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ANTES de iniciar a procura do rasto de Anne Frank, fui falar com o pai de-
la. É um homem esbelto, alto, muito inteligente, duma sólida formação e
educação, muito modesto, muito bondoso. Sobreviveu às perseguições, mas
custa-lhe e dói-lhe falar disso, porque perdeu mais do que se ganha com a
mera vida e com o sobreviver.
Os Frank eram uma velha família judaico-alemã. O pai de Otto Frank,
um comerciante, provinha de Landau. A família de sua mãe remonta, nos re-
gistos de Frankfort, ao século XVII.
Otto Frank nasceu e criou-se em Frankfort. Frequentou o "Lessing-
Gymnasium" que, depois de ter feito o exame final, deixou em 1908, para se
dedicar ao comércio, como tinha feito o pai.
Rebentou a guerra mundial e o sr. Frank foi mobilizado para o regi-
mento de artlharia da Renânia.
Enviaram-no juntamente com um grupo de geómetras e matemáticos para a "Ar-
tilharia-Lichtmess-Trupp" na frente ocidental, na região de Cambrai. A his-
tória sangrenta e cheia de vicissitudes deste sector é conhecida. Otto
Frank participou na grande batalha de tanques de Cambrai, em Novembro de
1917. O seu destacamento foi a primeira unidade do Exército alemão que viu
os tanques britânicos e a primeira a iniciar o fogo de defesa. Embora a
acção desses novos e monstruosos fantasmas não trouxesse logo a decisão da
guerra, pode dizer-se, no entanto, que com eles se entrou na sua última
fase.
O chefe da unidade especial a que pertencia Otto Frank, chamava-se B.
Vive hoje em Schwenningen. Frank fala desse oficial de Wurtenburgo como dum
homem inteligente e civilizado que sabia manter, dum modo sensato, a ordem
entre os homens do seu agrupamento. Em 1917 propôs ele que Otto Frank rece-
besse a graduação de oficial. Sem que tivesse frequentado a escola militar
ou assistido a qualquer curso de oficiais, Otto Frank foi promovido, em
plena campanha a tenente e enviado para o sector da frente de St. quentin,
nessa altura em grandes apuros.
Depois da guerra estabeleceu-se em Frankfort como comerciante inde-
pendente, no ramo bancário e em representações de artigos de qualidade.
Casou com a jovem Edith Holísender, de Aix-la-Chapelle, que morreu em 1945,
no campo de concentração de Auschwitz. Vi, numa fotografia, o seu perfil
belo e expressivo. Não se parecia com Anne.
Ao conversar comigo, Otto Frank não aludiu, nem com uma única pala-
vra, às suas relações com a Alemanha e com os alemães; e não creio que, com
o seu silêncio, pretendesse poupar-se a si próprio ou a mim. Simplesmente,
não havia nada a explicar. Nasceu como judeu alemão, e enquanto era honroso
ser-se alemão e o deixaram ser, prestou os seus serviços à Alemanha. Mas
nunca foi nacionalista o que, aliás, teria sido contrário às tradições da
burguesia de Frankfort. Tinha um Deus e uma pátria. O que lhe ficou foi
Deus.
Disse:
-Não me recordo de ter encontrado, na minha juventude, um an-
ti-semita. É natural que os houvesse, mas eu nunca encontrei nenhum. Nem
sequer durante a guerra. O oficial do meu agrupamento era democrata; não
comia na messe dos oficiais nem tinha ordenança. Mais tarde, quando fui
tenente, esforçava-me por seguir-lhe o exemplo e só me lembro de uma única
ocasião em que imaginei ver um alemão pôr-se em posição de sentido diante
de mim. Mas isso aconteceu mais tarde, no ano de
'944...
E esse mesmo alemão entregou-o, uma hora depois, à Gestapo.
Kati disse-me:
Deve ter sido em 1929, no dia de lavar a roupa. A lavadeira entrou
muito cedo, de mau génio, e quando lhe perguntei:
-que é que se passa consigo, sra. Zuílinger? respondeu-me:
-Não preguei olho em toda a noite. Houve outra vez tumultos na rua.
- E perguntei-lhe:
-Mas o que foi?
E ela:
-Os camisas castanhas andaram à pancadaria e ao barulho. Mais tarde,
ao almoço, perguntei ao sr. Frank quem eram os "camisas castanhas". E sabe,
o sr. Frank riu-se e tentou dizer uma graça, e se aquilo não era um riso
autêntico nem uma graça autêntica, a verdade é que ele fez os possíveis
para se rir e gracejar. Mas a sra. Frank levantou os olhos do prato, olhou
para nós e disse : -Ainda os havemos de conhecer bem, Kati. Isso não era
brincadeira nem ela o disse a brincar.
Gertrud disse:
- sr. Frank nunca falava quando alguma coisa o preocupava mas, por
vezes, percebia-se o que lhe ia no íntimo..."
Também nós estamos bem. Isto aqui tem feito bem às meninas e em espe-
cial a Anne está muito mais forte.
Depois do aniversário de Anne, emJunho de 1935:
A menina teve festas encantadoras, primeiro uma no parque infantil,
onde gosta muito de ir, depois aqui em casa, com os meninos todos. Também
recebeu muita correspondência simpática de Frankfort, de Aix-la-Chapelle e
de Basileia.
Passei as férias com as meninas à beira mar. A Anne está a aprender,
com entusiasmo, a nadar. Este ano sente-se muito melhor...
Anne frequenta a Escola Montessori. Não se porta lá muito bem na es-
cola e não é tão aplicada como a Margot.
Sabes? O jogo mais bonito da Margot e da Anne é
o teu "Quincto". (Gertrud que lhe enviara o jogo, lembrava-se vagamente de
se ter tratado de um jogo de cartas).
A Anne custa-lhe muito a aprender a ler. Margot está muito ocupada...
(Debaixo destas palavras lê-se, pela primeira vez: Cumprimentos da
Anne, escrito a lápis, com letras miúdas e bonitas).
As meninas gostaram muito do penteador e põem-no
todos os dias, cheias de importância. A nossa filha grande
é muito estudiosa, parece que gostava de tirar um curso,
a Annezinha nem por isso, mas é tão engraçada, tão cheia
('e espírito, sempre divertida...
(Perguntei à Gertrud se ainda se lembrava do penteador que ela, na-
quela altura, tinha costurado para as duas crianças. Ela pensa um bocado,
depois responde que não com a cabeça. Então contei-lhe que em Amsterdão
ainda existia um pequeno penteador de seda amarelada, às florzinhas, com
ourela franzida e fitas vermelhas de setim. Gertrud crava os olhos muito
grandes em mim e diz: "Pode lá ser... ou acha que pode ser?")
Espero que ninguém veja nesta história uma objecção contra a versão
teatral de O Diário de Anne Frank. Um pedaço de realidade e a obra de arte
que nasceu desta realidade não se contradizem, pois estão ligados por laços
mais fortes e ao mesmo tempo mais ternos do que a mera lógica, a verdade
histórica e a identidade. Só conto esta história de Jerusalém aqui, por ela
mostrar como são íntegros os amigos e os testemunhos de Anne e como não se
deixaram corromper pela perspectiva de participar na glória da lenda. Lies
P. disse aos jornalistas surpreendidos:
"-A Anne era a minha amiga, e mais nada."
Guarda fidelidade às recordações e aos dias simples da infância e foi
bastante sincera para dizer que não havia nesses dias presságio algum de
magnitude ou dum grande destino. Anne e Lies viviam livres e felizes em
Amsterdão. Só uma fantasia exagerada poderia fazer desse tempo uma história
de pressentimentos e de significação. Anne e as suas amigas não tinham nada
de que se queixar, e isso é tudo. A felicidade não dá matéria para roman-
ces. Mais tarde Anne apontou num dos cadernos que redigia além do seu diá-
rio:
Quando levávamos ainda uma vida normal, tudo era espantoso..."
Traduzi a frase textualmente e sente-se bem que Anne, com estas pala-
vras nada de especialmente sublime pretendeu exprimir. Deve compreender-se
bem o "espantoso". É do calão escolar, uma palavra em voga entre a juventu-
de de Amsterdão-Zuid como em outros sítios a palavra "bestial". Dizia-se
assim para exprimir alguma coisa de maravilhoso e de belo e de inteiramente
certo, mas tinha-se medo das palavras de grandeza um tanto nua e preferi-
a-se recorrer às palavras imensas - que ninguém toma à letra. Segue-se de-
pois isto:
"Eu podia falar da escola durante horas a fio, das nossas partidas,
dos rapazes na aula..."
De facto ela fala disso tudo em algumas páginas mas não "durante ho-
ras a fio", e algumas páginas significam bem pouco para a assiduidade nar-
rativa de Anne. Escreve a "Kitty", a confidente secreta:
"Lembras-te de quando eu um dia, voltei da cidade para casa e na cai-
xa de correio estava uma encomendazinha para mim "d'un ami." Só podia ter
sido Rob que ma tivesse enviado, e desembrulhei um broche modernissimo da
loja do pai dele. Andei com o broche durante três dias, depois escanga-
lhou-se.
E ainda te lembras do dia em que a Lies e eu traimos a turma? E da
nossa longa carta em que implorámos aos outros que fizessem as pazes con-
nosco?
Ainda te lembras de quando Pim P. disse ao Rob,
no carro eléctrico, em voz tão alta que a Sanne ouviu tudo
e nos contou, que a Anne era bastante mais bonita do que
a Danka L., sobretudo quando se ria? E o Rob lhe respondeu: "- Tens um bom
faro!"
E ainda te lembras de quando Maurice quis apresentar-se ao meu pai e
perguntar-lhe se o deixava dar um passeio com a filha?... ... e de como o
Rob e a Anne trocaram cartas quando o Rob estava no hospital?
.e daquele dia em que o Sam me seguiu de bicicleta e me ofereceu o
braço?
... de quando Bram me deu um beijo na face depois de eu lhe ter pro-
metido não contar a ninguém o que se passou com ele e Trees?.?"
Depois de este último ponto de interrogação Anne teve, de repente, a
ideia de escrever em letras maiúsculas, e lê-se assim:
"O MEU DESEJO É QUE VOLTE O TEMPO TãO DESPREOCUPADO DA ESCOLA."
Tive a impressão, ao ler estas páginas, de que Anne, no espaço acanhado e
no silêncio do esconderijo, pràticamente "lavrava" e revolvia as suas re-
cordações dos anos felizes para encontrar nelas histórias que a pudessem
ajudar a não deixar escapar esses anos, mas que ficava a saber que, em tem-
pos felizes, não há muitas histórias assim e quase nenhumas, capazes de
iluminar as aventuras arripiantes como as que ela estava a viver com cons-
ciencia aguda e aventureira, própria e únicamente dela entre os oito compa-
nheiros de destino. E creio que também Lies P., em Jerusalém, estava a con-
siderar a susceptibílidade das recordações, ao separar os tempos felizes da
tragédia, considerando-os deste modo intactos - ela que viveu também o des-
tino do campo de concentração, destino tão duro como o de Anne - quando
disse que tinha sido "apenas a amiga de Anne".
"A Vida normal", portanto, "Só amigas" e o "tempo de escola tão des-
preocupado" de 1934 a 1942. De facto tudo isso durou até 1942, embora o
ataque alemão aos Países-Baixos já tivesse começado em 10 de Maio e a ava-
lanche das leis contra os Judeus se tivesse desencadeado cinquenta e três
dias depois. Mas Anne e Lies tinham pais acautelados, e os habitantes de
Amsterdão faziam todos os possíveis para que as muitas crianças judaicas
pudessem, o mais tempo possível, viver despreocupadamente entre eles. As
crianças bem sabiam o que as ameaçava e o que se passava em sua volta mas
sentiam-se, ainda durante bastante tempo, amparadas pelos amigos.
