada, tinha vontade de gritar, paralisada pelo medo, nada fazia.
Esperava, rezando, desesperadamente, torcendo para o dia amanhecer,
apreensiva com o que você ia fazer. Queria chorar, mas os soluços não
saiam, queria protestar, mas, suas ameaças de castigo, amordaçavam-me.

Pai (gritando, enfurecido e envergonhado do que ouvia) – Que isso,


menina; não fale bobagem; tem gente de fora aqui. (Virando-se para Pie-
dade e em voz mais baixa) – Ela está louca; isso nunca aconteceu; é tudo
imaginação dela… você compreende… ela só fala assim quando adoece.
(Olha para a mãe de Elisa que abaixa o rosto e sai de perto, indo chorar
num canto da sala; tira um lenço, passando-o nos olhos).

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Elisa (caminhando, arrastando o pai junto dela através da sala, pára
perto da mãe e esbraveja) – Mamãe sabe disso. E, não foi só comigo. Foi
com Eliete também sofreu nas suas mãos, (aponta para Piedade), com
ela também; com todas as filhas. Somente Elzinha… ela, mesmo sendo a
caçula, foi mais sabida ou mais corajosa; teve força para gritar. ( virando-
-se para sua mãe e dando um grito estridente) – Sabe ou não? Não
esconde não! Você também não presta, é uma vagabunda, safada, como
ele. Deixou que tudo acontecesse. Lavou as mãos.

Mãe – Calma, minha filha, agora não é hora de discutir esses assuntos;
estamos num consultório; depois em casa… conversaremos… com mais
calma… você está nervosa.

Elisa – Nervosa? Tem medo! Até hoje? E eu, que só tinha seis anos. Acha
que não ficava apavorada? (nesse momento Elisa interrompe seu dis-
curso, solta-se do pai – muda o semblante – sobe na cadeira de Piedade,
dali, pula por sobre a mesa – olha, de cimia, para todos, encara sua mãe
e retoma a fala) – Agora; não precisa mais ter medo! Estamos no Tribu-
nal de Justiça. Eu sou a juiz-vítima; ele, ( aponta para o pai com o dedo
em riste) o réu. É tão ou mais culpada do que ele; propiciou o abuso para
ficar se ver livre do sexo do marido, o que você mais detestava. Apoiou
o dono do mundo, o poderoso, mandava em todos, era o prefeito da
cidade.

Pai (virando-se para Piedade) – Fui prefeito sim, nisso ela está certa –
há muitos anos – nem me lembro mais dessa época. É terrível, todas as
vezes é assim, despeja esses absurdos. (Pisca o olho para Piedade)

Elisa – Eu me lembro, tudo bem guardado aqui (mostra a cabeça. Como


esquecer essas noites terríveis! Sim, carrego comigo, para sempre, essas
cicatrizes… eu tinha… somente seis anos… foi uma covardia, fazer
aquilo comigo. E quantas e quantas vezes o mesmo ritual. Durante o dia,
era o homem sério, falava, com todos, que me amava muito, que era sua
filha preferida.

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Pai (desajeitado, tornando a piscar para Piedade e fazendo um gesto com
um dos braços apontando para sua própria cabeça) – Ela está doida; não
repare não. Você já deve estar acostumada com isso… trabalha aqui há
muito tempo?

Elisa (em voz alta, com muita raiva) – Você sempre me ameaçava. Fala-
va-me que se eu contasse para os outros, você me internaria num hospí-
cio como louca. Não sabia o que era hospício. Você me explicava que é o
lugar onde são levados as pessoas esquisitas da cidade como: Titica Suja,
Chico Doido, Maria Rodela e Diarréia.

Pai – Nunca tive essa conversa com você!

Elisa – Tudo igual! Como agora, a vida inteira você afirmou que era sua
palavra, a do prefeito, contra a minha, a de uma criança boba. Quem iria
acreditar em mim? Você era o prefeito, o rico fazendeiro. Agora, quem
vai acreditar em mim? Sou a louca e você é o são. Não é assim?

