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48 PRESERVACAO / PROBLEMATICA GERAL_ DOCUMENTOS HISTORICOS, DOCUMENTOS DE CULTURA ANTONIO AUGUSTO ARANTES ma das peculiaridades talvez I mais marcantes do patrimOnio cultural de toda a regio sul do Brasil €asua tio mal preservada diversi- dade. A presenga dos imigrantes e de sua heranca € to forte em algumas localid- des que frequentemente nio é dificil re- conhecer, as avessas, uma vertente lu- so-brasileiraem contextos italo,nipo, ju- daico ou teuto-brasileiros. Apesar disso, ‘em Sto Paulo, por exemplo, o Casario {do Ché €0 tinico bem associado & imigra- ‘do reconhecido pelo governo federal ‘como parte do patriménio cultural nacio- nal. Ele foi construfdo pelo arquite- to-carpinteiro Kazuo Hanaoka para abri- ‘gar uma fbrice de ch4, no Municipio de Mogi das Cruzes, no ano de 1942, Esse cdificio, que estédetalhadamente descri- to em volume publicado pelo Conde- haat, esta sendo preservado gracas & cdo perscverante de pesquisadores res- paldados por segmentos da comuidade nipo-brasileira que t8m se mobilizado para que ele seja, “‘a um tempo, simbolo de um passado ¢ espaco, hoje, de viven- cia cultaral. Na bibliografia especializada — as- sim como na agéo dos 6rgaos oficiais de preservagao no Brasil — ha relativa- mente pouca reflexio sobre alguns as- pectos da questio preservacionista que se ‘poem em relevo em casos como esse, em ue 0 sentido de se preservar um bem ul- trapassa os limites de suas caracteristicas formais ou valor testemunhal. Nesse ‘aso, tal “transbordamento de sentido” dé-se positivamente: a preservagao de lum monumento que testemunha a imi- ‘gra¢o ao mesmo tempo informa acomu- nidade nacional como um todo e, parti- cularmente, os imigrantes e seus descen- ddentes, motivando-os a procurarem sa- ber mais arespeito de sua propria historia « de sua posigio nesta sociedade. Além disso, ela € um processo socialmente agtutinador porque propicia a aio do grupo em tomo de uinnicleo de imteresse comum e, a0 mesmo tempo, especifica (no sentido de ser diferenciado dos de- mais ¢, de certo modo, exclusivo). Na preservacio de outros bens, como por exemplo o Instituto de Educagio Caetano de Campos ¢ a residéncia de Gregori Warshavehick, & Rua Santa Cruz, na cidade de Sao Paulo, reencon- tra-se 0 mesmo tipo de mobilizagéo a partir de interesses de comunidades iden- tificadas positivamente com 0 bem: no primeiro caso ex-alunos, no segundo pessoas residentes no mesmo bai. Ao Jado desses, ha diversos casos em que so- bressai, em vez disso, o desencontro en- {re os interesses imediatos dos érgéos preservacionistas os da comunidade diretamente afetada. Por exemplo, os centros hist6ricos de Iporanga e Santana do Pamafba, a Serra do Japi, a cupela de ‘Sio Miguel Paulista, sio casos em que ou a comunidade é frontalmente contré- ria & preservacio, ou ela exige negociar (0s termos em que a preservagao seré feita ‘ou contesta a destinagéo que se dé a0 bem tombado, ‘Todos esses exemplos indicam que a acdo desenvolvida pelos éreios oficiais, se realiza com variados graus de autono- mia em relagéo & vontade politica da so- ciedade. Decorra ela de iniciativa respal- ‘dada em principios estrtamente técnicos ‘ou da pressio exercida por movimentos © ‘grupos politicamente organizados; cla nao € jamais agdo culturalmente newtra ‘que posse ser eabsorvida suave e homo- geneamente por toda a sociedade. A *preservacio'’ do patrimonio cultural é, antes, pratica social que acrescenta no- vy0s bens, valores ¢ processos culturais 8 experiéncia da comunidade envolvida Nesse sentido, ela é sempre uma forma se intervengéo* A partir de um sobrevdo pelo con- junto de bens tombados pela SPHAN no Estado de Sio Paulo, pretendo formula, ainda que