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SÁBADO, 5 DE JUNHO DE 2010 ANO I – Nº 13 O ESTADO DE S. PAULO

UM TEMPO PARA A LEITURA

estadão.com.br

BENÍCIO W. DIAS/FUNDAÇÃO GILBERTO FREYRE

GILBERTO
FREYRE,
LUZ E
SOMBRA
Um livro inédito, vários
relançamentos e obras que
questionam suas ideias:
tema da próxima Flip, o
autor de Casa-Grande &
Senzala volta ao centro da
cena intelectual brasileira.
Pág. S3

Ensaio
Sobre a questão judaica
Estudo de Elisabeth Roudinesco
explora múltiplas abordagens
Pág. S5
Ficção
Testamento literário
Leia trecho do romance final de
Wilson Bueno, que sai em 2011
Pág. S6

O pensador.
Freyre em
Apipucos,no
ano de 1945

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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 5 DE JUNHO DE 2010

Capa
Publicação de um inédito, reedições de clássicos
e simpósios no Brasil e em Portugal colocam em
debate a produção de Gilberto Freyre, apontado
como seguidor de teses antissemitas e racistas

DIVULGAÇÃO/FGF

FURACÃO DE IDEIAS
NA CASA-GRANDE
toriadora. Nesse intervalo, um exame de
ANTONIO GONÇALVES FILHO DNAdefamiliaresdeGilbertoFreyre,condu-
zido pelo cientista mineiro Sergio Danilo Pe-
na, teria revelado que o sociólogo descendia
rande homenagea- de judeus sefarditas portugueses que migra-