Pai (usando, nesse momento, uma voz calma, lenta e bondosa) – Minha
filha, você está doente, descanse um pouco. Seu pai sempre quis te aju-
dar. Seu pai só quer o bem pra você…

Elisa (dando um grito, como descobrindo) – Eureka! Era esse, era esse
mesmo o tom de voz que usava todas as noites quando ia ao meu quarto.
Agora você me despertou; o som da noite. Você falava desse jeito; apa-
rentando bondade e calma. Essa sua voz não mais saiu dos meus ouvi-
dos… nunca mais vou esquecer essa cena horripilante.

Pai (mudando o tom de voz, falando mais rápido e forte) – Então, não
posso lhe tratar bem? Você acha ruim tudo.

Elisa – Isso é tratar bem? Falar macio para aproveitar-se de mim? Ia para
minha cama apavorada, não conseguia dormir. O ritual se repetia, de

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tempos em tempos: você, com essa mesma voz que usou agora, baixa e
calma tentava me amansar; voz safada, de conquistador, de canalha.

Pai – Sempre te tratei bem, sempre fui amoroso com você.

Elisa – Você chama isso de tratar bem? Durante o dia, aparentava bon-
dade e seriedade, falava grosso e firme, era respeitado; durante a madru-
gada, o porco sujo, despudorado. Eu não entendia esses dois homens.
Confundia-me, a mesma figura com dois tons de voz e com dois com-
portamentos. (pulando da mesa e tentando escapar pela porta de entra-
da. O pai corre em seu encalço e a segura pelos braços, puxando Elisa
para dentro da sala )

Mãe (Virando-se para Piedade, caminhando para auxiliar o pai) – Por


favor, ajude-nos.

Elisa (continuando sua fala, mesmo presa pelas mãos dos três) – Não
entendia como o prefeito, o trabalhador, o marido e o homem respeitado
por todos, o pregador de moralidade, o frequentador de igrejas, amigo
do padre e do pastor, pudesse, durante a madrugada, ir ao meu quarto,
pegar na minha bunda, fazer coisas esquisitas comigo, coisas proibidas,
que não podiam ser feitas diante dos outros. Tinha vontade de morrer
para escapar do sofrimento.

Mãe – Esqueça isso, minha filha,(soltando a filha e afastando-se um


pouco) – é doloroso para todos nós; eu talvez tenha culpa.

Elisa (gritando e espichando para agarrar sua mãe) – Tem sim! Desejava
morrer, mas não sabia como. Imaginava que só Deus tinha esse poder.
Rezava para ele, pedindo-lhe que me levasse.

Mãe – Vejo que pouco ou nada fiz para impedir o que ocorreu. Tínha-
mos os nossos problemas, por isso separei-me dele, mas, tarde demais…

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Elisa – Separou-se só depois que tudo tinha acontecido! Hoje, mais de
vinte anos depois, ainda ouço sua voz arrastada de bêbado, seus sussur-
ros melódicos, falando para mim, as mesmas palavras grosseiras que sa-
íam das bocas imundas e mal-cheirosas dos bêbados da cidade, as frases
que eles falavam para as prostitutas.

Mãe – Sente ali, descanse um pouco, (tentando levá-la até a poltrona)


compreendo seu sofrimento, mas agora já passou, felizmente… isso não
mais acontece.

Elisa – Como passou? E minha cabeça! Jamais passará! Ainda sinto o


seu hálito, cheirando à pinga, sua saliva morna caindo na minha cara,
sua mão pesada e grossa, passando por todo o meu corpo.

Piedade, cabisbaixa, envergonhada com o que escutava, sai da sala, dei-


xando a família a sós. Caminha até a sala do Dr. Otávio para apressá-lo
devido a urgência do caso.

