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A trajetória silenciosa de pessoas portadoras do HIV

TEMAS LIVRES FREE THEMES


contada pela história oral

The silent itinerary of people with HIV


told through oral history

Maria Rita de Cassia Barreto de Almeida 1


Liliana Maria Labronici 2

Abstract The emergence of AIDS as a social and Resumo O surgimento da AIDS como fenômeno
historical phenomenon has brought along with it social e histórico carregou consigo os espectros cons-
specters held in social imagination, aggravating truídos no imaginário social, recrudescendo o con-
the concept of plague, generating strong feelings ceito de peste, mobilizando sentimentos e precon-
and prejudice, becoming a stigma. Such factors ceitos, tornando-se ela mesma um grande estigma.
ultimately affect HIV bearers’ well being. Thus, Fatores que afetam de maneira fundamental o
this study aims to understand the dimension of bem-estar de pessoas vivendo com o HIV. E para
the problem of HIV bearers who have not seeked compreender a dimensão do problema das pessoas
treatment in the National Health System and the que vivem com o HIV que não procuraram os
reasons which make this search so difficult. The serviços do SUS para o acompanhamento de sua
adopted methodological approach was thematic saúde, propusemo-nos a realizar este estudo tendo
oral accounts. Five HIV bearers collaborated in como objetivo apreender os motivos que dificul-
this study. By using content analysis, we observed tam essa procura. O referencial metodológico ado-
that the study participants do not go to Health tado foi história oral temática. Os colaboradores
Units near their homes fearing to be identified, do estudo foram cinco pessoas portadoras do HIV.
especially since they know they will certainly meet Utilizando a análise de conteúdo, observamos que
people from their neighborhood at the health units os colaboradores não procuram as Unidades de
who do not know about their HIV diagnosis. Be- Saúde próximas às suas casas pelo medo de serem
cause of this fear, they anticipate they will suffer identificados, principalmente quando sabem que
discrimination and stigmatization – due to the nesses serviços irão encontrar pessoas de seu con-
Este artigo é um recorte da
dissertação de mestrado disease‘s social significance – and so, to protect vívio social para quem não foi revelado seu diag-
intitulada “A trajetória themselves, they choose a secrecy that keeps them nóstico de HIV. Devido a esse medo, antecipam
silenciosa de pessoas
from trusting anyone and from seeking health care, que vão sofrer de discriminação e estigmatização
portadoras do HIV contada
pela história oral” defendida thus increasing their personal suffering and vul- – em função da representação social da doença – e,
em 18 de dezembro de 2004. nerability to develop AIDS. assim, para se proteger, escolhem o segredo que os
1
Pontifícia Universidade
Key words Stigma, Health system, Nursing impede de confiar em alguém ou procurar cuida-
Católica do Paraná. Rua
Imaculada Conceição 1155, dos para a sua saúde, aumentando seu sofrimento
Prado Velho. 80215-901 pessoal e sua vulnerabilidade para adoecer de AIDS.
Curitiba PR.
Palavras-chave Estigma, Sistema de saúde,
mariarita.cassia@yahoo.com.br
2
Departamento de Enfermagem
Enfermagem da UFPR.
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Almeida, M.R.C.B. & Labronici, L. M.

