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Edward Tylor e a extraordinaria evolugao religiosa da humanidade | paroeico Dexcavo Rost Fesumo Contrariamente a certas ideias fei- tas sobre a Antropologia vitoriana, o presente ar- tigo procura demonstrar que Edward Tylor néo procurau acentuar as diferengas entre nds ¢ 08 sel vaagens, mas, pelo contririo, demonstrar a comu nnhéo profunda entre as religides de uns € outros A humanidade dita civilizada nao vivia num esté- dio de ciéncia, mas num mundo impregnado de animismo, de cadticas contradigées entre as eren= sas adaptadas pela erudigio ceolégica, as meras sobrevivéncias sem sentido ¢ os ressurgimentos de fendmenos espirtistas que se julgavam hi muico desaparecidos. Mais do que umm exemplo de cvo- lucionismo dogmatic, sua obea Primitive Culture 6 uma tentaiva de responder 3 questao das repeti- «Ges de conteidoe das limita lagranes ou ba sicas do pensamento huina « lugares, em matéria de imaginacdo de entidades sobrenarursis. Questio demasiado ambiciosa ou 0, em todos 0s tempos demasiado ingémua, foi abandonada pela Antropo- logia do século XX e continua sem outra esposta Palavras-chave Animismo. Edward Tylor Evolucionismo, Religio. Em qualquer manual ou coletinea de textos do passado da Antropologia, Edward B. Tylor (1832-1917) & presenca obrigatéria. Aconte- ce que sua obra-prima, Primitive Culture, tem sido objeto de leituras pareclares e apressadas ou simplesmente de falta de leitura. Regra ge- ral, 0s estudantes universitérios do século XXI, para nfo falar dos préprios docentes, conhe- ‘em apenas tins quantos parigralos do primei- 10 ou do segundo capitulo, os preferidos das compilagées e justamente aqueles que mais in- sm em erro quando separados do resto (Cf. -kson & Murphy, 2008; McGee & Warms, 2008). Porqué perder tempo com dois pesa- dos volumes de 1871, num total de cerca de mil piginas de teoria obsoleta ¢ de etnogra- fia pré-moderna em segunda mio? Para tentar responder a essa pengunta é necessério antes de mais devolver a Tylor o seu préptio pensa- ‘mento, passando por cima de algumas feitas. O presente artigo pretende contribuir para isso, na conviegio de que uma surpresa espera aqueles que se derem ao trabalho de ler Primitive Culture na inwegra (CE Stringer, 1999, p. $42). Para nio ficarmos encerrados cm leituras de antiquério que muitas vezes 56 interessam aos especialistas, trata-se igualmen- te de explorar novas mensagens nos livros anti- 08, como vem advogando a canadiana Regna Darnell (2001), em alternativa ao historicismo exacerbado de George W. Stocking Jr. Uma das ideias correntes acerca dos antro- élogos evolucionistas vitorianos consiste em dizer que eles estabeleciam de forma rigida as etapas de evolugéo social ou cultural da hu- manidade © que, para caraterizar cada etapa, selecionavam, determinados povos da atual dade, dos mais “primitivos” aos mais “civili- zados”. Criou-se entao 0 termo pejorative de evolucionismo unilinear, para se referir a essa ccadernos de campo, Sao Paulo, n. 19, p. 1-384, 2010 Sere es teeeeree ere eee doutrina segundo a qu linha de progresso a0 longo da qual se distribuiam as varias culturas. E verdade que alguns autores foram evolucionistas unilineares, mas nem todos o foram ¢, sobretudo, “o mais sibio mais eq) influéncia no seu tempo, Edward Tylor, segu- ramente nao foi um evolucionista unilinear (Kroeber, [1950] 1993, p. 220). to cauteloso quanto a estabelecer uma escala de evolugio € apenas sugeria essa idela grasso ‘modo, como um pressuposto genérico de que a humanidade comegara sua caminhada numa condigio da qual estavam mais préximos, em termos relativos, os povos sem escrita ainda librado”, aquele que exerceu maior cexistentes. Tylor considerava no entanto uma ilusio acreditar que © progresso das socieda- des era coerente nos varios critérios, tecnolé- gico, politico, religioso etc. Nao esquecamos que no século XIX, sobretudo nos anos 1860, € mesmo antes, foram precisas muitas discus- ses, nomeadamente em Inglaterra, para de- monstrar que nao se tratava de descendentes de Adio ¢ de Noé, decaidos ¢ esquecidos de