tentativamente,algumas ques- tes como objetivo de contnibuir para um avango na compreenséo da cultura que se cria € dos provessos sociais envolvidos na preservagio do patriménio cultural 1. O Brasil em Sao Paulo: comentarios & agdo desenvolvida pela SPHAN No Estado de S40 Paulo,’a SPHAN tom- bou até a presente data 50 bens iméveis, sendo 47 edificagdes individuais ¢ trés conjuntos (os remanescentes da vila colonial de Sao Vicente, a aldeia de Carapicutba e as casas modernistas de Warshavehick), seis conjuntos de bens iméveis ¢ uma imagem isolada. Os im6- veis so, em sua quase totalidade (cf Quadro 1), templos ¢ conventos catoli: cos, sedes de propriedades rurais ¢ resi- déncias urbanas, construidos principal- ‘mente entreasséculas XVILe XIX (44/50). Antonio Augusto Aranies, antropdlogo, € professor da Universidade Estadual de Cam- pinas (Uieamp) e Secretirio de Cultura de Campinas. Foi presidente do Condephaat (1982.84) e publicou, além de diversos arti £05, 05 seguintes liv: O trabalho ea fala (Kairds, 1982). 0 que ¢ culura popular (Bra- siliense, 1981, I1.ed.) e Producindo o pas: sudo (Brastinse, 1984) NL REVISTA DO PATRIMONIO HISTORICO Ne 22/1987 E ARTISTICO NACIONAL 49 ——<—————_ QUADRO! ‘A maior parce dessas edificagbes es- té localizada sobre os eixos Sao Paulo— Tipos de iméveis XVI_XVIL_XVII_XIX XX Total} Santos, vales do Tiet@ e do Paraiba, que | sh fren sigificativas fundamental Remanescentes = > 1 = 2 ‘mente do ponto de vista os ciclos econ ‘Templos catslicosiconventos, ae geet eee rmicos que se desenvolveram na Col6nia, eno Império (ef. Quadro I) Sedes de propried. rurais 14 3 5 1 44 Tomando-se por bse as datas em que Residéncias urbanas - 1 2 8 1 eR foram feitos esses tombamentos (Quadro I), nota-se que esta agio desenvolveu- Centros histéricos EPH oes eaeet aero : se, gross modo, em volume decres- Ed. milit. adm. judicidrias 1 1 PEE PEeeEH Eee cente, hayendo dristica diminuigao dos Outros us0s See ee rier terrae tombamentos nas duas titimas décadas, Apenas muito recentemente alguns pou- | cos bens construfdos neste século foram Total de bens iméveis atte a- es eed eee considerados parte integrante do patri- ini ofialente cones no i Bens mires: Coleg do Maen Palisa, do Museu de Ate Contemporincs, do Mu | Rie ofiimensresonkecido no seude Arte de Sao Paulo edo Museu de Arte Sacra, 14 telas de Portinarie uma imagem coats cass enbinonbes foray Saal eee lace apenas uma parte do trabalho de preset vvacéo desenvalvido pela SPHAN: em- bora certamente o mais efetivo. Igual- ‘QUADROII ‘mente importante foi a atitude das pes- soas que conduziram esse 6rgio, como Localizagao XVI_XVIL_XVII_XIX XX _Total__ | exemploaser seguido nos Estados e Mu- | rips, ¢ fundamentais a legislagio, a Sto Paulo e arredores 18 4 = 2 15 jurisprudéncia e os precedentes criados Santos ¢ arredores HEHEHE state eeHeeHg poressa acéo, Além disso, listasfris in- teressam pouco, como nos alertou hé eee eet eeeeett eee erreur tempos Walter Benjamin: “It is to cheat ‘0 Scbastido ¢ arredores aE er He eee eo ‘oneself to the richest prize to preserve as tu —~ —- 212 3 a record merely the inventory of one’s discoveries, and not this dark joy of the anhaém Peace eee Pete crete place ofthe finding itself.