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CENAS DE UM CONSULTÓRIO PSIQUIÁTRICO
Publicações do Autor
Transtornos Mentais
Testes Psicológicos
Medicamentos
Galeria de Pinturas de Pacientes
Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga
No centro da sala, mal iluminada por quatro lâmpadas fracas, vê-se uma mesa, jornais
e revistas espalhados e um pote azulado cheio de balas coloridas. Num dos cantos, uma
mesinha simples com uma cadeira de madeira onde se assenta a atendente.
Nair (falando rápido, saindo de um lugar e indo para outro para ficar
mais perto de Piedade) – Ontem, para variar, ele bebeu feito um gam-
bá… chegou em casa, nem quis comer… desmaiou na cama. Sempre faz
isso. Bebe até no trabalho.
Piedade – Tinha um tio que bebia… bem… meu pai também… (conti-
nuando sua inspeção nas plantas)
Nair (sem ouvir e desejosa de fazer mais revelações, sabendo que iria
provocar a curiosidade da atendente) – Comecei a “fazer vida” cedo, lá
em Montes Claros. Foi depois de uma surra que levei de minha mãe…
resolvi fugir de casa… tinha doze anos, hoje tenho quarenta. Logo, arru-
mei um namorado… um safado, que me aconselhou a ganhar dinheiro
na zona. Ele ficava com tudo que eu recebia.
Nair – Ah! Você também não aguentou sua família. Então nunca fez
vida?
Piedade – Não sabia onde desejava chegar… queria era sair de lá…
acabei vindo parar aqui. Tive sorte; encontrei uma moça que também
pegou carona – não tava fugindo não – foi ela quem arrumou meu pri-
meiro emprego em BH.
Nair – Foi o Castro que me forçou a largar aquela vida. Andei com todo
tipo de gente: homens bêbados, aleijados, brancos e negros, meninos
e velhos-caducos; até com mulheres eu transei; tudo quanto foi gente.
Desde que ganhasse alguns trocados, eu ia para cama… (imitando um
e outro enquanto ia enumerando-os; fazendo gestos com as mãos como
se tivesse recebendo níqueis e, ao falar “até com mulheres”, olhando por
todo o corpo de Piedade, assustando-a)
Nair – Lê? Não sei não. Nunca li; fui à escola por uns poucos anos e
parei. (demonstrando um certo orgulho por não saber ler). Acho que
esqueci tudo que me ensinaram. Vivo bem sem a leitura. Para que ela
serve? Será que os remédios que estou tomando fazem mal para a me-
Nair – Não é tão ruim assim não, boba; (num tom de voz maternal,
como dando um conselho) a gente aprende muita coisa, fica mais sabida.
Nair – Ah, Ah… não é bem assim; (chega bem perto do ouvido de
Piedade, como se fosse um segredo, sussurra) – A gente gasta tudo o que
ganha… sem pensar no dia de amanhã. Quando ganhava um dinheiro,
torrava ele em seguida, com qualquer coisa: bebida, carteado, roupas,
presentes; quando não era tomado antes pelo gigolô. No outro dia, pas-
sava fome, usava droga ou pinga vagabunda para aguentar. (sai de perto
e caminha para onde estava, balança o corpo imitando um drogado)
Nair – Não uso mais. Não é bem como você pensa. Lá no prédio onde
moro, vários filhinhos do papai usam drogas… eles falam que são estu-
dantes… (pausa longa; imita um livro aberto sobre as mãos e conclui).
– Hoje em dia todo mundo bebe, jovens e velhos.
Piedade – Eu, não. Ouvi dizer que fumar maconha é divertido, que a
Nair (sorrindo) – Olha que bonitão. Esse aqui (mostrando). Com ele, eu
largaria o Castro. Também, não preciso sonhar… ele não ia me querer…
Nair – Por que não? O quero mais? Castro não é mau não, devo muita
obrigação a ele pelo que ele me fez e faz. Mas sei lá… poder abraçar um
homem assim… (quase abraça Piedade que afasta-se assustada)
Piedade – Que esquisito, você falou que não gosta de homem; agora
afirma que largaria o marido por um bonitão… Não é melhor continuar
com ele?
Nair – Isso é idéia da Igreja: “até que a morte nos separe”. (faz um “nome
do padre”, beija suas próprias mãos) – Não mais existe isso, na zona… e,
também, no prédio onde moro, é uma bagunça total. (balança as pontas
dos dedos uns contra os outros). Na zona, às vezes, a polícia dava batida
lá; eu, “de menor”, escondia-me. Mas, eles me pegaram várias vezes.
Nair – Sim; depois de pouco tempo era solta; sempre depois de me “co-
merem” (bate a mão direita aberta sobre a esquerda fechada) e roubarem
Nair – Você é boba mesmo. Não conhece nada!. Precisa sair mais para
saber o que existe do outro lado do mundo. É tudo esculhambação; cada
um por si.
Nair – Só um soldado não quis nada comigo. Era até bonzinho… para
um policial, é claro. Mas sua fama era de ser “bicha”. Aqui vem “bicha”?
Não gosto de “bicha” não.
Nair – Esse da zona eu me lembro dele até hoje. Era magro e alto, cintu-
ra fina, tinha uns “mamás” enormes, maiores do que os meus. (enquanto
fala, gesticula, andando pela sala, espicha o corpo, aperta a cintura e,
com as mãos, aumenta os volume dos seios). Dizem que encheu seu
peito de silicone. Seu nariz era bem feito, seus lábios grossos e sensuais,
muito vermelhos… uns cabelos castanhos, anelados, de dar inveja (con-
tinua “explicando” com as mãos, o que descreve). O homem era bonito
mesmo, mais bonito do que muitas de nós.