Pai – Elisa, cale essa boca! (mais à vontade com a saída de Piedade ele
grita, largando sua postura de negociador e apertando-a, mais ainda)

Mãe – Você está machucando minha filha. ( a mãe grita irritada, quando
retorna Piedade, desajeitada, traz mais um copo d’água que é colocado
sobre a mesa).

Elisa – Ah! (grita) – Não calo! Agora, posso desabafar; é bom que tenha
ela por perto, ouvindo-me (aponta para Piedade que caminha na sala).
Meu amor, ajude-me. Preciso de você.

Pai – Pois continue; fale todas suas idiotices e loucuras… fique sabendo
que estou cheio delas. (termina a frase gritando contraindo todos os
músculos da face)

Elisa – Eu escrevo, nas páginas do meu diário, o que vai acontecer no

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mundo. Agora, tenho ganhei esse poder. Posso, basta querer, transfor-
mar vocês no que eu desejar, num sapo, numa barata ou num verme. É
isso que você é, verme imundo! Deus, ajude-me. (Pára de falar um ins-
tante, tentando sair dos braços do pai; não consegue. Sua mãe se aproxi-
ma; novo silêncio)

Mãe – Eu sou sua mãe e gosto muito de você.

Elisa – Mãe? Você nunca foi mãe! Você foi uma cafetina! Saia! Você o
detestava, tinha nojo dele; ( aponta para o pai que vira o rosto) não o
suportando, cuspiu-o (dá uma cuspida no chão) em cima de mim e de
Eliete. Queria se ver livre dele, não teve escrúpulos, ofereceu-nos para
o sacrifício. Conseguiu o que queria, através das filhas: escapar do que
mais detestava, transar com esse bêbado fedorento.

Mãe (chorando) – Não diga isso, minha filha; você me mata!

Elisa – Você, que diz ser minha mãe, preferiu ver as filhas deitarem com
esse canalha, (aponta) do que com você. Você nunca nos amou! Odiou-
-nos, isso sim!

Mãe – Essas lembranças são dolorosas, eu sei, mas já passaram. Esqueça


isso, eu te peço, estou separada dele há anos.

Elisa – As recordações passaram para você. Elas estão continuadamente


na minha cabeça. A senhora sabia… fingia que não sabia… . além disso,
nessa época, ele ainda era seu marido.

Pai – Não quero mais discutir disso. Cale sua boca, sua mãe está sofren-
do!

Elisa – Ela que sofra! Fique sabendo que na escola, após a aula de Psico-
patologia, consegui uma conversa reservada com o professor. Contei-lhe
tudo o que aconteceu comigo.

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Pai – O quê? Você falou para estranhos isso? Idiota! Ninguém tem nada
com nossa vida particular. Além disso, você estraga a vida pública de seu
pai. Sou político, hoje sou candidato a deputado. Como ficarei diante das
pessoas? Todos têm admiração por mim; respeito pela minha integri-
dade e honradez. Você é louca mesmo. Esse professor pode contar para
outros essa mentira, um fato sem importância. Você mesma vai ficar mal
perante ele. Ah, como tá tudo dando errado, as coisas vão piorando.

Elisa – Honrado? Honesto? Coisa sem importância? Sua marca ficou na


minha memória, não sai de forma alguma. Não consigo me aproximar
de nenhum homem. Tenho medo de todos eles. Sinto mal, basta encos-
tar uma ponta de dedo neles… para emergir tudo na minha consciên-
cia… me vem um impulso medonho, fujo… é uma cicatriz que nunca
desaparecerá!

Pai – Você está pensando em seu namorado, o engenheiro, mas ele esta-
va doente, deformado.

Elisa – Aconteceu com todos, com ele também… no instante do conta-


to, vejo a sua figura embaçada, sua voz, baixa e imunda. Jamais ficarei
livre da sua lavagem cerebral. Jamais abraçarei homem algum, por mais
carinhoso e bondoso que seja, sem ver nele sua imagem. Lembro sempre
do homem que disse ser meu pai.

