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SOBRE A “PERVERSÃO NEODARWINISTA”

Augusto de Franco
Escola-de-Redes (09/05/10)

Isto é um draft

Tuitei em 8 de maio de 2010:

Percebo uma certa perversão neodarwinista em alguns


considerados gurus da web e das midias sociais. Estou
enganado?

Acho que anda fazendo muita falta um pouco de leitura de Lynn


Margulis e Humberto Maturana!

Já havia tuitado em 29 de abril de 2010:

Substitua o DDD = Darwin-Dawkins-Dennett pelos M&M =


Margulis & Maturana (no mínimo é mais gostoso, hehe)

Para exorcizar os demônios do determinismo genético:


"Evolução em quatro dimensões" de Jablonka & Lamb (MIT:
2005)
Algumas pessoas não entenderam o sentido (pelo menos dos tweets
de 9 de maio de 2010) e perguntaram:

@ciensinando Pq perversão neodarwinista? Tem referências


ou highlights? Fora a endossimbiose?

@tipuri @augustodefranco o que é perversão neodarwinista?


Não entendi...

Então vou tentar explicar aqui.

O neodarwinismo por certo, não é uma perversão e sim uma


interpretação científica. Mas sustento que existe uma perversão
neodarwinista: o neodarwinismo social.

Como já venho tratando do assunto há uma década, começo com


uma transcrição do meu Capital social (2001), que tinha por epígrafe
uma frase de Lynn Margulis e Dorion Sagan (1986) em Microcosmos:
“A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim pela formação
de redes”.

Visões biológicas competitivas e colaborativas

Transcrição de um tópico do 7.4 do livro de FRANCO, Augusto (2001).


Capital social: leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama,
Maturana, Castells e Levy. Brasília: Instituto de Política / Millennium,
2001.

“Reconhecer que a competição existe nas sociedades humanas


nada tem a ver com pregar a sua imanência ou a sua
inexorabilidade, ou especular sobre sua possível fonte biológica
ou genética.

Argumenta-se freqüentemente que o mundo natural é um


campo de luta pela vida. Se o mundo natural é um campo de
luta pela vida (struggle for life), então seria “natural” pensar
que o mundo social também o é? O darwinismo social e um
pouco também o neo-darwinismo (como, aliás, qualquer
darwinismo, em que pesem os esforços ingentes de vários bem-
intencionados pesquisadores contemporâneos de “salvar”
Darwin, dizendo que ele nunca disse “isso” ou “aquilo” – mais

2
ou menos assim como se tentou, durante décadas, livrar Lenin
das conseqüências maléficas dos sistemas políticos implantados
por seus seguidores) induzem à uma resposta afirmativa a esta
questão. O problema, como já se disse aqui, não é tomar a
biologia como geratriz de comportamentos sociais, o que, sob
certo aspecto, é inevitável uma vez que o homem é um ser
biológico basicamente. O problema está no tipo de biologia que
se toma. Desse ponto de vista todo darwinismo é social na
medida em que foi o comportamento social, observado num
tipo de sociedade, que levou Darwin e seus seguidores a inferir
um comportamento natural, ou melhor, a interpretar o
comportamento natural em termos de luta. A sociedade inglesa,
sob o influxo do emergente mercado capitalista, apresentava-se
de fato como um campo de luta generalizado e até certo ponto
selvagem (aliás, a expressão “capitalismo selvagem” tem tudo
a ver com isso). Pelo que se pode depreender, a “lei da selva”
não saiu da selva para a “praça do mercado” mas, ao contrário,
da segunda para a primeira como, aliás, já havia reconhecido
Marx em 1862.

Matt Ridley resume de maneira brilhante: “Thomas Hobbes foi o


antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta.
Hobbes (1651) gerou David Hume (1739), que gerou Adam
Smith (1776), que gerou Thomas Robert Malthus (1798), que
gerou Charles Darwin (1859). Foi depois de ler Malthus que
Darwin deixou de pensar sobre competição entre grupos e
passou a pensar sobre competição entre indivíduos, mudança
que Smith fizera um século antes. O diagnóstico hobbesiano –
embora não a receita – ainda está no centro tanto da economia
quanto da biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman;
Darwin gerou Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a
noção de que, se o equilíbrio da natureza não foi projetado de
cima mas surgiu de baixo, não há motivo para pensar que se
trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John Maynard Keynes
diria que A origem das espécies é “simples economia ricardiana
expressa em linguagem científica”. E Stephen Jay Gould disse
que a seleção natural “era essencialmente a economia de Adam
Smith vista na natureza”. Karl Marx fez mais ou menos a
mesma observação: “É notável”, escreve ele a Friedrich Engels,
em junho de 1862, “como Darwin reconhece, entre os animais
e as plantas, a própria sociedade inglesa à qual pertence, com

3
sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos
mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a
bellum omnium contra omnes de Hobbes”” (Ridley, 1996: 284-
5).

Na verdade a raiz do problema está nos pressupostos que


tomamos: no caso da contraposição competição x cooperação,
no tipo de biologia da evolução a que recorremos para construir
nossos modelos de comportamento social. Como a teoria oficial
da evolução – ainda ensinada em quase todas as escolas do
mundo – é o neodarwinismo, acabamos importando
pressupostos não-cooperativos para as nossas ciências sociais.
O neodarwinismo, como se sabe, é resultado de uma
combinação das idéias originais de Darwin sobre as mudanças
evolutivas graduais com as descobertas de Mandel sobre a
estabilidade genética. “De acordo com a teoria neodarwinista,
toda variação evolutiva resulta de mutação aleatória – isto é,
de mudanças genéticas aleatórias – seguida por seleção
natural” (Capra, 1996: 180). Mas o neodarwinismo não é a
única teoria existente. Existe também a teoria da
endossimbiose seqüencial de Lynn Margulis, para quem “o
neodarwinismo é fundamentalmente falho, não somente pelo
fato de se basear em conceitos reducionistas, que hoje estão
obsoletos, mas também porque foi formulado numa linguagem
matemática inapropriada... [a linguagem] da tradição
zoológica... [acostumada] a lidar apenas com uma parte
pequena e relativamente recente da história da evolução.
Pesquisas atuais em microbiologia indicam vigorosamente que
os principais caminhos para a criatividade da evolução foram
desenvolvidos muito tempo antes que os animais entrassem em
cena” (Idem: 181) (n. i.).

