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Este texto, escrito por mim e por Tiago Soares, foi apresentado no II Congresso
Online ? Observatório para Cibersociedade. É uma tentativa de aproximação entre o
jornalismo e o processo de produção do software livre.
Mark Deuze afirma ser a prática descrita acima a forma pura do Open-Source
Journalism, descrevendo-a como: "O uso das assim chamadas fontes 'abertas' na internet
para a checagem dos fatos" (2). E continua: "A idéia fundamental por trás do Open-
Source Journalism parece ser uma forma avançada de jornalismo comunitário, cívico ou
público: envolvendo a audiência na (manufatura das) notícias, criando sites com
conteúdos específicos, criado por seus usuários (...)". Nesse sentido, sua definição se
aproxima da contida no Wikipedia ? este também um site algo inspirado na filosofia do
conteúdo criado pelos usuários. Na própria Wikipedia o Open-Source Jornalism é
descrito como um "primo próximo" do Citizen Journalism ou Participatory Journalism.
Em "We Media: how audiences are shaping the future of news and information", os
autores apresentam uma definição para o participatory journalism (3): "The act of a
citizen, or group of citizens, playing an active role in the process of collecting,
reporting, analyzing and disseminating news and information. The intent of this
participation is to provide independent, reliable, accurate, wide-ranging and relevant
information that a democracy requires. Participatory journalism is a bottom-up,
emergent phenomenon in which there is little or no editorial oversight or formal
journalistic workflow dictating the decisions of a staff. Instead, it is the result of many
simultaneous, distributed conversations that either blossom or quickly atrophy in the
Web's social network."
Catarina Moura (4) cita o Slashdot como um site que marca o início da era do Open-
Source Journalism. Embora nem seu criador e principal administrador, Rob Malda (5),
considere o Slashdot como uma publicação de caráter jornalístico ? e a própria autora o
classifique como sendo algo entre "a webzine e o fórum" - ela destaca algumas
características que o aproximam da idéia de Open-Source Journalism, como: "permitir
que várias pessoas (que não apenas os jornalistas) escrevam e, sem a castração da
imparcialidade, dêem a sua opinião, impedindo assim a proliferação de um pensamento
único, como o que pode ser aquele difundido pela maioria dos jornais, cuja
objectividade e imparcialidade são muitas vezes máscaras de um qualquer ponto de
vista que serve interesses mais particulares que apenas o de informar com honestidade e
isenção o público que os lê".
Fundamentalmente, porém, o que o Slashdot publica são notícias. Estas podem ser
escritas por seus usuários ou apresentadas apenas na forma de links para outros sites.
Embora possam publicar textos próprios ? algo, porém, raro ?, a intervenção do usuário
não se dá propriamente no texto da notícia, mas sim na pontuação que atribui a cada
link e nos (também pontuados) comentários que faz. Lucilene Breier (6) descreve o
processo: "... a moderação é feita 'em massa', na expressão de Malda. Qualquer leitor
regular do Slashdot pode passar a ser moderador. Essas pessoas recebem um número
limitado de 'pontos de influência' (cinco) como na estrutura dos 400 Lucky Winners,
cujo valor expira em três dias. Elas vão classificar as mensagens deixadas pelos leitores
em uma escala que vai de -1 a 5, num valor crescente de qualidade da informação.
Nenhum comentário é deletado (exceto se houver problemas técnicos de formatação de
HTML), apenas os que forem considerados ruins recebem notas negativas e só serão
vistos se o leitor configurar essa opção em seu perfil pessoal na página (thresholds)."
Mas há algo que caracteriza o movimento open source (e também o software livre,
embora esta não seja sua ênfase), que o aproxima ainda mais da primeira experiência do
Open-Source Journalism e do veículo onde foi realizada, o Slashdot. O termo Open
Source e sua instituição política, a Open Souce Initiative, surgem sob forte influência da
obra "A Catedral e o Bazar", de Eric Raymond. Nela, Raymond critica um determinado
modelo de desenvolvimento de software (que chama de Catedral) em que o código é
controlado por um pequeno grupo, que o desenvolve de uma maneira centralizada. No
livro, ele elogia o método que teria sido aplicado por Linus Torvalds no
desenvolvimento do kernel Linux, em que Torvalds disponibilizaria com frequência o
código que estava desenvolvendo e, assim, receberia sugestões e relatos de testes feitos
por uma gigantesca e independente comunidade de usuários/programadores na internet.
"Libere cedo, libere frequentemente [o código]", é um dos princípios do
desenvolvimento que Raymond chama de Bazar.
Dificuldades e desafios
Embora seja uma experiência bastante interessante, a aplicação do chamado esquema
"Bazar" ao jornalismo traz alguns problemas e limitações. Antes, porém, há de se
afirmar suas virtudes. Entre elas (e talvez seja a principal) está o rompimento com o
esquema "de cima para baixo" para a produção de notícias, algo que se assemelha muito
à ideologia de independência dos produtores e desenvolvedores do software livre, em
que grupos ou indíviduos que discordam de um projeto em desenvolvimento são
capazes de dar um direcionamento autônomo e independente ao que produzem ? os
chamados "forks". Tal condição só é possível porque o código (informação) é livre.
Porém, nos dois projetos que aqui consideramos como exemplares do que tem sido
chamado de Open-Source Journalism -- o Slashdot e o Wikinews --, essa condição do
leitor que é livre para usar/modificar/alterar/copiar a notícia é interpretada de modo
diferente. No Slashdot, cabe ao leitor comentar/validar/selecionar uma determinada
notícia, e essa sua contribuição é algo que se acrescenta, quase que modularmente (pois
não interfere no texto), à notícia original. Já no Wikinews a contribuição é completa,
materializada na alteração do texto original, em que a participação de vários indivíduos
se funde.