* Alta Mogiana, RoE Eee rE eee eet eee ‘cm prestar atengdo exagerada asses find Ere Pee eer 1 rimeros, entretanto, tra-se deles a im- pressio de que a agi oficial de preserva- (Campinas/Rio Claro Breet eee Heeeet eH eee eee Hee ‘gio partia, em Sio Paulo, de um universo Ipees (Sorocaba) REC renee errr ee eee fechado, que foi mais ou menos identfi- ‘cado na primeira década (perfodo em que 9: Regido esteve sob os cuidados de Total 4 2 6 7 2 50 Mirio de Andrade) e gragas a pesquisa teenicamente exigente de Luis Saia (seu auxiliar€ sucessor no érgao). Com o de- QUADRO IIL senvolvimento do trabalho, foi-se esgo- tando esse universo, tendo-se mantido, ata de tombamento XVII_XIX_XX_Total__| _grosso modo, 0 século XIX como ““pro- fundidade histérica minima’ para os 1937147 SHES HHO ta tet ee HUG: bens que viriam a consttuir a contribui- 1948157 nates ee eo eee io de So Paulo ao patrimonio histérico lsmuer Ssssseteresteer setesreecsnitiacates ¢ artistico nacional, no que diz respeito a bens iméveis ou ““monumentos arquite- 1968/77 eae ‘Gnicos”. Efetivamente Saia_chegou 197887 PE eee eee eee ety mesmo a sugerir diregdo da SPHAN' 0 cancelamento de medidas de preservago de alguns bens por consideré-los no Total 4 2 1 7 2 50 abrangidos pelos critérios de valor teste- LS 50 PRESERVACAO / PROBLEMATICA GERAL. munhal ou antiguidade pré-oitocentista deixando de lado, por exemplo, a ques- tio do seu eventual valor ambiental Aids, & de se notar que cinco das 13 resi déncias urbanas e sedes de propriedades rurais construidas no século XIX foram selecionadas por es personagens ilustres. proprio Mario de Andrade, que foi tum dos mais entusiastas incentivadores dessa luta, & qual deu efetivamente con: tribuigdes inestimaveis,” conhecia bem esse ponto de partida e ndo tinha uma ex- Pectativa muito alta sobre 0 que, de resto, aqui existiria de historica e artisti- ccamente significativo, © seguinte par grafo, por exemplo, introduz uma lista gem de ““monumentos arquiteténicos de valor histérico ou artistico, dignos de tombamento fe ‘Cumpre-me ainda lembrar mais uma vez 0 que jé afirmei a V mente. Nao ¢ possivel esperar-se de Sio Paulo grande coisa com valor atistico tradicional. As condigées historicas e econémicas deste meu Estado, a conti- ‘nua evasio de paulistas empreendedores para outras partes do Brasil nos séculos XVII ¢ XVIII, © vertiginoso progresso ‘casionado pelo café, sio as causas pri pais da nossa miséria artistica tradicio. nal. Ou ruinas de quanto 0 prog: taguera nao cuidou de conservar, ou pre ccariedades duma gente dura e ambiciosa, ‘que menos cuidava de delicias que aven tura. Se é sempre certo que sobram aos Paulistas mil meios de se consolar de sua pobreza artistica tradicional: consolago taéaque V surpreenderi da enumeragio que No Primeiro Relatério, documento através do qual Mario encaminha a Die toria da SPHAN em 1937 uma primeira lista de monumentos dignos de tombs: mento federal, chama a atengio 0 con. traste entre a presenga maciga de igrejas, capelas e conventos ¢ as poucas e impre: Ex: verbal! ino modifica a verdade. E es a “arquitetura civil Essa tendéncia de Enfase a arquitetura ca Wolica ada no Segundo Rela trio, onde se encontra um cuidadoso es- tudo intitulado “A pintura religiosa na regio de It {A partir dos nlimeros apresentados no Quadro Tacima, o que se destaca efetiva. ‘mente no conjunto dos tombamentos fe- € contin Dos tts conuntos ot pela SPHAN atl, dois eral Capela de CCarapicuba a casa dt Rus polis, 961, uma das tr casas modernists de ‘Warshavehick vila colonial de Sio Vicente brane a Fira France, Se re ea Ns 22/1987 REVISTA DO PATRIMONIO HISTORICO EARTISTICO NACIONAL 31 derais realizados em Sao Paulo sio bens constitutivos da vertente luso-brasileira de nossa cultura ¢, no interior desta, 0 trecho de sua linha de desenvolvimento principal que vai do bandeirismo a cafei- cultura no Vale do Paraiba. Certamente por coincidéncia, mas uma coincidéncia significativa, uma das constragdes mais recentes entre as preservadas justa- ‘mente a casa onde se realizou, em 1873, 4 Convengio Republicana de Ita! A nao ser por alguns objetos pertencentes. 