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PRIVATIZAÇÃO

PRA QUE(M)?
ÍNDICE

1. A SAÚDE NÃO PODE PAGAR POR ESTA CRISE

1.1. Esta é uma crise econômica


1.2. O Papel da especulação Financeira
1.3. O Papel dos governos
1.4. Quem paga o preço da crise? ou, o que nós, estudantes, temos a ver
com isso?

2. A ASSISTÊNCIA À SAÚDE NOS DIAS ATUAIS

2.1. Determinação social da doença


2.2. A Assistência à Saúde na contemporaneidade

3. O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

3.1. Considerações Iniciais


3.2. Neoliberalismo e SUS
3.3. SUS e o financiamento
3.4. SUS e os Hospitais
3.5. SUS e os Hospitais Universitários
3.6. SUS e os Modelos de Gestão
3.6.1. O arcabouço teórico a partir das necessidades do capital
3.6.2. Organizações Sociais (OSs)
3.6.3. Fundações Estatais de Direito Privado (FEDP)
3.7. SUS e os Planos de Saúde: Quem paga a conta?

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS E APONTAMENTOS


LOGIAS E ANALOGIAS

No Brasil a medicina vai bem


Mas o doente ainda vai mal

Qual o segredo profundo


Desta ciência original?

É banal: certamente
Não é o paciente
Que acumula capital.

Antonio Carlos de Brito

1. A Saúde não pode pagar por esta crise!

I. Esta é uma crise econômica

A Crise atual do Capitalismo tem deixado muita gente confusa e tirando


conclusões superficiais sobre os acontecimentos. Alguns dizem que é uma crise
financeira, outros que seria uma crise de “confiança” e de crédito, e outros emendam
dizendo que a crise é dos países desenvolvidos e que por aqui chega apenas uma
“marolinha”. O fato é que, para entender a realidade, precisamos de um pouco mais
de esforço e olhar para além da superfície dos fatos.

Esta é uma crise do sistema capitalista, uma crise que, apesar das suas
especificidades, é típica do modo de produção capitalista e que ocorre em
decorrência da própria dinâmica do sistema. Não é um problema de credibilidade,
ou porque alguém emprestou dinheiro a quem não podia pagar, ou porque existem
banqueiros “maus-caráter” que nos levam todos a sofrer. Pensar assim é acreditar
que as crises existem por causa do caráter das pessoas e que o sistema capitalista,
caracterizado pelas relações de exploração, não tem nada de ruim, desde que seja
gerenciado por pessoas “boas”.

Em primeiro lugar, é importante lembrar como ocorre a produção sob o regime


de acumulação do capital. Toda produção de valor novo, riqueza nova, parte do
trabalho. São os trabalhadores produtivos, nas mais diferentes empresas que, em seu
conjunto, produzem absolutamente toda a riqueza nova. Mas essa riqueza não é
apropriada pela classe trabalhadora, ela serve para aumentar mais capital. Esse
processo demonstra que o capital só existe por causa do trabalho. No entanto, como
os capitalistas competem entre si, para produzir mais e vender mais, investem em
novas tecnologias e compram máquinas cada vez mais modernas que eliminam
“postos” de trabalho. Assim o capital vai “matando” quem o alimenta. Ao reduzir a
quantidade de trabalho empregada, ocorre uma tendência à redução da taxa de lucro
das empresas em geral. Essa é a contradição central do capitalismo.

II. O papel da especulação financeira

Para fugir deste destino, quando esta tendência de queda da taxa de lucro
aparece, uma parcela dos capitalistas começa a transferir parte cada vez maior do
seu capital para o mercado financeiro, para tentar absorver valores criados na esfera
produtiva por meio de juros e especulação. No início, todo mundo acha interessante,
mas esse mercado financeiro começa a aumentar tanto o seu valor que este não tem
mais correspondência com o valor real criado pelos trabalhadores na esfera
produtiva. Aí começam a se manifestar os sintomas da crise.

Os chamados ativos financeiros, que se “valorizaram” ficticiamente na


especulação, se depreciam – seus preços vão caindo, na medida em que aqueles
especuladores que os compraram começam a vender, para tentar realizar os ganhos
especulativos, até que as próprias empresas produtivas, que também especulam no
mercado financeiro, se vêem em dificuldades de caixa para pagar seus
compromissos e continuar investindo. Neste momento, a crise se instala de vez. Os
investimentos param, as empresas começam a querer reduzir os custos, algumas
quebram e, se não houver organização e luta, normalmente os trabalhadores, a
imensa maioria da população, pagam a conta.

III. O papel dos governos

Os governos também estão envolvidos neste processo de acumulação de capital.


O Estado tem dívida pública e, para continuar gerenciando esta dívida, aumenta-se
cada vez mais a carga tributária, que é paga, majoritariamente, pelos trabalhadores
para o pagamento dos juros, enquanto a retirada de direitos, a precarização e as
privatizações avançam na Educação, na Saúde, na Previdência, caracterizando
aquilo que se convencionou denominar de políticas neoliberais. Importante ressaltar
neste contexto o papel da Desvinculação das Receitas da União (DRU), instrumento
criado pelo governo FHC e perpetuado pelo governo Lula, que retira 20% de tudo
que é arrecadado pelo Estado e deveria ser investido nas políticas sociais de caráter
universalizante, para justamente arcar com os juros da dívida pública.

Além disso, como todos podem conferir na grande mídia, os Bancos Centrais e
os governos do mundo todo e do Brasil, já gastaram centenas de bilhões de dólares
para salvar empresas e bancos. Não nos enganemos, este Estado, com ou sem bolsa-
família, ainda serve a uma minoria da população.

IV. A Crise é mundial

Como dissemos, o sistema capitalista entra em crise porque no seu modo de agir
vive uma contradição que não será resolvida, ou seja, a produção coletiva do valor
pelo trabalho e a sua apropriação privada pelo capital. Agora é importante ressaltar
porque a crise ocorreu neste momento.

Depois de décadas de avanço da internacionalização da produção – ou da


globalização – o mundo inteiro participa do processo de produção de valor. Uma
empresa capitalista sueca, ou norte-americana, produz uma parte do produto na
Suécia, outra no México, outra no Brasil, e vende no mundo todo. Assim, pela
produção, o capitalismo ligou o mundo todo no mesmo processo de acumulação.
Também a especulação financeira foi “globalizada”, já que se pode aplicar no
mercado financeiro mundial 24 horas por dia – basta ter dinheiro. Esse conjunto de
fatores ligou todas as pontas do processo de produção e fez com que a crise, que
começou no EUA, rapidamente atingisse todo o mundo.
V. Quem paga o preço da Crise? ou o que nós, estudantes, temos a ver com isso?

Normalmente, quando acontecem crises como esta os capitalistas buscam se


salvar. Essa salvação pode se dar através das fusões das empresas, ou seja, com a
centralização de capital; pode se dar com a estatização de empresas e a transferência
de recursos públicos para as corporações e os bancos, ou seja, a socialização dos
prejuízos; mas pode se dar principalmente convencendo os trabalhadores de que eles
precisam “fazer sua parte para que todos possamos sair desta crise”. Este último
instrumento já está em operação no Brasil, quando o governo Lula já acena com a
possibilidade de um novo pacto social.

As conseqüências deste processo será o avanço das privatizações na Educação,


Saúde e Previdência, antes direitos garantidos pelo Estado com financiamento
público, hoje novos espaços para o capital se valorizar. Será o avanço da
precarização dos serviços públicos como Educação, Saúde e Previdência,
materializando serviços qualitativamente diferentes para os diferentes segmentos da
sociedade. Quem pode consumir tem acesso a uma boa educação, uma boa
assistência à Saúde. Quem não pode consumir tem acesso a uma educação pobre, e a
uma assistência à Saúde pobre – “cesta básica para a saúde”, que não garante
acessibilidade a serviços de alta densidade tecnológica. Tudo isso numa conjuntura
de redução dos direitos trabalhistas, de flexibilização das relações de trabalho, de
redução de salários, de aumento do desemprego etc. Qual o impacto desta realidade
na saúde e na doença da população? Numa população brasileira em que 60 dos 100
milhões de trabalhadores estão em situação de informalidade? Numa população
mundial em que um terço das pessoas está fora da esfera da produção e fora da
esfera do consumo?

A SAÚDE NÃO PODE PAGAR POR ESTA CRISE

2. A Assistência à Saúde nos dias atuais

I. Determinação social da doença

Para responder às indagações acima, devemos nos ater por um momento no


debate da determinação do processo saúde-doença e das necessidades dos grupos
humanos. Devemos entender que toda necessidade nos grupos humanos é
determinada objetivamente e se expressa de maneira subjetiva, já que toda
necessidade subjetiva só pode ser construída a partir de uma necessidade concreta e
possibilidades historicamente construídas.

