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Comunicação, Política e Reconhecimento Social: Reconstrução e Crítica
Comunicação, Política e Reconhecimento Social: Reconstrução e Crítica
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Ebook428 pages5 hours

Comunicação, Política e Reconhecimento Social: Reconstrução e Crítica

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Esta coletânea articula-se em torno da teoria da ação comunicativa de Habermas. Os textos reconstroem seus fundamentos e revelam dificuldades. Explicitam suas implicações jurídicas e políticas, bem como conectam seu paradigma comunicativo com os problemas da formação da sujeito e do reconhecimento social. Refletem sobre a saúde dos idosos, destacando o papel da autonomia intersubjetiva e da normatividade da vida. Utilizam a concepção de uso da linguagem reconstruída pelo autor para analisar discursos acadêmicos na área de Ciências Agrárias.
LanguagePortuguês
Release dateNov 20, 2020
ISBN9786555234763
Comunicação, Política e Reconhecimento Social: Reconstrução e Crítica

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    Comunicação, Política e Reconhecimento Social - Aluisio A. Schumacher

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    À Irene, minha mãe, e à Alba, duas grandes mulheres.

    AGRADECIMENTOS

    Os artigos reunidos nesta coletânea contaram com o apoio de muitos colegas e alunos que ao longo dessa trajetória de pesquisa generosamente dedicaram tempo, conhecimento e atenção. Agradeço à Prof.ª Clélia A. Martins (in memoriam) e ao Prof. José Geraldo A. Bertoncini Poker, do grupo de pesquisa CNPq Filosofia Contemporânea: Habermas, da FFC – Unesp/Marília, que auxiliaram a precisar ideias expostas neste livro, bem como aos pesquisadores participantes dos colóquios Habermas, pelas questões e reflexões que possibilitaram aperfeiçoar a argumentação dos textos. Aos colegas da Unesp que participaram do curso de formação de professores em Pedagogia para as redes municipais de ensino, especialmente Juvenal Zanchetta Junior, João Cardoso Palma Filho, Maria das Graças R. Moreira Petruci, Pedro Tosi e Teresa Malatian, pela leitura atenta e sugestões. Agradeço também às alunas-professoras pelo incentivo e reconhecimento do trabalho desenvolvido, especialmente à Jussiara Aparecida Delgado (in memoriam) pela dedicação e sinceridade. Aos participantes do projeto Reconhecimento Social de Idosos em Município de Porte Médio, professores Rodolfo F. Puttini e Tânia Ruiz, do Departamento de Saúde Pública da FMB-Unesp, bem como aos alunos pesquisadores de campo, pelas discussões que me introduziram ao problema da saúde em idosos. Aos colegas do Departamento de Economia, Sociologia e Tecnologia da FCA-Unesp/Botucatu, em especial Toshio Nojimoto, companheiro de tantas aventuras, pelo constante diálogo sobre pesquisa em Ciências Agrárias, e Alberto Medici, pela cooperação crítica nos diferentes projetos.

    APRESENTAÇÃO

    Os textos reunidos nesta coletânea originam-se de trabalhos desenvolvidos nos últimos 16 anos. Parte deles deriva de estímulos suscitados pela participação em grupos de pesquisa, projetos, encontros e congressos. Outros retomam partes de minha tese de doutorado. Versam sobre a teoria da ação comunicativa de Habermas, reconstroem seus fundamentos, criticam determinados aspectos e a utilizam com propósitos compreensivos e críticos. Os temas centrais são: a linguagem e a racionalidade subjacente a seu uso, a comunicação intersubjetiva, as implicações jurídicas e políticas da teoria da ação comunicativa, a formação do sujeito e o reconhecimento social. Todos trazem a marca do paradigma da intercompreensão linguística em pesquisa social.