Mãe – Vamos orar, Deus vai nos ajudar… (pegando gentilmente em seus
braços)

Elisa – Largue-me! (tirando as mãos dela, gritando com rancor) – Tire


essas patas de cima de mim! Vocês são culpados. Você, papai, é um
monstro. Incestuoso! Solta-me, sujo; tire, essas mãos detestáveis de mim,
mãos que gostaria que apodrecessem… imoral, crápula. Mata-me; assim
paro de pensar no que você me fez. Para que vocês me puseram no mun-
do? Para me usar?

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Mãe – Calma filha, escute a música, ela tranquiliza…

Elisa (parando de falar por instantes escuta o som) – A vida inteira tive
medo de ser vista como louca, caso falasse a verdade. Fingi e fingi, isso
foi o que fiz sempre!

Piedade – Ela está sofrendo muito. Vou avisar ao doutor… talvez ele
possa atendê-la mais depressa. (sai da sala, mais uma vez, assim fica livre
da cena detestável)

Elisa – Essa ferida transformou meu comportamento. Receosa de ser


percebida, em virtude do sinal que julgava trazer estampado na tes-
ta, fugi de todos. Eu.., eu mesma, me estigmatizei, imaginai ser a pior
pessoa. Passei a ter cuidados exagerados nas minhas relações com os
outros, bem como com o que ia dizer. Suspeitava de todos, supunha que
as pessoas sabiam, mas nada diziam, o que tinha acontecido comigo…
todos, na minha mente, me avaliavam negativamente, me discrimina-
vam e rejeitavam.

Piedade (entra novamente Piedade, com medo e curiosa) – O doutor vai


atendê-la daqui a instantes … felizmente.

Elisa – A palavra certa sempre foi a sua. Quem era eu? Uma criança
indefesa de seis anos, impotente, fraca, submissa. Talvez tenha enlou-
quecido, não era para menos. Forçando muito, cheguei, algumas vezes, a
imaginar que não houve nada. Como gostaria que isso fosse verdade…
teria sido melhor, muito melhor. Mas eu sei, mais do que ninguém, que
não foi mentira. É desesperador, não poder fazer nada, nada mesmo.

Pai – Pare! Basta! Eu fiz tudo que podia para ajudá-la. O que você deu
em troca? Nada. Apenas muito trabalho, muita amolação. Quando
terminou seu curso de Psicologia esperei alguma mudança, mas piorou,
ficou mais doida ainda; começou a inventar coisas como essas babosei-

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ras mentirosas e sem sentido.

Elisa – Você sempre foi duplo. Como agora, está representando para ela
sua outra face, o outro lado do político, a canalhice em pessoa.

Pai – Sempre fui um homem sério e todo mundo sabe disso. Somente
você duvida de mim. Honorina sabe que eu sempre a respeitei, assim
como as minhas filhas; sou um homem voltado para família, um verda-
deiro cristão.

Mãe – Chega! Não queria entrar nessa conversa mas não aguento mais!
Você nunca prestou, Altamiro. Você me enche com essa auto-proganda.
Vou lembrá-lo, já que esqueceu. Tivemos que mandar embora lá de casa
a cozinheira, Deusmira. Eu sei pela sua cara de cínico, que não se esque-
ceu.

Pai – Você enlouqueceu, também. Nossa senhora! O quê vim fazer aqui?

Mãe – Eu, feito boba, ajudei-o – para não piorar a situação – a procurar
uma clínica de aborto! Você transou com ela, dentro de minha casa. O
caso só veio à tona porque ela ficou grávida.

Pai – Peço-lhe, por favor, pela alma de sua mãe, para não continuar essa
dolorosa conversa.

Mãe – Não coloque minha mãe no meio. Falo o quero. Você parou de
mandar em mim, há muito. E quem era ela? Uma boba, que você con-
seguiu enganar, prometendo me largar para morar com ela na fazenda.
Aproveitou-se de uma mulher já feita, filha de Maria, frequentadora de
igreja. Ela me disse que você a forçou a ir para cama. E em qual dia?

