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CHRISTOPHE DEJOURS: DA PSICOPATOLOGIA À rio, entre sofrimento e defesas) é que se configurava


PSICODINÂMICA DO TRABALHO. Selma Lancman como enigma.
& Laerte I. Sznelman (organizadores). Rio de Ja- Temos, em seguida, a organização de eventos que
neiro: Editora Fiocruz/Brasília: Paralelo 15, 2004. tiveram papel significativo na emergência da Psicodi-
346 pp. nâmica. Em 1984, Dejours ajudou a realizar o I Coló-
ISBN: 85-7541-044-X quio Nacional de Psicopatologia do Trabalho, ao qual
esteve presente um amplo leque de tendências, con-
Os leitores de Cadernos de Saúde Pública encontra- tando também com sindicalistas. Confirmando o in-
rão nesse livro materiais de alta qualidade sobre as teresse oficial (CNRS) pela ampliação do campo, no
relações entre saúde, trabalho e vida. Somos brinda- ano seguinte Dejours inicia a organização do Semi-
dos pelos organizadores e editores com textos impor- nário Interdisciplinar de Psicopatologia do Trabalho
tantes de Christophe Dejours (que participou da se- (1986-1987, publicado em 1988). Se no colóquio de
leção), em sua maioria só existentes em francês, es- 1984 a abordagem de Dejours era uma dentre outras
palhados em livros e revistas diversas. que se apresentaram, no seminário de 1986-1987 sua
O autor, com outros livros publicados no Brasil, é vertente já assumia o centro do debate com profis-
um médico francês, com formação em psicossomáti- sionais destacados de outras disciplinas. O tema es-
ca e psicanálise, diretor científico do Laboratório de colhido foi revelador: “Sofrimento e Prazer no Traba-
Psicologia do Trabalho e da Ação no CNAM de Paris. lho” 2. Um total de 12 seminários interdisciplinares,
Fundados em suas três décadas de pesquisas e traba- alguns debates motivando uma réplica no seminário
lho de campo, os textos nos oferecem as bases para seguinte. A partir daí, sua abordagem, ao mesmo tem-
uma visão fértil e dinâmica acerca das relações entre po, reformulou-se e afirmou-se na comunidade cien-
saúde e trabalho, para além do reducionismo médi- tífica, cujos efeitos levaram às mudanças assumidas
co-biológico. em 1992, propondo uma nova denominação: “Psico-
Esse livro de Psicodinâmica do Trabalho não ape- dinâmica do Trabalho” (que incorporaria no seu inte-
nas trata do trabalho em seu negativo – a psicopato- rior as questões da psicopatologia do trabalho). É
logia do desemprego e da modernização capitalista –, desse seminário que são oriundos três dos 11 textos
mas também, acima de tudo, instrumenta-nos para que compõem o livro aqui resenhado (capítulos 2, 4 e
perceber as possibilidades do trabalho como estrutu- 5). É verdade que o primeiro deles, sobre metodolo-
rante psíquico, os possíveis encaminhamentos do so- gia, já fora integrado à segunda edição brasileira do
frimento em direção ao prazer e à saúde. Loucura do Trabalho. Com todo respeito, pergunta-
Foi nessa virada, no final dos anos 1970, que se mos: por que republicá-lo? Não houve aprimoramen-
mostrou a maior originalidade do grupo liderado por to da tradução. Mantém-se a discutível tradução de
Dejours (em 1983, reunidos na Associação pela Aber- “enquête” pelo vocábulo mais genérico pesquisa (“re-
tura do Campo de Investigação em Psicopatologia), cherche”, em francês), deixando de registrar para o
herdeiros de uma rica tradição francesa de Psicopa- leitor da versão brasileira o rigor diferencial da for-
tologia do Trabalho (L. Le Guillant & P. Sivadon, entre ma-enquete em relação a outras modalidades de in-
outros), interessados na restauração da integridade e vestigação, como a da pesquisa-intervenção em Er-
dignidade do homem no papel de produtor. Conten- gonomia (o que se pode acompanhar no debate de
do uma síntese das enquetes clínicas realizadas por 2001 entre F. Daniellou 3 e P. Molinier 4, publicado no
solicitação dos próprios trabalhadores naqueles anos número 7 da revista Travailler).