    Pode parecer fora de contexto insistir nos pressupostos da utilização racional da linguagem, na força da argumentação e no reconhecimento social em face da proliferação de fake news, distorções da comunicação e desrespeitos de toda ordem. Não penso assim. Creio que a trajetória de cada sociedade é marcada por processos sociais de aprendizagem que ocorrem na prática cotidiana da vida, transformando a cultura, as normas sociais e os tipos de personalidades. Nesse processo, a questão crucial é como o que foi aprendido pelo agente, na prática histórica, passa a ser utilizado na organização da sociedade. No passado, a utilização dos conhecimentos, das representações morais e a emergência de agentes transformadores, propiciados pelos processos coletivos de aprendizagem e impulsionados pelas práticas de ação e comunicação dos movimentos sociais, culturais e políticos, permitiram enfrentar fases de retrocesso civilizatório. Isso deve se aplicar ao contexto atual.

    Em alguns textos o leitor encontrará cruzamentos que não procurei eliminar. Os dois primeiros tratam da pragmática formal de Habermas, uma ciência reconstrutiva, e são versões modificadas dos capítulos I e II de minha tese de doutorado. Originam-se da participação no grupo de pesquisa CNPq, liderado pela Prof.ª Clélia A. Martins (FFC – Unesp/Marília), Filosofia Contemporânea: Habermas, mais precisamente dos encontros e palestras que reuniram professores e alunos para discutir a obra do filósofo e sociólogo. Infelizmente, a Prof.ª Clélia já não está mais entre nós. Não poderia deixar de homenageá-la e destacar seu empenho e determinação na organização dos quatro colóquios Habermas realizados entre 2006 e 2011.

    Na teoria da ação comunicativa, o papel das ciências reconstrutivas é proporcionar o conhecimento metodológico sobre os sistemas de regras implícitas do entendimento mútuo, contribuindo para fundamentar, de modo prático e empírico, a crítica. Essas regras oferecem uma fundação normativa do modelo intercompreensivo de comunicação e desempenham «função" emancipatória. O primeiro texto trata de descrever o sistema fundamental de regras que os sujeitos dominam, na medida em que são capazes de cumprir as condições de uma utilização bem sucedida de orações em emissões: a competência comunicativa. Já o segundo discute significado e validade, procurando mostrar que a abordagem de Habermas empreende uma radicalização da virada linguística na filosofia moderna.

    Enquanto os dois primeiros textos reconstroem sincronicamente os sistemas de regras e os conceitos de ação e racionalidade comunicativas, o terceiro proporciona um fundamento diacrônico aos desenvolvimentos sobre comunicação racional e sociedade. Um esboço inicial foi apresentado anexo à minha tese de doutorado. Procuro mostrar de que modo Habermas se apoia, em inconsistências de formulação contidas na obra de Max Weber, para empreender uma reconstrução arrojada da teoria da racionalização da sociedade. A base da crítica está na dissonância entre a utilização de um conceito complexo de racionalidade na dimensão cultural do processo de desencantamento e seu estreitamento no plano da racionalização social, que privilegia a racionalidade com vistas a fins e restringe as possibilidades de realização das estruturas de consciência. Esta leitura abre a possibilidade de fundamentar, do ponto de vista da história das teorias, um conceito mais amplo de racionalidade, com fortes afinidades com o conceito de racionalidade comunicativa.

    No quarto texto abordo uma crítica central à teoria da ação comunicativa. Depois de apresentar os principais aspectos da teoria da ação comunicativa, detecto o seguinte paradoxo: apesar de os conceitos de mundo da vida e de sistema referirem-se respectivamente às reproduções simbólica e material da sociedade, quando introduz o tema das patologias sociais, Habermas parece conceber a reprodução do primeiro a partir da perspectiva funcional. Em conjunto com a visão de um mundo da vida íntegro e transparente, isso o leva a colocar as estruturas racionais da comunicação antes do sujeito e da identidade cultural, reduzindo a esfera de aplicação da teoria.

