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GUNTHER JAKOBS MANUEL CANCIO MELIA Direito Penal do Inimigo J25d Jakobs, Ginther Nocées e Criticas Direito Penal no inimigo: nogbes ¢ criticas / Gunther Jakobs, Manuel Cancio Melié; org. e trad. André Luis Callegari, Nereu José Giacomolli, ~ Porto Alegre: Livea- ria do Advogado Ed., 2005. Bip, 1x1 cm Organizagio ¢ Tradugso eer . André Luis Callegari 1. Direito Penal, 2, Punibilidade. 3. Politica criminal Nereu José Giacomolli 4. Criminalidade. 1. Cancio Melis, Manuel. Il. Callegari, André Luis, org. Ill. Giacomolli, Nereu José, org. IV. Titulo. cpu - 343.2 Indices pera o catdlogo sistemstice: Direito Penal Punibilidade Poiticn ein Criminalidade In (Bibliotecéria responsével: Marta Roberto, CRB-10/652) livraria DO ADYOGADO ‘editora Porto Alegre 2005 1. Introdugao: a pena como contradigao ou como seguran¢a Quando no presente texto se faz referéncia ao Direito penal do cidadao e ao Direito penal do inimigo, isso no sentido de dois tipos ideais que dificilmente aparecerao transladados a realidade de modo puro: inclusive no processamento de um fato delitivo cotidia- no que provoca um pouco mais que tédio - Direito penal do cidadao — se misturaré a0 menos uma leve defesa frente a riscos futuros - Direito penal do inimigo -, e inclusive o terrorista mais afastado da esfera cidada é tratado, ao menos formalmente, como pessoa, ao Ihe ser concedido no processo penal! os direitos de um acusado cidadao. Por conseguinte, nao se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito penal, mas de descrever dois polos de um sé mundo ou de mostrar duas tendéncias opostas em um sé contexto juridico-penal. Tal descrigao revela que ¢ perfeitamente possivel que estas tendéncias se sobreponham, isto é, que se ocultem aquelas que tratam 0 autor como pessoa e aquelas outras que 0 tratam como fonte de perigo ou como meio para intimi- dar aos demais. Que isto fique dito como primeira consideracao. TFundamentalmente a respeito da falta de comunicagto, ve item IV, infra, Direito Penal do Inimigo 21 Em segundo lugar deve limitar-se, previamente, que a denominagio «Direito penal do inimigo» nao pretende ser sempre pejorativa. Certamente, um Direito penal do inimigo é indicativo de uma pacificagao insufi- ciente; entretanto esta, no necessariamente, deve ser atribuida aos pacificadores, mas pode referir-se também aos rebeldes. Ademais, um Direito penal do inimigo implica, pelo menos, um comportamento desenvolvido com base em regras, ao invés de uma conduta esponta- nea e impulsiva. Feitas estas reflexdes prévias, comega- rei com a parte intermediaria dos conceitos, ou seja, com a pena, A pena 6 coacao; ¢ coagao - aqui sé sera abordada de maneira setorial - de diversas classes, mescladas em fntima combinagao. Em primeiro lugar, a coacao é porta- dora de um significado, portadora da resposta ao fato: 0 fato, como ato de uma pessoa racional, significa algo, significa uma desautorizacao da norma, um ataque a sua vigéncia, e a pena também significa algo; significa que a afirmagao do autor é irrelevante e que a norma segue vigente sem modificacdes, mantendo-se, portan- to, a configuracao da sociedade. Nesta medida, tanto 0 fato como a coacao penal s4o meios de interacio simb« lica? e 0 autor é considerado, seriamente, como pessoa; pois se fosse incapaz, nao seria necessario negar seu ato. Entretanto, a pena nao 6 significa algo, mas tam- bém produz fisicamente algo. Assim, por exemplo, 0 preso nao pode cometer delitos fora da penitenciaria: uma prevencao especial segura durante 0 lapso efetivo da pena privativa de liberdade. E possivel pensar que € improvavel que a pena privativa de liberdade se conver- tana reacao habitual frente a fatos de certa gravidade se ela nao contivesse este efeito de seguranga. Nesta medi- da, a coacao nao pretende significar nada, mas quer ser 2. respeito, vid. JAKOBS, Norm, Person, Gesellschaft, 2 edigdo, 1999, p.98 © 22 Giinther Jakobs efetiva, isto é, que nao se dirige contra a pessoa em Direito, mas contra o individuo perigoso. Isto talvez se ~perceba, com especial clareza, quando se passa do efeito Ge seguranga da pena privativa de liberdade a custodia de seguranca, enquanto medida de seguranga (§ 61 nim 3, § 66 StGB): nesse caso, a perspectiva nao 6 contempla retrospectivamente o fato passado que deve ser subme- tido a juizo, mas também se dirige - e sobretudo ~ para frente, ao futuro, no qual uma «tendéncia a [cometer] fatos delitivos de consideravel gravidade» poderia ter efeitos «perigosos» para a generalidade (§ 66, par. 1°, nim. 3 StGB). Portanto, no lugar de uma pessoa que de per si é capaz, e a que se contradiz através da pena, aparece o individuo? perigoso, contra o qual se procede te Ambito: através de uma medida de seguranca, nao mediante uma pena - de modo fisicamente efetivo: luta contra um perigo em lugar de comunicagao, Direito penal do inimigo (neste contexto, Direito penal ao me- nos em um sentido amplo: a medida de seguranga tem como pressuposto a comiss4o de um delito) ao invés do Direito penal do cidadao, e a voz «Direito» significa, em ambos 0s conceitos, algo claramente diferente, como se mostraré mais adiante. O que se pode vislumbrar na discussio cientifica da atualidade a respeito deste problema é pouco, com tendéncia ao nada. £ que nao se pode esperar nada daqueles que buscam razao em todas as partes, garantin- do-se a si mesmo que a tem diretamente e proclamando-a sempre em tom altivo, ao invés de dar-se 0 trabalho de 1 respeito dos concelts «individuoe e«pesson, vd. JAKOBS, Norm, Per ‘0, Geslschaft (nota 2), p. 9 © 88, 29 ¢ 58. 4 4 questio aparece primeito em JAKOBS, Z5IW, 97 (1985). p 75,783 e item, em: ESER el (ed), Dc Deutsche Strafecswissenselaft or der Jabra Senco. Ricktestnnang wd Ausblik, 2000, p47 © 3, BI e ssa respelto SCHULZ, 2st, 112 (2000), p. 653 e 659 ¢ ss contraiamente ESER, lo. ‘ib (Die Beusche Strafechsusensha),p. 437 ¢ 444 € soz SCHUNE- MANN, GA 2001, p.205 e 38, 210 €38. Diteito Penal do Inimigo a) i... configurar sua subjetividade, examinando aquilo que ée pode ‘ser. Entretanto, a filosofia da Idade Moderna ensina o suficiente para, pelo menos, estar em condiges de abordar o problema. re Giinther Jakobs 2. Alguns esbocos iusfilosdficos Denomina-se «Direito» o vinculo entre pessoas que sio titulares de direitos e deveres, ao passo que a relacao com um inimigo nao se determina pelo Direito, mas pela coacao. No entanto, todo Direito se encontra vinculado a autorizacio para empregar coagdo,’ e a coagio mais intensa € a do Direito penal. Em conseqiiéncia, poder-se- ia argumentar que qualquer pena, ou, inclusive, qual- quer legitima defesa se dirige contra um inimigo. Tal argumentacdo em absoluto é nova, mas conta com desta- cados precursores filoséficos. Sao especialmente aqueles autores que fundamen- tam 0 Estado de modo estrito, mediante um contrato, entendem 0 delito no sentido de que o delingiiente infringe o contrato, de maneira que jé nao participa dos beneficios deste: a partir desse momento, jé nao vive com os demais dentro de uma relagéo jurfdica. Em correspondéncia com isso, afirma Rosseau® que qual- quer «malfeitor» que ataque o «direito social» deixa de ser «membro» do Estado, posto que se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada 5 KANT, Die metaphysike der Site. Erste Theil. Meaphysiche Anfangsgrunde er Rechislebr, erm: Kant's Werke, Akademie-AUspabe, tomo 6, 1907, p. 203 © 8, 231 inletung in die Rechslehre,§ D) © ROSSEAU, Stat und Geslscaf. «Contr socal, tradutido e comentado or WEIGEND, 1958, p. 38 (segundo liv, capital V) Direito Penal do inimigo 25 contra o malfeitor. A conseqiiéncia diz assim: «ao culpa- do se Ihe faz morrer mais como inimigo que como cidadao», De modo similar, argumenta Fichte: «quem abandona o contrato cidadao em um ponto em que no contrato se contava com sua prudéncia, seja de modo voluntétio ou por imprevisdo, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadao e como ser humano, € passa a um estado de auséncia completa de direitos»? Fichte atenua tal morte civil, como regra geral mediante a construcao de um contrato de peniténcia,? mas nao no caso do «assassinato intencional e premeditado»: neste Ambito, se mantém a privacdo de direitos: «... ao conde- nado se declara que é uma coisa, uma peco de gado».!° Com férrea coeréncia, Fichte prossegue afirmando que a falta de personalidade, a execugao do criminoso «nao [é uma] pena, mas s6 instrumento de seguranca». Nao é oportuno entrar em detalhes, pois jé com este breve esboco é possivel pensar que se mostrou que o status de cidadao, nao necessariamente, é algo que nao se pode perder, Nao quero seguir a concepgio de Rosseau e de Fichte, pois na separagao radical entre o cidadao e seu Direito, por um lado, e 0 injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata. Em principio, um ordena- mento juridico deve manter dentro do Direito também 0 criminoso, e isso por uma dupla razdo: por um lado, 0 delingiiente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, 7 FICHTE, Gradlage des Naturrechts nach den Prinzpien der Wissenschailebrel, cent Sitiche Werke, ed. a cargo de JH, FICHTE, Zweite Abthellung. A. Zur Rechts ~ und Siteniehre, tomo primeira, ., p. 260. 8 Como na nota 7. 9 Grundlage des Naturrechts (nota 7), p. 260 e ss. Dizendo-se de passagem: win contrato com um sujeitoexpulso da sociedad civil, com alguém sem direitos? 10 Grundlage des Naturrechts (nota 7), p. 278 e ss. 1 Grundlage des Naturreckts (nota 7), p- 280. 26 Giinther Jakobs de cidadao, em todo caso: sua situagao dentro do Direi- to. Por outro, o delingiiente tem o dever de proceder a reparagio e também os deveres tem como pressuposto a existéncia de personalidade, dito de outro modo, o delingiiente ndo pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato. Hobbes tinha consciéncia desta situagao. Nominal- mente, é (também) um tedrico do contrato social, mas materialmente 6, preferentemente, um filésofo das insti- tuigdes. Seu contrato de submissao - junto a qual apare- ce, em igualdade de direito (!) a submissdo por meio da violéncia ~ nao se deve entender tanto como um contra- to, mas como uma metéfora de que os (futuros) cidadaos nao perturbem o Estado em seu processo de auto-orga- nizacao.! De maneira plenamente coerente com isso, HOBBES, em princfpio, mantém o delingiiente, em sua funcao de cidadao:"* o cidadao nao pode eliminar, por si mesmo, seu status. Entretanto, a situacio é distinta quando se trata de uma rebeliao, isto é, de alta traigéo: «Pois a natureza deste crime esta na resciso da submis- sio,"* 0 que significa uma recafda no estado de nature- za... E aqueles que incorrem em tal delito nao sao castigados como stibditos, mas como inimigos».”