No caso do Wikinews, a contribuição dos leitores é mais radical: todos podem alterar o
texto, com a versão a ser exibida sendo a mais recente (embora as prévias possam ser
recuperadas). Cada texto é fruto da contribuição de um coletivo anônimo de pessoas,
dirigidas apenas pela política de "imparcialidade" descrita no projeto editorial. Quem
assume a autoria é o coletivo, e, imagina-se, o texto será o mais próximo possível da
média das opiniões dos autores.
Há ainda outro reparo a ser feito no que tem sido chamado de Open-Source Journalism.
Nos EUA, e nos países de língua inglesa de um modo geral, a palavra open source tem
sido usada para designar tanto o software livre como o código aberto (open source). Os
movimentos, no entanto, são bastante distintos.
Não cabe discutir aqui as razões de o termo open source ter se tornado mais popular.
Vale, porém, lembrar que uma das características do movimento open source foi a de
ser mais atraente aos setores conservadores, especialmente aos empresários. Enquanto o
movimento software livre (e a FSF) é reconhecido pelo rigor com que defende as
chamadas quatro liberdades básicas (executar o software, estudar e modificar o código
fonte, copiar e distribuir cópias modificadas do software), o movimento código aberto
assume, em nome da obtenção de resultados práticos, a construção de um discurso
considerado "menos ideológico". Enquanto o movimento software livre defende a
inexistência da distinção entre usuários e produtores, lembrando que todos devem ser
livres para alterar o código, o movimento open source aceita a persistência da categoria
"usuário", e acredita na distinção entre produtores e consumidores de código (7).
Cabe então perguntar: será que o termo "open source" é o mais adequado para se fazer
referência a projetos que buscam democratizar a produção jornalística? Não seria mais
interessante a uma proposta jornalística que se pretende democrática e participatória
estabelecer laços com o movimento free software em lugar do movimento open source?
Pensamos que a analogia mais interessante e produtiva a ser feita é entre o trabalho do
jornalista e a função desempenhada pelos programas compiladores. A liberdade do
movimento software livre não se baseia no compartilhamento de programas em sua
forma "executável". Se assim fosse, os desenvolvedores não seriam capazes de alterá-lo
e modificá-lo. É a partir do código-fonte compartilhado que outros programas, melhores
ou simplesmente com funções diferentes, podem ser criados. A partir do código fonte
livre, o desenvolvedor incorpora suas idéias, sua visão. Só então o código fonte alterado
é "compilado": ou seja, verifica-se se aquilo tudo é consistente, se é adequado àquela
máquina (realidade), e um programa executável é gerado e pode ser utilizado por todos.
O Jornalismo Livre pode, inclusive, ter regras que permitam toda e qualquer
reconfiguração do texto. Assim como a versão executável de um software pode ser
recompilada se contiver as fontes, isso também pode acontecer com o texto. Para cada
texto livre produzido deve ser possível gerar uma nova versão, que pode ser um
aperfeiçoamento (conter mais pesquisa) ou apenas uma nova formulação do texto
original, em que se novos sentidos são construídos pois as fontes são olhadas sob outra
perspectiva.
A regra para um texto livre deve ir além da permissão de republicação. Deve conter
obrigações como as existentes em documentos como a GPL, a licença mais usada pelos
softwares livres. A GPL propõe que o código fonte deve sempre acompanhar o
programa executável e que novos programas gerados a partir de códigos fontes livres
também devem ser livres. Para o Jornalismo Livre, a regra deve ser a mesma: um texto
produzido a partir de material livre também deve manter suas fontes livres. Claro, nem
sempre é possível revelar as fontes no jornalismo ? debater normas a partir desse
princípio, porém, pode resultar em experimentos interessantes.
Conclusão
A internet e a informática oferecem novos recursos que ainda não foram
produtivamente assimilados para uma transformação qualitativa da produção
jornalística. O movimento software livre tem mostrado, desde a década de 1980, como é
possível fazer uso das novas tecnologias no sentido de que seja alterada a relação entre
produtores e consumidores. Cabe ao jornalismo fazer uso da tecnologia também para
esse fim, oferecendo aos leitores a possibilidade de adotarem não somente uma posição
passiva de consumidores de informações. Fazer isso é ainda, intrinsecamente, aumentar
a transparência da atividade jornalística, permitindo a checagem das informações
coletadas e das interpretação feitas.
Notas
• [1] Leonard, A. "Open-source journalism," Salon (8/10/1999), em
http://www.salon.com/tech/log/1999/10/08/geek_journalism/index.html
• [2] Deuze, M. Online Journalism: Modelling the First Generation of News
Media on the World Wide Web. First Monday, volume 6, number 10
(OUTUBRO 2001),URL:
http://firstmonday.org/issues/issue6_10/deuze/index.html
• [3] Bowman, S e Willis, C We Media: how audiences are shaping the future of
news and information. Em
• http://www.hypergene.net/wemedia/weblo g.php
• [4] Moura, C. "O jornalismo na era Slashdot" Em
http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php?html2=moura-catarina-jornalismo-
slashdot.h tml
• [5] http://wired-vig.wired.com/news/print/0,1294,21448,00.htm
• [6] Breier, L. "Slashdot e os filtros no Open Source Journalism" Em
http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php?html2=breier-lucilene-slashdot.html
• [7] Evangelista, R. "Política e linguagem nos debates sobre o software livre".
Dissertação de Mestrado. Instituto de Estudos da Linguagem. Unicamp, 2005.