40 acervo do Museu Paulista ¢ alguns pou- cos bens iméveis esparsos," na relagio dos bens tombados pelo governo federal «em Sao Paulo nada se encontra que se re- lacione com as grandes transformagGes urbanas por que passou a cidade de Sio Paulo nas primeiras décedas do século, ndo ha referéncia as ferrovias, nem aos Guarani e outros grupos indigenas que habitaram esta parte do Brasil ¢ nem rmesmo aos imigrantes, exceto 0 que jé mencionei no infcio deste artigo. Diversamente-do que ocorreu em Per- nambuco, Minas Gerais, Bahia ¢ Rio de Janeiro, principalmente apés 1967/68, a ‘maior parte do patrim6nio cultural local zado em So Paulo ficou para ser preser- ado a nivel estadual, onde tardiamente se criou © Conselho de Defesa do Patr- monio Historico, Anistico, Arqueols- gico e Turistico do Estado de Séo Paulo (Condephest).” Aliss, 1967770 & um periodo muito importante para a defi- nigio dos rumos desse questio, Além da saida de Rodrigo da Diretoria da SPHAN, com 0 que se encerrava, precisamente fem 1968, 0 que ficou consagracdo como tendo sido a fase herdica do Servigo do Patriménio Historico e Antistico Nacio- nal, foram estabelecidos oficialmente, nos anos seguintes, alguns principios de trabalho que sfastaram ainda mais Sko Paulo do contexto nacional e, 0 que € mais grave, vincularatn explicitamente 0 “patrimdnio histérico” aos interesses da indtstria do turismo, distanciando-o da questo cultural mais ampla. Refiro-me a alguns principios fixados pelas Normas de Quito, pelo Compromisso de Brasilia € pelo Compromisso de Salvador. No primeiro documento, assinado por diversos_ paises latino-americanos em 1967, dava-se uma solucio equivocada a tum problema real. Na reunido de Quito estudou-se, nas palavras de Carlos Le- ‘mos, “a situagdo do patriménio monu- ‘mental em face do momento americano, ‘onde a crdnica falta de meios se mescla a desorganizacio, comprometendo con- juntos significativos dada uma md ‘admi: nistragio do progresso urbano' "Afi mam as Normas de Quito que, principal- ‘mente nos pafses em desenvolvimento, “ndo € exagerado afirmar que 0 poten: cial de riqueza destrufda com estes ires- ponsiveis atos de vandalismo urban‘s- tico, em numerosas cidades do Conti- nente, excede em muito aos beneficios & ‘economia nacional derivados das instala- ‘gdes e melhorias de infra-estnutura com ‘que pretendem justificar-se”’." Para fa- “A acgdo desenvolvida pelos 6rgdos oficiais ndo é jamais agao culturalmente neutra que possa ser reabsorvida homogeneamente por toda a sociedade.”’ zer frente a esse problema, entetanto, solugéo preconizada pelo documento foi © enhancement desses bens” de modo a aque cles pudessem gerar dividendos fi- fanceiros através do turismo. Alis, em 1969, 0 mesmo assunto es- tava sendo debatido n0s Estados Unidos, onde a cultura tem sido freqientemente no tanto big government mas, principale mente, big business. Naquele pais, com repercussao em todo o mundo, disse 0 presidente do American Export Indus- tries Incomporsted, 0 qual, a0 mesmo tempo, era o presidente do Board for the South Street Seaport Museum, em seu discurso a0 National Trust for Histo- ric Preservation dos Estados Unidos: “Como homem de negocios, nio me foi dificil perceber a atragdo do Museu do Porto Maritimo de South Street le est falando de um investimento de 240 mi- Ides de délares), com os seus efeitos CEE inevitaveis sobre os valores imobilidtios, €, 4 mesmo tempo, proporcionando uma érea cultural ¢ de recreacao de baixa densidade para os residentes ¢ vistantes de Nova York. O que interessa as pes- soas", disse ele, “deve no limite interes- sar aos homens de negécio, Nao ha escapatériat'"* Voltando ao hicido ceticismo de Le- mos, “‘sinceramente, néo acreditamos que 0s. valores propriamente culturais no se desnturalizem e nem se compro- ‘metam ao vincularem-se aos “interesses turisticos’’”, dizia