Introdução raram os serviços na busca aos cuidados de sua


saúde, alvoreceu a pesquisa qualitativa que per-
A AIDS, ao se fazer presente no mundo moder- mitiu um aprofundamento nos matizes e nas sin-
no, levantou a ameaça de uma crise global de gularidades procedentes de uma realidade social e
rápida disseminação e agravamento, exigindo humana e que falou através de faces ocultas, quais
respostas e a necessidade premente de criação de foram as situações nas suas vidas que as levaram
recursos econômicos, políticos, sociais e psico- a ‘escolher’ este caminho. Como referencial meto-
lógicos que dessem conta de uma problemática dológico, empregou-se a história oral temática,
com tal magnitude. tendo sido entrevistadas cinco pessoas soroposi-
Essa crise instigou principalmente nossa ca- tivas residentes em Curitiba – Paraná.
pacidade de lidar de forma humanitária com uma
doença repleta de símbolos, significados, imagens
imprecisas, falaciosas e que estimularam atitudes A contextualização social da AIDS
descomedidas de pânico, negação, intolerância e
discriminação às pessoas atingidas por ela. A sociedade, diante de uma nova doença que se
Assim, diante desse fenômeno profundamente disseminava rapidamente, que apresentava uma
alterador, avanços significativos aconteceram, alta taxa de letalidade e suscitava intensas emo-
ações foram implantadas, respostas foram sur- ções de pânico, de medo e de contágio, precisava
gindo, mitos foram sendo desbancados e se acu- ser prontamente caracterizada e entendida a fim
mularam experiências, reflexões e novas tecnolo- de minimizar as conseqüências de um mal que já
gias de prevenção e assistência e de defesa dos se imaginava abolido da experiência humana: a
direitos humanos. ‘peste’1. Rapidamente, a partir de uma interroga-
No entanto, o que parece ficar claro é que, a ção científica sobre os doentes, cujo número na
despeito desses avanços, dentre eles o advento dos época era muito limitado, produziu-se um dis-
antiretrovirais que melhoraram a qualidade de curso no qual se configurou a sensação de um
vida das pessoas, afastando-as da grande letali- risco iminente que repercutia sobre toda a coleti-
dade da doença, persevera a triste constatação de vidade, questionando nossos modos de vida e
que a epidemia ainda é soberana e que a relação nossos valores2.
do conviver com o HIV e a AIDS continua co- Tal questão diz respeito à construção social
brando um alto custo em sofrimento humano da AIDS, pois ao se fazer presente para o mundo
advindo do estigma, preconceito e discriminação humano, este precisava iniciar um processo de
que a doença impõe. construção do código de interpretações desta nova
A existência de tais questões faz com que mui- realidade. A questão imediata era estabelecer sím-
tas pessoas afetadas pela AIDS caminhem soli- bolos que, partilhados pela sociedade, lhe permi-
tária e silenciosamente, limitadas em suas possi- tissem a comunicação a respeito da mesma, a fim
bilidades de direitos e de acesso aos meios de de decifrá-la1. O fato interessante da AIDS é que a
proteção, promoção e assistência, obrigando-as construção do sentido e a elaboração do seu co-
muitas vezes a esconder sua condição sorológica nhecimento comum, produzido pela sociedade e
pelo medo de se expor e de padecer de preconcei- pela opinião pública, aconteceram paralelamente
to ou discriminação, respostas provocadas pelo à codificação médica, situação a que talvez nunca
estigma. tenhamos assistido1,2 .
E, para compreender a dimensão do proble- Assim, diante do desconhecido, a sociedade
ma das pessoas que vivem com o HIV e a AIDS produziu representações apoiadas na idéia de
que não procuraram os serviços do Sistema Úni- doença contagiosa, incurável e mortal, recrudes-
co de Saúde (SUS) para o acompanhamento de cendo o conceito de ‘peste’, cujo significado repre-
sua saúde, propusemo-nos a realizar este estudo sentava uma ameaça extrema à sociedade, atrela-
tendo como objetivo apreender os motivos que da a atitudes de evitamento daquele que a porta-
dificultam essa busca. va. Além desses entendimentos, a AIDS era uma
Os relatos e reflexões surgidos nesta investi- doença que levava à deformação física e estava
gação permitiram-nos delinear o movimento de associada a grupos considerados discriminados e
suas relações sociais, os significados que instituí- marginalizados, como os homossexuais, usuári-
ram às suas vidas, principalmente quanto à sua os de drogas injetáveis e as prostitutas. Essa for-
trajetória de vida após o conhecimento da soro- ma de representá-la serviu para retirá-la do cam-
logia reagente para o HIV. E, para engendrar na po das doenças, transmutando-a para o campo
ode obscura dos colaboradores que não procu- das doenças malignas, mobilizando sentimentos
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e preconceitos arraigados e evocando comporta- prazo a uma instabilidade ainda maior, pois no-
mentos e políticas discriminatórias, principalmen- vas e novas infecções continuarão a acontecer, uma
te em relação aos grupos supracitados. Assim a vez que os obstáculos sociais que se têm constru-
AIDS conglomerou vários estigmas, transforman- ído não poderão de forma alguma conter a epi-
do-se ela mesma em um grande estigma3. demia. Se o objetivo é de se ter respostas mais
Além dos entendimentos da peste e do estig- efetivas no controle dela, isto exige um entendi-
ma, as representações construídas para significar mento maior da forma como o estigma é cons-
a AIDS tiveram, igualmente, como base as cren- truído, sentido e experienciado.
ças e interpretações morais, principalmente rela-
cionadas à sexualidade, que acabaram instituin-
do valores para explicar a origem da situação que Compreendendo o estigma
provocou a infecção. Esse posicionamento moral relacionado ao HIV e à AIDS
da sociedade acabou inscrevendo culpa e respon-
sabilidade pelo fato de uma pessoa estar doente A discussão em torno do estigma parte do traba-
de AIDS ou ser portadora do HIV, dirigindo-lhe o lho clássico de Goffman8, que define estigma como
rótulo de culpada, pois o seu estilo de vida rom- um atributo que tem um significado depreciativo
peu com os comportamentos socialmente aceitá- de quem o porta e que a sociedade utiliza-o para
veis e, assim, a doença reafirma seu caráter de desqualificar a pessoa, uma vez que tal atributo é
pena e castigo. entendido como defeito, fraqueza ou desaprova-
Por conseguinte, os aspectos metafóricos atri- ção. O autor enuncia que a pessoa estigmatizada
buídos a ela alijam a experiência da pessoa soro- carrega uma identidade marcada e deteriorada,