O pai de Lies tinha sido chefe de imprensa do último governo da Prús-
sia e emigrara, com toda a família, em 1933 para a Holanda. Moravam na vi-
zinhança dos Frank no Mervedeplem, em Amsterdão-Zuid, um dos arrabaldes
vastos, modernos, cheios de luz que prolongam a cidade para o Watergra-
af~meer, o Buitenveldertse Polder e o Slotermeer, bairros grandes com ruas
largas, filas de casas simples e claras com essas janelas holandesas, ca-
racterísticas pelo tamanho enorme e que nos dão sempre a impressão de serem
feitas não para se olhar para fora, mas para se espreitar lá para dentro.
O Merwedeplein é uma praça grande com um gigantesco campo de jogos
para crianças, no centro. Segui o caminho por onde Anne costumava ir passe-
ar, o seu "carré" de que fala no diário, em 30 de Junho de 1942. Estende-se
pelo lado do sul do Merwedeplein, depois segue através duma ruela e pela
margem do Victoriaplem até o Rooseveltlaan, como se chama agora o grandioso
"boulevard" onde canaliza a circulação dos blocos de moradias. E, finalmen-
te, voltei pela Waalstraat ao Merwedepiem. Este passeio leva onze minutos,
incluindo uma espreitadela para a montra da relojoaria de Titus Kaspers e
para a livraria na esquina de Wallstraat.
O caminho de Anne para a escola Montessori, na Niersstraat, não leva-
va mais tempo do que isso. Também não me esqueci de comer um sorvete de
morangos na "Oásis", na confeitaria onde os Judeus podem entrar, como es-
creveu Anne em 1942. Mas a sorvetaria tinha mudado de dono e a nova dona
nada sabe dos fregueses de outrora.
Todos estes sítios Anne os percorreu, com as amigas, com Rob (o rapaz
que lhe deu o broche), com Harry Goldberg, o seu último amigo na "vida nor-
mal", e na esquina estava Peter Wessel com dois outros rapazes.
"Era a primeira vez" que Anne o reencontrava e ela "ficou radiante", e em
toda a parte sentia-se amparada pelo ambiente burguês, claro e uniforme do
bairro. Não costumava ser assim o aspecto dos teatros de tragédia, e é uma
sensação estranha caminhar agora por estas ruas sabendo o que aqui aconte-
ceu. Margot, Anne, Sanne, Peter Wessel - todos eles morreram. Mas o pavi-
mento não tem consciência, não mostra vestígio algum. Os rapazes continuam
a passar de bicicleta, com toda a velocidade, e as alunas do terceiro ano,
quando se encontram, descem das bicicletas e desatam a palrar enquanto as
pastas balouçam nos guiadores. E em cada esquina, de manhã até à tarde, o
chilrear encantador e trivial:
"Já fizeste o terceiro exercício? Qual é o resultado?" E estamos em Junho,
como naquela altura em que Anne descreveu o passeio com Harry, e só quando
dei a volta ao "carré" pela segunda vez, descobri na montra da livraria na
esquina da Vaalstraat, onde o sr. Frank comprou, há quinze anos, o diário
aos quadradinhos vermelhos para o aniversário de Anne, o retrato dela. Três
exemplares do seu livro lá estão também, em fila, e é este o único rasto.
Anne escreveu, no esconderijo, uma história que se passa numa destas
ruas amáveis e claras: Riek
às quatro e um quarto passei por uma rua bastante calma. Tinha preci-
samente resolvido entrar na primeira confeitaria quando, duma rua transver-
sal, surgiram duas raparigas que conversavam com excitação e seguiam enla-
çadas, na mesma direcção que eu.
Toda a gente acha interessante escutar as conversas de duas adoles-
centes e não só por elas se rirem por tudo e por nada, mas também por o seu
riso ser de tal forma contagioso que ninguém se pode aproximar delas sem se
rir também. Tal e qual me aconteceu a mim. Enquanto caminhava atrás das
duas raparigas, escutei. E ouvi que a conversa girava à volta deste assun-
to: quais são os melhores doces que se podem comprar por um "Groschen"...
Quando as duas estavam em frente da confeitaria ainda não tinham che-
gado a um acordo e eu, ao ver na montra as gulodices todas, sabia já, ainda
antes de elas terem entrado, o que escolheriam.
Na confeitaria havia pouca gente. As duas foram imediatamente atendi-
das e compraram duas fatias grandes de torta que por milagre conseguiram
trazer para a rua sem lhes tocar.
Meio minuto depois eu também tinha o que queria e vi as duas, de no-
vo, a caminhar diante de mim, palrando.
Na próxima esquina havia uma padaria e uma rapariga estava, de olhos
carregados de desejo, a fixar os doces da montra. As duas possuidoras feli-
zes das fatias de torta ficaram paradas junto da pequenita e olharam também
para dentro da montra. Depressa travaram conversa. Foi justamente neste
momento que dobrei a esquina e ainda apanhei
o fim da conversa.
"- Tens muita fome ?-perguntou uma delas à criança.
- Gostavas de uma fatia de torta?"
A pequenita disse que sim com a cabeça. Mas então a outra rapariga inter-
veio:
"- Não sejas tola, Riek. Mete a fatia depressa na boca, como eu. Se a
deixares trincar, vais ter nojo de comer o resto".
Riek não respondeu. Olhou da sua torta para a criança, um pouco inde-
cisa, mas depois deu a fatia toda à criança e disse de um modo simpático:
"- Toma, come tudo. Eu tenho logo o meu jantar."
E antes da criança poder agradecer, já as duas amigas tinham dobrado
a esquina.
A pequenita mastigava a torta quando passei por ela e disse-me:
"- Queres provar? Foi uma prenda que me deram..."
Toosje K. é agora uma jovem mulher. (Elas todas seriam hoje jovens
mulheres !). E Toosje contou-me que os meninos jogavam "hinkelen" que é
coisa semelhante a "céu e terra", um jogo com riscos a giz sobre o pavimen-
to em que o problema consiste em se poder entrar aos saltos nalguns quadra-
dos, enquanto outros são severamente interditos. Eu calculava que devia ser
mais ou menos isso, pois vira uma fotografia que mostra Lies e Anne no pas-
seio, Anne a desenhar qualquer coisa no chão. Mas o que eu ignorava era que
em Amsterdão-Zuid também se brincava aos arcos e que, nesse tempo, estava
em voga o pino, mas o pino contra o muro, como confessa Toosje, porque o
que, realmente, importava mais do que a execução perfeita era quanto tempo
cada um se aguentava naquela posição. Infelizmente Anne só sofria desgostos
e derrotas com tais exercícios, disse Toosje. Dobrava-se, perdia o equilí-
brio e caía. Era bastante mais pequena do que Toosje e a mais nova de to-
das, mas um dia, disse esta coisa muito certa:
"-Tudo isso não é razão para eu não conseguir fazer o pino".
Toosje ainda se lembrava de outro desgosto de Anne: não sabia assobi-
ar. Não conseguia aprendê-lo por mais que ensaiasse na escada e no Menvede-
plem. E assobiar era quase obrigatório saber-se. Toosje contou-me que a
gente jovem nunca tocava a campainha quando se visitava. Assobiava, era
coisa combinada. E como resolvia Anne este assunto?
"-Sabe o que ela fazia?-pergunta Toosje.
-Cantava em vez de assobiar".
E Toosje canta a melodia de Anne não se importando de corar até às
orelhas; e ao cantar pestaneja e fixa um ponto secreto que não existe no
quarto, e canta "Lalalalala", e outra vez "Lalalalala", cinco
notas? cinco terceiras, para cima e para baixo,
e à segunda vez até coloca as mãos na boca para que
a melodia soe de facto como soava quando Anne
a cantava, com a boca na abertura da caixa de
correio - e, de facto, soa como soava então, exactamente assim, e a mãe de
Toosje aprova com a cabeça,
e só faltava ouvirmos o bater da pala da caixa de
correio.
Depois disso perdemos por um momento o fio da conversa. Mas logo me
ocorreu perguntar a Toosje se também fora ver a peça de teatro. Toosje aba-
nou a cabeça negativamente, e a mãe disse:
"-Não, não fomos, nem a Toosje nem eu. Tivemos aqui connosco, durante
a guerra, o gatinho de Anne. Por isso não quisemos ver a peça. Só a minha
filha mais velha aceitou o convite. Mas não nos chegou a dizer como aquilo
foi".
Anne, durante dez segundos. Sabia ela quem era? Pergunto-me a mim
mesmo. Mas não há resposta a esta pergunta. que tentava descobrir quem era,
não duvido. Vi muitas fotografias dela em casa dos amigos. O sr. Frank mos-
trou-me o album onde a sra. Frank começara a colar fotografias de Anne des-
de o tempo de bebé. A própria Anne também coleccionava fotografias suas e,
por vezes, escrevia um breve comentário à margem:
Que graça
O que virá depois?
Estou bem.
Estou simpática.
É justamente assim que eu queria sempre ser. Dar-me-ia probabilidades
de ser aceite em Hollywood. Mas nesta altura, infelizmente, não me pareço
quase nunca com esta fotografia...
O melhor retrato é o último. É também o mais conhecido em quase todas
as edições do diário: Anne sentada à mesa, em frente de um livro ou de um
caderno, os braços um em cima do outro. Traz uma blusa branca de rendas e
cabelos compridos e soltos. Sorri, mas essencialmente com a boca. Os olhos
quase que não sorriem. São muito grandes, há neles algo de pesado, não prô-
priamente de melancólico, mas trazem o peso de experiências que vai muito
para além das experiências pessoais.
Anne escreveu, certo dia, uma lista a que deu
o título de "A beleza". Nela mencionou as características que, em seu en-
tender, uma pessoa bonita devia possuir, e examinou-se a si mesma, para
verificar até que ponto correspondia às suas próprias exigências. Eis a
lista: Cabelo preto e olhos azuis? Co vinhas nas faces? - Sim Covinha no
queixo? - Sim.
Tez clara? - Sim Boca pequena? - Mãos e
Unhas bonitas? - Por vezes Inteligente? - Por vezes...
DECLARAÇãO
DO cALENDÁRIO DO INFERNO
DEcLARAÇÕES
DO cALENDÁRIO DO INFERNO
DO CALENDÁRIO DO INFERNO
DO CALENDÁRIO DO INFERNO
DECLARAÇÕES
Toosje diz:
- Era precisamente no tempo em que, de noite, os aviões sobrevoavam
Amsterdão, e havia sinal de alarme. Estávamos no portal da entrada, nós, os
Frank e outra gente do prédio. Projectores iluminavam o céu, os canhões de
defesa disparavam e lançavam faíscas, e a Anne estava ao meu lado, com a
estrela no peito, e tínhamos medo. A Anne estava sempre cheia de medo. Mas
vinha também um tal dr. Beffie, da casa pegada, que se juntava a nós quando
havia alarme. Nunca se esquecia de trazer consigo um pedaço de pão que mas-
tigava lentamente, muito lentamente, e Anne, apesar de estar cheia de medo,
não conseguia despregar os olhos dele. E uma vez, depois de ter terminado o
alarme, ela disse-me: "-Credo, se eu mastigasse tão devagar, não havia de
nunca matar a fome...".
DO CALENDÁRIO DO INFERNO
DECLARAÇÕES
Pela mesma altura escreveu Anne uma carta de despedida a Jopie. En-
contrei-a nos seus papéis. Diz-lhe para não se afligir por sua causa, que
ela está bem. No mesmo dia escreve uma segunda carta a Jopie, imaginando
que Jopie lhe tinha respondido, pois diz:
Fiquei contentissima com a tua carta...
E pede a Jopie para rasgar em pedacinhos todas as suas cartas para
que ninguém as descubra e fique a saber onde ela está escondida...
Já se vê, nenhuma das cartas de Anne chegaram aos destinatários. A
Anne bem o sabia. De resto nem as mandava para O correio, guardava-as den-
tro dos seus cadernos. Mas tudo isso dá-nos a impressão de que a vida, a
vida normal, ainda continuava durante algum tempo, como acontece ao coração
de certos animais, que continua a palpitar alguns momentos depois da morte.