Se entendermos a saúde como a condição que permita a realização do humano,


ou o desenvolvimento máximo de seu potencial, de acordo com as possibilidades
sociais dadas pelo desenvolvimento dos meios de produção, as necessidades serão
entendidas como um patamar universal a partir do qual cada um poderá se
desenvolver. Por outro lado, numa sociedade marcada pelas relações de exploração,
que não permite o acesso igualitário aos produtos da civilização, como
conhecimento, novas tecnologias, educação, assistência à saúde, moradia,
alimentação etc., necessidade de saúde pode ser entendida apenas como atenção
restrita a determinadas situações que impeçam a livre exploração de alguns, ou à
mera satisfação da sensação de abandono, falta de “carinho”.

Para ilustrar a determinação “em última instância” sobre o processo saúde-


doença do modo como a sociedade se organiza para produzir e reproduzir seus
meios de subsistência, podemos citar a Peste Negra, que dizimou mais de um terço
da população européia durante o Feudalismo. Naquele período histórico, com
restritas trocas comerciais e a população vivendo nos feudos, toda produção
alimentar era estocada nos mesmos, criando condições satisfatórias para a
reprodução de roedores, vetor do patógeno. Ou podemos analisar a tuberculose
como epidemia durante o início do processo de industrialização. Obviamente o
bacilo da tuberculose percorreu a humanidade ao longo da sua história, mas somente
com as condições geradas pelo processo de industrialização, a saber, jornadas de
trabalho de 18 horas, inserção das crianças no processo produtivo, condições de
moradia precárias, sem iluminação e úmidas, que o bacilo encontrou condições de
se reproduzir e superar a barreira imunológica dos trabalhadores.

Podemos também analisar em que período histórico a expectativa de vida da


população dos países centrais praticamente dobrou. Certamente foi durante o
Capitalismo, mas em um momento histórico específico, caracterizado por conquistas
dos trabalhadores, e expresso no Estado de Bem Estar Social, em que os produtos da
civilização minimamente foram universalizados. Para finalizar, poderíamos analisar
em que período histórico existe maior queda da mortalidade infantil nos países
centrais, se foi na criação da vacina contra poliomielite, ou se quando os
trabalhadores conquistaram o direito à licensa-maternidade. Para espanto de alguns,
o maior índice de queda da mortalidade infantil, mesmo somando as quedas
relativas às demais vacinas hoje obrigatórias para o lactente, se dá quando as
trabalhadoras conquistam a licensa-maternidade.

O fato é que nos dias de hoje existem condições objetivas, dadas pelo
desenvolvimento dos meios de produção, para o desenvolvimento máximo do
potencial de cada um, mas esta possibilidade é limitada pelas necessidades das
classes dominantes. Hoje temos máquinas capazes de perfurar rochas e que não
exponham os trabalhadores de forma intensa à inalação da poeira de sílica. Mas por
uma questão econômica, na abertura de túneis, estradas e mineração, persistem os
processos primitivos, expondo os trabalhadores a lesões irreversíveis nos pulmões.
Sabe-se, ainda, através de estudos, que o exame clínico da mama, ou mesmo o auto-
exame, não tem impacto nos índices de mortalidade e sobrevida das pacientes com
câncer de mama, por detectar nódulos em estágios avançados. Sabe-se também que
aquele exame que tem impacto na sobrevida destas mulheres é a mamografia.
Porém, no Brasil, cerca de 90% dos mamógrafos encontram-se à disposição
daqueles que podem consumi-lo, daqueles que podem pagá-lo. E apenas 10% dos
mamógrafos encontram-se disponíveis para aqueles que dependem do Estado.

II. A Assistência à Saúde na contemporaneidade

Como vimos, o direito à sobrevivência e sua possibilidade de realização é


socialmente determinado conforme o modo de produção, o grau de desenvolvimento
das forças produtivas, a inserção dos diferentes grupos no processo de produção em
cada momento histórico e pelo acirramento da luta de classes. Num momento
histórico como o que vivemos, marcado pelo imenso desenvolvimento das forças
produtivas, diante do qual, mantendo-se as relações de exploração, grande parte dos
trabalhadores torna-se dispensável – o capital mata quem o alimenta, ao eliminar os
trabalhadores e inserir máquinas - constitui-se, assim, uma grande massa de
sobrantes, em que a possibilidade de realização da sobrevivência deste grupo está
seriamente ameaçada.

A expressão deste ideário se dá na definição, pelo Banco Mundial, daquilo que


seria a “cesta básica para a saúde”, a que deveria ter direito aquela parcela da
população que não tivesse qualquer possibilidade de consumir livremente os
serviços de saúde.

3. O Sistema Único de Saúde (SUS)

I. Considerações iniciais

O SUS é, sem dúvida, produto de conquistas históricas, mas nos


cabem aqui algumas considerações sobre este processo. Sabemos
que as principais bandeiras cravadas na Constituição Federal de
1988, como universalidade e integralidade na assistência à Saúde
foram gestadas dentro daquilo que se convencionou chamar de
movimento da Reforma Sanitária. Obviamente seria minimalista
dizer que este movimento foi homogêneo na defesa de seus
conteúdos, suas bandeiras e suas práticas políticas. Seria
ingenuidade, todavia, pensar que não houve um projeto
hegemônico, que venceu na defesa de suas bandeiras e sua
prática política.

Este projeto hegemônico se caracterizou principalmente pela


centralidade da luta institucional, que tem suas limitações, já que,
apesar de garantir no papel a universalidade e a integralidade na
assistência à Saúde, a realidade que temos é a de um Sistema de
Saúde para quem pode consumir. E outro Sistema de Saúde
“seletivo” para aquela porção da sociedade sobrante, os
trabalhadores desempregados, mal remunerados,
superexplorados, terceirizados. Isto, pois, avanços ou retrocessos
na universalização dos produtos da civilização dependem da
correlação de forças em determinada sociedade.

Pudemos observar que a correlação de forças na formulação de


um Sistema de Saúde que seja universal e integral encontra-se
desfavorável para os trabalhadores. Como citado acima, nos
encontramos num período histórico caracterizado pela
globalização, ou seja, pela internacionalização da produção e das
finanças, além de um desenvolvimento das forças produtivas
(novas tecnologias, máquinas etc.) que não podem se desenvolver
plenamente, pois não existiria uma demanda solúvel, não existiria
possibilidade de consumir tudo aquilo que pode ser produzido.
Em outras palavras, atualmente temos um processo em que
cada vez mais e mais os trabalhadores são retirados do processo
produtivo com a incorporação de novas tecnologias, resultando
numa dificuldade de gerar valor na esfera da produção; em que as
63 mil corporações possuem 690 mil filiais espalhadas pelos países
periféricos como o Brasil, local em que tem a possibilidade de se
utilizar das melhores disponibilidades de matérias-primas,
facilidades creditais e fiscais, precarização do trabalho e um
movimento sindical desestruturado; em que a especulação, as
taxas de juros, os swaps, bônus e derivativos em geral se
hipertrofiam, na expectativa fictícia de gerar valor; em que temos
a formação dos blocos econômicos como expressão de uma nova
partilha econômica do mundo; em que temos os organismos
multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, como
instrumentos de interesses estratégicos do capital. Para finalizar,
temos forças produtivas suficientes para universalizar os produtos
da civilização para o conjunto da sociedade, mas um terço da
mesma não tem possibilidades de trabalho ou de consumo, sendo
que pela primeira vez na história universal a economia declara que a maioria dos
seres humanos é desnecessária e descartável, pois, na economia contemporânea, o
trabalho não cria riqueza, os empregos não dão lucro, os desempregados são dejetos
inúteis e inaproveitáveis.

II. Neoliberalismo e o SUS

Os reflexos destas transformações econômicas e do trabalho


vão atingir os outros setores da sociedade, dentro daquilo que se
convencionou denominar neoliberalismo. A crise do Capitalismo passa a
ser explicada, pelos neoliberais, pelo excesso de gastos do Estado, pelo poder
excessivo dos trabalhadores e pelos elevados salários, que inviabilizariam o
crescimento da economia. Preconiza-se, assim, um Estado menos interventor, que
reduza substancialmente os gastos sociais ao mínimo necessário para viabilizar a
aceitação social da nova situação. Um Estado forte apenas para romper o poder dos
trabalhadores e no controle do dinheiro, indicando as medidas de estabilidade
monetária como meta suprema dos governos. Para tal, a receita neoliberal passou a
preconizar abertamente a contenção dos gastos com bem-estar, a restauração da taxa
“natural” de desemprego (exército de reserva) e a redução dos impostos sobre os
rendimentos mais altos, além das privatizações.

Sistematizando o conhecimento, devemos entender: a) gastos


sociais mínimos e estabilidade monetária, como sendo o uso do
excedente econômico pelo Estado, obtido pelos impostos pagos
pelos trabalhadores, para manter as altas taxas de juros da dívida
pública, retirando assim investimentos na Educação, Saúde,
Previdência, Moradia etc., precarizando o setor público, e
elaborando o discurso da ineficácia do Estado; b) flexibilização e
precarização das relações de trabalho, como sendo a possibilidade
do aumento da exploração dos trabalhadores; c) privatizações
como sendo a abertura de novos espaços pra valorizar o dinheiro,
como a Educação, a Saúde, a Previdência, as rodovias, as
empresas estatais etc.