Para Margulis, a simbiose (“a tendência de diferentes


organismos para viver em estreita associação uns com os
outros e, com freqüência, dentro uns dos outros, como as
bactérias em nossos intestinos”) cumpre um papel fundamental
na evolução: “simbioses de longa duração, envolvendo
bactérias e outros microorganismos que vivem dentro de
células maiores, levaram, e continuam a levar, a novas formas
de vida... [Assim, ela] vê a criação de novas formas de vida por
meio de arranjos simbióticos permanentes como o principal

4
caminho de evolução para todos os organismos superiores”
(Capra, 1996: 185) (n. i.).

Examinemos o que diz a própria Margulis. “A simbiose, termo


cunhado pelo botânico alemão Anton deBary em 1873, é a
convivência de tipos muito diferentes de organismos; deBary na
verdade a definiu como a “convivência de organismos de nomes
diferentes”. Em certos casos a coabitação, existência a longo
prazo, resulta em simbiogênese: o surgimento de novos corpos,
novos órgãos, novas espécies. Em suma, acredito que a maior
parte da inovação evolutiva surgiu, e ainda surge, diretamente
da simbiose. Essa não é a noção mais comum presente na
maioria dos livros didáticos quanto à base da mudança
evolutiva.

A simbiogênese, idéia proposta pelo russo Konstantin


Merezhkovsky (1855-1921), refere-se à formação de novos
órgãos e organismos por meio de incorporações simbióticas...
esse é um fato fundamental na evolução. Todos os organismos
grandes o bastante para que possamos vê-los são compostos
de micróbios antes independentes, agrupados para formar
totalidades maiores. Ao se fundir, muitos perderam o que em
retrospecto reconhecemos como sua antiga individualidade...
Creio que já consegui convencer muitos cientistas e estudantes
de que partes das células, as organelas, surgiram
simbiogeneticamente, como consequência de diferentes
simbioses permanentes... Atualmente trabalho na expansão da
teoria para mostrar que organismos maiores, com seus novos
órgãos e novos sistemas de órgãos, também evoluíram pela
simbiogênese. Se os simbiontes se fundem por completo, se
eles se incorporam e formam um novo tipo de ser, o novo
“indivíduo”, o resultado da fusão, por definição, evoluiu por
simbiogênese. Embora o conceito de simbiogênese tenha sido
proposto há um século, somente agora dispomos das
ferramentas para testar a teoria com rigor” (Margulis, 1998:
38.9).

Para Margulis, “a simbiogênese foi a lua que puxou a maré da


vida de suas profundezas oceânicas para a terra seca e para o
ar... Se as pessoas um dia viajarem por longos períodos pelo
espaço, a aventura nunca será tão artificial e estéril quanto em

5
Jornada nas estrelas. A visão da engenharia asséptica nos
libertando de nossos companheiros de planeta não é apenas
insossa e tediosa, mas toca as raias do revoltante. Não importa
o quanto nossa espécie nos preocupe, a vida é um sistema
muito mais amplo. A vida é uma interdependência
incrivelmente complexa de matéria e energia entre milhões de
espécies fora (e dentro) de nossa própria pele. Esses estranhos
da Terra são nossos parentes, nossos ancestrais, e parte de
nós. Eles reciclam nossa matéria e nos trazem água e alimento.
Não sobrevivemos sem “o outro”. Nosso passado simbiótico,
interativo e interdependente, é interligado por águas agitadas”
(Margulis, 1998: 106) (n. g.).

Embora Lynn Margulis esteja se referindo a processos


estritamente biológicos – e por isso mesmo – a idéia de que, na
natureza, “não sobrevivemos sem o outro” (ou seja, de que só
sobrevivemos com-o-outro) inspira ao pensamento social
pressupostos radicalmente opostos àqueles que são sugeridos
pela idéia de que, para sobreviver, temos que, de algum modo,
vencer o outro (isto é, ultrapassá-lo evolutivamente por melhor
adaptação).

Por isso tem razão Fritjof Capra quando assinala que “a teoria
da simbiogênese implica uma mudança radical de percepção no
pensamento evolutivo. Enquanto a teoria convencional concebe
o desdobramento da vida como um processo no qual as
espécies apenas divergem uma da outra, Lynn Margulis alega
que a formação de novas entidades compostas por meio da
simbiose de organismos antes independentes tem sido a mais
poderosa e mais importante das forças da evolução. Essa nova
visão tem forçado biólogos a reconhecer a importância vital da
cooperação no processo evolutivo. Os darwinistas sociais do
século XIX viam somente competição na natureza – “a
natureza, vermelha em dentes e em garras”, como se
expressou o poeta Tennyson –, mas agora estamos começando
a reconhecer a cooperação contínua e a dependência mútua
entre todas as formas de vida como aspectos centrais da
evolução. Nas palavras de Margulis e de Sagan: “A vida não se
apossa do globo pelo combate, mas sim, pela formação de
redes” [Margulis e Sagan, 1986: 15] (Capra, 1996: 185) (n. i.)
(n. g.).