Não sei quantas pessoas vivem em cada época com o destino estranho de
se poderem ver a si próprias e aos seus actos representados no palco. Mas,
de certo, não serão mais do que algumas dúzias. E eu tinha à minha frente
três pessoas dessas: Elli, Miep e Koophuis. Viram-se representados no tea-
tro, mas isso em nada os prejudicou. Miep é uma mulher ainda nova, pequena,
delicada e Inteligente, e Elli uma jovem mãe holandesa, cheia de frescura,
tal como os livros descrevem as jovens mães holandesas, como os velhos pin-
tores holandeses as pintavam. Koophuis é um homem de estatura média, muito
magro, adoentado, frágil e de cabelo branco. O seu rosto, angulosamente
recortado, lembrava um pássaro. Não é "da raça dos destemidos" mas antes "o
tipo do homem de escritório". No entanto, foi destemido. Foi-o pelo seu
grande sentido de ordem.
O sr. Koophuis conhece o sr. Frank desde 1923. Encontravam-se em reu-
niões comerciais, em Amsterdão. "O sr. Frank vinha de Berlim ou de Frank-
fort. Andava sempre em viagens, era vivo, enérgico, e depois de uma reunião
partia logo".
-Em 1933 surgiu, de repente, no lumiar da porta, e foi, nessa altura,
que começou a nossa amizade longa e ilimitada. Tornamo-nos amigos íntimos,
mas isto decerto não interessa ao senhor...
Foi em 1941 que Koophuis tomou o lugar do sr. Frank na Travis, para
que a firma não fosse sequestrada ou liquidada como empresa judaica. quando
no ano seguinte, começaram as razias, o sr. Frank dormia, muitas vezes, em
casa de algum dos representantes da Travis ou dalgum amigo. Como acontecia
a muitos emigrantes da Alemanha, também ele, nessa altura, era ainda avisa-
do por este ou aquele funcionário da polícia internacional holandesa, quan-
do o bairro onde habitava corria perigo. Uma voz desconhecida aparecia ao
telefone, dizia aos Frank alguma coisa sem importância e desligava. Só as-
sim é que se tornava possível transmitir avisos camuflados, pois nunca se
sabia se a rede telefónica não estava a ser controlada. Koophiiis e Kraler
achavam que o sr. Frank e o sr. van Daan, ambos a correrem o mesmo perigo,
deviam pensar em arranjar um esconderijo, porque as perseguições podiam
intensificar-se. Propuseram-lhes o anexo da casa comercial na Prinsengra-
cht. Afinal essas divisões só se utilizavam ocasionalmente para trabalhos
de laboratório ou para arrumações de actas. E já não se faziam trabalhos de
laboratório. As matérias-primas, distribuídas pelos serviços de reabasteci-
mentos tinham de ser utilizadas nos moinhos de especiarias.
Frank e van Daan aceitaram a proposta. Mas como os judeus não recebi-
am autorização para mudar de habitação e nem sequer para transportarem u-
tensílios de casa, Koophuis encarregou-se de mandar buscar, da residência
dos Frank, pouco a pouco, a mobília, os tapetes e outros objectos, com o
pretexto de que necessitavam de ser limpos ou concertados. Mas, na realida-
de, todas essas coisas se levavam para casa de Koophuis e dali para a Prin-
sengracht, nos sábados, depois de fecharem os escritórios, onde eram escon-
didos no anexo.
Miep disse:
- O sr. Frank conformou-se. Saiu da firma quando achou conveniente
sair, pôs a estrela e guardou silêncio. Nunca nos revelava o que sentia.
Lembro-me bem daquele dia em que entrou no escritório, quando desabotoou a
gabardine e eu lhe vi a estrela sobre o peito. Na gabardine não trazia es-
trela. Esforçamo-nos para o tratar com naturalidade e falar com ele como de
costume e como se fosse a coisa mais natural deste mundo ele não deixar de
aparecer no escritório. Compreendemos que receava da nossa parte alguma
manifestação de piedade.
Era seu feitio resolver sôzinho os problemas íntimos. Aliás um feitio
bem prussiano.
Elli, a mais nova na firma, não se dava conta das mudanças e dos pre-
parativos secretos. Via que, de vez em quando, apareciam peças de mobília
que eram levadas para cima, mas não procurava saber a razão disso nem fazia
perguntas.
Mas, na primeira semana de Julho, todos os empregados se reuniram no
antigo escritório particular do sr. Frank. Como outrora, o sr. Frank estava
sentado atrás da escrivaninha, e o sr. Koophuis informou-os de tudo, e pro-
meteram guardar silêncio. Mas o que ninguém sabia era que, já na mesma se-
mana, se efectuaria a mudança.
O Diário de Anne Frank conta tudo o que se passou durante os vinte e cinco
meses em que os Frank e os seus amigos estiveram escondidos nesta casa. Só
se podem acrescentar a crónica de Anne notas marginais que não conseguirão
tomar o quadro mais nítido, mas que lhe fornecem a moldura.
Oito pessoas viveram aqui na ilegalidade ou, mais exactamente, viviam
aqui, mas a vida perdera a legalidade. O destino fez com que os oito seres
humanos não fizessem parte do mundo e da liberdade. Ou éramos nós que esti-
vemos na prisão por esta criança ter levado consigo toda a liberdade de
imaginação ?-Seja como for, uma porta camuflada separou-nos, durante dois
anos, dessas oito pessoas. Deixemos falar aqueles que conheciam o fecho
secreto da porta:
O sr. Koophuis e o sr. Kraler andavam muito preocupados durante aque-
les anos. As duas firmas eram permanentemente ameaçadas por terem sido an-
tigas empresas judaicas. O segredo da casa transformava essa ameaça num
perigo pessoal para todos. Passado pouco tempo o chefe do armazém, o sr.
Vossen, pai de Elli, adoeceu com um cancro no estômago. Foi preciso contra-
tar um substituto. Chamava-se "M". Desde o primeiro dia mostrava-se indis-
creto, manhoso e antipático, de modo que havia agora mais uma preocupação.
Daqui em diante passou a haver no prédio gente que conhecia o segredo e
outra a que era necessário escondê-lo. E, ainda por cima, surgiam inciden-
tes que, na situação em que se estava, conduziam sempre à beira duma catás-
trofe: um dia uma tempestade danificou o telhado das traseiras. Era indis-
pensável repará-lo. Mas como havia de ser se os pedreiros ficavam separados
das pessoas escondidas apenas por umas simples tábuas? E se uma das tábuas
se partisse?... quem lhes valeu foi o irmão do sr. Koophuis que dirigia uma
empresa de construção civil.
Numa outra ocasião o proprietário da casa (a firma só era inquilina)
teve a ideia de vender o prédio. Apareceu com um interessado, e Koophuis
viu-se obrigado a mostrar-lhes andar por andar. Elli parece recordar-se de
que o eventual comprador dizia, de vez em quando, umas palavras em alemão.
Koophuis mostrou os armazéns, os escritórios, os sótãos mas disse-lhes que
não os podia levar ao anexo por ter perdido a chave. Fez-lhes ver que aque-
las dependências não tinham grande interesse. Os visitantes deram-se por
satisfeitos e foram-se embora. De vez em quando o sr. van Daan telefonava,
de noite, a Koophuis porque lhes parecia ouvir ladrões e uma vez a casa, de
facto, foi arrombada. Mas, apesar de tudo isso, todos receavam menos os
ladrões do que a polícia!
O sr. Koophuis disse que não havia outro remédio senão vencer a si-
tuação tal qual ela era. E, felizmente, tinha uma mulher que nunca resmun-
gava. Só se mostrava apreensiva com a saúde dele.
O mais difícil, no entanto, era abastecer os "mergulhados" com géne-
ros alimentícios. Eram sete pessoas e a partir de Novembro de 1944 passaram
a ser oito. Compravam-se senhas de racionamento no mercado negro. Pessoas
desconhecidas prestavam ajuda sem perguntar a quem se destinavam os géne-
ros. Entre elas havia algumas que conheciam os Frank. Talvez adivinhassem o
segredo que Koophuis guardava com a máxima cautela. Mas não o incomodavam
com perguntas. As pessoas sabiam calar-se nesse tempo, disse o sr. Koo-
phuis.
Para alimentar oito pessoas necessita-se de muito pão. Koophuis pro-
curou um padeiro em Amsterdão que mal conhecia. Os Frank e os van Daan nun-
ca tinham tido contacto com ele. Koophuis disse-lhe que precisava de pão,
de muito pão. O padeiro parecia não desconfiar de nada e deu-lhe muito pão
durante meses e meses. As senhas que faltavam punha-as na conta.
Quando, mais tarde, Koophuis saiu da prisão e visitou o padeiro para
tratar com ele o assunto da dívida, verificou que esta importava em quatro-
centas senhas. Uma senha de pão custava naquele tempo quarenta florins no
mercado negro. O sr. KooPhuis disse que não tinha tanto dinheiro e, sem
dizer uma palavra, o padeiro riscou a dívida do livro.
As batatas e a hortaliça compravam-nas Miep e o marido no nosso hor-
taliceiro da esquina como Anne escreveu. Numa outra ocasião escreveu:
Esta manhã prenderam o nosso simpático hortaliceiro...
Visitei o hortaliceiro, o sr. van H. Já não tem
a loja na Leliegracht. Encontrei-o na sua salinha
de estar na Kostverlorenkade, 11, em Amsterdão-Oeste. É um homem gentil, um
homem admirável.
A esposa fez-nos café. O sr. van H. disse que já não
possuía negócio nenhum. que vivia da reforma.
O sr. van H. é alto e forte, na casa dos cinquenta. Tem mãos grandes
e um crânio enorme. Um lavrador na cidade.
Pois sim, antigamente tinha uma loja mas, apesar disso, circulava,
quase sempre, pelas ruas com a carroça de hortaliça. Todas as manhãs rece-
bia uma lista de endereços onde depois entregava as hortaliças, mas nunca
lá encontrava as pessoas indicadas. Punha as encomendas à porta ou, por
vezes, aparecia alguém e tomava conta delas. Não procurava saber quem comia
as batatas. Só lhe interessava que tivessem batatas para comer.
Evidentemente que conhecia Miep mas nunca lhe perguntara como era
possível ela e o marido comerem tanta hortaliça. Não se faziam perguntas
inúteis naquele tempo. E, de resto, não havia nada que perguntar, pois ele
nem sequer conhecia os Franks. Além disso, bastavam-lhe as próprias preocu-
pações, porque também ele tinha umjudeu escondido em casa. Até ao mês de
Abril de 1944. Depois alguém o denunciou e, com ele, mais cento e cinco
amigos, todos membros do "grupo de auxílio aos mergulhados".
às vezes afixavam cartazes durante a noite...
O sr. van H. tira da carteira a fotografia duma parede cheia de cartazes
com propaganda da Feira de Colónia de 1941, de um concurso fotográfico de
soldados alemães e do alistamento na "Arbeitsfront" holandesa. E, no meio
disso tudo, há um cartaz com a palavra "VITÓRIA!". Entre os dois braços do
v está entalada a cabeça de Hitler.
Todo o grupo dos cento e cinco foi denunciado e também o sr. Weiss, o
judeu escondido em casa do hortaliceiro. Levaram-nos para a prisão da Ges-
tapo, depois transferiram-nos para o campo de Vugh, dali para Oranienburg,
depois para Gross-Rosen e dali para Dora, perto de Nor'dhausen e, finalmen-
te, para Winsleben am See. Empurravam-nos dum campo de concentração para
outro. Só no transporte de Gross-Rosen para Dora morreram de frio duas mil
e setecentas pessoas, dum total de três mil, que passaram três dias e meio
em trinta vagões de gado. O sr. van H., todavia, teve sorte. Regressou a
casa depois da guerra, ele e mais quatro, do grupo dos cento e cinco.
Ao despedir-me, o sr. H. acompanhou-me à porta e vi que arrastava a perna.
Gelaram-lhe as duas pernas no trajecto de Gross-Rosen, na Silésia, para
Dora, que fica situado perto de Nordhausen, no Harz, como já expliquei an-
teriormente.