um estado religioso e moral mais elevado, cuja origem remontava a uma criagio ¢ revelacio, divinas, como pretendia a ortodoxia biblica. Constituiu-se entio 0 conceito geral de sel- vagens contemporineos, para exprimir a ideia {que Tylor sempre apresentava como uma hi- potese — de que os povos sem escrita, ou tecno- logica e politicamente frustees, represen em termos globais um nivel cultural mais pré- ximo de uma condigéo primitiva. E muito dificil, no presente artigo, evitar ‘© emprego um tanto cansativo dos termos sel- sagem ¢ civilizado, mas 0 importante mesmo é salientar que a ideia de selvajaria tinha so- bretudo um valor relative. Tylor nao preten- dia dizer que os chamados selvagens eram fiis representantes das origens e menos ainda que cles nao tinham cultura ou civilizagéo, pala- vras sinénimas na sua obra. Assim, o que ele verdadeiramente queria dizer & que havia uma civilizagéo selvagem ~ ou seja, a cultura primi- tiva do titulo da obra izada (passe © pleonasmo), conservando esse Ultimo adjetivo um duplo sentido, pois tinha uma conotasio suplementar de sofisticagao cultural associada bs uma forma ou de uma civilizagao civi amente & escrita. De tra, a ideia geral de que 0 progresso tinha marcado a histéria da huma- nidade era tudo quanto bastava a Tylor para cumprir seu verdadeiro objetivo de compara- cio entre o mundo dito selvagem € 0 mundo dito civilizado. E que objetivo era esse? Seré que a dicoromia foi criada para acentuat as diferengas entee nds € os outros? Nés, 08 civ Tizadas, e 08 outros, os selvagens? Nao. © que aconteceu foi exatamente o contritio. © grande objetivo da Antropologia de Tylor era demonstrar que o homem europeu, © mais genericamente 0 homem dito civil zado, estava profundamente impregnado de selvajaria, Em analogia com Charles Darwin, que ja havia demonstrado & burguesia e aristo- cracia vitorianas que dentro delas tinham um primata, Edward Tylor queria por em evidén- cia a costela culeuralmente selvagem dos seus pares. A propria expressio tinha uma compo. nente provocat6ria, nio apenas em relagio a0 homem civilizado moderno, mas também em relagio aos dominios sacrossantos da Anti dade C ‘ouvir falar em comparagées {gos e Romanos com os aborigenes australianos ‘ou outros. O mesmo acontecia, aliés, com os cespecialistas da India e de outras Areas de ci- vilizagio urbana antiquérrima. Uma frase de Andrew Lang, discipulo de Tylor, resume bem © espirito iconoclasta da Antropologia vitoria- na: “O homem nunca pode ter a certcza de ter expulsado 0 selvagem dos seus templos ¢ do seu coracio” (Lang, 1887, vol. I, p. 338). En- contramos uma imagem similar no célebre The Golden bough de James Frazer (1890), quando ssica, cujos peritos nao queriam nem Eowaan Tviok fA EXTRAORDINARIA HVOLLGKO RELIGIOSA DA HUMANTDADE | 299 este afirmava que caminhamos hoje sobre uma fina crosta por baixo da qual se revolve uma matéria selvagem sempre pronta a entrar em cerupgio. Toda essa pléiade estava bem ciente de que, empiricamente falando, a ciéncia néo cexistia como estidio evolutivo. A realidade dos homens cra contraditéria c, em certo sentido, caética. E portanto uma ideia preconcebida acreditar que a Antropologia evolucionista bri- tanica acentuava as frontciras entre © mundo selvagem e 0 mundo civilizado. E foi nesse contexto um tanto radical que a caraterizagio da religiao dos selvagens com porineos ganhou protagonismo, por razdes Gbvias. Tylor constatava que todos os tipos de crengas das sociedades civilizadas, do presente ou do passado, tinham os seus equivalentes, de uma forma ou de outra, em populagdes cujo grau de cultura era julgado mais arcaico, mais primitivo, Era como se as grandes nagées nfo fivessem inventado nada ou quase nada em matéria de artigos de fé, mas apenas herdado € adaptado uma série de crengas e rituais dos seus antepassados mais longinquos. Por exem- plo, a metempsicose, ou seja, a transmigragio fou reencamnagio das almas, era uma crenga que se encontrava tanto em povos selvagens da Africa Ocidental, da Austrdlia ou das Améri- cas, como em populagées civilizadas, hindu- fstas ¢ budistas, dos