> 12 Ci. também KERSTING, Die poliische Philosophie des Geseliscafsveraes, 1984, p. 95 «0 contrato Fundamental € a forma conceitual dono da qual hi ue introduzir stuag poles empirica para se acessvel ao conetment© Gientifico; constitu o esquema de interpretaio sob o qual dever subsuir-se 0s process histrcos de fundag3o do Estado para poder ser compreendids politicamente. Ide emt iden (ed), Thomas Hobbes. Leviathan et. (Klassiker ‘Auslegen), 1996, p. 211 e 8, 213 e ss 13 HOBBES, Leviathan order Sto, Form und Gevlt eines Krliche und Br {elichen Staats, ed. a cargo de FETSCHER, traduio de FUCHNER, 1988, p 357 es. (capitulo 28) ‘Sera mas coreo dizer: na supresso ft a instituiges nfo sto susce- 25 HOBBES, Leviothan (nota 13), p. 242 (capitulo 28); idem, Vom Birger, em: GAWLICK (ed), Hobbes: Vom Metihen. Vant Birger, 1959, p- 233 (capitulo Parigrafo 22) Para Rousseau e Fichte, todo delingiiente é, de per si, um inimigo; para Hobbes, a0 menos 0 réu de alta traigao, assim 0 é. Kant, quem fez uso do modelo contratual como idéia reguladora na fundamentacao e na limitagao do poder do Estado,'* situa o problema na passagem do estado de natureza (ficticio) ao estado estatal. Na cons- trugao de Kant, toda pessoa esta autorizada a obrigar a qualquer outra pessoa a entrar em uma constituicao cidada.”” Imediatamente, coloca-se a seguinte questao: 0 que diz Kant aqueles que nao se deixam obrigar? Em seu escrito «Sobre a paz eterna», dedica uma extensa nota, ao pé de pagina, ao problema de quando se pode legitimamente proceder de modo hostil contra um ser humano, expondo o seguinte: «Entretanto, aquele ser humano ou povo que se encontra em um mero estado de natureza, priva... [da] seguranca [necessaria], e lesiona, jé por esse estado, aquele que est ao meu lado, embora nao de maneira ativa (ato), mas sim pela auséncia de legalidade de seu estado (statu iniusto), que ameaca constantemente; por isso, posso obrigar que, ou entre comigo em um estado comunitario-legal ou abandone minha vizinhanca».” Conseqiientemente, quem nao participa na vida em um «estado comunitério-legal», deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou impe- lido & custédia de seguranca); em todo caso, nao ha que KANT, Ober den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, tut aber mich fir die Praxis, em: Werke (nota 5), 8, p. 273 e s8. 297; vid. a respelto KERSTING, Philsophi (nota 12), p. 199 e s 1 KANT, Metpysit der Site roa 8). 255 e581. Tel 1 Haupstck, P.8). 18 KANT, Zum ewigen Frieden. Ein pilosophisher. Entour, em: Werke nota 5), 8, p. Mie ss, 349 2° apartado, nota). 19 Ao afirmar fo, Cit (nota 18) que unicamente (porém, a0 menos, sim neste ‘aso) posso sproceder de modo hostil» contra quem «ji me tenha Tesionado ativamente, iso se refere a um delito no westado cidadgo-legal, de maneira aque shostil caracterza a produgo de um mal conforme 4 Le! penal, e 30 3 uma despersonalizagao. 28 Ginter fobs ser tratado como pessoa, mas pode ser «tratado», como anota expressamente Kant,” «como um inimigo».?* Como acaba de citar-se, na posicao de Kant nao se trata como pessoa quem «me ameaga...constantemente», quem nao se deixa obrigar a entrar em um estado cidadao. De maneira similar, Hobbes despersonaliza 0 réu de alta traicao: pois também este nega, por principio, constituigao existente. Por conseguinte, Hobbes e Kant conhecem um Direito penal do cidadao contra pessoas que nao delingiiem de modo persistente por princ{pio - e um Direito penal do inimigo contra quem se desvia por principio. Este exclui e aquele deixa incélume 0 status de pessoa. O Direito penal do cidadao é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa, Mas o Direito penal do inimigo Direito em outro sentido. Certamente, o Estado tem direito a procu- rar seguranga frente a individuos que reincidem per- sistentemente na comissao de delitos. Afinal de contas, a custédia de seguranca 6 uma instituigao juridica. Ainda mais: os cidadaos tém direito de exigir do Estado que tome medidas adequadas, isto é, tém um direito a seguranca,® com base no qual Hobbes fundamenta e limita o Estado: finis oboedientiae est protectio.®® Mas neste direito nao se encontra contido, em Hobbes, 0 réu de 20 Zum ewigen Frieden (nota 18), p. 39. 21 Esta afirmacio, entretanto, contraria a posigio de KANT, no que tange 30 problema da mentira, no que KANT nag tem suficentemente em conta a Sependéncia do contexto (sil: reciprocidade) da personalidade praticada’ ‘Uber ein vermeintliches Recht aus Menschenlibe zuligen, em: Werke (nota 5), 8, p.421 es, Sobre esta questio, ft. OBERER, em: GEISMANN e OBERER (6d) kant und echt der Lige, 1986, p. 7 es; PAWLIK, Das unerlaubte Verhalten beim Betrug, 1999, p. 89 ¢ ss; ANNEN, Das Problem’ der Wahrhaftigheit in der Philosophie der deutschen Aufilirung. Ein Bettrag 2ur Ethik und zum Naturrecht es 18. abrhunderts, 1997, p. 97 e 22 Fundamental ISENSEE, Das Grundrecht auf Sicherheit, Zu den Schutzpfichten des Jriheitichen Verfessungsstaates, 1983, 2 O fim da obediencia € a protegio; HOBBES, Leviathan (nota 13), p:171 (capitulo); idem, Vor Birger (nota 15), p. 132e ss. (capitulo 6, parsgrafo 3). Direito Penal do Inimigo 29 alta traigdo; em Kant, quem permanentemente ameaca; trata-se do direito dos demais. O Direito penal do cidadao é 0 Direito de todos, 0 Direito penal do inimigo é daqueles que 0 constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é s6 coagio fisica, até chegar 2 guerra. Esta coacao pode ficar limitada ‘em um duplo sentido. Em primeiro lugar, o Estado, nao necessariamente, excluir4 o inimigo de todos os direitos, Neste sentido, o sujeito submetido a custodia de segu- ranga fica incélume em seu papel de proprietério de coisas. E, em segundo lugar, o Estado nao tem por que fazer tudo 0 que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para nao fechar a porta a um posterior acordo de paz. Mas isto em nada altera o fato de que a medida executada contra o inimigo nao significa nada, mas s6 coage. O Direito penal do cidadao mantém a vigéncia da norma, 0 Direito penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo 0 Direito das medidas de seguranga) combate perigos; com toda certeza existem miiltiplas formas inter- mediarias. 30 Ginter Jakob 3. Personalidade real e periculosidade fatica Falta formular uma pergunta: por que Hobbes e Kant realizam a delimitagao como se tem descrito? Darei forma de teses a resposta: nenhum contexto normativo, e também 0 € 0 cidadao, a pessoa em Direito, é tal — vigora - por si mesmo. Ao contrario, também ha de determinar, em linhas gerais, a sociedade. $6 entao é real. Para explicar esta tese, comecarei com algumas consideragées acerca do que significa - sit venia verbo 0 caso normal da seqiiéncia de delito e pena. Nao existem os delitos em circunstancias caéticas, mas sé como violagao das normas de uma ordem praticada. Ninguém tem desenvolvido isto com tanta clareza como Hobbes,* que atribui a todos os seres humanos, no estado de natureza, um ius naturale a tudo, quer dizer, na termino- logia moderna, s6 um ius assim denominado, a respeito do qual precisamente nao se encontra em correspondén- cia uma obligatio, um dever do outro, mas que, ao contrério, s6 6 uma denominacio da liberdade normati- vamente ilimitada, unicamente circunscrita pela violén- cia fisica de cada individuo, de fazer e deixar de fazer 0 que se queira, contanto que se possa. Quem quer e pode, 24 Leviathan (nota 13), p. 99 e ss. (capitulo 14). Direito Penal do tnimigo 31 pode matar alguém sem causa alguma. £ este, como HOBBES constata expressamente® seu ius naturale. E isso nada tem em comum com um delito, jé que no estado de natureza, na falta de uma ordem definida, de maneira vinculante, nao podem ser violadas as normas de tal ordem. Portanto, os delitos s6 acontecem em uma comuni- dade ordenada, no Estado, do mesmo modo que o negativo s6 se pode determinar ante a ocultagao do positivo e vice-versa. E 0 delito nao aparece como princfpio do fim da comunidade ordenada, mas s6 como infragao desta, como deslize repardvel. Para esclarecer 0 que foi dito, pense no sobrinho que mata seu tio, com 0 objetivo de acelerar o recebimento da heranga, a qual tem direito. Nenhum Estado sucumbe por um caso destas caracterfsticas. Ademais, 0 ato nao se dirige contra a permanéncia do Estado, e nem sequer contra a de suas instituigoes. O malvado sobrinho pretendé am- parar-se na protecao da vida e da propriedade dispensa- das pelo Estado; isto é, se comporta, evidentemente, de maneira autocontraditéria. Dito de outro modo, opta, como qualquer um reconheceria, por um mundo insus tentavel. E isso no sé no sentido do insustentavel, desde 0 ponto de vista pratico, em uma determinada tuaco, mas jé no plano te6rico. Esse mundo é impen- savel. Por isso, o Estado moderno vé no autor de um fato = de novo, uso esta palavra pouco exata — normal, diferentemente do que ocorre nos teéricos estritos do contratualismo de Rosseau e de Fichte, nao um inimigo que h de ser destrufdo, mas um cidadao, uma pessoa que, mediante sua conduta, tem danificado a vigéncia da norma e que, por isso, ¢ chamado - de modo coativo, mas como cidadao (endo como inimigo) ~ a equilibrar 0 25 Leviathan (nota 13), p. 99. (capitulo 14) 32 Giinther Jakobs dano, na vigéncia da norma. Isto se revela com a pena, quer dizer, mediante a privacao de meios de desenvolvi- mento do autor, mantendo-se a expectativa defraudada pelo autor, tratando esta, portanto, como valida, e a maxima da conduta do autor como maxima que nao pode ser norma.