O sr. Frank contou-me que nos primeiros tempos tiveram muito medo de
serem descobertos pela polícia. Mas os meses foram-se passando, uns após
outros, depois o primeiro ano, depois o segundo. E quando receberam a notí-
cia do desembarque na costa do Canal e do avanço das tropas aliadas na
França, sentiram um grande alívio e encheram-se de esperança. Em con-
tra-partida, receavam muitas vezes que um incêndio se declarasse nas tra-
seiras e que isso os obrigasse a fugir para a rua.
A casa era velha e em grande parte de madeira.
O menor descuido, um fósforo, por exemplo, teria sido suficiente... Uma
bagagem mínima para o caso de fuga estava sempre pronta. Cada um dispunha
duma mochila. O sr. Frank tencionava levar, além da mochila, uma pasta com
os cadernos e o diário de Anne. Tinha-lho prometido. As bombas caíam na
Holanda, e Amsterdão não era poupada. Todas as noites as esquadrilhas de
aviões sobrevoavam o telhado, o perigo era permanente e não havia sequer
uma cave. Todo o edifício estremecia com os tiros das baterias antiaéreas.
O sr. Frank disse-me que essas noites chegaram a esgotar as forças de
Anne. Por vezes, o medo dominava-a de tal maneira que só acalmava quando a
deixava meter-se na cama dele.
Entre as histórias de Anne há uma que traz a marca desta angústia.
Medo
quem, no anexo, conhecia esta história? O sr. Frank disse-me que Anne
lhe lia, de vez em quando e em voz alta, uma ou duas páginas do seu diário
e também algumas histórias. Mas esta novela nunca a tinha ouvido. De resto,
não achava muito bem falar com Arine sobre o ela escrever, porque em sua
opinião, isso de escrever deve respeitar-se como a uma coisa muito pessoal.
Miep diz que sabia que a Anne escrevia. Antes do tempo do anexo, Miep
e o marido tinham conhecido a Anne muito superficialmente. Só costumavam
vê-la então, quando havia convites em casa dos Frank. Mas como Anne era uma
criança fraca, os pais mandavam-na deitar logo depois da refeição. Amuada,
obedecia.
-Mesmo no anexo-diz Miep-a Anne não deixava de ser uma criança, uma
rapariguita de catorze anos, que vivia numa grande angústia. Mas também os
adultos viviam na angústia. quando subíamos para os visitar assaltavam-nos
com perguntas: "-que é que se passa lá fora? que há de novo?" Era preciso
pensar bem e pesar todas as palavras para lhes contar u'nicamente aquilo
que era conveniente contar e para esconder o que era conveniente escon-
der-lhes. Talvez não prestássemos sempre bastante atenção ao que a Anne nos
perguntava a meia-voz.
"Mas um dia, quando cheguei lá acima, a Anne estava sôzinha à mesa a
escrever. Escrevia num desses livros de conta-corrente como os usávamos no
escritório, isso vi logo. Ela fechou o livro imediatamente e ficou corada.
Nesse mesmo instante entrou a sra. Frank e disse: "-Como vê, temos uma fi-
lha que escreve. A Miep não sabia?" Disse isso num tom de orgulho mas tam-
bém de solidão e de desgosto, porque aquela filha, ao escrever, afastava-se
dela. Eu, a olhar para a mãe e a filha, disse: " -Eu não sabia que a Anne
escrevia". Mas, na verdade, sabia-o muito bem".
Informei-me junto de Miep e de Henk sobre a mãe de Anne e sobre os van Daan
e o sr. Dussel.
-Vi a sr.& Dussel muitas vezes. Ela não fazia ideia onde se encontra-
va o marido. Aliás, a sra. Dussel conhecia a Anne e gostava muito dela.
Miep tinha pena da sra. Dussel. O sr. Dussel, não há dúvida, era um
homem culto e inteligente. A vida no anexo apertado é que fez dele uma pes-
soa de difícil convívio. Mas, também, que vida aquela! Anne, no seu Diário,
traça o perfil do sr. Dussel com muita severidade.
Li, um dia, a história de dois aviadores australianos que fizeram uma
aterragem forçada nos bancos de gelo do Antártico. Ficaram retidos durante
sete meses numa gruta de gelo. O pior de tudo, escreveu um deles, não foi o
gelo, o medo ou a solidão; o pior de tudo era o outro fazer, todas as ma-
nhãs, os mesmos ruídos ao lavar os dentes e, todas as noites, os mesmos
gestos ao dobrar as calças...
-O sr. Dussel enervava a Anne-diz Miep.
-Foi isso e mais nada. Muitas vezes Miep desempenhava para a sra. Dussel o
papel de agente secreto, transmitindo-lhe "saudades" do marido do estran-
geiro. E com isso dava, de todas as vezes, uma grande alegria à senhora.
Falando dos van Daan, Miep descreve Peter como um rapaz bom e sim-
ples. Anne fazia, às vezes, pouco dele por causa de certas manias que ti-
nha. Mas do Diário bem se deduz que ela o amava, embora este amor talvez
não passasse de um sonho de amor. Através do amor por Peter ela adivinhava
o seu amor futuro...
-O sr. van Daan era um homem inteligente e bem educado. Mas com o
tempo a força dos seus nervos ia afrouxando. Em contrapartida, a sra. van
Daan era uma pessoa simples e, ao mesmo tempo, medrosa e alegre como o são,
normalmente, as pessoas cheias de vida. Mas se, entre aquela gente, houve
alguém que previsse o fim trágico foi ela, a sra. van Daan. Pode ser que o
mesmo tenha acontecido com a sra. Frank, se bem que ela não fosse medrosa.
A sra. Frank era uma senhora cheia de bondade e de humor, por vezes muito
calada, e a grande afeição da Margot por ela prova que a Anne não era justa
na descrição da mãe, no seu Diário.
Mas súbitamente Miep diz:
-Talvez faça mal em falar de justiça. A Anne era justa à sua maneira.
Mas era impiedosa. Sim, era impiedosa. E nós todos sabemos agora que era
ainda mais impiedosa com ela própria do que com os outros. Apesar disso,
era a mais feliz de todos. Os outros viveram os vinte e cinco meses numa
angústia permanente. Mesmo a Margot estava, por vezes, totalmente deprimi-
da. Só para a Anne é que esse tempo significava uma aventura. Foi ela pró-
pria quem o disse quando escreveu:
Sou nova e vivo esta grande aventura conscientemente.
Era Elli quem durante todo esse tempo se aproximava mais de Anne.
Elli é meiga, dedicada, um tanto insegura e tímida mas, ao mesmo tempo,
sincera e cordial. Tinha mais oito ou nove anos de que Anne, mas Anne não
se sentia tão insegura e tão desamparada, o que lhe emprestava uma certa
superioridade. Elli estava noiva e sempre cheia de problemas. Como não ti-
nha ninguém a quem se pudesse confiar e como Anne vivia, nessa altura, o
seu romance de amor com Peter, as duas, pouco a pouco, tornaram-se amigas.
Elli conta que Anne sabia, por vezes, ser para ela uma autêntica irmã e
outras vezes, como uma mãe, de tal forma a felicidade a amadurecia.
As minhas conversas com Elli tiveram um carácter singular. No início
ela mostrava-se insegura e reservada, mas depois de vencido o embaraço,
parecia nunca mais poder parar de falar. Recordações e imagens vividas há
treze anos brotam dela com grande frescura. Não são palavras filtradas ou
controladas, parece que as coisas se passaram ontem e o que separa Elli do
passado é apenas a perda dos amigos.
-O grande amor da Anne pelo pai era perfeitamente natural-diz-me ela.
Os dois pareciam-se muito. O sr. Frank, tal como ela, possuía essa compre-
ensão que é característica dos poetas. Sabia ser meigo como a Anne e não se
poupava a qualquer esforço. Ao ler o Diário lembrei-me de muitas coisas
pequenas, que não são mencionadas. Por exemplo, contou-me a Anne uma vez
que tinha muitas saudades de Moortje, o seu gatinho. E que sentia um desejo
de carinho, umas vezes com mais outras com menos força, mas que esse senti-
mento estava sempre presente.
Numa ocasião Anne leu uma passagem a Elli, onde dizia que Pim (era
assim que chamava ao pai) era um grande optimista, que sempre encontra um
motivo para o seu optimismo.
-Anne não era optimista nem pessimista. Era como era, eis tudo... às
vezes mostrava-se agressiva e parecia-se com uma escova de arame. Nessas
ocasiões só o pai sabia metê-la na ordem, e isso com uma única palavra.
Tratava-se da palavra secreta "controle" que ele lhe cochichava aos ouvi-
dos.
O efeito era imediato, pois a Anne tinha, tal e qual o pai, um ouvido apu-
rado, e uma palavra pronunciada em voz baixa valia mais do que todos os
berros.
Elli sentia que podia fazer confidências a Anne. Como eu já disse,
Elli tinha, naquele tempo, muitos problemas. queria casar com o homem de
quem gostava, e isso estava certo. Conta-me que, muitas vezes, se juntava
com Anne para conversarem e para contarem histórias uma à outra e, por ve-
zes, também choravam juntas.
Anne, apesar de não alimentar muitas ilusões quanto à sua situação,
tinha confiança no futuro. Depois de ter lido, um dia, uma das suas histó-
rias a Elli, perguntou-lhe:
-Não podias conseguir que fosse publicada?
Uma outra vez Elli perguntou à amiga se ela queria ser realmente es-
critora. Primeiro, Anne disse que sim, depois que não, depois novamente que
sim e, de repente, exclamou radiante:
- quero mas é casar-me depressa e ter muitos filhos!
-Oh, eram tantos os projectos que fazíamos juntas!
Quando Blurry era ainda pequeno teve, certo dia, a ideia fantástica
de fugir à mãe ursa e de descobrir o mundo. Durante uns dias não tinha a
vivacidade habitual, tanto cismava nos seus planos. Finalmente, na noite do
quarto dia, estava tudo resolvido. O plano estava concluí'do e à espera de
execução. Blurry queria sair, de manhã cedo, pelo jardim e sem fazer baru-
lho, para que Miesje, a sua dona, não desse conta de nada. Depois queria
escapar-se por um buraco debaixo da sebe e depois... e depois ia descobrir
o grande mundo.
Fez tudo tão silenciosamente que só deram pela sua fuga muitas horas
depois de ele se ter ido embora. Trazia o pêlo todo besuntado de terra e de
barro quando saiu do outro lado da sebe, mas um urso que pretende descobrir
o mundo não pode perder tempo com tais ninharias. Olhando sempre em frente,
para não tropeçar nas pedras, Blurry caminhou com certa dificuldade por
entre os arruamentos dos jardins. Quando chegou à rua, assustou-se com tan-
ta gente crescida e, de repente, notou que ele desaparecia completamente
entre a multidão de pernas. Tenho de me conservar bem à beira, pensou, ou
acabo por cair. Era muito ajuizado. Era, sim senhor. Pois só um urso ajui-
zado poderia com tão pouca idade ter o desejo de descobrir o mundo.
E assim correu junto da borda da rua e sempre com cautela, para não se me-
ter nos apertos. De repente, o coraçãozinho começou a bater-lhe com força:
o que será aquilo? Um grande abismo escuro abriu-se diante dele. Era o res-
piradouro de uma cave, mas isso, já se vê, Blurry não o podia saber. Come-
çou a ficar tonto. Seria preciso ele descer lá para o fundo? Assustado,
olhou à sua volta, mas as pernas dos homens dentro das calças e as pernas
das mulheres dentro das meias continuaram a caminhar sobre o abismo como se
nada fosse. Blurry, ainda mal refeito do seu susto, correu atrás daquelas
pernas todas, sempre ao longo do muro.
Cá estou a correr pelo mundo grande, mas, afinal, onde é que está o
mundo grande? Com tantas pernas não vejo mesmo coisa nenhuma, pensou Blur-
ry. Pelos vistos ainda sou muito pequeno para poder descobrir o mundo. Mas
isso não importa. Quando for mais velho também serei maior depois de ter
bebido muito leite com nata (ao pensar na nata os cabelos puseram-se-lhe
todos em pé) serei tão grande como um homem. O melhor a fazer, para já, é
eu continuar a caminhar. De alguma maneira sempre hei-de ver o mundo.
