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OGRANDE TEATRO Do MuNDO J sei que, se para ser © homer escolhar pudera, ninguém o papel quisera do sofrer @ padecer; todos quiseram fazer ode mandar e reger, Sem advertir e sem ver que, em ato tdo singular, aquilo 6 representar ‘mesmo ao pensar que’é viver. A x "es ualidade ha mais de um séeulo RCA CALDERON DE LAB, 0 Grande Teatro do Mun ‘Tradugao de Maria de Lourdes Martini Francisco Alves Saee AAL IEEE war he nae Fran, Touro mahal My Castalia, 1970. 287 Pp. a? ee ey IMANN VIL RANA VILLEN LIA, Rat, Repertorio de Pitas Siglo XVIII. tn: Re. aoe (4): 313-43, oct. on0z00 Diaz, teotralided det barroco, intro oe ORTEGA y T, Jo36. ideo de! teatro, ee ee . Madrid, Revista de Ooci- "PARKER, Alexandre a. 7) , The Allegoricel Dr RK ical Drama o ; Doiphin more the Autos Saccamentales, Omens ; PrAcibhin Book Co.,1943, 232 9° eae Edad de Oro, Trac del seman pr acionel aed, in por ; 2a cere Gustavo Gili, 1952, 707 Woe gornteme os mya. Naat U8? Abort, The Span Stage inthe Time of Lo ime of Lope de at dramético de ta prc 2 i Sm Cn tin wr segorla in factis” et “Alter ri in verb ) : 342. ‘57, juil-sept. 1975, Rees XXIV t OD (sal O GRANDE TEATRO DO MUNDO. Surge 0 AUTOR com manto de estrelase resplendor na cabeca, ‘AUTOR Formosa compostura dessa varia inferior arquitetura, que, entre sombras distantes, a.esta celeste roubas seus brilhantes, 0 5 quando com flores belas © niimero compete com as estrelas, sendo, com resplendores, humano céu, pois de caducas flores. ‘Campanha de elementos, 10 com montes, raios, pélagose ventos: com ventos, onde graves ¢ Sgeis te sulcam os baixéis das aves; u ‘com pélagos e mares, onde frotes de peixes vo por aguas tio ignotas; 15 com raios, onde rouco te ilumina com édio 0 fogo louco; com montes, onde donos absolutos te passeiam os homens como os brutos, sendo, em cont{nua guerra, 20 monstro de fogo e ar, e de agua e terra, u Tu, que, sempre diverso, a fabrica feliz deste universo! 5, prodigio primeiro sem segundo, ecomo semprehasido por chamar-te de uma vez, tu, Mundo, © que de mais alegre e divertido ) 45 de representaggo bem aplaudida, 25 que nasces como 0 Fénix em sua fama € representapdo a humane vida, de tuas préprias cinzas, uma comédia# soja : A a.que hoje o ou em teu teatro veja. parece © MUNDO por outra porta, Se sou Autor? e se é minha a festa, 50 a companhia minha encargo desta. ane Ej que eu escolhi entre os primeiros Quem me chama, ‘os homens, e eles so meus companheiros, ue, jé no duro centro oe inane do enorme globo que me esconde dentro, do mundo, que contém de partes quatro, asas visto velozes? ae 80 Quem me tira de mim, que me dé vozes? hao de representar. E sera dado, pois, 0 papel que a cada um convanha; Sta. @ porque em festa igual sua parte tenha O teu soberano Autor. © formoso aparato Um suspiro de minha voz, do amor 60 de cenarios, de trajes o ornato, a oe prevertido hoje quero Bee ee ees Sore { que, alegre e liberal, tal como espero, fabriques aparéncias ane que de dividas passem a evidéncias. 35 O que me mandas, pois? Tens-me a teus 65 Seremos, eu, o Autor, pois, neste instante, = tu, 0 teatro, eo homem, recitante. AUTOR Pois sou Autor e tu minha'obra és, MUneol hoje, de um meu conceit Rodan nal a execuco em tuas maos eu deito, taj none eIO Que festa fazer quero e ete ay Seni minh picndezs dramétice que se epSe 4 tragédia, como 0 génecn hihride da tragicnmdclia eee ic obra, a natureza; ‘ou, ainda, qualquer obra teatral, Neste auto sacramenia’, Calderén use apa era re num tors em snd ton ee > © AUTOR, que havia entrado em cena caracterizade como ‘criador,, com manta eens rxplandar a eaboga, & agra 0 ampratio dt 40 a meu préprio poder, se considero ata eh ac ota Rd caret tanks Gol ica’ > Sane "A fio i” do nvr 6 Tera, dt bogota coms oman ‘bem realizada. Jé foi observado por um, er 190 © paradoxo barroco pro- feompenhis teatral, de ecordo cam 0 si daguda palavea ne termi Poste hor Calderdn como stributos da Terra, a ettele dp sear Ee ee ieael Fara im Muer, earactritce de aa constant ronsformonto (seer CCalderén joge com at dust acepgles, crador e empracério, 20 longo da c eee. sm Ue soles de tonaugso | 4 ralogisdramdtea donee (0 ein 30 texto \ acento obedece tudo, 70 0 grande teatro do mundo, 4, a que em mim representem 08 homens e, a cada ‘turno, achem sempre a conven¢ao que o papel impée a tudo, '5 como parte ‘obedencial, Porque eu somente executo ‘© que ordenas, pois se é minha @ obra, o milagre é sumo, primeiramente, porque é 80 sempre de gosto e mais justo nido se ver 0 tablado antes do ator ser dono do assunto, de um negro véu o ‘terei todo coberto e acuito, 85 que seja um caos, onde estejam ‘0s elementos confusos, Descerrarei essa névoa, @ ao fugir o véu escuro, ara iluminaro teatro, 90 (porque sem brilho profuso ndo ha festa), brilhardo dois luminares, diurno farol do dia seja um, 2, assim, da noite notumno 98 farol 0 outro seja, em quem ardam mil luminosos carbunculos* Que sobre a face da noite déem vividores influxos. No primeito ato da peca, 100 simples comeco de tudo ‘a grande lei natural, [8 pelos primeiros tustros aparecerd um jardim * Carbinculo ¢ o nom nad, 90 ema varsdade de ara, ‘que brithava nas travas como brasa, a nae com bel{ssimos debuxos, 105 engenhosas perspectivas, que cause espanto; presumo, fazer a me natureza quadro to habil sem estudo. As flores mal despontadas 110 de seus rosados caputhos sairdo por primeira vez a ver a aurora com susto. As érvores estardo cheias de gostosos frutos, 115 se no houver a serpente envenenado jé tudo. Mil cristais se quebrarfo em seixos, dando seu curso, para que chore a aurora 120 mil aljéfares middos, E para que mais campeie este humano céu, eu julgo que estard engastado de varios campos incultos. 125 Onde preciso existir montes e vales profundos, haverd vales e montes; ros, sagaz e astuto, fazendo valas a terra, 130 levarei, por seus condistos, bragos de mar dessangredos que corram por varios rumas. Depois da primeira cena, © chao de casas desnudo, 135 ‘num s6 instante verds como repiiblicas fundo, como cidades fabrico, ‘como alcacares descubro. E, quando solicitados, 140. 0s montes fatiguem juntos a terra com 0 granae peso, 08 ares com o denso vulto, mudarei todo 0 teatro, Porque tudo, mal seguro, 145 se vera coberto de agua ‘com a sanha de um di no meio de tanto golfo € nos fluxos e refluxos de ondas e nuvens, vir, 180 fazendo ignorados sulcos, pelas éguas um baixel, que, flutuando seguro, gravido trard seu ventre de homens, de aves e de brutos. 