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Terra Livre

A Geografia no Tempo de
Novos Conhecimentos

associação
dos geográfos
brasileiros

1
Associação dos Geógrafos Brasileiros

Diretoria Executiva Nacional


Gestão 2006/2008

Presidente
Edvaldo César Moretti (AGB - Dourados/MS)

Vice Presidente
Manoel Calaça (AGB - Goiânia/GO)

Primeiro Secretário
Jones Dari Goettert (AGB - Dourados/MS)

Segundo Secretário
Zeno Soares Crocetti (AGB - Curitiba/PR)

Primeiro Tesoureiro
Alexandre Bergamin Vieira (AGB - Presidente Prudente/SP)

Segundo Tesoureiro
Victor A. de Souza Junior (AGB - João Pessoa/PB)

Coordenação de Publicações
Antonio Thomaz Junior (AGB - Presidente Prudente /SP)
Ana Paula Maia Jansen (AGB - Rio Branco/AC)
José Alves (AGB - Rio Branco/AC)
José Messias Bastos (AGB - Florianópolis/SC)
Sônia M. R. P. Tomasoni (AGB - Salvador/BA)

Representação junto ao Sistema CONFEA/CREA


Titular: Rodrigo Martins dos Santos (AGB - São Paulo/SP)
Suplente: Cristiano Silva da Rocha (AGB - Porto Alegre/RS)

Representação junto ao Conselho das Cidades


Arlete Moyses Rodrigues (AGB - São Paulo/SP)

Correio eletrônico: nacional@agb.org.br

Página na internet: http://www.agb.org.br

2
ISSN 0102-8030

Terra Livre

Publicação semestral
da Associação dos Geógrafos Brasileiros

ANO 23 – Vol. 2
NÚMERO 29

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 1-326 Ago-Dez/2007


3
TERRA LIVRE

Conselho Editorial
Adauto de Oliveira Souza (UFGD) Jones Dari Goettert (UFGD)
Ailton Luchiari (USP) Jorge Montenegro Gómez (UFPR)
Aldomar Arnaldo Rückert (UFRGS) José Daniel Gómez (Universidade de Alicante/Espanha)
Alexandrina da Luz (UFS) Larissa Mies Bombardi (USP)
Álvaro Luiz Heidrich (UFRGS) Marcelino Andrade Gonçalves (UFMS/Nova Andradina)
Ana Fani Alessandri Carlos (USP) Marcelo Dornelis Carvalhal (UNIOESTE/M. C. Rondon)
Ângela Massumi Katuta (UEL) Marcelo Rodrigues Mendonça (UFG/Catalão)
Antonio Carlos Vitte (UNICAMP) Márcio Cataia (IG/UNICAMP)
Antonio Nivaldo Hespanhol (UNESP/Pres. Prudente) Marcos Bernardino de Carvalho (PUC/SP)
Arlete Moysés Rodrigues (UNICAMP) Maria Franco García (UFPB)
Arthur Magon Whitacker (UNESP/Pres. Prudente) Maurício A. de Abreu (UFRJ)
Beatriz Ribeiro Soares (UFU) Mirian Cláudia Lourenção Simonetti (UNESP/Marília)
Bernadete C. Castro Oliveira (IGCE/UNESP) Paulo Roberto Raposo Alentejano (UERJ/São Gonçalo)
Bernardo Mançano Fernandes (UNESP/Pres. Prudente) Pedro Costa Guedes Vianna (UFPB)
Charlei Aparecido da Silva (UFGD) Regina Célia Bega dos Santos (IG/UNICAMP)
Diamantino Alves Correia Pereira (PUC/SP) Ricardo Antunes (UNICAMP)
Dirce Maria Antunes Suertegaray (UFRGS) Rogério Haesbaert da Costa (UFF)
Douglas Santos (PUC/SP) Selma Simões de Castro (UFG)
Eliseu Saverio Sposito (UNESP/Pres. Prudente) Sérgio Luiz Miranda (UFU)
Flaviana Gasparotti Nunes (UFGD) Silvio Simione da Silva (UFAC)
Francisco Mendonça (UFPR) Valéria De Marcos (USP)
Horácio Capel Sáez (Universidade Barcelona/Espanha) Virgínia Elisabeta Etges (UNISC)
João Cleps Júnior (UFU) Wiliam Rosa Alves (UFMG)
João Edmilson Fabrini (UNIOESTE/M. C. Rondon) Xosé Santos Solla (Univ. Santiago de Compostela/Espanha)

Colaboradores
Alexandre Bergamin Vieira (UNESP - Presidente Prudente/SP)
Edvaldo Cesar Moretti (UFGD - Dourados/MS)
Editor responsável e editoração: Antonio Thomaz Júnior (UNESP/ Pres. Prudente/SP)
Co-Editor: Gilson Kleber Lomba (AGB - Dourados/MS)
Formatação eletrônica: Alexandre Aldo Neves (UFGD – Dourados/MS)
Revisão de Espanhol: Jorge Montenegro Gómez (UFRP - Curitiba/PR)
Revisão de Inglês: Jarbas Francisco Alves
Arte da capa: Gilson Kleber Lomba
Tiragem: 1.000
Impressão: Copy Set (Av. Cel. José Soares Marcondes, n. 798, Presidente Prudente-SP -
copyset@superig.com.br)
Endereço para Correspondência:
Associação dos Geógrafos Brasileiros (DEN)
Av. Prof. Lineu Prestes, 332 - Edifício Geografia e História - Cidade Universitária
CEP: 05508-900 - São Paulo / SP - Brasil - Tel. (0xx11) 3091 - 3758
ou Caixa Postal 64.525 - 05402-970 - São Paulo / SP
e-mail: terralivre@agb.org.br
Ficha Catalográfica
Terra Livre, ano 1, n. 1, São Paulo, 1986.
São Paulo, 1986 – v. ils. Histórico
1992/93 – 11/12 (editada em 1996)
1986 – ano 1, v. 1 1994/95/96 – interrompida
1987 – n. 2 1997 – n. 13
1988 – n. 3, n. 4, n. 5 1998 – interrompida
1999 – n. 14
1989 – n. 6 2000 – n. 15
1990 – n. 7 2001 – n. 16, n. 17
10. Geografia – Periódicos 2002 – Ano 18, v.1, n. 18; v.2, n. 19
10. AGB. Diretoria Nacional 2003 – Ano 19, v.1, n. 20; v. 2, n. 21
2004 – Ano 20, v.1, n. 22; v. 2, n. 23
1991 – n. 8, n. 9 2005 – Ano 21, v.1, n. 24
1992 – N. 10 2005 – Ano 21, v. 2, n. 25
Revista Indexada em Geodados 2006 – Ano 22, v. 1, n. 26
www.geodados.uem.br 2006 – Ano 22, v. 2, n. 27
ISSN 0102-8030 2007 – Ano 23, v. 1, n. 28 CDU – 91 (05)
2007 – Ano 23, v. 2, n. 29

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4
Sumário
EDITORIAL

ARTIGOS
DESAFIOS À ANÁLISE DO ESPAÇO URBANO: INTERPRETANDO
TEXTOS MARGINAIS DO DISCURSO GEOGRÁFICO 15-28
Almir Nabozny
Joseli Maria Silva
Marcio José Ornat

O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS -


CONSIDERAÇÕES PARA ALÉM DA GEOGRAFIA CULTURAL 29-50
Cláudio Benito Oliveira Ferraz

ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E NA PÓS-


MODERNIDADE: DO ECONÔMICO AO CULTURAL? 51-74
Marcos Leandro Mondardo

AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO


NO CONTEXTO GEOGRÁFICO: LONDRINA 1932/1943 75-94
Márcia S. de Carvalho

O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA


RENOVÁVEL: NOTAS PARA UM DEBATE 95-114
Eliane Tomiasi Paulino

DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO DO ENVOLVIMENTO:


O NOVO-VELHO SENTIDO DO DESENVOLVIMENTO E SUA
FUNCIONALIDADE PARA O SISTEMA DO CAPITAL 115-132
Josefa Bispo de Lisboa
Alexandrina Luz Conceição

A ESCALA GEOGRÁFICA: NOÇÃO, CONCEITO OU TEORIA? 133-142


Everaldo Santos Melazzo
Cloves Alexandre Castro

POSSIBILIDADES EPSTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA GEOGRAFIA


HUMANA EM SEU TRONCO HUMANÍSTICO-CULTURAL 143-162
Marcos Antonio Correia

IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA - UMA ABORDAGEM


GEOGRÁFICA A PARTIR DA COMUNIDADE CAÇANDOCA (UBATUBA/SP ) 163-180
Mária Tereza Paes Luchiari
Isabel Araujo Isoldi

5
APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E
TERRITORIALIDADE: O DESEJO E A ESPERANÇA PELOS
INTERSTÍCIOS 181-206
Ulysses da Cunha Baggio

VERTENTES ÉTICAS E REGÊNCIA DE OUTRA ORDEM


TERRITORIAL 207-230
Claudio Ubiratan Gonçalves

O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O MESMO: ARTICULAÇÃO DOS


MÚLTIPLOS ESPAÇOS-TEMPOS COTIDIANOS NAS
PRÁTICAS ESCOLARES 231-246
Amanda Regina Gonçalves
Rosângela Doin de Almeida

A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA


GEOGRÁFICA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DE TESES E
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS EM PROGRAMAS DE PÓS -
GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA 247-264
Deise Fabiana Ely

POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE - MARCAS


PRETÉITAS NA PAISAGEM COMO MEMÓRIA SOCIAL DAS
SOCIEDADES AUTÓCTONES 265-292
Sérgio Almeida Loiola

RESENHA
OS ESTABELECIDOS E OS OUTSIDES 295-298
Alexandre Bergamin Vieira

NORMAS
Normas para publicação 301-306

COMPÊNDIO
Compêndio dos números anteriores 309-324

6
Summary/Sumario
FOREWORD/EDITORIAL

ARTICLES/ ARTÍCULOS
CHALLENGES TO THE ANALYSIS OF URBAN SPACE:
INTERPRETING MARGINAL TEXTS OF GEOGRAPHICAL
DISCOURSE
DESAFÍOS PARA LA ANÁLISIS DEL ESPACIO URBANO:
INTERPRETANDO TEXTOS MARGINALES EN EL DISCURSO
GEOGRÁFICO 15- 28
Almir Nabozny
Joseli Maria Silva
Marcio José Ornat

THE GEOGRAPHICAL STUDY OF THE CULTURAL ELEMENTS -


CONSIDERATIONS FOR BESIDES CULTURAL GEOGRAPHY
EL ESTUDIO GEOGRÁFICO DE LOS ELEMENTOS CULTURALES
- CONSIDERACIONES PARA ADEMÁS DE LA GEOGRAFÍA CULTURAL 29- 50
Cláudio Benito Oliveira Ferraz

STUDIES MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE AND THE POST-


MODERNIDADE: THE ECONOMIC THE CULTURAL?
ESTUDIOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDAD Y DE LA
POSMODERNIDAD: EL ECONÓMICO CULTURAL? 51-74
Marcos Leandro Mondardo

ILLNESSES AS OBJECT OF STUDY IN THE GEOGRAPHIC


CONTEXT: LONDRINA - 1932/1943
LAS ENFERMEDADES COMO OBJETO DE ESTUDIO EN EL
CONTEXTO GEOGRÁFICO LONDRINA - 1932 /1943 75-94
Márcia S. de Carvalho
THE BRAZILIAN FIELD ON THE RENEWABLE ENERGETIC
MATRIX SCENE: NOTES FOR A DEBATE
EL CAMPO BRASILEÑO EN LO ESCENARIO DE LA MATRIZ
ENERGÉTICA RENOVABLE: NOTAS PARA UNA DISCUSIÓN 95-114
Eliane Tomiasi Paulino
LOCAL DEVELOPMENT AS SIMULATION OF INVOLVEMENT: THE
NEW-OLD MEANING THE DEVELOPMENT AND ITS
FUNCTIONALITY TO THE SYSTEM OF CAPITAL
EL DESARROLLO LOCAL COMO SIMULACIÓN DE
PARTICIPACIÓN: EL NUEVO SIGNIFICADO DE EDAD EL
DESARROLLO Y SU FUNCIONALIDAD AL SISTEMA DE CAPITALES 115-132
Josefa Bispo de Lisboa
Alexandrina Luz Conceição
T HE GEOGRAPHIC SCALE : NOTION , CONCEPT OR TEORY ?
L A E SCALA GEOGRÁFICA : NOCIÓN , CONCEPTO Ó TEORÍA ? 133-142
Everaldo Santos Melazzo
Cloves Alexandre Castro

EPISTEMOLOGICAL AND PEDAGOGICAL POSSIBILITIES OF


HUMAN GEOGRAPHY IN ITS HUMANISTIC AND CULTURAL
TRUNK
LAS POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS Y PEDAGÓGICAS DE LA
GEOGRAFIA HUMANA EM SU TRONCO HUMANISTICO-
CULTURAL 143-162
Marcos Antonio Correia

7
TERRITORIAL IDENTITY QUILOMBOLA – A GEOGRAPHY BOARDING
FROM THE COMUNIDADE CAÇANDOCA (UBATUBA/SP)
IDENTIDAD TERRITORIAL QUILOMBOLA - EL SUBIR GEOGRÁFICO DE
LA COMUNIDADE CAÇANDOCA (UBATUBA/SP) 163-180
Maria Tereza Paes Luchiari
Isabel Araujo Isoldi

SOCIAL APROPRIATION OF THE URBAN SPACE AND TERRITORIALITY:


THE DESIRE AND HOPE FOR THE INTERSTICES
APROPRIACIÓN SOCIAL DEL ESPACIO URBANO Y TERRITORIALIDAD: EL
DESEO Y LA ESPERANZA POR LOS INTERSTÍCIOS 181-206
Ulysses da Cunha Baggio

SLOPES ETHICS & GOVERNING OF ANOTHER ORDER TERRITORIAL


VERTIENTES ETICAS Y REGENCIA DE OTRA ORDEN TERRITORIAL 207-230
Cláudio Ubiratan Gonçalves

THE ‘PLACE’ IS NOT THE SAME: ARTICULATIONS OF THE MULTIPLES


EVERYDAY SPACES-TIMES IN THE SCHOLARS PRACTICES
EL ‘LUGAR’ NO ES MÁS EL MISMO: ARTICULACIONES DE LOS MÚLTIPLES
ESPACIOS-TIEMPOS COTIDIANOS EN LAS PRÁCTICAS ESCOLARES 231-246
Amanda Regina Gonçalves
Rosângela Doin de Almeida

LA CLIMATOLOGÍA PRODUCIDA EN EL INTERIOR DE LA CIENCIA


GEOGRÁFICA BRASILEÑA: UN ANÁLISIS DE TESIS Y DISERTACIONES
DEFENDIDAS EN PROGRAMAS DE POSTGRADO EN GEOGRAFÍA
CLIMATOLOGY RAISED WITHIN BRAZILIAN GEOGRAPHIC SCIENCE: A
STUDY ON THE ACCOMPLISHMENT OF GRADUATED PROGRAMS IN
GEOGRAPHY 247-264
Deise Fabiana Ely

PARA UNA GEOGRAFÍA DEL PASADO DISTANTE - MARCAS DEL


PASADO EN EL PAISAJE COMO MEMORIA ESPACIAL DE LAS SOCIEDADES
AUTOCTONOS
BY A GEOGRAPHY OF THE PAST DISTANT - PRETERITS’S MARKS IN THE
LANDSCAPE AS AUTOCHTHONOUS SOCIETIES’S SPACE MEMORY 265-292
Sérgio Almeida Loiola

RESENHA
El conjunto y las exteriores 295-298
The set and the outsides

NORMAS
Submission guindelinesa 301-306
Normas para publicación

COMPÊNDIO
Compendium of the previus numbers 309-324
Compendio de números anteriores

8
EDITORIAL

Acreditar que é possível manter a qualidade, expandir o raio de


interlocução e ampliar a potência do debate teórico tem sido uma constante por
parte da editoria da Revista Terra Livre. A geografia brasileira ganha com isso,
ganha os geógrafos e ganha todos aqueles que estão se empenhando para manter a
Terra Livre como um veículo de divulgação privilegiado sobre o que de melhor se
pensa e se produz.
Se não tivéssemos o mandato para levar adiante os princípios
defendidos pelos agebeanos e referendados na Assembléia de Rio Branco, em julho
de 2006, não poderíamos sequer estar tendo a chance de colocar em prática os
anseios da comunidade que quer e requer transparência e a disponibilização de
textos de qualidade irreparável, capazes de promover a ascensão de idéias,
inquietações e polêmicas para o centro das diferentes convivências, seja nas escolas,
nas universidades, nos eventos, nas ruas, junto às comunidades, aos trabalhadores,
à sociedade organizada etc.
Pretensões à parte, o que estamos tentando garantir é que a Terra
Livre, seja a Revista de todos(as) os (os) geógrafos(as) brasileiros(as), indistintamente
das posturas ideológicas, das correntes do pensamento geográfico e das opções
temáticas.
Garantir que a Terra Livre possa estimular o debate e nutrir o
convício saudável das idéias, eis o que nos põe atentos á edificação de uma AGB
também disposta ao debate, à defesa de posicionamentos que garantam o livre
acesso às informações e à liberdade de pensamento entre suas centenas de milhares
de associados e de toda a comunidade geográfica (estudantes, professores,
profissionais de toda ordem).
O que esperar desse número 29? A riqueza dos assuntos e dos
recortes temáticas mantém uma constante e é uma das principais recomendações
da nossa comunidade. Então, se com as atenções para assuntos mais ligados às
questões teórico-metodológicas, ou de cariz epistemológico ou ontológico, se para
os assuntos voltadas à matriz energética, ou para os rumores da modernidade, ou
os exemplos regressivos da migração, ou ainda para as marcas do passado enfim, o

9
que se espera é que mais do que as emoções sobrevivam, desejamos que a Terra
Livre possa fomentar, efetivamente, os exercícios auto-críticos, tão necessários e
em desuso nesses tempos do século XXI.

OS EDITORES

10
FOREWORD

Believe that is possible mantain the quality, expand the range of


interlocution and amplify the potency of the theoretician discussion have been a
constant by the side of the publishing house of the Magazine Terra Livre. The
brazilian geography earns with this, the geographers earn and earn all that are doing
efforts to mantain Terra Livre as a mean of communication privileged about the
best of what is thinked and produced.
If we didn’t have the mandate to continue with the principles
defend by the agebeanos and referended in the Meeting of Rio Branco, in July 2006,
we cannot even have the chance to put in pratice the longing of the community
which want and require transparency and publication of text of irreparable quality,
capable of promote the ascension of ideas, inquietude and controversy to the
centre.
What we are trying to guarantee is that Terra Livre, be the Magazine
of all the brazilians geographers, indistinctly the religious belive, the ideologic
position and thematics options.
Guarantee that the Terra Livre can estimulate the discussion and
sustain the healthy companionship of ideas, that is the question which put us
attentive to a edifying of a AGB, which is also disposed to the discussion, the
defense of positions that guarantee the free access to informations, and the freedom
of thinking between yours hundreds of thousands of associateds and of all the
geographic community.
What expect of this edition 29? The riches of theme and tematic
retails mantain a constant and is one of the main reccomendation of our community.
So, if attentions to themes related to questions “theoretical-methodological”, or
of roots ontologic and epistemologic, if to themes related to energetic matrix, or
to rummors of modernity, or to examples regressives of migration, or even to scars
of the pass so, what is expected is that more than the emotions, we want that Terra
Livre can foment, effectively, the exercises so necessary of self-criticism, which is
in disuse in this century of XXI

THE EDITORS

11
12
ARTIGOS

13
14
Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar os
desafios teórico-metodológicos enfrentados pelo Grupo de
Estudos Territoriais no desenvolvimento de pesquisas
DESAFIOS À ANÁLISE
DO ESPAÇO URBANO: atreladas às relações entre sexualidade e espaço urbano.
INTERPRETANDO Primeiramente, apresentamos o posicionamento teórico do
TEXTOS MARGINAIS DO grupo fundamentado na perspectiva da nova geografia
DISCURSO GEOGRÁFICO cultural, o qual entende que os sujeitos criam interpretações
espaciais plurais e isso permite uma pluriversalidade da
CHALLENGES TO THE ANALYSIS realidade estudada. Num segundo momento, evidenciamos,
OF URBAN SPACE: através dos relatos de nossa trajetória de pesquisa, uma
INTERPRETING MARGINAL TEXTS reflexão sobre a posicionalidade do sujeito pesquisador no
OF GEOGRAPHICAL DISCOURSE
processo de construção do conhecimento geográfico.
Palavras – chave: espaço urbano, intertextualidades,
DESAFÍOS PARA LA ANÁLISIS
DEL ESPACIO URBANO: posicionalidade do pesquisador.
INTERPRETANDO TEXTOS
MARGINALES EN EL DISCURSO Abstract: This article has the objective of presenting the
GEOGRÁFICO
methodological and theoretical challenges faced by the
Grupo de Estudos Territoriais (GETE – group of territorial
studies) in the development of researches related to
sexuality and urban space. A presentation of the theorical
ALMIR NABOZNY position of the Group, that is based on the new cultural
almirnabozny@yahoo.com.br geography. In this perspective the subjects create plural
spacial interpretations what allows a pluriversality of the
JOSELI MARIA SILVA studied reality. After, from relates in our research trajectory,
joselisilva@uol.com.br a reflection about the positionality of the researcher subject
in the process of geographical knowledge construction.
Key Words: urban space, intertextuality, researcher
MARCIO JOSÉ ORNAT positionality.
marciornat@yahoo.com.br
Resumen: Este trabajo tiene por objetivo presentar los
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE desafios teórico-metológicos del Grupo de Estudos
PONTA GROSSA - UEPG Territoriais (GETE – grupo de estudios territoriales) en el
desarollo de investigaciones relacionadas a la sexualidad y
el espacio urbano. En un primer momento, se presenta la
postura teórica del grupo, apoyada en la perspectiva de la
nueva geografía cultural. La misma entiende que los sujetos
crean interpretaciones espaciales múltiplas y eso permite
* Pesquisadores do Grupo de Estudos uma pluriversalidad de la realidad estudiada. Luego se
Territoriais (GETE) evidencian los relatos de nuestra história de investigación.
Una reflexión sobre la posicionalidad del sujeto investigador
en el proceso de construcción del conocimiento geográfico.
Palabras - clave: espacio urbano, intertextualidades,
posicionalidades del investigador.