Blurry continuou e fez todos os possí'veis para não se incomodar mui-
to com as pernas gordas e magras à sua volta. Mas por quanto tempo teria de
correr dessa maneira? Já estava com fome e via que o céu começava a escure-
cer. Blurry não se lembrava de que era preciso comer e dormir. Ao elaborar
o plano de descobrimentos estivera tão ocupado que não lhe tinham ocorrido
coisas tão banais e tão pouco heróicas. Suspirou e correu mais um bocado,
até dar com a porta aberta de uma casa. Primeiro hesitou, mas depois en-
cheu-se de coragem e entrou cautelosamente. Que sorte!
Mal tinha passado por uma segunda porta, viu uma coisa de madeira com qua-
tro pés e em cima dessa coisa uma tijela de leite com nata e outra tijela
cheia de comida.
Esfomeado e ávido de coisas tão boas bebeu o leite de um trago e não se
importou nada com a nata, parecia quase um urso crescido. Depois atirou-se
à comida e, finalmente, sentiu-se satisfeito e contente.
Mas que susto! O que era aquilo?
Uma coisa branca com olhos verdes aproximava-se lentamente a fitá-lo.
Quando chegou ao pé dele parou e perguntou em voz alta:
- Quem és tu? E porque é que me roubaste a comida?
-Sou Blurry e quero descobrir o mundo. E para descobrir o mundo pre-
ciso de comer. Foi por isso que comi a tua comida. De resto não sabia que
era tua.
-Ah, queres então descobrir o mundo! Mas porque é que escolheste pre-
cisamente a minha comida?
-Por não ter encontrado outra-disse Blurry o mais descaradamente pos-
sível.
Mas depois reflectiu e perguntou numa voz mais amável:
- E tu quem és? E a que espécie de criaturas esquisitas pertences?
-Eu sou a gata Miura e pertenço à raça dos gatos angorá. A minha dona
diz que sou muito preciosa. Mas sabes, aborreço-me bastante tão sôzinha.
Não queres ficar um pouco comigo?
- Tenho muito prazer nisso. Posso dormir aqui- respondeu Blurry, como
se prestasse um grande serviço à linda Miura-mas amanhã tenho de seguir
viagem para descobrir o mundo.
Para já Miura deu-se por satisfeita.
-Anda-disse ela, e Blurry seguiu-a para um outro quarto, onde também
não se viam senão pés. Pés grossos de madeira, grandes e pequenos. Mas ha-
via mais alguma coisa: num canto estava um cesto grande com uma linda almo-
fada de seda. Miura, que tinha as patas muito sujas, saltou para cima da
almofada.
-Não achas que eu devia lavar-me antes de me deitar?
-perguntou Blurry que não achou nada bem ela ter sujado a almofada.
- Eu encarrego-me disso - respondeu Miura - lavo-te a ti da mesma
maneira como me lavo a mim própria.
Blurry desconhecia por completo este processo de limpesa e foi o que
lhe valeu, pois se o conhecesse não teria deixado Miura começar o serviço.
A gata obrigou-o a pór-se direito em frente dela e lambeu-lhe, com toda a
pachorra, as patinhas. Blurry arripiou-se todo e perguntou timidamente se
ela tinha o hábito de se lavar assim.
- Tenho, sim - respondeu ela-e vais ver como te ponho lindo. A tua
pele vai ficar muito brilhante, e a um urso brilhante toda a gente o deixa
entrar, de modo que pode mais fàcilmente descobrir o mundo.
Blurry cerrou os dentes, e como era um urso muito corajoso, ficou
quietinho sem dizer nada. Mas a limpesa de Miura parecia nunca mais acabar.
Blurry quase que já não tinha paciência para mais. Já lhe doíam as patas de
estar tanto tempo em pé. Finalmente, ficou pronto e muito brilhante. Miura
estendeu-se no cesto para dormir e o urso, já mortinho de sono, deitou-se
ao lado dela. Não levou cinco minutos que os dois estivessem a dormir.
Na manhã seguinte o urso acordou muito admirado, pois não se lembrava onde
estava. Miura ainda ressonava. Como Blurry já sentia vontade de almoçar,
não respeitou o repouso da sua protectora hospitaleira e sacudiu-a enquanto
disse:
-Dá-me o pequeno almoço, Miura. Tenho uma fome terrível.
A linda gata angorá abriu a boca de sono, espreguiçou-se e ficou do
dobro do tamanho. Disse:
-Não te dou mais nada. É preciso que a minha dona não saiba que estás
aqui. Tens que desaparecer quanto antes.
Saíram ambos do quarto, passaram uma porta, mais outra porta e uma
terceira porta - desta vez de vidro - e, finalmente, chegaram lá fora. Miu-
ra ainda acompanhou Blurry até ao portão:
-Boa viagem, Blurry, espero que nos voltemos a ver qualquer dia.
E desapareceu.
Muito só e agora menos seguro de si, atravessou o jardim e saiu por
um buraco. Quando se encontrou de novo na rua perguntou a si próprio para
onde havia de ir e quanto tempo levaria a descobrir o mundo. Não sabia.
Seguiu lentamente, ao acaso, quando de repente, viu, ao dobrar a esquina,
uma coisa enorme de quatro pernas aproximar-se com toda a velocidade e emi-
tir uns sons tão tremendos que até lhe fizeram doer os ouvidos. Assustado,
encostou-se ao muro de uma casa. Mas o gigante parou mesmo ao pé dele. En-
tão Blurry começou a chorar, mas aquela coisa grande parecia não dar por
isso. Pelo contrário, sentou-se, pôs os olhos muito grandes no pobre do
ursinho, que estremeceu todo mas que se encheu de coragem e perguntou:
- O que é que queres de mim?
-Só quero olhar um bocadinho para ti, por que nunca vi coisa seme-
lhante em toda a minha vida.
Blurry sentiu-se aliviado. Afinal aquela coisa gigantesca sabia con-
versar com ele e entendia-o. Achou estranho. Como se explicava então que a
sua dona o não entendesse? Mas não pôde pensar nisso muito tempo, pois o
bicho abriu a boca enorme de tal modo que Blurry lhe viu os dentes todos.
Ficou mais arrepiado de que quando Miura se pusera a lavá-lo. O que é que
me irá fazer o bicho? Mas ficou a sabê-lo logo em seguida: o bicho agarrou
nele pelo pescoço e levou-o para o outro lado da rua.
Blurry não conseguiu nem sequer falar, porque estava prestes a sufo-
car. Nem gritar conseguiu. Só tremia, mas tremer é coisa que não serve para
dar coragem. A verdade, porém, é que não precisava de caminhar e se não
fosse o pescoço a doer-lhe tanto, aquele meio de transporte não era nada
mau. Pouco a pouco, porém, ia ficando tonto de tanto baloiçar. E onde iria
parar? Acabou por adormecer, mas o bicho não o largava. O sono foi, no en-
tanto, de pouca dura, por que o grande bicho já não se recordava por que é
que tinha pegado no ursinho. Como se fosse a coisa mais natural do mundo
deixou-o cair e, depois de o ter mordido mais uma vez no pescoço, desatou a
correr com toda a pressa.
O ursinho ficou completamente desamparado e só, entregue à sua dor.
Finalmente levantou-se, não queria ser atropelado, esfregou os olhos e,
muito admirado, descobriu que à sua volta havia agora muito menos pernas,
muito menos gente, mas muito mais sol e muito mais pedras debaixo dos seus
pés. Será isto o mundo...
Neste momento ouviu atrás de si um ruido e, assustado, virou-se para
saber o que se passava. Viria outro bicho para o morder? Mas não, era uma
menina pequena que olhava para ele.
- Olha, mamã, um ursinho. Posso levá-lo comigo?
-perguntou à mãe.
- Oh não, minha filha. É um urso doente. Não vês que está a sangrar?
-Não importa. Podemos lavá-lo em casa. Quero levá-lo comigo para
brincar com ele
Bem se vê, Blurry não estava a perceber patavina, pois os ursinhos só
entendem a língua dos animais, mas a menina de cabelo loiro parecia tão
bondosa e gentil que ele não se mexeu quando o embrulharam num lenço e o
meteram na saca de compras. Assim, a baloiçar dentro da saca, Blurry conti-
nuou a sua viagem pelo mundo.
Um pouco mais tarde a menina pegou nele e levou-o ao colo. Ele ficou
radiante, porque agora conseguia ver, pela primeira vez, a rua de cima. Que
montão de pedras estava diante dele, todas umas em cima das outras e de uma
altura enorme! Aqui e acolá, uma abertura branca e, acima de tudo, quase a
tocar no céu, talvez como adorno, tal e qual a pena no chapéu da sua dona,
saía um fio de fumo... Era deveras engraçado. E aquela coisa azul em cima
das pedras? E agora outra coisa a mexer-se, a encobrir o azul, a aproxi-
mar-se até passar mesmo por cima da cabeça dele e, logo em seguida, volta a
ser tudo tão azul lá em cima, e agora, cá em baixo, uma coisa a correr de-
pressa, a businar, uma coisa sem patas nem pernas. Realmente valia a pena
descobrir o mundo...
Finalmente, finalmente, a menina parou diante de uma porta onde eles
entraram e a primeira coisa que Blurry viu foi uma imitação da Miura, uma
gata, como ele agora já sabia. A gata roçou-se nas pernas da menina loira,
mas esta mandou-a embora e, com Blurry nos braços, dirigiu-se a uma coisa
branca que estava muito acima do chão e que era larga, branca e lisa. Come-
çou a lavar o ursinho, principalmente no sítio onde tinha sido mordido pelo
bicho estranho. Isso doía muito, e Blurry desatou a chorar, mas ninguém fez
caso. Felizmente tudo se passou com rapidez, e a menina enxugou-o. Depois
enfaixou-o num pano limpo e meteu-o numa cama, que era como aquela que ti-
vera em casa da sua dona. Mas porque é que o meteram na cama se ele não
tinha sono? Mal a menina tinha saído do quarto, Blurry saltou para fora da
cama, atravessou muitas portas e chegou à rua.
Agora tenho de comer qualquer coisa, pensou. Se o cheiro não me enga-
na, há comida aqui perto.
Seguiu o seu olfato e depressa chegou a uma porta de onde saía o
cheiro. Passou pelo meio das pernas de uma mulher e entrou numa grande lo-
ja. Atrás do balcão estavam duas raparigas que o viram logo. Tinham muito
que fazer e a ajuda do ursinho podia fazer-lhes jeito. Pegaram nele e leva-
ram-no para um quarto escuro onde estava um calor tremendo. Mas deram-lhe
de comer quanto quis, e ele não se importou mais com o calor nem com coisa
alguma. No chão e em cima de bancos baixinhos havia muito pão e bolos, tan-
tos e tão maravilhosos como nunca tinha provado até agora. Como um selva-
gem, atirou-se aos petiscos e comeu, comeu até ficar quase mal disposto.
Depois olhou à sua volta. Aqui devia ser o país das maravilhas... Tantas
pernas brancas, tão diferentes das que vira na rua! Mas não lhe deram muito
tempo para sonhar. As raparigas tinham-no observado e agora meteram-lhe uma
grande vassoura nas mãos e mostraram-lhe como devia manejá-la. Cheio de
coragem, o ursinho principiou, mas a coisa não era nada fácil. A vassoura
era pesada, e a poeira fazia-lhe cócegas no nariz. Espirrava constantemen-
te. Quando queria descansar um pouco, vinha logo alguém obrigá-lo a conti-
nuar e, ainda por cima, recebia uma palmada.
- Bem podia eu ter evitado isto -pensou Blurry.
