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Música Adaptativa e Articulação Narrativa em Jogos Eletrônicos

Felipe Hickmann
hickmann.multiply.com

* Publicado nos anais do Simpemus 5 - Simpósio de Pesquisa em Música, UFPR, 2008.

RESUMO
Esse artigo procura descrever alguns dos procedimentos adotados na criação e implementação de música para
jogos eletrônicos, visando lidar com a imprevisibilidade de seu conteúdo diegético. Para isso, revisa-se o
conceito de “música adaptativa”, que objetiva prover soluções para as mudanças no curso da narrativa que
ocorrem por intervenção direta do jogador, e precisam ser refletidas na trilha musical de maneira ágil e
coerente.
Palavras-chave: trilha musical, jogo eletrônico, narrativa, música adaptativa.

ABSTRACT
This paper intends to describe some procedures adopted on creating and implementing music for computer
games, aiming to deal with the unpredictability of its diegetic content. For this, the concept of “adaptive
music” is reviewed. Adaptive music intends to provide solutions for the changes in narrative process which
occur by direct intervention of the player, and need to be reflected in the musical soundtrack in an agile and
consistent way.
Keywords: musical soundtrack, computer game, narrative, adaptive music.

1. INTRODUÇÃO

Antes de se investigar quaisquer modos de relação da música com a narrativa


em jogos eletrônicos, há necessidade de se verificar, ainda que de maneira incipiente, com
que extensão o próprio conceito de narrativa é aplicável a essa mídia. A esse respeito,
Marie-Laure Ryan (2001) observa que a configuração de uma narrativa é um recurso
acessível ao jogo eletrônico, ainda que não fundamental a sua constituição. Ryan identifica
diferentes níveis de narratividade possíveis nesse contexto. Um jogo como Tetris, por
exemplo, se situaria em um extremo de narratividade mínima, já que seus objetivos e
procedimentos não exigem, e tampouco induzem uma interpretação dessa natureza. Por
outro lado, jogos com contextualização mais sofisticada, como personagens, enredos,
cenários e objetivos concretos, implicam um tipo específico de processo narrativo, que não
se circunscreve com perfeição a nenhum modo narrativo tradicional. Sua particularidade
diz respeito ao status do jogador – que é a um só tempo espectador e personagem da
trama. A intenção do jogador, no entanto, não é promover um discurso, e tampouco assisti-
lo; mesmo assim, uma história será necessariamente derivada de suas ações. Em outras
palavras, a experiência estética da narrativa não é prioritária - ao invés disso, a narrativa
constitui um argumento para tornar mais efetiva a imersão do jogador no universo de jogo.
Zach Whalen (2004) observa duas funções básicas às quais a música se aplica
em um jogo eletrônico: expandir seu universo ficcional, e impelir o jogador a evoluir dentro
desse universo. Em outras palavras, a música se alinha aos elementos narrativos no
sentido de constituir uma experiência de jogo mais densa e significativa. A dificuldade em
aplicá-la coincide justamente com a principal particularidade do jogo eletrônico: a narrativa,
se existe, é construída em tempo real. O jogador não é um espectador, na mesma medida
em que o jogo não é um filme. Com status de personagem e autonomia de ação, o jogador
assume um domínio amplo, ainda que circunscrito às regras do jogo, sobre a seqüência,
duração e natureza dos eventos nos quais toma parte. A música, para aderir com
coerência a essa forma volúvel de narrativa, precisa se adaptar a uma margem variável de
imprevisibilidade. Daí surge o conceito de música adaptativa.
O termo “música adaptativa” surgiu em substituição a “música interativa”, que foi
a escolha natural em uma primeira fase de estudos sobre o tema, ainda na década de 90.
Andrew Clark (2007, p. 1) explica que “música interativa” “implica falsamente uma
interação direta do usuário com a música”1, quando na verdade o que se verifica em jogos
eletrônicos é um “sistema musical que dá suporte à ação dramática ao adaptar-se discreta
e intuitivamente, de maneira a permanecer contextualmente apropriado.”2 (id.) A interação
do usuário, portanto, não é com a música, mas com o jogo - a cujas transformações a
música se adapta. A música adaptativa surge para suprir a ineficiência dos procedimentos
lineares de composição (viáveis, por exemplo, em cinema) em lidar com uma forma de
discurso essencialmente não-linear. O fundamento de sua aplicação é comum à tradição
dos filmes de animação – trata-se do “modo de redundância”, em que a música busca
reafirmar a ação representada pela imagem, potencializando seu impacto (Whalen, 2007,
p. 4). De acordo com Paul Ward (citado em Whalen, 2004), tanto jogos eletrônicos quanto
filmes de animação se baseiam em uma forma de representação que poderia ser chamada
mais corretamente de “emulação” do que de “simulação”, já que procura descrever
universos que só são verossímeis se não forem realistas. A técnica mais comum de
aplicação dessa perspectiva, nos filmes de animação, é o chamado “mickeymousing”, em
que gestos musicais “imitam” a ação representada na imagem. Com a tendência ao
realismo extremo que orienta grande parte da produção atual de jogos eletrônicos, a
aplicação do mickeymousing se torna menos estrita, mas ainda baseada nos mesmos
fundamentos. Na lógica da música adaptativa, as transições podem ser extremamente
sutis, permanecendo em um segundo plano de percepção do jogador. Há também uma
diferença quantitativa em relação ao procedimento clássico do mickeymousing: na maior
parte dos jogos em que há predominância de música adaptativa (como nos gêneros
“survival horror”3 e em muitos MMOG4’s), não é qualquer gesto do jogador que recebe uma
contrapartida musical, mas apenas mudanças mais significativas no contexto de jogo.
Diversos engines (padrões de programação) dedicados a permitir que a música
sofra transformações em tempo real, em resposta a eventos do jogo, vêm sendo
desenvolvidos ao longo dos anos, em correspondência à capacidade de processamento
crescente das plataformas. A criação de música para esses sistemas passa
necessariamente por um trabalho conjunto de um núcleo de criação com um núcleo de
programação de áudio – que é responsável por reproduzir em linguagem de programação
o conjunto de regras que define o comportamento da música, pré-composta e gravada,
dentro do jogo. A grande dificuldade dessa abordagem, do ponto de vista da composição,
é que se torna virtualmente impossível definir quando se dará o evento, ou combinação de
eventos, que motiva certa transformação da trilha musical. Assim, o desafio de se compor