* Entretanto, as coisas somente sao tao simples, in- clusive quase idflicas ~ 0 autor pronuncia sua prépria sentenga jé pela inconsisténcia de sua maxima -, quando o autor, apesar de que seu ato ofereca garantia de que se conduzir, em linhas gerais, como cidadao, quer dizer, como pessoa que atua com fidelidade ao ordenamento juridico. Do mesmo modo que a vigéncia da norma, nao pode manter-se de maneira completamente contrafatica, tampouco a personalidade. Tentarei explicar brevemen- te 0 que foi dito, abordando primeiro a vigéncia da norma. Pretendendo-se que uma norma determine a confi guragdo de uma sociedade, a conduta em conformidade com a norma, realmente, deve ser esperada em seus aspectos fundamentais. Isso significa que os cdlculos das pessoas deveriam partir de que os demais se comporta- rao de acordo com a norma, isto 6, precisamente, sem infringi-la. Ao menos nos casos das normas de certo Peso, nas quais se pode esperar a fidelidade a norma, necessita-se de certa confirmagio cognitiva para poder converter-se em real. Um exemplo extremo: quando é séria a possibilidade de ser lesionado, de ser vitima de um roubo ou talvez, inclusive, de um homicidio, em um determinado parque, a certeza de estar, em todo caso, em meu diteito, no me fard entrar nesse parque sem necessidade. Sem uma suficiente seguranca cognitiva, a vigéncia da norma se esboroa e se converte numa pro- messa vazia, na medida em que jé nao oferece uma 26 Che supra Direito Penal do Inimigo configuracao social realmente susceptivel de ser vivida. No plano tedrico, pode-se afastar esta confirmagio do normativo pelo fatico, aduzindo que o que nao deve ser, nao deve ser, embora provavelmente va ser. Porém, as pessoas nao $6 querem ter direito, mas também preser- var seu corpo, isto é, sobreviver como individuos neces- sitados,” e a confianga no que nao deve ser 6, supde uma orientagio com a qual é possivel sobreviver quan- do nao é contraditéria com tanta intensidade pelo co- nhecimento do que sera. E precisamente por isto que Kant argumenta que qualquer um pode obrigar a qual- quer outro a entrar numa constituigao cidada.** O mesmo ocorre com a personalidade do autor de um fato delitivo: tampouco esta pode se manter de modo puramente contrafatico, sem nenhuma confirma 40 cognitiva. Pretendendo-se nao s6 introduzir outrem no céleulo como individu, isto é, como ser que avalia em funcio de satisfacio ¢ insatisfagio, mas tomé-lo como pessoa, 0 que significa que se parte de sua orienta- co com base no licito e no ilicito. Entao, também esta expectativa normativa deve encontrar-se cimentada, nos aspectos fundamentais, de maneita cognitiva. E isso, claramente, quanto maior for 0 peso que corresponda as normas em questao. JA se tem mencionado 0 exemplo da custédia de seguranca como medida de seguranca. H4 muitas outras regras do Direito penal que permitem apreciar que naqueles casos nos quais a expectativa de um comporta- mento pessoal é defraudada de maneira duradoura, diminui a disposicéo em tratar 0 delingiiente como pessoa. Assim, por exemplo, o legislador (por permane- cer primeiro no ambito do Direito material) esta passan- do a uma legislagdo - denominada abertamente deste 2 Chr no1a 3 28 Como na nota 17 34 Ginter akobs modo - de luta, por exemplo, no ambito da criminalida- de econdmica,? do terrorismo,” da criminalidade orga- nizada,** no caso de «delitos sexuais e outras infragdes penais perigosas»,”? assim como, em geral, no que tange aos «crimes».®® Pretende-se combater, em cada um des- tes casos, a individuos que em seu comportamento (por exemplo, no caso dos delitos sexuais), em sua vida econémica (assim, por exemplo, no caso da criminalida- de econémica, da criminalidade relacionada com as drogas e de outras formas de criminalidade organizada) ou mediante sua incorporagéo a uma organizacao (no caso do terrorismo, na criminalidade organizada, inclu- sive j4 na conspiracao para delingiiir, § 30 StGB) se tem afastado, provavelmente, de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, isto é, que nao proporciona a garantia cognitiva minima necesséria a um tratamento como pessoa. A reagao do ordenamento juridico, frente a esta criminalidade, se caracteriza, de modo paralelo a diferenciagio de Kant entre estado de cidadania e estado de natureza acabada de citar, pela circunstancia de que nao se trata, em primeira linha, da compensacao de um dano a vigéncia da norma, mas da eliminagao de um perigo: a punibilidade avanga um grande trecho para o ambito da preparagdo, e a pena se 2 Erstes Gesets zur Bekimpfung der Wirtschaftskeiminalitat vom 28-71976, GBI I, p. 2034; Zweites Gesetz #ur Bekdmpfung der Wirlschaftskeiminaliat ‘vom 15-51986, BGBI |, p. 721 (srespectivamente, primeira e segunda Lei de Tata conta a criminalidade econdmica). % Antigo 1, Gesetz-2ue Bekampfung des Terrorismus (= Lei para a lta contra 6 terrorism} de 19-2-1986, BCBI I, p. 2566. 31 Gesetz zur Bekimpfung des illegaten Rauschgiftandels und anderer Ers cheinungsformen det Organisierten Krominalitat (= Let para lata contra 0 trafico legal de drogas toxicas e outras formas de manifestagto da crimina- lidade orgenizada) de 15-7-1999, BCBI I, p. 1302. &2 Gesetz zur Bekimpfung vom Sexualdelikten und anderen gefahelichen Straftaten (= Lei para luta contra os delites sexuais e outra infragdes penals Bigosas) de 26/1-1998, BOB, p. 160. % Verbrechesbekimpfungsgesetz (= Lei de lta contra o lit) de 28-10-1994, BCT paige, eee Direito Penal do Inimigo 35 dirige a seguranca frente a fatos futuros, no a sangio de fatos cometidos. Brevemente: a reflexao do legislador é a seguinte: 0 outro «me lesiona por...[seu] estado [em auséncia de legalidade] (statu iniusto), que me ameaca constantemente».»' Uma ulterior formulacao: um indivi- duo que nao admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania nao pode participar dos beneficios do conceito de pessoa. E que o estado de natureza é um estado de auséncia de normas, isto 6, de liberdade excessiva, tanto como de luta excessiva. Quem ganha a guerra determina o que é norma, e quem perde ha de submeter-se a esta determinacao. Ao que tudo isto segue parecendo muito obscuro, pode-se oferecer um rapido esclarecimento, mediante uma referéncia aos fatos de 11 de setembro de 2001. 0 que ainda se subentende a respeito do delingiiente de caréter cotidiano, isto é, nao traté-lo como individuo perigoso, mas como pessoa que age erroneamente, jé passa a ser dificil, como se acaba de mostrar, no caso do autor por tendéncia. Isso est imbricado em uma organi- zagio — a necessidade da reacao frente ao perigo que emana de sua conduta, reiteradamente contraria a nor- ma, passa a um primeiro plano ~ e finaliza no terrorista, denominag3o dada a quem rechaca, por principio, a legitimidade do ordenamento juridico, e por isso perse- gue a destruicao dessa ordem, Entretanto, nao se preten- de duvidar que também um terrorista que assassina e aborda outras empresas pode ser representado como delingiiente que deve ser punido por qualquer Estado que declare que seus atos sao delitos. Os delitos seguem sendo delitos, ainda que se cometam com intencdes radicais e em grande escala. Porém, ha que ser indagado se a fixacao estrita e exclusiva a categoria do delito nao impée ao Estado uma atadura ~ precisamente, a necessi- SE KANT como na nota 18 36 Giinther Jakobs dade de respeitar o autor como pessoa — que, frente a um terrorista, que precisamente nao justifica a expectativa de uma conduta geralmente pessoal, simplesmente re- sulta inadequada. Dito de outro modo: quem inclui o inimigo no conceito de delingiiente-cidadao nao deve assombrar-se quando se misturam 0s conceitos «guerra» fe «proceso penal». De novo, em outra formulagio: quem nao quer privar o Direito penal do cidadao de suas qualidades vinculadas a nocao de Estado de Direito = controle das paixdes; reacao exclusivamente frente a atos exteriorizados, nao frente a meros atos preparaté- ios; a respeito da personalidade do delingiiente no processo penal, etc. - deveria chamar de outra forma aquilo que tem que ser feito contra os terroristas, se nao se quer sucumbir, isto 6, deveria chamar Direito penal do inimigo, guerra contida. Portanto, 0 Direito penal conhece dois pélos ou tendéncias em suas regulagdes. Por um lado, 0 tratamento com o cidadao, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, 0 tratamento com 0 inimigo, que ¢ interceptado ja no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade. Um exemplo do primeiro tipo pode constituir o tratamento dado a um homicida, que, se é processado por autoria individual s6 comega a ser punivel quando se disp6e imediatamente a realizar o tipo (p. 22, 21 StGB), um exemplo do segundo tipo pode ser o tratamento dado ao cabeca (chefe) ou quem esta por atras (independentemente de quem quer que seja) de uma associacio terrorista, ao que alcanga uma pena s6 levemente mais reduzida do que a corres- ponde ao autor de uma tentativa de homicfdio,* jé 3 JAKORS, 250, 97 (1985), p. 751 € 36 De trés a quince anos de pena prvativa de libendade frente @ uma pena de cinco a quinze anos, 88 30,212, 49 GB. Direito Penal do Inimigo 37 quando funda a associago ou leva a cabo atividades dentro desta (p 129 a StGB), isto é, eventualmente anos antes de um fato previsto com maior ou menor impreci- sao.” Materialmente 6 possivel pensar que se trata de uma custédia de seguranga antecipada que se denomina «pena». 