Mas agora era tarde demais. Tinha de varrer e varria. Depois de ter
varrido muito tempo e de ter juntado um monte de lixo, foi levado, por uma
das raparigas, a um canto onde havia uma quantidade de caracóis soltos,
amarelos e duros. A rapariga deitou-o por cima e Blurry compreendeu que
agora podia dormir. Aconchegou-se e dormiu, dormiu, como se estivesse na
melhor de todas as camas.
às sete horas fizeram-no levantar e, mais uma vez, deixaram-no comer
muitos doces, mas, logo a seguir, mandaram-no trabalhar. Pobre Blurry! Nem
sequer tinha dormido o suficiente... Pela primeira vez sentiu saudades de
casa. Mas como voltar para lá? Não lhe restava outra coisa senão aguardar,
aguardar e ter esperanças e, de repente, sentiu-se fraco e confuso, tudo
girava à sua volta, de tal maneira que tinha de se sentar...
Mas a gente habitua-se a tudo e, ao fim de uma semana, Blurry já não
se lembrava de ter feito alguma vez outra coisa que não fosse varrer. Os
ursinhos têm uma memória curta e ainda bem, o que não quer dizer que ele
pudesse esquecer-se da mãe e da sua casa. Simplesmente isso parecia-lhe
agora tão irreal e tão longínquo...
Uma certa noite as duas raparigas da loja leram o seguinte anúncio no
jornal: "Dá-se uma recompensa a quem entregar um ursinho castanho que dá
pelo nome de Blurry..."
-Será o nosso ursinho ?-perguntaram uma à outra.
-De qualquer maneira ele trabalha pouco e, provâvelmente, lucramos mais com
a recompensa. Vamos entregá-lo. Correram depressa para a padaria e chama-
ram:
-Blurry, Blurry...
Blurry veio imediatamente.
- Vês, chama-se, de facto, Blurry-disseram as raparigas. - Vamos le-
vá-lo ainda esta noite.
Pouco depois entregaram o ursinho à dona e receberam a recompensa.
A dona deu-lhe primeiro uma boa sova por causa do seu mau comporta-
mento e, em seguida, um grande beijo por ele ter regressado. Mas da mãe não
teve de ouvir senão um sermão:
- Blurry, por que é que fugiste?
- Queria descobrir o mundo... - respondeu Blurry.
-E descobriste-o?
- Oh, vi muitas, muitas coisas e sou agora um urso esperto.
-Isso já sei, mas quero saber se descobriste o mundo.
-Não, de facto não o descobri. Não fui capaz de o encontrar.
NOVOS PRAZOS
EM 1941, Seyss-Inquart,
o comissário do Reich na Holanda, autorizou a publicação dum jornal semaná-
rio judaico em Amsterdão. Com isso as autoridades alemãs tencionavam fazer
do jornal um órgão informativo das ordens da polícia destinadas à comunida-
de judaica. Os primeiros números tinham o aspecto dum boletim dum clube e
continham considerações de ordem geral e noticiário, informações àcerca de
reuniões mundanas, profissionais e religiosas. Notava-se o esforço de con-
seguir um tom inofensivo e confiante. No decorrer dos anos, o jornal ia
ficando cada vez mais reduzido e mais discreto. Em lugar destacado apareci-
am as ordens das forças ocupantes, as notícias gerais iam desaparecendo, os
comentários limitavam-se aos assuntos religiosos e o papel era agora áspero
e de má qualidade. O texto assemelhava-se a uma espécie de cântico dos es-
píritos sobre o abismo. As considerações iam-se tornando monossilábicas e
fervorosas como orações.
O número de 25 de Setembro de 1943 traz um artigo de fundo sobre a festa do
próximo Ano Novo. Nele lê-se o seguinte:
"Para os judeus o dia do Ano Novo é o dia da recordação... Todos de-
vem fazer um exame de consciência à sua vida e aos seus actos. Mas, antes
de tudo, é um dia dedicado a Deus. Todas as ovelhas e todos os povos se
apresentam diante d'Ele, todas as acções são postas na balança e os desti-
nos são fixados. Receosa, a Humanidade enfrenta Deus, porque é agora que o
destino de cada um e do mundo é julgado pela Eternidade e ligado à Etermi-
dade, indissoluvelmente. São deitadas as sortes e Deus lançará a sentença
da História..."
Miep diz:
-Não se podia dizer exactamente que nós nos calássemos, a verdade é
que tínhamos perdido o hábito de falar. Compreende a diferença? Veja: o meu
marido e eu vivíamos, como sublocatários, em casa duma senhora judia. Essa
senhora tinha uma filha casada e dois netos de três e cinco anos. Um dia, a
filha e as duas crianças foram apanhadas numa "razia nas ruas". Nessa mesma
noite, a senhoria escondeu-se em casa de outra gente, porque contávamos que
os polícias viessem também "fazer limpeza" nas casas. Mas lá pela madrugada
tocou a campainha da porta e quando abrimos demos com uma rapariga que tra-
zia as duas crianças. Contou-nos que levaram, primeiro, as crianças junta-
mente com a mãe mas, de repente, na escuridão, um dos polícias adjuntos
aproximara-se dela, entregara-lhe a duas crianças e dissera-lhe que as le-
vasse para casa. A senhoria voltou na manhã seguinte. quando viu as crian-
ças, abandonou com elas a casa; desapareceram num esconderijo qualquer.
"Eu já lhe disse que quase tínhamos desistido de falar, enquanto não
assistíamos senão a barbaridades. Mas agora, que verificávamos que, no meio
de tanta crueldade, aparecia alguém com uma centelha de humanidade-e era só
uma centelha, pois sempre tinham levado os pais-até desistimos de reflec-
tir".
Eis a que se chegou na nossa época. Mas surgiu também a resistência.
Henk, funcionário nos serviços sociais holandeses diz:
-Os meus colegas e eu estávamos encarregados de visitar doentes e
velhos para verificar se não lhes faltava nada. Uma tarde regressei ao es-
critório e fui lavar as mãos. Um dos meus colegas aproximou-se do lavatório
e disse-me ao ouvido: "-Henk, precisamos de mais gente". Eu disse que sim
com a cabeça.
A partir desse dia, todas as vezes que Henk saía para o serviço, um desco-
nhecido passava-lhe um papelinho para a mão com os endereços de gente es-
condida. Não se tratava só de judeus. A polícia secreta procurava também os
adversários políticos do regime, que se escondiam para fugir aos trabalhos
forçados na Alemanha. A organização secreta, da qual Henk fazia parte, a-
bastecia-os nos sótãos, nas caves e em outros esconderijos, dava-lhes di-
nheiro e cartões de racionamento. Os "mergulhados" conheciam a senha e só
depois de a terem pronunciado, os visitantes clandestinos se davam a conhe-
cer. Mas esta protecção não era sempre suficiente, pois a polícia procurava
armar-lhes ratoeiras.
Henk diz ainda:
-Tínhamos chaves das casas e das habitações, porque se tivéssemos
tocado às campainhas ninguém teria vindo abrir. Mas eu, antes de entrar,
escutava sempre para ver se ouvia falar alemão lá dentro. Se assim aconte-
cesse, ia-me imediatamente embora.
Koophuis suspeitava da actividade de Henk. E Miep descobriu-a após
algumas semanas. Diz:
-Não tentava dissuadir meu marido. Mas estava
sempre com medo, por sua causa, porque amo-o.
E se não o tivesse amado, talvez não tivesse suportado o meu medo e a minha
pergunta diária: voltará hoje?
O DESFECHO
Elli diz:
- O sr. Koophuis e a Miep estavam a escrever, e eu estava a apontar
umas coisas no livro dos registos postais, quando ouvi chegar um automóvel.
Mas como passavam tantas vezes automóveis... Então abriu-se a porta de en-
trada. Alguém subiu a escada. Perguntei a mim próprio quem podia ser. Por
vezes recebíamos visitas. Mas os passos eram muitos...
Miep diz:
-Os passos seguiram ao longo do corredor, depois abriu-se a porta, em
seguida a porta de comunicação para o escritório do sr. Kraler. Um homem
gordo meteu a cabeça dentro e disse em holandês:
"-Silêncio! que ninguém se levante!"
"Assustei-me. E primeiro nem percebi... mas depois percebi".
Miep descobriu, mais tarde, o nome deste "polícia verde". Vamos cha-
mar-lhe Silberthaler.
As testemunhas declaram unânimemente que se tratava dum homem de es-
tatura média, gordo, de meia idade, cuja cara não era antipática ou pelo
menos não era desagradável ou ordinária.
Miep diz:
- Era parecido com esses homens que nos aparecem em casa, para veri-
ficar o consumo de gás, ou com os empregados dos caminhos de ferro que nos
furam o bilhete no comboio...
"O "polícia verde" vinha acompanhado de quatro ou cinco nazis holan-
deses, todos de civil e rápidos e zelosos, quase como os agentes nos filmes
policiais".
Depois da guerra, o sr. Koophuis identificou estes indivíduos, quando
uma comissão de inquérito lhe apresentou um album com fotografias. Disse
que um deles devia ter tido os seus cinquenta e cinco anos>
o gordo talvez mais ou menos quarenta, e que os outros lhe tinham parecido
mais novos. Houve, segundo o sr. Koophuis, uma grande quantidade desses
agentes civis ao serviço dos nazis, na maioria gente falhada na vida ou
mesmo criminosos. Mas entre eles havia também os que acreditavam em tudo o
que lhes era dito e sobretudo acreditavam que estavam a proceder bem.
No anexo já não contavam seriamente com a descoberta do segredo. Os
receios do início, em especial das primeiras noites, contra os quais cada
um tinha lutado sôzinho, quase que já não os havia. Só
o sr. van Daan se sentia, por vezes, desesperado e uma vez deu a entender
ao sr. Frank que não podia suportar por mais tempo aquela vida e que prefe-
ria que tudo acabasse de vez, de uma ou de outra maneira, mas deixou em
suspenso qual as maneiras a que se referia. Não eram, no entanto, pressen-
timentos que o agitavam. Estava desmoralizado, enquanto que os outros se
tinham adaptado àquela vida, mesmo as mulheres.
Mas nas últimas semanas, até o sr. van Daan estava de bom humor. A
guerra parecia estar a acabar.
Todos os comunicados davam indícios disso, inclusivamente os da Wehrmacht.
Os russos encontravam-se na Polónia, os aliados perto de Florença. Os Ame-
ricanos penetravam na frente alemã de Avranches, e os exércitos desembarca-
dos na Normandia rompiam para dentro da França com uma força irresistível.
Nessa altura já não havia uma frente unida alemã, e na prinsengracht esta-
va-se convencido de que nem voltaria a haver e de que a libertação da Ho-
landa não tardaria.
Vinte e cinco meses se tinham passado depois do dia em que Anne es-
creveu no seu diário:
"Assim corremos debaixo da chuva... Quando chegamos a prinsengracht,
a Miep fez-nos subir depressa para o anexo e fechou a porta atrás de nós.
Cá estavamos..."
Não se pode ter medo durante vinte e cinco meses. Os Frank e os ami-
gos estavam cheios de esperança. Ainda há oito semanas Anne escrevera:
"A Margot diz que eu talvez em Outubro possa voltar para a escola".
E se um incidente, como o roubo em Abril, fazia voltar a angústia e a
aflição, a verdade é que a confiança também voltava depressa e Anne teve
até a coragem de descrever com humor:
"Preparei mentalmente as palavras que havíamos de dizer caso a polí-
cia voltasse. Com certeza era preciso confessar-lhes que éramos "mergulha-
dos". Ou eles eram bons holandeses-e então estávamos salvos-ou eram
pró-nazis e então aceitavam dinheiro.
- Tira o rádio-suspirou a sra. van Daan.
- Queres que o deite ao fogão? Se nos encontrarem, já não importa que en-
contrem também o rádio.
-Então encontram também o diário da Anne-disse o pai.
- E se o queimássemos ?-propôs a pessoa mais medrosa do grupo.
- O meu diário, não. O meu diário só será queimado comigo!
Graças a Deus, o pai já nem respondeu.
Agora estavam diante de nós, diz o sr. Frank. Na verdade eu não tinha
imaginado como seria enfrentá-los. Aliás, era impossível imaginar. Mas ago-
ra estavam diante de nós...