meios urbanos da meriodinal. Tylor néo hesitava em reconhecer ‘0s fundamentos pré-histéricos desse artigo de f, mas considerava naturalmente que Hindu- famo ¢ Budismo tinham introduzido nele cer tas “subrilezas metafisicas” segundo o espirito éxico de contextos refinados ({1871] 1903, vol. 1, p- 9-12). O mesmo resultado se repetia com praticamente todas as concepedes das grandes religides politeistas da Antiguidade Clissica ¢ Oriental c até, em certo sentido, das religides monoteistas, como veremos mais adiante. O autor conseguia na yerdade encontrar para- lelos para tudo, quer no sentido ascendente, quer no descendente, mas conservando-se em todos os casos uma esséncia comum de origem. pré-histérica Primitive Culture & um monumento & se- melhanga profunda ¢ essen religiosas da humanidade inteira, e cada capf- tulo da obra uma licio de comparatismo uni- versal. Tratava-se de uma tipologia dinamica, criando uma vasta série de categorias religiosas I das concepgbes de muito longa duragio. Estamos perante um dos principios fundamentais da Antropologia de Tylor, isto & a ideia de desenvolvimento dos diferentes artigos de fé primitivos. Nao havia uma substituigio de umas crengas por outras, de acordo com uma sequéncia estabelecida de etapas de evolugio rcligiosa, mas sim uma permanéncia de ideias pré-histéricas, sujeitas a progressivas e variadissimas adaptagoes, de or- dem moral, filoséfica, estética, ete. Tylor tinha nogao de que esses percursos respondiam as idiossincrasias culturais dos ferentes povos, s6 que no era esse 0 objeto da sua pesquisa. Primitive Culture € antes uma enciclopédia das categorias religiosas da humanidade, sempre identificiveis em todos os niveis de civilizag «¢, neste sentido, pode-se extrair da obra a id de um patriménio ideolégico de origem pré~ historia. Convém precisar que os virios tipos de crengas no tinham uma distribuigio neces- séria, nem no tempo, nem no espaco. Ainda que a secorréncia de algumas crengas fosse especialmente acentuada, havia outras que estavam longe de ser universais. Por exemplo, a categoria specifica de deménios noturnos que copulavam com homens ou mulheres era idemtificada por Tylor nas Antilhas, na Nova Zelindia, nas ilhas Samoa, na Lapénia e na fn- dia, mas néo em toda a parte. Curiosamente, a leitura de Santo Agostinho permitia constatar que na Europa do séc. Ve V .C. existiam nogées desse género entre as camadas popu- lares, ‘Teélogos mais tardios, da Baixa Idade cadernos de campo, Sao Paulo, n. 19, p. 297-308, 2010 400 | Fnrontico Ditcavo Rosa Média, foram responsiveis, segundo Tylor, por incorporar tal crenga no proprio seio da Igreja, culminando no célebre manual dos inquisido- ses, Malleus Maleficarum. Bra a oficializagio imprevista dos famigerados incubos ¢ sticubos, cujos parceiros sexuais presumidos eram perse- guidos pelo Santo Oficio. (Iylor [1871] 1903, vol. Il, p. 189-191). Mas entio, se havia essa variabilidade, com diferentes ideias em diferentes populagées, como era possivel agrupar todas elas, cana- lizando-as no tempo para um mesmo fundo pré-histérico universal? Donde vinha a possi- bilidade de criar 0 conceito de religio primi va aonde toda a humanidade tinha ido beber? Essa possibilidade devia ter a ver forgosamente com a existéncia de certas carateristicas es- senciais que thes eram gomuns. Em Primiti- ve Culture, Tylor identificou-as, ou acreditou identificé-las. O cimento, aquilo que Ihe per- mitiu falar em cultura primitiva, € mais espe imitiva, foi aquilo a que ele chamou de animismo: cificamente em religiio p Proponho aqui, através do termo animismo, aizada doutrina dos setes es- pitieuais, que dé corpo 2 propria esséncia da filosofia espiriualista, em oposigio & mate fst. (..) anim ddas muito na base da escala da humanidade, € dav ascend, profindamente modifcado na sua transmisio, mas consersando do principio mo caratetiza tribos sicua- 0 fim uma continuidade ininterrupra, até 20 seio da cultura moderna mais clevada. (..) E ‘embora A primeira vista possa parecer uma ma- gra definigéo minima de religiio, revelar-se-a suficiente na pritiea, pois onde