    Desde sua publicação, em 1981, a crítica mais difundida à teoria da ação comunicativa dirigia-se ao fato de a obra não ter mostrado como sua perspectiva de análise poderia modificar a compreensão do direito e das instituições democráticas. Habermas enfrenta o problema e em 1992 publica em alemão Direito e democracia: entre facticidade e validade (HABERMAS, 1997; 1996). O objeto do quinto texto é justamente mostrar de que modo Habermas extrai as implicações jurídicas e políticas da teoria da ação comunicativa. Foi elaborado para o Caderno de Formação – Ética e Cidadania da Licenciatura para a Formação de Professores para a Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental da Unesp, que graduou cerca de 5.000 professores em exercício nas redes municipais do estado de São Paulo entre 2002 e 2007. Da consideração de que moral e direito implicam uma referência ao ponto de vista do participante, trato de explicar, com o auxílio de aspectos do conceito de direito desenvolvidos por Hart (1961), que o segundo compensa a fraqueza da primeira nas condições modernas. Apoiando-me na teoria do discurso de Habermas, argumento por uma relação interna entre Estado de Direito e democracia. Tanto porque Direitos Humanos e soberania popular se implicam mutuamente, como porque a ideia de Estado de Direito envolve o conceito de poder comunicativo: a sobreposição e interligação de formas de comunicação baseadas em argumentos. Dessa reconstrução resulta uma concepção de democracia em que a fonte de legitimidade não é mais a vontade pré-determinada dos indivíduos, mas o próprio processo de deliberação.

    O problema da formação do sujeito no interior do mundo da vida revelado no quarto texto é retomado no sexto. Com o apoio da teoria de Axel Honneth (2003), procuro mostrar que a formação do sujeito se dá no interior de uma luta por reconhecimento nas dimensões do amor e do afeto, dos direitos jurídicos e da solidariedade, processo por si só conflituoso. O texto origina-se da participação em pesquisa junto ao Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Unesp, de Botucatu: Reconhecimento Social de Idosos em Município de Porte Médio. Partindo da crítica ao pressuposto liberal, na qual a questão é tornar o indivíduo independente, o que contribui para isolar e fragilizar o idoso. Introduzi o paradigma do reconhecimento e os vínculos sociais que apoiam a vida de sujeitos que reconhecem e são reconhecidos. Essa concepção permite conceber uma autonomia de tipo intersubjetivo, garantida por relações de afeto/amizade, estima social, reconhecimento de direitos e responsabilidades, e ameaçada pela desvalorização, desrespeito e violências. A compreensão de fenômenos de desrespeito, difamação e traumas contra idosos abre a possibilidade de apoiar a instituição de cuidados com vistas à integridade e à justiça social.

    Em 2007, constituímos, com colegas do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu e do Departamento de Economia, Sociologia e Tecnologia da Faculdade de Ciências Agronômicas, o grupo de pesquisa CNPq Teoria Crítica: Racionalidade Comunicativa e Reconhecimento Social. Liderado por mim, esse grupo articula-se em torno da utilização de teorias críticas para desenvolver projetos interdisciplinares de pesquisa. Utiliza as noções de racionalidade comunicativa (Habermas) e reconhecimento social (Honneth) enquanto fundamentos normativos para o exercício da crítica, tanto a discursos e manifestações de comunicação distorcida, como a formas de desrespeito social. Os três últimos textos são críticas ao uso distorcido da linguagem no discurso acadêmico das Ciências Agrárias.

    O sétimo analisa experimentos em Ciências Agrárias realizados na academia para obtenção dos títulos de mestrado, doutorado e livre docência. Mostramos que tais discursos técnico-científicos caracterizam casos de comunicação sistematicamente distorcida, patologias da comunicação que beneficiam interesses do modelo dominante de agricultura. Em vez de conectar significado e validade: usar a linguagem para comunicar algo, representar a realidade ou constatar fatos no mundo objetivo (natural), as manifestações de comunicação sistematicamente distorcida se originam da arte de dominar inconscientemente conflitos interiores, conduzindo a perturbações da comunicação: os pesquisadores não percebem que a base de validade de seus discursos foi restringida porque estão, na verdade, resolvendo um conflito interior, entre concluir de acordo com os fatos, apontando os limites de tecnologias socialmente reconhecidas e sustentadas por interesses poderosos, ou distorcer a argumentação de modo a procurar garantir a legitimidade científico-tecnológica do modelo dominante de agricultura.