Em baixo tinham-se informado: "onde fica o armazém?" e agora pergun-
taram: "onde têm as jóias?" Apontei para o armário da parede onde guardava
o meu pequeno cofre. O "polícia verde" tirou-o. Depois olhou à sua volta e
pegou na pasta da Anne. Sacudia-a, o conteúdo espalhou-se pelo chão, pa-
péis, cadernos, papelinhos. Fechou as jóias na pasta e perguntou-nos se
possuíamos armas. Evidentemente que não possuíamos armas e, de resto, os
polícias já nos tinham revistado.
Então ele disse:
-Arranjem-se. Dentro de cinco minutos quero-os todos aqui outra
vez...
Os van Daan subiram para irem buscar as suas mochilas. A Anne e o
Dussel foram também ao seu quarto, ao lado do nosso. Eu tirei a minha mo-
chila da parede. De repente, o polícia parou diante da cama da minha mulher
e cravou os olhos na caixa que estava entre a cama e a janela.
- Como arranjaram esta caixa ? - gritou.
Era uma dessas velhas caixas cinzentas com ferragens, como as usavam
os soldados na Primeira Guerra Mundial. Na tampa lia-se: "Tenente de reser-
va Otto Frank".
Eu disse:
-A caixa é minha.
-Sua? Como?
-Fui oficial.
Esta resposta confundiu o homem de uma maneira extraordinária. Fi-
xou-me e disse:
- Porque é que não se apresentou?
Mordi os lábios.
- Tinham-no poupado, homem ! Tinham-no mandado para Theresienstadt!
Calei-me. Ele, com certeza, imaginava Theresienstadt um campo de Fé-
rias, e eu não disse nada. Só olhei para ele. Mas, de repente, evitou o meu
olhar e eu pensei:
-Agora pôs-se em posição de sentido. No íntimo está em posição de
sentido, este sargento de polícia. E se lhe fosse permitido fazia-me a con-
tinência...
Mas, de súbito, deu meia volta e correu pela escada acima, logo de-
pois para baixo, novamente para cima, sempre para cima, para baixo. E gri-
tou:
-Não se precipitem, tomem o tempo que for preciso...
E estas palavras eram para nós e para os agentes.
Koophuis diz:
-Tudo isso durou muito tempo. O homem gordo abandonou o escritório e
nós três ficámos sós. Mas fugir não podíamos. A casa estava guardada.
Pus-me a reflectir:
-O que temos de fazer primeiro? E depois? Se pelo menos não tivésse-
mos metido as duas raparigas no assunto. que vai ser delas, meu Deus?
"Eu disse à Miep:
"-Trata de fugir daqui. Pode ser que te deixem passar. Vai à minha
casa e vê se podes ser útil à minha mulher e à Corrie. Com certeza vão fa-
zer uma busca lá em..."
Mas a Miep disse que agora não podia sair. Henk ainda não tinha chegado, e
como era meio-dia não podia demorar.
Então experimentei se o telefone funcionava. Funcionava. Liguei para
meu irmão e contei-lhe o que tinha acontecido. Respondeu que iria imediata-
mente para a minha casa.
Pousei o auscultador. A Elli estava à janela, a chorar e a torcer as
mãos. Tinha trinta e dois anos mas, naquele momento, não passava de uma
criança! Levantei-me, fui ter com ela e disse:
-Vai, toma a minha carteira e leva-a ao droguista da esquina. Di-
ze-lhe que meu irmão irá lá buscá-la.
Pegou na carteira e saiu. Pensei que, pelo menos, ela estaria salva
se a deixassem passar...
Miep diz:
Não pude. Tive a impressão de que me era impossível...
Koophuis:
-Tu lá sabes o que fazes-disse eu à Miep.
-Toma, pelo menos, as chaves da casa. Faz os possíveis para não te meteres
no assunto. Não nos podes salvar. Por isso salva-te, pelo menos, a ti pró-
pria. Nega tudo, compreendes? E vê lá que não fiques metida no assunto...
Miep:
- O sr. Koophuis deu-me as chaves do escritório e da casa e eu me-
ti-as na gaveta da minha secretária, mas não consegui ir-me embora.
Elli diz:
-O droguista, felizmente, estava na loja. Levou-me para o quarto nas
traseiras. Não lhe falei nos Frank. Disse-lhe apenas: "Descobriram que tí-
nhamos um rádio no escritório". É que os holandeses há muito que não nos
deixavam ter aparelhos de rádio. E o droguista acreditou. Pegou na carteira
e prometeu entregá-la ao irmão do sr. Koophuis, logo que ele chegasse. Ain-
da lhe pedi para me deixar telefonar. Liguei para o escritório. O sr. Koo-
phuis atendeu. Perguntei o que devia fazer. Mal consegui falar. O sr. Koo-
phuis hesitou uns momentos, depois disse-me para ir para casa, mas quando
me ouviu desatar a chorar acrescentou: "Elli, se quiseres podes voltar para
aqui. Talvez não se possa fugir ao destino..." Mas gritei-lhe: "Não, não
posso, não posso..."
Pousei o auscultador e deixei-me ficar ao pé do droguista, a chorar e
a rezar durante talvez mais de uma hora...
Miep diz:
-"Eles" já estavam no prédio havia pelo menos uma hora, quando vimos
entrar novamente um dos policias à paisana. Pegou numa cadeira e sentou-se
à minha frente. Telefonou a um posto de serviço para que lhe mandassem um
automóvel.
-Mas um carro grande-disse. -São umas sete ou oito pessoas.
A voz do outro lado respondeu qualquer coisa e o homem disse:
-Sim, está bem.
Depois deixou-nos ficar sôzinhos.
Henk diz:
- quando acabei o meu serviço regressei à Prinsengracht, mas conser-
vei-me no passeio do outro lado do canal e observei o que se ia passando.
Pouco depois veio o irmão do sr. Koophuis e pôs-se ao meu lado. Mas não
conseguimos ver o que se passava dentro de casa, pois enquanto eu tinha
estado ausente, tinha aparecido um grande automóvel da polícia, que estava
agora tão junto à porta que nem se via quem entrava e saía.
O sr. Frank:
- Os nossos dois empregados de armazém estavam no vestíbulo quando
descemos, "M" e o outro, mas não olhei para eles. Os seus rostos ficaram-me
gravados na memória como vidros sem cor, vazios e imóveis.
Koophuis:
- Fui o primeiro a pisar a rua. Parava gente nos passeios e mirava
como se se tratasse de um acidente de trânsito. Parecia gente atordoada.
"Fui o primeiro a entrar no carro e sentei-me ao lado do motorista.
Vi, de repente, um homem sentado em frente de mim, mas na escuridão não lhe
pude distinguir a cara. quando os outros iam entrando e enquanto procuravam
lugar no banco, o motorista fixou-me através da janela e segredou-me:
"atenção, não fale. Aquele é um deles". E com um movimento de cabeça indi-
cou-me o homem no canto. Ia mesmo para lhe responder, mas nesse momento
ouviu-se bater o relógio de Westerturm".
Miep:
-Não lhe posso dizer que horas eram. Não contei as badaladas, mas
devia ser meio-dia.
"Pus-me atrás da cortina e olhei para a rua.
O automóvel estava encostado de tal maneira à casa que só consegui distin-
guir os van Daan. Estavam lívidos, mas calmos".
Henk diz:
-Ouvimos o motorista pôr o motor a trabalhar.
Depois o automóvel seguiu lentamente ao longo da
Prinsengracht até à Leliegracht, atravessou a ponte
Lelia, passou rente a nós e desapareceu em direcção
a Euterpe-Straat, onde se encontrava o quartel da
Gestapo. Até lá são só cinco minutos.
Miep diz:
Agora estava sôzinha no andar. Não sei se os empregados do armazém
ainda estavam lá em baixo. Mas lá em cima não havia mais ninguém, depois de
os amigos terem partido. Sentei-me à secretária e pensei: "Oh, meu Deus!"
Uns momentos depois ouvi passos na escada e entraram Silberthaler e um dos
holandeses. O holandês disse:
-Aquela? Também o sabia, não ponha dúvidas.
Eu disse que não, que não sabia de nada.
Silberthaler mandou sair o holandês e mal se encontrou a sós comigo,
pôs-se na minha frente e disse:
- E que faço agora contigo?
Fez a pergunta em alemão e eu disse-lhe:
-Você é de Viena, não é verdade?
Ficou desconcertado, e acrescentei:
- É que se vê logo. Também sou de Viena.
quando me pediu provas, mostrei-lhe o meu bilhete de identidade. Ati-
rou-o sobre a mesa e gritou:
-E não tiveste vergonha de ajudar um bando de judeus?
Lembrei-me das recomendações do sr. Koophuis e disse:
-Eu não sabia de nada.
Mas ele disse:
-Sabias, sim senhor
Insistiu nisso e discutimos. Caminhou de um lado para o outro e com-
preendi que ele não sabia que fazer comigo. Pegou novamente no bilhete de
identidade, voltou a lê-lo e atirou-o pela segunda vez para cima da mesa.
Disse:
- Ouve: deixo-te fugir. Por uma questão de mera simpatia e por mais
nada. Mas fica na cidade e vem todos os dias aqui para o escritório, como
fizeste até agora; assim saberei o que andas a fazer. Mas se desapareceres
prendemos o teu homem, entendido?
- Meu marido nada tem que ver com isto!
-Não digas tolices. Ele está muito bem informado...
Virou-se, saiu e bateu a porta com tanta força que o vidro estreme-
ceu. Depois correu pela escada abaixo.
Fui à janela e vi-o sair da casa com uma bicicleta. Empurrou-a até à
esquina, porque a Prinsengracht é de sentido único. Na esquina montou e
desapareceu.
"O senhor pergunta-me como era a mãe da Anne? Em Westerbork era calma
quase, como que entorpecida. Antes disso não a conhecia. Falava muito pou-
co. Também a Margot era calada, mas dir-se-ia que a mãe, Edith Frank, era
muda. Enquanto trabalhava não dizia uma única palavra e, à noite, punha-se
a lavar roupa, sempre a lavar roupa, em água suja, sem sabão, mas ela lava-
va sempre.
O pai de Anne também era pouco expansivo, mas
o seu silêncio tinha não sei quê de confortante e ajudava-nos, a nós e à
Anne. Habitava na barraca dos homens. Mas quando a Anne, uma vez, adoeceu,
vinha vê-la todas as noites e ficava ao pé da cama dela a contar-lhe histó-
rias. A Anne parecia-se muito com ele. Depois de restabelecida, o David, um
rapaz de doze anos que vivia na barraca das mulheres, caiu doente, e ela
ficou junto dele a conversar. O David pertencia a uma família muito religi-
osa, e a Anne e ele falavam sempre de Deus. Eu pensava muitas vezes: "Deus?
Mas onde é que está Deus?" Mas ao olhar aquelas duas crianças, dizia de mim
para mim: "Não, não é justo eu pensar assim..."
Isso foi em Westerbork onde a Anne estava feliz, apesar de não haver
para nós qualquer certeza de estarmos em segurança e no fim das nossas des-
graças. E, de facto, para a maioria de nós, Westerbork não seria a última
estação, mas sim a penúltima ou até a antepenúltima. Naquela altura não o
sabíamos, mas como não tínhamos a certeza de coisa alguma, vivíamos numa
angústia constante. De longe a longe notícias do exterior chegavam até nós.
Não sei como entravam no campo, porque não tínhamos rádio, evidentemente.
No entanto, havia um murmúrio constante nas barracas. No fim de Agosto sou-
bemos da libertação de Paris e no dia 3 de Setembro chegou a vez de Bruxe-
las. No dia 4 caiu Antuérpia.
Uma semana depois os Americanos atingiram a fronteira alemã, perto de Aa-
chen. Mas já não havia salvação para nós, porque nesse mesmo dia estávamos
a caminho do leste.