185 Ao sinal que, Id do céu, de paz fara. um arco ruivo de trés cores, amarelo Violéceo e purpireo, ‘todo esse grémio das ondas, 160 obediente ao estatuto, daré lugar, observando leis que antecedem a tudo, a0 dorso duro da terra, ue, ao sacudir-se do jugo, 165 levantard seu semblante, bem que macilento e murcho. Acabado o primeiro ato, logo vird 0 segundo, lel esorita em que por 170 mais aparéncias Procuro, ois, para passar a ela, Passardo com pés enxistos ‘os hebreus, vindos do Egito, todo 0 cristal do mar ruivo; 175 amontoadas as aguas, verd o sol que the descubro (08 mais ignorados seios que jé vira em tantos lustros. ‘Com duas colunes de fogo, 180 me parece que jé alumbro © deserto, antes de entrar 1no to prometido fruto. Para sair com a lei,® Moisés, a um monte robusto, 185 uma nuvem levaré ‘em vo breve e seguro. O segundo ato, assim, fim ter num furibundo eclipse, em que todo 0 sol 190 se ha de ver quase defunto. Ao Gltimo parasismo se verd 0 orbe cerileo titubear, varrendo tantos paralelos e coluros. 195 Os montes se agitardo e delirarao os muros, deixando em palidas ruinas tanto eseandalo caduco. Eoterceiro ato vir, 200 trazendo consigo aniincios de haver maiores portentos, por serem os milagres muitos desta lei de graca em que ‘ociosamente discurso. 205 Com isso nos atos trés, trés leis e um s6 estatuto, * o dectoge dos bres, ae Moi rsabeu de Deut no Mots Sina om ‘conta em Exodo, 20, zra(culos 1-17. No v. 655, 8 LE] ent rizada na personagern que fars, também, na pega dentro da peea, © pape! Se porto, conor fra anunade pelo AUTOR, no ¥.47B. (0 ereo-ri@ vito nat sues 8s cores primériat:o amavelo,o azul eo verre. {poeta retoma aqui a representa do areo-ris como snal da aisnon cn: {te Deus 2 0s homens, conforme o Génese, , vrsfeuloe 17, 08 homens dividirdo as trés idades do mundo; até & cena final, 210 o palco, que traz seguro 140 grande aparato.em si, uma chama, um raio puro cobriré, porque no falte fogo na festa... Que muito 215 que aqui, balbuciante o lébio, - fique absorto, fique mudo? So de pensar, estremeco, de imaginar, me perturbo, de repeti-lo, me assombro: 220 de lembré-lo, me consumo, Mas dilate-se esta cena, este passo horrivel e duro, de modo que nunca o vejam todos os tempos futuros! 225 Prod gios verso os homens em trés atos e em tudo dessa representagao nada falte por descuido, E, pois, que previsto tenho 230 quanto 20 teatro, presumo Que est4 tudo agora; quanto 20 vestuério, seguro que ali em tua mente o tens, ois ld em tua mente juntos, 235 antes de nascer, os homens recebem aplausos justos. E para que de ti todos 4 representar no mundo saiam e voltem depois, 240 ja preveniu meu discurso duas portas: uma é 0 bergo a outra é a do sepulcro, E para que nao thes faltem as galas e adornos juntos, 245 para vestir os papéis darei, prevenido e justo, a0 que houver de fazer rei, pirpura e laurel augusto; ao valente capitéo, 250 armas, valores e triunfos; ao que fizer o ministro, livros, escolas ¢ estudos. Ao religioso, obediéncias; ao criminoso, insultos; 255 20 nobre, Ihe darei honras e liberdades ao vulgo. Ao lavrador, quem a terra fara fértil ap6s duro trabalho, culpa de um néscio,” 260 Ihe dou instrumentos brutos, E, a quem houver de fazer a dama, Ihe darei sumo adorno nas perfeigdes, doce veneno de muitos. 265 So néo vestirei o pobre porque é papel de desnudo. E assim nao venha ninguém queixar-se depois ao mundo ue para representar 270 recebe o adorno justo, pois, quem bem nao o fizer, seré defeito seguro seu, nao meu. E pois j4 tenho. todo 0 aparato junto, A 275 vinde, vés, vinde, mortais, a enfsitar-vos com tudo para que representeis neste teatro do mundo! 7 Referee a Adio, que, 30 pener 2s graras do Paraiso pelo pecaio original, ‘obrigou © genero humana obte oalimento pelo trabalho (Génese, 3, ver sculos 17.8), No v. 858, 0 LAVRADOR volt 8 mesra referénca, 280 285 290 295 300 305 10 Mortais que © j& vos chamo mortais, pois para mim sois iguais, antes de ser, assistis, inda que a mim nao ouvis, vinde, assim, a estes vergéis, que, cingido de lauréis, palma e cedros, vos espero, porque eu entre todos quero tepartir estes papéis, Entram em cenao RICO, 0 REI,0 LAVRADOR, 0 POBRE, a FORMOSURA, a DISCRIGAO, e uma CRIANCA. REI “ Ja estamos a obediéncia, Autor nosso, que exigide nfo foi o haver nascido para estar em tua presenca, Alma, sentido, poténcia, vida nem razéo nés temos; todos informes nos vemos, dos teus pés 0 pé do chido, Sopra, Autor, 0 pé, entdo, pata que representemos. FORMOSURA Sd em teu conceito estamos, nem alma nem vida temos, no sentimos, nada vemos, nem do bem ou mal gozamos; se ao mundo porém nés vamos todos a representar, nossos papéis podes dar, pois ern tal ocasigo no gozamos de eleico para havé-los de tomar. LAVRADOR Autor soberano meu, 310 aquem por tal grato sou, teu mandamento estou. como obra de um gesto teu; e pois tu sabes, nao eu, que a Deus ignorar néo ver, 315 que papel a mim convém, se este papel eu errar, dele no vou me queixar mas de mim, de mais ninguém, AUTOR Ja sei que se para ser 320 0 homem escolher pudera, ninguém o papel quisers. do sofrer-e padecer; todos quiseram fazer 0 de mandar e reger, ‘925 sem advertir ou sem ver que, em ato tao singular, aquilo é representar mesmo a0 pensar que é viver, Como Autor soberano, eu 330 sei bem que papel fard melhor cada um; e assim vi a mao dando a quem 0 seu, Faze tu o Rei. REI Honras eut AUTOR Adama, que é a formosura 335 humana, tu. FORMOSURA ‘Que ventura! "1 AUTOR Faze 0 rico, 0 poderoso, RIco Enfim hasgo venturoso aver do sol a luz pura! AUTOR Tu farés 0 lavrador, LAVRADOR: 340 E offcio ou beneffcio?® AUTOR E um trabalhoso oficio, LAVRADOR Serei mau trabalhador, Por vossa vida, Senhor, ainda que filho de Ado, 345 tal trabalho nao deis nao, ainda que deis possesses, porque tenho presuncdes que hei de ser mui falgazao, De meu natural espero, 350 com ser téo mogo, Senhor, que serei mau cavador ®ndo ter na quinta esmero; se equi valera um “no quero”, dissera, mas sei, diante ‘355 de um autor tao elegante, que nada um “no quero” expressa, 8 0 posta a apoia na i 12 feita “no tener oicio i beneticio”, também existen: 48 om portuguts, que signifiea “no tor ocupacks nem rena”, Nos v. 759. {0, aperecem dis sntidos do beneticio: 0 sdenico, de rend, que # sulla ‘que reverta para. LAVRADOR pelo traballo ‘salizedo, e 6 corrente, de bem que s faz 9 alpuéen (no texto, & terra), vsado ironicamente pela per sonayem, e assim serei nesta peca © pior representante, Como sois sdbio, me dais 360 como 0 oficio, 0 preciso, e, assim, © meu pouco siso sofreis e dissimulais, Neve como Id vos dais: justo sois, ndo vou queixar-me; 365 e, pois, que jd a perdoar-me se mostra aqui vosso amor, farei meu papel, Senhor, devagar, por ndo cansar-me, AUTOR Tu, adiscricdo fards. DISCRICAO 370 Venturoso estado sigo! AUTOR Faze 0 misero, 0 mendigo, POBRE Pois este papel me das? AUTOR - Tu, sem nascer, morrerds, CRIANCA Pouco estudo 0 papel tem, ‘AUTOR 375 De minha ciéncia ver que represente o que viva. Justiga distributiva® ‘sou, sei 0 que vos convém. °. A justica distributive 62 opto 8 Justipa commutative: enquento esta manda der 8 da um o que @ se, a primeira a3 segurelo o que cada um mereceu ganar, toma desenyolvido neste auto sneramental, ia 14 pore Se eu pois pudera escusar-me 380 deste papel, me escusara, quando minha alma repara no que tu quiseste dar-me; , assim, j4 que declarar-me no posso, se bem quisera, 385 0 tomo, mas considera, se vou fazer o mendigo, nao, Senhor, o que te dig 0 que dizer-te quisera, Por que devo fazer eu ~ 390 o pobre nesta comédia?