6
Se nossos antropólogos, sociólogos e economistas passassem a
tomar como referência a produção, por exemplo, de Margulis,
Maturana ou Gould, ao invés de Darwin e seus seguidores,
Wilson ou Dawkins; ou seja, se tomassem como pressupostos
outras biologias da evolução, é muito provável que fizessem
outro tipo de ciência social e econômica. E que, assim, suas
interpretações do que ocorre na natureza não fossem tão
projetivas do que observam na sociedade mercantil.

Quando seres não-humanos chocam-se entre si no seu


processo de aceder a recursos sobrevivenciais ou reprodutivos
– mesmo que uns devorem ou matem os outros – isso não é
um duelo, uma guerra, uma competição em termos humanos,
porque, em 99,999...9% dos casos, não há um ‘átomo de
interesse’ envolvido em disputa, não há auto-asserção egóica,
não há a emoção de se comprazer no ato de privar o outro dos
recursos necessários à sua subsistência ou de aniquilá-lo, não
há assassinato ou, se houver, como se diz que há no caso de
certos primatas (os 0,00...1%), essa emoção não é constitutiva
do seu viver coletivo a não ser que, por alguma razão (em
geral, não por acaso, o contato com humanos civilizados),
tenha se estabelecido uma incongruência com o meio, o que
acabará levando tal espécie ou linhagem à extinção em virtude
da impossibilidade de realização da sua autopoiese. Todos os
choques entre seres não-humanos são, como reconheceu
Maturana, resultados de processos coletivos de realização de
autopoiese, coreografias da dança estrutural que permite a
manutenção e a reprodução de espécies e linhagens em
congruências múltiplas e recíprocas com o meio.

Os darwinismos são sociais porque decalcam a biologia da


sociologia desse tipo de sociedade em que vivemos e nesse tipo
de sociedade (do padrão civilizatório patriarcal) sempre haverá
competição, em algum grau, em todas as esferas da realidade
humano-social. A conclusão é a de que não há como restringir a
competição à esfera do mercado porque não há como
desvencilhar a competição do ser humano realmente existente,
na medida em que somos, em parte, culturalmente construídos
segundo um padrão que tem se transmitido, de modo não-
genético, geração após geração (pelo menos nos últimos seis
mil anos). O que não quer dizer que não possa haver graus

7
maiores de cooperação e/ou graus menores de competição nas
sociedades atuais. Nem quer dizer que uma “lógica” competitiva
(como, por exemplo, a do mercado) deva necessariamente
prevalecer nas sociedades civis e nos governos das sociedades
realmente existentes no mundo de hoje (como preconiza a
ideologia dita neoliberal e outras teorias sub-liberais esposadas
por grande parte dos economistas hodiernos) [...]”

O determinismo genético

Dois anos depois, comentando o processo de localização no meu livro


A revolução do local (2003), escrevi:

Excertos de dois capítulos do livro FRANCO, Augusto (2003). A


revolução do local: globalização, glocalização, localização. São Paulo /
Brasília: Cultura / AED, 2003.

“Lanço mão aqui da poderosa metáfora aventada por Richard


Dawkins em 1976 (em “O gene egoísta”) e brilhantemente
comentada por Daniel Dennett, sobretudo em 1995 (em “A
perigosa idéia de Darwin”), como um recurso lateral de
argumentação.

A idéia de que haveria uma unidade autoreplicadora, análoga


ao gene, chamada “meme”, é instigante. Não tenho certeza se
seria possível construir uma “teoria memética” com status de
teoria científica, como a genética. E também não tenho certeza
se comprar a idéia de “meme” (ou o “meme” de ‘meme’)
implica ter que assumir também a visão neodarwinista, da qual
discordo bastante (1). Desconfio que a ideologia que vem junto
no pacote (segundo a qual os “memes” se propagariam por
“replicação egoista”, disputando o tempo todo entre si pelos
cérebros que vão parasitar ou infectar viroticamente) possa ser
espancada sem que, com isso, precisemos abrir mão da
hipótese de que existem replicadores independentes, ou melhor
– a meu ver – inter-dependentes, (“softwares culturais”)
capazes de instruir comportamentos (tal como os genes são
capazes de instruir a síntese de proteínas).

8
Ao evocar a idéia de “meme” quero colocar a questão de que
cada elemento do mundo (ou nodo da rede) influi no mundo a
partir da afirmação da sua própria maneira de
ser/estar/receber-processar-devolver estímulos/interagir em
suma, e que quanto mais essa maneira puder ser copiada
(provavelmente por imitação – e é a isso que se chama, no
caso dos “memes”, de replicação) por outros nodos, maior será
o poder (como medida da capacidade) desse elemento de influir
no comportamento dos outros elementos do mundo.

Essa concepção de ‘poder’ como capacidade de afirmar sua


própria forma de ser, ainda que não seja incompatível com uma
concepção shimittiana da política e com outros realismos
políticos, traz, obviamente, muitos outros problemas ao
deslocar o sentido relacional do conceito de poder para
identificá-lo com alguma coisa que possa conotar capacidade
intrínseca de um sujeito de agir sobre outros, fazendo, por
exemplo, como sugerem à primeira vista as teorias dos
“memes”, com que suas idéias prevaleçam sobre as idéias dos
outros (conquanto nessas teorias o sujeito não tenha
necessariamente consciência disso, haja vista que os “memes”
seriam autoreplicadores independentes e, assim, eles é que
seriam egoístas – e não nós, os humanos, seus hospedeiros).
Este, porém, não é o nosso tema agora (2).