3 A respeito da tentativa de participagso, 830 SIGB, infra V 38 "Ginter Jakobs 4. Esbogo a respeito do Direito Processual Penal No Direito processual penal, novamente aparece esta polatizagao; ¢ forte a tentacdo de dizer: evidente- mente. Aqui nao possivel expor isto com profundida- de; ao menos, se tentard levar a cabo um esboco. O imputado, por um lado, é uma pessoa que participa, quem costumeiramente recebe a denominagao de «sujei- to processual»; isto é, precisamente, o que distingue 0 processo reformado do processo inquisitivo. Deve men- cionar-se, por exemplo,* o direito a tutela judicial, 0 direito a solicitar a pratica de provas, de assistir aos interrogatérios e, especialmente, a nao ser enganado, coagido, e nem submetido a determinadas tentacdes (§ 136 a StPO). De outra banda, frente a esse lado pessoal, de sujeito processual,” aparece em miiltiplas formas uma clara coagao, sobretudo na prisdo preventiva (§§ 112, 112.a StPO); do mesmo modo que a custédia de seguran- 38 Cfr. enumeracio mais exaustiva em ROXIN, Strafverfabrensrecht, 258 edi- 80, 1998, $18 59 A respeito dos requisitos de um dever de participagto como conseaiiéncia dda personalizacao fundamental PAWLIK, GA 1998, p. 378 ess, com amplas referencias. ROXIN, Strafverfabrensrecht (nota 38), assinala a necessidade de “suportar 0 desenvolvimento do processo» 8 coagto, Isso nto resulta convin- cent: 0 processo, de per si, € © caminho a0 esclarecimento da situagio, ‘mediante um tratamento pessoal reclpr0co, Direito Penal do Inimigo sa, a prisdo preventiva também nada significa para o imputado, mas frente a ele se esgota numa coacao fisica Isso, ndo porque o imputado deve assistir a0 processo - também participa no processo uma pessoa imputada, e por conviccao -, mas porque é obrigado a isso mediante seu encarceramento. Esta coagao nao se dirige contra a pessoa em Direito — esta nem oculta provas nem foge ~, mas contra o individuo, quem com seus instintos medos poe em perigo a tramitacao ordenada do proces- 80, isto 6, se conduz, nessa medida, como inimigo. A situagio € idéntica a respeito de qualquer coagao a uma ‘intervencao, por exemplo, a uma retirada de sangue (§ 81 a StPO), assim como a respeito daquelas medidas de supervisao das quais o imputado nada sabe no momento de sua execugdo porque as medidas s6 funcionam enquanto o imputado nao as conheca. Neste sentido, ha que mencionar a intervencao nas telecomuni- cages (§ 100 a StPO), outras investigacdes secretas (§ 100 ¢ StPO), e a intervencao de agentes infiltrados (§ 110 a StPO). Como no Direito penal do inimigo substantivo, também neste Ambito o que ocorre é que estas medidas nao tém lugar fora do Diteito; porém, os imputados, na medida em que se intervém em seu ambito, sao exclui- dos de seu direito: o Estado elimina direitos de modo juridicamente ordenado, De novo, como no Direito material, as regras mais extremas do processo penal do inimigo se dirigem a eliminagao de riscos terroristas. Neste contexto, pode bastar uma referéncia a incomunicabilidade, isto é, a eliminagéo da possibilidade de um preso entrar em contato ‘com seu defensor, evitando-se riscos para a vida, a integridade fisica ou a liberdade de uma pessoa (§§ 31 e ss. EGGVG). Agora, este somente é um caso extremo, regulado pelo Direito positive. O que pode suceder, a margem de um proceso penal ordenado, conhecido em todo o mundo desde os fatos do 11 de 40 Giinther Jakobs setembro de 2001: em um procedimento em que a falta de uma separacdo do Executivo, com toda certeza nao pode denominar-se um proceso judicial préprio, mas sim, perfeitamente, pode chamar-se um procedimento de guerra. Aquele Estado em cujo territério se comete- ram aqueles atos, tenta, com a ajuda de outros Estados, em cujos territérios até o momento — e s6 até o momento = nao tem ocorrido nada comparavel, destruir as fontes dos terroristas e dominé-los, ou, melhor, mata-los dire- tamente, assumindo, com isso, também o homicidio de seres humanos inocentes, chamado dano colateral. A ambigua posicao dos prisioneiros ~ delingiientes? pri- sioneitos de guerra? ~ mostra que se trata de persecucao de delitos mediante a guerra Direito Penal do Inimigo 41 5. Decomposicao: cidadaos como inimigos? Portanto, o Estado pode proceder de dois modos com os delingiientes: pode vé-los como pessoas que delingiiem, pessoas que tenham cometido um erro, ou individuos que devem ser impedidos de destruir 0 ordenamento juridico, mediante coagéo. Ambas pers- pectivas tém, em determinados ambitos, seu lugar legiti- mo, 0 que significa, ao mesmo tempo, que também possam ser usadas em um lugar equivocado. Como se tem mostrado, a personalidade, como construcao exclusivamente normativa, € irreal. 56 seré real quando as expectativas que se dirigem a uma pessoa também se realizam no essencial. Certamente, uma pessoa também pode ser construfda contrafatica- mente como pessoa; porém, precisamente, nao de modo permanente ou sequer preponderant. Quem nao presta uma seguranga cognitiva suficiente de um comporta- mento pessoal, no sé nao pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado nao deve trata-lo, como pessoa, j4 que do contrario vulneraria o direito & segu- ranca das demais pessoas. Portanto, seria completa- mente erréneo demonizar aquilo que aqui se tem denominado Direito penal do inimigo. Com isso nao se pode resolver o problema de como tratar os individuos 42 Ginter akobs que nao permitem sua inclusio em uma constituicao cidada. Como ja se tem indicado, Kant exige a separacao deles, cujo significado 6 de que deve haver protesao frente aos inimigos.*° Por outro lado, entretanto, em princfpio, nem tod delingiiente é um adversério do ordenamento jurfdico Por isso, @ iitroducao de um cemmuto=praticamnente ja inalcangavel ~ de linhas e fragmentos de Direito penal do inimigo no Direito penal geral é um mal, desde a perspectiva do Estado de Direito. Tentarei ilustrar 0 que foi dito com um exemplo" relativamente a preparacao do delito: 0 Cédigo penal prusiano de 1851 e 0 Cédigo penal do Reich de 1871, nao conheciam uma punigao de atos isolados de preparacao de um delito. Depois de que na «luta cultural» (Kulturkampf) — uma luta do Estado pela secularizacao das instituigdes sociais ~ um estran- geiro (0 belga Duchesne) ofereceu-se as altas instituigdes eclesidsticas estrangeiras (0 provincial dos jesutas na Bélgica e o arcebispo de Paris) para matar o chanceler do Reich (Bismarck), em troca do pagamento de uma soma consideravel, introduziu-se um preceito que ameacava tais atos de preparagao de delitos gravissimos, com pena de prisao de trés meses até cinco anos. No caso de outros delitos, com pena de prisdo de até dois anos (§§ 49 a, 16 RStGB depois da reforma de 1876). Trata-se de uma regulacao que - como mostram as penas pouco elevadas — evidentemente nao tomava como ponto de referéncia a periculosidade que pode vir a ser um inimigo, mas aquele que um autor ja tenha atacado até esse momento, ao realizar a conduta: a seguranca publica. Em 1943 (!) se agravou o preceito (entre outros aspectos) vinculando a pena ao fato planejado. Deste modo, o delito contra a 4 KANT, como na nota 18. 41 A respeito da historia do § 30 SIGB cfr, LK = ROXIN, n. m1 prévio ao 830. Direito Penal do Inimigo 43 seguranca ptiblica se converteu em uma verdadeira punicao de atos preparatérios, e esta modificagao nao foi revogada até os dias de hoje. Portanto, 0 ponto de partida ao qual se ata a regulagao é a conduta nao realizada, mas s6 planejada, isto é, nao o dano a vigéncia da norma que tenha sido realizado, mas o fato futuro. Dito de outro modo, o lugar do dano atual a vigéncia da norma € ocupado pelo perigo de danos futuros: uma regulagao propria do Direito penal do inimigo. O que, no caso dos terroristas - em princfpio, adversérios — pode ser adequado, isto é, tomar como ponto de referén- cia as dimensées do perigo, e ndo 0 dano a vigéncia da norma, jé realizado, se traslada aqui ao caso do planeja- mento de qualquer delito, por exemplo, de um simples roubo. Tal Direito penal do inimigo, supérfluo ~ a ameaca da pena desorbitada carece de toda justificagio =, € mais danoso para o Estado de Direito que, por exemplo, a falta de comunicagao antes mencionada,pois neste tiltimo caso, 56 nao se trata como pessoa ao ~ suposto ~ terrorista, no primeiro, qualquer autor de um delito em sentido técnico e qualquer indutor (§§ 12, pardgrafo 1°, 30 StGB), de maneira que uma grande parte do Direito penal do cidadao se entrelaca como Direito penal do inimigo 4 spesar de considerarse,geralmente, que vina delimitacio clara de atos preparatoros © tentativa constita tum postlado de primeira clase. mum Estado de Direto ests ausente qualquer Consideractocitca da punbilidade da preparacio dos delitos conforme o § 30 StGB, ma punibiidade que =a respelto dos delitos no caso de autoriae indugio ~ marginaliza quase por Completo a relevancia do limite; do nove, cf una posigae cilca 4 respeto em JAKOBS, Z51W, 97 (1985), p. 752 44 Giinther Jakobs 6. Personalizagao contrafatica: inimigos como pessoas A exposigao nao seria completa se nao se agregasse a seguinte reflexdo: como se tem mostrado, s6 é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, e isso como conseqiiéncia da idéia de que toda normatividade necessita de uma cimentagao cognitiva para poder ser real. E desta con- testacdo tampouco fica exclufdo o ordenamento jurfdico em si mesmo: somente se é imposto realmente, ao menos em linhas gerais, tem uma vigéncia mais que ideal, isto 6, real. Contrariamente a esta posigao se encontra, entre- tanto, na atualidade, a suposi¢ao corrente de que em todo o mundo existe uma ordem minima juridicamente vinculante no sentido de que nao devem tolerar-se as vulneracées dos direitos humanos elementares, inde- pendentemente de onde ocorram, e que, ao contrério, ha que reagir frente a tais vulneragées, mediante uma intervengéo e uma pena. O Tribunal para a antiga lugoslavia em Haia, 0 estatuto de Roma® e 0 Cédigo penal internacional" sao conseqiiéncias desta suposi- go. Ao se examinar com mais vagar a jurisdicao inter- 4 PublicagBes do Bundestag [Parlamento Federal alemso] 14/2682, p. 9 s. 4 Artigo 1” da Lei de introduglo de um Cédigo penal internacional de 26-6-2002, BGBI, p. 2254 Direto Penal do Inigo 45 nacional e nacional que com isso se estabelece, percebe- se que a pena passa de um meio para a manutengao da vigéncia da norma para ser um meio de criagio de vigéncia da norma. Isto nao tem por que ser inadequa- do, porém é necessério identificé-lo e processé-lo teori- camente. A seguir se tentard resolver essa tarefa Como ¢ sabido e nao necessita de referéncia algu- ma, em muitos lugares do mundo, ocorrem vulneragdes extremas de direitos humanos elementares. Agora, ali onde ocorrem, estas vulneracdes acontecem porque os direitos humanos naqueles lugares até 0 momento nao estavam estabelecidos no sentido de que fossem respei- tados em linhas gerais, pois ao contrario, também nesses territérios seriam entendidas as vulneragdes como per- turbagdes da ordem estabelecida e seriam sancionadas, sem necessidade de uma jurisdicao exterior. Portanto, sio alguns Estados ~ fundamentalmente, ocidentais - que afirmam uma vigéncia global dos direitos humanos, vigéncia que é negada no lugar dé comissio de atos, de maneira radical e exitosa, a0 menos por parte dos autores. Agora, 0 autor sempre nega a vigéncia da norma que profbe o fato a respeito da conduta que planeja; pois ao contrério, nio poderia praticar 0 ato. Em conseqiiéncia, parece que em todo caso - tanto no caso de uma vulneracao de direitos humanos em qualquer lugar do mundo como na hipétese bésica de um delito dentro do Estado - 0 autor se dirige contra a norma proibitiva e que a vigéncia da norma, afetada por ele, é confirmada em sua intangibilidade pela pena. Entretanto, esta equi- paracao suporia desconsiderar diferengas essenciais. Numa hipétese basica de um delito, em um Estado, em linhas gerais, num caso individual, uma ordem estabelecida é vulnerada. J4 existe um monopélio da violéncia a favor do Estado, e a este o autor esté submetido, também jé antes de seu ato. Kant formulou 46 Giinther Jakobs isto afirmando que no «estado comunitario-legal» a «autoridade» tem «poder» tanto sobre o autor quanto sobre sua vitima.