Com o argumento da necessidade de equilibrar as contas


públicas, os sucessivos governos após a redemocratização do país
(que redemocratização!!!), tem sistematicamente adotado
medidas no sentido de reduzir as despesas da máquina
administrativa do Estado, levando a um sucateamento e
amputação inconseqüente de serviços e organizações públicas, ao
mesmo tempo em que aumenta o volume de recursos destinados
ao pagamento de juros, de encargos e do principal da dívida
externa e interna.

No campo da saúde, parece que se quer reabilitar, a partir dos


pressupostos elucidados acima, para os pobres, um modelo de
atenção à saúde com centralidade absoluta na atenção básica, com o que
devemos concordar, desde que isto não signifique o impedimento do acesso aos
procedimentos mais complexos sempre que necessários. Negar à população, que
custeia o sistema através dos impostos, o acesso a estes procedimentos é tão nefasto
quanto submeter o sistema ao consumo irracional dos mesmos, atendendo à
voracidade do capital. Concentrar-se na atenção primária não é equívoco técnico, é
opção política oposta à construção de sistemas universais e integrais. Uma opção
política que afirma que para alguns é suficiente o mínimo, o menos
sofisticado, o elementar, o primário, o comum, o geral ou o arcaico
e para os outros, os mais privilegiados, os que têm acesso à
riqueza material e podem pagar pelos serviços de saúde, estes
poderão usufruir do avanço científico e tecnológico, da
sofisticação, da qualificação, da especialização e do moderno.

A dicotomia entre prevenção x cura, atenção primária x atenção


terciária, simplificação x sofisticação, não leva em consideração o
quadro sanitário nacional. Se, de um lado somos campeões em
doenças infecto-contagiosas como a tuberculose, a hanseníase, a
leptospirose, etc. onde a prevenção é fundamental, por outro lado,
as principais causas de morte, incluindo os ricos e os pobres, são o
enfarte, o derrame, a pneumonia, a bronquite, as neoplasias, etc.
doenças que exigem o uso de tecnologia mais onerosa, de
intervenção curativa e de tratamentos mais sofisticados. O
pressuposto de que as doenças infecto-contagiosas predominam
na população pobre e as crônico-degenerativas nos estratos mais
ricos, é falso e leva à ações equivocadas. As duas categorias de
doenças atingem predominantemente os mais pobres, até porque
são a maioria e os mais vulneráveis. Por isto, um pacote de “cesta
básica para a Saúde”, como propõe o Banco Mundial, não dão
conta desta realidade.

No final, quem pode pagar convênio nem sempre está


satisfeito, sofre uma série de restrições e não tem assistência
ampla, exceto a custos altos. E o “restante da população”, sem
condições financeiras, ficará à mercê de uma assistência à saúde
gratuita restrita à assistência básica (primária), sujeito a filas
maiores que aquelas já existentes seja pela falta de vagas para
consultas ambulatoriais e/ou internações, seja pela falta de
funcionários amedrontados com a violência nas regiões dos postos
de saúde, além de desmotivados com os salários e condições de
trabalho. Por sua vez, os diagnósticos, estarão mais atrasados que
o habitual, interferindo no tratamento e prognóstico das doenças.
Tudo isto acontecendo em escalas cada vez maiores enquanto, por
lei (1988), todos os indivíduos têm igual direito à saúde, garantido
pelo Estado.

Não pretendemos fazer apologia da assistência


predominantemente hospitalar, porém, nas condições materiais
em que a sociedade se encontra, é equivocada sua redução
abrupta e isolada, sem o respaldo de mudanças na estrutura
econômica da sociedade. Ademais, as unidades básicas são
insuficientes perto do crescimento urbanopopulacional com o qual
crescem rápida e assustadoramente as más condições de vida.
Onde poderia haver um trabalho integrado dos profissionais da
saúde com a comunidade, através de visitas domiciliares,
controles de epidemias, acompanhamento de pacientes com
tuberculose ou hanseníase, prevenção de doenças da infância,
incentivo ao aleitamento materno, etc., hoje se encontra um
serviço ruim ou a ausência dele: foram fechados, ou tornaram-se
pronto atendimento, ou faltam profissionais.

Os programas de demissões voluntárias, más condições de


trabalho e baixos salários (por exemplo: médico com jornada de 20
horas semanais recebia, ajudaram a esvaziar as unidades. O
desabastecimento de vacinas no Brasil desde 1996,
principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro, já colocou em risco
a saúde de milhares de crianças brasileiras, com doenças que não
deveriam mais existir. A não auto-suficiência na produção de
vacinas e medicamentos devido à falta de investimentos
governamentais em tecnologia já fez com que o Brasil ficasse à
mercê das multinacionais tendo que adquirir produtos
inadequados de países como a Suíça e a Índia. Em 1997, o Brasil
precisava de 200 milhões de doses (vacinas em geral) e, no
entanto, produzia somente 112 milhões.

A crise da saúde também é uma crise da pesquisa na saúde.


Fundações como a
Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz / RJ) e o Instituto Adolpho Lutz
(SP) não recebem
apoio financeiro para projetos de pesquisas ligadas aos diversos
ramos da saúde coletiva - ambiental, ou têm que abandonar os já
existentes. A produção de medicamentos pela estatal CEME
(Central de Medicamentos), embora não tivesse concluído seu
projeto original de desenvolvimento e autonomia na fabricação de
medicamentos ao menos servia diversos municípios brasileiros
carentes, hoje não existe mais. Isto favorece as indústrias
farmacêuticas de capital privado apesar da regulamentação oficial
para produção de medicamentos genéricos.

III. SUS e o financiamento

Ao analisar o gasto federal em saúde após a década de 1980,


podemos afirmar que existem alguns patamares de gastos a
serem destacados neste período. Até a formulação do SUS, os
gastos com saúde eram da ordem de 7 bilhões de dólares ao ano.
No período 1990-1993, quando houve um decréscimo da taxa de
investimento em torno de 16% ao ano, só voltando a crescer em
1993 quando o gasto federal com saúde foi de 8,3 bilhões de
dólares. O ano de 1992 foi o mais crítico com apenas 6,5 bilhões
de dólares. Universalizou-se o Sistema de Saúde e os
investimentos continuaram os mesmos, apesar das taxas de
inflação altíssimas do período considerado.

Nos dois anos seguinte, 1994 e 1995, houve uma pequena


melhora, sendo que neste último ano, o Ministério da Saúde
executou um total de 18,7 bilhões de reais. Outro ano crítico para
a saúde foi em 1996, quando se observou uma variação negativa
de 13,9%, com apenas 14,3 bilhões de reais gastos na saúde. A
partir de1997, recupera-se, em parte, o volume de gasto neste
setor, chegando, em 1999, a 20,3 bilhões de reais (dados do
Ministério da Saúde). Contudo, a evolução dos gastos em saúde,
nestes últimos anos, não acompanhou a inflação do período. Além
disto, o aumento de recursos na saúde, nestes últimos anos, se
destinaram menos para a ampliação ou melhoria dos serviços, e
mais para a amortização da dívida do setor. Em 1997 foram gastos
449,9 milhões de reais para o pagamento da dívida, em 1998, este
valor foi de 551,7 milhões de reais e, em 1999, o volume de
recursos destinados à amortização da dívida do setor de saúde,
chegou a R$ 2,3 bilhões, ou seja, mais de 10% do seu orçamento
(dados do Ministério da Saúde). A lógica do financiamento não
mudou desde então.

Além disto, como já pudemos analisar conjunturalmente, a


política de ajuste econômico, a estabilidade monetária, a
manutenção das altas taxas de juros da dívida pública continuam
sendo a questão central do atual governo, e determinante das
demais políticas, que se materializam de maneira focalizada,
terceirizada e precarizada. Os instrumentos que o Estado e os
diversos governos tem usado para consolidar esta política, entre
outros, podem ser expressos na já citada Desvinculação das
Receitas da União (DRU), que retira 20% do montante arrecadado
pelo Estado que deveria ser investido nas políticas sociais
universalizantes. Aqui também nos cabe atentar para outro
instrumento utilizado, que são as reformas fiscais e tributárias. A
tendência observada nas últimas décadas é a de redução das
taxações sobre os rendimentos mais altos atrelada à
desregulamentação da circulação de capitais. Obviamente se as
arrecadações do Estado não diminuem, quem paga por isso são os
trabalhadores, cada vez mais e mais explorados.

A aprovação de Emenda Constitucional 29, em seu texto


original, que vincula recursos das três esferas de governo para a
saúde e define os gastos em Saúde, pode significar um avanço na
saúde. Mas não significará mudança substantiva no financiamento
deste setor se as políticas econômicas não se alterarem.

Em 1990 o Brasil investiu em recursos públicos, apenas 88


dólares per capita, e
em 1998 115,3 dólares per capita. Nos países centrais o gasto per
capita varia de 800 à 2000 dólares. Em termos de PIB, o Brasil
gasta com saúde pouco mais de 3%, já nos países centrais, este
valor chega a12% do PIB (dados do Conselho Nacional de Saúde e
do Ministério da Saúde).