70, Dejours publicou seu primeiro livro em 1980. Tra- No mesmo ano (1990) em que Dejours assumiu a
tava-se de um ensaio (momento inicial de desenvol- direção do Laboratório de Psicologia do Trabalho do
vimento) intitulado Trabalho: Desgaste Mental – Um CNAM (Paris), já contávamos, em português, com um
Ensaio de Psicopatologia do Trabalho, livro publicado artigo, Itinerário Teórico em Psicopatologia do Traba-
no Brasil sete anos depois com um título de apelo co- lho 5, no qual, a essa altura, estava “em estado práti-
mercial: Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatolo- co” a formulação que será assumida em 1992, deci-
gia do Trabalho 1. Encontrava-se ali a tematização de dindo-se pela nova denominação “Psicodinâmica do
algumas intuições e pistas de pesquisa em torno do Trabalho”. Vale assinalar que esse texto de transição,
núcleo central de sua “clínica do trabalho”: o conflito assim como dois relatórios de enquete (esclarecedo-
entre organização do trabalho e funcionamento psí- res, particularmente quanto à metodologia) realizada
quico, para além do modelo causalista. Ao contrário em indústria nuclear (1989 e 1991), está presente na
de postular o trabalho como fator fundamentalmente coletânea organizada no Brasil por M. I. Betiol (da
enlouquecedor (o que se poderia entender pelo título Fundação Getúlio Vargas de São Paulo), no livro Psi-
dado no Brasil), afirma no livro o que as enquetes do codinâmica do Trabalho 5. É curioso que, apesar de
grupo haviam detectado: os trabalhadores não se seu sucesso desde 1980, ainda em 1993 Dejours deci-
mostravam passivos em face das exigências e pres- dia não pela publicação de um segundo e tão espera-
sões organizacionais, e, sim, capazes de se proteger do livro, mas por uma nova edição ampliada daquele
dos efeitos nefastos à saúde mental. Eles sofriam, primeiro, com notas esclarecedoras em cada capítu-
mas sua liberdade se exercia, mesmo que de forma lo, além de um “avant-propos”, agregando uma tercei-
muito limitada, na construção de sistemas defensi- ra parte: um “Addendum teórico” – Da psicopatologia
vos, fundamentalmente coletivos. Esse trabalho clí- à psicodinâmica do trabalho. É esse texto, decisivo,
nico levou Dejours a deslocar seu foco investigativo que nos é oferecido como capítulo 1 do livro ora rese-
das doenças mentais geradas pelo trabalho para o so- nhado, em que o autor apresenta rigorosamente a
frimento e as defesas contra esse sofrimento. À medi- nova formulação, que seria o “núcleo de uma ‘psicolo-
da que a maioria dos trabalhadores conseguia conju- gia do trabalho e da ação’, ainda por construir” 6 (p. 9).