Piedade – Deus me livre! Homem fazendo vida. Que horror! Quê histó-
ria mais esquisita. Não sabia que existiam essas coisas quando morava
no interior. Lá era namoros, noivados, casamentos, família, filhos. (sua
voz é nostálgica, cheia de saudade)
Nair – Eu ainda não contei nada. Você ainda não tem idade de escutar.
Piedade – Minhas idéias estão ficando confusas, fico sem saber o que
é o certo. Vejo agora que existem vários tipos de vida diferentes da que
aprendi em Córrego da Lage…
Piedade – Sim, espere um pouco, por favor. Não vai demorar. (olhando
de soslaio para Nair)
Nair – Ainda bem. Assim você não vai me atrasar. Acho que já te vi
(examinando-o de cima a baixo). Foi bom você estar aqui; sempre tive
uma curiosidade. Você toma os remédios que vende?
Nair – Isso mesmo que você ouviu. Puta da zona de Montes Claros.
Nair – Errado! Já contei muitas vezes o que já fiz. Todos ficam curiosos
para ouvir. Todos escutam sem dar um pio. Minha fala, na igreja, dá
“Ibope”. Até parece que eles nunca treparam. (Nair levanta-se; fala alto,
gesticula e faz gestos imitando sua fala)
Nair – Claro, eles são os que mais gostam. Pedem para repetir as partes
mais emocionantes. Você entende, né? As bem íntimas, as cabeludas.
Sabe? Eles ficam excitados. (abre bem os olhos, fingindo-se de espanta-
da).
Nair – Quando noto que eles estão muitos animados com minha his-
tória, invento outras, mais picantes ainda, umas que ouvi e que jamais
existiram. Ficam entusiasmados. Outras vezes, para apagar o fogo deles,
ou da platéia, conto um fato triste, no meio dos cabeludos… todo mun-
do chora, até os pastores… eles são uns bobos. Me divirto muito lá.
Nair – Que nada! Você só entende dessas porcarias que vende. (aponta
para a pasta). Alguns entusiasmados, perguntam-me detalhes; querem
saber tudo: que homem mais me excitou, o mais estranho deles, quanto
tempo durava, quanto recebia por cada serviço.
Nair – Você está querendo saber… é só ir à igreja. Mas vou falar: não
sentia nada! (agitada com as lembranças, falando rápido) – Além do
mais, lá tudo valia; não achava nada estranho; lá na zona era tudo nor-
mal.
Nair (admirada) – Não entendi bem o que disse, mas você tem razão.
São nada mais nada menos do que gigolôs engravatados e educados.
Ganham a vida, como muitos, com o sofrimento alheio, exploram a
desgraça.
Nair – Arrumou um emprego, tem comida e não tem filhos. Se todos vi-
vessem bem, todos eles estariam desempregados. Vivem da desgraça dos
outros. Como você; (virando-se para o propagandista) – vende muitos
medicamentos quanto mais doentes existirem. Se todos fossem sãos…
você morreria de fome.
Nair – Ficou envergonhado, uai. Por quê? Vai ver que você não é muito
fanático por mulheres…
Nair (no mesmo tom anterior, sem ligar para as críticas) – Ser puta,
andar com vagabundos e doidos, é mais difícil do que vender remédios,
todo bonitinho como você, num consultório com ar refrigerado. No
quarto sujo, não tinha nada disso. Era um velho estrado com um col-
chão manchado de tudo que é imundice.
Propagandista – Insiste ainda em falar dessa vida podre que você teve?
Nair – Podre? E a sua? Será que sua vida é melhor do que a que tive?
Pelo menos, eu já larguei a minha antiga. E você, até quando vai conti-
nuar nessa merda de vida?
Nair – É muito pouco. Talvez, tenha aprendido mais nos meus sete anos
de profissão do que você nos seus trinta e quatro anos. O meu curso é
superior; o seu, primário.
Nair – Não sei se foi pior do que a sua. Sofri muito. Quem não sofre? (dá
uma pausa, olha-o, falando com uma certa dose de sofrimento; o tom
alto e rápido, diminui para baixo e lento) – Certo? Suportei tudo e estou
viva ainda. O curso que nos faz aprender muito é sempre difícil e peno-
so. Tenho recordações que nunca mais saíram de minha cabeça.
Nair – Não sei! Como não sei se a sua vida é melhor do que a das putas.
Se bem que na sua idade, se você fosse uma delas, não teria nenhum
freguês. Ainda mais com essa cara feia e esses óculos fora de moda.
Propagandista – Era só o que faltava: vir aqui hoje. Maldito dia. (pen-
sando que já está na hora de largar tudo aquilo; levantando-se e cami-
nhando até a porta decidido a ir embora).
Nair – Ah! Ela precisa aprender. Esse dentista grã-fino ainda me pedia
uma calcinha, limpa – eu arrumava uma nova, ainda não usada – para
ele vestir durante a transa. Ele levava uma lata de creme de leite para que
eu lambuzasse seu corpo. Sujava tudo. Uma porcaria! Também, como ele
era rico, eu cobrava mais.
Nair – Vocês, como todos os santos do pau oco, são parecidos. Gostam
de ouvir as histórias escabrosas e fingem estar horrorizados. Tudo de
mentira. Todos são iguais, todas as profissões são semelhantes.