—~ Vai ser para mim tragédia se outrem tudo recebeu? Quando tal papel me deu tua mao, ndo deu também 395 alma igual como ade quem far 0 rei? Igual sentido? Igual ser? Pois, por que ha sido. dado a mim como a ninguém? Se de outro barro fizeras, 400 se de outra alma me adornaras, menos vida me fiaras, menos sentidos me deras; id parece que tiveras outro motivo, Senhor 405. parece, porém, rigor, perdoa dizer, cruel, receber melhor papel dio sendo de ser melhor. % AUTOR Nessa representarSo 410 igualmente satistaz ‘0 que bem ao pobre faz, com afeto, alma e aco, como 0 que ao rei faz, € io iguais pobre e rei, e hei £ 415 de assim julgar 0 que dei Faze bem o teu e pensa: na hora da recompensa, eu te igualarei com 0 rei. Nao porque pena te sobre, 420 sendo pobre, é na lei melhor papel o do rei. ‘Se bem faz 0 seu o pobre, um e outro de mim cobre todo o salério depoi 425 que houver merecido, pois ‘se ganha em qualquer medida, que todos, na humana vide, representantes vés sois. Depois da peca acabada, 430 viré cear-a meu lado o que houver representado, sem haver errado em nada, “sua parte mais acertada: ali vos igualarei. FORMOSURA 435 Dizei, Senhor, que eu n&o sei como na I{ngua da fama esta comédia se chama? AUTOR Deus € Deus, o bem fazei, REI Importa que ndo erremos 440 comédia to misteriosal Rico Para isso, & aco forcosa 15 16 445 450 455 465 que primeiro a ensaiemos. DiscRIGAo Como ensaid-la podemos se nos estamos a ver sem luz, sem alma e sem ser antes de representar? i POBRE Pois, como, sem ensaiar, vai-se a comédia fazer? LAVRADOR Do pobre aprovo a razao, assim o sinto, Senhor, (que sao pobre. lavrador como unha e carne da mao). Se as pecas velhas esto de muito representar, ( se no se volta a ensaiar, se era, ento, quando se prova, se no se ensaia esta nova ‘como se vai acertar? AUTOR, Chegando agora a saber que, sendo juiz o céu, ninguém erra ou sabe 20 |éu quando é nascer e morrer. FORMOSURA, ‘Como nés vamos saber quando hé que entrat e sair © aque hora hé de cair? AUTOR ~ ‘Também tem-se que ignorar e de uma vez acertar quanto é nascer e morrer. Estai sempre prevenidos 470 para o papel acabar, que ao fim dele vou chamar. POBRE E por se acaso os sentidos talvez se vejam perdidos? AUTOR Para isso, comum grei, 475 terei, desde o pobre ao rei, para emendar quem errar @, aquem nao sabe, ensinar, junto a0 ponto, minha lel ela a todos vos dird 480 oque vos cabe fazer por queixoso ninguém ser. re arbitrio tendes jé, © pois prevenido esta © teatro, a todos vem 485 medir que tamanho tem esta vida, DIscRIGAo Que esperamos? Vamos ao teatro! topos Vamos! Deus € Deus, fazeio bem! . Quando vao sair de cena, aparece 0 MUNDO que osdetém, 17. MUNDO Ja esté tudo prevenido 490 para que se represente esta comédia aparente que faz 0 humano sentido, REI Louro e purpura vestido!!® MUNDO Por que pirpurae laurel? REI 495 Porque faco este papel. Mostra-the 0 papel, toma a piirpura ea coroae se vai, * MUNDO J4 aqui prevenido est. FORMOSURA A mim, matizes me da de flores, fonte do mel. Folhaa folhae raio a raio 500 se desatem a porfia todas as luzes do dia, todas as flores do meio; padeca mortal desmaio de inveja, a0 olhar-me o sol, 505 © pois que tanto atrebol © girassol ver deseja, a flor de minha luz seja, sendo 0 sol meu girassol, 1° ConstrugBo sintstics conhecida como acusotvo grgo, useda peios exrtores Dbarrocos, que procuravam voltar as estruturas @ formas des Guas inguse close, oreo p li, "Vertda de lou e pirura'6slesuc concen 18 MUNDO Como chegas tao leviana 510 a representar no mundo? FORMOSURA, Pois neste papel me fundo. MUNDO. FORMOSURA Formosura humana MUNDO Cristal, carmim, neve e grana limem sombras desiguais 515 que brilham mais que os metais. Dé-Ihe um ramo de flores FORMOSURA, Prédiga estou eu de cores. Servi-me de alfombra, flores. sede de espelho, cristais. Retira-se; RICO Da-me riquezas de ti, 520 gozose felicidades, pois para prosperidades venho hoje a viver equi MUNDO Minhas entranhas por ti a pedacos romperei; 525 de meu seio arrancarei toda pratae todo ouro que num avaro tesouro 19 20 to encerrado ocultei Dé-the joias RICO Soberbo e desvanecido | 530 com tantas riquezas vou Retirase DISCRIGAO. Para meu papel estou @ pedir um chao batido, MUNDO E qual te foi atribuido? DISCRIGAO, A discrigao estudiosa, MUNDO 535 Discrica0 tao religiosa tome jejum e oracdo, Dé-the cilieio e disciplinas DISCRIGAO Nao fora eu discrigéo se disso ndo desejosa! Retira-se . MUNDO Para o papel a fazer ‘540 ngo pedes nada ao entrar? CRIANGA No vou de ti precisar para o que devo viver, Sem nascer, hei de morrer, em ti ndo tenho de estar 545 mais tempo que o de passar de uma prisdo a outra escura, e parauma sepultura, por forca, tu me his de der. Retirase MUNDO ‘Que pedes tu, to sem esmero? LAVRADOR 550 O que a todos dera eu... MUNDO Vamos, mostra teu papel. . LAVRADOR ‘Vamos, digo que no quero! MUNDO De tou proceder espero que como bruto vildo, 568 terds’de ganhar teu pao. LAVRADOR ‘Que condigao desgracada! ‘MUNDO Ati te dou esta enxada. Dé-the uma enxada LAVRADOR Esta é a heranga de Adio, ‘OSenhor Adéo pudera, 560 pois tanto veio a saber, conhecer que sua mulher faladeira demais era; deixara que ela comera sozinha o fruto de mel, 565 Mas, como amante novel, a dird que ndo Ihe atendeu; € ele, assim tao mal como eu, Fepresentou seu papel. Retirase POBRE. Ja que em todos tantos ditas, 570 gostos e alegrias vi, J eco pesares a ti. D&-me penas e desditas; 8 ndo das venturas ditas laurel e purpura quero, 575 belas cores no espero, prata © ouro no mereco. Somente remendos peco. ‘ ‘MUNDO Teu apel dize sincero, POBRE E meu papel a afligao, 580 angiistiae miséria é, 580b 0 nunca merecer fé,' a desdita ou a paixéo, a dor ou a compaixao, © suspirar, o gemer, © sentir, 0 padecer, 585 importunar e rogar, nunca ter o que dar, ‘0 sempre a pedir viver. O desprezo, a esquivez, todo oprobrio e sentimento, 590 a vergonha, o sofrimento, firm 6 fear com: ‘expressar as quelxae do PO. 22 a fome, a dura nudez, ‘0 choro, viver sem vez, a imundicie, a baixeza, 0 desconsolo e pobreza, 595 a sede, a penalidade, mais a vil necessidade, que tudo isto é a pobreza. MUNDO A tinada hei de dar: quem vive em aperto fundo 600 nada recebe do mundo; antes te penso tirar ‘estas roupas, que hés