rar a loucura, apesar da violência da organização do Após uma década (1970-1980) de grandes desco-
trabalho, a normalidade (equilíbrio instável, precá- bertas, uma segunda (após o seminário de 1986) re-

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velou-se um período de grande produção, de rigor vem apresentando duras críticas aos novos encami-
sistemático na formulação da Psicodinâmica do Tra- nhamentos. Em paralelo, no mesmo laboratório diri-
balho. É desse fecundo momento que vem a maior gido por Dejours, outra corrente clínica do trabalho
parte dos textos contidos no livro resenhado. Sejam, vem se desenvolvendo desde 1993, liderada por Yves
como dissemos, os capítulos 2, 4 e 5, oriundos do se- Clot. Esta linhagem autodenominada Clínica da Ati-
minário 1986-1988 (escritos de afirmação e transição), vidade (ou Clínica do Trabalho e dos Meios de Traba-
sejam os capítulos 3, 6, 7, 8, 9 e 10, dos anos 1992-1995 lho) 11 reforça esse movimento crítico. Clot critica em
(escritos de maior consistência e indicações preciosas). Dejours o que seria uma despotencialização da saúde
Outro veio da obra de Dejours aqui publicado e valorização da normalidade, assim como considera
vem desde sua participação em um seminário sobre equivocada a proposição de que o objeto da psicodi-
o “modelo japonês”, organizado em 1990 por H. Hira- nâmica do trabalho seria não o trabalho, mas uma
ta 7. Ali já tivemos a oportunidade de sair do estado psicologia do sujeito – “preocupada com a análise dos
absolutamente incipiente acerca das relações entre processos intersubjetivos mobilizados pelas situações
subjetividade e trabalho, no que tange à inteligência de trabalho” 12 (p. 7). Para Clot são as relações entre
da prática, uma das dimensões desconhecidas do atividade e subjetividade que devem estar no centro
trabalho. Naquele momento, Dejours apresentou as da análise. O trabalho é visto por ele não apenas co-
características e condições de mobilização no traba- mo trabalho psíquico, mas como atividade concreta e
lho de um tipo de inteligência criativa, astuciosa e irredutível, continente oculto da subjetividade no
corporal. No texto agora publicado no capítulo 9, ele trabalho 11.
avança nessa mesma direção, retornando à inteligên- Um último capítulo (11), exatamente o mais re-
cia prática e explicitando uma segunda dimensão cente, registra seu manejo crescente da Psicanálise,
desconhecida do trabalho, a sabedoria prática. Uma no esforço de verificar as pontes existentes entre os
temática, entre outras muito importantes, que está teatros do amor e do trabalho, agora incorporando a
presente também em outro livro publicado em 1995 seu modo a questão de gênero. Dejours havia sido in-
(1997 no Brasil), pequeno, sintético e denso, intitula- terpelado sobre a ausência dessa questão no seminá-
do O Fator Humano 8. rio de 1986-1987 por D. Kergoat e H. Hirata (materiais
Outros textos do livro registram a intervenção de publicados no Brasil em 2002) 13. Tratando-se de te-
Dejours no debate acerca da perda de centralidade e ma tão relevante, é lamentável que o artigo em ques-
significado do trabalho. Temos, por um lado, a tema- tão seja o mais frágil. Poderíamos nos perguntar em
tização do plano linguageiro e comunicacional do que medida outros textos mais consistentes do mes-
trabalho (capítulos 7 e 8), por outro a afirmação do mo autor não seriam mais úteis. Poderia citar um –
seu caráter sempre enigmático, ressaltando três di- Como Formular uma Problemática de Saúde em Ergo-
mensões essenciais para seu efetuamento: a enge- nomia e em Medicina do Trabalho – do mesmo perío-
nhosidade, a cooperação e a mobilização subjetiva do, texto de impacto na França, apresentado em 1993
(capítulo 3). De sua presença no debate com psicana- no Congresso da Sociedade de Ergonomia de Língua
listas acerca da “clínica do trabalho”, temos o capítu- Francesa e publicado, em 1995, na revista Le Travail
lo 6, texto elaborado para uma exposição no Canadá Humain 14. Se fosse o caso de produção de algo mais
(um dos países, como o Brasil, em que o autor tem recente, poder-se-ia ter optado por sua crítica aos
importante audiência), quando defende a tese de que fundamentos da avaliação, apresentada em confe-
cabe ao trabalho a tarefa de mediação na relação en- rência no INRA 15.
tre psicanálise e política, tendo como horizonte a con- Por fim, em atenção aos possíveis interesses dos
servação e realização de si no mundo social. Media- leitores, registro a vertente de textos do mesmo autor
dor privilegiado entre inconsciente e ordem coletiva, sobre psicossomática e corpo. Dos anos 80, já foram
o trabalho é, então, visto como “operador fundamen- publicados no Brasil: O Corpo entre a Biologia e a Psica-
tal da própria construção do sujeito, colocado no cen- nálise 16 e Repressão e Subversão em Psicossomática:
tro da Psicologia, no mesmo nível que a sexualidade”. Pesquisas Psicanalíticas sobre o Corpo 17; esperando pu-
Enfim, no capítulo 10, está sistematizada toda essa blicação, um livro mais recente: Le Corps, d’ Abord 18.