‘ Portanto, trata-se de um estado de certeza, de que o Estado presta seguranca suficiente para as expectativas normativas da vitima frente ao autor, de modo que, se, apesar disso se produz um fato, este aparece como peculiaridade que nao deve conside- rar no célculo cognitivo, podendo ser neutralizada me- diante a imputagao ao autor e sua punigao. Esta breve consideracao a respeito da situagéo em um estado de vigéncia real do ordenamento juridico, isto é, no Estado em funcionamento, hé de bastar. A situacao € distinta no que tange a vigéncia global dos direitos humanos. Nao se pode afirmar, de nenhum modo, que exista um estado real de vigéncia do Direito, mas téo-s6 de um postulado de realizacao. Este postula- do pode estar perfeitamente fundamentado, mas isso nao implica que esteja realizado, do mesmo modo que uma pretensao juridico-civil no se encontra realizada 86 porque esteja bem fundamentada. Dito de outro modo: nesta medida, nao se trata da manutengao de um «estado comunitadrio-legal», mas, previamente, de seu estabelecimento, A situagdo prévia a criaco do estado «comunitério-légal» 6 0 estado de natureza, e neste nao a personalidade. Em todo caso, nao existe uma perso- “Talidade~assegurada. Por isso, frente aos autores dé vulneracoes dos direitos humanos, os quais, por-sua~~ parte, tampouco oferecem uma seguranga suficiente de ser pessoas, de per si permite-se tudo o que seja necess4- rio para assegurar o Ambito «comunitario-legal», e isto é de fato o que sucede, conduzindo primeiro uma guerra, nao enviando como primeiro passo a policia para execu- tar uma ordem de detengao, Agora, uma vez que se tem © infrator, trocam-se 0 Cédigo Penal e o Cédigo de * Como na nota 18. Direto Penal do Inimigo a7 Processo Penal, como se fosse um homicidio por raiva ou de conflitos cidadaos parciais destas caracteristicas. Portanto, declara-se ser 0 autor uma pessoa para poder manter a ficgao da vigéncia universal dos direitos huma- nos. Seria mais sincero separar esta coacao na criacio de uma ordem de direito a manter uma ordem: 0 «cidadao» Milosevic faz parte daquella sociedade que 0 coloca ante um tribunal como 0 era 0 «cidadao» Capeto. Como é evidente, nao me dirijo contra os direitos humanos com vigéncia universal, porém seu estabelecimento é algo distinto de sua garantia. Servindo ao estabelecimento de uma Constituigéo mundial «comunitério-legal», deveré castigar aos que vulneram os direitos humanos; porém, isso ndo é uma pena contra pessoas culpaveis, mas contra inimigos perigosos, e por isso deveria chamar-se a coisa por seu nome: Direito penal do inimigo. 48 Giinther Jakobs 7. Resumo A. A fungio manifesta da pena no Direito penal do cidadao € a contradigao, e no Direito penal do inimigo é a eliminagio de um perigo. Os correspondentes tipos ideais praticamente nunca aparecerao em uma configuracao pura. Ambos os tipos podem ser legitimos. B. No Direito natural de argumentagio contratual estrita, na realidade, todo delingtiente é um inimigo (Rosseau, Fichte). Para manter um destinatério para expectativas normativas, entretanto, é preferfvel man- ter, por princfpio, o status de cidadao para aqueles que nao se desviam (Hobbes, Kant). C. Quem por principio se conduz de modo desvia- do, nao oferece garantia de tim comportamento pessoal. Por isso, néo pode ser tratado como cidadao, mas deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legitimo direito dos cidadaos, em seu direito seguranga; mas diferentemente da pena, nao é Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrario, © inimigo € excluido. D. As tendéncias contrérias presentes no Direito material - contradicao versus neutralizacao de perigos - encontram situagdes paralelas no Direito processual. E. Um Direito penal do inimigo, claramente delimi- tado, é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado Direito Penal do inimigo 49 de Direito, que entrelagar todo 0 Direito penal com fragmentos de regulacdes proprias do Direito penal do inimigo. F. A punigao internacional ou nacional de vulnera- ges dos direitos humanos, depois de uma troca politica, mostra tracos préprios do Direito penal do inimigo, sem ser 86 por isso ilegitima. _— «Direito Penal» do Inimigo? MANUEL CANCIO MELIA 50 Ginter Jabs 1. Introdugao Simplificando bastante para tentar esbocar os tra- 0s basicos do quadro, pode-se afirmar que nos tiltimos anos os ordenamentos penais do «mundo ocidental» tém comecado a experimentar um desvio que os conduz, de uma posigao relativamente estéttica, dentro do nticleo duro do ordenamento juridico - em termos de tipo ideal: um niicleo duro no qual iam se fazendo adaptagdes setoriais com todo cidadao, e no qual qualquer mudanga de direcao era submetida a uma intensa discussao politi- cae técnica prévia ~ na diregdo de um lugar arriscado na vanguarda do dia-a-dia juridico-politico, introduzin- do-se novos contetidos e reformando-se setores de regulacdo j4 existentes com grande rapidez, de modo que os assuntos da confrontacao politica cotidiana chegam em prazos cada vez mais breves também ao Cédigo penal As mudaneas frente a praxis politico-criminal, habi tuais até o momento, nao s6'se referem aos tempos e ds formas, mas também os contetidos vao alcangando pau- latinamente tal grau de intensidade que se impde for- mular a suspeita — com a vénia de Hegel ~ de que assistimos a uma mudanga estrutural de orientacao. Este cambio cristaliza, de modo especialmente chamativo = como aqui se tentara mostrar ~ no conceito do «Direito penal do inimigo», cuja discussao foi recentemente Direito Penal do Inimigo 53 (re-) introduzida por Jakobs,! de modo um tanto maca- bra avant Ia lettre (das conseqiiéncias) de 11 de setembro de 2001. No presente texto, pretende-se examinar, com toda brevidade, este conceito de Direito penal do inimigo, para averiguar seu significado para a teoria do Direito penal e avaliar suas poss{veis aplicacdes politico-crimi- nais. Por isso, em um primeiro passo, tentar-se-A esbogar a situago global da politica criminal da atualidade (infra M1). A seguir, poderao ser abordados o contetido e a relevancia do conceito de Direito penal do inimigo (infra). A tese a que se chegaré é que o conceito de Direito penal do inimigo supde um instrumento idéneo para descrever um determinado ambito, de grande relevan cia, do atual desenvolvimento dos ordenamentos jurfd co-penais. Entretanto, como Direito positivo, 0 Direito penal do inimigo s6 integra nominalmente o sistema juridico-penal real: «Direito penal do cidadao» é um pleonasmo; «Direito penal do inimigo», uma contradi- do em seus termos 1 Cir. JAKOBS, em: Consejo General del Poder Judicial/Xunta de Galicia (ed. Estudios de Derecho judicial nim. 20, 1999, p. 137 ess. (= La ciencia del Derecho penal ante las exigencies del presente, 2000); idem, em: ESER/ HASSE: MER/BURKHARDT (ed), Die Deulsche Strafechtissenscha? vor der Jahrtau sendusende. Rickbesinnung. und Ausbick, 2000, p.47 es, 51 e ss. (= tomo no prolo para a traducao espanhola, ed. a cargo de MUNOZ CONDE [em ed. Tirant lo Blanch) vd. proximamente também idem, em: idem, Sobre la norm tivizacion de la dogmaten jurtta-penal, 2ILC (no prelo para a ed. Civitas); © coneeito f0j introdueido pela primeira vex por Jakobs no debate em set escrito publicado em ZStW (1985), p. 753 e ss. (= Estudios de Derecho penal, 1997, p. 298 88): fr. também idem, Strafrecht. Aligemeiner Tel. Die Grundlagen und ‘die Zurechnungslebre, 2 ed., 1991 (= Derecho penal, Parte General. Los fandamentosy I teora de la imputaci, 1995), 2/25. 54 ‘Manuel Cancio Melié 2. Sobre o estado atual da politica criminal. Diagnostico: a expansao do Direito Penal 2.1, Introdusao As caracteristicas principais da politica criminal praticada nos iiltimos anos podem resumir-se no concei- to da «expansio» do Direito penal.