    Nos dois últimos textos, utilizamos a noção de Wittgenstein (1953) de seguir uma regra e a distinção de Searle (1970) entre regras regulativas e regras constitutivas para analisar metodológica e comunicativamente teses e dissertações desenvolvidas em programas de pós-graduação em Agronomia. No oitavo texto, mostramos que os os autores não se orientam pelas regras constitutivas que fundam os experimentos: manipulação controlada da natureza, testes de hipóteses e princípio do antes – depois. Seus argumentos não têm força e não suscitam debate, variam conforme as circunstâncias, e cada tese começa e termina por si e em si, não podendo dialogar com outras. Do ponto de vista lógico-comunicativo, os trabalhos são inconsistentes e contraditórios; e, carregando nas cores, podemos dizer que os interlocutores dos autores não parecem ser outros pesquisadores, com os quais discutiriam problemas e resultados de pesquisa, mas a própria natureza que justifica retoricamente o inesperado a posteriori.

    Desde 1995, ano de criação da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), cresce na sociedade brasileira a preocupação com os procedimentos de liberação de plantio comercial e venda de sementes e produtos transgênicos. O último texto aborda um parecer técnico de liberação de milho geneticamente modificado que se fundamenta em duas teses acadêmicas de doutorado. Avaliamos as duas teses quanto à lógica da argumentação e à observância das regras da pesquisa experimental: manipulação da natureza e controle de variáveis, formulação de hipótese de trabalho e realização de teste estatístico. Em seguida, verificamos a pertinência do uso das conclusões das teses no parecer da CTNBio que liberou o milho geneticamente modificado (Mon810). Os trabalhos analisados não manipulam adequadamente a natureza, não partem de hipóteses de trabalho e incorrem em contradições. O parecer da CTNBio usa as duas teses para apoiar a recomendação de que MON810 não causa efeito negativo sobre a comunidade de insetos avaliada. Mas, enquanto uma das teses não é conclusiva, a outra foi delineada com objetivos distintos, não podendo apoiar as conclusões que a CTNBio quer sustentar: em síntese, avaliar o efeito de MON810 no combate a pragas. É importante lembrar que houve voto divergente na CTNBio: o relator da Subcomissão Setorial Permanente Ambiental emitiu parecer contrário à aprovação do produto, recomendando a realização de audiência pública.

    Sumário

    1

    RECONSTRUÇÃO DA RACIONALIDADE COMUNICATIVA EM HABERMAS: ORIGEM E DIFICULDADES 17

    2

    A ABORDAGEM PRAGMÁTICO-FORMAL DO SIGNIFICADO EM HABERMAS 51

    1. Aspectos do significado: intencionalidade, representação e interação 54

    2. Significado e validade 65

    3. Da semântica formal à pragmática formal 71

    4. O problema da classificação dos atos ilocucionários 77

    5. Tipos de atos ilocucionários e pretensões de validade 86

    6. Correção normativa e verdade proposicional 94

    3

    RECONSTRUÇÃO DA TEORIA DA RACIONALIZAÇÃO DA SOCIEDADE EM MAX WEBER 97

    4

    DIFICULDADES DE UMA TEORIA NORMATIVA: A LIGAÇÃO ENTRE COMUNICAÇÃO RACIONAL E SOCIEDADE 133

    5

    SOBRE MORAL, DIREITO E DEMOCRACIA 155

    6

    RECONHECIMENTO E SAÚDE DA PESSOA IDOSA: AUTONOMIA INTERSUBJETIVA E JUSTIÇA SOCIAL 177

    7

    COMUNICAÇÃO DISTORCIDA EM CIÊNCIAS AGRÁRIAS: ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO EM TRABALHOS ACADÊMICOS 197