ele, referindo-se aos argumentos tornados oficiais pelas Nor mas de Quito, ‘se até mesmo um aci- rmulo de visitantes, num museu improvi sado qualquer, que se acotovelam aperta- dos e embasbacados, um ambiente que fora destinado evidentemente a outras priticas alheias a visitagao coietiva, jé constitui um comprometimento € até ‘mesmo uma violencia". Em 1970, 0 Compromisso de Brasilia reconhecia “a inadiével necessidade de agio supletiva dos Estados e dos Munici- Pios & anzagio federal” e, em 1972, 0 Compromisso de Salvador o ratificava, acrescentando recomendagdes no. sen- tido de que se desenvolvesse a indstria do turismo, “com especial atengao para planos que visem & preservagao ¢ valori- zagéo dos monumentos naturais ¢ de valor cultural especialmente protegidos por ei” Em 1977, Portaria Inerministerial assinada pela SEPLAN, MEC e MIC de- cide destinar os recursos. previstos na E.M, n? 24 de 22/77 “2 restauragao pro- ressiva de monumentos € conjuntos de Valor hist6rico e artistic e & preservagio de expresses culturais.significativas, com 0 objetivo de criar infra-estrutura adequada ao desenvolvimento e suporte de atividades turisticas”." Estava defi- rida a filosofia do Programa “Cidades Hist6ricas”, cujos relativos beneficios uma vez mais iriam passar a muitos qui- lémetros de Sao Paulo. Chama a atencio nessa trajetéria a crescente énfase dada aos interesses ma- teriais decorentes da ago preservacio- nista, Efetivamente, esse € um aspecto ‘crucial pois ela nio sé tem repercussées ‘complexas sobre a questi juridica da propriedade privada (em contraposigao 20 interesse social) como reflexos sobre © valor comercial dos bens escolhidos & dos que_ os ambientem (reas. envol- t6rias). © economiste J. Galbraith” foi tum dos que Se interessaram em refletir sobre os beneficios econdmicos e sociais que se eriam ao se preservar um bem. O que vejo como problemitico a esse res- peito € que essas medidas vincularam os investimentos. governamentais S exi- éncias do consumo massificado e a0s interesses empresariais do turismo, 0 ‘gue, por sua ver, reforcou a tendéncia de Se preservarem os suportes fisicos de uma historia reconstitufda de maneira li- rear e em tom glorificante.”” ‘Ao lado dessa tendéncia, ¢ evident mente como parte dela, houve uma cris- do debate e da acio oficial em torno do patriménio edificado pensado como colegio de bens individuais, con- ceito que, aos poucos, foi revestinda & confinando a perspectiva conceitual ‘mente ampla e sensfvel presente no fa- oso anteprojeto de lei elaborado por Mario de Andrade para 4 criacdo da 'SPHAN e que — ¢ preciso sempre men- cionar — inspirou © autor de Macu. Aligs, ao pé dos. “'monumentos”. principalmente nos centros historicos de algumas cidades, criaram-se — também ‘para servir aos turistas — espacos para o comeércio em larga escala do artesanto, ‘como que num esforgo de repovoar e re criar junto deles um caréter local pi- toresco. Como ja disse anteriormente, nao es- tou aqui fazendo comentérios & ago da SPHAN per se. Acredito que hoje nos conhecemos melhor do que antes. Co- nhecemos melhor as raizes das nossas culturas, somos mais criticos de. sim- bolos romanticos feitos de encomen como arquétipos de forga dos poderosos € da ingenuidade ¢ falta de orientacdo de tum povo concebido em terms abstratos. Conseqiientemente, talvez possamos concordar que a nossa histiria exige que Confrontemos as nossas especificidades, ue nos espethemos nelas e que explici- temos fatos ¢ possibilidades alternativas ue por diversas razdes foram relegados 2 obscuridade O prazer da descoberta eo entusiasmo de Mario, um dos pais fundadores, nio se renovou: tecnificou-se. E se, por um lado, a ago preservacionista’ ganhou | forga institucional em