positiva, que se vê merecedora dos castigos de associada a atributos que levam ao descrédito.
Deus, cujos pecados devem ser expiados pelos atos Logo, os estigmas de uma pessoa ou grupo aca-
transgressores que cometeu4,5, e a morte, que an- bam detonando reações e comportamentos de
tes era idealizada, agora se concretiza próxima e evitação e repulsa, e até mesmo reações violentas.
real, merecida e providencial em razões do seu Tal questão é fruto de um processo social e histó-
modo de vida como causa da infecção pelo HIV. rico das relações sociais que se utiliza para anali-
Diante desse momento, permeado por um con- sar as pessoas consideradas menos valorizadas,
junto de aspectos como medo, morte e culpa, além criando assim, rótulos que estigmatizam, discri-
de todo o cabedal das metáforas discriminatórias minam e excluem certos grupos.
que carrega consigo, a pessoa fica fragilizada, pois O estigma pode apresentar-se numa dupla
vivencia situações de ameaça à sua integralidade perspectiva: a primeira acontece quando há uma
física, emocional e social. discrepância entre a identidade social real da pes-
Em função dessas representações, advindas soa e sua identidade virtual. Essa pessoa é então
do preconceito e da ignorância, as pessoas com o considerada desacreditada. A segunda possibili-
HIV e a AIDS vivenciam emoções singulares per- dade na vida daquele que porta o estigma se dá
meadas de sofrimento dentro de um contexto re- quando a sua diferença não está aparente e não se
pleto de significados, entre os quais: o medo do tem dela um conhecimento prévio. Nesse caso,
abandono, de ser julgado e de revelar sua identi- ela é uma pessoa desacreditável8.
dade social, a culpa pelo adoecimento, a impo- A questão que Goffman8 coloca é que, nessa
tência, a fuga, a clandestinidade, a omissão, a ex- condição, há a necessidade da manipulação da
clusão e o suicídio, originados e construídos pelo informação sobre o defeito para que o mesmo
real convívio com o social que reforça os hábitos não seja descoberto. Então, na relação com ou-
e as expectativas e que estão profundamente en- tras pessoas, o indivíduo que porta um estigma
raizados numa sociedade preconceituosa6,7. esconderá informações sobre a sua condição, re-
Destarte, considerando as principais crenças cebendo e aceitando um tratamento fundamen-
explicativas que tipificaram a história social da tado em falsas opiniões a seu respeito. Segundo o
epidemia da AIDS agregadas aos domínios do autor, a falta de um intercâmbio saudável entre
estigma e da discriminação, podemos entender os atores sociais faz com que a pessoa estigmati-
como grupos e indivíduos sofrem de modo ine- zada se auto-isole, tornando-se desconfiada, de-
xorável os verberes desta doença e que oprimem primida, hostil, ansiosa e confusa, pois não se
àqueles que são acometidos ou os mais vulnerá- sente segura em relação à maneira como os ou-
veis à infecção pelo HIV. tros a identificarão e receberão, surgindo a sensa-
Registre-se que as repercussões negativas do ção de nunca saber aquilo que os outros estão
estigma e da discriminação conduzem em longo realmente pensando dela. Quando os estigmas
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são muito visíveis ou violentos, que chegam a fe- que ainda são objeto de estigma em muitas socieda-
rir a sua dignidade, o desequilíbrio resultante na des; (4) o fato de que muitas vezes se pensa que
interação pode ter um efeito arrasador naquele pessoas que vivem com o HIV e a AIDS são respon-
que recebe o papel de estigmatizado. sáveis por terem contraído a doença; (5) as crenças
Acrescente-se a este conceito novos entendi- religiosas ou morais que levam algumas pessoas a
mentos em relação ao estigma, como sendo não pensar que ter o HIV ou a AIDS é um resultado de
apenas uma construção social da realidade que uma falta moral (como promiscuidade ou as rela-
desvaloriza relacionamentos de um indivíduo pe- ções sexuais “desviantes”) e que merecem castigo.
rante o outro, mas, também, como processos O estigma e a discriminação relacionados ao
sociais profundamente enraizados nas relações de HIV e à AIDS, complementam Parker e Aggleton,
poder e dominação, criando e reforçando as desi- [favor complementar com número arábico refe-
gualdades sociais. Isso faz com que grupos se sin- rente à referência bibliográfica]podem ser perce-
tam superiores e outros, desvalorizados9. bidos e sentidos em dois níveis: o plano individu-
Dessa forma, é possível ver a estigmatização al, retratado pela vivência pessoal de atores soci-
desempenhando um papel chave na transforma- ais específicos e no plano social, que pode ser re-
ção da diferença em desigualdade, em relação a tratado como a experiência coletiva. Neste últi-
qualquer dos eixos da desigualdade estrutural mo, as leis, as regras, as políticas públicas e os
presente na diferença de classe, gênero, etnia ou procedimentos administrativos, decretados por
sexualidade, as quais têm maior relação com o muitos países com o fito de controlar as ações
HIV e à AIDS. Destaca-se, ainda, que a estigmati- dos indivíduos e segmentos da população afeta-
zação não ocorre de maneira abstrata; pelo con- dos pelo HIV e pela AIDS, têm demonstrado que
trário, ela faz parte de complexas lutas pelo poder essas medidas incrementam e reforçam o estigma
que estão no coração da vida social, ou seja, o às pessoas que vivem com a doença, bem como
estigma é empregado por atores sociais reais e àqueles que estão mais vulneráveis para contrair
identificáveis que buscam legitimar o seu status o vírus. Essas medidas incluem legislação para:
dominante dentro das estruturas de desigualda- (1) a testagem sistemática e obrigatória do HIV a
de social existente7. grupos e indivíduos; (2) a proibição de certas ocu-
Tais questões nos ajudam a compreender pações e formas de emprego para pessoas com HIV;
como a estigmatização faz as desigualdades pare- (3) o exame médico, o isolamento, a detenção e a
cerem aceitáveis, uma vez que ela instituiu uma imposição ao tratamento dos infectados; (4) as li-
hierarquia social entre os estigmatizados e não mitações das viagens internacionais e migrações; e
estigmatizados, criando e reforçando, de forma (5) a restrição de certos comportamentos tais como
sincrônica, a exclusão social9. o uso de drogas injetáveis e a prostituição 10:12.
Em relação ao HIV e à AIDS, é oportuno re- No caso de outras doenças infecciosas essas
lembrar que em 1987 Jonathan Mann chamou a respostas podem ser justificadas, continuam os
atenção para a existência de três fases da epidemia autores, mas no caso do HIV e da AIDS, por ser