Em todo caso, as teorias de inspiração neodarwinista que


admitem a hipótese dos “memes” poderiam talvez ser refeitas a
partir da idéia de que essas unidades autoreplicadoras
independentes na verdade são unidades replicadoras
interdependentes que só se configuram e replicam em um
processo de interação com o meio. (Para tanto, valeria a pena
confrontar as idéias de Dawkins com as idéias de Maturana)
(3). [...]”

Em outro tópico do A revolução do local, continuo:

“Como estamos falando aqui da geração de replicadores é


quase impossível – conhecendo a hipótese dos “memes” –
deixar de estabelecer uma comparação com a dinâmica de
replicação genética.

9
Embora afirmando que tratava-se de um recurso lateral de
argumentação, lancei mão da metáfora de Dawkins – o “meme”
– aventada há quase 30 anos por analogia com o “gene”. Este
último estaria para a síntese de proteínas assim como o
primeiro estaria para a construção de comportamentos. Tanto
genes quanto “memes” seriam replicadores: enquanto os
primeiros seriam copiados, grosso modo, por células, os
“memes” seriam copiados por cérebros.

Utilizei a metáfora de Dawkins, do “meme” como uma espécie


de replicador análogo ao gene, para tentar modelar o processo
de transmissão cultural. Supus que seria possível fazer isso sem
importar a visão neodarwinista (e determinista em termos
genéticos) que compareceu na origem mesma da “teoria do
meme”.

Todavia, isso não é tão simples assim.

A metáfora do “meme” é, sem dúvida, muito interessante. Mas


ela tem alguns problemas graves. Em primeiro lugar ela se
baseia em alguns pressupostos de “comportamento” do gene
que parecem não corresponder ao que realmente se passa na
reprodução e na evolução biológicas de um ponto de vista
sistêmico.

Em segundo lugar ela vem acompanhada por uma concepção


(neodarwinista) segundo a qual o DNA seria uma molécula
intrinsecamente estável sujeita a mutações aleatórias
ocasionais (4).

Em terceiro lugar, como assinala Strohman (1997), “a extensão


ilegítima de um paradigma genético – que passa do nível
relativamente simples da codificação e decodificação genética
para o nível complexo do comportamento celular – representa
um erro espistemológico de primeira ordem” (5). Ou seja,
Richard Strohman adverte que há aqui uma confusão de níveis
que “não dá certo”. Uma teoria que funcionava bem para
explicar o código genético acabou se transformando em uma
teoria geral da vida, atribuindo aos genes o papel de agentes
causais de todos os fenômenos biológicos. Isso é o que se
chama determinismo genético.

Ora, os problemas de concepção do papel do gene são também


problemas de concepção do papel do hipotético “meme”. A

10
analogia com o gene, que gerou o conceito de “meme”,
promove uma importação desses problemas.

A concepção do determinismo genético, do DNA como uma


espécie de programa autônomo (por analogia aos programas de
computadores), acabou contaminando a concepção do “meme”,
como se este fosse também um programa autônomo (e
podemos comprovar isso facilmente lendo, por exemplo, as
considerações de Dawkins, em 1998, em “Desvendando o Arco-
Íris”) (6).

Qual é o problema aqui? O problema é que, no caso dos genes,


ao que tudo indica, o “programa” não pode ser tão autônomo
assim, uma vez que ele não está arquivado propriamente no
genoma e sim em uma rede celular (que envolve muitos outros
nodos além dos genes: proteínas, hormônios, enzimas e
complexos moleculares), que compõe o ambiente no qual o
genoma pode existir enquanto tal. No caso dos “memes”, os
programas, correspondentemente, também não estão em uma
espécie de “diretório memético” de arquivos (o “caldo” ou
“fundo” de “memes” ou a “memesfera” aventados por Dawkins,
Dennett, Blackmore e outros) – nem em algo do tipo de The
Matrix (do filme dos irmãos Wachowski) – e sim em uma rede
social que regula a produção e a reprodução de
comportamentos.

Assim como a rede celular é um sistema complexo, com


múltiplos laços de realimentação, fazendo com que os padrões
de atividade genética mudem continuamente com a mudança
das circunstâncias, para manter o tempo todo uma congruência
dinâmica com o meio (sem o que não poderia haver isso que
chamamos de vida), a rede social também é um sistema
complexo e, como tal, apresenta características semelhantes;
ou seja, os padrões de comportamento também surgem e se
modificam na interação com o meio (sem o que não poderia
haver isso que chamamos de cultura). Dessarte, a forma e o
comportamento culturais manifestam-se como propriedades
que emergem da dinâmica complexa das redes sociais e não
pela alteração casual de “memes” que conseguiram vencer
algum tipo de competição pelos cérebros que vão parasitar (e

11
que foram copiados de forma levemente alterada pelos cérebros
infectados).

Todavia, apesar disso tudo, de todos esses problemas


apontados acima, continuo achando que é útil considerar a
hipótese do “meme” e quero tentar dizer por quê.

O problema não me parece ser propriamente o “meme” e sim


algo que possa sugerir um determinismo memético (tal como o
problema não é o gene e sim o determinismo genético). Assim
como a focalização exclusiva no gene embaça a visão do
organismo como um todo, uma focalização excessiva no
“meme” dificulta que se vejam os fenômenos que ocorrem no
campo de interação que chamamos de sociedade.

Mas, tal como deve existir alguma coisa como o gene –


independentemente do papel mais ou menos autônomo, mais
ou menos abrangente e mais ou menos determinante que
queremos atribuir a isso que conotamos com o conceito de
‘gene’ –, tudo indica que deve existir também alguma coisa
como o “meme” como um replicador de idéias e
comportamentos. [...]”