Em geral, o dinheiro destinado à saúde não chega,


integralmente, aos serviços
Públicos, como observamos com a questão da CPMF. Além disso,
pode-se dizer, que o endividamento externo foi exponenciado nos
anos 90, pois a dívida externa brasileira evoluiu de um total de 64
bilhões de dólares em 1980, para 145,66 bilhões em 1994, no
início do Plano Real, chegando hoje a cerca de 250 bilhões. No
orçamento de 2000, a saúde foi contemplada com 5,99% do
orçamento, ao passo que para pagar a dívida externa (juros,
encargos e amortizações) previu-se cerca de 45% do Orçamento
federal (dados do Senado Federal)

MAIS VERBA PÚBLICA PARA A SAÚDE


CONTRA A DRU
PELA APROVAÇÃO DA EC 29

IV. SUS e os Hospitais

A inserção, hoje, no modelo neoliberal implica muito mais em “não estar


inserido”, isto é, em estar desempregado, que por sua vez implica na falta de poder
de compra mínimo para serem mantidas condições de existência, ou subsistência, ou
sobrevivência, algo que não está ocorrendo. O “Estado mínimo” neoliberal deixa
que a readequação do trabalho resolva-se sob a influência da “mão invisível”.

Os governos neoliberais procuram desempenhar seu papel “mínimo” e


ideológico, em particular na área da saúde que é o setor que nos interessa, fazendo
“desmanchar-se” a estrutura hospitalar construída ao longo do século XX,
dividindo-a e/ou entregando-a as iniciativas privadas, seguindo o modelo
preconizado, defendido e implantado desde a década de 80 nos EUA e Inglaterra.
Antes de esmiuçar como este processo se desenvolveu em um país periférico
como o Brasil, devemos entender que a assistência à saúde, em uma sociedade
caracterizada por relações de exploração, permite realizar o lucro da indústria
farmacêutica e de aparelhos hospitalares, da exploração da força de trabalho em
saúde nos serviços de saúde, como os hospitais, e de criar o espaço de mercado para
os seguros e planos de saúde.

Podemos observar que nos momentos iniciais de estruturação de uma formação


social capitalista, o Capital repassa ao Estado a responsabilidade por reproduzir a
infra-estrutura necessária para a produção. Desde o provimento de energia, a
instalação das redes viárias, dos meios de comunicação etc., até a reprodução da
força de trabalho. Os recursos para esta tarefa que assume o Estado são originários
todos da exploração do trabalhador e são transferidos via impostos pagos, parte
pelos trabalhadores. Uma vez estabilizada esta reprodução, passa a tornar-se
interessante para o capital, que, então, busca retirá-la do jugo do Estado.

Para exemplificar o exposto acima, vamos analisar como se estruturou a rede de


hospitais privados no país e os ataques que os serviços públicos vêm sofrendo com a
implantação das políticas neoliberais. A rede hospitalar privada, desde 1945, sempre
foi superior à rede estatal. Em 1945, a porcentagem de leitos privados representava
55% dos leitos totais, enquanto em 1975, os leitos privados passam a representar
quase 68% dos leitos totais. Atualmente, o setor privado ocupa quase 71% dos leitos
totais.

Convém ressaltar que a expansão da rede hospitalar privada, principalmente


durante os governos militares, ocorreu financiada com recursos públicos, através da
criação dos denominados Plano de Pronta Ação (PPA) e do Fundo de Apoio ao
Desenvolvimento Social (FAS). Como primeira constatação, podemos sistematizar
da seguinte maneira: a rede hospitalar no país é predominantemente privada, fruto
de um processo histórico de privatização, e foi estruturada hegemonicamente com
financiamento público, pago pelos trabalhadores.

Cabe agora analisar a forma como as redes hospitalares privadas relacionam-se


com o Estado. Esta relação pode se dar através da prestação de serviços das redes
privadas ao paciente que é incapacitado de consumir os produtos da assistência à
saúde. Isto ocorre principalmente com aquelas empresas médico-hospitalares
chamadas segmento de baixa tecnologia, que não conseguiram se modernizar para
disputar o consumo daqueles pacientes que podem pagar, diretamente ou através dos
planos de saúde. A maior expressão disso seriam as “Santas Casas de Misericórdia”.

Esta situação traz uma série de problemáticas na universalização da assistência à


Saúde. Estas empresas médicas, para obterem seus lucros, dependem
substancialmente dos recursos públicos repassados pelo Estado para a saúde, através
das políticas de saúde. Num exemplo drástico desta situação, poderíamos citar a
cidade de Natal, que passa por uma crise sem precedentes na Saúde e que cerca de
70% dos recursos públicos destinados à Saúde do município destinam-se a este tipo
de empresa médica.

Numa conjuntura de implantação das políticas neoliberais, em que os recursos


públicos para as políticas sociais, em especial a saúde, são cada vez menores,
podemos imaginar a qualidade dos serviços de saúde nestes hospitais privados.
Além disso, estas empresas médico-hospitalares definem os procedimentos que
prestarão ao Estado, dando preferência obviamente àqueles procedimentos mais
rentáveis. Com isso, aquela parcela da população correspondente a 80%, incapaz de
consumir assistência à Saúde, diretamente ou através dos planos de saúde, sofre
sérias restrições de acesso aos serviços de saúde secundários e terciários, limitando-
se seu acesso à “cesta básica para a saúde”.

Enquanto isso, aquelas empresas médico-hospitalares que se modernizaram,


centralizando capital, denominadas segmento de alta tecnologia, se incorporam cada
vez mais à Saúde Suplementar, prestando serviços àqueles que podem pagar.
Poderíamos exemplificar como modelo o Hospital Sírio Libanês, em São Paulo
Analisamos acima, de maneira superficial, o movimento das empresas médico-
hospitalares até os dias atuais. Cabe agora analisar mais profundamente o papel do
Estado neste processo.

A reforma do sistema hospitalar e a estruturação de um Sistema focalizado têm


seu ápice nas mudanças propostas pelo Ministério da Administração e Reforma do
Estado (MARE - 1995), seguindo as cartilhas impostas pelos organismos
multilaterais como o FMI e o BM. Desde então, para resolver o problema da procura
por serviços hospitalares, o Ministério da Saúde recomendava a prática de
consórcios intermunicipais e interestaduais e a transformação de hospitais estatais
em organizações sociais, isto é, entidades públicas não estatais de direito privado,
com autorização legislativa para celebrar contratos de gestão com o poder executivo
e assim participar do orçamento.

Uma tendência atual dos hospitais públicos, através do governo Lula, é a


transformação em fundações estatais de direito privado, possibilitando autonomia
administrativa e financeira. Temos um processo, portanto, de privatização da rede
hospitalar estatal que ainda sobrou. Uma privatização fruto das necessidades de
abrir novos espaços para valorizar o capital.

Assim, o “mau gerenciamento” e a falta de recursos criam possibilidades do


governo transferir, em parceria ou não, as responsabilidades com a saúde pública às
“organizações sociais” -entidades privadas- ou às fundações estatais de direito
privado, que passam a assumir a direção e determinar os recursos para saúde. No
plano ideológico, estas privatizações são justificadas pela ineficácia do público e a
necessidade de novos modelos de gestão.

O discurso neoliberal defende, como já colocado, a


autoregulação do mercado através da competitividade, da boa
administração (managed care), e reutiliza o princípio liberal do
individualismo como fundamento para a construção de uma nova
sociedade mais competitiva, sob argumento de que o
“autoritarismo estatal” tornou a sociedade passiva e habituada
com a improdutividade do governo. Portanto, é uma sociedade que
também tem culpa e onde os pobres são culpados pela pobreza; os
desempregados pelo desemprego; os corruptos pela corrupção; os
favelados pela violência urbana; os sem terras pela violência no campo;
os pais pelo mau rendimento escolar dos filhos; os professores pela
péssima qualidade dos serviços educacionais.

A redução do papel do Estado na prestação de serviços públicos, em qualquer


esfera da sociedade, respalda-se, segundo seus teóricos e dirigentes, na necessidade
de transformar as instituições estatais em organizações mais competitivas e,
portanto, que sigam as leis de mercado. Entretanto, como equacionar assistência à
saúde e lucro?

Modelos como do governo de Tatcher (Inglaterra) que implantaram um modo de


assistência pública - denominado “quango”: quasi autônomas non- governamental
organizations -, têm servido de referência ou, guia, para os governantes, inclusive
brasileiros. Hoje são mais de 5.000 destas organizações, cuja receita é da ordem de
70 bilhões de dólares, onde os quangocratas são geralmente nomeados por
interesses políticos ou amizade, não se sentem servidores públicos e, as quango,
são menos sujeitas ao controle externo. Com isso, os problemas de nepotismo, uso
de interesses pessoais, má gestão, inadequada aplicação de recursos e, mesmo a
corrupção, se mantém.

Uma das primeiras conseqüências das políticas brasileiras de privatização no


setor da saúde pública (“políticas de parceria” - década de 90), nos níveis estadual e
municipal, e em particular na capital paulista foi o superfaturamento. As
cooperativas privadas ou as organizações sociais- também privadas -, tinham
possibilidade de comprar medicamentos sem licitação pública, superfaturar despesas
e escapar da fiscalização dos conselhos de saúde.