* Efetivamente, no 2 Um termo que tem utilizado SILVA SANCHEZ em uma monografia, de grande repercussi0 na discussio ~ apesar de que a data de publicacio é Fecente ~, dedicada a caracterizat, em seu conjunto, a politica criminal das Sociedades pés-industriais (La expansion del Derecho penal. Aspects dela pol tien criminal en las soiedades postndustriaes, 18 edig80, 1999, 28 edicd0, 2001, passim); acerca da evolugio geral da politica criminal nos dltimos anos, cfr. fambém as exposigoes criticas dos autores da escola de Frankfurt recolhidas fem: Institut fr Kriminalwiessenschaften Frankfurt a. M. (ed), Vor unmdgh ‘chen Zustand des Strafrects, 1995 (= A insustentdvelsituagdo do Direto pena, 2000); cfr. também as contribuigBes reunidas em LUDERSSEN (ed), Aufgek lirte Kriminalpoltik oder Kamp gegen das Base, cinco tomos, 1998. Desde logo, ‘so os estudos tracados desde essa perspectiva tedrica dos que em muitos ‘casos tenham contnibufdo a por em marcha a discussao; cfr. também a erica de SCHUNEMANN, GA 1995, p. 201 e ss. (= ADPCP 1995, p. 187 e ss. 3 respeito, vid, também, por todos, a andlise critica do potencial da aproxima {ho «pessoal 8 teoria do bem juridico—essencial nas construgbes dos autores, fe Frankfurt ~ desenvolvido por MUSSIG, RDPCr 9 (2002), p. 169 e ss. (= Desmateralizagao do em juridico eo fundamentos de uma teora do bem juridico crflca em relgio 20 sistema, 2001, passim). Na bibliografia espanhola mais recente, cf. 6 08 trabalhos de SANCHEZ GARCIA ‘DE PAZ , EI moderno Derecho penal y la anticipacion de la tela penal, 1999, passim; MENDONZA Direito Penal do inimigo 55 momento atual pode ser adequado que o fenémeno mais destacado na evolugao atual das legislagdes penais do «mundo ocidental» esté no surgimento de miltiplas figuras novas, inclusive, as vezes, do surgimento de setores inteiros de regulac4o, acompanhada de uma atividade de reforma de tipos penais j4 existentes, realizada a um ritmo muito superior ao de épocas anteriores. O ponto de partida de qualquer andlise do fenéme- no, que pode denominar-se a «expansao» do ordena- mento penal, esté, efetivamente, em uma simples constatacao: a atividade legislativa em matéria penal, desenvolvida ao longo das duas tiltimas décadas nos pafses de nosso entorno tem colocado, ao redor do elenco nuclear de normas penais, um conjunto de tipos penais que, vistos desde a perspectiva dos bens juridicos classicos, constituem hipoteses de «criminalizacéo no_ estado prévio» a lesdes de bens juridicos,> cujos marcos penais, ademais, estabelecem sangdes desproporcional- mente altas. Resiimindo: na evolucao atual, tanto do “Direito penal material, como do Direito penal proces- sual, pode constatar-se tendéncias que, em seu conjunto, fazem aparecer no horizonte politico-criminal os tragos BUERGO, El derecho penal em Is socio de riesgo, 2001, passim; ZUNIGA RODRIGUEZ, Plticacriinal, 2001, p. 252 e se Desde outa perspectivs, mais ampla no tempo, od. A‘ andlise da orentagio socioldgicn acerca da expansio’ como lei de evolugso dos sistemas penas feito por MULLER” TUCKEELD, Icyrationspriention.Struion su einer Theorie der gesellchfi cen Funktion des Strafects, 1988, p. 178 es, 385. Adota uma posiglo pelt tico-eriminal de orientagio completamente divergente da das vones cricas antes cltadas = como jd mostra de mod elogdenteo titulo ~ agora GRACIA MARTIN, Prolggimenos parla lcha por a madernzacny expansio dei Derecho penal y pra a erica del seuss de rsstencl. Aa ex a hp de taboo Sobre et concpto de Derecho penal moderna em cl materalismo storico de onde del aiscurso de a criminal, 2003; od, também, relativizando a ustifcagso do diseurso globalmente erica, ecentemente POZUELO PEREZ, RODD. 9 (2003), p. 13 es. 3 Cir, JAKOBS, Z51W, 97 (1985), p75 56 ‘Manuel Cancio Melié de um «Direito penal da colocacao em risco» de carac- teristicas antiliberais> 2.2. Os fendmenos expansivos Em primeiro lugar, trata-se de esbogar uma ima- gem mais concreta desta evolucio politico-criminal atual. Desde a perspectiva aqui adotada, este desenvol- vimento pode resumir-se em dois fendmenos: o chama- do «Direito penal simbélico» (infra A) e 0 que se pode denominar «ressurgir do punitivismo» (infra B). Em todo caso, deve sublinhar-se, desde logo, que estes dois conceitos sé identificam aspectos fenotipicos-setoriais da evolucio'global e nao aparecem de modo clinicamen- te «limpo» na realidade legislativa (infra C). Ambas as linhas de evolugao, a «simbdlica» e a «punitivista> - esta Berea Tse a expor aqui =-constituem a linhagem do Direito penal do inimigo. 5é considerando esta filiagao na politica criminal moderna poderd apreender-se o fend- meno que aqui interessa (no qual se entraré infra Il). 2.2.1. O Direito penal simbélico Particular relevancia diz respeito, em primeiro lu- gar, aqueles fendmenos de neocriminalizagao a respeito dos quais se afirma, criticamente, que t4o-s6 cumprem efeitos meramente «simbdlicos».’ Como tem assinalado 4 Sobre este conceito exaustivamente HERZOG, Gesllschafiliche Unicherheit und strafecliche Daseinsisorge, 2001, p. 50 ess. 5 Vid, por exemplo, HASSEMER, em: PHILIPPS etal. (e.), Jenseits des Funk tionalisnus. Arthur Kaugmarnn sum 65. Guburistag, 1989, p85 ess. (p. 88); idem fem: JUNG/MULLER-DIETZ/NEUMANN (ed.), Recht wnd Moral. Beitrige 2u tine Standoritestimmung, 1991, p. 329 e ss; HERZOG, Unischerhet (nota 4), p. 65 ss ALBRECHT, em: Institut fir Kriminalveissensehaften Frankfurt 5.M. (ed), Zustand des Strafechis (nota 2) p. 429 y ss. © Vid, sobre esta nocio, por todos, as amplas referéncias e classiicagdes contidas em VOB, Symbolische Gesetagebung. Fragen zur Rationaitit von Straf- ‘gestagebungsalten, 1989, passim eff. também, mais sucintamente, SILVA Direito Penal do Inimigo 57 Hassemer, desde 0 principio desta discussao, quem Felaciona 0 ordenamento penal com elementos «simbél COs» pode criar a suspeita de que nao considera a dureza muito real e nada simbélica das vivencias de quent se ve submetido a persecucio penal, detido, processado, actr sado, condenado, encarcerado.’ Isto 6, aqui surge, ime- diatamente, a idéia de que se inflige um dano concreto com a pena, para obter efeitos um pouco mais que simbélicos. Portanto, para se poder abordar o conceito, ha que recordar, primeiro, até que ponto o moderna princfpio politico-criminal de que sé uma pena social- mente util pode ser justa, tenha sido interiorizado (em diversas variantes) pelos participantes no discurso poli- tico-criminal. Entretanto, apesar desse postulado (de que se satisfaz um fim, com a existéncia do sistema penal, que se obtém um resultado concreto e mensuré- vel, ainda que s6 seja — no caso das teorias retributivas — a realizacao da justica), os fendmenos de carater simb6- lico fazem parte, de modo necessério, do entrelagamento do Direito penal, de maneira que, na realidade, é incor- reto_o discurso_do «Direito_penal_simbélico» como “Fenmeno estranho ao Direito penal. Efetivamente: des- de perspectivas bem distintas, desde a «criminologia critica» - e, em particular, desde o assim chamado enfoque do labeling approach® ~ que dé importancia as condigées da atribuigo social da categoria «deliton, até a teoria da prevengio geral positiva, que entende delito e pena como seqiiéncia de posicionamentos comunicati SANCHEZ, Aproximacion al Derecho penal contempordneo, 1992, p. 304 e $8, PRITIWTTZ, Strajecht und Risto, Untersuchungen 2ur Krise von Strafecht und Kriminalpoitik in der RisRogeselshaf, 1993, p_ 253 e 28; SANCHEZ GARCIA DE PAZ, Antecipacién (nota 2), p. 6 e ss; DIEZ RIPOLLES, AP 2001, p. 1 8. (= ZStW 113 [2001], p. 516 e ss), todos com referéncias ulteriors. 7 NSIZ, 1989, p. 559 ess (PeE 1 [1991], p.23 e ss.) 8 Vid. por todas as referencias em VOB, Symbolische Gesetzgebung (nota 6), p. Wess 58 ‘Manuel Cancio Melié vos a respeito da norma:’ os elementos de interacao simbélica s40 a mesma esséncia do Direito penal." En- to, o que quer dizer-se com a critica ao cardter simb6- lico, se toda a legislagao penal, necessariamente, possui caracteristicas que se podem denominar de «simbéli- cas»? Quando se usa em sentido critico 0 conceito de Direito penal simbédlico, quer-se, entao, fazer referéncia_ a que determinados agentes politicos téo-s6 perseguem, “0 objetivo de dar a «impressao tranqililizadora.deum_ legislador atento e decidido»,"' isto é, que predomina uma funcdo Jatente sobre a manifesta. Mais adiante po- deré fazer-se alguma consideragao acerca de outras fun- ges latentes do Direito penal simbélico, manifestadas em seu descendente, o Direito penal do inimigo.'? Na «Parte Especial» deste Direito penal simbélico, tem uma relacao de especial relevancia — por mencionar 86 este exemplo -, em diversos setores de regulacao, certos tipos penais nos quais se criminalizam meros atos, _de comunicacao, como, por exemplo, os delitos de insti=~ gacao a0 dio racial ou os de exaltagao ou justificagao de autores de determinados delitos.? 9JAKOBS, AT2, ess; vd. também BARATA, PeE, 1 (199), p. 52, €a expo- sigdo de SANCHEZ GARCIA DE PAZ, Anticpacin (nota 2) p. 90.e ss. em toro as relagdes entre Direito penal preventivo e Direito penal simbélico, 10Cfr, por todos, DIEZ RIPOLLES, AP, 2001, p. 4 ess 1 SIVA SANCHEZ, Aproximacién (not 6), p. 305. 2 Iya IL 28, Cir, por exemplo, a respeito dos delits de Iuta contra a discriminaclo, ulkimamente LANDA GOROSTIZA, IRPL/RIDP, 73, p. 167 ess. com ulterio- res referencias, Vid. Também acerca deste tipo de infragdes CANCIO MELIA, fem: JAKOBS/CANCIO MELIA, Conferencias sobre temas penal, 2000, p. 139 fs idem, JpD, 44 (2002), p. 26. No Direito comparado, contrariamente & Tegitimidade dos preceitos anélogos do Cdigo penal alemdo, cf. 36 a cor tundente erica de JAKOBS, 21, 97 (19859) po 751 sz considera, de todo modo, que no caso do ordenamento alemdo a cl4usula que refere estas condutss 4 perturbagia de ordem publica ps seleggo das Sn “Yas em questso, em funcio da gravidade socal desas- ‘Fingido lambennesee pals vores que --male além as consderagBes de JAKOBS acabadas de citar ~ poe em duvida a adequacao do ordenamento DireitoPenaldotnimigo 59 2.2.2. O ressurgir do punitivismo Entretanto, reconduzir os fenémenos de «expan- so» que aqui interessam de modo global sé a estas hipoteses de promulgacao de normas penais meramente simbélicas, nao atenderia ao verdadeiro alcance da evo- lugao. Isto porque o recurso ao Direito penal nao s6 aparece como instrumento para produzir tranqiiilidade mediante 0 mero ato de promulgacao de noras eviden- temente destinadas a nao ser aplicadas, maS_que_em_ segundo lugar, também existem processos de criminali- zacao « moda antiga». Estes se verificam com a Intro- dugéo de normas penais novas com o intuito de Ppromover sua efetiva aplicagéo com toda firmeza, isto é, verificam-se processos que conduzem a normas penais novas para serem aplicadas," ou se verifica o endureci- mento das penas para normas jé existentes. Deste modo, inverte-se 0 proceso havido nos movimentos de refor- ma das tiltimas décadas ~ na Espanha, depois de 1978 - em que foram desaparecendo diversas infracdes. Recor- de-se s6 a situagio do Direito penal em matéria de condutas sexuais ~ que j4 nao se consideravam legiti mas. Neste sentido, percebe-se a existéncia, no debate politico, de um verdadeiro «clima punitivista»:}> 0 recur- so a um incremento qualitativo e quantitativo no alcance da criminalizagéo como tinico critério politico-criminal; um ambiente politico-criminal que, desde logo, nao carece de antecedentes. Porém, estes processos de criminalizagao = isto é novo ~ em muitas ocasides se produzem com penal neste contexto: vid, por exemplo, SCHUMANN, StV, 1993, p, 324 € 88 AMELUNG, ZSIW 92 (1980), p. 55 e ss. Ante o consenso politico que incitam festas normas no caso alemdo, resulta significative que o antecedente da in fragio esté no delito de eprovocacio 3 Tuta de classes»; vid LK! ~ v. BUB- OFF, comentario previo aos 85 125 ¢ 85 14 Embora se possa observar que em muitos casos se produz uma aplicago seletiva 45 Cir. CANCIO MELIA, em: JAKOBS/CANCIO MELIA, Conferencias (nota 13), p- 131 e 5, 135 ess 60 ‘Manuel Cancio Melié coordenadas polfticas distintas distribuigao de fungdes tradicionais que poderiam resumir-se na seguinte f6r- mula: esquerda_politica-demandas de descriminaliza: 40/ direita politica-demandas de criminalizacdo."