decorréncia disso, Por outro, ela acabou perdendo muito em abrangéncia, vendo-se forcada a deixar praticamente & sua propria sorte ou acri- {rio dos Estados © Municipios, regioes, situagdes e bens que se distanciassem e/ ‘ou contrastassem com esse niicleo de in- teresse principal Apss este longo percurso no concre- to, voltemos as preocupacdes gerais anunciadas na introdusao. IL. A “*preservacao do patriménio”’ como proceso cultural (© passado é lige para se med tar, nio para se reproguzir. M. de Andrade A trajet6ria esbocada acima convida are fletir mais detidamente sobre a ago pre- servacionista ela mesma, Entre os espe- cialistas, 0 foco do debate tem estado di vidido entre a conceituagio bésica de “*patrimdnio histérico ¢ artistico”” em suas relagdes ¢ contraposigoes com "pas trimdnio cultural”, “patriménio am- biental”, “bem cultural” ete. equestoes de arquitetura e planejamento urbano. A cexperiéncia acumulada nesses 50 anos de trabalho © o proprio avango te6rico dos ‘estudos sobre cultura, que tem mastrado as limitagdes das pesquisas que se preo- ‘cupam mais com os “bens cultursis"” do que com os processos sociais que os {geraram, a um $6 tempoexigem e permi- tem que nos debrucemos agora sobre 0 {que vimos fuzendo, tornando a nossa at Vidade, ela mesma, objeto de reflexio De tudo 0 que foi dito na primeira parte deste ensaio, fica claro que seria cexttema simplificagdo interpretar a agio preservacionista apenas como uma ativ dade técnica de organizagéao intelectual de residuos da historia, redundando ex clusivamente no salvamento ¢ salva- guarda de objetos materiais, significati- ‘os por indicarem ou testemunharem eventos que se tenha resolvido eternizar. ‘Um primeiro conjunto de indagagdes decorte do fato de, a0 que tudo indica, a acdo governamental atender em grande PRESERVACAO / PROBLEMATICA GERAL parte os vieses de interesse de algumas reas especializadas do conhecimento, quando nao de grupos de especialistas, ‘hum processo que talvez seja parte inte: grante de sua consttuigio e de sua his- toria enguanto segmentos profissionais diferenciados € organizados institucio- nnalmente, Nesse sentido, 0 estudo da ™ preservaco” como proceso cultural € parte da histiria da producio artistica e intelectual ‘A par disso, a exposigfo apresentuda cima, ainda que breve e incompleta. su ere que a ““preservacio™ na verdade ndo separa e congela bens, queiram as instituigdes fazer isso ou nao. Ela ine- vitavelmente os transfere para Contextos culturais especiais (por exemplo, © do desenvolvimento do turismo ou o dos de hates conceituais e tedricos de diseipl: nay académicas) nos quais eles incor Porurdo caracteristicas novas, A esse res peito, acredita haver também ainda mui- tas perguntas sem respostas defintivas Antes de mais nada, “ necessério com- preender melhor todo esse complexo proceso chamado “de preservacio"™ que envolve restrigdes e diretrizes téc- nico-administrativas espectficas, inves: timentos financeinos que gerardo expec- tativas de rentabilidade, tipos especiais de intervencao fisica (obras de conserva- ‘si0c restauro) ea reinterpretacao funcio- nal das edificagées (a questéo da reci- lage), Nesse complexo comtexto de inter- vendo juridico-administrativa. econ6: mica e arquitenica, hai que se aprofue. dar o conhecimenta do processo de reel boracao (ou apropriacio simbslica) que se da no plano socioldstico, Através de acréscimos de significado e transforma cies simbdlivas. esses hens sio come que recriados culturalmente pela “ pre- servagio"”, passando a carregar consizo inclusive as marcas do processo que os transformou em “bens do patriménio" (separacao do cotidiano, maior visibil dude, umacertaaurade importancia esa- cralidade ete.) , finalmente, como 2 agéo preserva cionista ndo termina na deeiséo oficial de se preservar, mas apenas inclu nece variamente esse fato, cabem perguntas acerca da recepgao social dos bens por ‘ela criados, ou seia. do que se passa no “retorno"” desses bens transformados eee TAARTISTICO NACIONAL. 