estio as raizes, encontramse 05 ramos. (.) Ao empregarmos © termo animismo para designar a doutrina dos espiitos em geral, estamos a afirmar que as ideias relatvas 48 almas, aos deménios, as di- vindades es ourras classes de seresespivituas, séo.codas elas concepges com uma nacureza analoga (Tylor [1871] 1903, vol. 1, p. 425: 426; 0 itdlico & nosso). © termo animismo, formado a partir do latim anima, expressava a ideia de que todas as categorias religiosas, todas as crengas em seres espirituais, com suas muitissimas variedades, seriam derivagées psicologicas de uma catego- ria verdadeiramente omnipresente: a nogio dé alma. Dito por outras palavras, Tylor estava persuadido que, entre todos, esse artigo de fé tinha constituido na pré-histria de protétipo a partir do qual tinham sido for- jadas, também logo na pré-historia, todas as outras crengas. J sabemos que as caregorias se- cundéria rnio eram forgosamente universais, pois sua presenga variava consoante os povos, mas tinham apesar de tudo uma esséncia co- mum, uma essén ta, em relacio com a nogio de alma. Estava encontrada a ideia ele- mentar, a categoria aglutinadora do patrimé- nio idealégico selvagem. Tylor caraterizou-a da seguinte forma, a partir de uma compara- io exnogrifica vastissima {uma imagem humana, imaterial, uma espécie de vapor, wna nuvem, uma sombra, E a causa da vida c do pensamento no individuo que ela anima, E dona da consciénciae da vontade do sex possuidor corporal, presente ou passado, Pode deixat © corpo longe de sie vijar 3 damence. F geralmente impalpivel e inv mas também suscetivel de manifestaralguma propriedade fisica. Aparece aos homens durante ‘8 s0n0, como um fantasia separada do coepo ‘mas conservando a sua aparéncia. Apés a morte do corpo, ela continua a exstr © a aparece € tem a faculdade de entrar, dominar e agit no corpo de outros homens, animais e mesmo em objetos inanimados. Sem duivida, estas carte: sisticas exatas da alma nio sio todas ela univer- sais, mas sio suficientemente generalizadas para apreendermos a idei ipo, com divergéncias Eowano Trion 4 wxrmonpininia vougto aiaiosa Da nuneasinaps | 301 mais ou menos acentuadas de povo para povo. que estas ideias, que encontramos em toda a parte, nio sio produtos meramente arbirérios € eonvencionais do espitico humano. Longe diso, Séo torias que derivam forgosamente do testemunho indubitével dos sentidos, tal como © interpreta uma filosofia primitiva realmente consequente € racional. (Tylor, (1871] 1903, vol. fp. 428). E bem sabido que, segundo Tylor, a hu- manidade primitiva teria meditado sobre as causas de certos fenémenos bioldgicos, tais como 0 sono, 0 sonho, a doenga, a morte, ¢ chegado & conclusio muito natural de que cada individuo possuia uma alma separavel do corpo, cujas deslocagies explicavam aqueles fenémenos. Quando a alma deixava 0 corpo definitivamente, este morria. Mas se ‘Tylor foi muito criticado no século XX por falar em “f- lésofos selvagens”, na realidade ele nao wilt zava esse termo para caraterizar a inteligéncia ‘ow a curiosidade intelectual acima da média de figuras singulares do passado pré-histérico da ide, Tratavarse antes de mecanismos 10s elementares ¢ universais, de mera associagio de ideias. © “filésofo selvagem” era a humanidade inteira, porque a psicologia hu- mana pendia naturalmente para o animismo. ‘Tylor introduzia o conceito de religiéo natural para exprimir esse cardter inevitivel univer- sal ((1871} 1876, vol. Il, p. 142). Com efeito, as demais categorias religiosas eram derivagbes psicolégicas do mesmo ticular duas concepgées basicas fundamentais que resultavam diretamente da idcia de alma 0. Havia em par- € que permitiam compreender o su de todas as categorias, incluindo os diferentes tipos de deuses. Por um lado, era a animagéo ou personificagéo da natureza, ou seja, a atri- buigdo de uma alma a animais, plantas, mon- tanhas € outros objetos exteriores. Por outro: lado, era a formagio espontinea da nogio de espirito a partir da nogio de alma separada do corpo. Em sintese, Deus no criara o homem sua imagem, mas sim © contritio (C cking Jr, 1987, p. 