T e rr a Li vre Pre sid e n te P ru d e n te An o 23, v. 2, n . 29 p . 15-28 Ag o -D e z / 2007


15
NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO
URBANO...

Introdução

Este texto é fruto das reflexões em torno dos desafios teórico-metodológicos


enfrentados pelo Grupo de Estudos Territoriais (GETE) em mais de um ano de condução
de pesquisas originadas através da parceria estabelecida com a Organização Não
Governamental Renascer, em Ponta Grossa – PR. Esta instituição atua na luta pelos
direitos humanos e realiza ações para combater e prevenir doenças sexualmente
transmissíveis junto às profissionais do sexo, gays, lésbicas, travestis, bissexuais e
transexuais. Dentre as várias atividades desenvolvidas na parceria efetivada, foram
viabilizadas três investigações que sustentam os argumentos aqui apresentados. Embora
cada uma destas pesquisas seja guiada por objetivos específicos, elas se desenvolvem de
maneira articulada e, em vários momentos se sobrepõem, o que tem possibilitado ao
grupo de pesquisadores o debate e a análise crítica de vários procedimentos investigativos.
Dois aspectos comuns das investigações se destacam. Um deles é a abordagem
da sexualidade interdita e sua dimensão espacial e o outro é a exploração de grupos
sociais inexpressivos no campo de interesse da pesquisa geográfica brasileira como as
meninas prostituídas e os transgêneros. Essa opção nos levou ao desafio de construir a
visibilidade de suas experiências espaciais no campo científico da geografia. Entretanto,
nossas construções metodológicas, até então calcadas no apego à dimensão material do
fenômeno e aos procedimentos formais da pesquisa documental, foram insuficientes para
compreender fenômenos marginais e complexos que as pesquisas abordavam. Sendo
assim, este texto explora as escolhas do arcabouço analítico da ciência geográfica que
puderam produzir a visibilidade científica dos fenômenos explorados e por nós intencionada.

A pluriversalidade da cidade texto

A nova geografia cultural e seus desdobramentos constituem possibilidades


ilimitadas para a criatividade dos geógrafos (as) no desenvolvimento de suas análises
espaciais. Corrêa (2003), ao analisar a compreensão da cultura e o espaço, alerta que a
geografia contempla tanto os componentes materiais como sociais, intelectuais e simbólicos.
Os elementos visíveis e a materialidade das formas espaciais foram, durante
muito tempo, privilegiados pelos geógrafos, enfatizando técnicas que os homens utilizavam
para dominar o meio e concebendo a paisagem como produto desta relação, tal qual
Sauer (1996). A ênfase aos elementos materiais da paisagem privilegiava os objetos de
estudo que apresentavam maior visibilidade, cuja diferença estava nítida, palpável, e tal
ênfase relegou a um segundo plano outras dimensões sociais e psicológicas da existência
humana que, por sua vez, também determinam a materialidade.
A intensiva abordagem de objetos em que a diferença estava materialmente visível
limitou o campo de estudo da geografia do mundo contemporâneo durante muito tempo,
já que as paisagens tornaram-se mais uniformes, e as sociedades fechadas e homogêneas

16
Terra Livre - n. 29 (2): 15-28, 2007

internamente, mais raras. Entre as muitas questões que emergem de tal perspectiva de
pesquisa, uma delas diz respeito à impossibilidade da geografia explorar a sociedade
complexa da qual fazemos parte e encontrar as diferenças em espaços que,
aparentemente, são repetitivos.
Outras críticas às concepções de Sauer e seus seguidores estavam centradas na
importância secundária do sujeito na construção dos significados da paisagem e a
negligência do homem como ser ativo na construção simbólica como em Cosgrove (1998)
e em Berque (1998). Contudo, é a contribuição de James Duncan (1990), em sua obra
“The city as text”, que gostaríamos de destacar como fundamental inspiração para dar
continuidade às nossas proposições teóricas e metodológicas.
A paisagem de Duncan (1990) faz referências para muito além da materialidade.
Ele a considera como um sistema de significados que, tal qual a linguagem expressa em
texto, a paisagem é depositária e transmissora de informações. A “paisagem/texto” é um
discurso, uma estrutura social de inteligibilidade dentro da qual todas as práticas são
comunicadas, negociadas e desafiadas. Assim, os discursos estão sempre permitindo
recursos e limites dentro de certas direções de pensamentos e ações que “aparentemente”
são naturais. A pretensa naturalidade da ordem do mundo e, portanto, da dimensão espacial
da sociedade, para James Duncan, é resultante de vários embates e lutas entre os grupos
sociais.
As interpretações das informações dependem dos sujeitos que atuam no processo
de recepção e interiorização da informação que, por sua vez, é determinado e determinante
dos valores culturais. Duncan (1990) nos oferece a compreensão de uma trama de relações
em vários sentidos na análise da paisagem e privilegia o ato criativo dos sujeitos sociais
através de sua leitura e interpretação, evidenciando tanto as interações entre diversos
grupos, quanto a grande dificuldade de interação interpretativa da paisagem entre grupos
que não participavam dos mesmos códigos culturais. Esse autor cria uma abordagem
política da paisagem e afirma que esta deve servir como parte constitutiva da análise de
como a vida social é organizada e de como as relações de força que a compõem são
constituídas, reproduzidas e contestadas.
Importante, ao nosso ver, é o conceito de “intertextualidade” que denota as inter-
relações de textos que se entrecruzam, instituintes e instituídos da “cidade texto”. Além
disso, para o propósito desse trabalho, é fundamental evidenciar as condições gerais de
produção do texto/paisagem hegemônicos e como eles se impregnam de forma naturalizada
na sociedade.
Assim, a cidade texto de James Duncan (1990) define-se numa dinâmica relacional
e processual entre sistema de significados e práticas que se transformam mutuamente ao
longo do tempo. Os seres humanos são tanto agentes de mudança social e, portanto,
espacial, quanto seus produtos. Ao considerar o aspecto da intertextualidade, o autor
incorpora a construção de diferentes significados de um mesmo objeto, assim como
apresenta seus contrastes e assimilações e, além disso, admite que há uma conjugação

17
NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO
URBANO...

de forças que age sobre a produção simbólica do espaço, considerada enquanto forma de
conhecimento que orienta as ações cotidianas.
A geografia proposta por Duncan (1990) e seus pares da Nova Geografia Cultural
é uma abordagem aberta aos paradoxos, à pluralidade e, em certa medida, provoca a
‘desordem’ do discurso geográfico calcado na objetividade material do espaço e nas
interpretações hegemônicas. O rico contexto de efervescência imaginativa da Nova
Geografia Cultural potencializou as produções geográficas feministas que emergem a
partir de ‘fissuras’ do pensamento hegemônico desde a década de 70. Mas é no contexto
recente, a partir dos anos 90, que esta corrente ‘científico-política’ realiza importantes
críticas à postura repetitiva da geografia, enquanto disciplina acadêmica, sua
instrumentalização na manutenção e reprodução do poder e invisibilidade de vários grupos
que compõem o espaço.
A obra do geógrafo James Duncan (1990), “The city as text”, é forte inspiração
para nossas pesquisas, pois na medida em que a cidade é um texto, produzido por
‘intertextualidades’, podemos tornar visíveis outros textos que não sejam hegemônicos,
produzindo, através do trabalho científico a visibilidade de grupos tradicionalmente
inexpressivos na geografia. Nesta perspectiva adotamos o argumento de que

não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso


admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado;
mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que
podem entrar em estratégias diferentes. É essa distribuição que é preciso
recompor, com o que admite em coisas ditas e ocultas, em enunciações
exigidas e interditas; com o que supõe de variantes e de efeitos diferentes
segundo quem fala, sua posição de poder, o contexto institucional em que
se encontra; com o que comporta de deslocamentos e de reutilizações de
fórmulas idênticas para objetivos opostos. Os discursos, como os silêncios,
nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele.
(FOUCAULT, 1988, p. 111)

Nesse mesmo sentido, a geógrafa Gillian Rose (1993), em Feminism & Geography.
The limits of Geographical Knowledge, constrói a perspectiva do ‘espaço paradoxal’ na
qual chama a atenção às configurações de poder que se estabelecem entre o centro e a
margem da configuração, assim como a plurilocalização dos (as) sujeitos (as). Para esta
autora há uma simultaneidade entre poder e resistência na composição espacial. Assim,
é preciso compreender tanto o que é ‘visível’ quanto o que é ‘invisível’ já que ambos
fazem parte da mesma realidade espacial que é contraditória e complementar
simultaneamente.
Duncan (1990), por sua vez, ao demonstrar que a paisagem da cidade de Kandy
no Sri Lanka era interpretada e vivida de formas diferentes por vários grupos sociais,
evidencia, magistralmente que é a condição paradoxal dos vários textos interseccionados

18
Terra Livre - n. 29 (2): 15-28, 2007

que possibilita a hegemonia. Afinal,

o discurso veicula e produz poder, reforça-o mas também o mina, expõe,


debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão
guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus
laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras (FOUCAULT,
1988, p. 112).

Compreendendo a cidade como uma rica trama discursiva ou textual, para utilizar
as palavras de James Duncan (1990), o Grupo de Estudos Territoriais tem optado por
construir a visibilidade de textos que emergem das fissuras e interdições do poder
hegemônico das instituições formais. Diante dessa configuração estabelecemos no grupo
ampla discussão em torno da posicionalidade do pesquisador frente aos desafios
metodológicos a serem desenvolvidos no processo de pesquisa que serão objeto da próxima
seção.

A posicionalidade do pesquisador e a produção do conhecimento sobre o espaço


urbano

A geógrafa Rose (1997) tem chamado a atenção para as perspectivas de


posicionalidade e reflexibilidade do (a) pesquisador (a) em relação à produção do
conhecimento, pois os resultados das nossas investigações são obtidos pela influência de
vários elementos interconectados. Ou seja, aquilo que obtemos como pesquisadores reflete
complexas relações entre o sujeito investigador, os sujeitos investigados e o contexto de
produção dos dados da pesquisa. Assim, não produzimos verdades sobre os fenômenos
que analisamos, mas versões localizadas e é nesse sentido que emerge a importância da
reflexão em torno daquilo que criamos e consideramos como dados de pesquisa.
Não podemos perder de vista, portanto, que o conhecimento sobre determinada
realidade expressa versões parciais, já que os elementos envolvidos estão diferentemente
posicionados em relação ao fenômeno e também possuem interesses próprios e pontos
de vista diversos que são acionados na inevitável presença relacional entre sujeito
pesquisador e sujeito pesquisado. A autora alerta que tudo que produzimos enquanto
conhecimento geográfico, ou seja, aquilo que criamos através de nossas pesquisas, passa
a fazer parte da realidade estudada assim como a realidade faz parte do conhecimento
científico.
Desta forma uma investigação científica se dá num processo de conhecimento
permeado por relações de poder que são produtos de posicionamentos que geram
capacidades diferenciadas na produção de uma determinada versão da realidade e, nesse
sentido, o próprio conhecimento também produz as hierarquias nas quais os sujeitos estão
posicionados. Refletir sobre os atos investigativos na produção de versões da realidade,
que também produzem a própria realidade, requer uma atitude ética e um claro

19
NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO
URBANO...

compromisso político na implicação de nossos resultados de pesquisa na realidade


investigada, pois o imaginário mundo das idéias é real e o real é também imaginado.
As idéias discutidas por Gillian Rose em “Situating knowledges: positionality,
reflexities and other tactics” ultrapassam os meros posicionamentos metodológicos de
construção do conhecimento científico, elas são argumentos firmes de que a realidade
sócio-espacial também se constrói a partir das relações de poder que se fundam nos
enunciados científicos e na posição de quem os pronuncia. Nesse sentido, é muito
importante atentar para a versão da realidade que uma investigação se propõe a produzir
e a partir de qual ponto de vista.
Partindo da idéia de que a realidade é pluriversal e que os saberes jogam num
campo de forças no qual se produz o invisível, o indizível, o ausente e o silêncio, voltamos
nossos olhares para os sujeitos silenciados, adotando uma postura desconstrucionista da
ciência geográfica e passamos a questionar os conceitos que utilizávamos, assim como
nossos procedimentos de pesquisa no contato direto com os grupos sociais focos de
nossas investigações. Há um ano e meio realizamos um trabalho voluntário junto à
Organização Não-Governamental Grupo Renascer, desenvolvendo atividades de visitas
aos locais de prostituição, distribuição de preservativos, encaminhamentos de exames e
orientações para evitar as doenças sexualmente transmissíveis. Durante essas atividades
pudemos nos aproximar dos ‘outros’ que investigávamos e ouvir suas versões que, por
sua vez, transformaram as nossas ‘versões científicas’.

Meninas que a sociedade torna mulheres e a infância negada

Gostaríamos de resgatar, primeiramente, a experiência sobre a exploração sexual


infanto-juvenil feminina produzida a partir do olhar que contrapõe versões sobre o
fenômeno. Influenciados pelos procedimentos formais e pelo ‘status científico’ que possui
a análise documental oficial e o levantamento das ações institucionais, passamos a explorar
os vários órgãos que atuavam na coibição da prática sexual comercial com crianças,
como o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares, a Vara
da Infância e da Juventude e vários outros órgãos, todos pautados pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA – Lei Federal n° 8.069, de 13 de julho de 1990). Os contatos com
estes diversos órgãos foram frustrantes para a equipe. Os responsáveis nos ouviam com
atenção, animavam-se com nossa disposição de pesquisar sobre o tema, pois consideram-
no de vital importância, mas, pouco ou quase nada conseguiam nos ajudar, sobretudo pela
precariedade dos registros e ausência de dados sistematizados. O que mais nos impressiona
é o fato de que todos afirmavam a existência do fenômeno, mas nenhum destes órgãos
estava preparado para enfrentá-lo. Dentre todas as aproximações realizadas a experiência
que nos despertou especial interesse foi a do Conselho Tutelar pela sua atuação direta
com o grupo focal e pela reação contraditoriamente aversiva que as meninas prostituídas
desenvolviam em relação a esse órgão, criado justamente para proteger seus direitos.

20
Terra Livre - n. 29 (2): 15-28, 2007

Os Conselhos Tutelares são responsáveis diretamente pelas denúncias de


infrações aos direitos das crianças e adolescentes e a Vara da Infância e Juventude
delibera as medidas judiciais cabíveis. O discurso do Estado torna-se nítido na ação que
se desenvolve através da mobilização da força para traçar estratégias no combate à
exploração sexual comercial infanto-juvenil feminina. Uma das ações principais de coibição
das práticas das meninas são as blitze que ocorrem numa parceira entre o Conselho
Tutelar e a Policia Rodoviária Federal. A prática tem como referência fundamental a
espacialidade fenomenal a partir de locais e horários já conhecidos da prostituição adulta,
como rodovias, boates, locais públicos e bares. Acredita-se que nestes locais podem ser
flagradas as meninas menores em situação de “prostituição”, juntamente com aliciadores,
clientes ou facilitadores da exploração. Não há um controle sistemático no registro das
ações por parte do Conselho Tutelar, as informações são de uma periodicidade mensal
ou, algumas vezes, determinada pelo número acumulado de denúncias.
As práticas das blitze têm registrado no Conselho Tutelar Oeste números
inexpressivos. De fevereiro a setembro de 2003 foram realizadas oito operações, nas
quais não houve nenhum caso registrado. No ano de 2004, há uma intervenção, em 14 de
abril, resultando na presença de três adolescentes em local indevido. Uma menina de
dezessete anos encontrada em uma boate e um menino de quinze anos em outra. Além
destes, há o registro de uma menor de dezesseis anos num posto de gasolina. Todos estes
casos envolvem estabelecimentos localizados na Rodovia BR 373. Em 2005, há registro
de três blitze. Uma em 17 de maio em que foi verificada a presença de uma adolescente
de quatorze anos em frente a um antigo posto de gasolina. No dia seguinte foram localizados
dois meninos de quinze e treze anos, respectivamente, cuidando de carros no pátio de
uma churrascaria próxima a Br 373. A última blitz registrada em 2005 ocorreu em 12 de
outubro e não houve autuações. Portanto, num total de doze intervenções do Estado
foram encontrados seis menores de idade em locais e horários impróprios.
A exploração dos arquivos e registros existentes nestes órgãos evidenciou que os
procedimentos realizados pelos órgãos competentes de Estado apresentam debilidades
na atuação de combate à exploração sexual comercial infanto-juvenil, já que promovem
a invisibilidade de um fenômeno presente na sociedade. A prática da blitz realizada pela
parceria entre o Conselho e a Polícia tem apresentado números inexpressivos da atividade
em tela. O enquadramento do caso torna-se difícil já que, geralmente, há negação por
parte da menina menor de estar sendo prostituída. Além disso, a dificuldade torna-se
ainda maior pelo fato de que é pouco provável a ocorrência de um flagrante do programa
que ocorre entre as meninas e o cliente. Nesse sentido, os registros são enquadrados
como “menores encontradas em locais e horários impróprios”.
A invisibilidade é também promovida pela forma de registro que o Conselho Tutelar
Oeste tem desenvolvido. Nos itens de possíveis enquadramentos não se contempla a
exploração sexual comercial ou crianças prostituídas, por exemplo. Os itens de
enquadramento possíveis são: a violência sexual, anotações relacionadas aos atos

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NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO
URBANO...

atentatórios à cidadania como aliciamento, mendicância, crianças em lugares e horários


indevidos. Assim, há uma dificuldade em dar visibilidade a uma prática em que, num
contexto de toda ordem de carências, há uma atitude ativa por parte da menor para fazer
o programa, pois ela recebe compensações para realizar o ato, diferentemente do abuso
ou do estupro, por exemplo.
Frente às dificuldades documentais enfrentadas no trabalho exploratório e, em
contrapartida, provocados pela evidência do fenômeno presenciado cotidianamente nos
espaços de pobreza, optamos por incluir os depoimentos de assistentes sociais que
realizavam as sindicâncias para instrumentar os processos. Mesmo que a denúncia não
tivesse o teor da exploração sexual comercial, em alguns casos estes profissionais
detectavam sua existência e o registravam no processo de forma paralela. Com base
nestas pistas recorremos aos arquivos do PEMSE (Programa de Execução de Medidas
Sócio Educativa em Meio Aberto de Ponta Grossa), os quais abriram novas alternativas
de pesquisa já que estávamos convencidos de que a falta de visibilidade do fenômeno no
Estado não correspondia à realidade do campo que explorávamos.
Assim, foram levantados os processos oriundos do resgate da memória das
assistentes sociais do Conselho Tutelar Oeste, da Vara da Infância e da Juventude, do
Programa PEMSE e das Instituições de Abrigo Casa Santa Luiza de Marillac e Associação
de Promoção à Menina (APAM). De posse dos casos rememorados foi realizado então
o levantamento e a análise dos processos gerados. Foram vinte e nove processos analisados,
dos quais quinze provenientes de indicações do Conselho, nove oriundos do PEMSE e
cinco processos de meninas institucionalizadas em abrigos. Com exceção a esses últimos,
os demais vinte e quatro haviam sido apontados por Conselheiros Tutelares ou pela
Assistência Social do PEMSE como casos em que havia suspeita de exploração sexual
comercial infanto-juvenil feminina.
Mesmo assim, para nossa surpresa, em apenas 16,6% dos processos analisados
a exploração sexual aparece como primeira notificação. Nos 83,4% restantes a exploração
é escamoteada dos processos num primeiro momento. Ao explorarmos os processos da
Vara da Infância e da Juventude observamos que, nos relatórios de visitas das assistentes
sociais e nos depoimentos das pessoas envolvidas, a exploração sexual comercial se
evidenciava. Entretanto, vinculada e camuflada em outras situações como a ausência
prolongada de casa, atos violentos, desobediências às regras familiares, furtos, uso de
drogas.
Durante nossas explorações evidenciamos que a ação do Estado tem sido re-
significada pelas meninas menores envolvidas nas práticas sexuais comerciais, as quais
desenvolvem táticas desconstrucionistas do discurso social hegemônico. O forte
tensionamento entre o discurso de Estado sobre a infância e a adolescência, baseado em
condições de vida pequeno-burguesas, e as práticas cotidianas da periferia se revela no
insucesso da coibição do fenômeno estudado e na instituição de novas e complexas
espacialidades promovidas pelas meninas a fim de manter sua versão da realidade. As

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Terra Livre - n. 29 (2): 15-28, 2007

restrições às práticas comerciais sexuais em que as meninas se encontram têm sido


concebidas por uma pretensa universalidade de direitos dos sujeitos menores de idade,
confundida com a homogeneidade de concepções e práticas relativas às características
dos grupos sociais envolvidos no processo de exploração.
A realidade sócio-espacial da periferia impõe os fundamentos da vivência da
infância e a construção de uma versão específica de sua experiência. Várias condutas
consideradas ilegais a partir do marco estatal são naturalizadas pela sua existência
cotidiana. É comum na periferia o trabalho infantil complementar à renda do adulto, o
trabalho doméstico, o cuidado dos irmãos menores, o acompanhamento das figuras
femininas de referência identitária, como mães, tias, avós no exercício da prestação do
serviço sexual. As experiências diárias são por elas naturalizadas e, em geral, contraditórias
com o marco legal que as enquadra fora do padrão de infância concebido pela sociedade.
São meninas que a sociedade torna mulheres, negando-lhes o direito de serem crianças.
A vivência nos espaços de periferia impõe aos corpos infantis o desempenho de tarefas
adultas e isso modifica radicalmente a temporalidade das etapas de suas vidas. As meninas
que fizeram parte desta pesquisa possuem diferentes idades. 69% tinham entre 11-15
anos de idade no início dos processos. 17% encontravam-se com 05-10 anos e 14% delas
estavam com 16-17 anos.
Nos processos analisados a manifestação da exploração sexual comercial infanto-
juvenil feminina se dá nas ruas e nas estradas em 62% e em apenas 15% dos processos
estão relacionadas às boates. Em 8% dos processos as meninas dormem em casas de
terceiros e em 7% elas promovem deslocamentos em direção ao centro da cidade. Embora,
as blitze cubram a área das boates e rodovias (BR), a maioria das manifestações ocorre
em um constante rearranjo entre as ruas de proximidades da Rodovia, ruas próximas às
suas casas, na própria rodovia e também utilizam os chamados telefônicos. Em outras
ocorrências há referências às meninas circulando pelas ruas durante o dia, quando são
abordadas por homens adultos e deslocam-se para motéis ou estacionamentos de
supermercados a fim de realizar o programa. O agenciamento pode também ocorrer por
um chamado telefônico realizado por um ‘atravessador’ que recebe pelos agendamentos
de clientes.
As táticas desenvolvidas pelas meninas menores desafiam a ordem do discurso
hegemônico. Na versão das meninas, elas necessitam garantir a sobrevivência, e na
versão dos agentes de Estado se faz necessário cumprir a lei. Esta tensão se dá
constantemente já que o Estado, ao reprimir a ação das meninas, não lhes dá alternativas.
As estratégias de combate à atividade por parte do Estado, no máximo, constatam a
presença de menores em locais indevidos, mas não conseguem flagrar a exploração
sexual.
A imaterialidade do processo e a fluidez das relações espaciais desenvolvidas
pelas meninas e a rede de exploração sexual comercial na qual estão inseridas driblam
com sucesso as ações de blitze desenvolvidas pelo Estado. As táticas triunfam sobre a

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NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO
URBANO...

lógica do Estado que ainda insiste em agir baseado no modelo da prostituição adulta,
envolvendo pontos fixos e o período noturno.
A influência da família, dos contextos, das ações infere no corpo. O corpo não é
um dado pronto, mas resultante de negociações espaciais e históricas. Foucault (1988)
argumenta que as regras de conduta moral-sexual fluem segundo idade, sexo, entre outros,
mas que as obrigações e interdições não são dispostas a todos da mesma maneira. O
espaço geográfico enquanto uma instância social, relacional e processual passa a compor
as estruturas de amadurecimento e interiorização da atividade pelas próprias meninas,
bem como é um elemento das táticas dos envolvidos na exploração.
A desejada exeqüibilidade dos direitos universais das crianças e adolescentes a
partir do ECA só é possível quando se contemplar a diversidade espaço-temporal da
vivência da infância. Pode-se afirmar que a espacialidade do fenômeno da exploração
sexual comercial infanto-juvenil feminina é de alta complexidade e não apresenta um
padrão homogêneo. Pelo contrário, sua sobrevivência só é possível pelas múltiplas
configurações espaciais nas quais se viabilizam as práticas dos sujeitos envolvidos e,
inclusive, da posição do papel repressor do Estado. Ou seja, enquanto as versões desse
fenômeno não produzirem um diálogo, Estado e meninas prostituídas trilharão caminhos
diversos e, infelizmente, a versão da realidade produzida por estas crianças continuará
invisível e silenciada na realidade urbana.