O resultado já se sabe: desmonte das redes hospitalares estatais e a submissão da


assistência terciária à lógica de acumulação do capital. Segundo dados do IBGE
(1999), houve uma redução de leitos para internações no Brasil entre 1992-1999 de
27%: de 544.357 baixou para 484.945. Segundo a recomendação da OMS, que
habitualmente não é seguida pelo Banco Mundial naquilo que não interessa ao
mercado, deve haver 4 leitos /1000 habitantes. Portanto, um déficit de mais de 100
mil leitos no Brasil. Uma política que chega aos limites da crueldade:
quer privatizar até a dor e fazer da doença e do sofrimento
humanos um negócio lucrativo

Desta forma, o Sistema de Saúde consolida-se como um sistema caracterizado


pelo estabelecimento de um pacote de benefícios padrão (“cesta básica para a
saúde”); limitação do acesso à serviços de atenção terciária para 80% da população;
controle da oferta de serviços públicos em função dos custos; adoção de formas de
co-pagamentos; favorecimento à iniciativa privada; incentivo à concorrência na
prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares, envolvendo indistintamente os
setores público e privado e; do papel regulador do Estado, com o deslocamento de
atribuições para entidades de direito privado. Favorece-se assim a acumulação de
capital por um segmento da população restrito, e a falta de acesso àquilo que já foi
produzido pela humanidade na assistência à saúde para a maioria da população.

V. SUS e os Hospitais Universitários


Os Hospitais Universitários cumprem um importante papel na assistência à
Saúde da população, na Educação em Saúde e na produção de conhecimentos, já
que está diretamente relacionado à Universidade. São alvo, como os outros setores
estatais, das políticas de precarização dos serviços públicos e de privatização dos
direitos sociais, transformados em mercadorias para quem pode consumir.

A realidade dos Hospitais Universitários, portanto, não difere da realidade da


assistência à Saúde no país. O resultado deste processo culmina naquilo que
conhecemos como “crise dos hospitais universitários”, que tem mobilizado
estudantes e trabalhadores na defesa da qualidade e da administração pública, com o
financiamento adequado para os processos educacionais (diante da falta de docentes,
preceptores e locais adequados para a Educação), assistência à Saúde e produção de
conhecimento nestes hospitais.

A privatização deste setor tem-se dado principalmente através da terceirização


da gestão, com as Fundações Privadas de Direito Privado, ditas “Fundações de
Apoio”. Estas empresas abrem possibilidade, através da gestão dos recursos
públicos, de criar novos espaços para se valorizar o capital, precarizam as relações
de trabalho, além de abrir condições para a apropriação privada dos conhecimentos
produzidos no interior da Universidade Pública, que corresponde a 80% do
conhecimento produzido em nossa sociedade. Um vasto campo para as corporações
ligadas à produção de medicamentos, alimentos, vacinas e etc. Além disso, as
fundações cobram uma taxa para administrar os recursos públicos, que corresponde
a aproximadamente 9% do total que administra.

No caso do Hospital das Clínicas ligado à Faculdade de Medicina de Ribeirão


Preto da USP, gerido pela fundação FAEPA, que recebe do estado de São Paulo e
do governo federal aproximadamente o montante de recursos que o município de
Ribeirão Preto arrecada, podemos imaginar o montante de dinheiro que fica retido
nestas empresas.

É essencial analisarmos mais precisamente o que vem ocorrendo nos Hospitais


Universitários. Para isso, vamos utilizar como campo de estudo o complexo
Hospitalar ligado ao campus de São Paulo da USP (HC-USP) e ao campus de
Ribeirão Preto da USP (HCRP-USP), geridos através deste modelo fundacional. Os
complexos hospitalares das “Clínicas”, patrimônio público construído
historicamente com recursos públicos, provindo dos trabalhadores, atende
anualmente milhões de pessoas. Em 1996 foram 931 mil consultas ambulatoriais, 30
mil cirurgias, 57 mil internações no HC-USP, enquanto em 2007 foram 600 mil
consultas, 33 mil internações no HCRP-USP.

Entretanto, no bojo das medidas neoliberais, está o atendimento desigual à


saúde, privilegiando os que podem pagar (convênios e particulares). Em geral, nos
serviços públicos de saúde existem placas indicando: pacientes “SUS” e pacientes
“Particulares e Convênios”. E o privilégio vai mais além: há prioridade no
atendimento de quem paga (fura-fila), e até exclusividade nos quartos de internação.

Os dirigentes – médicos ou não - afirmam “que o mercado dita as regras do


jogo”, embora na constituição de 1988 conste que a assistência à saúde no SUS deva
ser prestada com igualdade, sem preconceitos e privilégios de qualquer espécie.
Uma das afirmações contraditórias desses dirigentes refere-se à privatização como
instrumento para aumentar a receita. Mas uma análise minuciosa mostra claramente
quanto são pequenos os recursos provenientes dos convênios de planos de saúde ou
de outras empresas privadas: em 1995 o Hospital das Clínicas (H. C. USP) recebeu
238 milhões de reais, enquanto os convênios ou outras empresas “pagaram” pelos
serviços prestados, 1,17 milhão de reais, o que corresponde a 98% de verbas
públicas no HC-USP. Dados de 2007 do HCRP-USP mostram tendência
semelhante, sendo que 97,5% das receitas provem das verbas públicas, entretanto, o
privilégio no atendimento é do paciente particular ou conveniado.

Pode-se afirmar, assim, que nenhuma mudança efetiva foi adotada para impedir
o progressivo desmanche da assistência à saúde gratuita universal, igualitária. Sabe-
se, ainda, que os Hospitais Universitários possuem papel privilegiado na assistência
à Saúde de alta densidade tecnológica, que necessitam de assistência mais
demorada, como os transplantes, pacientes com câncer, medicamentos excepcionais,
pacientes com Aids etc. Estes procedimentos pouco interessam ao setor privado,
como os planos de saúde, já que são pouco rentáveis. Assim, toda população acaba
por usar os serviços destes hospitais com financiamento público, podendo ou não
consumir um plano de saúde. Sabidamente, há décadas, o respaldo à qualidade da
assistência à saúde vem da integração entre ensino-pesquisa e assistência de várias
áreas.

Outras colocações importantes a serem feitas, do papel que as Fundações


possuem nos Hospitais Universitários, dizem respeito à quebra do regime de
dedicação integral à docência e à pesquisa (RDIDP) nas Universidades Públicas, já
que permitem que os docentes deixem de se dedicar à carreira acadêmica
exclusivamente para se dedicar aos atendimentos particulares e aos convênios. Além
disso, podemos pontuar a possibilidade de organização de “cursos pagos” por parte
destas Fundações, que utilizam o prestígio destas instituições públicas junto à
sociedade, o corpo docente das mesmas, o espaço público, e o conhecimento
produzido coletivamente com financiamento público, para promover cursos pagos
de “aprimoramento profissional”, “especializações” nas diversas áreas da saúde etc.

O que hoje ocorre com o HC-USP e com o HCRP-USP é resultado da contínua


implantação do conjunto de políticas neoliberais (“anti- sociais”) em curso desde a
década de 70 e avalizada pelos sucessivos governos. Trata-se, mais uma vez, de um
“novo” governo apenas com uma “roupagem” diferente, isto é, ele mantém uma
linha de ação que é radicalmente a mesma, com desemprego, alteração nas leis
trabalhistas e do direito à aposentadoria, - interferentes diretos no poder aquisitivo
dos trabalhadores. Como já ressaltado, o financiamento para os Hospitais
Universitários segue a mesma tendência do financiamento para a assistência à Saúde
em geral.

Ademais, quando o lucro não é o esperado pelas empresas, sabemos quem paga
a conta com a socialização dos prejuízos. Foi o que aconteceu com a Fundação que
se apoiava no HC-USP, Fundação Zerbini, cuja dívida socializada com os
trabalhadores chegava a 200 milhões de reais em 2006, ano em que estas
informações chegaram até a grande mídia.

POR UMA GESTÃO 100% PÚBLICA DOS HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS


VI. SUS e os Modelos de Gestão

a) O arcabouço teórico a partir das necessidades do Capital

Um importante marco que sistematiza a forma como se daria a implementação


do neoliberalismo no Brasil é o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado,
formulado por Bresser Pereira, que estava à frente do Ministério da Administração
Federal e Reforma do Estado (MARE), seguindo as diretrizes dos organismos
multilaterais, e foi aprovado em 1995 pelo então presidente da república, Fernando
Henrique Cardoso.

De modo geral, o Plano Diretor pregava: (1) o ajustamento fiscal duradouro; (2)
reformas econômicas orientadas para o mercado, que, acompanhadas de uma
política industrial e tecnológica, garantam a concorrência interna e criem as
condições para o enfrentamento da competição internacional; (3) a reforma da
previdência social; (4) a inovação dos instrumentos de política social,
proporcionando maior abrangência e promovendo melhor qualidade para os serviços
sociais; e (5) a reforma do aparelho do Estado, com vistas a aumentar sua
governança, ou seja, sua capacidade de implementar de forma eficiente políticas
públicas.