195). Import frisar que ‘Tylor nao via 0 concei to de alma e as derivagbes do mesmo como tapas da evolugio religiosa da humanidade, nem nunca utilizou a etnografia contempo- ranea nese sentido, As crengas clementares no cram substituidas pelas derivagées mais complexas seguindo uma ordem sequencial. Pelo contririo, todas as ramificagées do ani- mismo eram basicamente simultineas © de- tectiveis entre as populagdes primitivas ainda cxistentes. Tratava-se pois de uma acumula- ao original das diferentes categorias,forjadas globalmente numa mesma condigio pré-h rica, desde a nogio de alma até diferentes tipos de divindades, inclusive deuses supremos selvagens compariveis aos das religises mo- noteistas, passando por algumas dezenas de categorias respeitantes & natureza, as fungbes € aos atributos de seres animados ou espirituais, do totem ao vampiro, do fétiche a0 espirito do vuleio, do anjo da guarda a0 deus do mar. O indice geral de Primitive Culture representa, s6 por si, uma empresa classficatéria. © quadro era completado com uma referéncia & magia. Nio se tratava, note-se bem, de um fenéme: pois no impli- cuais. Derivava nista ~ ou religioso todavia de um processo elementar, para mio dizer inelucivel, de associagio de ideias, Fuzen- do parte incegrante do patriménio idealégico pré-histérico, ao mesmo titulo que as manifes- ragées animistas Infelizmente, essa especificidade do evo- lucionismo tyloriano tem escapado a m tos leitores da sua obra. A verdade & que nio se deve equiparar Tylor a um John Lubbock, por exemplo, que propunha no seu Origin of Civi- lization, de 1870, uma sequéncia propriamen- te unilinear de etapas religiosas sucedendo-se 302 | Fasoeseo Detcano Rosa tumas &s outras. Eis alguns exemplos da falta de compreensao do alcance revolucionério do conceito de animismo na historiografia do sé- ‘culo XX. “(...) depois dos comegos da religiio selvagem, absolutamente rudes ou simples, a humanidade percorsia uma série de fases que tinham uma validade universal ¢ que condu- ziam a religiio monotefsta. Porque mais per- feiva, esta era colocada no fim, numa evolugso natural” (Bianchi, 1965, p. 62). Apés uma breve exposigio da sequu Lubbock, Ugo Bianchi consegue transformar ia proposta por stidios: as ideias de Tylor numa teoria dos tr “Para Tylor, a sequéncia seguinte era valida: o animismo (dando por veres lugar a fenéme- nos secundarios, tal como 0 ‘fetichismo’), em seguida 0 politefsmo e, por fim, 0 monoteis- mo. Sé 0 ponto de partida variava consoante 6s autores, uma vez que era 0 mais obscuro” (Op. cic., p. 96). Na verdade, cada qual pode encontrar em Primitive Culture a sequéncia de evolugio que quiser, atrl enciclopédicos um aspecto de etapas que s6 cexistem na imaginagio ou no preconceito do Ieitor, ¢ nao no texto original. Por exemplo, Marcel d’Hertfelt, autor de um manual de hi t6ria da Antropologia para estudantes univer- ndo aos eapitulos sitérios, descobre em Tylor a seguinte ordem evolutiva: erenga na encarnagio de espiritos, concepgio de deuses da natureza, concepyio de deuses da atividade humana, ¢ concepgio de um deus tnico. (1992, p. 58), Ora, em Primitive Culture as divindades do politeismo antropomérfico integravam uma categoria animista detectada em populagdes selvagens: (Os grandes deuses do polieismo, numerosos e claboradamente definidos na teologia do mun- do cultivado, nfo tém af, contudo, seu primciro aparceimento. Nas religides dos povos mais ru- des, seus tipos principais jd estavam delineados, a partir da (.) se tornou tarefa do poeta e do sacerdote, do fazedor de lendas ¢ do historia- dot, do teélogo e do fildsofo, desenvolver ¢ re novar, ow degradare abolit, os poderosos deuses ddesses panteses({1871] 1903, vol. I, p. 248), Por reagio a0 degencracionismo biblico, Tylor se recusava sem diivida a colocar um deus tinico na origem da religito, mas essa re ‘cusa era extensivel a qualquer outra formagio animista. Na pré-historia teria havido grande variedade de religides, embora assentes em princfpios comuns. Ele ia mais além ¢ afirmava inclusive que os gérmens do monoteismo ¢ do proprio dualismo