Do espaço interdito ao território da prostituição travesti

Outra importante contribuição da reflexão do grupo em torno da posicionalidade


do pesquisador em relação ao sujeito investigado e suas experiências espaciais foi o re-
arranjo do conceito de território na exploração do grupo de travestis. O grupo focal é
composto de treze pessoas que se auto-identificaram como sendo ‘uma travesti’, utilizando
a expressão no feminino. Embora a língua portuguesa classifique a palavra relativa ao
sujeito masculino, preservaremos a linguagem utilizada pelo grupo.
Duas pesquisas desenvolvidas de forma concomitante eram constantemente
confrontadas. Enquanto uma delas evidenciava os espaços interditos às travestis e,
portanto, sua invisibilidade, a outra enfocava a única possibilidade socialmente permitida
de sobrevivência dessas pessoas, ou seja, os espaços de prostituição. A mesma sociedade
heteronormativa que exclui as travestis dos espaços de convivência social e promoção da
cidadania durante o dia, possibilita a criação dos territórios da comercialização de práticas
sexuais durante a noite. O poder normativo, tal qual proposto por Foucault (1984), não
produz a simples contraposição entre dominados e dominantes, mas complexidades
existenciais e, portanto, espaciais.
Conforme argumentos de Peres (2005), as travestis carregam consigo duas
performances corporais na atividade de prostituição, dependendo das preferências do
cliente e assim, rompem com as categorias clássicas de masculino e feminino e não se

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Terra Livre - n. 29 (2): 15-28, 2007

enquadram em um dos lados das bipolaridades.


Tal qual os geógrafos Jon Binnie e Gill Valentine (1999), compreendemos que o
ser travesti se constitui no estar no mundo e isso é essencialmente espacial, pois viver
implica ações, práticas, relações que se realizam numa dimensão concreta. Contudo, o
estar no mundo significa relacionar-se com outros grupos, fundamentalmente diferentes
do ser travesti e, nesse sentido, o poder coloca-se como ponto essencial em nossas
pesquisas. Desse ponto de vista, o caminho conceitual seguro para compreender a vivência
do grupo de travestis que investigávamos nos levou a adotar o território como ferramenta
conceitual.
Vários geógrafos têm aprofundado as discussões sobre a potencialidade do
território na compreensão da realidade sócio-espacial como Souza (1995), Silva (2000),
Haersbaert (2004) e outros. A associação entre território e prostituição também é um
caminho seguido por diversos pesquisadores como Mattos e Ribeiro (1996), Ribeiro (1997),
Villalobos (1999), Campos (2000) e Silva (2002). Enfim, sem querer nos aprofundar nas
diferenças entre as proposições desses autores, ressaltamos que nossa inspiração em
relação às suas obras esteve centrada na importância das relações de poder e na
apropriação dos espaços a fim de torná-los territórios, sejam eles econômicos, políticos
ou culturais e na maleabilidade das variações de limites fronteiriços e temporais. Assim,
para analisar a experiência espacial das travestis, adotamos a perspectiva de que os
sujeitos, ao desenvolverem práticas de apropriação de determinados espaços do urbano
por um período de tempo, impõem condutas consensuadas no grupo e, desta forma, instituem
seus territórios frente aos outros grupos, corroborando assim o referencial teórico analisado.
Como já explicitado anteriormente, as pesquisas desenvolvidas pelo grupo são
constantemente confrontadas, assim como os dados obtidos do campo. É importante
lembrar que dois pesquisadores trabalharam com o mesmo grupo focal, entrevistaram as
mesmas pessoas com perguntas que se sobrepunham e obtiveram elementos diferentes
na exploração do saber desses sujeitos. Isso porque o resultado obtido é fruto de um
momento único, jamais reprodutível e o sujeito investigado reage ao pesquisador.
Enquanto uma das pesquisas obtinha quase por unanimidade a frase “as travestis
não tem espaço para viver na cidade”, a outra pesquisa em andamento nos levava a crer
que havia sim um espaço das travestis que lhes é significativo, capaz de dar sentido à sua
existência, já que a frase “se aprende a ser travesti na rua” tornou-se paradigmática.
O saber sobre o espaço urbano produzido pelas travestis foi confrontado com
nosso saber oriundo da ciência geográfica. Nós, enquanto pesquisadores posicionados
fora do grupo focal, concebíamos o território numa diferenciação entre o grupo de travestis
na atividade de prostituição e os outros que não compartilhavam dos mesmos valores e
atividades. Esta posição simplista da manifestação de limites de fronteiras entre grupos e
da expressão material do fenômeno da prostituição foi derrubada pelo saber das travestis.
Uma expressão comum do grupo é “os mesmos homens que fecham as portas durante o
dia são os que abrem as pernas à noite”, o que nos colocava um questionamento sobre a

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NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO
URBANO...

constituição das categorias opostas outsider e insider.


A relação com o grupo nos possibilitou a compreensão de que é justamente a
força da interdição sócio-espacial que possibilita o fortalecimento de seu território, já que
este é o único espaço que lhes possibilita reconhecimento social, independentemente de
sua valoração moral. Nesse sentido, exclusão e apropriação espacial não se anulam em
campos oposicionais, pelo contrário, entrelaçam-se e potencializam-se numa espiral
constante e complementar, constituindo um território que é multidimensional.
Outro questionamento provocado pelo saber travesti às nossas bases conceituais
se relacionava ao poder. Inicialmente, nós concebíamos o poder atrelado às práticas do
grupo para a manutenção do território frente a outros grupos no sentido insider X outsider.
Entretanto, o território da prostituição travesti existe na medida em que ele contempla a
relação da comercialização dos serviços sexuais que se dá entre a travesti e seu cliente.
Isso implica uma prática que envolve centro e margem de uma configuração de poder
que se apropria do espaço e o torna território.
A travesti no território da prostituição representa o centro do poder porque através
de suas performances corporais desperta o desejo do cliente representado aqui como
margem da configuração do poder, já que ele a procura para viver o prazer interdito pela
sociedade heteronormativa. Este cliente faz parte da sociedade que as exclui, mas
simultaneamente, compõem o território da prostituição travesti numa situação de
subordinação. Além de temer ser identificado vivendo uma sexualidade disparatada, o
cliente deve contratar o preço e os serviços que envolvem o programa, embora possua
vantagens monetárias. Todavia, depois do contrato firmado, ocorre o deslocamento dos
corpos para locais privados onde as travestis deixam a centralidade da configuração de
poder e, muitas vezes, tornam-se vítimas da violência de seus clientes. Assim, o
deslocamento da mesma configuração para outros espaços reposiciona os sujeitos e,
portanto, o espaço segregado a que estão submetidas é, contraditoriamente, um elemento
ativo na composição do poder da travesti.
Após esta mediação da experiência travesti, passamos a conceber o território
composto de um poder multidirecional, intercambiado entre os sujeitos que compõem a
configuração que dá sentido à apropriação espacial. Portanto, argumentamos que território
se institui de plurilocalizações dos sujeitos que não são fixos em suas posições de centro
e margem, mas constantemente tensionados.
Depois de um tempo de convivência com o grupo nos foi possível perceber que o
território da prostituição travesti, além de lhes garantir a sobrevivência econômica, era
um importante elemento fundante de sua identidade. As entrevistas realizadas evidenciam
que as ruas em que se desenvolvem as atividades de prostituição em 86% das evocações
a seu respeito são importantes para sua existência. Deste percentual de evocações
relacionadas ao território da prostituição, 19% delas relacionam-se com o local possível
de construção de amizades e redes de solidariedade. Os outros 81% se relacionam com
a possibilidade de constituição do ser travesti que envolve tanto a adequação de

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Terra Livre - n. 29 (2): 15-28, 2007

comportamentos aos códigos do grupo quanto a transformação do corpo.


É no local de prostituição que se apreendem e se ensaiam as performances de
comportamentos, significados lingüísticos, sinais corporais que permitem as provocações,
assédios, disputas e rivalidades. Os elementos comuns são a esperteza, a força e a malícia,
elementos sempre lembrados e considerados necessários na composição do ser travesti.
No processo de aprendizagem é comum a figura da ‘madrinha’ que, geralmente, é uma
travesti experiente e de valor moral reconhecido segundo os códigos identitários do grupo.
A ‘madrinha’ possibilita um aprendizado mais rápido do ser travesti, além de avalizar seu
ingresso no território repleto de conflitos de toda ordem. Afinal, a vivência cotidiana
dessas pessoas é marcada por situações de insegurança, ameaças de morte, assaltos,
brigas, rivalidades, violência, drogas, doenças e discriminação. É em função destas
adversidades sofridas na rua que elas se tornam mais decididas, mais firmes, mais fortes,
mais ‘espertas’, criando uma couraça espessa para suportar o sofrimento e a intolerância
social.
A relação entre o território e as transformações gradativas do corpo para atingir
o objetivo do corpo travesti também é comum em suas expressões. É no território que
elas observam, apreendem práticas e técnicas corporais, criam maneiras de se vestir, se
maquiar, enfim, incorporam os elementos identitários do universo feminino ao corpo
biologicamente masculino e realizam a transgressão da norma heterossexual. Estas
performances são ações de comunicação próprias do território da prostituição travesti
que constituem simultaneamente um espaço de laços afetivos, sociabilidade e identidade.
Enfim, foi a partir da frase paradigmática do grupo, “é através do território que as
travestis se tornam travestis”, oriunda da compreensão da experiência espacial do grupo
focal, que re-articulamos nossas bases conceituais e pudemos afirmar que o território é
elemento ativo na constituição da identidade grupal travesti. Assim, território e sujeito
constituem uma relação de interdependência. Mais uma vez o saber das travestis nos
levou a ultrapassar a concepção de que o território é ‘resultado’ da dinâmica de relações
dos sujeitos e, sendo assim, considerado um elemento passivo. Pelo contrário, afirmamos
que o território institui a identidade do sujeito travesti assim como é por ela instituído.

Considerações Finais

Este trabalho explorou os desafios de análise geográfica que o Grupo de Estudos


Territoriais vem desenvolvendo em parceria com a ONG Renascer. A análise crítica dos
limites teórico-metodológicos e a reflexão em torno da posicionalidade do pesquisador no
problema evidenciado em cada uma das pesquisas têm sido um processo que produz a
visibilidade de grupos sociais, geralmente escamoteados da análise geográfica, e constrói
um conhecimento do qual estes sujeitos são co-participantes. As meninas foco de nossa
investigação vivenciam um espaço paradoxal. São sujeitas de direitos, mas invisíveis aos
olhos do Estado. Querem manter-se invisíveis, mas, com isso, expandem as possibilidades

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NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO
URBANO...
de perpetuação de uma condição perversa de exploração que cabe também à geografia
urbana estudar e tornar o fenômeno inteligível. O grupo de travestis que desenvolve
atividades de prostituição refutou nossas teorias prévias, desafiou nossas bases explicativas
e articulou seu conhecimento ao nosso. Enfim, compartilhar nossos desafios e limites tem
sido uma excelente maneira de socializar nossa trajetória a fim de produzir novos debates.

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Recebido para publicação dia 10 de Novembro de 2007
Aceito para publicação dia 11 de Fevereiro de 2008
28
Resumo: O processo histórico de formação institucional das
ciências modernas gerou uma tendência a especialização do
O ESTUDO conhecimento que levou a muitos a acreditarem que as
GEOGRÁFICO DOS denominações dessas especializações expressavam a totalidade
ELEMENTOS da realidade observada. Esse é o caso da chamada Geografia
Cultural em que os estudos dos aspectos culturais da realidade
CULTURAIS - social pela visão geográfica, presentes em qualquer abordagem,
CONSIDERAÇÕES PARA acabam substituídos por aspectos de catalogação e descrição
ALÉM DA GEOGRAFIA superficial dos elementos de determinada região. O resgate atual
da Geografia Cultural tende a cair em modismos teóricos e apenas
CULTURAL ser um novo nome para práticas viciadas de se fazer estudos
científicos, não contribuindo para um melhor entendimento da
dinâmica espacial da sociedade atual.
THE GEOGRAPHICAL STUDY OF THE Palavras-chave: Cultura; Geografia; Ciência, Linguagem,
CULTURAL ELEMENTS - Identidade.
CONSIDERATIONS FOR BESIDES
CULTURAL GEOGRAPHY Abstract: The historical process of institutional formation of the
modern sciences ended up generating a tendency the
EL ESTUDIO GEOGRÁFICO DE LOS specialization of the knowledge that took to many believe that
ELEMENTOS CULTURALES- the denominations of those specializations expressed the totality
CONSIDERACIONES PARA ADEMÁS
DE LA GEOGRAFÍA CULTURAL
of the observed reality. That is the case of the call Cultural
Geography in that the studies of the cultural aspects of the social
reality for the geographical vision, present in any approach,
tended to be substituted by aspects of cataloguing and superficial
description of the elements certain area. The current rescue of
CLÁUDIO BENITO the Cultural Geography tends to fall in theoretical posture and
just to be a new name for vicious practices of scientific studies,
OLIVEIRA FERRAZ not contributing to a better understanding of the space dynamics
of the current society.
Professor vínculado ao Keywords: Culture; Geography; Science, Language, Identity.
Departamento de Educação da
Universidade Estadual Paulista - Resumen: El proceso histórico de formación institucional de las
UNESP (campus de Pres.
Prudente/SP) ciencias modernas terminó generando una tendencia a la
especialización del conocimiento que tomó a muchos creer que
e-mail: cbenito@fct.unesp.br las denominaciones de esas especializaciones expresaron la
totalidad de la realidad observada. Ése es el caso de la llamada
Geografía Cultural en que los estudios de los aspectos culturales
de la realidad social para la visión geográfica, presente en
cualquier abordaje, cuidó sustituidos por los aspectos de
catalogación y descripción superficial de los elementos en cierta
área. El rescate actual de la Geografía Cultural tiende a
desplomarse en los modismos teóricos y simplemente ser un
nuevo nombre para las prácticas viciadas de hacer los estudios
científicos, no contribuyendo a un entendimiento de la dinámica
espacial de la sociedad actual.
Palabras clave: La cultura; la Geografía; la Ciencia, la
Lenguage, la Identidad.

Terra Livre Presidente Pru dente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 29-50 Ago-Dez/2007


29
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

Introdução:

Este artigo visa apresentar algumas genéricas ponderações quanto às possibilidades


do estudo científico da Geografia tecer análises sobre os aspectos culturais da realidade
social.
Não se objetiva aqui esgotar o assunto, mesmo por que tal pretensão é
megalomaniacamente impossível, mas tão somente esboçar certas considerações, de
caráter mais didático e introdutório, que a leitura dos fenômenos culturais potencializam
na direção de se ampliar o entendimento do discurso científico da Geografia, assim como
de também apresentar algumas temáticas e perspectivas teóricas sobre a função social
desse ramo do saber humano a partir de nossas pesquisas e reflexões realizadas no
interior do Grupo de Pesquisa Linguagens Geográficas.
Antes de darmos início às nossas considerações, demarca-se aqui a posição de
que, apesar de focarmos a questão cultural, isso não significa que estaremos fazendo a
denominada Geografia Cultural.
Entendemos que a Geografia se organiza enquanto saber científico a partir de um
edifício lingüístico que a demarca e estimula para o diálogo com as demais esferas do
conhecimento (arte, cotidiano, místico e outras ciências). É através de sua linguagem
própria, a qual está sempre em processo de construção, que o discurso geográfico
estabelece sua identidade e significação social.
Esse discurso se pauta em certos princípios, habilidades, conceitos e categorias
comuns, os quais, apesar de possuírem denominações específicas, sofrem mudanças
interpretativas e de sentido conforme as características sócio-espaciais em vigor. Por
conseguinte, não devemos confundir os termos e palavras com que denominamos os
fenômenos e as manifestações de ordem espacial com a realidade concreta dos mesmos.
Sendo a linguagem, e as palavras que a constitui, uma construção sócio-cultural,
esta carrega em si todo o jogo de significações e simbologias que as relações humanas
produzem em acordo com as condições técnicas, tecnológicas, políticas e ideológicas de
cada época e lugar.
Diante disso, por exemplo, tomar a palavra “paisagem” como se fosse a expressão
exata da realidade de um fenômeno em si, tende a comprometer o próprio entendimento
da realidade que se representa através desse conceito, pois não percebe que o termo é
fruto de determinados usos e costumes socialmente construídos em lugar e situação
específicos, não podendo ser empregado em todas as condições e contextos com o mesmo
significado.
A simbologia presente em um termo ou idéia toma determinada significação através
do jogo de significados que a sociedade, em conformidade às contradições que a organiza
com certa singularidade espacial, tende a elaborar.
Tal consideração se aplica também aos termos e palavras com que se
compartimentam e se especializam os ramos do saber científico, como é o caso da

30
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

Geografia. Muitos não entendem que entre a denominação de uma área do saber e a
existência concreta desta, ou sua naturalização enquanto elemento do real, existe uma
grande diferença.
Achar que o termo Geografia Cultural expressa uma parte da realidade, a qual
deve sofrer dos mesmos processos de abordagens das tradicionais análises geográficas
para assim ser mais bem mensurada, catalogada e representada teoricamente, é um
complicador do discurso geográfico.
Não existe Geografia Cultural enquanto tal, assim como não existe Geografia
Humana, Física etc., o que existe de fato é a realidade em sua diversidade de manifestações
e fenômenos, os quais podem ser interpretados pela organização discursiva e lingüística
de cada ciência.
Portanto, as manifestações e práticas culturais podem ser estudadas por diversos
ramos do saber, incluindo-se aí a Geografia, mas isso não significa que exista uma coisa,
uma entidade ou expressão da realidade que seja a “Geografia Cultural”. Essa denominação
visa mais atender uma necessidade de especialização e burocratização institucional da
pesquisa científica do que delimitar a existência de um fato em si.
A Geografia pode auxiliar no melhor entendimento dos elementos culturais a partir
de como a sociedade atual os utiliza ou os experimenta no sentido de sua lógica e dinâmica
espacial, isso é o que realmente importa e, para tal, torna-se necessário redimensionar o
vocabulário geográfico, assim como suas práticas e referenciais, de maneira a melhor
contribuir para a interpretação do mundo em sua dinâmica contemporânea.
Os fatores e elementos culturais tomam na sociedade atual importância cada vez
mais central, tanto no aspecto de congregar o processo de reprodução e acumulação
capitalista, assim como de divulgar e propagar os valores, percepções e comportamentos
definidores das atuais relações, tanto sociais quanto individuais.
O papel das diversas mídias, atrelado às novas tecnologias e técnicas de informação
e comunicação, assim como o caráter cada vez mais presente dos referenciais imagéticos
e estetizantes delineadores e delineados pelas perspectivas e necessidades humanas, faz
com que o complexo cultural possua uma presença espacial nunca antes vista.
A Cultura, entendida aqui em seu sentido mais amplo possível, desenvolveu
contemporaneamente formas diversas de manifestações, assim como dinamizou as relações
de disputa pelo poder e as de construção de identidades sócio-individuais, tanto em nível
local quanto global. Perante esses fatos, cobra-se da Geografia a elaboração de parâmetros
que permitam uma melhor leitura dessa nova ordem espacial, permitindo estabelecer
sentidos de orientação e localização mais próximos das condições de existência do ser
humano no interior desse processo.
O artigo aqui visa contribuir nessa direção, para tal, sistematiza algumas
interpretações pertinentes ao estudo geográfico do conceito e idéia de cultura, assim
como apresenta um rápido histórico de como a geografia oficial incorporou e desenvolveu
o estudo do universo da cultura no interior da área chamada “Geografia Cultural” e,

31
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

fechando o artigo, propõe alguns temas e abordagens à Geografia a partir de novas


formas de abordagens dos referenciais culturais e da construção necessária de um novo
fazer científico. Insistimos, estas idéias e sistematizações aqui apresentadas não são
únicas nem se encontram acabadas, mas são possíveis e entendemos necessárias para
melhor compreendermos as linguagens geográficas que permeiam nosso viver.

Cultura e Geografia – pontos de contato e novas possibilidades:

O entendimento sobre Cultura nos estudos geográficos tem seu processo de


sistematização e institucionalização a partir do século XIX, em decorrência das novas
técnicas de registro e transmissão de informações, assim como das necessidades colocadas
pelo arranjo capitalista de identificar e mensurar os diversos territórios passíveis de
exploração e controle econômico.
Nesse sentido, Cultura é inicialmente tomada como uma série de artefatos e práticas
(roupas, técnicas de trabalho, alimentação, religião, língua, escrita, os utensílios, a moradia,
arquitetura etc.) que possibilitariam caracterizar determinado arranjo sócio-paisagístico,
viabilizando certa identidade regional passível de ser mapeada.
Essa delimitação territorial permitia identificar a relação dos povos com seus
ambientes, estabelecendo o sentido de unidade e a consolidação da desejada identidade
regional até a escala do Estado-Nação.
A partir da identificação e caracterização de determinado povo com um território
devidamente delimitado e mensurado, tornava-se viável organiza-lo ao redor de uma
estrutura jurídico-política caracterizada como Estado-Nação, a qual, em nome dos
processos civilizatórios e desenvolvimentistas, implementava determinadas práticas de
controle social e de administração territorial comuns a todos os povos articulados por
esse modelo, ou seja, ao longo da superfície do globo terrestre, o território seria dividido
em porções político-administrativas pautadas na mesma estrutura organizacional e
ideológica do Estado-Nação, sendo esse o referencial científico que instituía a consolidação
da lógica econômica do capital.
Formalizava-se assim o modelo único de progresso e organização sócio-territorial
dos diversos povos e nações, sendo a cultura o elemento central na caracterização das
identidades em cada “porção” do espaço mundializado do capital.
Como os veículos de acumulação capitalista ao longo do século XIX se pautavam
nos mecanismos de conquistas e domínios territoriais, os aspectos culturais acabavam
tomando contornos ideológicos que confundiam os conflitos sociais com os processos de
independência territorial e de autonomia do Estado-Nação correspondente.
Os estudos culturais tiveram grande importância no período, exatamente por
contribuir para a elaboração dessas identidades territoriais e por definirem um projeto
evolutivo-desenvolvimentista dessas nações a partir dos referenciais econômicos e culturais
das chamadas nações mais civilizadas.