33 Ne 22/1987 10 coti- | arma na luta politica ideol6gica pelo es- | tencendo ambivalentemente ao presente erpreta equados de qualidade ymplexo in. tos da socied A meu ver, soja respondendo as exi fe restrigdes ditadas pelos para mum, os bens oS tende a reproduzir ne digdes que en sda vida social. Em passado re inantemente de alianga tensa Scja como objeto de fruigio estética e conhecimento especializado, seja como terreno a aco militante dos grupos am 54 PRESERVAGAO / PROBLEMA ICA GERAL ‘onjuntura em que damente, sem si preocupados em aprofundar © nismo, pass a trabalho de preservacao para melhor Ne 22/1987 equacionar os problemas advindos do crescimento répido e muitas vezes mal administrado das cidades brasileiras, bbem como o alto grau de destruigioe de- terioragio do patrimdnio ambiental e do- cumental. Ao mesmo tempo, necessita- ‘mos de fundamentos e6ricos¢ empiricos claros para o estabelecimento do texto de uma nova Constituicéo, que efetiva- mente atenda os multiplos aspectosjuri- dicos e conceituais da questio preserva- cionista (Os problemas aqui abordados colo- ‘cam-se tanto para a agio nivel federal, {quanto estudual e municipal. Mas se cou be i SPHAN o papel fundamental dein ciadora e incentivadora dessa prit iv 08 érgios municipais que, por varias raabes, surgem na alualidade como ins- tGncias ceuciais na implementagao de politicas governamentais de defesa do Patrimonio ‘Teoricarmente, pelo menos, a ago de- senvolvida em eada um dessesniveis po- Iitico-administrarivos pode ser interre= tada como sendo rlativamente indepen dlemce das demas, j que os eritérios para selegio do que preserva mio sdo homo- sgéncos. Os bens de interesse mais locali- zado, que € 0 do municipio, nem sempre esto includos nos que So selecionados a partir de um primeiro grau de general ‘dade que constitu o patamar estadual, 0 mesmo ocorrendo deste com relagio 30 nivel federal e vice-versa ‘Como as razdes que orienta as deci soes em cada um desses plano pre sio conhecidas ou compartlhadas pelos demais, muitas vezes aga0 pre Servacionista oficial € vivida pelay cida- des como excesso ou como falta: as vezes 1 seatribui tanto valor (pelo menos ini- cialmente) a0 que & preservado. 3s vezes ni é prevervado o que € pereebido come importante para uma dada comunidad. ‘A existéncia de legislagio municipal resolve alguns desses problemas por per- Init a agdo complementar que € neces- ria para tornar a preservagio mais abrangente Mas isso nio & tudo. Hé pelo: menos sais um ponto a ser destacado, Como. ros anteriormente, es bens protegidos pelo Estado participam de uma dinamica muito particular que, na prtica, ocorre can contextosespacialmente localizados. (Os hens do pateiméaio nio param no va "REVISTA DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL io, Pelo contrario, eles estéo plantados ras cidades € zonas rurais de municipios € serdo diretamente afetados, valoriza- dos ou desvalorizados, conforme o que se passe cm seu contexto imediato. O valor social ¢ imobilidrio de um bem pode crescer ou diminuir conforme o tra- tamento dado a ele e ao seu entomo pelo planejamento, Por essa razio, talvez sobretudo por ela, vejo como sendo da ‘maior importancia 0 vigor dos instru: _mentos juridicos proprios do municipio. Mas se & de fundamental importéncia que exista legislagao adequada, no bas tam leis para atingirmos o grau de efi ceigncia que desejamos na valorizagio

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