1
“(...) falsely implies direct user interaction with the music.”
2
“The music system is supporting the dramatic action by adapting intuitively and discretely in order to remain
contextually appropriate.”
3
“Survival horror é um gênero de jogo eletrônico inspirado em filmes de terror, no qual o principal objetivo do jogador
é sobreviver e/ou escapar de uma ameaça típica do terror ficcional, como monstros ou seres sobrenaturais de qualquer
natureza.” (Wikipedia, 2008a).
4
“Um jogo online massivamente multiplayer (também chamado MMOG ou simplesmente MMO) é um jogo de
computador capaz de agregar centenas ou milhares de jogadores simultaneamente.” (Wikipedia, 2008b).
música adaptativa é engendrar mecanismos musicais flexíveis, a tal ponto que permitam
mudanças instantâneas de orientação estética do discurso sonoro, sem prejuízo de sua
coerência e continuidade. Na tentativa de definir e situar esse problema, pode-se dizer que
ele se localiza no momento fundamental à articulação da narrativa: o instante da transição.

2. O PROBLEMA DA TRANSIÇÃO
Nas primeiras gerações de videogames, essa articulação não configurava
necessariamente um problema, já que a interrupção entre os diversos contextos (ou
“fases”) de jogo era evidente e esperada. Modificações graduais de contexto eram
praticamente inviáveis com os recursos de desenvolvimento disponíveis à época, e a troca
de fases, como o fechamento das cortinas entre os atos de uma obra cênica, era a grande
oportunidade para que todo o conteúdo audiovisual fosse substituído. Mesmo assim, ainda
nessa época provou-se viável promover transformações relativamente ágeis na trilha
musical sem necessidade de interromper a experiência de jogo. É o caso, por exemplo, de
muitos jogos “side-scrolling”5, em que, após ter percorrido toda a extensão de uma fase, o
personagem controlado pelo jogador se defronta com o “chefe” (boss). Nesse momento,
sem que haja necessariamente uma mudança de cenário, a música corrente é
interrompida e substituída por outra, mais tensa, refletindo a mudança no contexto de
jogo6. O jogo Super Mario Bros (Nintendo, 1985) representa um exemplo excepcional para
esse período, já que seus desenvolvedores conseguiram aplicar com sucesso uma idéia
simples, mas suficiente para relacionar a música diretamente à transformação do ambiente
de jogo: à medida que o final do cenário se aproxima, o andamento da trilha musical
aumenta, impelindo o jogador a progredir mais rapidamente (Whalen, 2004).
Clark (2007) aponta que pouco depois, já no início da década de 90,
começavam a ser lançados os primeiros jogos a assumir abordagens propriamente
adaptativas da trilha musical, como é o caso da série X-Wing, da desenvolvedora
LucasArts, lançado em 1993. Desde então, muitos compositores e programadores
confrontaram o desafio de criar estruturas musicais capazes de se articular junto a
mudanças de conteúdo diegético que podem ocorrer, virtualmente, a qualquer momento.
Para ilustrar esse problema, Clark (2001) constrói uma analogia com estruturas da
lingüística, através da qual exemplifica algumas possíveis alternativas técnicas de
articulação musical entre contextos quando o trigger7 se encontra em posição
indeterminada. Para tanto, utiliza-se da idéia de “poema adaptativo”, ou seja: um poema
escrito de forma que possa ter sua temática ou caráter totalmente modificados em meio a
qualquer um dos versos, e ainda assim encontre uma solução que permita a continuidade
imediata, preservando seus atributos de métrica e rima. O problema que o “poema
adaptativo” procura solucionar é o mesmo que se apresenta à música no instante da
transição: assim como o poema não pode esperar o fim do verso para trocar de temática,