32
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

Contudo, após a consolidação do modelo de gerenciamento territorial do Estado-


Nação, ao adentrar o século XX, as disputas territoriais desembocaram em conflitos
beligerantes entre as grandes nações imperialistas, o que comprometeu o próprio processo
de acumulação capitalista em escala ampliada. Paralelo a isso, com as novas técnicas de
comunicação e circulação (rádio, telefone, cinema, automóvel, avião etc.) os tradicionais
processos de pesquisas, sistematizações e divulgação dos dados ficaram obsoletos em
relação aos interesses e necessidades, tanto dos Estados como do conjunto social.
O rádio e o cinema, por exemplo, podiam apresentar informações dos diversos
lugares do mundo atualizadas cotidianamente e com imagens consideradas reais dos
lugares, de maneira mais prazerosa e dinâmica que os textos científicos e didáticos. A
forma e a velocidade que os veículos comunicativos apresentavam a diversidade do mundo
interferiram nas formas de percepção com que os homens liam e valorizavam o mundo e
os lugares.
A conseqüência disso para o discurso científico da Geografia foi um distanciamento
cada vez maior entre as pesquisas e estudos sobre os aspectos culturais e o conjunto de
informações que os Estados imperialistas então cobravam da ciência.
As disputas imperialistas por domínios territoriais levaram a duas guerras de caráter
mundial, assim como os conflitos sociais desembocaram nos projetos de libertação da
classe trabalhadora amalgamados com a autonomia de Estados que se assumiram como
Socialistas.
Durante a chamada “Guerra Fria” os confrontos imperialistas por domínios
territoriais se polarizaram em dois blocos de nações, sendo que os elementos culturais
atendiam aos parâmetros dessa disputa.
No interior do bloco capitalista o que se colocava era a disputa de uma cultura
popular de caráter nacional contra uma cultura dominante de aspecto imperialista
internacional. Já nos países do bloco socialista, a questão que se colocava era a criação
de uma cultura internacional da classe trabalhadora orquestrada pelo Estado, contudo,
esse modelo universal de cultura proletária socialista se conflitava com os elementos das
diversas expressões culturais populares no interior de cada “nação”.
Nos países da periferia do sistema econômico, com graves problemas sociais, essa
disputa geopolítica adquiria um tempero especial em decorrência da adoção do modelo
desenvolvimentista capitaneados pelos países centrais, fazendo que o ideal de progresso
se travestisse de urbanização acelerada, aumentando ainda mais a disparidade sócio-
econômica e ampliando os processos de marginalização e conflitos sociais.
Em países como esses, como foi o caso brasileiro, o sentido de cultura estava
parametrizado em reforçar o aspecto de atraso cultural das populações rurais, com seus
ritmos determinados pelos processos naturais, as grandes distâncias a serem percorridas
por veículos e meios de transportes lentos e de baixa tecnologia, assim como a dificuldade
que representavam essas camadas populacionais rurais de se inserirem nos mecanismos
de consumo e de controle fiscalizatório, tão necessários à reprodução econômica e política

33
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

por parte dos Estados que ansiavam serem “desenvolvidos”.


Para reforçar o sentido de identidade territorial a partir da aceitação às regras
institucionais e econômicas da ordem capitalista, era necessário concentrar essa população
no meio urbano, fazendo com que ela assumisse os valores culturais dessa sociedade
mais tecnicista, dinâmica, padronizadora e fiscalizadora. Daí o rápido processo de
urbanização que permeou a reordenação espacial da maioria dos países periféricos do
sistema econômico, o que levou a fortes conflitos culturais entre gerações e camadas
sociais.
Os hábitos, leituras e inserção espacial de uma geração nascida no mundo rural
são totalmente diferentes de outra geração nascida na espacialidade urbana. O mundo
urbano não apresenta horizontes visuais amplos e o processo de localização e orientação
se dá através da lógica dos nomes das ruas e números das casas, bem ao contrário do
meio rural.
A própria compactação das moradias e especialização territorial leva os quintais
das casas, quando existirem, não serem para complementar a alimentação, mas apenas
lazer, isso contribui com os conflitos de valores entre as gerações, agudizadas com os
elementos de consumo e estética de produtos urbanos como roupas, músicas, hábitos
alimentares e de entretenimento.
O pai de origem rural achava natural criar galinhas no quintal, já o filho nascido na
cidade entendia a área do quintal como boa para colocar uma piscina ou construir uma
série de apartamentos pequenos e alugá-los. Esse pai aprecia músicas cujas letras fazem
referências ao mundo rural, já o filho prefere sons mais urbanos e elétricos, que falam de
sexo, automóvel e velocidade.
Exemplos como estes expressam a maneira que os elementos fundamentais da
lógica determinante do arranjo espacial das novas forças capitalistas durante a guerra-
fria interferiram no cotidiano de gerações e grupos humanos, o que levou a toda uma
mudança de leitura e identificação do cultural como fator congregador das identidades e
das leituras sócio-espaciais de então. Quem não se integrava a essa nova lógica urbana
e cultural ficava marginalizado ou era eliminado
Diante desse mundo urbano, em que os inovadores elementos comunicativos e
circulatórios definiam novos padrões culturais, o tradicional discurso cultural da geografia,
que buscava identidades entre as populações no interior de fronteiras mais claramente
delimitadas, tão facilmente identificáveis num meio espacial hegemonicamente dominado
pela lógica do mundo rural, tornava-se cada vez mais distante das condições sócio-espaciais
então colocadas pela realidade e velocidade do universo tecno-industrial.
Enquanto a Antropologia, a Sociologia, a História, a Filosofia e outras ciências e
ramos do saber estavam buscando novas ferramentas teóricas e conceituais para
entenderem as transformações que estavam ocorrendo no universo cultural, e as novas
características deste a influenciar posturas, comportamentos, idéias e valores sociais,
como foi o caso da introdução dos termos “Indústria Cultural”, “Comunicação e Cultura

34
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

de Massa”, “Aldeia Global”, “Mass Mídia” etc., a Geografia se distanciou dessas


abordagens, praticamente descartando os fatores culturais de seus estudos e abordagens1 .
Com os processos de urbanização e mobilidade cada vez mais dinâmicos e
diversificados a gerarem uma maior complexidade das relações sócio-espaciais,
subvertendo fronteiras anteriormente mais facilmente identificáveis, além da maior
integração de informações por meio da televisão e outros veículos comunicativos, a
caracterização cultural como unidade de um agrupamento humano com seu território a
partir de elementos singulares e únicos, inerentes a uma determinada região, ficou mais
difícil.
Após a crise dos países do bloco socialista e o fim da “Guerra Fria”, a globalização
dos mecanismos de competitividade e de acumulação capitalista sobre bases pautadas na
integração comunicacional das redes computacionais, na flexibilização dos meios produtivos
e no rearranjo da divisão territorial e social do trabalho, tornou-se necessário ao Estado-
nação se readequar às novas funções perante a ordem financeira internacional.
A partir de toda uma redefinição da ordem espacial da lógica capitalista, a cultura
passou de um fator pautado nos utensílios e hábitos locais, fundamentando o aspecto
mais ideológico de identidade sócio-territorial, para um elemento central na lógica de
reprodução econômica e simbólica do mercado atual em suas diferentes escalas espaciais
de realização.
Com os processos de uniformização de produção e consumo em nível mundial,
assim como, ao mesmo tempo, a fragmentação e diversificação dos fatores que envolvem
a marginalização social e a sobrevivência humana, o sentido de identidade territorial se
transformou numa interação de elementos simbólicos cujo significado não se restringe só
ao local ou a determinada classe social.
Um jovem adolescente morador da periferia marginalizada de uma cidade média,
como Dourados (MS), veste-se com roupas semelhantes ao seu ídolo raper norte-
americano, adquirindo medalhões com dizeres em inglês, fabricados na China e comprados
no “camelódromo”, ao mesmo tempo que torce para o Corinthians com seu “craque”
argentino Teves, acompanha o drama da personagem virginal da novela da Globo e acessa
a Internet para baixar as imagens em que ela aparece nua juntamente com a atriz espanhola
Penélope Cruz. Aos fins de semana vai com os amigos comer pizza com guaraná no
Habib’s enquanto reclama do péssimo gosto musical dos pais, que gostam do disco latino
do Chitãozinho e Xororó, e almeja “ficar” com a vizinha de frente de seu barraco,
principalmente depois que ela tingiu o cabelo de loiro para ficar parecida com a Cristina

1
Um exemplo clássico desse distanciamento é encontrado em referência a obra do geógrafo Eric Dardel, que
nos anos 50 e 60 do século XX desenvolveu vários estudos sobre a redefinição do sentido de cultura na
abordagem geográfica, mas ficou praticamente ignorado, só sendo resgatado anos depois em países como
Canadá e, no caso brasileiro, só veio a ser estudado mais efetivamente a partir da década de 90. Os motivos
para essa recusa em focar os estudos culturais no período são vários, e pensadores como Claval, Cosgrove,
Correa tecem esclarecimentos a respeito, vide bibliografia.

35
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

Aguilera.
Esses hábitos, utensílios e valores hoje são comuns a boa parte dos jovens moradores
da maioria das cidades do mundo. As diferenças se restringem, enquanto classe social,
mais ao aspecto de poder econômico para consumir produtos mais sofisticados, e enquanto
diferenças regionais, a aspectos peculiares que não chegam a comprometer o padrão
geral, muitas vezes se interagem com esse referencial cosmopolita, dando ao mesmo um
tempero especial, como é o caso de fazer fast food de comida baiana, ou ouvir “forró
universitário” nas festas de São João na Paraíba.
Perante isso, a lógica das identidades culturais não fica tão somente circunscrita
aos parâmetros territoriais fixos, delimitados por fronteiras rígidas. O espaço em que se
expressava determinada unidade cultural não é mais um palco com sua paisagem
secularmente consolidada.
A lógica da manifestação cultural atualmente está intrinsecamente relacionada
com a interdinâmica escalar do espaço, entre o local e o mundial.
A cultura hoje é mais do que utensílios e práticas temporalmente consolidadas, ela
é também relações de valorização subjetivas de identidade e significação que se
manifestam objetivamente ou simbolicamente no espaço, tanto na concretude dos territórios
quanto no imaginário social de cada indivíduo.
Diante disso, não cabe mais um termo como Geografia Cultural em si, cuja idéia
refere-se a uma prática de estudos regionais passíveis de delimitação física e sob uma
herança histórica que funciona como um peso a cristalizar a paisagem quase que imutável
dos locais. Hoje, cobra-se do estudo geográfico dos fenômenos culturais um enfoque da
dinâmica espacial da sociedade em interação íntima com os aspectos individuais e coletivos
no estabelecimento de significação social, tanto em seus determinantes econômicos quanto
simbólicos.
Diante de todas essas mudanças no sentido econômico e ideológico do papel da
cultura no universo capitalista atual, perante a grave crise de identidade e função social
que permeou a ciência geográfica a partir dos anos 70, os antigos enfoques geográficos
sobre o universo cultural passam a ser resgatados e readaptados às novas condições do
mundo, mas como forma de se buscar referenciais condizentes para os estudos científicos
deste saber perante as novas condições espaciais então em rápido processo de
consolidação.
A questão atual é entender os atuais parâmetros de localização e de orientação, de
pertencer e se identificar com determinado lugar, sendo que esse lugar não é mais passível
de ser tomado isoladamente, pelo contrário, ele é a manifestação do mundo em suas
características locais. Ou seja, o que se coloca hoje no estudo geográfico da cultura é de
como esta permite o homem se construir enquanto humano no tempo e espaço em que
produz territorialmente os sentidos de sua existência.

Rápido histórico da abordagem cultural pela geografia:

36
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

Antes de iniciar esse capítulo, esclarecemos que essa abordagem histórica do


estudo geográfico dos aspectos culturais trilha o caminho de nossas pesquisas; visa melhor
fundamentar nossa leitura de Geografia e Cultura, portanto, é mais uma abordagem e não
tem pretensões de ser a redentora da questão.
A Geografia, enquanto discurso científico institucionalizado, é um corte e uma
delimitação de todo o saber geográfico presente ao longo da história da evolução humana.
É um corte para atender determinadas necessidades que ao longo dos séculos XIII e
notadamente XIX se tornaram cruciais para a lógica da perpetuação da sociedade industrial
e capitalista européia.
É no interior dessas necessidades, esboçadas em capítulo anterior, que surge a
denominação Geografia Cultural, cuja origem se encontra na própria gênese da Geografia
moderna.
Foi Friedrich Ratzel, em 1880, após sua viagem de estudos aos EUA, que emprega
pela primeira vez o nome Geografia Cultural. Seu trabalho A Geografia Cultural dos
Estados Unidos da América do Norte com a Ênfase Especialmente Voltada para
as suas Condições Econômicas é um marco, tanto no desenvolvimento de suas idéias
posteriores, as quais desembocarão no sentido mais amplo de Antropogeografia, quanto
para a Geografia como um todo, pois demarca como o conhecimento geográfico não
pode descartar os elementos culturais, assim como as interações entre estes e com os
demais aspectos da realidade humana (econômico, político etc.), no processo de
entendimento dos diferentes arranjos paisagísticos produzidos.
A abordagem geográfica de Ratzel visava levantar as características das relações
de determinado meio com o homem que ali habitava, sendo que esse entendimento se
dava a partir dos utensílios e práticas empregadas no processo de produção de subsistência
do coletivo, como ficava evidente ao se observar as diversas regiões, em grande parte
fortemente rurais, isoladas e milenarmente consolidadas, que compunham as várias nações
européias do século XIX.
Fazendo uso de uma frase retirada de sua Antropogeografia, selecionada por Paul
Claval em seu livro sobre Geografia Cultural, temos a confirmação do sentido do estudo
geográfico da cultura por parte de Ratzel.

“A extensão geográfica ampla, uniforme e pouco contrastada por razões


culturais, configura o primeiro objeto da antropogeografia, que pode explicar
muito claramente esta extensão sobre a base de relações simples (que
estabelecem com o meio ambiente)”.(1999, p. 22).

Com o aumento da dinâmica comunicativa e de circulação de pessoas, mercadorias


e informações, tanto na Europa quanto no restante do mundo a partir do século XX, os
estudos culturais, por parte da Geografia, com seus enfoques pautados em regiões de
forte tradição rural, quase que isoladas, foram sendo solapados, gerando a necessidade

37
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

de se redimensionar as análises geográficas perante as novas necessidades então em


voga.
Essas mudanças vão gerar estudos mais pragmáticos com forte uso da cartografia
e matemática, como ocorreu nos EUA através da famosa escola de Chicago. Em reação
a essas abordagens consideradas tecnicistas, que praticamente eliminava o agente humano
como construtor ou valorizador das paisagens, surge Carl Sauer, que em 1925 escreve A
Morfologia da Paisagem, fundando assim a chamada Geografia Cultural Norte-
Americana, ou escola de Berkeley.
Sauer desenvolveu toda uma metodologia que permitiu à Geografia Humana ter
respaldo frente ao considerado maior rigor dos estudos pragmáticos e sistêmicos da escola
de Chicago. O grande avanço de Sauer foi apontar os aspectos subjetivos, já presentes
em alguns estudos geográficos anteriores, como inerentes às abordagens estéticas que
muito contribuiriam ao estudo científico da Geografia.

“A melhor geografia jamais deixou de levar em conta as qualidades estéticas


da paisagem, para qual não conhecemos outra abordagem a não ser a
subjetiva. A ‘fisionomia’ de Humboldt, a ‘alma’ de Banse, o ‘ritmo’ de Volz,
a ‘harmonia’ da paisagem de Grandnann, todas estão além da
ciência”.(SAUER. 1998, p. 61).

Contudo, dentro da tradição ratzeliana, seu foco de análise cultural se restringiu


aos elementos paisagísticos da superfície da Terra passíveis de serem empiricamente
catalogados e descritos.
Nessa busca de um entendimento de interação homem/natureza, as condições de
análise a partir dos aspectos observáveis pela sensibilidade humana acabaram por restringir
os estudos a localidades cujo peso de uma tradição histórica encontrava-se latente, portanto,
atendiam mais a uma abordagem estanque das relações culturais e sociais, deixando de
lado os elementos simbólicos mais dinâmicos e flexíveis.
No entanto, independente disso, os estudos de Sauer são demarcadores de uma
outra possibilidade para os enfoques científicos acadêmicos do discurso geográfico, mas
acabaram, com o advir da Segunda Guerra, da Guerra Fria e da disputa geopolítica pela
consolidação ideológica e econômica do capitalismo frente aos países do socialismo real,
sendo eclipsados pela necessidade de abordagens mais voltadas ao planejamento, ao
controle técnico e pragmatista do território.
Em decorrência das transformações sócio-econômicas após a Segunda Guerra, os
graves conflitos ideológicos levaram ao surgimento de um discurso mais dicotomizado
politicamente nas ciências humanas, levando a Geografia buscar, de um lado, nos
parâmetros tecnicistas e sistêmicos, abordagens mais pragmáticas e técnicas de estudos
do território, e por outro, nos referenciais marxistas os parâmetros teóricos que
viabilizassem suas análises sociais.
Ambas as posturas contribuíram para um desvio do enfoque geográfico em direção

38
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

à economização do espaço, tanto por visar a eficiência do controle e planejamento das


potencialidades do território, quanto pela fundamentação lógica para a explicação das
matizes e injustiças sócio-espaciais. Isso engendrou um afastamento dos estudos culturais,
que foram tomados como acessórios inúteis, por um lado, ou ideológicos, por outro.
Mas já nos anos 50 do século XX, Eric Dardel publica O Homem e a Terra,
Natureza da Realidade Geográfica, obra que fica praticamente desconhecida na França,
ressurgindo só algumas décadas depois e abre espaço para novas abordagens de estudos
geográficos sobre os elementos culturais da sociedade moderna.
Grandemente influenciado pelas idéias de Heidegger, assim como se definindo por
uma abordagem mais fenomenológica, a perspectiva de estudos culturais pela geografia
de Dardel não encontrou condições propícias, na época de sua elaboração, no meio
acadêmico francês, de forte presença dos referenciais marxistas, e norte-americano,
com seu peso maior nas abordagens neo-positivistas.
Essas abordagens e tendências geográficas eram, de maneira geral, as hegemônicas
nos mais diversos países da época (anos 50, 60 e início dos 70), só vindo a se ampliar o
leque de outras abordagens teóricas com o desgaste político e conceitual dessas matrizes
teórico-metodológicas, fruto do próprio desenvolvimento da sociedade e das relações
capitalistas que, paralelo a introdução dos novos meios de comunicação e informação,
permitiram que os fatores culturais ascendessem de importância, tanto no mercado
globalizado quanto nos processos de busca de sentido e de leitura do mundo.
Ao longo dos anos 80 as atuais condições sócio-espaciais começam a se consolidar,
diante desse processo o pensamento dos geógrafos que abordaram a questão cultural,
como foi o caso de Dardel, passa a ser resgatado. No caso desse, seus estudos a partir
de elementos mais subjetivos e micro-analíticos permitiram abrir à chamada Geografia
Cultural outras perspectivas de leitura e estudos do espaço segundo os condicionantes
mais próximos do cotidiano existencial humano.
A partir daí, notadamente no decorrer dos anos 90, a Geografia mergulha nas
análises das experiências individuais ou de agrupamentos humanos, tomando o vivido e
suas representações como marcos de identificação geográfica dos lugares.
Paulatinamente, portanto, os estudos geográficos do universo cultural deixam de
ser restritos a uma definição de identidades regionais estanques e de razoável delimitação
a partir das características dos objetos, utensílios e hábitos produzidos em áreas quase
que isoladas uma das outras, passando a ser mais de entendimento da construção de
identidades, de sentido de localização e orientação em meio a um mundo fragmentado,
caótico, dinâmico, multi-escalar e polissensorial.
É isso que identificamos, por exemplo, nas obras de novos geógrafos que abordam
essa questão, como é o caso de Denis Cosgrove, que parte de uma leitura do espaço
geográfico como elemento inerente às condições diversas de vida de cada indivíduo, não
reduzindo-o ao meramente empírico e catalogável,

39
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

“...enquanto nossos objetos de pesquisa continuarem exclusivamente


empíricos e nossas interpretações da motivação humana resolutamente
utilitárias, negamos a nós mesmos uma linguagem para moldar as próprias
metas que procuramos: a formação de um mundo melhor...Banidas da
geografia estão as paixões inconvenientes, às vezes assustadoramente
poderosas, motivadoras da ação humana, entre elas as morais, patrióticas,
religiosas, sexuais e políticas. Todos sabemos quão profundamente estas
motivações influenciam nosso próprio comportamento diário, quanto elas
informam nossas respostas a lugares e cenas...”.(COSGROVE. 1998, p.
95 e 96).

Abordagens como esta de Cosgrove representam um grande avanço para as


análises geográficas frente à complexidade do mundo atual, contudo, deve-se ter claro
que se essas mudanças ficarem restritas a um novo referencial teórico-metodológico, ou
a um novo tema que pode ser incorporado aos estudos geográficos, os velhos vícios do
discurso científico de uma geografia carente de poder e a serviço meramente da verborragia
acadêmica não serão superados.
O problema é que muito do que se coloca como novidade da chamada Geografia
Cultural atual se deu a partir dos referenciais tradicionais de concepção de se fazer
ciência, apenas com nova roupagem teórica e metodológica. Isso fez com que os novos
processos e características sociais fossem formatados pelos novos parâmetros teóricos a
partir de tradicionais modelos e vícios de entendimento de como se produzir um estudo
científico.
Especializam-se os estudos via fracionamento intelectual da realidade. Elege-se
competências para se abordar cada especificidade e usam-se dos fenômenos estudados
como veículos para comprovar a pertinência do modelo teórico-metodológico empregado.
A possibilidade dos estudos dialogarem com os sujeitos humanos na direção de melhor
orientação, localização e leitura do mundo para subsidiar práticas e ações, por mais banais
que estas sejam, acaba assim limitada a uma conseqüência secundária dos estudos
científicos dos processos culturais.
Os estudos geográficos dos fenômenos culturais atuais só terão sentido para a
melhor compreensão do ser humano enquanto ser cultural se forem voltados à vida dos
mesmos, viabilizando um entendimento mais esclarecido enquanto práticas cotidianas
dos indivíduos em sociedade, portanto, deve-se pensar em outros parâmetros de se fazer
ciência para além dos modismos acadêmicos.

Alguns temas necessários a serem aprofundados pela geografia:

O estudo geográfico dos fenômenos e elementos culturais cobra do discurso científico


da geografia uma abertura para temas e aspectos da realidade que a abordagem
institucionalizada desse saber insistiu e insiste em não considerar como pertinentes ao
olhar do geógrafo.