® Neste Sentido, parece que se trata de um fendmeno que supera, em muito, o tradicional «populismo» na legislagao penal. No que tange a{esquerda politica\é chamativa a mudanga de atitude: de uma linha - de forma simples, é claro - que identificava a criminalizagao de determina- das condutas como mecanismos de repressio para a manutengao do sistema econémico-politico de domina- do,” a uma linha que descobre as pretensdes de neocri- minalizacao, especificamente de esquerda:!* delitos de discriminagao, delitos nos quais as vitimas sao mulheres maltratadas, etc.'° Entretanto, evidentemente, 0 quadro estaria incompleto se nao fizéssemos referencia a uma mudanga de atitude também da| direita politica:\ no contexto da evolucdo das posigées destas forcas, tam. bém em matéria de politica criminal, ninguém quer ser «conservador», mas «progressista» (ou mais) que todos (0s demais grupos (= neste contexto: defensivista). Neste 16 Assim, por exemplo, sublinha SCHUMANN a respeito das infagBes na Grbita de nanfestarbes neonarstae ue ext Un conenso esquerda- deta fa hora de reclamat a intervengio do Ditelto penal, St, 1988, p. 324. Vid reste sntido, lem diss, ab conseragdes sobre as demandas de criminal Tagto da soctal democraca européia em SILVA SANCHEZ, La expansion (p Gnas trates de uma situngho na qual qualquer coetivo tem suas Pe fensdes de eiminalizagto frente ao lepislador Penal: cf. 2 exposigao sinto- mndtea de ALBRECHT em: Vom uitiglichen Zustand (ota 2), p. 425; 0 Tespato da persecuo define a chamarda moral fazendo uso da legislagto penal 6 VOD, Symbolsche Gesezgebung (nota 6), p. 28688 17 Vid SILVA SANCHEZ, Le expmsin (nota 2), p. 57 es. aceca desta toca de orlentagso; movimento paraelo nas cencis pena: ciminologia cca evn peeensbesabolciontsas vid somente a panoramicatragada por SILVA SANCHEZ, aprosimacn (nota 6), p.18 es 18 .cGo and tell a worker robbed of hs week's wages or raped woman that crime doesn't ens, fase signfcaiva do crimindlogo YOUNG citada por SILVA SANCHEZ, Aproximacion (NOTA 6) p-23 nota 36 19 Vid, sobre isto, com particular referencia social democracia européia, SILVA SANCHEZ La cxponsdn (nota 2), p69 ss, com ulteriores referencias. Direito Penal do Inimigo 61 sentido, a direita politica — em particular, refiro-me a situagdo na Espanha ~ tem descoberto que a aprovacao de normas penais é uma via para adquirir matizes politicas «progressistas».2? A esquerda politica tem_ aprendido o quanto rentavel pode resultar o discurso Taw and order, antes monopolizado pela direita politi Esta se soma, quando pode, a habitualidade politico-cri- minal que caberia supor, em principio, pertencentemen- te a esquerda, uma situagio que gera uma escala na qual ninguém esta disposto a discutir, verdadeiramente, questdes de politica criminal no ambito parlamentar ¢ na qual a demanda indiscriminada de maiores e «mais efetivas» penas ja nao é um tabu politico para ninguém. © modo mais claro de apreciar a dimensao deste fendmeno quigé esteja em recordar que, inclusive, con- duz a reabilitacao de nocdes - abandonadas ha anos no discurso té6rico dos ordenamentos penais continentais ~ _como a inocuizacao.”" - Neste sentido, parece evidente, no que se refere A. realidade do Direito positivo, que a tendéncia atual do legislador £4 de reagir com hi que se considera, como antes se term dito, que a mera existéncia do Ditelto penal do inimigo pode representa em Slguma ocasito, um éxito de propaganda politica parca, precisamente, para o Sinimigos; sobre a falta de eletvidade ft. somente #E1J00 SANCHEZ, RJUAM, 4, (2001), p. 50 e sy a reapeito do caso concreto da introdugd0 do chamado sterrorsmo individuals no CP de 1995, cf, por exemplo, aanslise das conseguneiascontaproducenteslevadas a ceio por ASUA BATARRT- ‘TA (em: ECHANO BASALDUA [eoord:], Estudos juries na memeria de Jose MP Lidon, 2002 p. 68, ota 38). Direto Penal do inimigo 73 interna ao sistema juridico-penal, em sentido estrito: 0 Direito penal (faticamente existente) integra, conceitual- mente, 0 Direito penal? Com esta formulacao, como ¢ evidente, implica que a utilizagao do conceito considere, sobretudo, uma des. crigao: a’ valoracao (politica) cai por seu préprio peso, uma vez dada a resposta. Deste modo, introduz-se a questo, amplamente discutida, acerca de se este tipo de concepcdes pode legitimamente levar a cabo tal descri- 80, ou se, ao contrério, todo trabalho teérico neste contexto oferece sempre, ao mesmo tempo, uma legiti- macao. A este respeito s6 hé que se anotar aqui que na discussao incipiente em torno da idéia de Direito penal do inimigo, desde o principio se percebem, as vezes, tons bastante rudes, que se dirigem, em particular, “contra a mera (re) introducao do par conceitual Direito, penal do cidadao e do inimigo por Jakobs. Sem preten- ‘der reformular aqui a discussdo global em torno do significado do sistema dogmético desenvolvido por Ja- kobs, sobre sua compreensao como descricao ou legiti- mao, sim hé que indicar que aquelas posigdes que enfatizam os possiveis «perigos», {nsitos na concepcao de Jakobs, nem sempre consideram, de modo suficiente, que essa aproximacao, tachada de estruturalmente con- servadora ou, inclusive, autoritéria, jé tem produzido, em varias ocasides, construgdes dogmaticas com um alto potencial de recorte da punibilidade. Um pequeno 58 Expaem e deluam abeta esta questo, tanto JAKOBS (em: ESER/ HASSE. MER/BURKHARDT [ed], Strafrchtorsenschaft [notal],p. 50) como SILVA ‘SANCHEZ (La expansion {nota 2, p. 166) 59 Cit. a respeit, proximamente, de novo, 0 préprioJAKOBS, em: idem, Sobre la normatezacin de a doc urdu pnal, 2 (no prelo pars a ES. Civitas); id, quanto. 20. mais, somente PENARADA RAMOS/SUAREZ GONZA- LEZ/CANCIO MELIA, em: JAKOBS, Estudios de Derecho penal, 1997, p. 17 5, 22. 98; ALCACER GUIRAO, AP, 2001, p. 229 ss, 242 es idem, Lesion Ae bien jurdico oles de deber? Apuntes sobre cl concepto material de dlito, 2003, passim, com anteriores referencias. 74 ‘Manuel Cancio Melié exemplo, precisamente relativo a0 Direito penal do inimigo: segundo Mufoz Conde, no que tange ao conceito de Direito penal do inimigo, e considerando o grande eco da teoria de Jakobs na América latina," & necessério sublinhar que essa aproximagao tedrica ndo é _ideologicamente inocente», precisamente em paises, ‘como Colombia, nos quais «esse Direito penal do inimi- “go é praticado». Com toda certeza, qualquer concepcao teérica pode ser corrompida ou usada para fins ilegiti- mos; ndo se pretende aqui negar essa realidade. Porém, € um fato que a Corte Constitucional colombiana tem declarado recentemente inconstitucional - aplicando, expressamente, 0 conceito de Direito penal do inimigo, desenvolvido por Jakobs ~ varios preceitos penais pro- mulgados pelo presidente. Concluindo: nao existem concepcdes te6ricas (estritamente juridico-penais) que tornem invulneravel um ordenamento penal, frente a evolugées ilegitimas.* ‘A resposta que aqui se oferece é: nao. Por isso, propor-se-do duas diferencas estruturais (intimamente relacionadas entre si) entre «Direito penal» do inimigo e Direito penal: a) o Direito penal do inimiga nao estabil za formas (prevencao geral positiva), mas denomina determinados grupos de infratores; b) em conseqiiéncia, © Direito penal do inimigo nao é um Direito penal da ‘ato, mas do autor. Ha que ser enfatizado, de novo, que estas caracteristicas nao aparecem com esta nitidez pre- (69 Em: BARQUIN/SANZ/OLMEDO CARDENETE, Conversagdes: Dr. Fran- cisco Muftoz Conde, RECPC 04 2 (2002) [http:/ /criminet.ugr-es/reepc. 1 Esta influ’ncia também é constatada, em termos similares e com preocu- pacio, por AMBOS, Valkerstafrecht (nota 34), p. 64 £2 Acordia C- 939/02 de 31-10-2002, relator Montenlegre Lynett. Uma questio distinta 6, naturalmente, que efeito prético terd isto no desenvolvimento da tual guerra civil na Colombia; provavelmente, exatamente © mesmo que luma solene proclamagio do principio de ultima ratio. {3 Vid, CANCIO MELIA, em: JAKOBS/CANCIO MELIA, Conferéncias (nota 13), p.139@ 5,147. Direito Penal do inimigo B to no branco, no texto da Lei, mas que se encontram sobretudo em diversas tonalidade cinzentas. Porém, pare- ce que conceitualmente pode-se tentar a diferenciacao. 