ae andar desnutlo, para que acuda 20 meu cargo toda ajuda. Desnuda-o POBRE 605 Enfim, este mundo peste, a0 que esté vestido, veste ¢ a0 que desnudo, desnuda Retirase esté todo 0 teatro cheio, 610 pois se vejo um reio no meio de impérios téo dilatados,, beldade, a cujos cuidados se adormecem os sentidos, poderosos aplaudidos, 615 mendigos tao andrajosos, lavradores, religiosos, que foram introduzidos por fazer 0s personagens desta comédia e aquem 23 24 620 0 teatro dou e, também, as vestimentas e trajes de esmolas como de ultrajes, vem, divino Autor, a ver as festas que vao fazer 625 os homens! Abra-se 0 centro da terra, pois que la dentro © cenério ha de ser! Com miisica se abrem a0 mesmo tempo dois globos: num, haveré um trono de gloria e, nele, 0 AUTOR sentado; no outro haverd duas portas: um berco pintado numa e, na outra, um atatide. f AUTOR, Pois para minha valia foi que arrumei o tablado, 630 neste meu trono sentado, ‘onde eterno meu dia, verei minha companhia. Homens que este chido pisais, do bergo vindos iguais 635 @ a morte indo sem calor, pois do céu vos vé 0 Autor, vede o que representais, Aparoce a DISCRICAO com um instrumento musical e cantando, DISCRIGAQ, Bendigam ao Senhor de terra e céu 9 sol, lua.e estrelas; 640 louvem-no Sempre as belas flores, do chio rico e suti dossel, louvern-no 0 fogo, 0 gelo ea luz do céu, 9 orvalho sobre o chio,, © inverno e © veréo A loa, 10 teatro espanhol da ép0ce,. 645. © quanto estd debaixo desse véu, que, em trono celestial, i, arbitro é sempre do bern e do mal. Retira-se AUTOR Nada me soa melhor que, em voz de homem, este fiel 650 hino que cantou Daniel para amainar o furor de Nabucodonosor. MUNDO Quem hoje a loa’? dira? Porém no cenario jé 655 a Lei convida, com voz que corre clara e veloz, € em elevacdo esta por sobre a face da terra. A LEI DE GRAGA aparece numa elevacéo, ‘que estaré sobre onde estiver 0 MUNDO, com um papel na mao. LEI Eu, que Lei de Graga sou, 660 a festa introduzir vou. Para emendar aquem erra, neste meu papel se encerra a comédia, de que sois autores de to 6 dois Calderdn se inspira no hino canted pelos trés ovens hebreus » quem Nsbuco- donosor mandara atirar‘na fornalha de fogo ardente, conterme s Ié em Daniel, I, vorsiculos 62:72. 09 $ funglo que caberia& foa, snunciando 2 pes ‘er representada. Lembremo.nos de que esto auto 8 ume repreeentapto testral que contém outre, a que comega neste momento, 25 26 665 versos que dizem aqui: Canta Ama o outro como a ti! Deus é Deus, faze 0 bem pois! MUNDO A Lei, recitando aloa, também com o ponto ficou. 670 Aplaudir quisera eu, t) vulgo desta festa sou. Mas calarei, porque jé a comédia comegou. ‘Surgem a FORMOSURA e a DISCRICAO pela porta do berco. FORMOSURA 675 Vem comigo a passear or estes campos em flor, ‘Suave patria do maio, doce lisonja do sol, que sé conhecem aos dois, 680 dando, pois, somente aos dois, resplendores, raio a raio, e matizes, flora flor. DISCRIGAO Ja sabes tu, porém, que eu sair de casa nao vou, 685 por nao quebrar a clausura aquem téo décil me dou. FORMOSURA Tudo € sempre para ti austeridade e rigor? No te dés prazer um dia? 690 Dize, Deus, por que criou flores, se no vai gozar nunca 0 olfato, o brando olor de seus fragrantes aromas? Para que aves enigendrou, 695 que em cldusulas lisonjeiras liras de pluma so, pois nfo ha de ouvi-las nosso ouvido? Para que galas, se por néo rasqé-las 0 tato 700 com ambigao e fervor? Para que to doces frutos, se no Ihes cabe compor ‘manjares, que goze 0 gosto de um sabor e outro sabor? 705 Para que fez Deus, enfim, montes, vales, céu e sol, se 0s olhos de ver nao hao? Parece e com razdo, pois, ingratidao ndo gozar 710 maravilhas do Senhor. pIscRICAO Gozé-las para louvar, justo e I(cito tal foi e dar-he gracas por elas. Gozar as belezas por 715 usar delas tao mal, nao, que o dia talvez chegou de ver toda criatura sem lembrar do Criador. De casa nao sairei. Para sepultar-me foi 720 que entrci nesta religiao: Discri¢o por isso sou. Afastam-se FORMOSURA Eu, por Formosura ser, aver e ser vista vou. Gal MUNDO 725 Pouco tempo Formosura com Discri¢’o concordou, FORMOSURA, Ponha redes meu cabelo e lagos ponha 0 amor 20 mais tibio afeto, a0 730 coragio que viva s6. MUNDO Uma acerta e a outra erra, quando assim representou. DiscRICAO Que farei para empregar bem meu ser? FORMOSURA Que fazer vou 738 por gozo de formosura? LEI Canta Deus & Deus, faze o bem pois! MuNoo, A Formosura tal voz, que é do ponto, no chegou, Aparece o Rico Rico Pois prodigamente o Céu 740 fazenda e poder me deu, Prodigamente se gaste NO que ser del/cias sei. Nada me pareca bem que jd nfo o deseje eu: 745 mostre minha mesa quanto ‘0U corre ou voa no céu. Seja meu leito a esfer de Vénus; e, assim, digo eu, a preguiga e as del(cias, 750 a gula, invejae poder tomem posse do meu ser. Aparece 0 LAVRADOR LAVRADOR Trabalho maior que o meu quem jd viu? Rasgo eu o seio a quem’ o seu jé me deu: 755 assim foi que me entregou todo o alimento meu. Do arado que a corta ao meio ministro sou sempre eu, pagando-Ihe o beneffcio 760 com oque minha mao Ihe deu. Foice e enxada, minhas armas com que luto cada ve: com a enxada, no cho duro, ‘com a foice, ao colher. 765 Nos meses de abril e maio, hidrSpico amor me vem, e se me tiram a dgua, bem pior me sinto eu. Aumentando algum tributo 770 deste mundo, por render, dirigem a pontaria contra 0 pobre camponés, ‘Mas, pois trabalho e pois suo, 0 frutos que ento colher 778 me ha de pagar quem os compre a0 preco que queira eu. Nao quero atender & taxa ou 8 opinido me ater de quem, porque hé de cor 780 culpa quem nio a atendeu, E sei mais: que se no chove este abril, que rogo a Deus que nao chova, meu celeiro sag Tal® ducados vai valer. 85 Com isso. um Nabal-Carmelo!* desta regio serei, ‘todos de mim precisando, orém, muito vaidoso eu, ‘© que me cabe fazer? Canta ce 790 Faze o bem, que Deus é Deus! DISCRIGAO Como no ouves o ee " LAVRADOR Sou surdo se me convém MUNDO, Ele nos seus treze est. LAVRapoR Nos meus quatorze estarei,!¥ Aparece o PoBRE POBRE 798 De quantos no mundo vivem, quem viu miséria pior do que a minha? Este chao duro 6 0 mais suave e mélhor leito meu, que ainda que seja 800 seu dossel o céu maior, descoberto sempre esta a0 frio orvalho e 20 calor; a fome ea sede me afligem. Paciéncia dai-me, Senhor! RICO 805 Que farei por ostentar tanta riqueza? Z POBRE Que vou fazer para tal sofrer? LEI Canta Faze o bem, Deus é 0 Senhor! POBRE Qh, como esta voz consola! Rico 810 Oh, como cansa esta voz! DESCRICAO Entra, anunciando a chegada do REI Rei vem a estes jardins. RICO Quanto a minha ambigao dei prostrar-se a alguém! 