40
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

Não importando qual a corrente teórico-metodológica a que o geógrafo vincula


seu trabalho, majoritariamente as abordagens geográficas se enclausuraram no interior
de um estatuto de concepção de ciência que se pauta nos modelos das ciências naturais,
físico-matemáticas do século XIX.
São referenciais que concebem como única forma de se produzir conhecimento
científico aquela que encontra uma verdade definitiva capaz de padronizar a diversidade
do real. Esta forma de entendimento não percebe que entre a concretude de um dado
fenômeno no real e a maneira como o representa ou o identifica por meio do emprego
rigoroso das palavras há uma profunda diferença e distanciamento re-criativo permeado
pelas experiências intelectuais humanas.
Esses referenciais não se abrem para as novas condições em que os seres humanos
estão produzindo e vivenciando sua espacialidade, pois insistem na perspectiva de um
racionalismo fechado em que só existe a não-contradição de uma ordem linear; quando
muito, entendem essa não contradição apenas como um jogo de palavras que reforçam a
coerência lógica do discurso final elaborado.
Não percebem que após a Teoria da Relatividade, do surgimento da Física Quântica,
da Geometria Não-Euclidiana de Lobatchevski, da Álgebra de Boole, da nova
Termodinâmica e do DNA, os tradicionais modelos rígidos e definidores de uma realidade
objetiva e plenamente mensurável, sem improvisações ou fatores aleatórios, que as antigas
ciências naturais defendiam, começaram a ser reavaliados em prol de novas formas de
entendimento da racionalidade e da objetividade científica. Logicamente que isso não
significa que foram eliminados, mas que não podem mais serem tomados como únicos e
absolutos em si.
Atualmente a Matemática, a Física, a Química e a Biologia, entre outras, tendem a
incorporar os aspectos simbólicos e culturais humanos nos seus referenciais de leituras
da realidade, mas isso não significa que estes saberes perderam o necessário rigor das
análises, simplesmente abriram-se para outros horizontes humanos da realidade.
O princípio da não-contradição não se aplica mais em sua inteireza, assim como a
idéia de verdade passou a depender também dos elementos simbólicos e imagéticos que
a cultura humana produz como referencial pertinente a dar sentido a determinado aspecto
da realidade, não se confundindo mais com os fatos que envolvem a realidade objetiva
independente da presença humana.
Diante disso, a Geografia precisa se abrir para esses enfoques temáticos,
possibilitando uma efetiva contribuição de sua análise para as novas necessidades sociais,
ao invés de ficar negando, em nome de uma idéia de ciência que, cada vez mais, se
distancia das condições em que a vida humana está se dando.
A seguir apresentamos alguns temas que podem ser abordados de forma mais
constante pela Geografia a partir do enfoque dos elementos culturais. Esses temas não
esgotam o universo de possibilidades, mas apontam para novas perspectivas que a
Geografia tem condições de contribuir, desde que supere seus vícios academizantes,

41
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

redimensionando o sentido epistemológico-ontológico do seu fazer ciência, ampliando a


própria concepção de ciência para além das armadilhas metafísicas que secularmente a
aprisionou.

A)REDEFINIÇÃO DO SENTIDO DE CIÊNCIA:

Desde o século XIX, vários pensadores já apontam para os limites do pensamento


científico em sua crença dogmática de desvendar a verdade do universo e dizer para
onde que a sociedade humana deve caminhar. Nietzsche, Dilthey, Husserl, Bachelard,
Lefebvre, entre tantos outros, das mais diversas formações e opções teóricas e políticas,
contribuíram para que o conhecimento científico assuma uma polissemia de sentido e
uma atitude mais próxima do viver humano, superando seu vínculo com a exclusividade
das necessidades meramente abstratizantes da metafísica em que fundamenta a suposta
coerência lógica de seu discurso.
As chamadas ciências humanas (sociais para uns, do espírito, para outros), no
interior dessa reavalização estatutária, passam a ser o foco das principais análises e
críticas, cobrando-se delas uma atitude mais coerente com seus objetos de estudos, de
forma que percebam a singularidade de seus referenciais epistêmico-teóricos, tanto a
partir de sua base ontológica quanto de sua finalidade social.
A Geografia, enquanto corpo teórico de análise dos processos espaciais da
sociedade, deve buscar uma elaboração discursiva que seja coerente com sua finalidade
social, ao invés de insistir em compartimentações e especializações cientificistas que
apenas a distanciam de seu propósito em nome dos supostos interesses do Estado.
Ao invés de priorizar a concorrência com profissionais de outras áreas, disputando
um mercado de competências meramente técnicas, com especializações tipo geografia
humana, geografia física, geografia urbana, geografia rural, geografia cultural etc., o
geógrafo deveria se aprofundar na organização de sua linguagem visando elaborar meios
mais eficientes de interpretação dos diversos processos espaciais que envolvem a produção
de sentidos da vivência humana2 .

B)LINGUAGEM E IDENTIDADE:

“Os materiais de uma ideologia são a linguagem e seus recortes práticos,


denominados ‘discursos’”(SODRÉ. 2004, p.22). A linguagem é uma forma simbólica
de comunicação e interação, reflete as condições sociais em que as pessoas vivem, mas
pode também “criar” padrões de entendimento do real.

2
A busca por processos mais criativos sofre grave resistência por parte da academia, basta ver que até os
meios de divulgação e apresentação das reflexões científicas passam por um processo de padronização e
delimitação que visa inibir a criatividade, a produção de pensamentos mais originais e as formas de apresentá-
los. A justificativa para tal é uma suposta idéia de qualidade padronizante de cunho competitivo internacional.

42
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

É através da linguagem socialmente elaborada que a produção de sentido territorial


se faz presente no imaginário, na política e nas condições concretas de vida de cada
indivíduo em determinado grupo social. Por meio da linguagem, a qual nunca é estanque
e sim constantemente construída, que cada ser humano elabora seus referenciais de
localização, orientação e produção de sentido sócio-espacial, ou seja, organiza os
significados e significantes de identidade entre o corpo humano individual, o corpo social
e o território em que os seres humanos materializam física e simbolicamente a vida:

“utilizamo-nos da língua e de outros sistemas de significação socialmente


construídos para elaborar os significados, as representações que dão sentido
à nossa existência. É na linguagem que se constroem as culturas humanas,
ou seja, que se constroem as narrativas e os discursos que orientam nossas
ações”(FERREIRA & ORRICO. 2002, pg. 8).

Jô Gondar, em seu artigo Linguagem e Construção de Identidades, o qual faz


parte do mesmo livro organizado por Ferreira e Orrico, aponta a importância da questão
da linguagem para o sentido de identidades territoriais, abrindo todo um universo para os
estudos dos elementos culturais à Geografia:

“A própria definição de língua...não poderia ser separada de fatores


geopolíticos, tais como a consolidação de um determinado território...Existem
determinados climas geopolíticos que favorecem construção de algumas
identidades: no século XIX, por exemplo, um clima favorável aos
nacionalismos; nesta passagem de século, um clima favorável a uma
globalização excludente, mas que também da lugar a identidades que resistem
a esse projeto homogeneizador”(2002, pg. 114-115).

C)URBANIDADE, JUVENTUDE E ESCOLA:

“É no mundo dos jovens urbanos que se fazem visíveis algumas das


mudanças mais profundas e desconcertantes de nossas sociedades
contemporâneas: os pais já não constituem o padrão dos comportamentos,
a escola não é o único lugar legitimado do saber e tampouco o livro é o eixo
que articula a cultura”(MARTIN-BARBERO. 2004, p.66).

A juventude, por meio de experiências imagéticas exercitadas pela televisão e


outras mídias eletrônicas, melhor se adequou à lógica das imagens, assim como desenvolveu
certa facilidade para com os padrões binário-dedutivos da maioria dos jogos eletrônicos,
provocando o desenvolvimento de sensibilidades que resistem aos referenciais da cultura
letrada, rejeitando os domínios territoriais tradicionais nos quais imperam a linguagem
pautada na ordenação das palavras.
Daí a produção de novas comunidades territorialmente marginais e complementares

43
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

ao espaço dominante, as quais estão majoritariamente localizadas no espaço da vida


urbana, e se pautam em processos comunicativos fincados numa simbologia imagética
presente no vestuário, gírias, músicas e ídolos passageiros.
Michel Maffesoli (1988) melhor caracteriza essas novas formas de busca de
identidades territoriais através do conceito de “tribos”, enxergando nessas tribos urbanas
o declínio do sentido de sujeito histórico enquanto indivíduo humano nas sociedades de
massa, o que gera uma busca entre os membros desses pequenos agrupamentos sociais
e etários por identidades existenciais pautadas em outros sentidos e vivências espaciais.
A volatização é marca desse tempo de rápida combustão. A escola e a família,
entre outras instituições, não conseguem se posicionar claramente frente a estas novas
espacialidades e mobilidades, pois se enraízam em um espaço de duração e ritmo mais
constante, pautado numa cultura de referência à linguagem tradicional, da palavra escrita,
das tecnologias analógicas. Para superar isso, as instituições que visam a preparação dos
indivíduos para a vida social, como é o caso da escola, devem:

“interagir com os campos de experiência nos quais se processam hoje as


mudanças: hibridações da ciência com a arte, das literaturas escritas e
audiovisuais...o intercâmbio e disponibilização de projetos, pesquisas e
experimentações estéticas”(Ibidem, p. 67).

A Geografia, por trabalhar com os processos de interação de escalas entre o local


e o universal, de maneira a propiciar parâmetros de localização e orientação espacial,
desde que estas não fiquem restritas aos elementos matemáticos cartografáveis, pode
auxiliar nesse diálogo e “intercâmbio” entre os processos lógicos da análise científica e
as “experimetações estéticas”, ou seja, entre aquilo que podemos interpretar dos novos
comportamentos sociais e os gostos que cada grupo ou “tribo” desenvolve como referência
e identidade sócio-territorial.

C)ECONOMIA, LUGAR E ESTÉTICA:

“...o espaço econômico de competição mudou de forma e escala no decorrer


do tempo...há lutas contínuas sobre a definição dos poderes monopólicos
que podem ser atribuídos à localização e a localidades, e que a idéia de
‘cultura’ está cada vez mais entrelaçada com as tentativas de reafirmar tais
poderes monopólicos, exatamente porque alegações de singularidade e
autenticidade podem ser mais bem articuladas como afirmações culturais
distintas”(HARVEY. 2004, p. 148 e 149).

A renda de monopólio baliza outras formas de acúmulo de capital que não só a


exploração do trabalho explica. No capitalismo atual, altamente competitivo, com o jogo
internacional do mercado e o enfraquecimento das tradicionais fronteiras e barreiras
nacionais, uma maneira de propiciar a renda de monopólio é usando dos bens culturais

44
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

únicos como forma de impor um valor monopólico aos seus produtos. É o caso dos
quadros de pintores famosos, das cervejas e vinhos de determinadas regiões.
O gosto estético pelo único é fruto de toda uma construção histórica e midiática,
viabilizando que grandes investimentos sejam feitos em determinadas porções do território
e produtos, mesmo que as práticas destas e seus meios sejam contestadores à lógica do
sistema global, mas se a singularidade produzir lucros, sejam estes advindos do turismo,
da música, do cinema etc., vale o risco de investimento.
Eis a nova face da dialética “espaço-lugar”, aquela que se explica pelo capital
simbólico coletivo produzido em determinados locais. Por exemplo, caso uma região que
busca sua autonomia política e identidade própria possua terras e clima propícios a produzir
um bom vinho; toda essa simbologia de autonomia, orgulho regional e sentido de liberdade
pode ser utilizada pelo grande capital como fundamento lógico para se investir nessa
região, mesmo correndo o risco de convulsões sociais. O interesse visa uma mercadoria
carregada dessas significações culturais que servirão como uma espécie de valor agregado
ao produto final, o que transformará esse vinho em algo único, portanto, passível de renda
de monopólio.
Melhor entender como os elementos simbólicos e estéticos dos produtos culturais,
a partir das características locais e em acordo com a lógica acumulativa e da divisão
internacional do trabalho, acabam contribuindo para os processos de reprodução do capital
no interior das atuais condições de competitividade e exploração, é uma frente desafiadora
para as interpretações geográficas e de crucial importância à leitura da lógica espacial da
sociedade contemporânea.

D) O CORPO INDIVUDUAL E O SOCIAL

O corpo humano é uma organização físico-biológica, contudo, só pode ser entendido


como humano quando encarna elementos subjetivos, emocionais e intelectuais, que muitos
chamam fatores espirituais, outros psicológicos e, de forma geral, entendemos como
culturais, ou seja, aqueles aspectos que dão sentido peculiar ao espaço corpóreo de cada
ser humano.
Outro aspecto a destacar é que esse sentido espacial único do corpo humano só
toma significado graças a sua interação constante com o corpo social do meio em que
vive. Esse é um meio também físico, mas por ser fruto das relações humanas, está
carregado de significados, simbologias e experiências que só o ser humano consegue dar
sentido, portanto, é um espaço corporal também cultural que, na relação com cada corpo
individual, estabelece as condições mais amplas do que é a humanidade.
O estudo dessas interações corporais (individual e coletiva, física e cultural), passou
a ser fonte de estudos de áreas do saber humano como a Antropologia, a História, a
Sociologia, a Psicologia e da Filosofia, que desenvolveram uma série de ferramentas
conceituais como os de “fato social total” e “técnicas corporais”3 , que visam melhor

45
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

entender como os corpos individuais desenvolvem determinadas habilidades motoras,


intelectuais, emocionais e perceptivas a partir das condições sócio-espaciais produzidas.
Outro conceito importante para entender o sentido mais amplo do corpo, tanto
individual quanto coletivo, advém do pensamento de Glifford Geertz, o qual introduziu o
sentido mais simbólico da relação espacial que cada corpo em particular elabora a partir
do contexto cultural em que se encontra, ou seja, cada ser humano produz significados e
sentidos para seus gestos e percepções pessoais a partir das interações e experiências
simbolicamente elaboradas e interpretadas no meio cultural em que se encontra, portanto,
no interior de determinada interação espacial.
Além desses, pensadores como Maurice Merleau-Ponty alargaram a discussão
dos aspectos mais metafísicos e ontológicos da interação entre corpo e carne como
espaços que se complementam e se estranham no complexo jogo de busca de significados
existenciais, tanto para os indivíduos quanto para o conjunto social.
A geografia, por conseguinte, pode muito contribuir para melhor entender essa
dinâmica espacial entre o corpo de cada ser humano com o corpo social, de maneira a
produzir leituras mais ricas para estabelecimento de significados frente aos sentidos
espaciais que cada homem experimenta com seu próprio corpo.

E)PALAVRA E IMAGEM:

O mundo hoje está fortemente pautado na imagem como veículo comunicativo e


representacional. A imagem, principalmente após as novas técnicas e tecnologias de
capitação e reprodução, permite que a percepção humana das formas do real não precise
tanto de ser complementada pelas experiências imagéticas que cada indivíduo traz consigo,
o que ocorria com as narrativas e descrições pautadas no universo da palavra.
Ao mesmo tempo, isso gerou toda uma nova forma de percepção e de estética de
apreciação dos objetos e produções humanas. Torna-se extremamente necessário,
portanto, desenvolver metodologias e ferramentas que aprimorem a leitura das imagens
por meio de palavras, de maneira a enriquecer o vocabulário e permitir que as imagens
não fiquem circunscritas ao nível meramente contemplativo.
A geografia, por estudar a paisagem, parte das formas imagéticas com que esta se
apresenta para, após projetar elementos conceituais relacionados ao universo vocabular,
produzidos a partir dos meios intelectuais e do imaginário humano, estabelecer condições
de melhor entender a lógica espacial com que determinada paisagem se configura.
No estudo das imagens várias técnicas foram desenvolvidas, desde a gestalt com
sua “pregnância da forma” via a “harmonia/desarmonia”, “equilíbrio/
desequilíbrio”, “contraste”, “luz”, ‘ritmo”, passando pelas várias semióticas, como
as de Greimas com seu “plano conteúdo” e “plano extensão”, ou a de Pierce com

3
Esses conceitos foram elaborados por Marcel Mauss, vide bibliografia.

46
Terra Livre - n. 29 (2): 29-50, 2007

suas categorias da “primeiridade”, “secundidade” e “terceiridade” e seus signos


“icônico” (não figurativo), “indexial” (figurativo) e “simbólico” (codificada), assim
como as capacidades representativas, significativas e simbólicas, permitem um exercício
do olhar e da leitura das imagens por parte dos geógrafos.
Contudo, a melhor e mais rica forma de se dialogar e enriquecer o discurso científico
da geografia é trabalhar diretamente com as imagens produzidas, sejam estas as elaboradas
pela pintura, pela televisão, fotografia, cinema, jogos virtuais etc., a partir do entendimento
estético das mesmas.
O aprofundamento na abordagem estética, entendendo esta como forma de
interpretar as imagens paralelamente aos processos de apreciação e valorização das
mesmas, os quais são edificados socialmente, permitirá que a leitura geográfica use do
universo dos referenciais pautados na lógica das palavras, com as quais a estética se
instrumentaliza, para interpretar e apreciar a produção imagética.
Como vimos, as possibilidades e desafios colocados à Geografia diante da relação
palavra/imagem no processo de ampliação de seus referenciais científicos são grandes e
altamente estimulantes, mas inerentemente necessários de serem abordados.

Considerações finais:

O que se coloca atualmente à Geografia é a necessidade de se aproximar mais das


áreas que abordam a problemática cultural, tanto as produtoras quanto as que analisam
tal esfera, de maneira que uma melhor interpretação da lógica espacial desse universo
possa contribuir para um maior entendimento do homem em suas complexas e diversas
relações sociais.
Com a presença cada vez maior dos aspectos e fatores culturais no interior das
relações cotidianas que tendem a naturalizar os elementos de dominação sócio-econômica
hegemônicos, os quais parametrizam a lógica macro-estrutural da sociedade em seus
parâmetros econômicos, políticos e ideológicos, a congregação de esforços permite buscar
por diálogos com outras áreas do saber, assim como contatar os elementos estético-
artísticos, passa a ser fundamental para qualquer ramo científico.
A discussão sobre uma Teoria da Cultura não pode cair nas tradicionais armadilhas
do pensamento científico institucionalizado, aquele que busca um conceito definitivo,
universal e absoluto, fruto das competições teóricas em prol de fama, dinheiro e poder
acadêmico, mas deve servir como referencial a conjugar esforços intelectuais e estéticos
em favor de uma melhor compreensão das condições atuais de existência, de maneira a
contribuir na direção da construção de críticas e respostas mais saudáveis para o ser
humano.
As críticas atuais feitas ao modelo de ciência que buscava grandes narrativas
redentoras da humanidade não podem significar deixar de lado a necessidade que temos
de teorias que parametrizem nosso caminhar teórico e político.

47
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

Vive-se atualmente uma complexa relação de caoticidade e fragmentação das


estruturas sociais, em que os antigos modelos explicativos e generalizantes deixaram de
nos dar a segurança necessária, isso não significa que devemos nos perder em modelos
explicativos relativos aos casos particulares em si.
O discurso científico deve saber dialogar com os detalhes e compreender seus
limites generalizantes, mas deve se assumir como um referencial capaz de contribuir
para o melhor entendimento humano; no caso da Geografia, deve elaborar parâmetros
que permitam aos homens melhor se orientar e se localizar nesse jogo escalar entre o
local e o universal, já que o momento atual parece ser fruto de uma espacialização
desintegradora das relações humanas.
Nesse aspecto, os elementos culturais, centrais, como aqui tentamos apontar, tanto
para a lógica econômica quanto para a produção de identidades sócio-territoriais, devem
passar por uma leitura mais adequada e profunda pela perspectiva geográfica, permitindo
estabelecer certa unidade de compreensão em meio à diversidade da dialética espaço-
lugar.

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49
FERRAZ, C. B. O O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS...

Recebido para publicação dia 12 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 01 de Fevereiro de 2008

50
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar estudos da migração
ESTUDOS da “modernidade” e da “pós-modernidade”. Na modernidade, os
estudos migratórios tenderam a apresentar, no interior de uma
MIGRATÓRIOS NA racionalidade cientificista, modelos gerais e hegemonicamente com
MODERNIDADE E NA perfil macro-materialista. No contexto pós-moderno, a partir da
PÓS-MODERNIDADE: “crise da modernidade”, aventa-se a possibilidade da incorporação
de novos elementos nas análises dos estudos migratórios, tais como
DO ECONÔMICO AO da subjetividade, identidade, da relação eu/outro, da memória e das
representações, do duo ausência/presença; sobretudo, apresenta
CULTURAL?* maior ênfase sobre os sujeitos apontando para a hegemonia dos
estudos culturais. Contudo, modernidade e pós-modernidade devem
ser apreendidos como momentos de um mesmo processo. Nesta
STUDIES MIGRATÓRIOS NA dialética, é temeroso desconsiderar o elemento cultural em nome de
MODERNIDADE AND THE POST- um “objetivismo” economicista; igualmente, corre-se o risco em
recusar os elementos conjunturais e estruturais em prol da
MODERNIDADE: THE ECONOMIC centralidade “liberal” do indivíduo. A migração, como “fenômeno
THE CULTURAL?
social completo” e multifacetado, deve ser analisada através de uma
perspectiva teórico-metodológica que incorpore elementos culturais
ESTUDIOS MIGRATÓRIOS NA e econômicos, portanto, uma totalidade que se faz por entre
MODERNIDAD Y DE LA subjetividade, estrutura e conjuntura.
POSMODERNIDAD: EL ECONÓMICO Palavras-chave: Migrações; Modernidade; Pós-modernidade;
CULTURAL? Econômico; Cultural.
Abstract: This article it has for the objectives to examine studies of
the migration of “modernity” and “post-modernity”. In modernity,
studies migration tended to present, within a rational cientificist,
general models and hegemonic with profile macro-materialist. In
the post-modern, from the “crisis of modernity”, see the possibility
to incorporate new elements in the analysis of studies migration,
MARCOS LEANDRO such as of subjectivity, identity, the relations I/other, and the memory
of representations, the duo absence/presence, in particularization,
MONDARDO has increased emphasis on the subject pointing to the hegemony of
cultural studies. However, modernity and post-modernity should
be seized, as moments of the same process. This dialectic is a fear
Mestrando em Geografia pelo disregard the cultural element in the name of a “objective” economic;
Programa de Pós-Graduação em also, it is possible to refuse the cyclical and structural elements in
Geografia da Universidade favor of the centrality “liberal” the individual. The migration, as
Federal da Grande Dourados; “complete social phenomenon” and multifaceted, must be examined
Bolsista CAPES. through a theoretical and methodological approach that incorporates
elements cultural and economic therefore a whole that is by between
Endereço: Rua Itapeva, nº 150, subjectivity, structure and conjuncture.
Key-words: Migration; Modernity, Post-modernity; Economic,
Bairro Pinheirinho – Francisco Cultural.
Beltrão – Paraná
CEP 85603-010 Resumen: Este artículo tiene por objetivo examinar los estudios
de la migración de la “modernidad” y “posmodernidad”. En la
Correio Eletrônico: modernidad, estudios de la migración tiende a presentar, dentro de
marcosmondardo@yahoo.com.br un racional cientificista, modelos generales y hegemonicamente con
perfil macroeconómico materialista. En el posmoderno, de la “crisis
de la modernidad”, de la crisis de la modernidad, aventa la posibilidad
de incorporar nuevos elementos en el análisis de los estudios de
migración como de la subjetividad, la identidad, la relación yo/otros,
y la memoria de las reclamaciones, el dúo ausencia/presencia, en
particular, ha aumentado la atención sobre el tema apunta a la
hegemonía de los estudios culturales. Sin embargo, la modernidad
y la posmodernidad debería aprovecharse en momentos de un mismo
proceso. Esta dialéctica es temeroso desprecio cultural elemento en
el nombre de un “objetivismo” económica; también, es posible
* Agradeço as importantes e atentas negarse a los elementos cíclicos y estructurales en favor de la
leituras e as contribuições de Jones centralidad “liberales” la persona. La migración, como “fenómeno
social total” y multifacética, debe ser examinado a través de un
Dari Goettert e Flaviana Gasparotti enfoque teórico y metodológico que incorpora elementos culturales
Nunes, do curso de graduação e pós- y económicos, por lo tanto, un todo que es por entre la subjetividad,
graduação em Geografia da la estructura y coyuntura.
Universidade Federal da Grande Palabras clave: Migración; Modernidad; Posmodernidad;
Económicos, Culturales.
Dourados.