ético eram detectiveis entre alguns povos primitives contemporancos, 0 que nio significava de forma alguma que toda a humanidade estivesse predestinada a acredi- tar num ser supremo. Mais tarde veio a acen- ‘uae a sua suspeigdo de que as ideias selvagens dessa ordem cram, em muitos casos, devidas a influéncias cristas, sobretudo nas suas com- ponentes morais. © artigo “On the Limits of Savage Religion”, publicado em 1892, traduz essa inflexdo, mas o titulo escolhido constitui 86 por si uma prova de que 0 campo de ex- tensio da religiao primitiva era praticamente ilimitado. Por um lado, © monoteismo em estado puro era uma ficcio. Historicamente, igides do Livro, e desde logo 0 Cristi nismo, regorgitavam de concepg6es animistas para além da idcia de deus tinico, inclusive de outros seres espirituais com atributos divinos ‘ou maravilhosos. Por outro lado, Tylor con- tinuou identificando, mesmo nas edigdes ul- teriores de sua obra, exemplos selvagens que centravam no capitulo da categoria religiosa do deus supremo: Se considerarmas que o eritério do monoteisme consistesimplesmente na ideia de uma divinda- de suprema criadora do universo ¢ chefe da hie- rarquia espiritual, entio sua aplicagio reologia selvagem ¢ barbara conduziré a consequéncias surpreendentes. Povos da América do Notte € do Sul, da Africa, da Polinésa, io usualmente « legitimamente considerados politefstas, mas segundo aquela definigio 0 seu reconhecimen- to de um exiador supremo (..) habilta-os 30 mesmo tempo ao titulo de monotestas((1871] 1903, vol. IL, p. 332), Associando a Antropologia 8 filosofia ma {erialista ou monista subjacente & ciéncia— por oposigéo justamente a filosofia espiritualista ou animista ~ Tylor encarava a religiio como tum processo de criacio de imagens fantasiosas sobre a realidade, seguindo embora uma logica natural ¢ universal, porque simplesmente hu: mana. Néo era de estranhar que os antepas- sados pré-histéricos tivessem inventado tudo © que havia para inventar nessa matéria, Nem podia ser de outra forma. E ssim, a evolugio religiosa da humanidade era um processo si- multineo de permanéncia ¢ de transformagio do legado primitive. Contudo, Tylor propu- nha, além do desenvolvimento, um segundo {pio imerpretativo no estudo das rel entre o homem selvagem € 0 homem civiliza- do. A par da adaptacio progressiva das con- cepsées an a sua duragio na Historia, as populagdes ditas tas, justificando de certa forma civilizadas também conservavam «ragos selva- ‘gens que nio tinham verdadeiro sentido no novo ambiente. Tratava-se de ideias € usos cuja manutengio era apenas devida ao conservado- ctido, a0 peso ativico da tradigio. Eram as sobrevivéncias, as sobrevivéncias na civilizagio, ou survivals, Em Primitive Culture, Tylor dedicava dois capitulos a essa quest tratada numa perspetiva teérica aprofundada Sob o seu impulso, a tcoria das sobrevivéncias ou um dos aspectos mais distintivos da escola antropoligica inglesa, Nas stias pala- vras, uma sobrevi incla era: (..) a petsisténcia de uma ideia eujo sentido se perdew hd muito tempo, mas que continua exis- ‘indo pela simples razdo de que um dia exist. (..) Podemos afirmar, de uma ver por todas, {que 05 usos desprovidos de sentido deve ser sobrevivéncias, que eles tiveram uma intengio pritica ou pelo menos um carster de ceriménia no momento € no lugar onde surgiram, mas ‘que acabaram se tornando observancias absur- das, porque foram transportados para um novo estado social onde sua signifcacio desapareceu (Ios, 1871.1, p. 64-85). Como ilustracéo, 0 habito europeu de sau- dar quando alguém espirrava era supostamente uma sobrevivéncia da época muito longinqua saida de ar era associa- da & movimentagio de entidades espirituais. Tal era a crenga viva de numerosas populagies selvagens, o que permitia reintegrar a sobrevi- véncia no seu contexto psicoldgico original, O 10 das tradig6es camponesas da Europa contemporinea, aquilo a que se chamava de ‘em que essa repenti folclore, fornecia exemplos abundantes de so- brevivencias. Com efeito, os camponeses eram supostamente os descendentes das camadas mais estagnadas