também não é possível esperar que a estrutura musical corrente seja concluída. Nesse
caso haveria uma defasagem entre as articulações visual e musical, prejudicial à imersão
do jogador. Clark (2001) sugere que as estruturas mínimas do poema (ou seja, aquelas
indivisíveis, cujo final precisará necessariamente ser aguardado para que aconteça a troca
de contexto) podem ser desde simples letras até versos inteiros, e por fim propõe

5
“Side-scrolling game é um gênero de jogo eletrônico no qual a ação é vista de um ângulo de câmera lateral, e os personagens
normalmente se movem da esquerda para a direita da tela, procurando atingir seus objetivos.” (Wikipedia 2008c).
6
Exemplos dessa abordagem são “Sonic, the Hedgehog” (Sega, 1991) e “Streets of Rage” (Sega, 1991).
7
“Trigger” é o “disparador”, ou seja, o evento ou combinação de eventos dentro do jogo que ocasiona a modificação de contexto.
situações em que várias dessas possibilidades interagem conforme a necessidade trazida
pelo jogo. Transpondo o raciocínio à sintaxe musical, podem-se assumir como estruturas
mínimas desde notas isoladas até motivos, frases, períodos ou qualquer outro elemento
formal, cada alternativa apresentando seu próprio espectro de vantagens e desvantagens.
De uma maneira geral, quanto menores forem as estruturas mínimas (notas ou motivos,
por exemplo), com maior agilidade a música poderá se adaptar a mudanças de contexto;
no entanto, mais difícil se tornará sua criação e implementação. Estruturas maiores exigem
menor esforço de implementação, mas também permitem menor agilidade de manipulação
nas transições, já que é mais provável que a mudança de contexto aconteça em meio à
execução da amostra sonora correspondente. Nesse caso, restam à programação do jogo
duas alternativas pouco eficientes: ou espera-se o final da amostra para substituí-la
(período em que a diegese já é outra, mas a música ainda não), ou assume-se sua
interrupção em um ponto aleatório.
Whalen (2004), discutindo um dos processos adotados em Silent Hill (Konami,
1999), levanta a possibilidade de sobrepor planos sonoros, com sincronia pré-ajustada,
conforme o personagem controlado pelo jogador se aproxima de determinados elementos
no jogo. A utilização de planos sonoros sincronizados e sobrepostos oferece à trilha sonora
flexibilidade suficiente para se transformar de maneira dinâmica e gradual. O “modo de
redundância” em trilhas adaptativas deixa de funcionar de forma obrigatoriamente pontual:
a música pode se transformar acumulando ou substituindo planos gradualmente, conforme
a ação e a narrativa se dirigem a um ou outro ponto determinado.
Essa flexibilidade é especialmente necessária em jogos nos quais a
experiência do jogador pode se estender por um período indeterminado, como nos
MMOG's. Um dos criadores da trilha sonora de Anarchy Online (Funcom, 1999), Bjorn Arve
Lagim (2002) menciona que o procedimento mais usual, em que um mesmo trecho musical
é repetido indefinidamente até que alguma ação motive uma mudança de contexto, seria
ineficaz nesse tipo de jogo, já que “mesmo que a música não chame atenção para si
mesma, a repetição o fará”8 (id, p. 2). Vale lembrar que, na concepção mais comum de
MMOG's, a narrativa não se apóia sobre uma linearidade clara: muito embora o jogo possa
oferecer um argumento detalhado e até mesmo um arco geral de evolução do jogador
dentro do universo, o jogador tem uma enorme liberdade de ação. E, diante de todas as
possibilidades que lhe são oferecidas, música linear – ou seja, sem flexibilidade para ser
“montada” conforme a ação acontece – não seria eficaz em sublinhar sua experiência.

