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Sangue de barata

“Somos criaturas que precisam


mergulhar na profundidade para
lá respirar, como o peixe
mergulha na água para respirar”1

Clarice Lispector (1920-1977), é, para mim a maior escritora brasileira.


Num país que tem gente enorme como Machado, Euclides, Guimarães
Rosa, João Cabral, Drummond, e o fenômeno Hilda Hilst.
Seus contos e romances tem uma maneira de mexer com tudo que de
mais profundo existe na gente, humano e desumano, imanente e
transcendente.
É impossível ler Clarice impassivelmente. Porque ela vai tocar você.
Ler Clarice é um rito de passagem, que nos revela o caminho estreito:

“Tem uma passagem estreita dentro de mim, tão estreita que suas paredes me
lanham toda, mas essa passagem desemboca na largura de Deus. Nem sempre tenho
força para atravessar esse deserto sangrento, mesmo sabendo que se me forçar a me
doer todo entre as paredes, mesmo sabendo que desembocarei para a luz aberta de
um dia trêmulo de sol macio.” Clarice/Um Sopro de Vida

Segundo sua melhor amiga, Olga Borelli,que viveu os últimos sete anos
ao seu lado, Clarice
“vivia num atualismo místico, Deus era sua mais íntima possibilidade.
Pelo conhecimento que dela tive, notei que sua ação na vida sempre
correspondia a uma busca.”2

Um dos livros dela, “A Paixão segundo G. H.”(PSGH), é um dos


romances mais interessantes da moderna literatura brasileira.
O título remete a uma ambigüidade: já que se trata um romance,
‘paixão’ pode querer dizer uma relação de amor, do que também o livro
trata. Mas na verdade a ‘paixão’ a que Clarice se refere é outra, e outra
sua busca neste livro:

“A dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. E é aceita a nossa
condição como única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é
a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo.” (PSGH pg. 112)

O livro tem claras alusões místicas e religiosas. São 33 capítulos – o que


remete aos 33 anos que a tradição dá para a vida do Cristo, onde cada
capítulo termina e inicia com a frase do capítulo anterior – provocando
um certo estranhamento. O texto também transcreve e se refere a
muitos versículos bíblicos, do antigo e novo testamento.

1
PSGH pg.
2
PSGH, col. Archivos, pg XXIII
Se pudéssemos resumir o livro – o que não dá para fazer se quisermos
respeitar a profundidade da obra -, ele conta a história de uma mulher
que só se encontra consigo mesma, com o outro e com Deus, quando
toma uma eucaristia estranha, quando comunga da carne do corpo de
uma barata.

“(...)a redenção devia ser na própria coisa. E a redenção na própria coisa seria eu
botar na boca a massa branca da barata”PSGH pg.105

Esse percurso da personagem G. H. é como a ‘kenosis’, onde Deus,


despojando-se de tudo, tornou-se homem, se humilhando, e depois
tornou-se crucificado, maldito e imundo. Conhecer a Deus e a si mesmo
é um processo assim, creio. Para G.H. era preciso conhecer o imundo,
prová-lo, para poder chegar a Deus.

“Provação. Agora entendo o que é provação. Provação: significa que a vida está me
provando. Mas provação: significa que eu também estou provando.” PSGH pg. 84

Lembro do lençol de Pedro, e do “não chames imundo o que Deus


purificou”. Barata provoca um grande nojo em quase todas as pessoas.
Agora, se formos procurar a origem da palavra, ficaremos espantados
com algo que não pode ser coincidência para a interpretação e as
intenções do livro: barata vem do latim ‘blata’, mesma raiz da palavra
inglesa ‘blood’ e da alemã ‘blut’ – que é ‘sangue’. ‘Blata’ significa
‘vermelho’, cor da redenção. É que a barata, na Europa, é vermelha.3

Depois dessa comunhão com a carne e o sangue, ela percebe que


precisa se livrar do eu, do invólucro que a aprisiona, para ser nada e
então encontrar o Tudo. Porque Ele se oferece, de graça, por graça,
como as coisas no mundo:

“Não é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor não foi feita
para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e
cheiramos. A via Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós
sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele extraímos” PSGH pg.96

Então, quando ficamos sabendo Deus, precisamos querê-lO, precisamos


precisar dEle:

“O leite a gente só bebe, o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os
olhos e sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos mais Deus existe. Quanto mais
pudermos mais Deus teremos. Ele deixa.”

3
Favio di Giorgi em Os Caminhos do Desejo/ O Desejo pg 127
Aí vem o relacionamento, que é uma troca, um estar-junto, a
comunhão:

“Nós somos muito atrasados, e não temos idéia de como aproveitar Deus numa
intertroca – como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite se bebe. Daí a
alguns séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que Deus
sempre esteve! Quem esteve pouco fui eu(...)”

E viver com Deus é uma surpresa. Uma revelação. Simples. Constata-se


que a vontade de Deus para nós é: VIVER! Plenamente.

“Mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma atualidade
permanente. E isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um
futuro adiado, é hoje. Porque o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é e
nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos essa luz sempre atual, e então a
prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a
face hoje de Deus.(...)Sei que o que estou sentindo é grave e pode me destruir.
Porque – porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já
é. E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua promessa! A
notícia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclísmica e de novo perto do
demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu
tenho de passar a viver, e não apenas a me prometer a vida. E este é omaior susto
que eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou.”(PSGH
95)

Clarice escreveu este romance depois de um período de aridez de sete


anos. De 1956, quando terminou “A maçã no Escuro”, até 1963, quando
o livro veio inteiro. Segundo relata numa entrevista, ‘Paixão’ é tudo que
ela exigia dela como escritora e artista, seu melhor livro.

Ela é internada, com câncer de útero que depois se alastra pelo corpo,
passando por mais uma paixão. Deixa um bilhete, em seu quarto no
Hospital da Lagoa, pouco antes de morrer, onde diz:

“Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz nascerem flores no peito. Ele me criou
igual ao que escrevi agora: ‘sou um objeto querido por Deus’ e ele gostou de me ter
criado como eu gostei de ter criado a frase. E quanto mais espírito tiver o objeto
humano, mais Deus se satisfaz(...)Mas agora morro de embriaguez de vida.”4

Sejamos, então, cheios do Espírito, para a alegria de Deus. E mesmo na


morte, estaremos plenos de vida.

4
Gotlib, pg482-3

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