G
do da oitava edi- ram para o Brasil.
çãodaFesta Literá- Arnaldo Bloch, irônico, diz que foi uma sor-
ria Internacional te terem os antepassados de Freyre escapado
de Paraty (Flip), das fogueiras dos autos de fé, mas morreriam
que começa dia 4 de vergonha se vissem o retrato do judeu pin-
de agosto, o soció- tado pelo descendente: “técnico da usura”,
logo e antropólo- “ave de rapina” e “parasita” são alguns dos
go pernambucano termos empregados na terminologia antisse-
Gilberto Freyre mitarelacionadapelaprofessoraSilvia–eque
(1900-1987) volta ao papel de ocupa duas páginas de seu livro.
incendiário das ciências sociais não só pelas Nelas, três obras aparecem com mais fre-
discussões que vai provocarna cidade flumi- quência entre as que abusam dessas expres-
nense como no exterior – Portugal sedia em sões depreciativas contra os judeus: Tem-
março de 2011 um colóquio com especialis- po de Aprendiz (1921), Casa-Grande & Senza-
tas internacionais em sua obra (entre eles o la (1933) e Sobrados e Mucambos (1936). Um
historiador inglês Peter Burke). Além disso, ano depois da publicação do último, as crí-
estão programados o lançamento de um li- ticas são amenizadas e substituídas por
vro inédito (De Menino a Homem, segunda outro discurso. Em O Mundo Que o Portu-
parte de suas memórias, pronto para sair guês Criou, Freyre ressalta os judeus “de
pela Global) e o retorno às livrarias de títu- alta expressão intelectual” que regressa-
los há muito fora de circulação, destacando- ram à Europa ou migraram para outros
se o projeto da editora É Realizações, que no países do continente americano quando
ano passado publicou dois volumes do mes- os católicos portugueses reconquistaram ção do sociólogo, ela lançou no ano passa- texto sobre o livro), Freyre teria tecido, com Papéis. Ele tinha
tre de Apipucos, Sociologia (Introdução ao o Nordeste, citando nominalmente alguns do o livro Repensando os Trópicos (Unesp), a ajuda da eugenia, uma cortina que “velada- interesse pelo
Estudo dos Seus Princípios) e Sociologia da Me- que ajudaram a desenvolver no plano inte- retrato intelectual do autor de Casa-Gran- mente, encobriria nosso passado”. A aco- passado comum
dicina. A nova editora coloca agora mais sete lectual aquela região, que só conhecia, de & Senzala escrito em parceria com o ma- modação entre a casa-grande e a senzala da população de
títulos no pacote que será lançado na época quando muito, a cultura do açúcar. rido. Da Inglaterra, a professora, que orga- não passaria, segundo ela, de um fruto dos luso-descendentes
da Flip, entre eles O Mundo Que o Português O editor da É Realizações destaca o livro nizou as mesas de debates sobre Freyre na “devaneios freyrianos”. O que a historiogra-
Criou, resultado de uma série de conferên- entre os muitos que pretende publicar so- Flip – que terão, entre outras estrelas, Fer- fia registra, argumenta, foi uma acomoda-
cias feitas em 1937 no King’s College (Uni- bre Freyre ainda este ano. Ex-ator e diretor nando Henrique Cardoso e o escritor ção “na base do chicote, sevícias e o olhar
versidade de Londres) e em três universida- de teatro, aluno do po- Moacyr Scliar –, falou vigilante do dominador sobre o outro, sua
des portuguesas. lonês Jerzy Groto- ao Sabático sobre a obra propriedade, seu objeto”. Se Freyre defen-
Como Freyre é sinônimo de polêmica, wski (1933-1999) e do **
É preciso lê-lo com
do sociólogo, comen- deu o processo de miscigenação, por outro
parece inevitável que um dos títulos lança- italiano Eugenio Bar- tando as acusações de lado se revelou um antissemita, acusa, espe-
dos aborde um tema incômodo como o de ba, o agora editor Ed- cuidado, considerando antissemitismo que pe- cialmente de 1921 a 1936. E – por que não? –
Tempos de Casa-Grande (Editora Perspecti- son Manoel de Olivei- sam sobre ele. também depois. A professora lembra que,
va), tese de doutorado da historiadora ala- ra Filho, como cristão
os contextos e suas “É preciso ler Gilber- durante sua vida, inúmeros prefácios fo-
goana Silvia Cortez Silva. Nele, a professo- novo descendente de revisões de posturas, to Freyre com cuida- ram escritos ou reescritos por Freyre para
ra, residente no Recife, acusa o escritor de portugueses, prefere alertam especialistas do”, recomenda, lem- Casa Grande & Senzala e que o sociólogo
racista e antissemita, definindo-o como ficar longe da polêmi- brando que a lingua- “jamais registrou” – nem em uma nota se-
criador do maior mito da sociologia brasi- ca do antissemitismo ** gem de Casa-Grande & quer – mudança de opinião sobre os judeus.
leira, o da democracia racial. Segundo ela, de Freyre, concen- Senzala é condicionada O problema antropológico e sociológico
trata-se, antes de tudo, de “um mito políti- trando seus esforços nos títulos que tratam por expressões da época que assumem di- da mestiçagem, por ser uma questão trans- VISÃO GLOBAL
co, que oferecia uma solução para o proble- das relações entre brasileiros e portugue- ferente dimensão quando retiradas de seu nacional, ocupa, porém, mais páginas na Amigo e estudioso de
ma racial” evidenciado nos anos 1930 com ses. Assim, além de O Mundo Que o Portu- contexto. “Nunca fiz um estudo aprofun- obra-prima de Freyre justamente pelo inte- Gilberto Freyre, o per-
as catastróficas teses eugênicas que pipoca- guês Criou, vai publicar Aventura e Rotina, dado sobre seu suposto antissemitismo, resse do sociólogo em nosso passado co- nambucano Edson
vam na época. Freyre, defende a professo- Um Brasileiro em Terras Portuguesas, O Luso mas lembro que ele destaca o papel dos mum de luso-descendentes, uma vez que, Nery da Fonseca – que
ra, prometia à posteridade “uma moderni- e o Trópico e Uma Cultura Ameaçada e Outros judeus de uma forma positiva na formação como ele mesmo argumenta em O Mundo debaterá na Flip o ta-
dade bem atenuada, produto de uma mesti- Ensaios. E, como o sociólogo era um homem do Brasil.” Já sobre os portugueses, ela Que o Português Criou, a atração do Brasil lento literário do soció-
çagem eugênica”, um mito do futuro de com crítica visão das artes e pioneiro na nota que seu discurso muda como mudou sobre os judeus da Europa durou “até que logo – diz que Silvia
“nítido contorno soreliano” segundo ela. engenharia social, mais dois títulos foram sua posição francamente racista ao se rein- outras partes da América lhes pareceram Cortez Silva tira frases
Por “soreliano” entenda-se a referência ao escolhidos pelo editor: Vida, Forma e Cor e ventar e fazer o elogio da mestiçagem em mais hospitaleiras ou mais liberais, mais do contexto para defen-
marxista francês Georges Eugène Sorel Homens, Engenharias e Rumos Sociais. Deta- Casa-Grande & Senzala, de 1933. “É chocan- atraentes para os seus capitais e para a sua der a tese de antissemi-
(1847-1922), teórico do sindicalismo que lhe: todos os livros publicados sem lei de te como, ao voltar dos EUA, ele elogia o atividade de intermediários”. tismo. Após citar tre-
acreditavano mitocomoforçacapaz delevar incentivo fiscal. Edson Manoel é o que con- grande líder da Ku Klux Klan e defende a “Freyre também fez críticas ofensivas cho de Casa-Grande &
pessoas a agir em prol do triunfo de uma cau- vencionalmente se chama de mecenas. “En- supremacia branca nos anos 1920, para, aos portugueses, lembrando que muitos es- Senzala no qual Freyre
sa – no caso, o mito da democracia racial, caro o projeto Gilberto Freyre como uma em 1933, falar da missão civilizadora do cravos negros, dependendo de sua origem, tanto chama os judeus
“embasado numa linguagem envolvente, missão, pois não faz sentido um livro funda- negro no Brasil, o que indica uma revisão estavam bem acima da média do coloniza- de “técnicos da usura”
mas falaciosa”, de acordo com a autora da mental como Sociologia estar há 37 anos fora de seus preconceitos.” dor, o que é um discurso revolucionário quanto destaca a “su-
tese, que esperou 15 anos para ver seu traba- de catálogo”, justifica o editor. Não é o que pensa a historiadora Silvia para a sua época, uma mudança de padrão perioridade de sua cul-
lho publicado, prefaciado por Arnaldo Blo- Cortez Silva: “A senzala de Freyre é idealiza- para o pensamento historiográfico, não só tura intelectual e cientí-
ch. Até mesmo o primeiro prefaciador, um Cuidado. Freyre seduziu igualmente a his- da.” Ela identifica em outra obra além de brasileiro como estrangeiro”, conclui a his- fica”, Nery conclui:
nome que ela mantém em segredo, desistiu toriadora e professora Maria Lúcia Palla- Casa-Grande & Senzala uma “visão de mun- toriadora Maria Lúcia Pallares-Burke, di- “Ele não era anticoisa
no meio do caminho, temendo represálias res-Burke, casada com o também historia- do excludente” que em tudo contraria a sua zendo que Freyre foi também pioneiro ao nenhuma, só buscava
dos freyrianos defensores do mestre em Per- dor Peter Burke. Autora de Um Vitoriano “democracia racial”: em O Escravo nos falar de ecologia e hibridismo cultural an- ver o mundo de
nambuco. A espera compensou, avalia a his- nos Trópicos (2005), estudo sobre a forma- Anúncios de Jornais Brasileiros (leia abaixo tes dessas palavras entrarem na moda. maneira global.”