3. CONCLUSÃO
É importante observar que essas alternativas, embora possam solucionar o
problema da transição de forma eficiente, não são um padrão da indústria. De fato, conferir
à trilha musical esse nível de flexibilidade de adaptação possui um custo alto em termos de
tempo e custo de desenvolvimento. A implementação precisa ser feita e testada em
paralelo à criação da música, e alguns desenvolvedores podem defender que o ganho na
experiência do usuário não corresponde aos custos. Por conta disso são comuns soluções
mais simplistas, como promover crossfades entre as músicas dos diferentes contextos por
ocasião das transições, ou mesmo ignorar a possibilidade de uma trilha sonora adaptativa.
Muitas vezes o próprio tamanho da plataforma é impeditivo para o desenvolvimento de
soluções mais sofisticadas – como no caso de jogos para telefone celular e webgames.
8
“Even though the music doesn't draw any attention to itself, the pattern that it is repeating will.”
Por conta disso, os procedimentos descritos aqui correspondem a apenas uma parcela da
realidade da indústria de jogos.

4. BIBLIOGRAFIA

CLARK, A., 2001. Adaptive Music [online] Gamasutra. Disponível em


http://www.gamasutra.com/resource_guide/20010515/clark_pfv.htm [Acessado em 21 de
setembro de 2008].

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http://www.gamasutra.com/view/feature/1567/defining_adaptive_music.php?print=1
[Acessado em 21 de setembro de 2008].

FUNCOM, 1999. Anarchy Online [PC]. Zürich: Funcom.

KONAMI, 1999. Silent Hill [Playstation]. Redwood City: Konami.

LAGIM, B., 2002. The Music of Anarchy Online: Creating Music for MMOGs [online]
Gamasutra. Disponível em
http://www.gamasutra.com/resource_guide/20020916/lagim_pfv.htm [Acessado em 21 de
setembro de 2008].

Nintendo , 1985. Super Mario Brothers [NES]. Redmond: Nintendo.

RYAN, M., 2001. Beyond Myth and Metaphor – The Case of Narrative in Digital Media
[online] Game Studies. Disponível em http://www.gamestudies.org/0101/ryan/ [Acessado
em 21 de setembro de 2008].

SEGA, 1991. Sonic, the Hedgehog [Mega Drive]. Tokyo: Sega.

SEGA, 1991. Streets of Rage [Mega Drive]. Tokyo: Sega.

WHALEN, Z., 2004. Play Along - An Approach to Videogame Music [online] Game Studies .
Disponível em http://www.gamestudies.org/0401/whalen/ [Acessado em 21 de setembro
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WIKIPEDIA, 2008a. Survival Horror [online] Wikipedia, the free encyclopedia. Disponível em
http://en.wikipedia.org/wiki/Survival_Horror [Acessado em 21 de setembro de 2008].

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WIKIPEDIA, 2006c. Side-scrolling Video Game [online] Wikipedia, the free encyclopedia.
Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Side-scrolling [Acessado em 21 de setembro de
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