reflexão em torno da questão do sentido do trabalho. Certo de que os leitores de Cadernos de Saúde Pú-
Após esse período que entendo como o mais fér- blica encontrarão na leitura desse novo livro impor-
til e consistente, vemos desenvolver-se uma nova fa- tantes ferramentas, sugerimos também uma boa via-
se, em que Dejours se institui mais solidamente no gem pelo conjunto da obra de Christophe Dejours!
mundo social, ampliando sua influência. Fruto do
Colóquio “Trabalho: Pesquisas e Prospectivas” (1992), Milton Athayde
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social,
ele participa da organização do livro (1995) La France
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
Malade du Travail 9. Em seguida, 1998 (1999 no Bra- miltonathayde@uol.com.br
sil), Dejours publicou o polêmico livro A Banalização
da Injustiça Social 10, defendendo a idéia de que a ba-
nalização do mal e da injustiça no sistema neoliberal 1. Dejours C. Loucura do trabalho. São Paulo: Obo-
se sustenta menos na violência que na colaboração e ré; 1987.
no zelo agregados pela maioria dos trabalhadores às 2. Dejours C. Plaisir et souffrance dans le travail. Pa-
novas formas de organização do trabalho. Esse tipo ris: Edition de l’AOCIP; 1998.
de proposição tem contribuído tanto para ser aceito 3. Daniellou F. L’action en psychodynamique du
por setores até então refratários ou reticentes, quan- travail: interrogations d’un ergonome. Travailler
to para detonar uma nova leva de dissidências no 2001; 7:119-30.
próprio núcleo de formuladores da Psicodinâmica do 4. Molinier P. Souffrance et théorie de l’action. Tra-
Trabalho. Se gente da qualidade de D. Cru já havia se vailler 2001; 7:131-46.
distanciado, a partir de então também P. Davezies 5. Dejours C, Abdoucheli E. Itinerário teórico em

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psicopatologia do trabalho. In: Dejours C, Abdou- 12. Dejours C. Introduction: psychodynamique du


cheli E, Jayet C, organizadores. Psicodinâmica do travail. Revue Internationale de Psychosociologie
trabalho. São Paulo: Atlas; p. 119-45. 1996; 5:5-12.
6. Dejours C. Travail, usure mentale. De la psycho- 13. Hirata H. Nova divisão sexual do trabalho? Um
pathologie à la psychodynamique du travail. Pa- olhar voltado para a empresa e a sociedade. São
ris: Bayard; 1993. Paulo: Boitempo; 2002.
7. Dejours C. Inteligência operária e organização do 14. Dejours C. Comment formuler une problémati-
trabalho: a propósito do modelo japonês de pro- que de la santé en ergonomie et en médecine du
dução. In: Hirata H, organizador. Sobre o “mode- travail? Le Travail Human 1995; 58:1-16.
lo” japonês. São Paulo: Edusp; 1993. p. 281-309. 15. Dejours C. L’évaluation du travail à l’épréuve du
8. Dejours C. O fator humano. Rio de Janeiro: Edito- réel. Critique des fondements de l’evaluation. Pa-
ra da FGV; 1997. ris: INRA; 2003.
9. De Bandt J, Dejours C, Dubar C. La France mala- 16. Dejours C. O corpo entre a biologia e a psicanáli-
de du travail. Paris: Bayard; 1995. se. Porto Alegre: Artes Médicas; 1988.
10. Dejours C. A banalização da injustiça social. Rio 17. Dejours C. Repressão e subversão em psicosso-
de Janeiro: Editora da FGV; 1999. mática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1991.
11. Clot Y. Clinique du travail, clinique du réel. Le 18. Dejours C. Le corps, d’abord. Paris: Payot & Riva-
Journal des Psychologues 2001; 185:48-51. ges; 2001.

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