Nair – Azar? Sorte, não? Você hoje terá assunto para conversar em casa
com sua mulher. A maioria dos casais não tem o que conversar.
Nair – Amigos! Precisam sair aos pares, todos juntos, para arrumarem
assuntos, tão amolados que ficam com vocês próprios. E que assuntos!
Os de sempre: queixas e queixas.
Nair – Não! Porque não têm nada melhor para fazer e tem sexo nelas.
Todas giram em torno de historietas inventadas como as que conto na
igreja. Só que relacionadas com putaria doméstica, as que ocorrem entre
as famílias.
Nair – É… mas se não fosse eu, com minhas histórias, não sairia nada
que preste. Com meus casos, ajudo as pessoas, de uma forma ou de ou-
tra. Cada um deve fazer sua parte. Não é assim que é ensinado?
Nair – Eu sempre confundo o nome dele com “otário”. Mas ele não
é bobo, não. Ele sabe cobrar e como! É gente fina. Eu entro e só saio
quando a campainha toca. Ele tem que me mandar embora, senão fico
falando sem parar.
Nair – O velho ficou com raiva. Também não quero nada com ele.
Jaime (satisfeito por ter que esperar) – Estou sem pressa… cheguei
cedo… bem, nem tanto… (olhando o relógio) – Piedade, você está cada
vez mais bonita (torna a olhar para o seu bum-bum). Já arrumou um
namorado?
Jaime – Nada! Para você basta querer, o que não falta é homem (levan-
ta a voz). Tem até de mais. É uma bela música. (aos poucos vai ficando
mais tranquilo; tenta mais uma aproximação com Piedade; esta, evita
olhá-lo). – Gosto de vir aqui. Estou em boa companhia. ( nova investida
sem resposta). É um lugar bom para trabalhar… Dr. Otávio parece ser
um bom patrão (insinuando a possibilidade algo entre os ela e o doutor).
Você gosta muito dele, não é?
Piedade (amolada com as palavras) – Sim, é um bom lugar; ah… não sei
bem se é bom.
Piedade – Sim, sou. Meu pai bebia… bebe muito. Tenho horror ao álco-
ol. Sofri muito e ainda sofro com o que assisti, brigas, gritarias, interna-
ções…
Jaime – Nunca caí nas ruas; o máximo que faço é conversar demais ou
cantar, quando bebo, sou boêmio, desde rapaz. Fico alegre depois de uns
tragos, me torno galanteador,… acho que tenho que conquistar todas as
mulheres que encontro.
Jaime – Não, nada. Estou é num beco sem saída. Venho aqui há muito
tempo; você conhece alguns de meus problemas; eles são muitos… tem
um pior do que os outros.
Jaime – É… tem razão. A gente pensa que os nossos são piores. Sou
casado há mais de vinte anos. Você conhece Clara, ela veio aqui comigo
algumas vezes… sempre acompanhada de uma amiga.
Jaime – Exato; quase todas as amigas de Clara são assim. Ela sai para
dançar quase todas as noites. Outro dia resolvi ir ver onde era.
Jaime – Pode falar; não me importo com mais nada. Cheguei lá; uma
espelunca, perto do mercado… subi por uma escada suja e estreita, tinha
até mau cheiro. No alto tem um salão e, aí o espanto… só vi mulheres
nas mesas. Umas dançando com as outras.
Jaime – Não sei. Talvez fosse menos ruim; seria mais esperado. Quando
ela me viu ficou trêmula. Lá tinha homem também, mas para servir às
mesas, o porteiro… Entende? Fiquei pouco tempo e retornei à minha
casa sem ela. Não dormi naquela noite.
Jaime – Ela só chegou às três horas. Estava acordado. Entrou sem fazer
barulho mas notei que foi direto ao banheiro. Lá, guardou alguma coisa
na gaveta. De manhã fui ver o que era… convites diversos para bailes…
Jaime – Já desconfiava… mas ela é boa mãe… os filhos gostam dela; ela
gasta muito…
Jaime – Eu noto que, de certo modo, estou preso às amigas de Clara; fico
dependendo da vontade de quem não conheço e pior, não gosto.
Piedade – Exato! Perdi meu antigo rumo, meu ponto de apoio; não con-
segui arrumar outro. A casa está em ruínas, para piorar, não tenho uma
planta para me orientar; não sei se ergo, nos fundos, a parede do quarto
de dormir ou a privada. Enfim, não sei como agir diante de situações
que antes eram fáceis de decidir.
Piedade – Não brinque com isso. Estou falando sério. Para me aliviar
e fugir desse desespero passei a agir como uma cliente que aqui vem;
aprisionei-me, passei a prestar atenção, às pequenas coisas, assim esque-
ço as grandes.
Jaime – Nós todos fazemos isso. Para que servem as diversões? Para
fugirmos dos aborrecimentos, da realidade insuportável.
Piedade – Nada, nada mesmo! É verdade. Não sei bem se quando alu-
guei o quarto a figura já existia. Só, há alguns meses, recebi essa reve-
lação. Sinto uma coisa por dentro… incrível; acho que ela nasceu para
mim… ora se parece com uma pomba ou cruz, ora com um homem de
barba e de olhar terno, cativante.
Jaime – Desculpe-me; não sabia que tinha tanta paixão ou adoração por
um suj… Como vou chamá-lo?
Piedade – O nome não importa. Diante dela meu coração bate mais
forte, minha respiração acelera. Ao olhar para cima e vê-la, sinto uma
felicidade indescritível.
