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AUTOGESTÃO: DESEJO E POSSIBILIDADE - Lucas

Maia dos Santos


Autogestão: Desejo e possibiliDADe

Lucas Maia dos Santos

cabeloufg@yahoo.com.br

Às vezes, dizermos o que uma Se eu nasci numa sociedade determinada,


determinada coisa não é, é mais eficaz do que estruturada de uma determinada maneira,
defini-la pelo que ela propriamente é, organizada segundo princípios precisos, com
principalmente quando o objeto da investigação valores característicos e meus pais contam que
é algo que não existe, ou melhor, algo que quando eram crianças já era assim, e os pais
ainda-não-existe. Falar de algo possível nos deles contaram para eles que era assim quando
coloca duas questões que devem ser analisadas eram crianças, nada mais natural do que
bem de perto. Em primeiro lugar, surge a considerar que é assim que é, por que sempre foi
limitação de conseguirmos pensar além de nossa assim. Isto se dá também em outros espaços de
experiência ou além das categorias do mundo socialização, em nossa sociedade, por exemplo,
que nos rodeia. E em segundo lugar, devemos a escola, a igreja, o local de trabalho etc. são
levar em consideração quais são os valores espaços institucionais que produzem com suas
expressos em nossas análises. ideologias uma naturalização dos conceitos e
categorias existentes em nossa sociedade.
Como pensar uma organização social que
não seja pautada em critérios mercantis? É Naturalizar, nos termos que estamos
possível um mundo além da mercadoria, do considerando, é o ato, a ação de eternizar, de
dinheiro e do estado? É possível uma forma de introjetar relações históricas considerando-as
organização cuja essência não seja assentada na invariavelmente necessárias à reprodução de
hierarquia, na autoridade, na alienação do uma dada organização social. A naturalização é
trabalho? Existirá uma sociedade cujas cidades um dos fenômenos fundamentais para
não sejam fragmentadas, repletas de periferias compreendermos a aceitação de determinadas
degradadas? De bairros operários? De bairros da relações sociais por grupos e classes sociais
burguesia? Haverá uma sociedade cuja distintos. Note que aqui não estou buscando
totalidade das relações não seja mediada pela explicar os porquês, as determinações que fazem
mercadoria? É possível pensar em uma forma de com que as relações de subordinação e
organização societária cuja relação dominante exploração se perpetuem, pois aí muitas outras
não seja: “eu tenho, por que comprei?”, é determinações entram em jogo, tais como: o
possível pensar, nestes termos, numa sociedade, estado, a ideologia, os valores, as organizações
na qual não haja o político profissional, o de comunicação etc. Racionalizar é aceitar como
proprietário, o trabalhador (operário, camponês, invariável, o variável; cotidiano, banal, o
desempregado etc.), o administrador, o gerente? essencial; natural, o histórico; enfim, retilíneo, o
ondulado. Ou seja, a naturalização impede o
Todas estas questões demonstram pensamento de abstrair a realidade, de analisá-
somente uma coisa, os conceitos e categorias la, de compreendê-la. É necessário, portanto,
com os quais instrumentalizamos nosso não nos desvincularmos de nossa realidade
pensamento são um produto genuíno de nossa social, nem de seus conceitos inextrincáveis,
sociedade. Naturalizar o que na realidade é uma mas pelo contrário, compreender que esta
produção social é um fenômeno muito comum.
realidade social e os conceitos que lhes são No final, mais do que a pergunta se a
inerentes são determinados historicamente. autogestão é possível, devemos perguntar se
queremos ou não a autogestão. Deste modo, a
Deste modo, é fundamental analisar a pergunta de como vamos administrar uma
burocracia, os proprietários, a mais-valia, os cidade de 10 milhões de habitantes, de quem vai
operários, camponeses, desempregados etc. e administrar o trânsito, a escola, a igreja etc. é
suas relações recíprocas, pois esta é a um subterfúgio que expressa determinados
materialidade de nosso mundo. Entretanto, é
A Libertação do
valores e que busca fugir à pergunta central:
fundamental também, compreender Pensamento
que estes queremos a autogestão? Se sim, devemos