    8

    PRÁTICAS METODOLÓGICAS E DISCURSIVAS EM AGRONOMIA: CONHECIMENTO OU RETÓRICA 223

    9

    UNIVERSIDADE PÚBLICA E LIBERAÇÃO COMERCIAL DE ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS: O CASO DO MILHO Mon810 243

    1. Regime de produção do conhecimento e regulação da inovação 244

    2. Jogo de linguagem e regras constitutivas 246

    3. Regras da pesquisa experimental 249

    4. Análise dos argumentos das teses 251

    5. Comentários sobre o uso das teses no parecer da CTNBio 263

    REFERÊNCIAS 267

    ÍNDICE REMISSIVO 281

    1

    RECONSTRUÇÃO DA RACIONALIDADE COMUNICATIVA EM HABERMAS: ORIGEM E DIFICULDADES

    ¹

    Costuma-se dizer que uma teoria social é crítica² quando procura promover a emancipação humana, ou seja, tem o interesse implícito de libertar os agentes sociais das circunstâncias que os dominam e escravizam. Por isso, as teorias críticas não se limitam aos aspectos descritivos, mas buscam constituir bases normativas em pesquisa social, orientadas para combater a dominação e incrementar a liberdade em todas as suas formas.

    A teoria crítica se distingue da teoria tradicional porque, em vez de estudar o presente independentemente de suas consequências, transforma-o em objeto do conhecimento. Pensa-se profundamente ligada ao tempo presente e o assume, afirmando sua vocação de contribuir para a transformação prática. O enfoque dos teóricos críticos se caracteriza por ser prático em um sentido especificamente moral (e não instrumental): não se trata simplesmente de reunir meios para alcançar determinado fim independente, mas de buscar a emancipação humana das circunstâncias de dominação e opressão (HORKHEIMER, 1975). Essa tarefa normativa só pode ser empreendida com a cooperação entre filosofia e ciências sociais, por meio de pesquisas sociais interdisciplinares e empíricas.

    Desde sua origem, no contexto da fundação do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt no final dos anos 1920, o desenvolvimento da teoria crítica compreende pelo menos três gerações de pensadores, diferentes problemas de pesquisa e períodos históricos distintos.³ Da definição de Horkheimer é possível depreender que uma teoria crítica adequada precisa preencher três critérios (BOHMAN, 2005): ser simultaneamente normativa, prática e explicativa. Em outras palavras, deve explicar o que está errado com a realidade social em determinado momento histórico, identificar os atores que dispõem de potencial para modificá-la e proporcionar normas para o exercício da crítica, assim como objetivos práticos para a transformação social.

    Enquanto teorias sociais empíricas podem deixar com maior facilidade sua base normativa em estado implícito, pois visam mais à explicação do que a avaliação, isso não acontece com teorias críticas, que se posicionam como guias para a ação humana: são reflexivas, visam esclarecer e emancipar os agentes de coerções, muitas vezes auto-impostas (GEUSS, 1988, p. 8). Na medida em que procuram levar os agentes sociais a posições normativas e políticas, as teorias críticas não têm como evitar a explicitação de seus fundamentos críticos, cujo padrão vem inevitavelmente das próprias condições da sociedade contra a qual a crítica é dirigida.