Seis anos depois, no texto “Modelos mentais são sociais” (2008-


2009) reciclei os argumentos dos meus dois livros citados acima para
tentar refazer uma teoria do meme a partir das redes sociais (7).

Durante esse período (2001-2008) fiz várias incursões que me


ajudaram a problematizar o determinismo genético: li o interessante
O século do gene de Evelyn Fox Keller (Belo Horizonte: Crisálida,
2002). Com Dick Lewontin em A tripla hélice (São Paulo: Cia das
Letras, 2002) entendi a diferença entre um padrão transformacional e
um padrão variacional de mudança e aventei a possibilidade de um
padrão regulacional de mudança que teria mais a ver com a estrutura
de rede da vida.

Depois, já agora em 2010, quando me caiu nas mãos o livro da dupla


Eva Jablonka & Marion Lamb (2005), Evolução em quatro dimensões:
DNA, comportamento e história da vida (São Paulo: Cia das Letras,
2010) compreendi melhor como as descobertas da biologia molecular
nos últimos cinqüenta anos estão mostrando que a evolução vai

12
muito além da seleção de variações casuais nos genes, tendo-se que
levar em conta, para explicá-la, pelo menos, mais três sistemas de
herança além da genética: a epigenética (transmissão de
características celulares, alheia ao DNA), a comportamental e a
simbólica (linguagem e outras formas de comunicação).

Sobre a alegada “perversão neodarwinista”

Bem, então para concluir esta desajeitada e provisória miscelânea,


quero esclarecer, como disse na introdução, que não considero o
neodarwinismo uma perversão. O que chamei de perversão
neodarwinista foi a aplicação das hipóteses neodarwinistas para
tentar explicar o comportamento da sociedade; ou seja, não me
referia exatamente à vertente científica da biologia da evolução
chamada neodarwinismo e sim a um certo neodarwinismo social que
anda por aí contaminando as visões das pessoas que se dedicam às
mídias sociais sobretudo.

Em uma sociedade em rede, com múltiplas alternativas, algumas


pessoas devem ficar tentadas a aplicar um padrão variacional de
mudança para explicar por que alguns têm mais chances de
sobreviver do que outros. Ao invés de verem o processo em rede,
vêem indivíduos lutando para maximizar seus interesses lançando
mão, para tanto, das múltiplas conexões (que seriam, no seu
entender, as redes sociais) como quem aproveita ao máximo todas as
oportunidades para sobreviver como indivíduos.

Penso, ao contrário, que nos múltiplos mundos altamente conectados


que estão emergindo na sociedade em rede, deveríamos buscar um
padrão regulacional de mudança (8).

Notas e referências

FRANCO, Augusto (2001). Capital social: leituras de Tocqueville, Jacobs,


Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e Levy. Brasília: Instituto de Política
/ Millennium, 2001. Disponível para download no link http://migre.me/DcGa

RIDLEY, Matt (1996). As origens da virtude: um estudo biológico da


solidariedade. Rio de Janeiro: Record, 2000.

13
CAPRA, Fritjof (1996). A teia da vida: uma nova compreensão científica dos
sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1997.

MARGULIS, Lynn (1998). “O Planeta Simbiótico: uma nova perspectiva da


evolução. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion years


of evolution from our microbial ancestors”. New York: Summit, 1986.

FRANCO, Augusto (2003). A revolução do local: globalização, glocalização,


localização. São Paulo / Brasília: Cultura / AED, 2003. Disponível para
download no link http://migre.me/DcHS

(1) O problema com o neodarwinismo é o darwinismo: diga-se o que se


quiser dizer, um “meme” terrivelmente competitivo, quem sabe – como
suponho – por ter olhado para a natureza com os óculos fabricados pela
competição “selvagem” do capitalismo inglês do século 19 (a “selva”, aqui,
era mais a “praça do mercado” do que as estepes e as florestas, enfim o
habitat natural das espécies vivas). Com efeito, tentei mostrar em outro
lugar que esse padrão de competição parece ter saído da sociedade para a
natureza e não o contrário (cf. Capital Social. Brasília: Instituto de Política,
2001). Um bom antídoto contra a impregnação pela ideologia competitiva
(ou uma “vacina” contra esse poderoso “vírus-meme” que, ironicamente,
talvez pudesse ser chamado de ‘padrão competitivo a priori’) pode ser
encontrado em Humberto Maturana e Lynn Margulis (para quem “a vida se
apossa do globo não pelo combate e sim pela formação de redes”).

(2) Os interessados na extensa literatura sobre “memes”, devem ler Richard


Dawkins (“O gene esgoísta”, 1976; “The extended phenotype”, 1982; “O
relojoeiro cego”, 1986; e “Desvendando o arco-íris”, 1998), Daniel Dennett
(op. cit., 1995; e também “Consciousness explained”, 1991), Richard Brodie
(“Virus in the mind”, 1995) e Susan Blackmore (“The meme machine”,
2000).

(3) O próprio Dawkins admite como possível “um modelo “simbiótico” em


vez de virulentamente parasita”. Em “Desvendando o arco-íris” (1998) ele
cita o trabalho de Terrence W. Deacon (1997) “que faz uma abordagem da
linguagem à luz dos memes... traçando a comparação com as mitocôndrias
e outras bactérias simbióticas nas células. As línguas evoluem para se
tornar boas em infectar os cérebros das crianças. Mas os cérebros das
crianças, essas lagartas mentais, também evoluem para se tornar bons em
serem infectados pela língua: coevolução mais uma vez”. Cf. Dawkins,
Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. Cf. ainda Deacon, Terrence W. (1997). The symbolic species:
the co-evolution of language and the brain. New York: W. W. Norton &
Company, 1997.