da AIDS: a epidemia da infecção pelo HIV – uma uma doença que carrega consigo uma carga enor-
disseminação silenciosa e imperceptível do vírus; me de estigma, essas medidas dão lugar a repos-
a segunda, a própria epidemia da AIDS – mani- tas punitivas que discriminam ainda mais as pes-
festa pelo aparecimento dos sintomas de doença soas que vivem com o HIV e a AIDS, e podem
infecciosa, e a terceira, potencialmente a mais ex- levar os infectados e os que estão mais vulnerá-
plosiva, como a epidemia das respostas sociais, veis a uma maior clandestinidade.
culturais, econômicas e políticas à AIDS, caracte- No plano individual, como refere Zampiere,
rizada por reações carregadas de estigma, discri- a roupagem simbólica assumido pelo estigma
minação e por vezes negação e repulsa da coletivi- da AIDS passou a ser um dos grandes obstácu-
dade10. los que impedem as pessoas de revelarem seu
De Bruyn apud Programa Conjunto das Na- status sorológico pelo medo do abandono, do
ções Unidas sobre o VIH/SIDA10 identificou re- julgamento e de reações hostis ou negativas por
centemente cinco fatores que contribuem ao es- parte dos outros, o que pode impedir algumas
tigma relacionado com o HIV e à AIDS, que são: delas de ter acesso aos serviços de saúde e, por
(1) o fato de que o HIV/AIDS seja uma enfermidade conseguinte, melhorar a qualidade de suas vi-
que ameaça a vida; (2) o fato de que as pessoas das. Também resultam evidências de auto-estig-
tenham medo de contrair o HIV; (3) a associação matização ou de vergonha, o que pode conduzir
da doença a comportamentos (como relações sexu- à depressão, retraimento e a sentimentos auto-
ais entre homens e o consumo de drogas injetáveis) destrutivos. Estes sentimentos podem resultar
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em auto-isolamento e exclusão da vida social e portadoras do HIV que não procuraram os ser-
de relacionamentos sexuais, e em circunstâncias viços na busca aos cuidados de sua saúde. Já a
extremas até chegar ao suicídio11. Tais conside- escolha da rede, segundo Meihy, segue uma es-
rações levam algumas pessoas a não se sentirem pecificidade maior, pois é uma subdivisão da
mais parte da sociedade civil não conseguindo colônia que funciona como indicativo de como
procurar os serviços de saúde e apoio a que têm as entrevistas devem ser articuladas. Portanto, a
direito. A este fenômeno Daniel12 chamou de rede foi composta de pessoas que não procura-
morte social. ram os serviços para acompanhamento de sua
As pesquisas do Programa Conjunto das infecção e que já conheciam a sua sorologia há
Nações Unidas sobre o VIH/SIDA apontam al- mais de um ano.
guns caminhos para promover respostas mais Considerando que os colaboradores da pes-
eficaz com vistas a minimizar o estigma e a dis- quisa estavam ocultos ao serviço, solicitou-se a
criminação relacionada ao HIV e à AIDS. A ação interlocução de atores e líderes de Organizações
deve ser realizada em vários eixos, quais sejam: Não-Governamentais (ONG) que militam na
comunicação e educação para facultar uma AIDS para colaborar na sua busca. Reconhecidos
maior compreensão na construção de novos con- os colaboradores e verificado a sua correspon-
ceitos e idéias de relevância à estigmatização e à dência aos critérios de rede e colônia, eles eram
discriminação relacionadas ao HIV e à AIDS, convidados a participar da pesquisa. Quanto ao
proporcionado, assim, novas maneiras de número de entrevistas realizadas, obedeceu-se a
aprender os processos de mudanças, movimen- uma espécie de “lei dos rendimentos decrescentes”,
tos sociais e transformações culturais, bem como como alude Thompson15, ao dizer que, quando
o questionamento das estruturas de igualdade e os testemunhos começam a se repetir e as deno-
desigualdade em qualquer cenário social; ação e tações passam a ser constantes, está na hora de
intervenção para estabelecer um contexto de po- parar com as entrevistas. Foram, então, entrevis-
líticas mais eqüitativo, e um procedimento jurí- tadas cinco pessoas, entre 25 e 34 anos de idade,
dico, para exigir a observância dos direitos das sendo duas mulheres e três homens.
pessoas que vivem com o HIV e a AIDS, no sen- Respeitando as diretrizes e as normas que
tido de pedir contas aos governos, empresários, regulam as pesquisas envolvendo seres huma-
instituições e indivíduos, com o intuito de repa- nos, encaminhou-se o projeto de pesquisa ao
rar ou se opor aos atos discriminatórios. Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
O objetivo fundamental é buscar um esforço Federal do Paraná, que após o seu consentimen-
conjunto rumo a uma ação baseada na compre- to, foi iniciada a coleta dos dados. Ressalte-se
ensão, uma ação que promova modelos de con- que cada colaborador recebeu e assinou o Ter-
duta mais igualitários e progressistas em relação mo de Consentimento Livre e Esclarecido con-
ao gênero e à sexualidade, e que colaborem no tendo todas as informações necessárias à reali-
sentido de melhorar o modo em que vivemos e zação do estudo. Com o propósito de garantir o
nos relacionamos uns com os outros11. anonimato, foi escolhida uma ordem numérica,
aleatoriamente, para cada colaborador.
Para a obtenção dos relatos, utilizaram-se
O descortinar dos resultados perguntas norteadoras que não foram usadas
rigidamente, a fim evitarem o engessamento dos
Percurso metodológico relatos, mas com o intuito de “seguir uma ordem
de importância de inscrever os tópicos principais
Para empreender o objetivo desta investiga- em análise do depoente”14:146.
ção, optou-se como estratégia metodológica a Empreenderam-se, na pesquisa, os caminhos
história oral, mais especificamente a história oral da análise de conteúdo descrita por Minayo16,
temática, que é uma metodologia voltada à ex- que, segundo a autora, consiste nas seguintes
periência vivencial daquele que narra13,14, ou na fases: pré-análise, exploração do material, tra-
busca de informações factuais14. Para Meihy, os tamento dos resultados e interpretação. A partir
trabalhos em história oral devem seguir alguns dos dados colocados estabeleceram-se as cate-
procedimentos e princípios, tais como: a escolha gorias e, que foram elencadas buscando um en-
das colônias, a formação de rede, a entrevista, a cadeamento claro das idéias. As categorias emer-
transcrição, a conferência, o uso autorizado dos gentes foram: As vivências diante da situação li-
textos e o arquivamento dos depoimentos. Nes- mite; A expressão da sexualidade; O sistema de
se caso, estabeleceu-se como colônia pessoas saúde.
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Almeida, M.R.C.B. & Labronici, L. M.