conceitos são produtos da nossa realidade considerar em linhas gerais o que concebemos
histórica e que esta é permeada de contradições por esta palavra. Mais do que mera palavra,
que lhes sustentam, que lhes transformam e que signo, autogestão é conceito que expressa uma
lhes apontam sua dissolução. Analisar as realidade possível. Que realidade é esta? O que é
dinâmicas sociais que movimentam nossa autogestão?
sociedade é um começo para compreendermos
as possibilidades que estão dadas. Estas duas questões nos conduzem a
problemas de difícil solução, que não se
Analisemos agora o segundo aspecto que resolvem simplesmente com o manejo de
considero fundamental para pensarmos o categorias abstratas e teóricas. Trata-se na
possível: os valores. É intrínseco aos seres realidade de uma mudança global em todos os
humanos valorar os objetos, as instituições, as níveis das relações sociais. Mudanças de ordem
relações, os próprios indivíduos etc. Os artistas econômica, política, cultural, comportamento
valoram sua arte, os professores valoram suas sexual, educativo etc. Ou seja, na nossa
aulas, os engenheiros suas pontes, os deístas seu sociedade, autogestão deve ser concebida de três
deus, os idólatras seus ídolos. Da mesma forma formas: a) como um processo revolucionário
os “não-artistas” valoram a arte, os alunos, a que aniquila a sociedade atual. Processo este que
aula, os “não-engenheiros” a ponte, os ateus, já deve conter em si os fundamentos do que
deus e os “não-idólatras” os ídolos. Porém, de busca construir; b) como a sociedade produzida
outra maneira. Ou seja, valorar é um balizada em outras formas de relações sociais
prolongamento dos seres humanos a tudo o que calcadas em princípios organizativos
nos concerne, a tudo o que nos rodeia. radicalmente diversos, na qual a alienação,
exploração, autoridade, hierarquia, poder etc.
Deste modo, o que
importa é qual valor estamos sejam abolidos; e c) como um conceito, ou seja,
re-produção no pensamento de uma realidade
ou não atribuindo à
possível em nossa sociedade e concreta numa
determinada coisa, relação
etc. assim, segundo penso, a sociedade revolucionada.
autogestão é valorada No primeiro caso, devemos concebê-la,
basicamente de duas tal como fizeram Marx e Engels na Ideologia
maneiras. Ou a valoramos a Alemã, quando definiram o comunismo como o
partir da perspectiva do movimento real da sociedade que abole o atual
existente, portanto ela é impossível ou estado de coisas. Ou seja, o comunismo, cujo
indesejável, ou a valoramos a partir da via do fundamento é a autogestão, não é o futuro, mas
possível, portanto ela é não só realizável, mas sim o movimento autogerido e auto-organizado
desejável. No primeiro caso, naturalizamos que põe fim às relações de classe.
nossa realidade histórica por conveniência ou
por impotência e no segundo, exercitamos o Em termos concretos, só podemos
pensamento a instrumentalizar-se com conceber a autogestão num movimento cujos
categorias do ainda-não-existente, do possível e princípios organizativos, teóricos, éticos (no
percebemos a realidade como histórica e sentido da ética humanista tal como Erich
transitória. Fromm define em Análise do Homem) e
revolucionários sejam a autogestão. Ou seja, ela pessoas e objetos dentro de uma organização
é o meio e o fim da revolução. Se seus objetivos burocrática, podendo ser privada ou estatal. O
e métodos não são autogeridos e auto- objetivo de administrar é fazer com que a
organizados, ela estará invariavelmente fadada à organização funcione de maneira objetiva,
conservação, ou em outras palavras, à ordenada, funcional, hierarquizada. A ação de
reprodução diferenciada ou idêntica ao administrar pressupõe o sujeito que administra;
existente, à ordem atual. esse administrador é imbuído de poder e
autoridade concedidos pela organização. Se este
Se afirmamos que as coisas se dão desta burocrata é “justo”, “bom”, “mau” ou “injusto”
maneira, resta, e é o que importa, encontrar as pouco importa, pois sua função é ordenar os
determinações que explicam por que ocorrem fluxos de informações, pessoas e objetos dentro
assim. Na ética autoritária, segundo a qual “os da organização. O administrador é a