Pai (assustado) – Ela lhe contou? Como? É uma mentirosa!

Mãe – Você a procurou quando estávamos no velório de minha mãe.

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Saiu dizendo que ia em casa dar uma descansada. Aproveitou essa hora,
quando não havia ninguém em casa, para embriagar Deusmira.

Pai – Eu nunca fui de conversar com cozinheiras. Não converso com


essa gente.

Mãe – Para fazer o que você fez não necessitava conversa. Deu-lhe um
licor para “aliviar a dor que ela sentia” pela morte. As duas eram muito
amigas. Depois, uma batida de limão e pronto. Ela me contou como
aconteceu, na nossa imaculada cama de casal, no meu quarto! Voltou ao
velório, às cinco da manhã, como se nada tivesse acontecido.

Pai – Nada! Uma mentirada. Tudo invenção dela, já lhe disse. Nunca
tive nada com Deusmira. Ajudei-a, sim, a fazer o aborto, por convicção
social. Acho que uma pessoa como ela não podia ter um filho, não tem
capacidade para isso.

Mãe – Mas tinha competência para decidir se devia ter ou não transar
com você. Prefiro até não voltar a esse assunto, que me provoca náuseas.
Você e sua família nunca prestaram. Só têm fachada, parecem pertencer
a família imperial.

Pai (altamente perturbado) – Você Honorina, só sabe reclamar, de tudo.


Nunca fez nada na vida. Poderia, ao menos, evitar falar acerca de minha
família. A sua, não é flor que se cheire, tem de tudo.

Mãe – Estou livre de você. Falo o que desejar. Jamais esquecerei nosso
namoro. Sua família, puritanos para mostrar aos outros. Você se lembra
de quando namorávamos e fiquei grávida? Naquela época, seus princí-
pios ideológicos e religiosos, opostos aos atuais, não permitiam o aborto.
Quem mandava era sua mãe que era contra relações sexuais antes do
casamento e, muito menos, ter filhos sem se casar.

Pai – Já vem você com esse detestável assunto antigo, que você já repetiu

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mil vezes. Chega!

Mãe – Não chega não! Nossa filha não sabe…

Pai – Mas não é hora de falar com nossa filha sobre isso! Idiota!

Mãe – Estou com raiva, isso me dá força. Preciso desabafar. Não podía-
mos ter o filho sem casarmos, mas ele foi gerado, Deus sabe como. As-
sim, tivemos que esconder a gravidez até casarmos às pressas. Sua mãe, a
terrível moralista, que nunca fez nada errado na vida. Não é? Exceto ter
por amante o padre da cidade, como todos diziam.

Pai – Não ponha minha mãe nessa calúnia. Não admito; ela já morreu e
não pode mais se defender.

Mãe – Oh, uma santa… coitada… .Tivemos que nos casar rápido, com
dois meses de gravidez. Usei uma cinta para apertar a barriga para dar
a impressão que não estava grávida e continuei a usá-la para ela pensar
que a gravidez tinha menos tempo. Como sempre, segui sua família.
Sinto mal em pensar como agradei aquela desgraçada.

Pai – Vamos parar. Não use essa palavra contra minha mãe. Estamos
num consultório, Elisa não está bem. Pense um pouco, pelo menos
agora, uma vez na vida. Esta conversa deveria ficar para outro momento.
Por favor…

Mãe – Agora você está mais manso; talvez, mais velho e fraco, em todos
os sentidos; não é mais homem.