As vivências diante da situação limite de periculosidade e inferioridade, e qualquer coi-


sa que faça para se defender será explicada pela
A doença é um momento de transição na vida da presença do atributo estigmatizante. O autor com-
pessoa, que desorganiza seu ser, suas relações e plementa que, freqüentemente, a pessoa estigma-
seus ajustamentos à vida em sociedade, e, preci- tizada passa a interiorizar as mesmas crenças da-
samente, aqueles que estão mais próximos, como queles que a estigmatizam e, assim, não se sente
família, trabalho, amigos, lazer e paixões. Essa ‘normal’ e digna de direitos e oportunidades legí-
constatação é acompanhada de muitas incerte- timos. Passa a sentir vergonha por portar tal atri-
zas, gerando ansiedade, insegurança, medo e o buto, bem como almeja não tê-lo.
sentimento de perda de uma situação, por ora, Outro fator significante que emergiu do con-
conhecida para um porvir desconhecido e assus- teúdo das entrevistas foi o medo perante o limiar
tador. E é no confronto com essa nova realidade da vida, pressentido pela proximidade da morte.
que a pessoa passa a vivenciar momentos de gran- A sua imagem parece ser descortinada com a re-
de sofrimento. velação da sorologia positiva para o HIV, caindo
O dia que recebi meu diagnóstico foi muito di- por terra a sensação de imortalidade. Com efeito,
fícil, me lembro como se fosse hoje. [...]Aquele mo- aquele que se vê diante de um diagnóstico positi-
mento foi horrível [...] e fiquei com medo... (cola- vo para o HIV vive uma decretação de morte an-
borador 1) tecipada pela equivalência – imaginária – que é
O mundo naquela hora acabou, senti como se feita entre o binômio AIDS e morte17.
tivessem puxado o meu tapete. (colaboradora 3) Eu tenho AIDS, e qual o destino de quem tem
Em se tratando especificamente da AIDS, além AIDS? Não é morrer? (colaborador 1)
das proposições supracitadas, ela comporta um A questão da morte também vem atrelada ao
julgamento moral, uma vez que é tomada como medo da discriminação e ao sentimento de culpa.
uma doença que atinge pessoas que têm um Vivo muito triste, penso muito na minha mor-
comportamento considerado transgressor e, por- te, no medo de ser discriminado e carrego uma cul-
tanto, moral e socialmente reprovável. Como con- pa que não sei de onde vem. (colaborador 1)
seqüência, acaba gerando identidades moralmente Percebe-se no relato desse colaborador que o
“deterioradas”8. As falas exprimem pensamentos que realmente lhe confere sofrimento é o con-
que ‘marcam’ as identidades dos depoentes, como frontar-se com os constrangimentos impostos
se verifica a seguir: não pela dor infringida ao corpo doente (ser ou
É difícil assumir que eu tenho AIDS, porque me não ser doente de AIDS), mas pela pungência do
coloca em um lugar aonde as pessoas vão me olhar preconceito e da discriminação decretados pelo
de forma diferente[...] é como se fosse um ET, e por meio externo. O sentimento de culpa que reflete a
eu ter AIDS é como se eu não fosse mais eu, como se metáfora estigmatizante da AIDS e que se instala
sentisse diferente, pensasse diferente e me compor- no imaginário social – e, portanto, não sabe de
tasse diferente. Não vão mais lembrar o que fiz de onde vem – ‘celebra’ a exploração moralista que se
bom, e as minhas qualidades, vão sim me colocar faz em torno da AIDS, castigando-o pelo seu com-
na cruz e me apedrejar como uma pessoa desquali- portamento divergente dos valores morais e se-
ficada, sem valor (colaboradora 3) xistas da sociedade tradicional. Tal é esta conde-
Nunca falei que tinha o vírus. [...] As pessoas nação que o impede de se relacionar afetivamente
são muito maldosas aqui no bairro, tem um bando com outras pessoas, como posto neste relato:
de gente fofoqueira que vive falando da vida dos Não consigo mais me relacionar amorosamen-
outros. Não quero que a minha vida vá cair na te com ninguém porque tenho medo de perder a
boca dessa gente maldosa. (colaboradora 2) pessoa e também de passar para ela. Sabe como é, eu
Esses depoimentos refletem como a pessoa sei que a camisinha protege, mas ela pode se romper
portadora do HIV carrega consigo os estigmas e eu contaminar a outra pessoa, e eu não quero ser
construídos em torno da AIDS, repercutindo so- responsável por isto. [...] Já basta o peso que carrego
bre a sua identidade e sua história de vida. Relem- da minha doença... (colaborador 1)
brando os preceitos de Goffman, a pessoa estig- O segundo depoente exprime os seus pensa-
matizada padece de diversas conseqüências ne- mentos em relação a sua família, guardando si-
fastas em função deste fato. Sua diferença atrai a lêncio de sua própria dor, pelo peso da culpa:
atenção das pessoas, afastando-as e impedindo- [...]tenho momentos de grande tristeza angús-
as de perceber suas outras características, passa a tia sobre o meu futuro, que gostaria de estar com-
não ser vista e tratada como humana e tem suas partilhando com as pessoas que eu amo, mas infe-
chances de vida limitadas. A ela se agrega a idéia lizmente eu sei que se eu contar estarei fazendo-os