Os chamados setores não exclusivos é o que mais chama a atenção, pois a


principal caracterização que se faz é de que esses setores são de responsabilidade
pública, mas não necessariamente estatal. Há uma diferenciação entre os conceitos
de público e estatal. Com isso, abre-se a possibilidade do processo de terceirização,
um processo de transferência das responsabilidades do Estado para o setor privado
no que tange às áreas não exclusivas, que em geral são as áreas sociais.

b) Organizações Sociais (OSs)

O processo de terceirização da administração pública é uma das principais


diretrizes no que tange à implantação das políticas neoliberais na estrutura do
Estado. Uma vez que no âmbito institucional-legal não é possível uma privatização
stricto sensu, com transferência de propriedade para o setor privado, há pelo menos
a transferência da responsabilidade administrativa, sendo que o financiamento
continua sendo público.

O instrumento, pelo qual se utilizam os governos para implementar o processo


de privatização, surge por meio dessas Organizações Sociais. Segundo o Plano
Diretor da Reforma do Estado entende-se por organizações sociais as entidades de
direito privado que, por iniciativa do Poder Executivo, obtêm autorização legislativa
para celebrar contrato de gestão com esse poder, e assim ter direito à dotação
orçamentária.

As Organizações Sociais estão regulamentadas pela Lei Federal nº 9.637, de 15


de março de 1998, em conjunto com a aprovação do Plano Nacional de
Publicização. No Estado de São Paulo a Lei Complementar nº 846, de 04 de junho
de 1998, qualifica as entidades como Organizações Sociais. Estava criado o
arcabouço jurídico necessário para a implementação das OS’s e para o avanço do
processo de terceirização no Brasil. Isto se afirma na medida em que, quando
analisamos o orçamento do Estado destinado à saúde, especificamente em relação à
assistência ambulatorial e hospitalar, destaca-se o montante atualmente destinado às
Organizações Sociais de Saúde (OSS), que atinge a ordem de grandeza de um bilhão
de reais de gasto para o ano de 2006.

No âmbito federal, a legislação que cuida das Organizações Sociais (Lei nº


9.637, de 15 de março de 1998) sofre questionamento quanto à sua
constitucionalidade, por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em
27/11/1998 (ADIN 1923), pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal.

A participação popular é outra diretriz constitucional para a execução das ações


e serviços de saúde, sendo conhecida de modo geral como Controle Social, tendo
nos Conselhos de Saúde (Nacional, Estaduais e Municipais) os órgãos do controle.
Em relação às OS´s, ambos têm atualmente posição contrária à sua utilização para a
gestão da saúde. Segue a deliberação número 001 de 10 de Março de 2005 do
Conselho Nacional de Saúde (íntegra no anexo, documento nº 01):

a) Posicionar-se contrário à terceirização da gerência e da gestão de serviços e de


pessoal do setor saúde, assim como, da administração gerenciada de ações e
serviços, a exemplo das Organizações Sociais (OS), das Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) ou outros mecanismos com
objetivo idêntico, e ainda, a toda e qualquer iniciativa que atente contra os
princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).
b) Estabelecer o prazo de 12 (doze) meses, a partir desta data, para que os órgãos
de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) adotem medidas para o
cumprimento do estabelecido no item .a. desta Deliberação.

No estado de São Paulo temos um laboratório para estudar os impactos das OSs,
já que sucessivos governos têm implementado uma política ofensiva de privatização
do patrimônio público. Somando-se o ajuste fiscal para pagamento da dívida pública
e o arrocho das políticas sociais temos um tripé que sustenta a política dos governos
no último período, caracterizada pela entrega do patrimônio público para o capital
privado.

O mais importante processo de transferência de responsabilidades para o setor


privado no Estado de São Paulo, no que tange à saúde, é a entrega da gestão de
hospitais públicos para as OS´s. Mas o governo estadual tem lançado mão de outra
estratégia para entregar as responsabilidades do Estado com saúde para o setor
privado: inúmeros hospitais públicos sob administração direta tiveram diversos
serviços que exerciam terceirizados. Desde os serviços menos complexos, como
segurança e limpeza, até serviços mais complexos, como a radiologia e o
atendimento médico, estão sendo prestados por empresas terceirizadas nos hospitais.

Vários estados (Tocantins, Rio de Janeiro, Bahia e Roraima) também passaram a


transferir serviços de saúde a entidades terceirizadas tais como cooperativas,
associações, entidades filantrópicas sem fins lucrativos (ou com fins lucrativos),
entidades civis de prestação de serviços, etc. Assim, por meio de contratos de gestão
ou termos de parcerias, transferiu-se serviços diversos ou unidades de serviços de
saúde públicos a entidade civil, entregando-lhe o próprio estadual ou municipal,
bens móveis e imóveis, recursos humanos e financeiros, dando-lhe autonomia de
gerência para contratar, comprar sem licitação, outorgando-lhe verdadeiro mandato
para gerenciamento, execução e prestação de serviços públicos de saúde4, sem se
preservar a legislação sobre a administração pública e os princípios e diretrizes do
Sistema Único de Saúde

Ainda, há a questão trabalhista que não pode ser afastada, na medida em que as
questões atinentes à terceirização, dentro das Organizações Sociais, ocasionam
graves prejuízos às condições de trabalho, caracterizados por desvio de função,
sobrecarga de serviços e alta rotatividade quanto às empresas terceirizadas.

A terceirização também implica um processo de precarização do trabalho, uma


vez que as funções desempenhadas por servidores públicos serão desempenhadas
por profissionais contratados por empresas privadas, que possuem menos direitos
trabalhistas em relação ao funcionário público. A longo prazo isso pode inclusive
acarretar diminuição da qualidade do serviço prestado por conta das condições mais
precárias sob os quais os trabalhadores terceirizados são obrigados a trabalhar.

As terceirizações também não estão submetidas a algumas regras da


administração pública como a lei de licitações. Esses mecanismos podem facilitar o
desvio dos recursos públicos, que foi o teor de uma série de denúncias recebidas
sobre os processos de terceirização nos hospitais da administração direta:
superfaturamento de contratos, prestação de serviço aquém do contratado,
favorecimento individual, dentre outros.

Para finalizar, cabem algumas sistematizações das conseqüências das OSs:


Transferência de "poupança pública" ao setor privado lucrativo; Repasse de
patrimônio, bens, serviços, servidores e dotação orçamentária públicos a empresas
de Direito Privado; Desregulamentação do Sistema Público de compra de bens e
serviços (Lei 8.666/Lei das Licitações); Os Servidores Públicos continuarão
vinculados aos seus órgãos de origem, mas integrarão a um "Quadro em Extinção";
Fim do Regime Jurídico Único (praticamente não haverão mais servidores públicos
nos Serviços Sociais Competitivos). O regime de contrato de trabalho será o da
C.L.T; Fim do Concurso Público no acesso aos Cargos Públicos;
Desprofissionalização dos Serviços e dos Servidores Públicos; Flexibilização do
contrato de trabalho, das conquistas trabalhistas, inclusive da organização sindical.

CONTRA OS MODELOS PRIVATIZANTES DE GESTÃO

c) Fundações Estatais de Direito Privado

Aparentemente movido pela necessidade de resolver a situação jurídica ilegal de


alguns hospitais do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, o governo federal,
através do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - MPOG e do
Ministério da Saúde - MS elaborou projeto de lei instituindo fundações estatais de
direito privado, cuja origem remonta ao decreto-lei 200 da ditadura militar e à
emenda constitucional 19 de 1998.

Na apresentação do documento, o Secretário de Gestão Walter Correia da Silva


informa sobre a natureza do trabalho e a época de seu início: “... a SEGES deu
início em 2005 a uma série de estudos e análises críticas sobre as atuais formas
jurídico-institucionais da administração pública, com o objetivo de propor
ajustamentos que conduzam a um arcabouço legal mais consistente e afinado com
os novos paradigmas e desafios impostos à gestão pública sem, contudo, fugir dos
limites estabelecidos pelo ordenamento do direito público brasileiro. Nesse contexto
é que nasce o Projeto Fundação Estatal – da necessidade imperativa de, a luz das
disposições constitucionais, produzir direito novo para dotar o Governo de agilidade
e efetividade no atendimento das demandas sociais do País”

Aparentemente, já que este projeto surge no MPOG algum tempo depois do


Banco Mundial elaborar novo relatório sobre a assistência à Saúde no país. Neste
relatório tínhamos os principais apontamentos: 1. Desenvolver e introduzir arranjos
organizacionais que dêem às unidades de gestão níveis crescentes de autonomia e
autoridade decisória sobre a gestão dos recursos, e ao mesmo tempo
responsabilizando-as pelo seu desempenho. Porém, a velocidade em que tal
autonomia pode ser concedida deve ser calibrada com a capacidade demonstrada de
cada unidade, e a capacidade do órgão central (por exemplo, a secretaria de saúde)
de monitorar e controlar seu desempenho. 2. Aplicar mecanismos para fortalecer a
responsabilização dos gestores, como contratos de gestão que forçam os gerentes a
focar em objetivos específicos e resultados mensuráveis. Esse instrumento poderia
servir como um mecanismo básico para o planejamento, o monitoramento e a
avaliação em ambos os casos. 4. Consolidar as transferências federais e vincular
aumentos de recursos à melhora no desempenho, desta forma recompensando o bom
desempenho e penalizando o desempenho ruim (dada a importância do nível
mínimo de atendimento para todos, o desempenho ruim não significaria
necessariamente uma redução automática dos recursos). 6. Fortalecer e
profissionalizar a capacidade gerencial.