    Jürgen Habermas é o principal representante da segunda geração da teoria crítica. Após compartilhar das análises da geração anterior até o final dos anos sessenta, passou a olhar com desconfiança para seus fundamentos normativos. Ao reconstruir o enfoque de Horkheimer e Adorno (1985) a partir da obra Dialética do Esclarecimento, Habermas verifica que a crítica radical da razão (nas versões subjetiva e objetiva), empreendida pelos dois autores, solapa a própria possibilidade de reflexão crítica. O pensamento crítico não consegue mais formular a verdade que está contaminada pela lógica da razão instrumental. Pode tão somente, na versão adorniana de reflexão, insinuar uma verdade sob a forma da mimesis, que não traz em si a possibilidade de desenvolvimento teórico e metodológico. Assim, a crítica da razão instrumental ter-se-ia envolvido em paradoxo que "resiste obstinadamente à dialética mais flexível e que consiste no seguinte: Horkheimer e Adorno deveriam formular uma teoria da mimesis que, segundo seu próprio conceito é impossível" (HABERMAS, 1987a, p. 387). Entendendo que tal enfoque esgota as possibilidades críticas no interior do paradigma da consciência, Habermas vai buscar sua base normativa em conceito de racionalidade mais abrangente, derivado da intercompreensão linguística.

    Desde o início dos anos setenta, Habermas (1970) vem construindo um projeto de teoria de sociedade cuja categoria central é a comunicação, inicialmente reconstruída da ótica da competência comunicativa e, mais recentemente, da perspectiva do significado linguístico.

    O modelo habermasiano de comunicação se orienta pela tradição pragmática das teorias da linguagem, inaugurada com a obra do segundo Wittgenstein (1953)⁵. Tradição que busca ultrapassar a ênfase exclusiva na função de representação da linguagem, ligando o significado dos proferimentos com seus contextos de uso. Em vez de partir da premissa de que a linguagem descreve o mundo, a pragmática formal adota como pressuposto de base as características gerais do comportamento linguístico orientado para a intercompreensão entre sujeitos sociais. Por essa razão, a linguagem não é tomada como um instrumento de transferência de ideias, mas como o meio pelo qual os participantes podem compartilhar intersubjetivamente a compreensão de algo: o modelo de Habermas pensa a comunicação baseando-se nos papéis intercambiáveis de falante e ouvinte, na pragmática da comunicação.⁶

    A pragmática formal de Habermas (1987g, p. 335) se baseia na pretensão de que podemos reconstruir racionalmente, não só as características linguísticas e semânticas de frases e proposições, mas igualmente certos traços pragmáticos das emissões. Por isso, Habermas procura chegar a uma descrição explícita das regras que um falante competente (ideal) domina ao formar frases e emiti-las de forma a que sejam aceitáveis por um ouvinte, igualmente competente. Trata-se de supor que a competência comunicativa (isto é, os papéis intercambiáveis de falante e ouvinte) compreende (assim como a competência gramatical) um núcleo racional-universal. Portanto, a pragmática formal ou teoria geral de unidades de comunicação é um esforço para descrever o sistema fundamental de regras que os sujeitos dominam, na medida em que são capazes de cumprir as condições de uma utilização bem sucedida de orações em emissões.

    Nesse contexto, a capacidade de estabelecer e compreender modos de comunicação, bem como suas conexões com o mundo, cuja racionalidade remete às estruturas da linguagem cotidiana, são elementos imprescindíveis para a definição da competência comunicativa. Diferentemente da pragmática empírica, cujas abordagens psicolinguística ou sociolinguística tratam de pesquisar as condições extralinguísticas que limitam a comunicação efetiva, a pragmática formal parte da reconstrução sistemática das estruturas gerais que aparecem em toda situação possível de fala. Para tanto dirige sua atenção para os tipos específicos de emissões que podem aparecer nas situações de fala. Emissões essas que servem para situar pragmaticamente as expressões executadas pelo falante competente em relação ao ouvinte, igualmente competente.

    O resultado dessa reconstrução pragmático-formal da competência comunicativa é a articulação e fundamentação de um conceito mais amplo de racionalidade, construído com recursos da filosofia da linguagem ordinária e destinado a servir de fundamento crítico em teoria social: a racionalidade comunicativa. Antes de comentar e discutir os elementos que compõem a pragmática formal considero necessário esclarecer o significado da expressão reconstrução racional.