(4) Quem quiser conhecer uma perspectiva não darwinista, não neo-
darwinista e não determinista em termos genéticos deve ler,
fundamentalmente, os livros de Lynn Margulis e Humberto Maturana. E

14
também: Ho, Mae-Wan e P. T. Saunders, orgs. (1984). Beyond darwinism:
introduction to the new evolutionary paradigm. London: Academic Press;
Ho, Mae-Wan e S. W. Fox, orgs. (1988). Evolutionary processes and
mataphors. London: Wiley; Ho, Mae-Wan (1998). Genetic engineering:
dream or nightmare? Bath: Gateway Books; Strohman, Richard (mar.,
1997). “The Coming Kuhnian Revolution in Biology”, Nature Biotechnology,
vol. 15 e, sobretudo o mais recente Keller, Evelyn Fox (2000). The century
of the gene. Cambridge, Mass.:Harvard University Press. Para uma
abordagem simplificada de divulgação, pode-se ler ainda: Harman, Willis e
Sahtouris, Elisabet (1998). Biologia revisada. São Paulo: Cultrix:, 2003; e
Capra, Fritjof (2002). As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix/Amana-Key,
2002 (em especial o capítulo seis).

(5) Strohman; op. cit.

(6) Cf. Dawkins, Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo:


Companhia das Letras, 2000.

(7) O texto “Modelos mentais são sociais” está disponível no SlideShare no


link http://migre.me/DcAe

(8) Para não poluir o texto com mais uma extensa (auto)citação, confino
aqui nestas notas excertos do texto “Indicações de leituras sobre
desenvolvimento” (2007), disponível no link http://migre.me/Ddgv

“Imaginamos que desenvolvimento é o resultado de crescimento


econômico que se atinge em virtude de um dinamismo que se instala
na sociedade quando cada indivíduo se lança na busca desenfreada
pela satisfação de seus interesses materiais egoístas.

Modernamente justificamos essa crença lançando mão de uma teoria


(darwiniana) da evolução, baseada em um modelo variacional da
mudança. Na minha opinião, trata-se de uma perspectiva
mercadocêntrica, quer dizer, centrada no mercado e que imagina que
a “lógica” e a racionalidade do mercado dão conta de explicar o
funcionamento das outras esferas da realidade social (ou dos outros
tipos de agenciamento), como o Estado e a sociedade civil. Vamos
ver melhor o que é isso.

O modelo variacional, segundo Lewontin (1998)... se opõe ao modelo


transformacional da mudança. Richard Lewontin, aborda tal diferença
da seguinte maneira: “O termo desenvolvimento é uma metáfora que
traz consigo um compromisso anterior quanto à natureza do
processo. Desenvolvimento (development em inglês; Entwicklung em
alemão; desarrollo em espanhol e sviluppo em italiano) é,
literalmente, o desdobrar ou o desenrolar de algo que já está
presente e em certo sentido pré-formado. Essa mesma palavra é

15
utilizada em inglês para nomear o processo de revelar uma imagem
fotográfica. A imagem já está imanente no filme, no interior da
câmera, e o processo de revelação – development, em inglês –
simplesmente torna visível a imagem latente. É exatamente essa a
visão da biologia do desenvolvimento a respeito do desenvolvimento
de um organismo. A moderna biologia do desenvolvimento é
totalmente concebida em termos de genes e organelas celulares,
cabendo ao ambiente apenas fazer as vezes de cenário. Considera-se
que os genes no ovo fertilizado determinam o estado final do
organismo, enquanto o ambiente em que o desenvolvimento ocorre é
tão-somente um conjunto de condições propícias a que os genes se
expressem, assim como o filme fotográfico, ao ser exposto, produzirá
a imagem que nele já está imanente, quando colocado nos líquidos
apropriados e na temperatura adequada”.

Lewontin prossegue afirmando que “o emprego do conceito de


desenvolvimento para designar as mudanças pelas quais um
organismo passa durante a sua vida não é simplesmente um caso em
que a linguagem disponível influencia o conteúdo das idéias. Quando
se decidiu transformar uma língua antiga, o hebreu, em língua
moderna, dotada de vocabulário técnico, a palavra escolhida para
designar o desenvolvimento de um organismo – Lehitpateach – foi a
mesma que se escolheu para nomear o processo de revelação de um
filme, mas na forma reflexiva, de modo que um organismo
literalmente “desenvolve a si próprio”. Além disso, a palavra evolução
tem o mesmo significado original de desdobramento, e por essa razão
Darwin não a empregou na primeira edição da “Origem das Espécies”.
Antes de Darwin, toda a história da vida na Terra era vista como uma
progressão ordenada de estágios imanentes. Ainda que Darwin tenha
libertado a teoria desse elemento de predeterminação, sua história
intelectual deixou a sua marca na palavra.

O uso desses termos reflete um comprometimento profundo com a


idéia de que os organismos, tanto em suas histórias individuais de
vida como em sua história evolutiva coletiva, são determinados por
forças internas, por um programa interno, do qual os seres vivos
reais são apenas manifestações exteriores. Esse comprometimento é
uma herança da visão tipológica da natureza, de origem platônica,
segundo a qual eventos materiais reais, que podem diferir uns dos
outros em graus variados, são realizações imperfeitas e acidentais de
tipos idealizados. O real é o ideal visto “através de um espelho,
indistintamente”. Essa foi a visão das espécies que predominou até o
século XX. Cada espécie era representada por uma descrição de
“tipo” e um espécime real era depositado em alguma coleção como
representativo desse tipo, enquanto todos os outros indivíduos da

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espécie, variando com relação ao “tipo”, eram vistos como
realizações imperfeitas do ideal subjacente. O problema da biologia
consistia, então, em dar uma descrição anatômica e funcionalmente
correta dos “tipos” e explicar as suas origens. A biologia evolutiva
moderna rejeita esses ideais platônicos e sustenta que a variação
efetiva entre os organismos é a realidade que precisa ser explicada.
Essa mudança de orientação é conseqüência da ascensão da visão
darwiniana de que a variação efetiva entre os organismos é a base
material de que depende a mudança evolutiva.