dentado, com cabelos brancos na cabeça. Fu- pológica.” Esse era seu método: levantar, mento sistemático. Talvez por isso o livro
ENSAIO giu Catarina, de nação Congo, cozinheira,
traz marcas de pegas e ganchos.
Os jornais brasileiros do 19 estão reple-
descrever, e transformar casos isolados
em modelos ilustrativos.
E os anúncios afirmaram-se como fontes
de Freyre ainda cause espanto.
Ao final da obra, ainda temos a chance
de acompanhar Freyre se exercitando
POLÊMICO tos de anúncios como esses, que noti-
ciam fugas de escravos. Sem distinção de
sexo ou idade, tais documentos represen-
destacadas na obra do autor. A documenta-
ção lhe serviu de pista para o levantamento
das diferentes procedências dos africanos
com imagens: ele comenta feições, adivi-
nha desejos, testa aspirações. Mestre nos
detalhes, o antropólogo não deixava nada

SOBRE OS tam prova substantiva de como o cativei-


ro foi naturalizado no Brasil, e da manei-
ra como a violência do sistema não assus-
e comprovação da variedade de profissões.
Além do mais, o material mostrou-se apro-
priado para entender que se escrevia assim
escapar. Cada sinal se converte em pista;
cada pequeno elemento tem a capacidade
de iluminar vastas estruturas.