da populagio, tendo conser- vado uma heranga pré-hist6rica considerdvel. © peso da tradigio coletiva determinava a manutengio de usos cuja razao de ser tinha-se obliterado a0 longo dos séculos. Por exemplo, continuava-se repetindo lendas fabulosas — os chamados contos populares, que chegavam &s criangas da cidade nas versées recolhidas pe- los irméos Grimm e outros ~ sem que a exis- téncia real de suas personagens sobrenaturais isse forgosamente um artigo de f nos meios rurais do século XIX. Dito isto, 0 aspec- to incoerente, ou mesmo absurdo, dessas re- presentacées permitia supor que se tratava de sobrevivéncias de u era em que esses seres {rios no eram apenas personagens de contos de fadas, mas verdadeiros agentes es- pirituais que povoavam 0 universo. Por outro lado, havia crengas que permaneciam bem vi- 401 | Ferbenico Duteavo Rosa vas, com lobisomens e afins no horizonte psi- colégico dos camponeses, mas a contiguidade do folclore em relagio aos ccntros urbanos assegurava globalmente o seu estatuto de s0- ia na civilizagio. De um modo geral, rentos psicologicos que tinham es- tado na origem de muitas tradig6es rurais da Europa jé nao eram considerados tio atuantes ‘como entre os selvagens de além-mar. Mas esse é apenas um lado da questio, aplicado ao mero conservadorismo de tra ges, outrora graves, que tinham adquiride a0 longo dos séculos um aspecto simples, geralmente de merry-making ou distracéo coletiva nos campos. James Frazer, seguidor de Tylor, iria explorar enormemente esse fi- lio no seu célebre The Golden bough (1890) Mas que dizer de outro.tipo de incongruén- cias bem ativas, como era o caso dos métodos divinatérios e mediiinicos muito em voga nos sales vitorianos? Vivendo numa era de apogeu do espiritismo, Tylor considerava-o ‘uma flagrante contradigio civilizacional ¢, por conseguinte, seria 4 primeira vista um excelente candidato ao titulo de sobreviven- cia, Na verdade, podia tratar-se de um revi- ral mais do que um survival, 0 que reforga um aspecto bem ousado da teoria tyloriana, ou seja, a percegéo de que a humanidade continuava, em todos os tempos, pendendo para 0 animismo, ou ndo fosse a sua religito natural, ancorada no proprio funcionamen- to da mente humana: “The ching that has been will be” ({1871] 1903, vol. I, p. 159). Tylor repetia com Frequéncia que as nogdes ia da- estagbes religiosas reunidas em Primitive Culeure, mas de desenvolvimento ¢ de sobreviv vam conta da maior parte das man havia de fato outros instrumentos concetuais que podiam ser tomados em linha de con- ta ocasionalmente, tais como sobrevivéncia parcial, degenerescéncia, desaparecimento ressurgéncia ou revival. De qualquer forma, nem sempre ele precisava se a permanéncia historica de uma crenga ou de um rito de ori- gem selvagem num meio civilizacional mais sofisticado era uma questio de sobrevi ou de desenvolvimento. Sea segunda hipétese sobressafa como uma tendéncia maior ao longo da obra, era por vezes de forma implicita. Tomemos como exemplo a ideia de dream-soul, segundo a qual as almas desencarnadas visitavam os vivos durante 0 sono, Tylor chegava ao ponto de dizer que ela cra para os Gregos antigos exatamente 9 mes- ‘mo que era para o selvagem contemporinco, 0 {que poderia indicar uma falta de adapragio a0 espitito da época clissica ¢, por conseguinte, ‘uma forma de sobrevivéncia. Contudo, 0 ve- redito nem sempre € ficil. F. possivel admitie ‘que, segundo seu pensamento, muitas noses primitivas persistiam quase inalteradas num novo estado social sem que no entanto fossem verdadciras sobrevivéncias. Para empregar este conceito com toda a legitimidade, seria entio preciso que de alguma forma se rompessem 1s lagos de coeréncia ou articulacéo entre 0 contexto social e a crenga ~ ou que simples- mente houvesse uma perda de fé. A partir do momento em que os Gregos no seu conjunto acreditavam firmemente na dream-soul, talver fosse abusivo ver af uma simples sobrevivéne © conceito de sobrevivencia parcial, ainda que nem sempre explicitado, revela-se stil nesses Trata-se porém de uma das quest6es mais, delicadas © 20 mesmo tempo