fins justificam os meios”, o que importa é personificação do “separado”, tal como Guy
chegar-se ao comunismo, mesmo que seja sobre Debord definia na sua Sociedade do Espetáculo.
morticínios os mais brutais, divisão hierárquica Em outras palavras, é a velha divisão social do
dentro dos locais de trabalho e no restante da trabalho cuja raiz é o poder (econômico,
sociedade, existência de uma burocracia simbólico, político). Desta maneira, a autogestão
onipotente e incontrolável etc. Ou seja, se no é o aniquilamento da administração. Representa
processo a hierarquia, autoridade, poder, o fim da divisão social do trabalho, sendo,
violência, privilégios permanecem, por mais que portanto, o fim da hierarquia e do poder. Antes
os objetivos sejam a revolução, o comunismo, a de mais nada, autogerir é a criação de novas
autogestão; a autoridade, privilégios, hierarquias relações sociais.
adquiridos passam a ser defendidos, pois passam
a ser interesses de grupos, classes e indivíduos. Autogerir significa o domínio da vida
Chegamos assim, por exemplo, ao fim da como um todo. Se em nossa sociedade, vendo
revolução russa em 1921, à edificação das meu tempo de vida em troca de um salário, que
burocracias partidárias e sindicais etc. O século permita sobreviver para continuar vendendo
20 é o testemunho mais vivo destas meu tempo. Numa organização autogerida, o
“revoluções”. tempo não é vendido, mas organizado para a
própria vida. O tempo deixa de ser o padrão de
Se no primeiro caso, a autogestão é o medida do valor para ser o princípio da
processo que degenera esta sociedade, no construção de vida.
segundo, é o projeto consumado. Falar dele, é
em grande parte especulação, pois as Neste sentido, meu trabalho não deve ser
possibilidades históricas são tantas que a própria alienado, ou seja, tanto o produto, quanto o
dinâmica imprevisível, portanto viva, da história processo de trabalho deverá ser de meu inteiro
não nos permite avaliar com precisão o que é a conhecimento, sendo, portanto minha
sociedade autogerida. Mesmo assim, alguns objetivação. Meu trabalho deve ser a minha
indicativos podem ser lançados ao vento. realização, deve ser minha externalização. Não
Levando em consideração as experiências como meio para sobreviver, mas como fim,
históricas dos movimentos revolucionários e as objetivo de se viver.
produções teóricas sobre eles, podemos colocar
em pauta alguns elementos que nos permitem Poderíamos elencar aqui um sem número
especular mais sobre o que ela não deve ser do de conceitos e categorias que expressem uma
que ela realmente deva ser. realidade ainda-não-existente. Isto é para mim
pensar o possível a partir do existente. E é deste
Em primeiro lugar, ela não é modo que entramos na terceira forma de
administração, principalmente administração das concebermos a autogestão, ou seja, como um
instituições desta sociedade. Podemos definir conceito. E ele expressa sempre uma realidade.
administração, de maneira lata, como sendo Como conceito, autogestão refere-se tanto à
uma técnica de organizar fluxos de informações, realidade posta em nossa sociedade, portanto
como um processo de destruição, aniquilamento, destrutiva e construtiva ao mesmo tempo,
negação, mas ao mesmo tempo expressa uma negativa e positiva simultaneamente! Ou seja,
realidade ainda-não-existente, sendo desta no próprio ato de destruir a sociedade burguesa,
maneira construtivo, positivo, propositivo. delineia-se a construção da sociedade
autogerida.
Fique claro desde já que não se trata de
duas realidades separadas, a forma de exposição Deste modo, insisto, a pergunta correta
serve somente para aclarar as idéias e apresentar não é se a autogestão é possível, mas sim se a
didaticamente o que é a autogestão. Trata-se na desejamos ou não. E no final, há um milhão de
realidade de processos que ocorrem perguntas sobre o que fazer com um milhão de
simultaneamente. Ela não é primeiramente coisas. Tudo está por fazer. E é preciso fazê-lo.
destrutiva e em seguida construtiva. É sim

Artigo publicado originalmente em:


Revista Enfrentamento. Ano 01, num. 2, Jan./Jun.
2006.
http://www.enfrentamento.sementeira.net/

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