Jaime – Eu, nos fins de semana, passo o dia com minha mulher, ou
melhor, passava. Quase sempre, como pouco temos em comum, ela fica
louca para se ver livre de mim.
Piedade – Eu, não; o vulto é o amigo que tenho. Morro de medo de ele
sumir um dia, ir embora, não mais me querer.
Jaime – Sempre tem o dedo de Deus no meio de tudo isso. Um coisa que
não compreendemos.
Piedade – Sem sua presença iria me destruir, acharia tudo normal, seria
atraída por qualquer coisa; transar com o primeiro que aparecer, ir para
cama com uma mulher, fazer até o que dá nojo; nada seria proibido…
Jaime – Cada um tenta escapar dos azares à sua maneira; cada um tem-
pera sua comida do seu jeito…
Jaime – Que horror! É… todos sabiam o que tinha que fazer e como
deveriam pensar…
Jaime – Quer sair daqui? Vou tentar arrumar um lugar para você. Sabe
datilografia? (Entusiasmado com a oportunidade da aproximação)
Piedade – Não é bem isso. Não sei mais se quero sair daqui; tomei um
amor – um ódio também – não devia ter falado assim – por tudo que
aprendi nessa cidade. A gente fica mais sabida, mais bem informada.
Será? Não sei mais quem eu sou. Está vendo?
Jaime – Sim, já pensei, muitas vezes. Por que não? Minha mulher tran-
sando com outras. É terrível, engolir o que mais tinha vontade de vomi-
tar. Morrendo, fico livre de tudo.
Jaime – Mas não sofro, pois não tenho consciência de que perdi.
Jaime – O quê?
Heloísa – Em 1911; você se lembra muito bem; você é mais velho do que
eu.
Jaime – 1917? Ah, ah! que dizer que a senhora se casou antes de nascer.
Jaime – A senhora não sabe o que diz. Está trocando as datas. Não pode
ser tão velha para ter se casado em 1911 e, perdoa-me, minha cara ami-
ga, eu não sou seu parente. Já lhe disse!
Heloísa – Tem vergonha de ser meu parente? Não está tão novo assim…
cheio de olheiras, a pele do rosto caindo, a maioria dos cabelos brancos.
Está um trapo. Como vai Teresa?
Jaime – Continuo com a mesma esposa; com Clara; vivemos muito bem.
Heloísa – Sempre tive dó dela por ter se casado com você… tudo por
Jaime – Não a conheço, não sou seu tio, nunca fui à sua casa, minha filha
mora comigo. Está tudo errado! Entendeu agora!
Heloísa – Ora essa! Esta é Ofélia, ela trabalha na minha casa, é minha
ajudante… agora lembrei-me, o nome do médico é Dr. Zeferino. Por
sinal, um ótimo médico de coração.
Heloísa – Ele trata da minha pressão há tempos… ela está alta. Também,
com essa vida… atualmente todos os velhos, como nós, têm pressão alta,
Heloísa – Era forte ainda; bem mais novo do que você… faz dez anos,
não, vinte. Não sei bem as datas; minha cabeça anda tão ruim! Também,
o que importam as datas nessa nossa idade?
Jaime – Agora é que importam; para os mais velhos, o tempo passa mais
rápido.
Heloísa – Em minha casa cabe nós dois: eu e você, Ofélia é uma boa
ajudante. (aponta novamente para Piedade)
Heloísa – Não faz mal. Eles podem vir também. A casa é grande, tem
lugar para todos.
Jaime (nervoso, sem saber o que falar) – É … tenho minha casa, não
preciso de ajuda de ninguém, que chatura…
Heloísa – Não fique zangado. Posso ajudá-lo, ainda mais sendo parente.
Meu filho mais velho, Eduardo, tem muito dinheiro, pôs até um moto-
rista para mim.
Heloísa – Claro que tenho… escute aqui, (chegando, outra vez, bem
perto do ouvido de Jaime), não servem para nada. Eduardo, com essa
gentileza, fugiu das obrigações…
Jaime – Machucou-se?
Heloísa – Era um fim de semana, dia da folga dela, (aponta para Pieda-
de); ela também não ajuda nada. Agora, até do banho tenho medo. Foi
tão difícil!
Heloísa – Eu, nua, caída com uma terrível dor aqui (aponta para as ná-
degas), pensei que tivesse quebrado; fui arrastando até o telefone e pedi
a Marilda que viesse me acudir.
Jaime – Não vai me dizer que a senhora deixa a porta da casa aberta?
Heloísa – Dou razão a eles. Quem gosta de velho? Aposto que acontece o
mesmo com você que é mais velho do que eu!
Jaime – A senhora está forte e tem muito que fazer nesse mundo.
Heloísa – Acho que já vivi o que tinha direito; daqui para frente, qual-
quer dia a mais, tudo é lucro.
Jaime – Eu espero viver muitos anos; junto à minha mulher, ver meus
filhos casando, viajando, carregar os netos…
Heloísa – Ora… nessa idade, nem viajar a gente aguenta. Sou um trapo
que nada mais faz do que dormir, acordando várias vezes à noite; comer,
sem ter a mínima vontade e sem sentir o sabor dos alimentos; enxergar
mal e somente as desgraças da vida; ouvir, alguns poucos sons, geral-
mente xingamentos das pessoas. Ainda bem que escuto mal e vejo tudo
embaçado.