Desde a apresentação vê-se o uso de argumento similar ao que fundamentou a


contra-reforma estatal gerenciada por Bresser Pereira: novos paradigmas, novos
desafios, agilidade e efetividade para induzir mudanças em algo que funciona de
modo ruim ou insatisfatório. Mas, no caso de uma reforma do Estado, a avaliação do
insatisfatório não é apenas e tão somente de caráter ‘técnico’ porque sempre
atenderá as demandas da classe que a tornou uma necessidade. Dito de modo
diverso, uma reforma do Estado pode operar na direção de aumentar os direitos da
força de trabalho ou pode aprofundar as exigências de acumulação do capital e,
neste caso, será uma contra-reforma do Estado por afetar os interesses e direitos da
força de trabalho.

Todavia, quando o capital imprime sua lógica para a totalidade da vida social
também o Estado tem de ser contra-reformado para que as instituições e as políticas
sociais que garantem os direitos dos trabalhadores se transmutem em negócios que
promoverão lucratividade para o capital.

O MPOG adota as concepções de Bresser Pereira e do BM sobre a natureza das


funções do Estado, para o qual o Estado atua de forma concorrente com a iniciativa
privada nas áreas da saúde, saúde, educação, cultura, esporte e pesquisa. O fetiche
do mercado atinge o seu ápice quando ao Estado se quer reservar o papel de
concorrente dos serviços privados e se elege a lógica empresarial – convém,
lembrarmos, é a do lucro! – para definir eficácia e eficiência na ação estatal que, na
consecução de políticas sociais, opera com lógica inteiramente diversa ao da
empresa privada.

As políticas sociais procuram viabilizar o bem-estar da maioria que não pode


encontrá-lo no mercado porque ali somente alguns poderão ter o lucro e a ‘proteção
social’ como mercadoria na forma de serviços privados de educação, saúde,
previdência, lazer, etc. Aos que vendem e aos que sequer conseguem vender sua
força de trabalho por não encontrarem empregos, a única proteção social é aquela
oriunda da ação do Estado pela via das políticas sociais.

O projeto das FEDP avança na precarização das relações de trabalho, já que o


vínculo da CLT abre várias possibilidades dentro da lógica da iniciativa privada:
aumentar a idade e o tempo de serviço requeridos para a aposentadoria, restrição dos
tetos de aposentadorias, ou seja, é possível fixar aposentadorias inferiores aos
vencimentos dos trabalhadores da ativa, e os insatisfeitos que complementem sua
aposentadoria capitalizando-se (este é bem o termo) com a previdência privada. O
substitutivo do deputado Pepe Vargas é claro: § 5 do artigo 2: “é facultado à
fundação estatal de direito privado instituir, nos termos da lei, regime de previdência
complementar”. Aqui está subjacente novamente a ofensiva do governo contra os
direitos previdenciários. A imposição do vínculo pela CLT é orientada pela
concepção da previdência como deficitária, a ser sustentada apenas pela
contribuição dos próprios trabalhadores e não de outras fontes. Abandona-se o
conceito da seguridade social solidária e os trabalhadores são vistos apenas como
“recursos humanos”, a exemplo do que acontece nas empresas privadas, nas quais
todos os recursos, inclusive os trabalhadores, são mercadorias para a produção de
mercadorias.

O projeto de lei permite que cada fundação, como ente autônomo, tenha seu
plano próprio plano de cargos, carreiras e salários. Além da segmentação da base
sindical e da fragilização da organização dos trabalhadores, para os gestores é
também um problema administrar pessoal cujos salários são diferenciados para a
mesma função.

A Fundação Estatal estará vincula ao órgão ou entidade para qual finalidade foi
criada, submetendo-se à esfera de governo que a criou: Poder Federal, Estadual ou
Municipal. A FEDP é a personificação de um patrimônio público segundo as regras
do direito privado para prestar serviço de interesse social. Há, portanto,
transferência de patrimônio público para pessoa jurídica de direito privado. Ocorre
ainda, transferência de recursos públicos por meio de Contrato de Gestão, sendo que
a fundação poderá obter recursos a partir da prestação de serviços em sua área de
atuação.

Como a FEDP não compõem o Orçamento Geral da União, não obedece à Lei de
Execução Orçamentária. Ou seja, a receita pública que recebe pode ser utilizada da
maneira que bem entender sua administração, não havendo destinação definida.
Ademais, as Fundações Estatais devem obedecer à Lei de Licitações. No entanto, a
licitação na Fundação Estatal não se dá da mesma forma que na Administração
Direta, havendo regimento próprio para a licitação nas Fundações Estatais, podendo
cada uma ter regimento diferente.
O estatuto jurídico das fundações estatais de direito privado impede que seja
exercido o controle público da forma plena. Vejamos: “O Conselho Curador (ou de
Administração) é o órgão de direção superior, controle e fiscalização da Fundação
Estatal. É órgão colegiado, com representação majoritária do governo, sendo
presidido pelo titular do órgão. Conta entre seus membros com a participação de
representantes da sociedade civil e dos empregados. Seus membros podem ou não
ser remunerados, de acordo com o que dispuser a lei ou os estatutos”.

Esta possibilidade de remuneração dos integrantes deste Conselho Curador não


aparece no projeto de lei do deputado federal Pepe Vargas. Mas não é vedada. Passa
em silêncio. Trata-se de um mecanismo que pode ser usado como eficiente
cooptação de lideranças, como está sendo demonstrado pelos exemplos em vigência.

“A Diretoria Executiva é responsável pela gestão técnica, financeira,


patrimonial, administrativa e assistencial da Fundação. Seus membros são ocupantes
de cargos de confiança. O Conselho Fiscal é órgão de controle interno, responsável
pela fiscalização da gestão econômico-financeira. O Conselho Consultivo Social
tem caráter consultivo, subordinado ao Conselho Curador. Constituído por
representantes da sociedade civil, aí incluídos usuários e outras pessoas físicas ou
jurídicas com interesse nos serviços da entidade”.

Tanto o Conselho Nacional de Saúde quanto a XIII Conferência Nacional de


Saúde foram contrários ao projeto da FEDP, e mesmo assim o ministro Temporão
deu declarações de que irá em frente e disse que a Conferência é apenas consultiva e
não deliberativa.

CONTRA AS FUNDAÇÕES ESTATAIS DE DIREITO PRIVADO

VII. SUS e os PLANOS DE SAÚDE: QUEM PAGA A CONTA?

Os planos de saúde consolidam um Sistema de Saúde desigual para os diferentes


segmentos da sociedade, juntamente com a precarização dos serviços públicos, as
terceirizações e a privatização dos direitos sociais. Ou seja, aqueles que podem
consumir estes serviços, que hoje representa 20% da população, pagam; aqueles que
não podem consumir estes serviços não têm acesso. Além disso, os planos de saúde
representam um importante segmento capaz de gerar lucro, que é sua prioridade
para sobreviver na concorrência entre as grandes empresas de saúde.

Para dimensionar o exposto acima, elencamos dados que constam no estudo


promovido pelo CREMESP e IDEC, denominado “Planos de Saúde: nove anos após
a lei 9.656/1998”, mostra que os gastos familiares diretos com saúde, somado o
gasto com os planos de saúde, atingiram o percentual de 56,16% dos gastos com
saúde nos anos de 2002 e 2003 em relação ao total de gastos com saúde no país. Os
gastos públicos, que incluem todo atendimento realizado pelo SUS, que deveria ser
universal, não ultrapassam os gastos com o setor privado, representando apenas
43,85% dos gastos totais com a saúde.

Uma análise mais minuciosa nos mostra que todos pagam para que alguns
possam consumir. Segundo dados do Ministério do Planejamento (2006), no ano de
2005, o Estado deixou de arrecadar através de deduções e renúncia fiscal o
equivalente a quase 3 bilhões de reais, que representa quase 7% do montante de
dinheiro movimentado pelos planos de saúde. Isso sem contar os mais 1 bilhão de
reais, também em 2005, que o Estado deixou de arrecadar, também através de
deduções e renúncia fiscal, daquelas empresas médicas de baixa tecnologia,
chamadas eufemisticamente hospitais filantrópicos (Santas Casas de Misericórdia).