31 FORMOSURA Surgindo __ Diante dele, mui graciosa hei de me por, 818 para ver se a formosura sabe rendé-lo a0 amor. LAVRADOR Eu detrés. . . Que no Ihe ocorra, vendo que sou lavrador, dar-mie com um novo arbitrio, 820 pois néo espero outro favor. Aparece 0 REI estreito limite foi quanta provincia contém esta maquina inferior. > 825 De quanto circunda o mar e do que'ilumina o sol, sou-sumo e inico dono, Sou 0 supremo senhor. Os vassalos do meu reino 830 se prostram por onde vou. Que mais preciso no mundo? Ler Canta Faze o bem, Deus ¢ o Senor! © Universo, por analogla com um mecanismo onde 32 gr , 2 bares organiza ese rosary cam Stride sizosiso» oda a Meadenone period titerdrio, referide come maquina. “Méquine interior 6a) rate onde © stv no & derecho, mar tem wmtisoaiooeal, oro ‘erra 25 outras partes do Universo, percabidas pelo-homem Bicean - MUNDO A todos, na sua vez, © ponto diz o methor. POBRE 835 Daqui da minha miséria olhando infeliz estou alheias felicidades. O rei, supremo senhor, goza de sua majestade, 840 porém nunca se lembrou de quem dele necessita. ‘Adama, em tal esplendor, ndo sabe se hd neste mundo necessidadés ou dor; 845 a religiosa que vive sempre a rezar com fervor, se bem a Deus serve, serve comodamente ao Senhor. O lavrador, se cansacio 850 volta do campo, jé achou honesta mesa sua fome, se opulenta néio achou; © rico de tudo goza; eu, no mundo, é quem s6 855 a todos venho a pedir @, assim, hoje a todos vou, pois, se eles vivem sem mim, eu deles cativo sou. A Formosura me atrevo 860 a pedir. Por Deus, a vée peco pao. 1 caiderdn, neste auto, marcou at relopSes socialwpelas formes de tratament3. Enquanta, na pea dantra da peca, onde eclodem o conflitos socials, oF demi personagens dio @ recsbery © mesmo tratamento, 0 POBRE se ‘ache em relaedo atsimetrce, dlrigindo-s0 a todos por wds ¢ sendo tratode por ty, Observese que 2 DISCRIMINAGAO, que represents a religido ca- {lia, destaz essa relaed0 assimétrica respondenio ao POBRE com rds 33 FORMOsURA Dizei-me, fontes, pois que meus espelhos sois, que galas me vio tao bem? Que adornos me 865 Nao me ouvis? esto melhar? PoBRE Mundo Néscio, no vé: Quo tolo.§ teu pressupor? Por que hd de cuidar de ti quem de si se descuidou? PosRe Dirigindo-se a0 RICO Ja que vos sobra fazenda, 870 dai-me, entao, esmola vés. Rico Nao ha portas em que chamar? Entras, assim, onde estou? Que nos umbrais do saguao deveras chamar e, pois, 875 no chegarias a mim, POBRE Nao me trateis com rigor. RICO. Pobre importuno, vai entao. PoBRE Quem tanto desperdicou em seu gozo, néio daria 880 algo de esmola? (918), Depois da morte das persinag, ‘@1etoma.qtratarvento reciproco de tu Jens © durante o julgamenta, 0 poe RICO Niio dou. , MUNDO Oavarento e 0 pobre, assim, da parabola sols vos. POBRE Se a tanta necessidade lei ou razdo Ihe faltou, 885 20 proprio rei vou pedir. Dai-me uma esmola, Senhor. RE! Para isso tenho eu nomeado o esmoler-mor. MUNDO Com seus ministros, 0 rei 890 a consciéncia acalmou. PoBRE Lavrador, pois recebeis toda béncdo do Senhor, que cada grdo semeado se multiplica por dois, _ 895 Minha pobreza vos pede pao. LAVRADOR Sea mim deu 0 Senhor bén¢ao muita, muito arar ‘@ mais suar me custou! ‘Que um homem tao forte pega 900 néo te da nenhum pudor? Em vez de tao folgazdo viver, trabalha, que horror! 35 Se te falta 0 que comer, toma da enxada, pois 905 com ela o pao chegara. ‘POBRE Na comédia me tocou fazer do pobre o papel; nao faco o de lavrador. LavRaooR Pois, amigo, em tal papel 910 no te mandou o Autor pedir sempre 0 descansar, j4 que o trabalho eo suor 880 do pobre 0 galardao, POBRE Seja por divino amor! 918 Rigoroso, irmao, estais. LAVRADOR E tu muito pedidor, POBRE « Dai-me vés algum consolo Dirige-se 4 DISCRICAO DIScRI¢A] Perdoai-me e tomai vds. Dé-the um pio PoBRE Esmola de po, senhora, 920 aché-la em vés forca foi, ~ porque 0-pao que nos sustenta dénos a mao do Senhor. 36 DIScRIGAO Ai de mim! REI O que ha? POBRE Eo grave peso de uma dor 925 que padece a Religiao. A DISCRIGAO parece cair, Maso RE! Ihe di a mao. REI Socorro na dor the dou."* pIScRIGAO Assim é: que ninguém pode sustenta:la como vés. AUTOR Bem que eu pudera emendar 930 0 erros que vendo estou. Porém para isso thes dei livre arbitrio superior a toda paixéo humana. E assim é, porque ndo vou 935 impedir que com suas obras merecam; € 0s deixo, pois, livres fazer seus papsis. * so pa tat que 6,0 ato ferent no taal pans om 8 Gore tee ae oss cana 0 goto alate do REL, operand « DISCR GAO a ‘estava @ ponto de cair, era compreendido pela pablico como CAO at nnrgia esanholestov dco & ie Calin canta 1s Retormistas. 37 38 No meio de tanto horror 940 of tant] acdo desigual, 10 olho por todos e vou dizendo na voz da lei: Canta ee Faze o bem, Deus 6 o Seni Recita. A cada um de nae ae © a todos juntos, de voz 945 clara adverti; e com isso culpa terd quem errou. Canta. Ama o outro como a ti faze 0 bem, Deus é 0 Senhor’ ” Se € para rey eS presentar 950 que a vida dada nos foi € $8, por um s6 caminho, leva a vida a todos nds, fagamos suave 0 caminho nessa comunhao da voz, FORMOSURA 955. Mundo nao houve ou havera, se no se comunicou, : Rico, Diga um conto cada um. DISCRIGAO oi prolixo; melhor e ser que aqui cada um di 960 0 quede sempre pensou. ve REI Vendo estou meus impérios dilatados, a gloria, a majestade e esta grandeze, em cuja variedade natureza aperfei¢oou de espaco meus cuidados. 965 Alcécares possuo levantados, siidita minha sempre foi beleza. De uns a humildade e de outros a riqueza = triunfo me sio ao bel:prazer dos fados. Para reger to desigual, to forte 970 monstro de mil cabecas, j4 concedam ‘a mim os Céus mais atencdes felizes. Ciéncia me déem por no reger sem norte, que a um s6 senhor no pode ser que cedam, assim, num jugo s6, tantas cervizes! MUNDO 975 — Ciéncia para governar como Salomio rogou. Uma voz triste canta dentro, na direcdo + da porta do-ataude. voz Rei deste eaduco impéria, chega ao fim teu esplendor, que no teatro do mundo 980 jé teu papel se acabou. REI Que j4 acabou meu papel me diz uma triste voz que, sem razdo nem discurso, com ouvi-la me deixou. 