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sofrer por demais, e não quero ser culpado deste homem [...]. Sabia que de vez em quando ele usava
sofrimento. Já basta os meus problemas e eu não droga, mas como eu não conhecia isto nunca pensei
quero ser responsável por tantos outros que eu sei que ele pudesse estar com o vírus da AIDS, [...] nun-
que pelo fato de ser soropositivo podem acarretar ca tinha parado para pensar sobre isto. Acho que
para a minha família. Estar longe de certa forma nunca tinha associados às coisas. A gente acha que
facilita a minha vida, pois eles não vêem que eu a pessoa que a gente ama não pode passar estas coi-
sofro, mas por outro lado sinto-me muito só, por- sas pra gente. Mesmo sabendo, eu não conseguia
que não tenho com que dividir a minha dor. (cola- conversar com ele sobre isto. (colaboradora 2)
borador 4) Quando se refere ao fato de o marido não
Ao deparar-se com o diagnóstico positivo para querer fazer o teste anti-HIV e conseqüentemente
o HIV, a pessoa, segundo Silva18, convive com dois não buscar assistência médica, justifica, também,
tipos de ansiedades: estar com a doença ou por- sua não-adesão ao acompanhamento clínico, pois
tar um vírus que demarca o limite de sua existên- tem a sensação que será responsabilizada pela in-
cia, acrescido da preocupação em escondê-la, a fecção de ambos.
todo custo, das pessoas mais próximas, princi- Eu tenho a sensação de que se disser que tenho
palmente dos seus familiares. HIV eu serei a responsável por isto. [...]. É que vai
Essa questão pode estar relacionada ao fato parecer que eu é que tenho o HIV, e que eu é que
de que a AIDS traz à tona os valores, as normas e passei para ele. É que parece que o primeiro que
os comportamentos interiorizados no processo sabe que tem AIDS é o responsável por ter passado
de socialização primária, tendo a família como o para o outro. (colaboradora 2)
principal agente desta socialização e, portanto, Pesquisas do Programa Conjunto das Nações
quando se pensa em fazer alguma coisa ou quan- Unidas sobre o VIH/SIDA10 trazem exemplos im-
do algo foge aos padrões da norma apreendida, a portantes que reforçam os estigmas em relação
primeira instituição a ser lembrada é a família. ao papel de gênero, nos quais os homens são fre-
Destaca-se que os colaboradores entrevistados não qüentemente perdoados pelo comportamento que
comentaram sua sorologia com seu núcleo fami- resultou na sua infecção, enquanto as mulheres
liar de origem (pai e mãe). Para Parker & Aggle- são responsabilizadas, são abandonadas pelos
ton7, as famílias podem rejeitar os seus membros maridos que as infectaram, rejeitadas pelos co-
soropositivos não só pelo fato de estarem infec- nhecidos e pela família. Por temerem esta trágica
tados, mas também em virtude das conotações situação, muitas delas preferem não conhecer sua
de homossexualidade, uso de drogas e promis- condição sorológica, ou se a conhecem, preferem
cuidade, significados que a AIDS carrega. mantê-la em segredo.
No processo de constituição de mulher e de
homem, segundo Louro20, ocorre um investimen-
A expressão da sexualidade to continuado e produtivo dos sujeitos – ainda
que nem sempre de forma evidente e consciente –
Vale recordar que na nossa sociedade existem cren- , visando à determinação de suas formas de ver
ças e valores relacionados à sexualidade que são ou vivenciar a sua sexualidade e seu gênero. Ape-
resultados de inúmeras interações, e a ameaça da sar de todas as oscilações, contradições e fragili-
AIDS esbarra em muitos desses valores que se dades que marcam o investimento cultural de
definem de forma diferenciada quando falamos uma sociedade, ela busca, intencionalmente, ‘fi-
de homens e mulheres. Com o seu advento, a xar’ uma identidade masculina ou feminina ‘nor-
sexualidade ficou mais exposta, deflagrando o mal’ e duradoura. Esse intento acaba articulando
impressionante critério de dois pesos e duas me- as identidades ditas ‘normais’ a um único modelo
didas para os valores sexuais entre os gêneros. de identidade sexual, qual seja: a identidade hete-
Pensar a questão da AIDS e da sexualidade rossexual que é concebida como natural, univer-
requer, então, uma reflexão do ponto de vista das sal e normal. Nesse sentido, mesmo que aparen-
relações de gênero, como relação de poder. É, por- temente, supõe-se que todos os sujeitos tenham
tanto, neste contexto que os dados confirmam a uma inclinação inata para eleger como objeto de
tese de que a vulnerabilidade das mulheres ao HIV seu desejo, como parceiro de seus afetos e de seus
é decorrente não só da subordinação de sua sexu- jogos sexuais alguém do sexo oposto. Conseqüen-
alidade ao desejo masculino, como também de temente, outras formas de sexualidade são cons-
sua própria vivência cotidiana modelada na ex- tituídas como antinaturais, peculiares e anor-
periência do amor romântico19. mais20.
... o F. (marido), ele foi meu primeiro e único A situação se complica ainda mais quando
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Almeida, M.R.C.B. & Labronici, L. M.