Pai – Pare! (grita, apertando o tórax, ao sentir uma pontada e apertando


a mão contra o peito)

Mãe – Eu já te obedeci bem como fiz com sua mãe. Hoje, não; já nos
separamos há muito; não mais tenho medo de seus fingimentos. Infeliz-

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mente, devido aos problemas de Elisa, estamos aqui juntos novamente.
Mas rezo para não te ver, para ficar longe de você. Falo o que quiser e
cale a boca, você, seu cafajeste, vestido de homem. Gravata e profissão
não bastam para transformar um porco num homem.

Pai – Desabafe! Você sempre precisou desabafar. Grite! Grite bem alto!
(contrai o rosto de dor, aperta o tórax) – O que mais fez na vida? Gritar,
para que todos possam ouvir … desabafe, é o que sabe fazer. Durante
toda a vida, você reclamou de tudo e de todos. Não fez, e não faz nada,
reclama; faça o que você aprendeu. Sempre manipulou as pessoas, xin-
gando e criticando. A culpa é sempre dos outros. Você nunca errou, é
uma santa.

Mãe – É melhor não fazer nada do que fazer o que você fez. Não desvie
meu pensamento… hoje, contarei essa história que me engasga, até o
fim. Fomos obrigados a fingir para sua mãe que íamos ter a filha nove
meses depois do casamento. Entretanto, apesar das rezas, Deus não
ajudou e a nossa filha nasceu sete meses após o casamento, com os nove
meses usuais.

Pai – Eu não tive culpa; você concordou com tudo o que ocorreu.

Mãe – Era uma boba. Lembra-se da palhaçada e da tragédia arranjada


pelo seu irmão padre? Que Deus o guarde; pagou seus pecados, morren-
do de AIDS.

Pai – Continua, idiota; fale; conte tudo; invente o que quiser. Chame o
médico para aumentar a platéia. Você gosta disso! (nova pontada no
peito)

Mãe – Não me interrompa. Tivemos que ir para o hospital e lá, nos-


sa primeira filha nasceu. O que devia ser uma alegria e comemoração
tornou-se um pesadelo. O pior de minha vida.

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Pai – Meu irmão opinou porque nós pedimos seu conselho. Sei que ele
também sofreu com a decisão.

Mãe – Foi um irresponsável. Sua preocupação única foi a de esconder a


relação que tivemos antes do casamento, não ferir os desejos e princípios
infantis de sua mãe.

Elisa – Mãe, não estou entendendo, a senhora teve uma outra filha?

Mãe – Espere, vou contar tudo. Não sabíamos como levar para casa nos-
sa filha, nascida com “sete” meses e apresentando todas as características
de uma menina normal com nove meses… pesou dois quilos e oitocen-
tos gramas. Que pecado mortal!

Pai – Fomos educados assim, era difícil ir contra as idéias dela. Ela do-
minava a todos; isso eu concordo.

Mãe – Seu irmão não admitia esse sofrimento de sua amada mãe e teve a
belíssima idéia de doá-la.

Pai – Não quero lembrar-me disso; sei que foi um erro meu, ter concor-
dado com ele. Eu sofro com isso.

Mãe – Sofre nada. Se sofresse, teria evitado que a perdêssemos.

Elisa – A senhora deixou, mamãe? Também não presta!

Mãe – Era preferível ela ter nascido morta. O santo da família nos for-
çou a entregá-la para uma família desconhecida. Era muito penoso para
sua avó saber que não me casei virgem e que ao me casar estava grávida
de dois meses. Arrumou um casal, sem que nós tivéssemos notícias de
quem era, e fez a doação de nossa filha com nossa assinatura.

Elisa – E onde ela está agora? Mora aqui? Vocês tem notícias? Está viva?

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Mãe – Nunca mais descobrimos seu paradeiro. Seu tio disse que ele
também não sabia com quem ela ia ficar… que quem resolveu tudo foi o
obstetra, através de uma instituição. Disse-nos, quando arrependemos,
que ninguém fica sabendo quem são os pais adotivos.