985 Pois se o papel acabou, irme quero, e onde vou? Porque na primeira porta em que meu bergo se pos, 40 aide mim! bater no posso 980 nio posso bater, que dor! Nao poder, voltando ao berco, ‘um passo dar, todos s6 20 sepulero vio. Que o rio, que, brago de mar, se foi 995 volte a ser mar; e que a fonte, que sai do rio, que horror, volte a ser rio; 0 riacho, que da fonte se afastou, volte a ser fonte; ¢ 0 homem, 1000 que de seu centro se foi, volte a seu centro, a nao ser © que foil. .. Meu Deus, Senhor! Se j4 acabou meu papel, supremo e divino Autor, 1005 dai a meus erros desculpa ois arrependico estou. Vai-se embora pela porta do ataide ® todos também sairgo por ela, i MUNDO Pedindo perdao o Rei, bem seu papel acabou FORMOSURA Do meio de seus.vassalos, 1010 entre pompes e esplencor, foi-se o Rei, LAVRaDOR Nao falte em maio gua nunca ao campo em flor, ue, com bom ano e sem rei, Passaremos bem melhor. DIScRIGAO 1015 Inda assim, & grande dor. FORMOSURA Confusao sera maior. Que vamos fazer? Rico Voltar ‘ao ponto que se deixou. Dirigindo-se 8 FORMOSURA. Dize tu 0 que imaginas. FORMOSURA 1020 Pois nisso a pensar estou. MUNDO Quio cedo se consolaram (0s vivos de quem finou! LAVRADOR: E mais quando tal defunto muitas posses Ihes deixou. FORMOSURA 1025 Vendo estou eu minha beleza pura. Nao invejo o rei, nem os seus triunfos quero, pois mais ilustre império considero: aquele que a beleza me assegura, Porque se o rei avassalar procura 1030 as vidas, eu, as almas; disso espero julguem maior meu reino, pois é vero que nas almas impera a formosura. “Pequeno mundo", @ a filosofia do homem diz, e meu reino nele fundo, 1035 aquem 0 céu mantém eo chao se dé, assim bem pode crer-me a galhardia que o que ao homem chamou “pequeno mundo”, de mim “pequeno céu” entio dir, a MUNDO Nao se lembra de Ezequiel! 1040 quando disse que trocou ‘© orgulho formosura em feira seu fulgor. voz Canta Toda a formosura humana 6 uma fresca ¢ fragil flér. 1045 Murcha est4, pois eis que a noite de sua aurora jd chegou. FORMOSURA Que faleca a formosura canta uma tio triste voz! Nao falera, nao faleca, 1050 volte a seu primeiro alvor! Mas, ai de mim!, no hii rosa de branca ou vermelha cor, que as vas lisonjas do dia, que ao doce afago do sol 1055 venha a desfolhar as folhas, que néo caduque; depois, nenhuma volta a cobrir-se dentro do tenro verdor. Mas, que me importa que as flores, a 1060 da aurora breve candor, fenecam ao sol dourado nes carfcias do arrebol? caso pode comigo ‘compararsse assim tal flor "9 As releréncias 20 Vaino Testamanto 580 freqentes no auto sacramental, que 42 fazia, assim, 9 relaedo entre os dots Testamentos, aquele e © Novo. Em AA cele do rei Batrasnr, por exemplo, Calderénj8 v8, ne profenaso dos \atos sagrados dos hebreus, 2 dos vatos sgrados da Eucaristie,consttuinds ‘al dado 0 motive basion dese auto 1065 em queser termo cont(nuo de néo ser por sempre foi? Néo! .. . que sou flor formosa e duro eterno arrebol, ue se 0 sol me viu nascer, 1070 nfo verd meu fim 0 sol! Se eterna sou, como posso morrer? Que dizes tu, voz? voz Canta Que na alma tu és eterna no corpo mortal flor. FOAMOSURA 1075 Jando tenho o que dizer contra 0 que dito me foi. Daquele berco sal eaquele sepulcro vou. Muito me pesa o no haver 1080 feito meu papel methor. .. Retirase MUNDO, Bem acabou o papel, se arrependida acabou. Ico De suas galas e adornas @ louganias se foi 1085 Formosura. LavRaoR No nos falte pio, vinho, leitdo e boi por Péscoa, que Formosura sem saudades minhas foi. 43 DISCRICAO Inda assim, é grande dor! POBRE 1090 E causa de maior dé. Que vamos fazer? Rico Voltar. a0 ponto que se deixou. LAVRADOR, Quando o-ansioso cuidado. com que acudo a meu ki 1095 olho, sem medo co calor € a0 frio destemperado, e advirto 0 descuidado da alma, to tépida, eu ja Culpa Ihe dou, pois esta 1100 dando gragas, como um bruto, 0 campo, porque dé fruto, © a Deus nao, que tudo da, ; MUNDO Perto esta de agradecido | quem reconhece o favor. POBRE 1105 Inda que me repreendeu, concorde com o lavrador. voz : Canta Lavrador, o teu trabalho @ ponto final chegou. 480 seras de outra terra, 1110 E onde 6? Sabe 0 Senhor! ‘ LAVRADOR Eu, voz, se de tal sentenca apelar posstvel for, recorro, pois eis que apelo a tribunal superior. 1115 Nao morra eu por agora, aguarda estagdo melhor, ‘a0 menos que minhas terras deixe-as eu em ponto bom; e porque, como ja disse, 1120 sou maldito lavrador, como dizem minhas vinhas, cardo acardo, flora flor, pois to alto esté o capim que duvida quem olhou, 1125 se um pouco afastado estd, se trigo ou vinhas olhou. Quando o trigo do vizinho 6 um gigante no estupor, quase ando o meu parece, 1130 pois mal do cho aflorou. Dird, sei, quem isso ouvir, que até que 0 momento ¢ bom, estando 0 campo sem fruto morrer eu, € a isso vou 1135 responder: — Se muitos frutos deixa um, mas nao respeitou testamento de seus pals, que faz sem frutos, Senhor? Mas jd ndo € tempo de graces, 1140 pois al que o fim chega, e j4 0 sepulcro abriu sua boca de horror. ‘Se meu papel ndo cumpri conforme que dito foi 1145 pesame que nao me pese sentir uma grande dor. Retirase 45 MUNDO No comeco o lavrador bruto eu cri, e elemostrou, ‘com seu fim, que eu me enganava. 1150. Ele assim bem acabou! RICO. Enxadas, arados, p6, cansaco e muito suor, deixou tudo o lavrador. POBRE Muito aflitos nos deixou, DISCRICAO. 1155 Que pena! re POBRE Que desconsalo! DISCRIGAO. ‘Que choro! POBRE Que grande horror DIScRIGAO Que vamos fazer? RICO. Voltar 0 ponto que se deixou, E, por fazer como todos, 1160. dizer 0 que sinto vou. A quem de nds néo assusta ser esta vida uma flor nascida no suave alvor cuja vida a tarde susta? 1165. Nessa brevidade injusta, de nossa vida gozemos © breve instante em que a temos, Nosso ventre em deus facamos, comamos hoje & bebamos 1170 que amanha n6s morreremos! wunoo Coisa de gentios é © que o rico nos propés, assim o disse Isafas,”° Discri¢&o Quem fala agora? POBRE Eu sou. 1175 Perega, Senhor,.o dia em que « este mundo nasci. Perega essa noite fria em que a vida concebi para penar de agonia. 1180 Nunca acenda a luz pura do sol entre escuras névoas. Tudo seja sombra escura, nunca vencendo a téo dura opressdo das negras trevas. 1185 Eterna essa noite seja, cocupando pavorosa seu espago, e, que nao veja ‘0 céu, em caliginosa escuridio sempre esteja. 1190 De tantas centelhas belas seja luz seu arrebol, Jo 13, Calderén identifica 9 epieurismo, fos dos steulos XVI 6 XVI, 2 Np ratarsnels a /saias, XXII, vers que caracterizou muitos textos Mr 47 dia sem aurora ou sol, nolecy lua ou estrelas. do porque t 1195 6, Sonhon ue deneances no” Por me ver em tal estado; ‘mas sim porque considero ue fui nascido em pecado, aoe MUNDO engana 0 desespero 1200 de quem tao alto gritou. que assim, maldizendo o dia, maldisse 0 pecado J6,2! Canta ie Numero tem sempre a dita, ntimero também a dor; 1205 dessa dor ¢ dessa dita vinde a dar contas 0s dois. Rice Ai de mim! ie POBRE Que alegre nova’ Rico A esta voz que nos chamou ndo tremes de medo? POBRE Sim. ‘As glos08 20 Inmento de J6 Livra de ‘xprestva repertorio da teratuta espanhola de ¢poce 48 46, Il, versfculos 36) eonstituery um Rico Fugir nd vais, pois? POBRE 1210 Nao vou. Que é natural condicéio © tremer de medo em nés' temera Deus, com ser Devs, quem como homem a escutou. 1215 Mas, se em vao seré fugir, porque, se dela ndo foi dado fugit ao poder @& formosura, assim, pois, ‘0 que, entéo, faré a pobreza? 1220 Antes mil gragas Ihe dou, pois com isso acabara com a vida, minha dor. RICO Como nao sentes deixar © teatro? POBRE Como pois 1225 nele nao deixo alegrias voluntariamente vou! Rico Eu arrastado, que deixo, as riquezas, meu amor. POBRE Que alegria! ; RICO Que tristeza! 