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 51-74 Ago-Dez/2007


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MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA P ÓS-M ODERNIDADE...

Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha
dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me
levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se
nascer eu onde nasci tivesse sido conseqüência de um equívoco do acaso,
de uma casual distração do destino, que ainda estivesse nas suas mãos
emendar (...) Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos legíveis
fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que
ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer.

José Saramago
As pequenas memórias

Introdução

O passado e o presente (e o futuro, porque não?) das sociedades são marcados


pela mobilidade das pessoas. Ontem e hoje, as migrações desafiam pesquisadores em
busca de métodos e teorias para compreender o fenômeno. No interior das análises,
historicamente, foram apresentadas inúmeras maneiras de se estudar a mobilidade espacial
da população, sendo que muitas análises, nesse processo, se tornaram clássicas e
referenciais para o estudo.
A sociedade, contudo sofre constantes mutações. Mudanças contextuais ocorridas
nas últimas décadas, principalmente aquelas vinculadas ao processo de acumulação do
modo de produção capitalista, foram marcantes. A transição do sistema de acumulação
fordista pelo sistema de acumulação flexível, que se inicia nas décadas de 1970 e 1980,
proporcionou “um conturbado período de reestruturação econômica e de ajustamento
social e político” (HARVEY, 1994, p. 140), resultando em novas/velhas formas de
mobilidade espacial da população.
No âmbito dos estudos das migrações, inúmeras transformações ocorreram,
resultante da chamada “crise da razão” e/ou do “embate” na ciência da modernidade à
pós-modernidade. Nesse sentido, vive-se um período denominado de “pós” em que as
incertezas pairam no âmbito das ciências, pela necessidade de romper com esses
referenciais para buscar resultados “aceitáveis”, menos dicotômicos e que busquem
superar (principalmente no estudo das migrações) a exclusividade do elemento econômico
na análise.
Assim, aqui se busca analisar, no desenvolvimento histórico dos estudos migratórios,
como as questões da modernidade e da pós-modernidade perpassaram e perpassam o
desenrolar das pesquisas. Pretende-se verificar o papel do elemento econômico nas
migrações (os quais ergueram as bases para o estudo), até a incorporação de novos
elementos na análise, principalmente com a maior ênfase do elemento cultural.
Dessa forma, estruturamos nosso texto da seguinte maneira: na primeira parte

52
Terra Livre - n. 29 (2): 51-74, 2007

buscamos sistematizar alguns dos principais elementos de suporte nas discussões entre
modernidade e pós-modernidade; na segunda parte, buscamos analisar os principais troncos
teóricos dos estudos da migração – qual a ligação com as questões da modernidade e da
pós-modernidade – e quais os novos estudos/elementos incorporados na reflexão sobre a
mobilidade espacial. Por fim, apresentamos nossas considerações sobre os estudos das
migrações e suas transformações na “crise da modernidade” com a incorporação de
novos elementos na análise.

Modernidade e Pós-Modernidade

A Modernidade

Um dos principais atributos da modernidade é a racionalidade (HISSA, 2006, p.


51). A razão é a fonte da ciência moderna. Modelos matemáticos e leis gerais fazem
parte, dentre outros elementos, da cientificidade da ciência moderna. Segundo Gomes
(1996, p. 25), “A razão é a fonte de toda generalização, da norma, do direito e da verdade.
A ordem, o equilíbrio, a civilização, o progresso são noções saídas diretamente deste
sistema moderno que se proclama como a única via de acesso a um mundo verdadeiramente
humano”.
Sousa Santos (2004), concebe a modernidade como um paradigma sócio-cultural
que se constitui a partir do século XVI e se consolida entre finais do século XVIII e
meados do século XIX. Segundo o autor, os componentes do modernismo seriam “(...) a
emancipação social que é concebida como o processo histórico da crescente racionalização
da vida social, das instituições, da política e da cultura e do conhecimento com um sentido
e uma direção unilineares precisos, condensados no conceito de progresso” (p. 14).
Em sua obra Geografia e Modernidade, Paulo César da Costa Gomes, também,
entende ser a modernidade construída “(...) sob a forma de um duplo caráter: de um lado,
o território da razão, das instituições do saber metódico e normativo; do outro, diversas
‘contracorrentes’, contestando o poder da razão, os modelos e métodos da ciência
institucionalizada e o espírito universalizante” (1996, p. 26). A modernidade é considerada
como um novo código de valorização que se espraia pelas mais diversas esferas da vida
social tomando diferentes formas, “(...) e que possui uma dinâmica espaço-temporal
muito complexa para ser objeto de uma precisa localização, ainda que uma época moderna
seja facilmente identificada” (1996, p. 28). É como parte do espectro deste processo de
reconfiguração dos valores sociais, que a ciência ocupa um destacado papel como discurso
fundamental do novo código de valores da modernidade.
Hissa afirma que a modernidade refere-se ao “tempo das luzes”:

(...) toma-se a modernidade como o tempo das luzes: origens ou marcos


pós-medievais; tempo das explorações intercontinentais, da ampliação do
conhecimento dos territórios, dos povos e das descobertas; tempo da gênese

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MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

da ciência moderna e dos Estados modernos; tempo da divisão de tarefas,


da ampliação da produtividade e da produção; tempo histórico da expectativa
do progresso estendido a todos. Para referir-se à ciência, do método, da
objetividade da imparcialidade, do rigor, do trabalho científico especializado
(HISSA, 2006, p. 62).

Segundo o autor, o moderno é um tempo em constantes transformações, porém,


é também um tempo de crise. Tempo de dúvidas e de encruzilhadas, tempo de espaços
vagos criados, de expectativas e de ansiedades diante da novidade. Tempo do novo,
sempre ostensivo, aparentemente pronto para ocupar espaços vazios. É o tempo que
sempre deixa algo prometido e não solucionado para o futuro.
Para Haesbaert, a modernidade implanta o novo através do ser moderno:

Se ser moderno é “estar de acordo com sua época”, como o senso comum
legitimou, também é, como indica a própria raiz do termo, “estar na moda”,
acompanhar o momento. Mas viver o presente ignorando o passado é
modismo, é seguir constantemente “na crista da onda” que marca o presente,
é não se fixar-se enraizar em objetos e idéias, é mutação/“desterritorialização”
permanente, velocidade que não pára, só passa – rede/fluxo que pensa a
mudança como simples mobilidade, pois mutação que se dá todo tempo
acaba se tornando um mudar por mudar, sem atingir mais do que a superfície
dos fatos (HAESBAERT, 2002, p. 57, [grifo do autor]).

Assim, a modernidade impõe o mudar por mudar “sem sentido”, o novo que se
torna velho ao piscar de olhos. A alta velocidade nos processos de consumo, de produção,
da articulação de idéias, na alta produtividade1 . Aliado a isso, Gomes (1996) aventa a
hipótese de que a modernidade retém em sua base um duplo caráter fundamental formado
pelo par novo/tradicional. Embora sejam noções antigas (novo/tradicional), elas se tornaram
um verdadeiro sistema de valores. Para se falar de tradição, por exemplo, há de se referir
a um sistema de valores apoiados no “novo”, assim, “(...) são dois sistemas que se opõem,
mas que estruturam uma mesma ordem” (p. 29).
Por outro lado, o moderno refere-se ao fortalecimento de instituições e de práticas
articuladas envolvendo Estado, capital, sociedade e ciência. Nesta perspectiva, Giddens
(2002, p. 221) define a modernidade como “a presente fase de desenvolvimento das
instituições modernas, marcada pela radicalização e globalização dos traços básicos da
modernidade”. Ainda, segundo o autor:

A “modernidade” pode ser entendida como aproximadamente equivalente

1
Segundo Haesbaert (2002, p. 57), “Na ânsia pelo novo e no fascínio por essa velocidade de crescimento
avassalador, teríamos desembocado no paradoxo lavouiseiriano defendido hoje pelos pós-modernistas: de
tanto acelerar sua mudança, o mundo moderno teria caído no ‘nada se cria, tudo se repete’ (ou se copia, se
simula).”

54
Terra Livre - n. 29 (2): 51-74, 2007

ao “mundo industrializado” desde que se reconheça que o industrialismo


não é sua única dimensão institucional. Ele se refere às relações sociais
implicadas no uso generalizado da força material e do maquinário nos
processos de reprodução. Como tal, é um dos eixos institucionais da
modernidade. Uma segunda dimensão é o capitalismo, sistema de produção
de mercadorias que envolve tanto mercados competitivos de produtos quanto
a mercantilização da força de trabalho (GIDDENS, 2002, p. 21).

Assim, a industrialização, o Estado e a ciência constituem grandes pilares da


modernidade. Ainda, Giddens (1991, p. 173-177) afirma que “uma das conseqüências
fundamentais da modernidade (...) é a globalização”, “a modernidade é inerentemente
globalizante (...), ou seja, à experiência de viver num mundo em que presença e ausência
se combinam de maneiras historicamente novas”, entrelaçando-se “concomitantemente”.
2

Bauman (2005), por sua vez, afirma que em nossa época líquido-moderna a
mudança obsessiva e compulsiva (chamada de várias maneiras: “modernização”,
“progresso”, “aperfeiçoamento”, “desenvolvimento”, “atualização”) é a essência do modo
moderno de ser. “Você deixa de ser ‘moderno’ quando pára de ‘modernizar-se’, quando
abaixa as mãos e pára de remendar o que você é e o que é o mundo a sua volta” (p. 90).

A Pós-Modernidade

“Desconfia-se da racionalidade” (HISSA, 2006, p. 52). Para Sousa Santos (2004),


a partir de 1980 o mundo desenhado pela razão começa a ser questionado e “rejeitado”.
Fala-se de “crise da modernidade”, “envelhecimento da modernidade”, “crise da razão”
etc. Pode-se dizer que a “crise da modernidade”, em síntese, resulta da inserção dos
indivíduos na sociedade de forma desigual; resulta de promessas não cumpridas, advindas
do próprio ambiente histórico da modernidade; resulta da crise da sociedade, sendo também
decorrente da crise do capital; é função da crise do Estado e da crise política. Assim:

(...) a crise da razão – crise da própria ciência – permite e abre espaço para
a discussão de novos formatos de produção do saber, de novos métodos e
de posturas alternativas. Discute-se a emergência de novas sensibilidades,
também no âmbito da ciência. Por essa ótica, o debate percorre meandros
ainda mais tortuosos e reforça novas polêmicas (HISSA, 2006, p. 64).

Segundo Harvey (1994), a pós-modernidade valoriza o pensamento que destaca o


caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar com ela pela via racional; não sendo
possível, assim, por uma metalinguagem, uma metanarrativa ou metateoria revelar uma

2
Giddens (1991, p. 69), afirma que a globalização pode assim “ser definida como a intensificação das relações
sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são
modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distancia e vice-versa”.

55
MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

conexão entre os fatos, o que significa a inexistência de uma determinada ordem na vida.
De acordo com Hissa (2006, p. 92), “os espaços-tempos pós-modernos sugerem uma
demarcação cronológica a iniciar-se na ‘era pós-industrial’, por volta dos anos cinqüenta”.
Outro aspecto que Harvey (1994) destaca na pós-modernidade diz respeito ao seu
lado psicológico; enquanto a modernidade dedica-se à busca do futuro, a pós-modernidade
concentra-se nas circunstâncias induzidas pela fragmentação e instabilidade características
da vida, de modo que impede o planejamento do futuro.
Por sua vez, Sousa Santos (2004) afirma que a idéia da pós-modernidade aponta
“(...) para a descrição que a modernidade ocidental fez de si mesma e nessa medida pode
ocultar a descrição que dela fizeram os que sofreram a violência com que ela lhes foi
imposta. Essa violência matricial teve um nome: o colonialismo” (2004, p. 6-7). Assim,
vivemos, de fato, um tempo intelectual complexo que se pode caracterizar desta forma
algo paradoxal: “(...) cultura e especificamente a cultura política ocidental é hoje tão
indispensável quanto inadequada para compreender e transformar o mundo” (2004, p. 7).
Assim, a idéia da “(...) exaustão da modernidade ocidental facilita a revelação do caráter
invasivo e destrutivo da sua imposição no mundo moderno, uma revelação cara ao pós-
colonialismo” (2004, p. 11). Nesse contexto, o autor entende por “pós-colonialismo”:

(...) um conjunto de correntes teóricas e analíticas, com forte implantação


nos estudos culturais, mas hoje presentes em todas as ciências sociais, que
têm em comum darem primazia teórica e política às relações desiguais
entre o Norte e o Sul na explicação ou na compreensão do mundo
contemporâneo. Tais relações foram construídas historicamente pelo
colonialismo e o fim do colonialismo enquanto relação política não acarretou
o fim do colonialismo enquanto relação social, enquanto mentalidade e forma
de sociabilidade autoritária e discriminatória. Para esta corrente, é
problemático saber até que ponto vivemos em sociedade pós-coloniais. Por
outro lado, o caráter construtivo do colonialismo na modernidade ocidental
faz com que ele seja importante para compreender, não só as sociedades
não ocidentais que foram vítimas do colonialismo, mas também as próprias
sociedades ocidentais, sobretudo os padrões de discriminação social que
nelas vigoram. A perspectiva pós-colonial parte da idéia de que, a partir
das margens ou das periferias, as estruturas de poder e de saber são mais
visíveis. Daí o interesse desta perspectiva pela geopolítica do conhecimento,
ou seja, por problematizar que produz o conhecimento, em que contexto o
produz e para quem o produz (SOUSA SANTOS, 2004, p. 9, [grifo nosso]).

Para Hissa (2006), a “crise da modernidade” ou o seu “envelhecimento” se refere:

(...) a pós-modernidade não significa a transição espontânea para um


momento, ou situação, posterior à modernidade, mas para além da
modernidade. O pós-moderno sinaliza uma ruptura que se inicia pelo próprio
modernismo, indicando um movimento substancial para além ou longe dele.

56
Terra Livre - n. 29 (2): 51-74, 2007

(...) No entanto, a transição se realiza, na esfera do pensamento, como


subversão à ordem e às normas instituídas pela modernidade, e não como
passagem espontânea e inevitável (HISSA, 2006, p. 95, [grifo nosso]).

A pós-modernidade seria, portanto, uma sinalização de ruptura diante da


modernidade em crise. Mas é, sobretudo, uma reflexão (tendência de ruptura) que se
constrói através da crítica do moderno. Essa crítica pós-moderna da modernidade traz no
seu cerne, segundo Sousa Santos, a:

(...) crítica do universalismo e das grandes narrativas sobre a unilinearidade


da história traduzida em conceitos como progresso, desenvolvimento ou
modernização que funcionam como totalidades hierárquicas; renúncia a
projetos coletivos de transformação social, sendo a emancipação social
considerada como um mito sem consistência; celebração, por vezes
melancólica, do fim da utopia, do cepticismo na política e da paródia na
estética; concepção da crítica como desconstrução; relativismo ou
sincretismo cultural; ênfase na fragmentação, nas margens ou periferias,
na heterogeneidade e na pluralidade (das diferenças, dos agentes, das
subjetividades); epistemologia construtivista, não fundacionalista e anti-
essencialista (SOUSA SANTOS, 2004, p. 9-10).

Harvey (1994, p. 275 -276) assinala que, na “condição pós-moderna”, ocorre a


compressão do espaço-tempo que enseja uma mudança nos nossos mapas mentais, nossas
atitudes e instituições; porém, esta transformação não ocorre na mesma velocidade das
transformações empreendidas no espaço pelo vetor técnico científico, de modo que há
uma defasagem que pode trazer sérias conseqüências ao nível de decisões dos mais
diversos tipos (ordem financeira, militar, etc.). Logo, essa compressão espaço-tempo, na
pós-modernidade, acarretaria em um “novo padrão espacial”, a polarização a nível global
(no topo) e a pulverização a nível local, correlato ao novo padrão de acumulação flexível,
que traz uma outra maneira de organização espacial.
Portanto, os sintomas daquilo que pode ser caracterizado como “crise da
modernidade” dizem respeito “à saturação dos grandes mitos da Razão, da Pátria e do
Progresso – os grandes valores constitutivos daquilo que ficou conhecido como a
Modernidade. É no nível da valorização do cotidiano que são encontrados indícios dessa
saturação (...)” (HISSA, 2006, p. 105). Sobre a valorização do cotidiano, Certeau, em A
invenção do cotidiano, constrói uma teoria das práticas cotidianas para extrair de seus
ruídos as maneiras de fazer que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes
senão a título de resistência ou de inércia em relação ao desenvolvimento da produção
sócio-cultural. Assim, “(...) os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se
pode aí fabricar e fazer. São feituras de espaço” (CERTEAU, 1994, p. 207). Há, portanto,
uma crítica à forma da ciência moderna lidar com os elementos do cotidiano.
Desta maneira, Gomes (1993, p. 41), afirma que na pós-modernidade “não há

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MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

exatamente novos paradigmas, trata-se muito mais de um processo de renovação em


relação às posições fundadoras da modernidade científica”. Em uma perspectiva muito
próxima, Sousa Santos reitera que:

A transição pós-moderna é concebida como um trabalho arqueológico de


escavação nas ruínas da modernidade ocidental em busca de elementos ou
tradições suprimidas ou marginalizadas, representações particularmente
incompletas porque menos colonizadas pelo cânone hegemônico da
modernidade que nos possam guiar na construção de novos paradigmas de
emancipação social. Entre essas representações ou tradições, identifico, no
pilar da regulação, o princípio da comunidade, e no pilar da emancipação, a
racionalidade estético-expressiva (SOUSA SANTOS, 2004, p. 19).

Portanto, e também segundo Hissa (2006, p. 106), o pós-moderno valorizaria as


sensibilidades cotidianas, o que é local, o que é sensível e, em termos gerais, “a ética da
estética”, que foram, em certa medida, negligenciados pelo movimento hegemônico da
ciência na modernidade. Há, portanto, nesse processo, a valorização dos “(...) habitantes
que vivem e constróem o cotidiano dos lugares” (p. 107). Assim, a pós-modernidade
resgataria, também, elementos culturais nas análises científicas.

Modernidade, Pós-Modernidade e o estudo das Migrações

Migrações e Modernidade

Pretendemos, a partir de agora, percorrer elementos da trajetória do estudo das


migrações no contexto da modernidade. Como analisamos anteriormente, a modernidade
se caracteriza pela racionalidade científica, pelos modelos matemáticos, pela
sistematização, pelo desenvolvimento e aplicação de conceitos etc. Nesse sentido,
pretendemos compreender esse processo racional da ciência no decorrer dos estudos
das migrações, principalmente, verificando como o fator econômico (ou, em certos casos
economicista) perpassou as pesquisas e os conceitos elaborados. Por esse motivo,
percorreremos sumariamente os grandes troncos teóricos através dos quais a migração
foi sendo analisada.3
Na análise que se segue, procura-se apresentar brevemente três grandes troncos
teóricos nos quais pode ser enquadrada a maior parte da produção teórica sobre as
migrações no contexto da modernidade. Também a produção empírica pode ser situada
quanto aos mesmos, na medida em que faz uso (por vezes não assumido) de concepções
sobre a migração, as quais acabam tendo conseqüências quanto à análise.

3
Troncos teóricos foi uma expressão utilizada, dentre outros, por Salim (1992, p. 122), e, posteriormente
também utilizada por Póvoa Neto (1997, p. 15), para designar uma classificação de trabalhos existentes
segundo suas filiações teóricas e os aspectos da realidade priorizados.

58
Terra Livre - n. 29 (2): 51-74, 2007

Pode-se falar, em primeiro lugar, de um conjunto de autores que faz uso de uma
concepção neoclássica do espaço e das migrações. Para tal concepção, as migrações
não têm uma expressão apenas demográfica, mas principalmente econômica,
representando deslocamentos espaciais de trabalhadores no espaço geográfico. Para
Salim (1992, p. 122), “Para este tronco teórico, os movimentos populacionais correspondem
à mobilidade geográfica dos trabalhadores. Esta, por sua vez, surge de desequilíbrios
espaciais dos ‘fatores de produção’: terra, capital e recursos naturais”.
Segundo Póvoa Neto (1997, p. 15) o migrante seria, segundo tal abordagem, um
portador de trabalho, fator produtivo que, em combinações adequadas com a terra e o
capital, apresenta interesse para os processos de desenvolvimento econômico. O espaço
pode ser, para os neoclássicos, “equilibrado” ou “desequilibrado”, conforme a combinação
de fatores mais ou menos próxima de um determinado “ótimo”. Vainer (2005), aponta
que a análise da migração, nesta perspectiva, apresentaria os seguintes contornos:

A migração tem como origem, por um lado, a liberdade e o cálculo racional;


por outro lado, sua condição é a existência de desequilíbrios espaciais,
desequilíbrios que os deslocamentos de homens (e também de capitais)
contribuirão para eliminar, isto é, à homogeneização: na verdade,
desequilíbrio e homogeneização são a condição geral (VAINER, 2005, p.
261, [grifo nosso]).

Como conseqüência das diferenças regionais, a migração teria papel decisivo na


eliminação dessas mesmas diferenças, atuando como fator corretivo dos desequilíbrios
sócio-econômicos no espaço. É o mecanismo que restaura o equilíbrio e, como tal, otimiza
a oferta e a procura entre diferentes setores e subespaços, incidindo positivamente nos
níveis de produtividade econômica e, principalmente, nos diferenciais regionais quanto
às condições de emprego e de renda (SALIM, 1992, p. 123). Para Póvoa Neto (1997, p.
16), “seguida esta perspectiva, pode-se supor que o espaço geográfico caminharia para
uma homogeneização”. Desse modo:

(...) correspondem à perspectiva neoclássica pelo menos três supostos


básicos sobre a migração, ou seja, i) os diferenciais de salário e de
oportunidade de emprego entre áreas distintas; ii) o cálculo racional do
indivíduo face aos custos e utilidades entre a permanência e a mudança; iii)
as correntes migratórias como somatório das decisões individuais (SALIM,
1992, p. 123).