    Ciência reconstrutiva

    Habermas fala em reconstrução racional para se referir a todo projeto que tenha por objeto a reconstrução explícita e sistemática de um conhecimento implícito, pré-teórico. As ciências que seguem tal orientação são denominadas reconstrutivas. Assim como, a gramática gerativa de Chomsky e a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget, a pragmática formal é uma ciência reconstrutiva.

    Além de caracterizar ciências específicas, o termo reconstrução racional se aplica ao domínio de disciplinas tais como (HABERMAS, 1989a, p. 48): [...] lógica, epistemologia, linguística, filosofia da linguagem, ética, estética, teoria da ação, teoria da argumentação etc. Em todos esses casos, tem-se o objetivo comum de dar conta de um saber pré-teórico e do domínio intuitivo de sistemas de regras que estão nos fundamentos da produção e avaliação de proferimentos e operações simbólicas. Sejam inferências corretas, bons argumentos, descrições, explicações ou previsões acertadas, frases gramaticais, unidades de comunicação bem sucedidas, ações instrumentais eficazes, avaliações adequadas, autorrepresentações autênticas etc.

    O intuito dessas disciplinas pode ser mais bem caracterizado recorrendo à distinção de Ryle (1975, p. 25-61), entre "know-how" – isto é, saber-como-fazer (implícito) de um sujeito competente, capaz de produzir determinada coisa ou realização – e "know-that" – saber explícito sobre a maneira como ele procede para conhecer (e ser compreendido) na matéria. Encontra-se aqui subjacente a ideia de que os sujeitos, falantes e agentes, sabem como realizar, executar e produzir uma série de coisas, sem se referir explicitamente (ou sem serem capazes de fornecer uma explicação explícita) aos conceitos, regras, critérios e esquemas em que baseiam suas realizações.

    Logo, um sujeito pode produzir enunciados com sentido, construir orações gramaticalmente corretas, desenvolver teorias plausíveis e argumentos corretos, baseando-se simplesmente no conhecimento e habilidades implícitas. Ou seja, sem saber que ao fazer essas coisas está empregando determinadas operações, aplicando certos critérios e seguindo determinadas regras. O objetivo das ciências reconstrutivas (ou da reconstrução racional) é fazer com que conhecimentos teóricos explícitos apareçam, sob a forma de categorias, a partir da estrutura e dos elementos de conhecimentos pré-teóricos implícitos. A pragmática formal trata justamente de reconstruir o know-how pré-teórico de falantes e ouvintes competentes, sob a forma de regras e categorias explícitas.

    Para tornar mais clara a atitude metodológica desse tipo de ciência, acrescento ainda as seguintes observações:

    Diferentemente das ciências da natureza, o domínio de objetos da ciência reconstrutiva pertence à realidade simbolicamente estruturada do mundo social (HABERMAS, 1987g, p. 341). Em outras palavras, isso corresponde à diferença de nível entre realidade perceptível e realidade simbolicamente pré-estruturada. E se reflete na distância que há, entre um acesso direto por meio da observação da realidade e o acesso que utiliza uma mediação comunicativa – para a compreensão de um enunciado sobre a realidade.

    Enquanto muitas formas de explicação do significado tratam das relações semânticas que podem ser extraídas da estrutura de superfície de uma língua ou cultura, a ciência reconstrutiva se caracteriza por dirigir sua atenção para as estruturas geradoras das próprias expressões. O objeto da reconstrução racional é revelar o sistema de regras subjacentes à produção de expressões simbólicas dotadas de sentido.

    Diferentemente das ciências empírico-analíticas, que buscam refutar o conhecimento pré-teórico e substituí-lo por uma explicação científica mais adequada do mundo, as ciências reconstrutivas tratam de explicar e esclarecer a gramática de base e as regras de nosso conhecimento pré-teórico. Portanto, em vez de falsear esse tipo de conhecimento, as hipóteses reconstrutivas se orientam no sentido de torná-lo explícito.