49 PouR Que consol! i Aico a Que amargort Que dita! peers RICO Que sentimento! POBRE ‘Que ventura! cue anf? 2 ue rigor! Retiramse os dois g MUNDO Que desenéontro, ao morrer, do rico edo pobre foi!” DIScRICAO 1235 Na verdade, no teatro do mundo sozinha estou. 3 MUNDO jempre o que petmaneceu em mim a religido foi. DISCRIGAO 24g Sat au ela seabar no Be mas eu sim, porque ndo sou religido: somente um membro quam esse estado adotou. E, antes que a voz me chame, eu jA me antecipo 8 voz 1245 do sepulcro, pois que em vida me sepulto, com que dou, por hoje, fim a comédia ‘que amanhé fard o Autor. Emendai-vos no amanhi, 1250 vendo os erros de hoje v6s. Fecha-se 0 globo da terra AUTOR Castigo e prémio acenei a quem melhor ou pior representasse, @ Vero que castigo e prémio dou. O globo celeste se fecha com 0 AUTOR dentro MUNDO 1255 _Curta foi a comédia! Porém quando nao foi curta a comédia desta vida, para aquele que estd considerando que ela é tG0-s6 uma entrada, uma safda? 48 todos 0 teatro véo d 1260 a sua matéria-prima redur a farma que tiveram e gozaram. Po saindo de mim, pois po entraram. Cobrar quero de todos, como é dado, as jdias que thes dei com que adornassem 1265 ‘a representagdo sobre o tablado: pois tudo foi quando representassem, Nesta porta me ponho e, com cuidado, farei que meus umbrais eles no pessem sem que aqui deixem gs galas que tomaram. 1270 Pé saindo de mim, pois pé entraram. Aparece 0 REI cando, 3 Calaardn rovive, neste auto « ary plano sdculo XVII, edaencada morte mecio~ Wal, Neste momento, 0 MUNDO faz 0 papel da morte, ao despojar 08 ho- ‘ens ipersonapens de tudo © que tacaberam par ‘vdelrepreeintaglo. 51 52 Tu, que papel fizeste, tu que agora 5 0 primeiro a minhas mos chegado? REI Pois o Mundo 0 que fui to cedo ignora? MUNDO ‘Ao Mundo do que foi lembrar néo é dado. REI 1275 Alguém fui que mandava quanto doura © 501, de luz e resplendor ornado, desde ao nascer da suave aurora em bracos, até que em negra sombra Perca 0s passos. Mandei, julguei, regi muitos estados; 1280 achei, herdei, construf grandes memries; Vi, tive, concebi sabios cuidados; possu/, gozei, logrei varias vitérias, Fiz, aumentei, vali varios privados, compus, formei, deixei varias historias; 1285 vesti, imprimi, cingi, em ricos dossé as plirpuras, os cetros e lau) MUNDO Descinge, deixa, tira jd a coroa; ‘a majestade despe, perde, olvida; Tira-the os adornos volte a si, torne, saia tua pessoa 1290 nua outra vez da farsa desta vida, A purpura, que a voz tua apregoa, breve e jé de outro se verd vestida, pois de tirar ndo has de minhas crugis ‘méos, pirpuras, nem cetros ou lauréis. REI 1295 Tundo me deste adornos tao amados? Como me tiras 0 que jé me deste? MUNDO Pois emprestados fore nee palo durante o tempo que © Para outro deixa todos os stadt, 4300 a majestade e pompa que tiveste. REI Como de rico fama Sempre sspitas, ara der ndo tens, se n: Que tenho de licrar em meu prov He de haver, no mundo, 0 rel represerta MUNDO eto 1305 Isto, o Autor, como bem ou mal oe feito, rémio ou castigo te ted guarded; te cabe aim, endo, come Suse, teu cul \hecer teu descui fo ou Sobrarme abe o raj que lat, ds de deixar como : 10 porque me has 1910 tiparece a FORMOSURA MUNDO Tu, que fizeste? FORMOSURA Gala e formosura. MUNDO Que te entreguei? FORMOSURA Perfeita uma beleza. MUNDO Pois onde esta? FORMOSURA Deixei na sepultura. Munpo De assombro'pasma aqui a natureza 1315 vendo quao. Pouco a formosura dura, que do come¢o ao fim, foi-se a beleza: ois 20 querer cobré:la eu, que digo? nao a leves tu, nem fica ela ‘comigo. O Rei, a majestade me ha deixado; 1320 aqui hd deixado o dustre ea grandezal A beleza nao passo haver cobrado, ue morre com seu dono o que é beleza, Olha-te neste espelho, FORMOSURA Hei-me olhado. MUNDO Dize, onde est a beleza, a gentileza 1325 que te emprestei? Torné-la a mim procura, FORMOSURA Pois toda a consumiu a sepultura, Ali deixei matizes como cores; ali perdi jasmins como corais; ali desvaneci rosas ¢ flores, 1330 ali destruf marfins como ¢ Alli turvei afetos e primores; ali desfiz desianios e sinais; ali eclipsei brilhos e raflexos; ali nem acharés de sombras nexos. “Surge 0 LAVRADOR tas, MUNDO 1336 Tu, viléo, que fizeste? LavRaooR Se vilio, forca era que fizesse, espanto ha?, um lavrador, que te estilo vio o nome da. aquem a terra lavra r Sou aquem trata sempre 0 cortestio 1340 com vil desprezo e a quemn ma fama dé; @ sou, bem que de sé1o 0 eu no reclama, aquele que ele, tu ou vés se chama. MUNDO Deixa me o que te dei: LAVRADOR Tu, que me has dado? MUNDO Uma enxada te dei. LAVRADOR Joia sem jaca! MUNDO 1345 Com ela, boa ou mé, terds pagado. LAVRADOR luem o coragiio ndo despedara, dase que deste mundo desditado, por onde em mil trabalhos sempre passa, tim enixado, do corpo vil castigo, 1350 néo Ihe deixam inda assim levar consigo’ Surgem 0 RICO @.0 POBRE MUNDO Quem vem 18? 1 RICO Quem de ti nunca quisera sai 55 56 POBRE ay luem de ti sempre ha desejaco sair. MUNDO Como, se eu saber puderal, a eae ixarme e no deixar-me havels chorado? Rico. 1355 Eu, porque rico @ poderaso era, POBRE E porque eu era pobre e desditado, MUND Dame estas jas ‘oma as joias do RICO o(fOBRe of ha que bem fe nao ter eu que senti i sae Sime MERE ir deixar 0 mundo. Tuque'20 teatre a recitar on : -atro a recitar ent }360 como, dize, 8 comédia ngo vieste?” ; CRIANCA, ia ‘num sepuloro me tiraste. Alite deixo agora o que me deste \parece a DISCRIGAO Munpo Tu, quando as 7 Portas do viver cham a Por teu adorno oque a pedir viesto? f ois 1965 Pedi a religito «2 chediéncie. Cilfcios, disciplinas e abstinéncia, ‘MUNDO Pois deixa tudo em minhas méos; dizer nfo possam que alguém leva galardao. pIscRICAO No quero; para ao mundo néo perder 1370 tao duros sacrificios e oracdo; ‘comigo 0s levo assim, por exceder a tua propria paixdo tua paixéo: ‘ou tenta ver se 4 de mim tu ‘cobras. MUNDO Nao te posso tirar as boas obras. 1375. Elas to-s6 do mundo se héo livrado. REI ‘Quem mais reinos néio houvera possufdo! FORMOSURA, ‘Quem mais primor no houvera desejado! Rico Quem mais riquezas nunca houvera tido! LAvRADOR Quem mais, ai Deus!, houvera trabalhado! POBRE 4380 Quem mais ansias houvera padecido! MUNDO E tarde j, que apés a morte vem info poder méritos ganhar ninguém. “Ja que hei cobrado augustas majestades, ja que hei desfeito belas perfeicbes, 1985 j4 que hei frustrado assim to vés vaidades, j4 que igualado hei cetros e enxadBes, 57 0 teatro ide agora das verdades, ‘que este aqui é 0 teatro das ficcdes, REI Pois recebes de forma tao diversa da despedida? MUNDO 0s gestos acompanham as patavras 1390 Ja a razdo observa: Se alguém recebe a graca prometida, as mis, atento a tal fortuna, poe desta maneira; e se, com aborrecida aco de algo se livra, assim as poe. 1395 Assim recebe o bergo o homem na vida, Mas se 20 contrario 0 berco se dispée, ‘tumba ser, Se pois vos recebi em ber¢o, como tumba despedi. Retirase POBRE Pois que tio tirano o mundo 1400 de seu centro nos arroja, vamos nds aquela ceia que em prémio de nossas obras nos ofereceu 0 Autor. REI Tu, pobre, também afrontas 1405 meu poder, que vais na frente? Ta cedo assim a memoria que foste vassalo meu, misero mendigo, ignoras? PoBRE J acabado teu pépel,. 