Como destaca Gaudemar (1977, p. 173-174), a concepção neoclássica traz


implícita, assim, a idéia de recusa da imperfeição causada pela desigualdade estrutural e
de aceitação tácita das variações conjunturais, além, é claro, da propensão “natural” da
força de trabalho ao movimento, logo que a diferenciação social se manifeste a nível do

59
MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

espaço.
Ainda, para Salim (1992, p. 123), nessa concepção, “o indivíduo é a unidade da
análise, e sua propensão natural ao movimento é um pressuposto”4 . O migrante, como
um portador do fator trabalho, busca o máximo retorno para seu “investimento” em um
dado ponto do espaço. Conseqüentemente, os diferenciais de salário, na espacialidade
heterogênea, configura-se como fator básico da migração. Assim, “Tal imagem se
assemelha a uma caricatura da primazia do econômico na análise social” (PÓVOA
NETO, 1997, p. 17, [grifo nosso]). Nesse sentido:

Tais teorias podem ser qualificadas como “neoclássicas” pela continuidade


que representam quanto às preocupações dos economistas ditos “clássicos”,
ao lidarem com a questão do equilbrio econômico e a da fundação do trabalho
no mesmo. Para os “neoclássicos”, a mobilidade do trabalho deveria ser
perfeita, acompanhando a tendência geral da circulação das mercadorias
num espaço que tendia á homogeneidade. Todavia, as suas anlises
confrontavam-se inevitavelmente com a existência, no espaço econômico
europeu dos séculos XVIII e XIX, de evidentes imperfeições nesta
mobilidade (PÓVOA NETO, 1997, p. 16, [grifo nosso]).

Assim, a concepção neoclássica implica em considerar o econômico na análise


das migrações, através da “vontade” do mercado de trabalho e do indivíduo em buscar
melhores condições de vida através de uma melhor remuneração. 5
O segundo tronco teórico a ser analisado é nomeado por diversos autores como
concepção histórico-estrutural das migrações. Esta busca enraíza sua análise no solo
dos contextos históricos e geográficos específicos. Se a concepção anterior colocava
toda a ênfase na decisão soberana do indivíduo inserido na dinâmica do mercado capitalista,
o que se tem agora é a análise de grupos e classes sociais a sofrer a força de estruturas
sociais e econômicos que explicam a maior ou menor propensão para a migração. Assim:

Enraizado no materialismo histórico, este tronco teórico vê a migração não


como ato soberano do indivíduo ou soma de escolhas individuais, mas
como fenômeno (relação ou processo), social, onde a unidade é a corrente
ou fluxo composto por classes sociais ou grupos sócio-econômicos que
emanam de estruturas societárias geograficamente delimitadas (SALIM,
1992, p. 125, [grifo nosso]).

4
O papel do indivíduo na abordagem neoclássica é denominada por Ferreira (1986, p. 99) de
“comportamentalista”, que enfatiza as atitudes possíveis de indivíduos que, ao migrar, atenderiam aos apelos
do mercado capitalista.
5
Ainda, segundo Vainer (2005, p. 262), na concepção neoclássica, “O homem que se localiza é o homem que
calcula, que faz do cálculo econômico o princípio de seu comportamento e, portanto, só existe na condição de
homem livre. O espaço no qual circulam capitais e trabalhadores é espaço abstrato, homogêneo, puro espaço
econômico onde se condensam ou dispersam recursos econômicos e capitais de vários tipos” (grifo nosso).

60
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Para Póvoa Neto (1997, p. 18), na concepção histórico-estrutural prioriza-se a


percepção de processos sociais gerais, dentro dos quais a migração ganha sentido e
tende a assumir um papel, que implica na saída de trabalhadores anteriormente inseridos
e estruturas sociais tradicionais e na sua condução rumo ao mercado de trabalho
propriamente capitalista. No Brasil, muitos estudos foram importantes nessa perceptiva,
dentre os quais destacamos Economia Política da Urbanização, de Paul Singer6 .
Segundo o autor, o “estudo das migrações a partir de um ângulo de classe deve permitir
portanto uma análise da contribuição das migrações para a formação de estruturas sociais
diferentes e para a constituição de novos segmentos da economia capitalista” (1981, p.
57).
Desse modo, segundo Póvoa Neto (1997, p. 18), nos estudos histórico-estruturais
existem problemas quanto à conciliação entre níveis macro e micro. A migração é
fenômeno social cujos determinantes e conseqüências remetem a outros fenômenos sociais
historicamente determinados e que se relacionam a processos de mudança estrutural.
O foco de análise é redirecionado para as contradições no âmbito das relações sociais de
produção, do desenvolvimento das forças produtivas e dos mecanismos subjacentes de
dominação. São utilizados uma variedade de modelos nas análises como a “teoria da
dependência”, o “colonialismo”, a relação “centro-periferia” e a “acumulação global”.
Para Salim (1992, p. 125), “a abordagem histórico-estrutural enfatiza, antes de
tudo, a visão da estrutura como um todo (...) os diferentes movimentos da população são
“explicados” pelas mudanças no âmbito da estrutura da produção”. Ocorre a “tendência
predominante de dimensionar a migração pelo aspecto econômico – modos de produção,
relação de produção, mecanismos de exploração, etc – sem relacioná-la com outros
processos macrossociais importantes, como os de natureza social e cultural” (p. 126).
Assim, a migração redistribui a força de trabalho segundo as necessidades
específicas do processo de acumulação, em contextos históricos concretos. O migrante é
concebido simultaneamente como integrante do exército industrial da ativa e da reserva
e, via de regra, resulta de transformações nas relações sociais de produção nas áreas de
origem da migração (SALIM, 1992, p. 126-127). Desse modo:

No modelo estrutural, os indivíduos não fazem escolhas, ou melhor, não


são os indivíduos e suas escolhas individuais que explicam os fluxos e a
localização da população. No espaço – que não é mais o espaço da liberdade
individual, mas o espaço da estrutura capitalista (espaço estrutural ou
estruturado) – é o movimento do capital, da expansão ou retração, seu

6
Segundo Singer (1981, p. 38), “Os fatores de expulsão que levam as migrações são de duas ordens: fatores
de mudança, que decorrem da introdução de relações de produção capitalistas nestas áreas, a qual acarreta a
expropriação de camponeses, a expulsão de agregados, parceiros e outros agricultores não proprietários,
tendo por objetivo o aumento da produtividade do trabalho e a conseqüente redução do nível de emprego (....)
e fatores de estagnação, que se manifestam sob a forma de uma crescente pressão populacional sobre uma
disponibilidade de áreas cultiváveis física de terra aproveitável como pela monopolização de grande parte da
mesma pelos grandes proprietários” (grifo nosso).

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MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

deslocamento ou permanência que comandam a mobilidade e a localização


do trabalho. Agora, o que se impõe é a relação que submete à lógica e à
dinâmica do capital todos os movimentos locacionais e toda a estrutura do
espaço (VAINER, 2005, p. 263).

Portanto, na abordagem histórico-estrutural, o desenvolvimento do capitalismo


assume a centralidade na análise da mobilidade populacional. A estrutura tem influência
dominante na migração, sendo que a estrutura histórica do capitalismo é quem
hegemonicamente “desloca” no espaço as pessoas. O econômico é central na análise
através do modo de produção capitalista. Dessa maneira, “(...) o modelo estruturalista
opõe um sujeito quase inexistente, simples epifenômeno da estrutura” (VAINER, 2005,
p. 263).
O terceiro tronco teórico a ser analisado baseia-se, principalmente, na teoria
marxista do trabalho, e propõe um enfoque apoiado no conceito de mobilidade do
trabalho. Passa-se a utilizar a expressão mobilidade da força de trabalho, ao invés de
migração. Segundo Póvoa Neto (1997, p. 19), esse tronco teórico busca ressaltar que as
migrações não podem ser encaradas fora da realidade do trabalho social, e sim como
pressupostos econômicos do mesmo. A atenção às migrações conduz necessariamente,
portanto, às condições em que ocorre a produção e se estruturam as relações de trabalho
em um determinado espaço. Assim:

Temos na ótica da mobilidade da força de trabalho, um novo foco de análise


centrado na relação capital/trabalho, produção e reprodução ampliada desta
relação. A migração deixa de ser conseqüência ou reflexo do espaço
transformado para atuar como agente de transformação, e a dimensão
espacial, traduzida como conjunto de relações sociais, é retida para possibilitar
a análise de formas concretas de mobilidade da força de trabalho. Na
realidade, segmentos da população ou contingentes da força de trabalho
deslocam-se no espaço porque este se estrutura de forma a colocá-los em
movimento. Significa dizer que existe uma característica adquirida da força
de trabalho – a mobilidade - que faculta não apenas o seu movimento, mas
também a localização e relocalização espacial do capital, nas diversas esferas
de produção (SALIM, 1992, p. 127, [grifo nosso]).

A obra clássica que caracteriza esse tronco teórico é Mobilidade do trabalho e


acumulação do capital, de Jean Paul de Gaudemar, na qual realiza-se uma autêntica
arqueologia do pensamento econômico resgatando a mobilidade como “noção perdida”,
traçando uma genealogia do conceito e, sobretudo, mostrando que, a partir do século
XVIII, as formas de mobilidade surgem como fenômenos marcadamente estruturais. A
partir da leitura da obra de Marx, Gaudemar concebe o trabalho como forma de trabalho
em atividade, e a acumulação de capital como relação social que se desenvolve qualitativa
e quantitativamente. Para Salim (1992, p. 128), “Esta seria a condição estrutural da qual
emerge a mobilidade. A partir daí, busca um conceito unitário – unidade conceitual, apesar
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Terra Livre - n. 29 (2): 51-74, 2007

da multiplicidade de suas formas -, onde a natureza das relações social de produção tem
papel determinante na sua conformação concreta”.
Gaudemar concebe a mobilidade do trabalho como elemento do jogo do capitalismo.
O trabalhador portador de força de trabalho participa desse “jogo econômico como simples
peão no tabuleiro”, como instrumento do capital:

Os homens não passam de instrumentos, e a força de trabalho não é mais


do que um “continuum móbile”. O trabalhador move-se apenas ao serviço
da máquina e do capital que a possui. Num tempo e num espaço de que é
desapossado. Peão num tabuleiro, ponto ínfimo nas curvas de crescimento,
está sujeito aos movimentos alternativos da expansão do capital
(GAUDEMAR, 1977, p. 35).

A análise da obra de Marx leva Gaudemar a designar, como mobilidade do trabalho,


a qualidade que permite o uso capitalista dos corpos dos trabalhadores, nas localizações,
condições de intensidade e ritmos de produção requeridos para a máxima produção de
valor. Não se trata apenas de uma descrição de deslocamentos espaciais de trabalhadores;
mais que isso, o conceito marxista de mobilidade do trabalho surge assim como “trave
mestra de toda a estratégia de desenvolvimento capitalista” (GAUDEMAR, 1977, p.
51).
Segundo Salim (1992, p. 128), a acumulação capitalista e seus corolários, como
concentração, centralização, composição orgânica e técnica do capital, por um lado, e a
proletarização e a exclusão social, via crescimento do excedente populacional relativo,
por outro, não passam de elementos que conformam sua própria contraface, ou seja, a
mobilidade da força de trabalho e suas possibilidades concretas.
O desenvolvimento do capitalismo seria o motor da mobilidade do trabalho. Para
Póvoa Neto (1997, p. 19), nessa concepção, “a migração não é pois mero mecanismo de
redistribuição espacial de populações, adaptando-se às solicitações do sistema econômico”.
Em estruturas capitalistas marcadas pela rigidez ou expansão de sua morfologia econômica,
as formas de mobilidade do trabalho surgem como fenômenos de submissão e não de
liberdade, devido à tendência geral do capitalismo de açambarcar todas as formas pretéritas
de produção. Nesse sentido, o trabalho e a força de trabalho se tornam uma mercadoria.
“Toda estratégia de mobilidade é igualmente estratégia de mobilidade forçada”.
(GAUDEMAR, 1977, p. 17, [grifo do autor]).
Assim, na concepção da mobilidade do trabalho, a mobilidade se liga à
produtividade e à expansão física do capital, apresentando-se como condição e
conseqüência do desenvolvimento das forças produtivas. Por seu papel essencial no
processo de acumulação, as condições em que ela se manifesta podem retratar a própria
natureza do ciclo econômico, na medida em que permite o uso extensivo da força de
trabalho pelo capital (SALIM, 1992, p. 128).
Dessa maneira, esses são os troncos teóricos que abarcam os estudos das

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MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

migrações e/ou mobilidade do trabalho. Muitas críticas se fazem atualmente a esses


modelos teóricos pela sua inconsistência para interpretar, de maneira abrangente a
realidade. Salim (1992, p. 131) afirma que “o maior problema desses modelos encontra-
se, todavia, na passagem do micro para macro (...)”. Já para Póvoa Neto, os problemas
são:

Torna-se possível, assim, a crítica dos discursos existentes sobre a migração,


na medida em que os mesmos podem ser encarados como constituindo um
campo de debates sobre os trabalhadores e sua localização espacial. Os
problemas detectados quanto a esta localização são, via de regra, problemas
referentes à utilização do trabalho e à acumulação do capital (PÓVOA NETO,
1997, p. 20, [grifo do autor]).

Segundo o autor, os modelos teóricos não abarcam a realidade existente,


principalmente, pela primazia do econômico, pela utilização do fator trabalho na análise
conjunta à acumulação do capital. A realidade se apresenta de maneira complexa e as
teorias neoclássicas, estruturalistas e da mobilidade do trabalho não conseguem abarcar
esse movimento multifacetado da sociedade. Desse modo:

(...) temos uma crise da modernidade e de sua mitologia da liberdade. Os


estudos dos processos de deslocamento de população evocam a frustração
da promessa de liberdade que a modernidade proclamou (...) Crise, portanto,
de teorias que não dão conta dessa dimensão da modernidade madura, mas
crise também da própria modernidade e de suas promessas (VAINER, 2005,
p. 272).

É dessa forma que as transformações do mundo, e a crise da modernidade estão


presentes nos estudos das migrações. Assim como na ciência em geral surgem novas
maneiras de interpretar a realidade (com a pós-modernidade), através (como já
mencionamos) da valorização do cotidiano, do lugar, das identidades, dos indivíduos etc,
nos estudos das migrações surgem, também, nesse movimento, novas maneiras de conceber
a migração em um mundo em constante processo de transformação. São essas outras
formas de entender e estudar as migrações que evidenciaremos a partir de agora.

Migrações e Pós-Modernidade

A pós-modernidade, ou o “envelhecimento” da modernidade, traz novos elementos


para a análise na ciência. Nas migrações, novos elementos são incorporados nas análises.
Tem destaque principalmente os elementos culturais, as relações do eu com o outro, os
elementos psicológicos, as identidades etc. Para Menezes (2007, p. 115), a “Pós-
modernidade é, sobretudo, uma hiperexposição à alteridade, à capacidade de perceber o

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Terra Livre - n. 29 (2): 51-74, 2007

‘Outro’”; e, também, a “Pós-modernidade é inseparável da psicologia, o que vale dizer,


da visão simbólica e poética” (p. 11). Sobre as migrações e a pós-modernidade, Menezes
também afirma que:

As migrações contribuem nesse cenário de conflito como carreadoras de


valores étnicos para outras culturas assim como contribuem, num sentido
pós-moderno, para a diversidade, aportando instrumentos de criatividade
para sistemas afundados na mesmice diga-se, normalidade (MENEZES,
2007, p. 119).

Dessa forma, a pós-modernidade tem a ver com uma perspectiva diversificadora;


interpretações múltiplas para uma infinidade de fenômenos interligados as migrações.
Surgem, neste contexto diferentes interpretações do fenômeno como, por exemplo, a
análise de Menezes que destaca elementos culturais, através da perda, da identidade e da
consciência coletiva:

Seja qual for a razão da migração, bem ou mal sucedida há nela uma constante
psicologia a ser lembrada: a perda. Perde-se a referência territorial, os valores
culturais e as pessoas conhecidas. Perde-se também a identidade – identitas
que quer dizer ‘o mesmo’ ou ‘repetição do mesmo’ como em identidem. A
identidade do migrante, assim, como a de qualquer indivíduo, é formada
nesse momento de crise (crisis é oportunidade), quando se é forçado a
escolher o que não se é e o que não se quer ser. É quando se começa a
escolher o que não se é e o que não se quer ser. (...) O cerne dessa identidade
é, em muito, determinado pelas imagens que lhe aparecem através do Outro,
dos seus semelhantes, dos que lhe são importantes, da herança cultural e da
consciência coletiva (MENEZES, 2007, p. 120, [grifo do autor]).

A cultura toma uma dimensão importante nos estudos da migração na pós-


modernidade. Segundo Bhabha (1998, p. 241), “A dimensão transnacional da
transformação cultural – migração, diáspora, deslocamento, relocação – torna o processo
de tradução cultural uma forma complexa de significação”, pois:

(...) a questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-


dada, nunca uma profecia autocumpridora – é sempre a produção de uma
imagem de identidade e a transformação do sujeito – isto é, ser para um
Outro – implica a representação do sujeito na ordem diferenciadora da
alteridade. A identificação (...) é sempre retorno de uma imagem de identidade
que traz a marca da fissura no lugar do Outro de onde ela vem (BHABHA,
1998, p. 77, [grifo do autor]).

A importância da identidade na migração, da identificação do sujeito na mobilidade


“intensa” e “desterritorializante” do mundo pós-moderno, é elemento de inúmeras análises.

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MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

Segundo Hall (2004, p. 87), na migração“a identidade e a diferença estão


inexplicavelmente articuladas ou entrelaçadas em identidades diferentes, uma nunca
anulando completamente a outra”, sempre em processo7 . Segundo o autor, os migrantes
das novas diásporas, criadas pelas migrações pós-coloniais, devem “(...) aprender a habitar,
no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar
entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidades
distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia” (HALL, 2005, p. 89,
[grifo nosso]).
Assim, um aspecto da experiência migratória é a redefinição das identidades
culturais e nacionais, quando os migrantes deixam uma sociedade e uma cultura e tornam-
se parte de outra, surgindo, nesse processo, fenômenos como o de aculturação:

No caso da migração, indivíduos são socializados em uma cultura e vão


morar depois em uma outra. Isto envolve uma seqüência de processos
muitas vezes únicos ao fenômeno imigratório, que podem ser compreendidos
ao utilizarmos o conceito de aculturação tanto no nível grupal como no
nível individual (DEBIAGGI, 2004, p. 17).

Surgem, também, novas formas de compreender o fenômeno migratório com a


incorporação de redes sociais. Esta surge como uma crítica à determinação do mercado
de trabalho como explicação da mobilidade. Para Ramella (1995, p. 19), “(...) as relações
pessoais que constituem canais de transmissão da informação, é que determinam quem
terá qual trabalho”. Pois, “São as redes de relações sociais que formam parte, e que
constroem e que estruturam as oportunidades. (...) são esses elementos que abrem e
fecham o acesso as oportunidades” (p. 21).
Dessa forma, as redes de relações dos migrantes influenciam na inserção no
mercado de trabalho da sociedade receptora. Ocorre, a partir da incorporação das redes
sociais, a crítica ao modelo econômico nas migrações:

(...) propiciar a superação do uso débil do conceito de redes na história da


emigração é algo muito maior que defender a causa da experimentação de
novas metodologias. É uma maneira de transformar nosso estudo setorizado
em um campo de investigação capaz de oferecer uma contribuição original
a um debate histórico que tem o objetivo de superar as discussões das
visões dos enfoques estruturalistas-funcionalistas e economicistas
(RAMELLA, 1995, p. 21)

7
Como afirma Hall (2004, p. 39), “(...) a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não inato, existe na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo
“imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”,
sempre “sendo formulada”. (...) A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de
nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (grifo do autor).

66
Terra Livre - n. 29 (2): 51-74, 2007

Outro estudo sobre as migrações que abarca novos elementos para a análise, é do
sociólogo Abdelmalek Sayad, especialmente em A imigração ou os paradoxos da
alteridade. Nele, o autor analisa a e/imigração de argelinos para a França evidenciando,
principalmente, os aspectos sociais dos e/imigrantes argelinos no processo. Utiliza-se
para isso de fontes orais, obtidas através de entrevistas, retratando os elementos mais
“íntimos” das vidas dos imigrantes, demonstrando as condições cotidianas dos sujeitos

pesquisados. Para Sayad, a emigração é um “fato social completo”. Assim, há o


“emigrante”, aquele que saiu de sua própria sociedade, e há o “imigrante”, aquele que
chegou a uma terra de estranhos: o paradoxal é que ambos são a mesma e única pessoa.
No entanto, embora apresentando esses elementos, o autor afirma que a razão do e/
imigrante é o trabalho:

Um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de


trabalho provisória, temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio,
um trabalhador imigrante (sendo que trabalhador e imigrante são, neste
caso, quase um pleonasmo), mesmo se nasce para a vida (e para a imigração)
na imigração, mesmo se é chamado a trabalhar (como imigrante) durante
toda a sua vida no país, mesmo se está destinado a morrer (na imigração),
como imigrante, continua sendo um trabalhador definido e tratado como
provisório, ou seja, revogável a qualquer momento. A estadia autorizada ao
imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única razão de ser que lhe é
reconhecida: ser como imigrante, primeiro, mas também como homem –
sua qualidade de homem estando subordinada a sua condição de imigrante
(SAYAD, 1998, p. 54-55).