aliciantes da obra de Tylor. De um modo geral, quando um elemento de origem pré-hist6rica estava perfeitamente integrado no processo de evo- lugao religiosa e civilizacional de cada soc dade, de acordo com uma nova sensibilidade intelectual, ética, artistica etc., 0 conceito de sobrevive Infeli noges de desenvolvimento ¢ de sobrevi cia se revelava inapropriado mente, as nuangas teéricas et Epmnun Trion 64 mxreonbindiia OLS RALIOIOSA BA HUMANIDADS | 305 cia escaparam com frequéncia aos leitores de Tylor, seja do século XIX, seja do século XX. Assim se explica, entre outros, que um historiador tao reputado como John Burrow tenha dito, no seu estudo de 1966, Evolution and Society, que Tylor “declarava guerra as sobrevivéncias” quando retragava as origens selvagens de certos elementos do Cristianismo, como 0 batismo ou a con- sagragao (conversio do pio ¢ do vinho no corpo ¢ sangue de Cristo durante a eucaris- tia) (1966, p. 256-257). Ora, Tylor nao teria utilizado © conceito de sobrevivéncia nesses casos, mas sim o de desenvolvimento, alu- sivo a dezanove séculos de erudita teologia trabalhando tais mistérios — um trabalho de desenvolvimento iniciado aliés (melhor di- zendo, continuado) por ninguém menos que Jesu posigio de ‘Tylor em matéria religiosa espe- ‘0. FE curioso pensar que a propria hava porventura essa delicada fronteira en- tre a rejeigdo € a conciliagéo (Cf. Stocking Jr 1987, p. 188-197). Ble tampouco dizia que a definigao crista de alma imortal era ‘uma simples sobrevivéncia do animismo sel- vagem, despojada de sentido ¢ de razéo de ser, mas nao hesitava em ligi-las pelo con- ceito de desenvolvimento, A nogio de alma, a mais importante categoria reli josa da hu- manidade, conservava sua esséncia a0 longo de uma ascensio marcada por toda uma série de modificagoes ¢ adaptagées: (..) apesar de téo profundas mudangas, & bem claro que a concepgio da alma humana, no que toca de mais perto a sua natureza, nio se modificou desde a flosofia do pensador sel- vagem até 3 do modemo professor de teolo fia. A alma, desde a origem, continuou senda definida como uma entidade animadora, se- parivel do corpo € sobrevivente, e concebi- da como o veiculo da existéncia individual ‘A teotia da alma € wma das partes essenciais de um sistema de filosofia religiosa que une numa cadeia ininterrupta 0 selvagem adora- dor de fetiches a0 cristio civilizado ({1871] 1876, vol. I, p. 584). Notemos que as sobrevivéncias na civili- zagio podiam também softer manuseamentos de todos 0s tipos, mas ao contr sgorias religiosas que se tinham desenvolvido. jo das cate- no sentido exato do termo, néo estavam liga das de forma orginica e harmoniosa as novas condigdes sociais e psicolégicas. Sob uma rou- pagem refinada podia se esconder uma perfei- ta incongruidade cultural. Um bom exemplo eram as reliquias do Catolicismo, que Tylor considerava absurdos no respetivo tempo. O barroco da ralha dow 0 fazia mais do que camuflar a selvaj bastos paralelos na etnografia exdtica. Nao é de estranhar que a paraferndlia catdl seu desfile secular de exorcismos e milagres, dessa veneragio com incubos ma de bruxas, fosse bem rica de exemplos des- sa ordem, muito apreciados por Tylor, ainda ricubos, ossadas macabras e quei- que os célebres revivals das seitas protestantes norte-americanas também pudessem fornecer dados excelentes. O fato que ‘Tylor considerava indispen- sdvel em ambos os casos, tanto nos de sobre- vivéncia, como nos de desenvolvimento, a caraterizacio antropolégica da configuracio. primitiva de cada categoria religiosa. As ver- sdes mais sofisticadas podiam bem conservar tum significado ativo e ser objeto de uma crenca atualizada, mas também deviam ser remergu- Ihadas no ambit pologia da religi em culturas a todos os niveis de civilizagao, seria doravante baseada na compreensio dos contornos psicolégicos mais espontincos ¢ re pré-histérico, A antro- evolucionista, interessada arcaicos do animismo selvagem, e nomeada- mente do significado perfeitamente concreto € explicito do patriménio religioso da cultura

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