Heloísa – Fora de casa, até na igreja, somos tratados como bichos estra-
nhas, seres que só atrapalham a ordem dos jovens apressados. Eles em-
purram a gente, fecham a cara para mostrar que estamos importunando
a rotina.
Heloísa – Ora, você que é velho me compreende, sabe de que estou fa-
lando. Ninguém gosta de velhos…
Heloísa – Nas visitas, que sempre são rápidas, um fim de tarde de do-
mingo, por exemplo, percebo, na fisionomia deles, a pressa para ficar
livre daquela situação.
Heloísa – Eles querem voltar rápido à vida normal, a deles, longe dos
velhos. Quem gosta de cuidar de velho?
Heloísa – Não é difícil para mim ler, nas expressões dos filhos, a pressa
Jaime – Concordo em parte, existem certas visitas que são como a se-
nhora descreveu, mas outras…
Velha – Apenas, nos instantes finais da visita, somos tratamos com ca-
rinho, somos vistos como amigos e, não, como fonte de sofrimento. Os
bons momentos, os finais, duram pouco.
Velha – Não tenho visto isso na nossa família… .você faz parte dela. É
cada um para si.
Velha – Ah! Até logo, tio, gostei muito desse encontro. A conversa me
aliviou, tem muito tempo que não desabafo como hoje.
Velha – É sua mulher que está consultando? Eu gosto muito desse gi-
necologista, consulto com ele desde minha menarca e foi ele quem fez
meus partos. Quando ela sair, dê minhas lembranças.
Jaime (sem saber o quê falar) – Não, ela não está aqui.
Velha – Fico esperando vocês dois para jantar. Farei o que você mais
gostava de comer lá na fazenda quando meu pai era vivo: frango ao
molho pardo com quiabo. Vamos lembrar nossa infância. Eu me lembro
bem; você era um rapaz muito peralta, mas, também, muito formoso.
Até logo.
Pai – A consulta não é para mim! É para ela! Elisa Marcolina Peixoto. Eu
sou o pai dela, esta é a mãe.
Pai (irritado e em voz alta) – Então, teremos que esperar? Ela, como
você vê, não está bem. Chegou a fugir de casa e foi um custo para encon-
trá-la. Dormiu junto à pedintes; esses vagabundos, sujos, que vivem
bêbados, deitados pelas ruas. Ela pregava para eles, dizendo ser Nossa
Senhora da Consolação, e que iria salvá-los.
Pai (bravo, ríspido) – Cale a boca; pare de falar bobagens… ela é uma
moça; não vê que estamos num consultório?
Elisa – Não fique triste meu bem. Tenho poderes, poderes que eles não
possuem, carrego, em minhas mãos, a força das orações… Deus encar-
nou em mim; fui escolhida, somente eu. Mudarei seu sexo novamente,
você voltará a ser um homem, o mais belo dos homens, tudo para me
amar. Construiremos nossa vida juntos, bem longe deste aí, (aponta para
o pai) desses malditos demônios que nos perseguem. Eu sempre te amei.
Vamos embora daqui comigo. Venha, venha meu amor, para bem longe
dos inimigos. Eu te salvarei.
(Todos ainda estão em pé, Elisa, nesse instante, tenta se soltar das mãos
do seu pai e pegar o braço de Piedade, que se afasta com medo da pa-
ciente. Elisa, depois de algum esforço, escapa, por instantes; o pai corre
para agarrá-la; ela tenta nova aproximação com Piedade, vira-se, de
repente e caminha para o lado da porta do Dr. Otávio. Parece assustada
com o lugar desconhecido; seus olhos inexpressivos estão longe, no infi-
nito. Seu pai irritado, com a ajuda da mulher que o acompanha, segura-
-a com mais firmeza, repreendendo-a e caminha até à mesinha onde
Piedade se escondeu ao fugir. A conversa prossegue:
Mãe – Quer, Elisa? ( ela não responde; começa a rir, ri muito, alto,
fazendo gestos com as mãos levantadas. Os movimentos ora são lentos
ora bruscos. Repentinamente, começa a chorar e a lamentar-se. Depois
canta uma canção religiosa: “com minha mãe estarei, na santa gloria um
Pai – Ela sofre muito, quase não tem dormido; emagreceu demais. Ás
vezes fala sem parar, ás vezes, nada fala.
Elisa (nesse instantes ela saiu do seu estado cataléptico) – Ele não mor-
reu, mentirosa, (xingando) esconderam-no de mim, por inveja, todos
tinham inveja de mim. Devíamos ter fugido. Estão transformando tudo,
mudaram até a face dele; fizeram um buraco no seu pescoço, para que eu
não o reconhecesse e o abandonasse, pensando ser ele outra pessoa. Eu
sou a culpada por não ter tomado conta dele, eu o abandonei… por isso
ele sumiu. Estão acontecendo coisas estranhas comigo; sei quem está por
trás de tudo isso, quem comanda essa armação, conheço o culpado…
(dá uma risada sarcástica)
Mãe (falando para Piedade, num tom de voz mais baixo) – Ele parou de
falar antes de morrer devido ao câncer. Ficou tão feio…
Elisa (chora novamente, dirigindo-se para sua mãe) – Você não é minha
mãe… minha mãe era rica, nova e bonita. Já vi o retrato dela. Eu tenho
ele, guardo-o comigo… ela usa outra roupa, é mais esbelta…
Elisa – Minha mãe deixou-me uma herança para distribui-la com os po-
bres. Essa é minha missão aqui na Terra. Fui escolhida por Cristo. Esta
aí, que quer tomar tudo, é uma ladra (aponta para a mãe que chora).