O contraste entre a teoria platônica moderna do desenvolvimento e a


teoria evolutiva darwiniana reflete o contraste entre duas maneiras
de explicar as modificações dos sistemas através do tempo. O
desenvolvimento é uma teoria transformacional da mudança. Nas
teorias transformacionais todo o conjunto dos objetos modifica-se
porque cada objeto individual sofre durante o seu tempo de vida os
efeitos de uma mesma história geral. O cosmos evolui porque todas
as estrelas que têm a mesma massa inicial passam pela mesma série
de modificações termonucleares e gravitacionais em um caminho que
as leva a uma posição previsível na seqüência principal. Como grupo,
as pessoas de setenta anos são mais grisalhas e mais esquecidas do
que o conjunto das que têm 37 anos, porque a mente e o corpo de
todos os indivíduos envelheceram. Por outro lado, a teoria darwiniana
da evolução orgânica baseia-se em um modelo variacional da
mudança. O conjunto dos indivíduos modifica-se não porque cada
indivíduo passe por desenvolvimentos paralelos durante a vida, e sim
porque existe variação entre os indivíduos e algumas variantes
produzem mais descendentes do que outras. Assim, o conjunto como
um todo se modifica por causa de uma alteração na representação
proporcional das diferentes variantes, cujas propriedades específicas
permanecem inalteradas. Se os insetos estão se tornando mais
resistentes aos inseticidas não é porque cada indivíduo adquire níveis
cada vez mais altos de resistência durante a sua vida, mas sim
porque as variantes resistentes sobrevivem e se reproduzem,
enquanto os organismos suscetíveis morrem".

Lewontin, portanto, defende a idéia de que “o organismo não é


determinado nem pelos seus genes, nem pelo seu ambiente, nem
mesmo pela interação entre eles, mas carrega uma marca
significativa de processos aleatórios”.

Mas o fato de que ele possa ter razão no que tange a evolução de
organismos, não significa que teorias transformacionais da mudança
não se apliquem às sociedades humanas. Pode significar,
simplesmente, que sociedades humanas não são como organismos

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que evoluem segundo um modelo variacional. E que sociedades
humanas passam por processos transformacionais de mudança. Ora,
como ele mesmo ressalta, “o desenvolvimento é uma teoria
transformacional da mudança”. E, ou admitimos que o
desenvolvimento se aplica a sociedades humanas ou, então, é melhor
abandonar o conceito de desenvolvimento.

Afirmei que o modelo variacional, quando aplicado a sociedades


humanas, corresponde a uma perspectiva mercadocêntrica, porque é
possível que modelos variacionais se apliquem, dentro de certos
limites, a algumas realidades sociais, como mercados. É mesmo
possível, ademais, que Darwin tenha se aproximado de uma hipótese
variacional a partir da observação do que ocorria em sociedades
humanas sob forte influxo da dinâmica mercantil, como a sociedade
inglesa da sua época. E que, então, sua compreensão da evolução
biológica tenha sido, em alguma medida, decalcada dessa
observação, como sugere a idéia de luta pela vida com toda aquela
visão competitiva embutida.

Por outro lado, outras visões biológicas (como, por exemplo, as de


Humberto Maturana, Lynn Margulis, Richard Strohman e Mae-Wan
Ho...) indicam que para explicar a mudança evolutiva não se pode
olhar somente para o organismo ou para o gene e sim para as redes
que regulam tal mudança. Tais redes celulares são sistemas
complexos, com múltiplos laços de realimentação que fazem com que
os padrões de atividade genética mudem continuamente com a
mudança das circunstâncias, para manter o tempo todo uma
congruência dinâmica com o meio, sem o que não poderia haver o
que chamamos de vida.

Assim, é possível que mesmo a teoria variacional não explique


totalmente o que acontece na evolução biológica e tenhamos que
lançar mão do modelo das redes reguladoras. E que tal modelo possa
também se aplicar a redes sociais para explicar o fenômeno chamado
de desenvolvimento. Neste caso, o desenvolvimento social seria um
fenômeno próprio das redes sociais: sistemas complexos que
apresentam características formalmente semelhantes às redes
celulares. Segundo essa perspectiva, os padrões de comportamento
surgiriam e se modificariam na interação com o meio, sem o que não
poderia haver isso que chamamos de cultura. Ou seja, a forma e o
comportamento culturais manifestar-se-iam como propriedades que
emergem da dinâmica complexa das redes sociais.

Portanto, pode existir um outro modelo para a mudança, além do


modelo variacional e do modelo transformacional: o modelo sistêmico

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regulacional, que não exclui, no caso dos organismos biológicos, nem
os genes, nem o ambiente, nem a interação entre eles, nem os
processos aleatórios. Mas que acrescenta um outro elemento: as
redes compostas por genes, proteínas, hormônios, enzimas e
complexos moleculares. A diferença é que o “programa” não estaria
arquivado no genoma e sim nessa rede. No caso das sociedades
humanas, haveria também essa rede, composta, é claro, por outros
nodos; e. g., pessoas e organizações.