No dia 2 de Setembro disseram-nos: "Amanhã partem mil pessoas". Entre
as mil pesoas estávamos nós, a família Frank, os van Daan, o sr. Dussel,
gente que eu conhecia. Foi o último transporte que partiu da Holanda, como
soubemos mais tarde.
Durante a noite embrulhámos as poucas coisas que nos tinham deixado.
Alguém tinha um pouco de tinta, com que escrevemos os nossos nomes sobre os
cobertores. Obrigámos as crianças a repetir os nomes dos sítios onde havía-
mos de nos encontrar depois da guerra caso fôssemos separados. Indiquei a
Judy mais uma vez a direcção da tia em Zutphem, e os Frank combinaram um
sítio na Suíça.
Levaram-nos num comboio de mercadorias, muito comprido. Empurra-
ram-nos para o cais, e em cada vagão metiam setenta e cinco pessoas. Fecha-
ram os vagões, e só recebíamos luz por um postiguinho.
quando o comboio parou pela primeira vez, já estávamos na Alemanha.
Atiraram para dentro dos nabo, mas não sabíamos onde estávamos porque o
comboio não parara numa gare, mas num parque de manobras. E não podíamos
fazer perguntas, porque os S.S. patrulhavam junto do comboio.
Parámos muitas vezes, geralmente em pleno campo. Uma vez o comboio
seguiu de repente em direcção oposta e, nessa altura, alguém exclamou:
"Olhem! Voltamos para a Holanda!"
Mas não, não voltámos para a Holanda. Avançando, recuando, penetrámos
cada vez mais na Alemanha. Atravessámos quase toda a Alemanha, entre prados
e campos ceifados. Sempre que o comboio parava, vinham os S.S. à porta dos
vagões e estendiam os bonés para que lhes déssemos dinheiro e objectos de
valor. Alguns presos tinham, de facto, ainda objectos de valor, talvez co-
sidos entre as roupas, e havia entre eles quem os fosse buscar para os ati-
rar para dentro dos bonés dos S.S. Depois o comboio seguia. E vinha a noite
e o dia e outra vez a noite.
As crianças tinham-se agrupado num canto do vagão e ouviamo-las con-
versar. No nosso canto reinava silêncio total. Algumas vezes a Anne e a
Judy penduravam-se nas grades da janela e olhavam para fora. Chovia. A Anne
atravessava o país em que tinha nascido, mas poderia ter sido o Brasil ou a
Ásia ou qualquer outra terra. Para ela, aquela viagem não tinha significa-
do, e quando uma vez conseguiu decifrar o nome de uma estação, nem sequer
era nome que algum de nós conhecesse: era
o de qualquer aldeola. Tudo o que sabíamos era que seguíamos para leste.
Os adultos não falavam. Só uma vez perguntaram às crianças se ainda
se lembravam dos endereços. E nada mais.
Eu estava sentada numa caixa, ao lado do meu marido. A caixa vacilava
com a mais pequena trepidação. Ao fim do terceiro dia ainda não tínhamos
chegado e foi então que meu marido, de repente, pegou na minha mão e disse:
"agradeço-te a vida maravilhosa que passamos juntos..." Retirei enêrgica-
mente a mão e gritei: "O que estás para aí a dizer? A nossa vida ainda não
acabou!" Mas ele pegou, de novo, na minha mão, apertou-a contra o peito e
repetiu várias vezes: "obrigado, muito obrigado pela nossa vida". Então
deixei-lhe a mão e não voltei a tirá-la.
Ficámos juntas, diz a sra. de Wiek, e foi uma sorte. Talv'ez seja por
isso que nos aguentámos mais tempo do que os outros que estavam sôzinhoS.
Falavam-se todas as línguas nas barracas onde havia gente de toda a parte.
E agora aprendíamos que a miséria não aumenta quando é repartida.
A Judy ficou comigo até ao dia em que a enviaram para a Boémia, e
isso foi no dia 27 de Outubro. A Margot e a Anne Frank desapareceram três
dias depois da partida da Judy. A sra. Frank ficou connosco até à morte, no
dia 6 de Janeiro de 1945. Dez dias mais tarde a S.S. fugiu do campo.
A sra. van Daan é a única que não voltei a ver, nem no bloco 29 nem
no campo. Perdi-a de vista logo depois da nossa chegada.
quanto aos homens, dos quais nos tinham separado no momento da nossa
chegada, só voltei a ver o sr. Frank. Mas isso deu-se depois de os russos
nos terem libertado e nos terem instalado numa escola de Kattowitz.
O sr. Frank estava sentado sôzinho a uma mesa quando entrei. Entreo-
lhámo-nos. E eu disse-lhe:
"-Das suas filhas não sei nada. Levaram-nas.
Um pouco mais tarde dei-lhe a notícia da morte da mulher.
"-Morreu na cama ao pé da minha".
O sr. Frank não fez um movimento enquanto eu falava. Não pude ver-lhe
a cara porque tinha virado a cabeça. Depois fez um movimento, mas não me
lembro bem como foi; parece-me que deitou a cabeça sobre a mesa".
A sra. de Wiek fala bem alemão porque esteve na Alemanha em criança e
frequentou, durante algum tempo, as nossas escolas. Raras vezes diz um erro
mas emprega, com frequência, expressões pouco vulgares. às vezes emprega um
termo holandês, novo e desusado, mas isso não choca no meio de palavras
alemãs, antes pelo contrário. Dá uma nota de frescura e de delicadeza.
Uma noite houve um incêndio no campo. A sra. de Wiek supõe que foi na
mesma noite em que os presos, empregados nos Comandos da Morte, numa tenta-
tiva de revolta, deitaram fogo ao forno crematório 3 e às câmaras de gás. E
isso aconteceu no dia 6 de Outubro. Mas os outros presos ignoravam o que
era aquilo que estava a arder. Apenas viam, por cima do telhado da barraca
vizinha, e contra o céu negro, chamas altas e ruidosas. Mulheres e crianças
atiraram-se para o chão e rezaram em todas as línguas que se falavam na
barraca. Cada uma implorava ao seu Deus para que impedisse o vento de so-
prar e fizesse com que as faúlhas não caíssem sobre o tecto, pois se se
pegasse fogo ao tecto, toda a gente teria de morrer. E Deus, esse Deus par-
ticular de cada uma, ouviu-as: o vento não soprou e não caiu uma única faú-
lha sobre a barraca.
A sra. De Wiek continua:
- Eu queria absolutamente sobreviver. Mas, no fim, caí doente. Leva-
ram-me para a enfermaria onde voltei a encontrar a sra. Frank. Dormíamos
lado a lado. Ela estava muito fraca, já não comia e raras vezes estava
consciente. Juntava, debaixo do cobertor, todos os alimentos que recebia e
dizia que os guardava para o marido, que com certeza tinha necessidade de-
les. E o pão apodrecia debaixo do cobertor.
"Não sei se ela estava tão fraca por passar fome ou se não comia por
já não ter forças para tanto. Era difícil dizer-se. Vi-a morrer. Não suspi-
rou sequer. E eu pensei: "Agora vou morrer também". Mas a médica polaca da
barraca disse-me: "Você ainda aguenta. Ainda tem uma cara!".
Foi o que a sra. de Wiek me disse, textualmente, ainda nesse momento
surpreendida com a expressão empregada pela médica polaca. A sra. de Wiek
nunca compreendeu bem e quis saber se eu compreendia.
Mas não lhe respondi a esta pergunta.
Vi fotografias de razias, de detenções e de transportes em camiões e de
campos de concentração. Verifiquei que muitos dos presos deviam ter desis-
tido logo de princípio e que "tinham perdido as suas caras". E os repórte-
res da propaganda fotografavam-nos assim mesmo, nas ruas e nos locais onde
os polícias os agrupavam para os deportar: cabisbaixos alguns, de braços
levantados outros. E os piores entre os espectadores diziam: "Vejam que
animais!"
É verdade: alguns já não tinham fisionomia humana. Nos campos de con-
centração chamavam-lhes os "muçulmanos". Mas, na realidade, pareciam-se
antes com anjos assassinados, que não pertenciam ao nosso mundo. Estava já
a caminho do regresso, essa gente de cara feia e cinzenta e de pele desco-
rada, transparente. Creio agora que os anjos são cinzentos e feios quando
nos aparecem e que é a nossa fantasia que lhes empresta as asas.
A cara da sra. Wiek não sofreu danos. Só quando sorri é que lhe apa-
rece uma sombra à volta da boca. E ela sorri muitas vezes. Diz:
- Não sei se digo bem, mas podia afirmar, por exemplo: a Anne não
perdeu a sua cara até ao fim. E a mim ainda me quis parecer mais bonita em
Birkenau do que em Westerbork, apesar de já não ter, nessa altura, os cabe-
los compridos, pois fomos todas tosquiadas logo depois da nossa chegada. É
que precisavam de cabelo feminino para correias de transmissão e para as
vedações de tubos nos submarinos.
"Em Birkenau via-se bem que a beleza de Anne residia toda nos seus
olhos, que pareciam cada vez maiores à medida que ela ia emagrecendo. A
Anne, nessa altura, já não era alegre, mas continuava viva e simpática e,
com as suas maneiras encantadoras, obtinha muitas vezes aquilo que nós há
muito já não esperávamos.
Não tínhamos vestidos. Usávamos apenas um saco cinzento sobre a pele
nua. Mas quando chegou o frio, a Anne entrou, um dia, na barraca, com ce-
roulas de homem que tinha mendigado em qualquer parte. Tinha um aspecto
quase cómico com as pernas todas brancas, mas, ao mesmo tempo, era encanta-
dora.
Um outro exemplo: éramos divididas em grupos de cinco para as chama-
das para o trabalho e para a distribuição de alimentos. Só tínhamos uma
chávena para cinco pessoas. Apesar de a Anne ser a mais nova do seu grupo,
era a chefe e distribuía o pão na barraca. Fazia-o bem e com justiça, nunca
ninguém se queixava. Ou: sofríamos sempre de sede, de tanta sede que púnha-
mos a língua de fora quando chovia ou nevava o que provocava doenças em
muitas de nós. Mas a sede era ainda pior do que a doença. Um dia, quando eu
julgava morrer de sede, apareceu Anne para me trazer uma chávena de café.
Ainda hoje não faço ideia de como a conseguiu arranjar.
Era também ela quem se apercebia até ao fim do que se passava à nossa vol-
ta. Nós, há muito que já não víamos nada. quem fazia ainda caso das chamas
que, de noite, saíam do forno crematório? E quem ainda se inquietava quan-
do, de repente, se ouvia a ordem de "bloqueio" na barraca vizinha? Embora
todas soubéssemos que as mulheres daquela barraca eram seleccionadas para a
câmara de gás, já não nos importávamos. Corríamos quando os "kapos" grita-
vam: "Mais depressa, mais depressa!" Arrancávamos torrões de erva durante
dez horas a fio. Ninguém deles precisava, pois os Russos estavam a aproxi-
mar-se de dia para dia. Mandavam-nos amontoar os torrões e os "kapos" dizi-
am: "Mais depressa, mais depressa!" E nós arrancávamos os torrões de erva,
sempre, sem qualquer resistência, nem mesmo em pensamento. que importava a
eles quantas de nós sucumbiam? E a nós o que importava? O essencial era
transportarmos os cadáveres connosco para o campo, de modo que o número
estivesse certo.
Já não entendíamos nem ouvíamos quase nada. Uma força misteriosa pro-
tegia-nos de ver. Mas para a Anne esta protecção não existiu, mesmo até ao
fim.
Ainda a vejo diante do portão a olhar para a estrada, onde um grupo
de jovens ciganas nuas era empurrado em direcção ao forno crematório. E a
Anne seguia-as com os olhos e chorava. Também chorou quando passamos pelas
crianças húngaras que esperavam, há doze horas, nuas e debaixo da chuva, a
sua vez de entrar para a câmara de gás. A Anne tocou-me com o cotovelo e
disse:
"-Repare naqueles olhos..."
Sim, ela ainda chorava. Mas nós há muito que já não tínhamos lágri-
mas.
FIM