Odeio vocês que me prendem, tudo por causa do dinheiro. (puxa a mão
presa à do pai tentando escapar dele, este a segura com mais firmeza).
Mãe (Virando-se para Piedade, que trouxe a água) – Ela é bem educada.
Agora ficou desse jeito. (Dá o copo d’água para Elisa, que toma um gole
e joga o resto na cara mãe)
Pai – Pare! Já vem você com suas loucuras. Não vamos falar sobre isso. É
sempre assim, durante seus ataques…
Elisa – Você gostava de mim? Vinha, sim, passar suas mãos sujas e áspe-
ras na minha bunda, no escuro.
Mãe – Calma, minha filha, agora não é hora de discutir esses assuntos;
estamos num consultório; depois em casa… conversaremos… com mais
calma… você está nervosa.
Elisa – Nervosa? Tem medo! Até hoje? E eu, que só tinha seis anos. Acha
que não ficava apavorada? (nesse momento Elisa interrompe seu dis-
curso, solta-se do pai – muda o semblante – sobe na cadeira de Piedade,
dali, pula por sobre a mesa – olha, de cimia, para todos, encara sua mãe
e retoma a fala) – Agora; não precisa mais ter medo! Estamos no Tribu-
nal de Justiça. Eu sou a juiz-vítima; ele, ( aponta para o pai com o dedo
em riste) o réu. É tão ou mais culpada do que ele; propiciou o abuso para
ficar se ver livre do sexo do marido, o que você mais detestava. Apoiou
o dono do mundo, o poderoso, mandava em todos, era o prefeito da
cidade.
Pai (virando-se para Piedade) – Fui prefeito sim, nisso ela está certa –
há muitos anos – nem me lembro mais dessa época. É terrível, todas as
vezes é assim, despeja esses absurdos. (Pisca o olho para Piedade)
Elisa (em voz alta, com muita raiva) – Você sempre me ameaçava. Fala-
va-me que se eu contasse para os outros, você me internaria num hospí-
cio como louca. Não sabia o que era hospício. Você me explicava que é o
lugar onde são levados as pessoas esquisitas da cidade como: Titica Suja,
Chico Doido, Maria Rodela e Diarréia.
Elisa – Tudo igual! Como agora, a vida inteira você afirmou que era sua
palavra, a do prefeito, contra a minha, a de uma criança boba. Quem iria
acreditar em mim? Você era o prefeito, o rico fazendeiro. Agora, quem
vai acreditar em mim? Sou a louca e você é o são. Não é assim?
Pai (usando, nesse momento, uma voz calma, lenta e bondosa) – Minha
filha, você está doente, descanse um pouco. Seu pai sempre quis te aju-
dar. Seu pai só quer o bem pra você…
Elisa (dando um grito, como descobrindo) – Eureka! Era esse, era esse
mesmo o tom de voz que usava todas as noites quando ia ao meu quarto.
Agora você me despertou; o som da noite. Você falava desse jeito; apa-
rentando bondade e calma. Essa sua voz não mais saiu dos meus ouvi-
dos… nunca mais vou esquecer essa cena horripilante.
Pai (mudando o tom de voz, falando mais rápido e forte) – Então, não
posso lhe tratar bem? Você acha ruim tudo.
Elisa – Isso é tratar bem? Falar macio para aproveitar-se de mim? Ia para
minha cama apavorada, não conseguia dormir. O ritual se repetia, de
Elisa – Você chama isso de tratar bem? Durante o dia, aparentava bon-
dade e seriedade, falava grosso e firme, era respeitado; durante a madru-
gada, o porco sujo, despudorado. Eu não entendia esses dois homens.
Confundia-me, a mesma figura com dois tons de voz e com dois com-
portamentos. (pulando da mesa e tentando escapar pela porta de entra-
da. O pai corre em seu encalço e a segura pelos braços, puxando Elisa
para dentro da sala )
Elisa (continuando sua fala, mesmo presa pelas mãos dos três) – Não
entendia como o prefeito, o trabalhador, o marido e o homem respeitado
por todos, o pregador de moralidade, o frequentador de igrejas, amigo
do padre e do pastor, pudesse, durante a madrugada, ir ao meu quarto,
pegar na minha bunda, fazer coisas esquisitas comigo, coisas proibidas,
que não podiam ser feitas diante dos outros. Tinha vontade de morrer
para escapar do sofrimento.
Elisa (gritando e espichando para agarrar sua mãe) – Tem sim! Desejava
morrer, mas não sabia como. Imaginava que só Deus tinha esse poder.
Rezava para ele, pedindo-lhe que me levasse.
Mãe – Vejo que pouco ou nada fiz para impedir o que ocorreu. Tínha-
mos os nossos problemas, por isso separei-me dele, mas, tarde demais…
Pai – Elisa, cale essa boca! (mais à vontade com a saída de Piedade ele
grita, largando sua postura de negociador e apertando-a, mais ainda)
Mãe – Você está machucando minha filha. ( a mãe grita irritada, quando
retorna Piedade, desajeitada, traz mais um copo d’água que é colocado
sobre a mesa).
Elisa – Ah! (grita) – Não calo! Agora, posso desabafar; é bom que tenha
ela por perto, ouvindo-me (aponta para Piedade que caminha na sala).
Meu amor, ajude-me. Preciso de você.