Elisa – Mãe! (abraçando-a e chorando nos seus ombros) Isso é terrível;


quer dizer que temos uma outra irmã, que não sabemos onde está, como
vive e nem como se chama? Como a senhora deixou? A filha era sua!
Miserável! (afastando-se, abruptamente da mãe, Elisa dá-lhe um tapa na
rosto, o pai a segura quando ela começa tenta enforcá-la, a mãe cai no
assoalho desajeitadamente e o pai contrai-se de dor)

Mãe (levantando-se com ajuda de Piedade e afastando-se da filha. O pai


segura Elisa) – A família dele mandava em mim como sempre mandou,
até hoje. Mesmo depois de separada ainda todos dão palpites no que
devo fazer. Voltei para casa, chorando, inventando que tivera um aborto
e que a menina nasceu morta fora do tempo.

Pai – Você precisa de dramas para viver e esse foi bem recebido. Seu
sofrimento é superficial, muito mais para mostrar do que internamente.
Nunca percebi um sofrimento autêntico em você, sua missão neste mun-
do é colocar a culpa nos outros.

Mãe – Assim, fiquei por vários meses. Nunca sofri tanto. Emagreci dez
quilos. Morávamos com a mãe dele. Ela, parece até que gostou, para ficar
junto do filho querido e não ter outros concorrentes.

Pai – Ela gostava muito de você; não pode negar. Ela lhe ajudava a viver,
coisa que jamais aprendeu. Você sempre falou em abrir uma casa co-
mercial e voltar a estudar – aprender inglês ou qualquer outro modismo.
Nunca fez uma coisa ou outra, nunca saiu do lugar; não passava da ma-
trícula. Jamais completou nada. É um fracasso. Se não fosse os fatos que
deram errados não tinha onde se apoiar para explicar sua incompetência

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e parasitismo. Sempre precisou de fatos ruins e negativos para viver, para
justificar e explicar sua incapacidade; por isso você os procura.

Mãe (Chorando) – Você está me ofendendo. Sempre tive dificuldades


na vida. Meus pais não me educaram adequadamente; casei nova e sem
experiência. Obedeci sempre, primeiros meus pais, depois, sua mãe, em
tudo. Até as iguarias, as empregadas e os nomes dos filhos foi ela quem
determinou. Ela só não decidiu sua morte; sofreu com sua diabetes. Teve
que amputar uma perna; mais tarde, a outra; ficou cega e depois, para
felicidade dela, esclerosada e passou a não perceber mais nada. Urinava
e defecava nas roupas. Sabe quem cuidava dela? Eu; ainda tive dó dessa
mulher que nos obrigou a doar nossa filha!

Pai – Obrigou? Que poder ela possuía? Continua culpando. É fácil


acusar os outros e escapar da própria participação na história. Nunca
você foi responsável por nada. Deixou as soluções dos problemas para
os outros; depois do fato consumado, culpa-os e torna-se a vítima. Foi
sempre assim, seu padrão “ninguém foge ao seu destino”; “quem nasceu
para dez reis não chegará a tostão”.

A família, tendo Elisa no centro, rodeada de um lado por seu pai, que
geme de dor e, de outro, por sua mãe que choraminga, entra no consul-
tório. Há um silêncio profundo que permanece até eles desaparecerem
na sala do psiquiatra. Piedade acompanha o grupo, fechando a porta
com delicadeza. Suspira fundo e liberta seus pensamentos. Uma vez não
mais presos à prisão das conversas, eles, desimpedidos, começam a flu-
tuar pelo espaço, para o infinito claro. Enquanto isso Piedade vai de um
lado a outro na sala de espera, agora sem ninguém, fingindo limpá-la,
preparando-a para o dia seguinte. Vagueando, canta, baixinho, a canção
triste, como aquele fim de tarde, ouvida e decorada das procissões sim-
ples de sua querida Córrego das Lages:

“Com minha mãe estarei,

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Na Santa Glória um dia

Junto a Virgem Maria.

No céu triunfarei

No céu, no céu,

Com minha mãe estarei… ”

FIM

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