surge a epidemia da AIDS, na qual foram os doença de âmbito social do que biológico. Daí
homossexuais as primeiras pessoas identifica- a necessidade de considerar a complexidade
das com a doença. Dessa maneira, a epidemia e deste fenômeno.
suas conseqüências tornam-se um marco histó- Assinalam-se tais questões visto que, a Se-
rico na vida dos mesmos, tanto do ponto de cretaria Municipal de Saúde de Curitiba (SMS),
vista individual como coletivo, causando uma ao organizar o modelo de intervenção da aten-
enorme devastação na vida afetiva e social deste ção ao HIV e à AIDS, definindo as Unidades de
segmento de pessoas. Saúde como a ‘única’ porta de entrada das pes-
É possível perceber, na pesquisa, a partir da soas acometidas pela infecção ao sistema de saú-
fala dos colaboradores, a força dos preceitos fa- de, e que a exemplo de tantas outras patologias,
miliares e das concepções religiosas que se inter- as pessoas portadoras do HIV recebam atendi-
põem nas vivências da homossexualidade e do mento na unidade mais próxima de sua residên-
HIV e da AIDS, e que revelam a necessidade de cia22, pode levá-las à clandestinidade. Isso por-
ocultação da orientação sexual, as culpas diante que elas têm receio de serem identificadas, prin-
da infecção, muitas vezes associadas à noção de cipalmente quando sabem que nesses serviços
pecado, causando-lhes intensos sofrimentos. irão encontrar pessoas de seu convívio social,
Nunca abri isto para os meus pais. [...] Não sei tais como familiares, amigos, vizinhos ou cole-
o que é mais difícil dizer que sou gay ou se tenho o gas de trabalho, para quem não foi revelado seu
HIV. (colaborador 1) diagnóstico de HIV. Devido a esse medo, anteci-
Um castigo de algo que eu fiz, mas não sei ao pam que vão sofrer de discriminação, estigmati-
certo o que é. Sei lá, devo ter pecado, e muito! [...] zação e marginalização – em função da repre-
Por ser gay e gostar de homens, acho que só pode se sentação social da doença – e, assim, escolhem o
isto. (colaborador 2) segredo para evitar problemas que não conse-
Para finalizar a análise desta categoria, argu- guem enfrentar, fato que influenciará negativa-
menta-se que administrar as inseguranças, as mente os cuidados de sua saúde. Acontecimen-
contradições e os temores em relação à vivência tos reais, que são assinalados nos depoimentos
dual homossexualidade/AIDS presentes nos re- destes colaboradores:
latos dos colaboradores parece ser uma questão Nunca falei que tinha o vírus, eles não sabem
mais premente do que aquelas que dizem respei- (os profissionais de saúde). Vou para tratar de
to à busca ou à afirmação de uma identidade outras coisas, mas para tratar o HIV não! Eu não
homossexual. Conviver com a ameaça de ser consigo dizer que tenho AIDS. [...] É porque acho
descoberto desponta nesta pesquisa como um que eles vão pensar que sou vagabunda e vão des-
problema para muitos homens, achado que vem cobrir que o F. (marido) usa drogas. Tenho medo
reforçar os estudos de Terto Jr.21:99, quando rela- de ser julgada, que fiquem bisbilhotando minha
ta que [...] são conhecidos casos de homens que vida. Sabe, tem uma porção de pessoas que eu co-
preferem morrer ou não buscar acompanhamen- nheço e que vão ao posto, e eu acho que eles vão
to médico adequado por medo de se expor e ser ficar sabendo, e eu não quero que ninguém saiba.
descoberto e ter de sofrer constrangimentos e acu- (colaboradora 2)
sações. Não quero ir ao posto de saúde perto da minha
casa, porque sou uma pessoa extremamente co-
nhecida e se eu for eles podem me identificar como
O sistema de saúde portador do vírus HIV. Eu tenho vontade de ir a
um serviço, mas não naquele que vão me identifi-
Na medida em que surgem questões que dizem car. (colaborador 5)
respeito à assistência às pessoas portadoras do O quarto colaborador mostrou em seu rela-
HIV e da AIDS, faz-se mister considerar o ide- to o modo como a profissional de saúde lhe aten-
ário do modelo de intervenção que procura co- deu, e a forma como a mesma reagiu quando
locar a AIDS na ‘ordem do dia’ como uma do- falou de sua sorologia. Ele relatou:
ença potencialmente controlável, a ser maneja- [...] ela me recebeu muito bem, foi super sim-
da em nível das Unidades de Saúde. Assim, ao pática, [...] me perguntou o que eu sentia, e disse
ser encarada como tantas outras patologias de que naquele momento eu estava bem, disse que
caráter evolutivo crônico, a idéia de que o acom- tinha ido apenas para receber informações sobre
panhamento clínico responderá satisfatoria- o tratamento do HIV, por que eu estava com o
mente a um problema de notória magnitude vírus. Foi muito engraçado, pois a moça mudou
parece falaciosa, pois a AIDS é muito mais uma da água para o vinho. Senti que ela se retraiu e
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começou a me fazer perguntas de ordem muito Um olhar retrospectivo
íntima, tipo: como eu tinha me infectado, quem sobre o percurso analítico
era a pessoa, se eu só transava de camisinha, e
que se eu sabia como pegava o HIV, porque não Utilizar o referencial metodológico da história oral
usei o preservativo? Me senti naquela hora como como caminho para conhecer uma determinada
se estivesse em um tribunal e de novo recebendo faceta da realidade concreta das pessoas soropo-
um sentença de culpado, e pior, invadido por al- sitivas para o HIV foi gratificante, pois os depoi-
guém que sequer disse o seu nome e que me per- mentos orais ganharam alcance social quando os
guntava tantas coisas da minha vida, que eu te- colaboradores foram inseridos nos grupos soci-
nho certeza que naquela hora não fariam ne- ais que os interpretaram na medida da inscrição
nhuma diferença para mim, talvez fizessem para de cada colaborador nos grupos sociais que os
ela! (colaborador 4) explicaram, deixando de ser indivíduos atomiza-
Interessante observar que o modo como a dos e passaram a ser significados. Os motivos
profissional de saúde invadiu sua privacidade relatados foram analisados de modo a lhes per-
questionando a forma como havia se infectado mitir atribuir significado social, no qual a imagi-
revela a visão preconceituosa do discurso bio- nação e o simbólico almejam emergir, como pre-
médico no qual o portador do HIV oscila de coniza o método da história oral.
vítima a vilão da epidemia da AIDS21. Esta situa- A descoberta da soropositividade mostrou-
ção traz como pano de fundo o desconforto que se um momento crítico na vida dos colaborado-
a epidemia da AIDS instalou no discurso biomé- res, evocando sentimento de ansiedade, angústia
dico, situações polêmicas recheadas de tabus para e medo, no qual não vislumbram a possibilidade
as quais não se encontravam preparadas, uma de um desfecho sereno. Há a consciência de um
vez que elas não vinham sendo objeto de refle- perigo emanado não apenas pelo significado da
xão para o saber das ciências biomédicas23. doença que define o limite de sua existência, mas
As questões apresentadas para a discussão também a possibilidade de grandes perdas que
sobre o sistema de saúde versam sobre a lógica inscreverão profundas mudanças no modo como
da concepção do novo modelo de atenção para se percebem e vivem; um perigo que vem de fora,
o enfrentamento da epidemia da AIDS e sobre as dotado de uma força avassaladora, um fantasma
experiências vivenciadas no cotidiano das pes- sem face definida que está em todos os lugares e
soas que não conseguem suplantar de forma sau- personifica uma ameaça originada pela real con-
dável os estigmas da doença. Lançando-se mão vivência com uma sociedade preconceituosa e dis-
das palavras de Raggio & Giacomini24, parece criminatória que lhe atribui a marca da degrada-
que o novo modelo de intervenção é mais uma ção. Diante desses fatos, acreditam que seu desti-
reoferta do velho, que se reproduz continuamen- no está traçado.
te, ou seja, uma novidade velha, a serviço da mo- Essas situações levam as pessoas a vivenciarem
dernização retrógrada. Pensar em um novo mo- emoções singulares e particulares, dependendo de
delo assistencial não se restringe a treinar pesso- suas trajetórias de vida – mas que são significadas
al que mantenha a essência do historicamente no imaginário coletivo da AIDS – permeadas pelo
modelo hegemônico, pois rapidamente se exau- medo da rejeição e do abandono, encerrando-as
rem nos tributos que lhe prestam. Trata-se de numa imperiosa necessidade de ocultação do diag-
habilitar prestadores, gestores e usuários para que nóstico, seja no âmbito familiar, seja nas relações
se tornem sujeitos de um processo de construção sociais e de trabalho. Ocultam a sua sorologia, não
[...]. À questão dos modelos deve-se contrapor a pela informação objetiva e afirmativa de ter um
visão de processo que negue ao setor saúde como vírus, já que não é um vírus qualquer. É o HIV, que
máscara sanitária de uma sociedade mórbida, pro- pela sua roupagem metafórica conduz a um julga-
dutora de doença. 24:8 mento moral e reprovável, que invade a vida priva-
Coloca-se para reflexão que o modo como da, revela um lado obscuro, ilícito e desvela os pra-
se estabelece o ingresso das pessoas portadoras zeres do corpo que excederam ao ‘controle da car-
do HIV e da AIDS no sistema de saúde, tendo a ne’. E como o destino já está inscrito aos transgres-
Unidade de Saúde como única porta de entrada, sores, sabem que serão punidos, excluídos e deve-
revela fragilidade, pois deixa solto na ponta aque- rão sofrer pelo ato que cometeram. Em função
les agentes do sistema que estão mais fragiliza- dessas possibilidades geradoras de sofrimento, es-
dos e vulneráveis. colhem o segredo e muitas vezes se isolam no sen-
tido de se proteger, pois enfrentar essas situações
significa ultrapassar as forças de que dispõem.
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Almeida, M.R.C.B. & Labronici, L. M.