Pai – Pois continue; fale todas suas idiotices e loucuras… fique sabendo
que estou cheio delas. (termina a frase gritando contraindo todos os
músculos da face)
Elisa – Mãe? Você nunca foi mãe! Você foi uma cafetina! Saia! Você o
detestava, tinha nojo dele; ( aponta para o pai que vira o rosto) não o
suportando, cuspiu-o (dá uma cuspida no chão) em cima de mim e de
Eliete. Queria se ver livre dele, não teve escrúpulos, ofereceu-nos para
o sacrifício. Conseguiu o que queria, através das filhas: escapar do que
mais detestava, transar com esse bêbado fedorento.
Elisa – Você, que diz ser minha mãe, preferiu ver as filhas deitarem com
esse canalha, (aponta) do que com você. Você nunca nos amou! Odiou-
-nos, isso sim!
Pai – Não quero mais discutir disso. Cale sua boca, sua mãe está sofren-
do!
Elisa – Ela que sofra! Fique sabendo que na escola, após a aula de Psico-
patologia, consegui uma conversa reservada com o professor. Contei-lhe
tudo o que aconteceu comigo.
Pai – Você está pensando em seu namorado, o engenheiro, mas ele esta-
va doente, deformado.
Mãe – Vamos orar, Deus vai nos ajudar… (pegando gentilmente em seus
braços)
Elisa (parando de falar por instantes escuta o som) – A vida inteira tive
medo de ser vista como louca, caso falasse a verdade. Fingi e fingi, isso
foi o que fiz sempre!
Piedade – Ela está sofrendo muito. Vou avisar ao doutor… talvez ele
possa atendê-la mais depressa. (sai da sala, mais uma vez, assim fica livre
da cena detestável)
Elisa – A palavra certa sempre foi a sua. Quem era eu? Uma criança
indefesa de seis anos, impotente, fraca, submissa. Talvez tenha enlou-
quecido, não era para menos. Forçando muito, cheguei, algumas vezes, a
imaginar que não houve nada. Como gostaria que isso fosse verdade…
teria sido melhor, muito melhor. Mas eu sei, mais do que ninguém, que
não foi mentira. É desesperador, não poder fazer nada, nada mesmo.
Pai – Pare! Basta! Eu fiz tudo que podia para ajudá-la. O que você deu
em troca? Nada. Apenas muito trabalho, muita amolação. Quando
terminou seu curso de Psicologia esperei alguma mudança, mas piorou,
ficou mais doida ainda; começou a inventar coisas como essas babosei-
Elisa – Você sempre foi duplo. Como agora, está representando para ela
sua outra face, o outro lado do político, a canalhice em pessoa.
Pai – Sempre fui um homem sério e todo mundo sabe disso. Somente
você duvida de mim. Honorina sabe que eu sempre a respeitei, assim
como as minhas filhas; sou um homem voltado para família, um verda-
deiro cristão.
Mãe – Chega! Não queria entrar nessa conversa mas não aguento mais!
Você nunca prestou, Altamiro. Você me enche com essa auto-proganda.
Vou lembrá-lo, já que esqueceu. Tivemos que mandar embora lá de casa
a cozinheira, Deusmira. Eu sei pela sua cara de cínico, que não se esque-
ceu.
Pai – Você enlouqueceu, também. Nossa senhora! O quê vim fazer aqui?
Mãe – Eu, feito boba, ajudei-o – para não piorar a situação – a procurar
uma clínica de aborto! Você transou com ela, dentro de minha casa. O
caso só veio à tona porque ela ficou grávida.
Pai – Peço-lhe, por favor, pela alma de sua mãe, para não continuar essa
dolorosa conversa.
Mãe – Não coloque minha mãe no meio. Falo o quero. Você parou de
mandar em mim, há muito. E quem era ela? Uma boba, que você con-
seguiu enganar, prometendo me largar para morar com ela na fazenda.
Aproveitou-se de uma mulher já feita, filha de Maria, frequentadora de
igreja. Ela me disse que você a forçou a ir para cama. E em qual dia?
Mãe – Para fazer o que você fez não necessitava conversa. Deu-lhe um
licor para “aliviar a dor que ela sentia” pela morte. As duas eram muito
amigas. Depois, uma batida de limão e pronto. Ela me contou como
aconteceu, na nossa imaculada cama de casal, no meu quarto! Voltou ao
velório, às cinco da manhã, como se nada tivesse acontecido.
Pai – Nada! Uma mentirada. Tudo invenção dela, já lhe disse. Nunca
tive nada com Deusmira. Ajudei-a, sim, a fazer o aborto, por convicção
social. Acho que uma pessoa como ela não podia ter um filho, não tem
capacidade para isso.
Mãe – Mas tinha competência para decidir se devia ter ou não transar
com você. Prefiro até não voltar a esse assunto, que me provoca náuseas.
Você e sua família nunca prestaram. Só têm fachada, parecem pertencer
a família imperial.
Mãe – Estou livre de você. Falo o que desejar. Jamais esquecerei nosso
namoro. Sua família, puritanos para mostrar aos outros. Você se lembra
de quando namorávamos e fiquei grávida? Naquela época, seus princí-
pios ideológicos e religiosos, opostos aos atuais, não permitiam o aborto.
Quem mandava era sua mãe que era contra relações sexuais antes do
casamento e, muito menos, ter filhos sem se casar.
Pai – Já vem você com esse detestável assunto antigo, que você já repetiu
Pai – Mas não é hora de falar com nossa filha sobre isso! Idiota!