A rede não predetermina o que vai acontecer mas combina e


recombina, continuamente, eventos e relações já existentes com
novos eventos e novas relações introduzidas pelas mudanças
endógenas e exógenas. E não importa se tais alterações são ou não
casuais. O programa regulador – que “roda” na rede e não nos
organismos, nas partes de organismos ou em outros nodos que a
compõem – tende a assimilar as alterações casuais de tal sorte a
torná-las adequadas à conservação da adaptação do organismo ao
meio. Esse programa é autopoiético e também vai se modificando
para dar conta de exercer o seu papel regulador em circunstâncias
que vão se modificando. Ou seja, a rede aprende.

A rede aprendendo é o sujeito e não o organismo evoluindo. Se


adotarmos esse ponto de vista, deixamos para trás a questão de se
deve ou não deve haver um paralelo entre o desenvolvimento (social)
e a evolução (biológica) e se tal paralelo seria ou não seria legítimo.
Sociedades humanas nada têm a ver com organismos, partes de
organismos ou ecossistemas a não ser enquanto são, igualmente,
reguladas por redes – sistemas complexos que apresentam, como
tais, características e propriedades análogas.

[...]

Como, em geral, o tema do desenvolvimento é tratado pela


economia, precisamos revolver o que está por baixo – ou seja,
exatamente os pressupostos e os fundamentos – do pensamento
econômico, se quisermos construir uma nova concepção de
desenvolvimento. A ideologia econômica (a rigor o que em língua
inglesa se chama economics é uma ideologia, pelo menos no que
tange às suas presunções sobre a natureza competitiva do ser
humano) está assentada numa visão biológica. Ou será, mais
provavelmente, o inverso, como sugere Matt Ridley (loc. cit.). Mas dá
no mesmo. Se eu imagino que posso explicar o comportamento das
coletividades a partir do comportamento dos indivíduos e se eu tomo
como premissa que os indivíduos se movem a partir de escolhas
racionais para maximizar a obtenção dos seus interesses e, ainda,

19
que, ao fim e ao cabo, tais interesses são materiais e
fundamentalmente egotistas, então estou no campo do discurso que
projeta um padrão de ordem social sobre a natureza para naturalizar
as relações sociais com o objetivo de pegar o rebote (ou seja, para
legitimar padrões de ordem social a partir de um suposto
comportamento natural). E isso, está claro, não pode ser nada além
de pura ideologia.

Como os neodarwinistas desceram até ao nível do gene, numa


construção – como faz Dawkins – para mostrar que os próprios genes
seriam egoístas, então, para entrar no assunto, será necessário ler
também alguma coisa sobre isso. Mas não apenas as escrituras
neodarwinistas que se tornaram sagradas nas academias que
demonizaram as velhas escrituras antidarwinistas (como as
criacionistas, por exemplo) e sim também o seu contraponto
moderno, poder-se-ia dizer, pós-darwinista.

O velho debate sobre a evolução darwinista versus as visões


lamarkianas ou àquelas que sacavam alegações religiosas (de certo
modo, todas essas também, de algum modo, criacionistas) para
contradizer as descobertas de Darwin ou a sua interpretação, não
está mais na pauta, porquanto não leva em conta que o modelo
variacional de desenvolvimento não pode ser superado por qualquer
modelo transformacional (nem pelo criacional) e sim por um modelo
regulacional – o único compatível, a meu ver, com uma concepção
sistêmica de desenvolvimento e, a rigor, o único compatível com a
vida como teia de relações, como rede capaz de conservar a
adaptação, mudando de acordo com a mudança das circunstâncias (o
que vale tanto para organismos e partes de organismos, quanto para
ecossistemas).

Tudo isso é para dizer que os fundamentos foram buscados tão fundo
pelos ideólogos da economia (e, por conseqüência, do
desenvolvimento), que não nos resta alternativa senão mergulhar,
para começar, na velha pergunta do físico Erwin Schrödinger – ‘o que
é a vida?’ – feita ainda em 1943 e que abriu o futuro da biologia. Foi
o que fez Humberto Maturana, que ensaiou, a partir daí, uma teoria
da cooperação compatível com a noção de capital social. Foi o que
fez, também, Lynn Margulis (que, aliás, publicou, com Dorian Sagan,
um livro com o mesmo nome daquele do célebre trabalho do famoso
Prêmio Nobel de Física, quarenta e três anos depois). A autopoiese de
Maturana e a simbiogênese (e a simbiose) de Margulis constituem, de
fato, construções alternativas (regulacionais) à seleção (variacional)
de Darwin, sem se renderem ao transformacionismo. Maturana,
Margulis (e talvez se possa incluir aqui Lovelock), devem constituir “o

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nosso novo Darwin” – o repositório de idéias biológicas ancoradoras,
vamos dizer assim – dos que querem trabalhar com uma concepção
sistêmica de desenvolvimento, ou seja, dos que querem avançar de
uma economia do desenvolvimento para uma ecologia do
desenvolvimento (pois uma concepção sistêmica de desenvolvimento
é, necessariamente, uma ecologia do desenvolvimento).

Além disso, quer dizer, além das teorias da cooperação lastreadas em


visões da evolução biológica, os pressupostos de uma concepção
sistêmica de desenvolvimento devem consultar também o estudo das
redes. Como disse Margulis em 1998 (em “Microcosmos”), “a vida
não se apossa do globo pelo combate e sim pela formação de redes”.
Só redes podem conservar a adaptação como função de integração:
em outras palavras, só redes podem ser sustentáveis. Sistemas
complexos dinâmicos capazes de sustentabilidade têm a morfologia e
a dinâmica de rede. Dessarte, dentre os pressupostos de uma nova
concepção sistêmica de desenvolvimento deveria constar o que já se
conhece sobre o assunto.

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