    As reconstruções racionais explicitam competências universais da espécie humana. A pragmática formal não trata de reconstruir a competência que se manifesta em falantes desta ou daquela língua, mas os pressupostos universais e incontornáveis da comunicação (HABERMAS, 1987g, p. 357), reconstruídos com base nas estruturas de utilização da linguagem cotidiana. Considerando que se trata de reconstruir as competências de falar e compreender a linguagem, o foco de atenção da pragmática formal é a possibilidade de se chegar a um acordo na comunicação.

    As hipóteses avançadas pelas ciências reconstrutivas são evidentemente falíveis. No entanto, o caráter hipotético não é incompatível com o objetivo de descobrir as condições universais pressupostas e requeridas para desempenhar competências de maneira relevante. No caso da pragmática formal, o interesse fundamental está voltado para a reconstrução das condições realmente existentes, na verdade sob a premissa de que os indivíduos socializados, quando no seu dia a dia se comunicam entre si por meio da linguagem comum, não têm como evitar que se empregue essa linguagem também num sentido voltado ao entendimento. E ao fazerem isso, eles precisam tomar como ponto de partida determinadas pressuposições pragmáticas, nas quais se faz valer algo parecido com uma razão comunicativa (HABERMAS, 1993, p. 98).

    Assim, o aspecto metodológico mais importante das ciências reconstrutivas está em que são empíricas, isto é, estão sujeitas às regras de confirmação e falsificação do procedimento científico. O que implica em dizer que a confirmação empírica de suas pretensões em identificar competências da espécie e explicar as regras e condições que essas competências pressupõem podem e devem ser criticamente avaliadas.

    Portanto, enquanto empreendimento científico, as reconstruções racionais, assim como todos os tipos de conhecimento, só têm um status hipotético: é sempre possível que se apóiem numa escolha errônea de exemplos; elas podem obscurecer e distorcer intuições corretas e, o que é mais freqüente ainda, generalizar excessivamente casos particulares (HABERMAS, 1989a, p. 49). Por isso, Habermas é exigente em relação aos critérios de avaliação da pragmática formal. Entende que a confirmação empírica de suas hipóteses reconstrutivas constitui só um dos critérios possíveis para testar sua validade. Além da confirmação empírica, introduz o princípio da coerência teórica entre a pragmática formal e outras ciências ou domínios de investigação reconstrutivos, tais como: a gramática gerativa de Chomsky (que trata da competência linguística e semântica dos falantes), a psicologia cognitiva do desenvolvimento de Piaget (que se concentra na ontogênese das estruturas lógico-matemáticas e, consequentemente, na competência cognitiva) e a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg (que estuda a competência moral de julgar). Logo, é a compatibilidade e a consistência entre teorias – a capacidade de uma teoria, ou de parte de suas proposições, de se ajustar a outras de maneira a compor um todo coerente – que aparece, além da estrita confirmação empírica de uma teoria isolada, como etapa indispensável para testar seus títulos de validade. Esse princípio de coerência é o critério de verdade mais fundamental das ciências reconstrutivas (COURTOIS, 1994, p. 258-9): o principio por meio do qual se podem avaliar suas contribuições e tentativas de explicitação das múltiplas competências humanas e, de maneira geral, da teoria da racionalidade.

    Pretensões de validade e funções da linguagem

    Podemos nos aproximar da pragmática formal se considerarmos que a geração de frases segundo as regras da gramática não é a mesma coisa do que a utilização das frases segundo as regras pragmáticas, que constituem a infra-estrutura das situações de fala em geral (HABERMAS, 1987g, p. 362). No primeiro caso, um locutor competente só é submetido à exigência de inteligibilidade. Para cumpri-la, deve possuir o sistema de regras (interno à própria linguagem) que garante a boa formação de um encadeamento de símbolos e cuja observância é

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