Mãe – Estou com raiva, isso me dá força. Preciso desabafar. Não podía-
mos ter o filho sem casarmos, mas ele foi gerado, Deus sabe como. As-
sim, tivemos que esconder a gravidez até casarmos às pressas. Sua mãe, a
terrível moralista, que nunca fez nada errado na vida. Não é? Exceto ter
por amante o padre da cidade, como todos diziam.
Pai – Não ponha minha mãe nessa calúnia. Não admito; ela já morreu e
não pode mais se defender.
Mãe – Oh, uma santa… coitada… .Tivemos que nos casar rápido, com
dois meses de gravidez. Usei uma cinta para apertar a barriga para dar
a impressão que não estava grávida e continuei a usá-la para ela pensar
que a gravidez tinha menos tempo. Como sempre, segui sua família.
Sinto mal em pensar como agradei aquela desgraçada.
Pai – Vamos parar. Não use essa palavra contra minha mãe. Estamos
num consultório, Elisa não está bem. Pense um pouco, pelo menos
agora, uma vez na vida. Esta conversa deveria ficar para outro momento.
Por favor…
Mãe – Agora você está mais manso; talvez, mais velho e fraco, em todos
os sentidos; não é mais homem.
Mãe – Eu já te obedeci bem como fiz com sua mãe. Hoje, não; já nos
separamos há muito; não mais tenho medo de seus fingimentos. Infeliz-
Pai – Desabafe! Você sempre precisou desabafar. Grite! Grite bem alto!
(contrai o rosto de dor, aperta o tórax) – O que mais fez na vida? Gritar,
para que todos possam ouvir … desabafe, é o que sabe fazer. Durante
toda a vida, você reclamou de tudo e de todos. Não fez, e não faz nada,
reclama; faça o que você aprendeu. Sempre manipulou as pessoas, xin-
gando e criticando. A culpa é sempre dos outros. Você nunca errou, é
uma santa.
Mãe – É melhor não fazer nada do que fazer o que você fez. Não desvie
meu pensamento… hoje, contarei essa história que me engasga, até o
fim. Fomos obrigados a fingir para sua mãe que íamos ter a filha nove
meses depois do casamento. Entretanto, apesar das rezas, Deus não
ajudou e a nossa filha nasceu sete meses após o casamento, com os nove
meses usuais.
Pai – Eu não tive culpa; você concordou com tudo o que ocorreu.
Pai – Continua, idiota; fale; conte tudo; invente o que quiser. Chame o
médico para aumentar a platéia. Você gosta disso! (nova pontada no
peito)
Elisa – Mãe, não estou entendendo, a senhora teve uma outra filha?
Mãe – Espere, vou contar tudo. Não sabíamos como levar para casa nos-
sa filha, nascida com “sete” meses e apresentando todas as características
de uma menina normal com nove meses… pesou dois quilos e oitocen-
tos gramas. Que pecado mortal!
Pai – Fomos educados assim, era difícil ir contra as idéias dela. Ela do-
minava a todos; isso eu concordo.
Mãe – Seu irmão não admitia esse sofrimento de sua amada mãe e teve a
belíssima idéia de doá-la.
Pai – Não quero lembrar-me disso; sei que foi um erro meu, ter concor-
dado com ele. Eu sofro com isso.
Mãe – Era preferível ela ter nascido morta. O santo da família nos for-
çou a entregá-la para uma família desconhecida. Era muito penoso para
sua avó saber que não me casei virgem e que ao me casar estava grávida
de dois meses. Arrumou um casal, sem que nós tivéssemos notícias de
quem era, e fez a doação de nossa filha com nossa assinatura.
Elisa – E onde ela está agora? Mora aqui? Vocês tem notícias? Está viva?
Pai – Você precisa de dramas para viver e esse foi bem recebido. Seu
sofrimento é superficial, muito mais para mostrar do que internamente.
Nunca percebi um sofrimento autêntico em você, sua missão neste mun-
do é colocar a culpa nos outros.
Mãe – Assim, fiquei por vários meses. Nunca sofri tanto. Emagreci dez
quilos. Morávamos com a mãe dele. Ela, parece até que gostou, para ficar
junto do filho querido e não ter outros concorrentes.
Pai – Ela gostava muito de você; não pode negar. Ela lhe ajudava a viver,
coisa que jamais aprendeu. Você sempre falou em abrir uma casa co-
mercial e voltar a estudar – aprender inglês ou qualquer outro modismo.
Nunca fez uma coisa ou outra, nunca saiu do lugar; não passava da ma-
trícula. Jamais completou nada. É um fracasso. Se não fosse os fatos que
deram errados não tinha onde se apoiar para explicar sua incompetência
A família, tendo Elisa no centro, rodeada de um lado por seu pai, que
geme de dor e, de outro, por sua mãe que choraminga, entra no consul-
tório. Há um silêncio profundo que permanece até eles desaparecerem
na sala do psiquiatra. Piedade acompanha o grupo, fechando a porta
com delicadeza. Suspira fundo e liberta seus pensamentos. Uma vez não
mais presos à prisão das conversas, eles, desimpedidos, começam a flu-
tuar pelo espaço, para o infinito claro. Enquanto isso Piedade vai de um
lado a outro na sala de espera, agora sem ninguém, fingindo limpá-la,
preparando-a para o dia seguinte. Vagueando, canta, baixinho, a canção
triste, como aquele fim de tarde, ouvida e decorada das procissões sim-
ples de sua querida Córrego das Lages:
No céu triunfarei
No céu, no céu,
FIM