Entretanto, há de se considerar que nem tudo são rosas para aqueles que
consomem os planos de Saúde. Objetivando o lucro, estas empresas impõem uma
série de restrições na assistência à saúde, colocando em riso a sobrevivência do
paciente e prejudicando os trabalhadores em saúde. Como caso drástico, usaremos o
exemplo do documentário “Sicko”, escrito e dirigido pelo cineasta Michel Moore,
que retrata a situação do Sistema de Saúde nos EUA, em que a saúde consolida-se,
através dos planos de saúde, como espaço essencial de acumulação de capital:

“Meu nome é Linda Pino. Estou aqui, primeiramente, hoje para fazer uma
confissão pública. Na primavera de 1987, como uma médica, eu neguei a um
homem uma operação necessária para salvar sua vida e isso que causou sua morte.
Nenhuma pessoa e nenhum grupo me culparam por isso, porque, de fato, o que
eu fiz foi salvar US$500.000,00. E ainda, por este ato em particular, garantiu
minha reputação como uma boa diretora médica e assegurou meu contínuo avanço
no campo do plano de saúde.
Eu deixei de ganhar uns centavos de dólares por semana como uma revisora
médica, para ter uma renda de 6 dígitos como uma médica executiva. E eu tinha um
objetivo principal que era usar meu conhecimento médico para o benefício
financeiro da organização em que eu trabalhava.
E me diziam repetitivamente que eu não estava negando cuidado, eu estava
negando pagamento. Eu sei como os planos de saúde machucam e matam
pacientes. Então estou aqui para dizer sobre o trabalho sujo dos planos de saúde e
eu sou assombrada pelos milhares de papel no qual eu escrevi em uma palavra
mortal: NEGADO.
Obrigada”.

No Brasil, observamos que a tendência dos planos de saúde segue a mesma


lógica. Podemos perceber esta tendência com alguns dados objetivos, como o fato
dos planos coletivos, mais precarizados que os planos individuais, pois possuem um
intermediário no contrato (uma empresa é a intermediária dos trabalhadores),
crescem substancialmente e hoje representam quase 80% dos planos de saúde. Os
contratos coletivos são omissos em relação à demissão e aposentadoria dos
trabalhadores, além de ser omisso em relação à rescisão unilateral dos contratos e a
reajustes. Na tabela de preços de 2007 da Medial Saúde, a mensalidade do plano
individual mais completo é de R$767,75, enquanto no plano coletivo cai para
R$351,17. Os planos coletivos sofrem menor controle regulatório por parte da
agência reguladora da saúde suplementar, a Agência Nacional de Saúde (ANS).

Grande parte dos contratos firmados com os planos de saúde, principalmente


aqueles anteriores à lei 9.656/1998, que representam quase 37% dos contratos,
trazem cláusulas de inúmeras doenças, por meio de conceitos vagos, como “doenças
crônico-degenerativas”, “doenças preexistentes”, “doenças infecto-contagiosas” etc.
Segundo estudo da Faculdade de Medicina da USP, as doenças mais excluídas são,
nesta ordem: câncer, doenças cardiovasculares, Aids, meningite, acidentes e causas
externas, cirrose hepática, insuficiência renal, hérnia, diabetes e doenças congênitas.
Já os insumos mais negados são: transplantes, quimioterapia, radioterapia, órteses e
prótese, implantes, hemodiálise, oxigenoterapia, fisioterapia etc.

Além destas restrições de cobertura, que interferem no trabalho em saúde, temos


o aumento do custo dos planos de saúde de acordo com a faixa etária do paciente, e
a fragmentação da assistência, que oferece cinco tipos diferentes de planos, de
acordo com a capacidade de consumir dos trabalhadores. Os planos de saúde,
ademais, aumentam a precarização do trabalho em saúde, criando critérios de
produtividade e atrelando-a aos salários, que obviamente não se correlacionam com
a qualidade da assistência prestada.

O trabalho em Saúde em nossa sociedade, portanto, é historicamente


determinado; não se pode separá-lo da processualidade histórica. Após a Segunda
Guerra Mundial evidencia-se a divisão do trabalho médico, atrelado ao acelerado
desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Estes “novos” proletariado dos serviços
não só se submetem ao assalariamento, mas a um assalariamento que não
acompanha o rendimento do capital; ao contrário, os salários dos prestadores de
serviços, da mesma forma que os demais trabalhadores, perde seu valor real, na
contra-mão da valorização do capital.

Pensando em termos dos profissionais de saúde brasileiros, um estudo recente de


revela que, para garantir um bom padrão de vida, estes trabalhadores mantêm
diversos vínculos empregatícios, ligados tanto à iniciativa pública quanto privada.
São, de fato, trabalhadores assalariados, e ao que tudo indica, estão se
proletarizando, da mesma forma que outras tantas categorias profissionais dos
nossos tempos.

Para finalizar, cabe tecer algumas considerações sobre a ANS, responsável pela
regulação da saúde suplementar. O arcabouço teórico da criação destas agências
também se encontra no Plano Diretor de Reforma do Estado, alinhado com o
preconizado pelos organismos multilaterais, ou seja, com as grandes corporações: o
Estado possuía em sua estrutura setores estratégicos e exclusivos, que deveriam ser
de controle estatal; setores não exclusivos, que são de dever do Estado mas que
podem ser compartilhados com a iniciativa privada; e os setores para produção para
o mercado, que deveriam ser privatizados.

Os serviços estratégicos e exclusivos eram assim chamados pois o principal


usuário é o próprio Estado. “Não são atividades lucrativas” e, por isto, o Governo
defendia mantê-los com o Estado, na forma de propriedade estatal, embora, para
estes serviços defendesse o que chamou de “modelo de gestão gerencial”, como as
“agências autônomas”, “serviços sociais autônomos”, com o objetivo de assegurar-
lhes a flexibilização das relações de trabalho e dos controles da sociedade sobre as
políticas públicas. Para este setor, o Governo propôs a transformação/qualificação
dos Órgãos Públicos em Agências Executivas.

Os processos históricos e a realidade do dia-a-dia nos mostram a impossibilidade


de regular, de limitar, os processos de acumulação de capital. E os processos
históricos e a realidade do dia-a-dia também nos ensinam que somente com
organização e mobilização os trabalhadores e estudantes conseguiram barrar a
retirada de direitos e serem propositivos na universalização dos produtos
historicamente produzidos pela humanidade.

4. Considerações Finais e Apontamentos

Constatamos que o período em que as doenças puderam ser conhecidas


cientificamente – e continuam podendo, inclusive com maior riqueza de detalhes! -
de forma cada vez mais profunda, é inseparável daquele em que a tecnologia
desenvolveu-se a partir das ciências naturais e, por sua vez, alcançou a medicina
determinando seu desenvolvimento.

Constatamos também que apesar do imenso desenvolvimento das forças


produtivas, a quase totalidade da população, os trabalhadores, não possui o acesso
igualitário aos produtos da civilização, como conhecimento, novas tecnologias,
educação, assistência à saúde, moradia, alimentação etc. Isto pelas limitações
causadas pelas relações de exploração que caracterizam nossa sociedade, em o
trabalho é coletivo mas a apropriação dos produtos deste trabalho é privada.

Ademais, temos um terço da população mundial sem


possibilidades de trabalho ou de consumo, sendo que pela primeira
vez na história universal a economia declara que a maioria dos seres humanos é
desnecessária e descartável, pois, na economia contemporânea, o trabalho não cria
riqueza, os empregos não dão lucro, os desempregados são dejetos inúteis e
inaproveitáveis. Um terço é a estimativa populacional de anêmicos crônicos no
mundo.

Nesta nova conjuntura, as políticas sociais universalizantes, como ocorreu


durante o Estado de Bem Estar Social nos países centrais, cedem espaço para as
políticas sociais focalizadas durante os Estados Neoliberais em todo mundo,
transformando direitos como saúde, educação e previdência, em mercadorias
acessíveis àqueles que podem consumir, garantindo assim novos espaços para
valorização do capital.

No Brasil, esta situação consolida-se a partir da década de 1990, com a


permeabilidade dos planos de saúde, a precarização e o subfinanciamento dos
setores públicos, como a assistência primária à Saúde e a assistência terciária à
Saúde. Com o desmanche da rede hospitalar pública e sua conseqüente privatização
e terceirização, através dos novos modelos de gestão (Fundações de Apoio,
Organizações Sociais, FEDP etc), além da retirada dos direitos trabalhistas.

Uma realidade difícil, que exige organização, mobilização e resistência frente à


retirada de direitos historicamente conquistados. Organização e mobilização
sabendo aonde se quer chegar: produção e socialização de conhecimentos;
assistência conjunta primária e terciária para todos; campanhas de educação e
prevenção para todos. PARA TODOS, os produtos historicamente produzidos pela
humanidade.

O que será que nós, estudantes, temos a ver com isso?

A SAÚDE NÃO PODE PAGAR POR ESTA CRISE


MAIS VERBA PÚBLICA PARA A SAÚDE
CONTRA A DRU
PELA APROVAÇÃO DA EC 29
POR UMA GESTÃO 100% PÚBLICA DOS HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS
CONTRA OS MODELOS PRIVATIZANTES DE GESTÃO
CONTRA AS FUNDAÇÕES ESTATAIS DE DIREITO PRIVADO
PLANOS DE SAÚDE: QUEM PAGA A CONTA?

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