1410 eis, no vestudrio agora do sepulero, que iguais somos. (O que foste pouco importa. Rico Dirigindo-se a0 POBRE Como te esqueces que a mim ontem pediste uma esmola? POBRE 1415 Como te esqueces que tu nada me deste? FORMOSURA, Ja ignovas Dirigindo-se 4 DISchIGAO ‘a estimagao que me deves por mais rica e mais formosa? DISCRIGAO Mes no vestuério ja 1420 somos parecidas todas, que riuma pobre mortalhe no ha distingao de pessoas. RICO. Dirigindo-se a0 LAVRADOR Tu avangas na minha frente, vildo? LAVRADOR Daixa tu to foucas 1425 ambigdes, pois que ja morto - _dosol que foste és 86 sombra. RICO Nio sei o que me acovarda de ver 0 Autor agora. 59 PoBRE Autor do Céu eda terra, 1430 jé tua companhia toda que da vida humana fez pega de pouca demora, 4 grande ceia que tu ofereces, chega; corram 1435 as cortinas de teu s6lio aquelas candidas folhas. Com misica, descobre-se outra vez 0 globo celeste: dentro dele o AUTOR sentado a uma mesa com célice e hdstia. Aparece 0 MUNDO, AUTOR Esta mesa, onde tenho © pao que 0 céu todo adora © 0 proprio inferno venera, 1440 vos espera; mas importa saber os que ho de chegar a cear comigo agora, Porque desta companhia vdo-se embora 0s que nao logram 1445 seus papéis, por thes faltar entendimento e meméria do bem que sempre Ihes fiz com tantas misericérdias. Comigo venham cear 1450 0 pobre e a religiosa que, se por terem saido do mundo este pao nao comam, sustento sera adoré-lo Por ser objeto de glori Sobem os dois PoBRE 1455 Ditoso eu! Oh, quem passara mais penas to lastimosas, pois penas por Deus passadas, quando so penas, séo glorias! DISCRIGAO Eu, que tantes peniténcias 1460 fiz, mil vezes sou ditosa, pois tao bem delas desfruto. ‘Aqui ditoso ¢ quem chora confessando haver errado.. REI Eu, Senhor, entre essas pompas 1465 ja nao te pedi perdao? Pois, por que nao me perdoas? AUTOR A formosura e 0 poder por aquelas arrogancias que tiveram, pois choraram, 1470 subirdo, mas nao agora, com 0 lavrador também, ‘que se nao te deu esmcla Dirigindo-se 20 POBRE no foi por néo querer dé-ta, mas teve intencao piedosa, 1475 ¢ aquela reproensio foi de um modo misteriosa Para que tu te ajudasses, LAVRADOR. Essa minha intenego toda, que nao quis ver vagabundos. AUTOR 1480 Por isso dou prémio agora, €, porque chorando culpas 61 pedistes miseriebrdia, 08 trés jd, no Purgatorio, numa dilacéo penosa ‘ estareis. DISCRIGAO 1485 Autor ino, C ‘a0 meio de tanta afronta, © Rel me estendeu sua mio a minha lhe dou agora. Dé a mio ao REI que sabe. AUTOR Perdéo-Ihe a pena, entao 1490 pois a religio 0 abona. : FORMOSURA, Pois vivo com esperangas, voem anos, tempo corra. LAVRADOR Bulas de defuntos chovam sobre meu castigo agora, é 1495 tantas que, por chegar antes, ‘tropecem umas com outras; pois so estas letras santas do Pont/fice de Roma mandamentos de soltura 1800 desta prisdo tenebrosa, + CRIANGA Se nao errei meu papel, por que nao me galardoas, 6, Senhor? AUTOR Porque bem pouco acertaste; e, ento, agora, 1505 1510 1515 1520 1626 1530 nao dot prémio nem castigo. Cego, nenhum dos dois goza, pois que nasces do pecado. CRIANGA Agora, noite medrosa, como num sonho, me tem ogo, sem peng nem gléria. RICO Se 0 poder ea formosur por toda aquela vanglor que tiveram, e, com ter chorado, tanito se assombram; € 0 lavrador, que a gemidos enternecera uma rocha, esté tremendo de ver a presenga poderosa da vis8o do nosso Autor, como ouso vé-la eu agora? Mas é preciso chegar, pois néo hé onde eu me esconda de seu rigoroso jufzo. Autor! AUTOR Por que assim me chamas? Pois se Autor me cras, justo & que digas tal com vergonha: eis que em minha companhia nfo has de.estar. Dela te arroja meu poder. Desce ja onde te atormente tua ambiciosa condi¢do eternamente entre penas anguistiosas. b RICO Aide mim! Que envolto em fogo 63 aio arrastando-me a sombra 1835 para onde a mim préprio néio ossa ver eu! Duras rochas Sepultem minhas entranhas em tenebrosas alcovas! DIScRICAO Infinita gloria tenho! FORMOSURA 1540 Té-la eu espero ditosal LAVRADOR Formosura, por desejos, nao me levarés a RICO Nao a espero eternamente, . CRIANCA, Nao tenho, para mim, gloria. AUTOR 1845 As quatro postrimerias™ ‘so as que presentes notam vossos olhos, e porque destas quatro fique a prova que a primeira ha de acabar, 1850 suba a Formosura agora mais o Lavradar, alegres, a esta mesa misteriosa, * a joa era 0 prémio que recebis « companhis que repretentause 0 melhor auto ‘do ano. Mais uma vez, Calderon interprata dois planos, relkiaue # feed ‘0 fceo dentro de fiero, dando as parsonegens a visSo dos stores que ar aa interpretavam, Postrimerias ou Noviesinos do homem sto morte, juamento, inferno © ior, 64 pois que j4, pelas facigas, merecem subir na gléria. + Sober os dois. FORMOSURA Que ventura! LAVRADOR 1555 Que consolo! RICO Que desdita! REI A Que vit6ria! Rico ‘Que sentimento! DISCRIGAO Que aliviot POBRE Que dogura! RICO Que pegonha! CRIANGA. Gléria ¢ pena hé, porém eu 1860 néo tenho pena nem gloria. . AUTOR Pois 0 anjo |4 no céu, aqui no mundo as pessoas e ld no inferno o deménio, todos a este Pao se prostram; = 66 1565 no inferno, como no céu eno mundo, todos ougam doces vozes que o louver concertadas e sonoras. Soam charamelas, cantando-se 0 Tanturn ergo muitas vezes.”* MUNDO E pois representagdes 1570 no mais é que a vida toda, merega alcangar perdao tanto de umas como de outras”® FIM © canto do Tanturn ergo faz pare da lturia do Corpus Christ! que {ol slsbo- "alapor Santo Tomas de Aquine. O (nallza-sywste auto com aquee run ‘comprove o carster paraitaraiao da representagio dos autos secramentas, durante aqual,alids, ainda que luz do sol, mantinhamse velas aces. (© auto termina com mais um dado do seu carster de metateatro, pois 0 par- {6% a que o mundo se rafore era 0 final corrigueiro das peeat de teatro da f§0ca, quendo s personagem, jé como ator, s9 dirigla 20 publico. Neste ‘auto, junte-se a ests caracteristca da retorica testral 0 perdso solicitado la bersonagem er funcio da trama que acsbava de ar spresentada, Danea da morte (Alpes Naritmos, Francs, desenho amy aqunrela, Colegs0 There: za Gristine Maria, BiDWoteca Necional, Rio de Janeiro. ‘A dance da morte estruture O grande teatro do mundo, onde se desenvolve 0 tema da morte igualltéria, que nao respeita as hierar ‘quias estabelecidas pelos homens.

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