ESCRAVOS tava; ao contrário, era utilizada como for-


ma de identificação.
E não foram apenas os anúncios de fuga
da maneira como se falava: “Português bra-
sileiramente.” Por fim, por meio deles era
possível prever os usos do corpo escravo,
Pena é que, mesmo diante de documen-
to tão expressivo, Freyre insista no caráter
benigno da nossa escravidão. Nos prefá-
que escancararam a presença escrava no de parte a parte: com as tatuagens o cativo cios que fez para o livro, tendeu a oblite-
Obra que insiste no “caráter País. Se neles se pretendia descrever objeti- marcava sua origem, para que ninguém a rar o modelo ambivalente que apresentou
vamente o “cativo fujão”, de maneira a aju- contestasse; já o senhor usava do mesmo anteriormente, em obras como Casa Gran-
benigno” da escravidão dar na recuperação; já nas inúmeras notícias recurso para gravar em brasa sua proprieda- de & Senzala ou Sobrados & Mucambos,
utilizou anúncios de jornais de aluguel, venda, penhora ou seguro de es- de. Como se vê, destinos diferentes se es- quando o “&” mostrava como a realidade
cravos, a operação dava-se ao revés: tratava- creviam no mesmo corpo. era mesmo ambivalente e avessa a verda-
se de exaltar as qualidades do “produto”. des certeiras. Se no âmbito doméstico a es-
O fato é que nesses pequenos anúncios Pioneirismo. Conforme mostra Alberto da cravidão nos legou a mestiçagem biológica
podem ser encontradas grandes pistas pa- Costa e Silva, em excelente prefácio para o e cultural, já como sistema – que previa a
LILIA MORITZ SCHWARCZ ra entender como a escravidão mercantil livro, a obra nasceu de um artigo publicado posse de um homem por outro –, não há
transformou humanos em “coisas”, na revista Lanterna Verde em 1934, o qual re- como imaginar modelo mais violento. Aí
ugiu Diogo, de “bens semoventes”. E é em torno desse sultara, por sua vez, de uma palestra de estão os anúncios que não permitem ce-

F
nação Calabar, fal- material que o antropólogo Gilberto Freyre sobre o tema. Como no pensamento gueira fácil ou esquecimento seletivo.
ta de cabelo no al- Freyre se debruçou nos anos 1930 para es- do antropólogo um texto puxa outro, logo vi-
to da cabeça e um crever O Escravo nos Anúncios de Jornais ria nova conferência – sobre deformações ✽
joelho mais grosso Brasileiros no Século 19 (Global). Conheci- nos corpos dos escravos fugidos – e mais ou- LILIA MORITZ SCHWARCZ É PROFESSORA
que outro, resulta- do pela originalidade de suas pesquisas, tro ensaio. O livro mesmo só sairia em 1968, TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
do de castigos. Fu- Freyre mais usou dos documentos do sem perder, porém, seu pioneirismo. DA USP E AUTORA, ENTRE OUTROS, DE O SOL
giu Benedito, criou- que os analisou com vagar. Afinal, não Se os anúncios já haviam sido utiliza- DO BRASIL: NICOLAS-ANTOINE TAUNAY E AS
lo, oficial de carpi- por acaso o intérprete introduziu o subtí- dos em obras como O Abolicionismo, de DESVENTURAS DOS ARTISTAS FRANCESES NA
na, já velho e des- tulo: “Tentativa de interpretação antro- Joaquim Nabuco, jamais ganharam trata- CORTE DE D. JOÃO (COMPANHIA DAS LETRAS)

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