Evidencia-se que a família, por escolha consci- corando-a no imaginário do mal, das pestes, do
ente dos colaboradores, não foi informada de sua sexo e da morte. Este sentido é o núcleo do estigma
sorologia. Fato que pode ser explicado, pois, se do qual as marcas físicas e o diagnóstico positivo
porventura um dos membros de uma família for constituem as manifestações perceptíveis do sinal
portador do HIV, este acontecimento pode ser um que desencadeia as condutas estigmatizantes.
elemento desagregador que põe em risco o papel Como os colaboradores desta pesquisa não
da mesma como instância de controle sobre os revelaram sua sorologia a público e não portam os
comportamentos, instalando-se a desordem. estigmas denunciados pelo corpo, como manchas
A representação social que agrega a AIDS a na pele, emagrecimento, queda de cabelo – na me-
um aspecto físico deteriorado e, conseqüente- dida em que são estes sinais físicos e o sentido atri-
mente, ao ideário da morte no qual encontra buído a eles que provocam reações – ,salvo os de
rebôo no tipo de imagem edificada pelos meios culpa de caráter que não podem ser visíveis, conse-
de comunicação e reforçado pelas ciências bio- guem por meio da estratégia de dissimulação, men-
médicas, tem como postulado responsabilizar a tira, isolamento e silêncio encobrir as marcas estig-
pessoa por sua debilidade física e emocional, de matizantes para que não venham a ser conhecidas
tal sorte que a pessoa que se descobre portadora pelos ‘normais’ e se manterem na posição de desa-
do HIV ou doente de AIDS acaba carregando creditáveis. Mas, para sustentarem esta caracterís-
consigo, em seu imaginário, uma imagem este- tica precisam a todo o momento manipular a in-
reotipada, na qual parece prevalecer Thánatos, formação sobre seu defeito para que não se trans-
ou seja, a morte, ao invés de Eros, vida, minando forme em sinal de estigma. Por conseguinte, as ati-
a cada dia de sua existência seus sonhos, seus tudes de negação, isolamento e ocultação da doen-
projetos e seu poder vital25. ça se desenham como forma de se proteger e evitar
Outro fato importante que suscita o senti- a ‘execração pública’, que se traduz no plano das
mento de medo dos colaboradores está relacio- relações por meio de atitudes preconceituosas, dis-
nado à forma de ingresso das pessoas portado- criminatórias, culpabilizantes e excludentes, respos-
ras do HIV ao sistema de saúde de Curitiba. Em tas provocadas pelo estigma.
tese, o novo modelo de assistência estaria possi- Assim, o fato de a SMS estabelecer como es-
bilitando a expansão da oferta e contribuindo para tratégia a descentralização da assistência às Uni-
melhorar a qualidade de assistência a elas. O que dades Básicas de Saúde coloca um empecilho na
se verifica nesta pesquisa é que elas rejeitam a ló- vida daqueles que não querem ter a identidade de
gica de ingresso do sistema manifestado pela ne- soropositivo conhecida pelas pessoas de seu con-
gação em integrá-lo, ou seja, ele não está sendo vívio social. E para se proteger da rejeição, do pre-
legitimado justamente pela população que o mo- conceito e da discriminação, preferem não se ex-
delo objetiva cuidar. Verifica-se que o modelo de por, muitas vezes impedindo-os de confiar em
assistência não está dando condições para que a alguém ou procurar cuidados para a sua saúde,
pessoa tenha uma sensação de proteção e conti- aumentando a sua vulnerabilidade para adoecer
nência com a instituição que lhe atende26. de AIDS.
A observância e análise em relação aos moti- Importante registrar que os resultados que
vos que dificultam os colaboradores a buscar os emergiram desta investigação não têm nenhuma
serviços de saúde, quando analisados sob o pris- pretensão de buscar a verdade, visto que as ver-
ma de um depoimento individual, distinguem-se dades são sempre versões. Procurou-se trazer evi-
dos demais, uma vez que a trajetória de cada pes- dências, lembrando que a análise final é fruto de
soa, em si, é polissêmica. No entanto, como pre- um momento, de um encontro e de um recorte
ceitua o método da história oral, a importância feito na trajetória de vida de pessoas anônimas
do testemunho oral pode estar não em seu apego que vivem com o HIV ou a AIDS, não podendo
aos fatos, mas na verdade simbólica e no imagi- ser creditada como incontestável ou definitiva,
nário, e, como local de expressão da sociedade e pois como a própria História se modifica e se
uma das forças reguladoras da vida coletiva, aca- transforma. Lembra-nos Minayo16 que em se tra-
ba explicando as atitudes individuais. tando de ciência, as afirmações podem superar con-
Os motivos que interferem na procura aos ser- clusões prévias a elas e podem ser superadas por
viços de saúde referidos pelos colaboradores pare- outras afirmações futuras [...], mas se mostram
cem ter sua gênese e explicação no modo como se úteis à medida que podem contribuir para dimi-
deu o processo de simbolização da AIDS a fim de nuir a vulnerabilidade das pessoas em relação ao
decifrá-la e como foi significada, quando lhe de- sofrimento imposto pela vivência de uma doença
ram um sentido profundamente depreciativo, an- estigmatizante.
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O fascinante do trabalhado com esta meto- corpos e adestramento das condutas, e que ex-
dologia foi à possibilidade de empreender um ca- pressa por meio de pesos e desvalia, o destino
minho pela temporalidade da trajetória existenci- das pessoas por ela acometidos, pode nos afligir
al humana, e de escutar os excluídos sociais e ca- e nos deixar perplexos ao percebermos que tam-
lados pelos discursos hegemônicos, permitindo bém fazemos parte. Contudo, ela jamais será in-
descobrir lugares onde acontecem experiências transponível ou imutável. Então, quem sabe
marcantes de relacionamentos humanos belos ou possamos ter coragem e força de ousar buscar
perversos. outras esferas do pensamento e da vida, ajudan-
Diante de algumas constatações, o fluxo da do a colaborar na luta das pessoas envolvidas. A
trajetória existencial humana demarcada por luta pela vida, a luta pela morte longe do exílio e
uma cultura que constrói significados sobre a da solidão, a luta por uma escuta sensível, a luta
epidemia da AIDS ancorando-os - consciente ou pela solidariedade e pelos direitos à saúde, à vida
inconscientemente -, na desconstrução da vida e e à morte com integridade e dignidade é, pois, a
na construção da morte, na dessexualização dos luta pela cidadania.

Colaboradores

MRCB Almeida trabalhou na concepção teórica,


elaboração, redação final do texto, organização e
execução da pesquisa. LM Labronici participou
como orientadora durante todas as etapas da ela-
boração da dissertação e do artigo.
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Almeida, M.R.C.B. & Labronici, L. M.

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Aprovado em 23/06/2006
Versão final apresentada em 9/08/2006

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