3.2.2. O Direito penal do inimigo como reagao internamente disfuncional: divergéncias na fungao da pena Quando se argumenta que os fendmenos, frente aos quais reage 0 «Direito penal do inimigo», a existéncia da sociedade, ou que é idigao de pessoa o que gera uma necessidade de proporcionar uma especial seguranca cognitiva frente a tais sujeitos, ignora-se, em primeiro lugar, que a percepcao dos riscos ~ como é sabido em sociologia ~ é uma construcao social que nao esta rela cionada com as dimensdes reais de determinadas amea- cas." Desde a perspectiva aqui adotada, também neste caso se dé essa disparidade. Os fendmenos, frente ao: quais reage o «Direito penal do Tnimigon, nao tem. especial «periculosidade terinirial® (para a sociedade), ‘como Sé apregoa deles. Ao menos éiitre os «candidatos» a «inimigos» das sociedades ocidentais, nao parece que possa apreciar-se que haja algum — nem a «criminalida- de organizada» nem as «méfias das drogas», e tampouco o ETA ~ que realmente possa por em xeque ~ nos termos «militares» que se afirmam — os parametros fundamentais das sociedades correspondentes em um futuro previsivel. Isto é especialmente claro quando se compara a dimensao meramente numérica das lesGes de bens juridicos pessoais experimentadas por tais condu- | tas delitivas com outro tipo de infracdes criminais que se 654 Cfr. as consideragbes do proprio SILVA SANCHEZ, Le expansion (nota 2), p. 32\e 35, acerca da ssensnqa0 social de insegutangam; eft. também MEN: BONZaA BUERGO, Sociedad de riesgo (nota 2), p. S0e ss. ambos com anteriores roferéncias, 76 Manuel Cancio Melié , Sao perigos Pro A pepet eae y cometem de modo massivo e que entram, em troca, plenamente dentro da «normalidade». Entao, 0 que tém de especial os fenémenos frente aos quais responde o «Direito penal do inimigo»? Que caracterfstica especial explica, no plano fatico, que se reaja precisamente desse modo frente a essas condutas? Que funcdo cumpre a pena neste Ambito? A resposta a esta pergunta estd em que se trata de comportamentos delitivos que afetam, certamente, os lementos essenciais e especialmente vulnerdveis da “identidade das sociedades questionadas. Porém, nao no "Sentido entendido pela concepgao antes examinada — no sentido_de_um risco fatico extraordinario para esses €lementos essenciais -, mas antes de tudo, como antes se tem adiantando, em um determinado plano simbélico.® E ‘sabido que precisamente Jakobs representa uma téoria do delito e do Direito penal na qual ocupa um lugar proeminente - dito de modo simplificado, € claro - 0 entendimento do fenémeno penal como pertencente a0 mundo do normativo, dos significados, em oposigao ao das coisas. Desta perspectiva, toda infragao criminal supde, como resultado especificamente penal, a quebra_ da norma, entendida esta como a colocacéo em diivida da vigéncia dessa norma: prevencdo geral positiva. Pois bem, estes casos de condutas de «inimigos» se caracterizam por produzir esse rompimento da norma a respeito de configuracées sociais estimadas essenciais, mas que sao especialmente vulnerdveis, mais além das lesdes de bens juridicos de titularidade individual. As- sim, nao parece demasiado aventurado formular varias ° Ci, supra IIL2.B.b). No lado da percepeto dos «inimigos», por exemplo GARCIA SAN PEDRO, Terrorismo: aspectos criminolOgicos y legales, 1983, . 139 e ss, caracteriza o terrorismo como «violencia simbdlica»; vil, por todos, nesta linha, SCHERER, Zukunft des Terrorismus (nota 50), P. 17 €5., com ulteriores referéncias. (66 Vid. somente JAKOBS, AT2, 1/4 e 8, 2/16, 2/25, 25/15, 25/20. Direto Penal do Inimigo 7 hipéteses neste sentido: que o punitivismo existente em matéria de drogas pode estar relacionado, nao s6 com as evidentes conseqiiéncias sociais negativas de seu consu- mo, mas também com a escassa fundamentagao axiolé- gica e efetividade das politicas contra seu consumo nas sociedades ocidentais-que a «criminalidade organiza- da», nos paises nos ‘qa existe como realidade signi! cativa, causa prejuizos a sociedade em seu conjunto, incluindo também a infiltragdo de suas organizacdes no tecido politico, de modo que ameaga nao s6 as financas piblicas ou outros bens pessoais dos cidadaos, mas a0 proprio sistema politico-institucional; que o ETA, final- mente, Mo s6 mata, fere e seqiiestra, mas pde em xeque um consenso constitucional muito delicado e frégil no que se refere a organizagao territorial da Espanha. Se isto é assim, quer dizer, se é certo que a caracte- ristica especial das condutas frente as quais existe ou se reclama «Direito penal do inimigo» est em que aletam elementos de especial vulnerabilidade na identidad social, a resposta juridico-penalmente funcional nao, pode estar na troca de paradigma que supde o Direito penal do inimigo. Precisamente, a resposta idénea, no plano’ simbélico, ao questionamento de uma norma essencial, deve estar na manifestagao de normalidade, na negagio da excepcionalidade, isto 6, na reacao de acordo com critérios de proporcionalidade e de imputagdo, os » quais esto na base do sistema juridico-penal «normal». Assim, se nega ao infrator a capacidade de questionar, precisamente, esses elementos essenciais ameacados.” & s respeito das intragdes de terroismo, assinala, por exemplo, ASUA BA- TARRITA (em: ECHANO BASALDUA [eoord.], EM Lindén {nota 56], P. 47) gue «a reprovagio indiscriminada dos métedos violentose de sua ideologia favorece a tese daqueles que optam pelo metodo de terror, no propésito de sm identificados e nomeados por suas ‘elas e no por seus crimes; @ respetto da wideologia da normalidader como base (as veres, s6 nominal) da regulacio espanhola em matéria de terroriamo, tif. CANCIO MELIA, JpD, 44 (2002), p. 23 ess, com referencias 78 Manuel Cancio Melia Dito desde a perspectiva do «inimigo», a pretendida auto-exclusao da personalidade por parte deste - mani- festada na adesdo a «sociedade» mafiosa em lugar da sociedade civil, ou no rechaco da legitimidade do Esta- do em seu conjunto, tachando-o de «forca de ocupacao» no Pais Basco - nao deve estar a seu alcance, posto que a qualidade de pessoa é uma atribuicao.® E 0 Estado que decide, mediante seu ordenamento juridico, quem é cidadao e qual é 0 status que tal condigé0 comporta: ndo é possivel admitir apostasias do status do cidadao. A maior desautorizagao que pode corresponder a” essa defeccao tentada pelo «inimigo» é a reafirmagio do sujeito em questao pertencer a cidadania geral, isto é, a afirmacao de que sua infragio é um delito, nao um ato cometido em uma guerra, seja entre quadrilhas ou contra um Estado pretendidamente opressor. Portanto, a questo de poder existir Direito penal do inimigo se resolve negativamente. Precisamente, da perspectiva de um entendimento da pena e do Direito penal, com base na prevengio geral positiva, a reacao que reconhece excepcionalidade & infragao do «inimi- go», mediante uma troca de paradigma de principios e regras de responsabilidade penal, é disfuncional, de acordo com o conceito de Direito penal. Desde esta perspectiva, é posstvel afirmar que o «Direito penal» do inimigo, juridico-positivo, cumpre uma funcao distinta do Direito penal (do cidadao): sio coisas distintas. O Direito penal do inimigo praticamente reconhece, ao optar por uma reacao estruturalmente diversa, excepcio- nal, a competéncia normativa (a capacidade de questio- nar a norma) do infrator; mediante a demonizagio de Coneretamente, em nossas sociedades (Estados de Direito atuais)essen- cialmente ~ e, desde logo, no que se refere a sua posigio como possiveis Infratores de normas penais ~ corresponde a todos os seres humanos, em virtude de sua condigao humana; por isso, ndo pode haver wexclusio» sem ruptura do sistema Direito Penal do inimigo 79 grupos de autores, implicita em sua tipificagao — uma forma exacerbada de reprovacao - da propagacao de seus atos. Em conseqiiéncia, a fungi do Direito penal do inimigo provavelmente tenha que ser vista na criagao (artificial) de critérios de identidade entre os excluden- tes, mediante a exclusdo. Isso também se manifesta nas formulagGes técnicas dos tipos. 3. O Direito penal do inimigo como Direito penal do autor Finalmente, incumbe agora realizar uma brevi ma reflexao no que tange A manifestagio técnico-juridica mais destacada da fungao divergente da pena do Direito penal do inimigo: a incompatibilidade do Direito penal_ do inimigo com o principio do direito penal do fato. ~ Como € sabido, o Direito penal do inimigo juridico- positivo vulnera, assim se afirma habitualmente na discussao, em diversos pontos, o principio do direito penal do fato. Na doutrina tradicional, 0 princfpio do direito penal do fato se entende como aquele prinefpio genuinamente liberal, de acordo com 0 qual devem ser exclufdos da responsabilidade juridico-penal os meros pensamentos, isto é, rechacando-se um Direito penal _ orientado na «atitude interna». do autor.” Consideran- do-se este ponto de partida coerentemente até suas liltimas conseqiiéncias - mérito que corresponde a Ja- kobs” -, fica claro que numa sociedade moderna, com ® Vid, por exemplo, STRATENWERTH, Strafecht Allgemeiner Tell . Die Strata, © edicdo, 2000, 2/25 e ss. recentemente, com algo mais de detalhe, fe, HIRSCH, em Festsegrift fr Klaus Liderssen sum 65, Geburtstag, 2002, P. 2535s. 70 A argumentagao decisiva esta em ZStW, 97 (1985), p. 761 (como se ret dard, se trata do mesmo trabalho em que também se introduziu o conceito {de Direito penal do inimigo); wm ponto de partida ~ a normatizacao do pFincipio do direito penal do fato e, com isso, da nocao de esfera privada este contexto ~ que, no que pode ser visto, ndo tem merecido uma grande atenga0 na discussao humana, 80 ‘Manuel Cancio Melié _sterrorista_ individual boas razdes funcionais, a esfera de intimidade atribufda a0 cidadao nao pode ficar limitada aos impulsos dos neurénios ~ algo mais que a liberdade de pensamento - Isto cristaliza na necessidade estrutural de um «fato» ‘como contetido central do tipo (Direito penal do fato em lugar de Direito penal do autor). ‘Ao examinar-se, por este prisma ~ por exemplo, no Direito penal espanol relativo ao terrorismo, depois das tiltimas modificacées legislativas havidas - a ampla eliminagao iuspositiva das diferencas entre preparacao e jentativa, entre participacio e autoria, inclusive entre 0s € colaboracdo com umia organizacao terro- dificilmente pode parecer exagetado falar de um Direito penal do autor: mediante sucessivas ampliacdes se tem alcancado um ponto no qual «estar af» de algum modo, «fazer parte» de alguma maneira, «ser um deles, ainda que s6 seja em espirito, é suficiente. $6 assim se pode explicar que no CP espanhol de 1995 ~ por mencio- nar um s6 exemplo ~ se tenha introduzido a figura do 72 uma tipificagio que nao se encaixa de nenhiim modo com a orientagao da regulacao espanhola neste setor, estruturada em torno a especial periculosidade das organizagées terroristas. Esta segunda divergéncia é, como ocorre com a fungao da pena que a produz, estrutural: nao que haja um cumprimento melhor ou pior do principio do direito penal do fato ~ 0 que ocorre em muitos outros ambitos de «antecipacao» das barreiras de punigao - mas que a regulagao tem, desde o inicio, uma diregao centrada na identificago de um determinado grupo de sujeitos - os «

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