Mesmo, resgatando a importância do trabalho como “razão de ser imigrante”,


Sayad aponta para aspectos como a provisoriedade, enfatizando as ausências e
presenças na vida do e/imigrante; do par provisório/permanente: característica inerente
do imigrante no processo de deslocamento espacial. Assim, sua abordagem também se
volta para a dimensão social, cultural e psicológica na análise do e/imigrante.
No Brasil, apresentamos dois estudos que entendemos serem singulares nessa
nova maneira de compreender o processo migratório. Rogério Haesbaert (1995), analisa
em sua tese, intitulada “Gaúchos” no Nordeste: modernidade, des-territorialização
e identidade, a diáspora “gaúcha” (sulista) que se difunde pelo interior brasileiro
acompanhando, concomitantemente, a “modernização” capitalista, estendendo-se na
década de 1980 com a expansão da soja na área de cerrados, até a região Nordeste.
Haesbaert toma por base o encontro entre sulistas e nordestinos, buscando analisar na
migração sulista a reterritorialização que estes produzem nos cerrados baianos. Busca,
principalmente, no sentido cultural e político, analisar aspectos da identidade na migração
“gaúcha”, evocando elementos de “tradicionalismos” contraditórios entre sulistas e
nordestinos. Desse modo, sua análise da diáspora “gaúcha” é importante porque busca

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NA PÓS-M ODERNIDADE...

compreender o processo migratório a partir de uma perspectiva inovadora, isto é, através


do processo de reterritorialização dos sulistas, buscando entender aspectos culturais e
políticos desse fenômeno.
Já Jones Dari Goettert (2004), em sua tese O espaço e o vento: olhares da
migração gaúcha para Mato Grosso de quem partiu e de quem ficou, buscou analisar
a migração gaúcha para Mato Grosso vista por quem partiu e por quem ficou, ou seja,
buscou compreender o processo de migração nos lugares de origem da migração (por
aqueles que ficaram), e nos lugares de destino da migração (através daqueles que
migraram). Através de três dimensões - subjetiva, conjuntural e estrutural - busca analisar
ambos os lugares e as gentes, cada um com seus jeitos, os jeitos das pessoas dos lugares.
Seu elemento central na análise é o lugar e os sujeitos, que através da memória e das
representações, compreende o comportamento na migração a partir da presença e da
ausência. Busca, a partir da transitoriedade migratória, as lembranças, os desejos e os
medos dos migrantes. Sua análise é muitas vezes subjetiva, mas a faz sem deixar de
analisar aspectos estruturais e conjunturais na migração, como, por exemplo, dos projetos
governamentais de deslocamento populacional, da expansão da fronteira agrícola e da
“modernização” da agricultura.
Ainda, em outro estudo, Goettert (2003, p. 17), “observando” migrantes em uma
viagem de ônibus pelo interior do Brasil, afirma que a busca por melhores condições de
vida faz parte das migrações, “mas ao falarem dos lugares onde viveram ou vivem,
também outros aspectos participam de suas experiências, como a morte do filho, o estudo
das filhas, a tristeza ou a alegria das pessoas, a família e a mulher...”. Desse modo, para
o autor, as migrações devem ser entendidas para além do elemento econômico:

(...) penso que o diálogo e a problematização daquilo que nos falam as e os


migrantes trabalhadores, palavras sobre questões de ordem econômica ou
não, podem e devem participar de nosso jeito de fazer uma Geografia das
migrações no Brasil, principalmente porque denunciam, mesmo sem o saber,
que as gentes dos lugares – daí os próprios lugares – são portadores de
humanidades que a coisificação capitalista está longe de destruir
(GOETTERT, 2003, p. 17).

Outra forma de analisar a mobilidade na pós-modernidade é realizada por Zygmunt


Bauman (1999). Este, afirma que a globalização traz conseqüências ao fenômeno da
mobilidade: “Hoje em dia estamos todos em movimento” (p. 85). Segundo o autor, nos
movimentamos como “turistas” ou como “vagabundos”. Estas são duas formas extremas
da mobilidade na globalização: os “turistas mundiais” buscando caçar emoções e
experiências, e os “vagabundos”, que são viajantes que não têm lugar na sociedade, e por
isso buscam através da indesejável mobilidade, um lugar (sempre provisório) e melhor
para ficar.8 Assim:

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Terra Livre - n. 29 (2): 51-74, 2007

O que se aclama hoje como “globalização” gira em função dos sonhos e


desenhos dos turistas. Seu efeito secundário – colateral mais inevitável – é
a transformação de muitos outros em vagabundos. Vagabundos são viajantes
aos quais se recusa o direito de serem turistas. Não se permite nem que
fiquem parados (não há lugar que lhes garanta permanência, um fim para a
indesejável mobilidade) nem que procurem um lugar melhor para ficar
(BAUMAN, 1999, p. 101).

Assim, sendo a pós-modernidade uma nova sensibilidade, uma nova leitura e uma
nova experiência de mundo, diretamente vinculada aos novos paradigmas tecnológicos
que balançam as antigas certezas e os antigos laços da sociedade com o espaço, a pós-
modernidade denota transformações nas formas de deslocamento espacial das pessoas.
Como afirma Haesbaert (2006, p. 238), “(...) o migrante é parcela integrante – ou que
está em busca de integração – numa (pós) modernidade marcada pela flexibilização – e
precarização – das relações de trabalho”, sendo ligado inclusive ao processo de
desterritorialização:

Um dos fenômenos mais freqüentemente ligados à desterritorialização diz


respeito à crescente mobilidade das pessoas, seja como “novos nômades”,
“vagabundos”, viajantes, turistas, imigrantes, refugiados ou como exilados
– expressões cujo significado costuma ir muito além de seu sentido literal,
ampliando-se como poderosas (ou ambivalentes e, assim, controvertidas)
metáforas. Toda uma cultura das viagens e mesmo uma travelling theory
passou a se desenhar a partir da crescente mobilidade “pós-moderna”
(HAESBAERT, 2006, p. 237, [grifo do autor]).

Com essa pretensa e “intensa” mobilidade pós-moderna, através das viagens dos
turistas, dos “vagabundos”, dos imigrantes, dos trabalhadores, há um processo de
valorização do lugar. Justamente pela anunciação da pretensa homogeneização do mundo
através da globalização, é que o “lugar mostra sua força”, como afirma Santos (2004).
Desse modo, a mobilidade:

(...) se tornou praticamente uma regra, o movimento se sobrepõe ao repouso.


A circulação é mais criadora que a produção. Os homens mudam de lugar,
como turistas ou como imigrantes. Mas também os produtos, as
mercadorias, as imagens, as idéias. Tudo voa. Daí a idéia de
desterritorialização. Desterritorialização é, freqüentemente, uma outra palavra
para significar estranhamento, que é, também, desculturização (SANTOS,
2004, p. 328).

8
Bauman (1999, p. 103), afirma que nesse processo de mobilidade “Tanto o turista como o vagabundo são
consumidores – e os consumidores dos tempos modernos avançados ou pós-modernos são caçadores de
emoções e colecionadores de experiências; sua relação com o mundo é primordialmente estética: eles percebem
o mundo como alimento para a sensibilidade, uma matriz de possíveis experiências (...)”.

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MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

Santos ainda destaca a valorização da cultura na migração: “Vir a cidade grande é,


certamente, deixar para atrás uma cultura herdada para se encontrar com uma outra”
(2004, p. 329). Ainda, o autor analisa o papel da memória individual e o papel do novo
lugar que realiza transformações na vida do migrante: “O homem de fora é portador de
uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O
lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação” (p. 330).
Desse modo, sobre a importância do lugar na identificação do migrante, Hall (2004,
p. 72) afirma que “O ‘lugar’ é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado: o
ponto de práticas sociais específicas que nos moldaram e nos formaram e com as quais
nossas identidades são estreitamente ligadas”. Assim, para o autor, “Os lugares
permanecem fixos; é neles que temos ‘raízes’” (p. 73).
Percebemos, no entanto, que o lugar, a memória e a identidade fazem parte do
processo da migração e são imprescindíveis na análise. Zygmunt Bauman, em seu livro
Identidade, comenta sobre a sua própria experiência como migrante, reiterando esse
processo de reconhecimento entre identidade e lugar:

(...) uma vez tendo sido obrigado a me mudar, expulso de algum lugar que
pudesse passar pelo meu “habitat natural”, não haveria um espaço a que
pudessem considerar-me ajustado, como dizem, cem por cento. Em todo e
qualquer lugar eu estava – algumas vezes ligeiramente, outras ostensivamente
– “deslocado” (BAUMAN, 2005, p. 18, [grifo do autor]).

Assim, as migrações atualmente estão sendo estudadas por novas matrizes teóricas.
Destaca-se a importância dos estudos que apresentam a cultura como elemento principal,
justificada através do encontro e contato com inúmeras culturas no processo de mobilidade
“intensa” na pós-modernidade. Para Ortiz, isso ocorre porque:

Como as culturas entram em contato por meio dos homens, a base referencial
deve ser um agrupamento, uma coletividade de indivíduos que se desloca
espacialmente. O choque ou a assimilação cultural se faz sempre no seio de
um território, a nação, a cidade, o bairro. Dentro deste quadro, o conceito
de memória coletiva torna-se fundamental para a análise (...), pois sabemos
que as trocas se fazem em detrimento do grupo que parte, para se implantar,
em condições adversas, em terras estranhas. (...) Entretanto, para ser
vivificada, a memória necessita de uma referência territorial, ela se atualiza
no espaço envolvente. (...) Os mecanismos da memória coletiva lhes permite
recuperar as lembranças do esquecimento (ORTIZ, 2006, p. 75).

Assim, reconhecemos um movimento que estimula novas formas de compreender


a migração. Estudos que demonstram fatores para além do econômico das concepções
clássicas da modernidade.

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Considerações Finais: Qual caminho seguir?

Através do tempo (e no[s] variado[s] espaço[s]) a análise das migrações sofreu


transformações. É claro que as análises clássicas continuam (e devem continuar), sendo
referenciais para o estudo das migrações, o que não impossibilita de buscar compreender
as migrações com a incorporação de novos elementos e novas formas de análises, como
buscamos demonstrar. Desse modo, nossa contribuição se faz na tentativa da sistematização
de alguns elementos no estudo da migração no decorrer de sua trajetória na modernidade
e na pós-modernidade, destacando o enfoque dos elementos econômicos e culturais que
perpassam as análises.
Entendemos, desse modo, que as migrações devem ser estudadas de forma
multifacetada, como afirma Póvoa Neto (1997). Também, porque devemos buscar:

Resgatar modos de vida, desejos e sonhos (perdidos ou realizados), o


cotidiano, representações de si e do outro, imagens e discursos, relações de
vizinhança, lazer e festas, as relações entre os lugares de origem e os lugares
de destino, as condições econômicas de antes e depois, os encontros e
desencontros (...) (GOETTERT, 2002, p. 167, [grifo do autor]).

Desse modo, compreendemos que o par novo/velho é interessante para os estudos


da migração. O novo elemento que apresentamos no decorrer do texto na pós-modernidade
é por nós entendido, enquanto um novo olhar que se dá sobre algo que sempre existiu, ou
seja, é sobre a cultura dos sujeitos que passou a se firmar maior ênfase. Mas, então, qual
o caminho a seguir? Da modernidade ou da pós-modernidade? Da hegemonia do “velho”
elemento econômico e/ou da maior ênfase ao elemento cultural na pós-modernidade?
Entendemos ser importante a mescla e/ou a multidimensionalidade dos elementos culturais
e econômicos na abordagem na migração. Não se deve esquecer um ou outro; a melhor
compreensão dos elementos subjetivos, estruturais e conjunturais é o desafio para uma
maior complexificação e melhor apreensão da realidade e/ou do fenômeno estudado.
Compreendemos que a pós-modernidade se apresenta como um momento de
gestação ou de tendência de ruptura, porém, como afirma Hissa (2006), pela falta de um
nome mais adequado, se denominou “pós” esse momento de crises, questionamentos,
indagações, e, portanto, de importantes reflexões. Como demonstramos, a modernidade
tem por base a razão, os modelos gerais e, sobretudo, o elemento econômico para análise;
a pós-modernidade apresenta maior ênfase nos elementos culturais, subjetivos,
idiossincráticos, da valorização dos lugares etc. Entendemos que a modernidade e a pós-
modernidade apresentam inúmeras contribuições. Apontamos que uma dialética entre
elementos modernos e pós-modernos seja imprescindível para uma melhor compreensão
da realidade e, em nosso caso, para o estudo da mobilidade espacial da população. O
imbricamento entre economia e cultura, subjetividade, estrutura e conjuntura é o desafio

71
MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

para a compreensão da migração cada vez mais multifacetada.


Desse modo, as transformações que ocorrem no mundo sugerem leituras que
abarquem mais elementos na compreensão do fenômeno migratório. As análises resgatando
o cotidiano, o lugar, o sujeito, a identidade, a representação do eu e do outro etc, demonstram
o complexo “mundo da migração”. Demonstra, também, que as migrações estão para
além da realidade modelada pelas teorias clássicas, que pela racionalidade foram
apresentadas “ideais” para abarcar a realidade da mobilidade das pessoas.
Os desafios se apresentam pela diversidade de motivos e elementos que perpassam
a vida dos migrantes, seus lugares, suas relações, suas formas de fazer, ver e ser a e na
vida em trânsito. A migração se apresenta, portanto, como fenômeno instigante pela
variedade de elementos que podemos compreender, enfocar e analisar. Há a necessidade
da incorporação de novas fontes de análise, como a poesia, a música, a literatura etc. São
várias as possibilidades para a mobilidade variada de pessoas com seus desejos, seus
sonhos, seus objetivos, seus relacionamentos. São pessoas que migram, que levam relações,
que levam objetos e outras pessoas, que encontram pessoas e objetos. São imigrantes e
emigrantes, com seus dramas e felicidades, vitórias e derrotas. São os lugares e as pessoas
dos lugares por onde passam ficam ou deixam, “corroídas” pelo capital e refazendo-se
nos dramas e tramas do humano, demasiado humano.

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73
MONDARDO, M. ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E
NA PÓS-M ODERNIDADE...

Recebido para publicação dia 28 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 12 de Fevereiro de2008

74
AS DOENÇAS COMO Resumo: O artigo trata da análise das doenças mais freqüentes
OBJETO DE ESTUDO
NO CONTEXTO na região de Londrina (Norte do Paraná – Brasil) na sua fase
GEOGRÁFICO: inicial de colonização. A região foi bastante visitada por geógrafos
LONDRINA 1932/1943* nessa época e em seus trabalhos foram utilizados conceitos
chaves para a interpretação do tema insalubridade, doenças e
mortes. Foram utilizadas informações através de entrevistas,
ILLNESSES AS OBJECT OF STUDY IN depoimentos escritos, livros de memórias, reportagens, dados
THE GEOGRAPHIC CONTEXT: (apesar de incompletos) e documentos públicos. Entre esses, foi
LONDRINA - 1932/1943 montado um banco de dados com as informações do livro de
LAS ENFERMEDADES COMO O BJETO
inumação do primeiro cemitério da cidade de Londrina e
DE ESTUDIO EN EL CONTEXTO posteriormente elaborados gráficos e tabelas.
GEOGRÁFICO LONDRINA - 1932 / Palavras Chave: Doenças, mortes, Londrina, Paraná, Geografia.
1943

Abstract: This paper deals with the analysis of the most frequent
diseases in the region of Londrina (North of the Paraná - Brazil)
in its initial phase of settling. The region was visited frequently
by geographers at that time and its works had been used concepts
MÁRCIA S. DE CATVALHO keys for the interpretation about insalubrities, illnesses and
deaths. Information was taken through written interviews,
Docente do Departamento de observations, books of memories, news articles, data (although
Geociências da Universidade incomplete) and public acts. Between these, it was organized a
Estadual de Londrina (Paraná)
data base with the information of the book of burials of the first
Endereço eletrônico: cemetery of the city of Londrina and later, graphics and tables.
marcar@uel.br Key Words: Diseases, Deaths, Londrina, Paraná, Geography.

Resumen: El artículo se ocupa del análisis de las enfermedades


más frecuentes de la región de Londrina (norte del Paraná - Brasil)
en su fase inicial de colonización. La región fue visitada
suficientemente por geógrafos en aquella época y en sus trabajos
habían sido utilizados conceptos llaves para la interpretación
sobre insalubridad, enfermedades y muertes. La información fue
tomada con entrevistas escritas, deposiciones, libros de
memorias, artículos de las noticias, datos (aunque incompletos)
y documentos públicos. Entre éstos, fue organizado una base de
datos con la información del libro de entierros del primer
cementerio de la ciudad de Londrina y más adelante, gráficos y
*Agradecimentos à Fundação
Araucária e ao CNPq pelo de tablas.
financiamento do projeto do qual esse Palavras clave: Enfermedades, muertes, Londrina, Paraná,
artigo é uma das disseminações, e aos
bolsistas de iniciação científica Geografía.
Fernanda Candiani Martins e
Joviniano Netto pela digitação dos
dados no programa Access
(Microsoft).

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 75-94 Ago-Dez/2007


75
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

Introdução

O interesse dos geógrafos em relação às condições de doenças1 (e de saúde) das


populações no espaço geográfico passou por diversas óticas nas tentativas de compreensão
e explicação desses fenômenos. A principal característica dessas abordagens é entender
as relações entre o meio físico (e sua complexidade) e os processos sociais de intervenção
e modificação do espaço natural. Elas estão em contextos epistemológicos cujos conceitos
foram criados, transformados e recriados, acompanhando a vida intelectual dos geógrafos
e de seus respectivos espaços analisados. Alguns geógrafos aprofundaram suas análises
a partir de uma proposta metodológica profunda em relação à ciência geográfica, como
exemplo, Pierre Monbeig e Max Sorre, a partir de uma visão “clássica” lablachiana.
Alguns conceitos foram representativos, como modo de vida, gênero de vida, frente
pioneira, franja pioneira, complexo geográfico, complexo patogênico, aplicados na escala
regional de análise ou como método de interpretação da relação entre o meio natural e o
espaço construído pelas mãos dos seus diversos participantes.
Analisando alguns de Pierre Monbeig podemos concluir que sua produção mais
abrangente e que ele teve como referência Samuel Pessoa, pelo que se pode ler no
capítulo sobre a Malária na obra Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo (MONBEIG,
1984). Sua contribuição ao estudo das doenças que afetavam as zonas pioneiras se
desenvolveu a partir do conceito de complexo geográfico em obra publicada em 1951,
originalmente em francês, intitulada As estruturas agrárias da faixa pioneira paulista
(MONBEIG, 1957). O significado de complexo trazia em si a combinação de fatores,
atuais e pretéritos, em ações recíprocas e inseparáveis. A diversidade de paisagens devia-
se às diferentes combinações dos elementos físicos e biológicos. Era sobre essa base
física e biológica que o homem se achava integrado e atuava diretamente na vegetação e
solos. A aplicação do conceito de complexo levou à demonstração do mecanismo que
unem entre si os agentes formadores desse complexo geográfico.:

“Uma região natural é uma parte da superfície da terra no interior da qual os


diferentes elementos físicos e biológicos, em ação recíproca e inseparáveis,
constituem uma unidade. Esta provém da combinação de fatores que resulta,
por sua vez, da situação presente e passada dos elementos. Uma região
1
Os termos doença (dolentia), enfermidade (infirmitas) e moléstia (moléstia) derivam de radicais da língua
latina e significam, respectivamente, sentir ou causar dor, debilidade e perda das forças, e incômodo. Em
países de língua inglesa são usados termos como disease, illness, morbid condition. Na língua castelhana usa-
se o termo enfermidad. Talvez por influência das obras de língua francesa (maladie) o termo moléstia já foi
muito utilizado. Esse último tem sido utilizado para expressar algo que provoca um mal estar, um incômodo.
Em resumo, o doente é o que sente dor, sofre e padece; enfermo é o que está debilitado, enfraquecido pela
doença. Mais recentemente, no contexto da Geografia da Saúde, na língua inglesa observa-se uma diferença de
significado entre illness (uma experiência subjetiva traduzida na sensação de desconforto e alguma dor) e
disease (identificação da patologia feita através de diagnose por um médico), ou seja: as pessoas sofrem de
illness enquanto o médico identifica a disease (Davey e Seale, 1996, p. 9 apud Gatrell, 2002, p.5). Nos
dicionários da língua castelhana o termo dolência (doença) tem como sinônimos indisposición, enfermedad ou
alteración de la salud, entretanto é enfermedad o termo técnico utilizado pela Organização Pan-americana de
Saúde para classificação internacional e famílias de classificações, assim como para classificar em enfermedades
transmissibles e no transmissibles.

76
Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007

natural, portanto, é um complexo geográfico. Sai individualidade se concretiza


na paisagem. Se paisagens vizinhas diferem, é porque há complexos
diferentes no interior dos quais a combinação dos elementos físicos e
biológicos se efetuou de modo diferente. O homem se acha integrado no
conjunto de fatores que constituem o complexo que por sua ação direta
sobre a cobertura vegetal e os solos, quer indireta pelas mudanças
decorrentes da primeira (evolução do modelado, por exemplo). A pesquisa
regional não deve, pois, deter-se na delimitação espacial da região, nem na
enumeração e simples descrição dos elementos que formam a região natural.
Mais do que isso, deve prender-se à explicação estrutural, isto é, demonstrar
o mecanismo que une entre si os agentes formadores desse complexo
geográfico (1957-a, p. 127).

Monbeig destacou que o estudo através dos complexos de caráter regional apontava
para contribuição original que a Geografia poderia dar às ciências humanas, pois o geógrafo
seria capaz de relacionar fatos sociais ao meio físico-biológico (MONBEIG, 1957, p.
153). DANTAS (2005) vinculou a formação e o pensamento de Monbeig à Geografia
clássica, após a morte de Vidal de la Blache. O estado da arte da geografia francesa
naquela época compreendia a geografia física de DeMartonne e Baulig, a geografia
regional de Blanchard e Demangeon e a geografia humana de Brunhes, Demangeon e
Sorre. E por este último entendemos a importância do estudo das doenças nas frentes de
colonização estudadas e a contribuição sorreana da ampliação do significado de gênero
de vida para sociedades urbanas. Representante da geografia regional, Monbeig tinha
raízes firmes na elaboração de um inventário do espaço na herança lablachiana de
densidade, região, meio, gênero de vida e paisagem. Mais do que uma escala de pesquisa,
a análise regional seria aplicada como um método (no qual o conceito de complexo seria
de grande importância) para a geografia agrária, urbana, política e até apara a econômica
e tropical (DANTAS, 2005. p. 15-17). Munido do instrumental que constava do trabalho
de campo, análise regional e análise de situação, verificou que a análise de gêneros de
vida (européia) apresentava problemas diante de uma realidade tão diversa no aspecto
do ritmo e velocidade das mudanças. Entretanto os elementos básicos estão presentes na
produção de Monbeig, como a atenção dada às técnicas, à alimentação, às doenças, à
psicologia dos habitantes. Ele foi buscar na idéia norte-americana de front recursos para
a análise da dinâmica populacional do território nacional, porém não se contentou com o
conceito de frente, trabalhando com zona pioneira (equivalente à fronteira) e desenvolvendo
mais tarde o de franja pioneira.2 Tudo isso enfeixado no conceito de complexo regional.
Mais conhecido pelos seus livros que trataram do fenômeno da fome, Josué de
Castro deu a sua contribuição para a relação Saúde e Doença, através da obra Manual
de Geografia Humana, cujas bases lablachianas são claras, ao tratar de três temas: clima

2
DANTAS (2005, p. 68) nos revela que “o Monbeig que escreve em meados da década de 30 já não é o mesmo
na década de 40, ainda menos o da década de 60. A mudança de denominação é também uma mudança na forma
de ver e de analisar o fenômeno pioneiro”. Eu acrescentaria que nem a região permaneceu a mesma.

77
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

humano, aclimatação e colonização. Embora Castro tenha usado o termo clima humano
em obra datada de 1957, ele nos permite agregar conceitos de ampla utilização na
Geografia da época estudada. Castro se reporta às ações humanas de criar um abrigo, a
habitação, o vestuário, a alimentação adequada – gênero de vida - e daí o homem ter
criado “em torno de si um clima até certo ponto diferente do clima natural das várias
regiões em que vive, e ao qual podemos dar o nome de clima humano” (CASTRO, 1964,
p. 29). Resultado da adaptação técnica humana, ele é produzido pelo gênero de vida
formado pelos fatores culturais, entre eles por meio da higiene, saneiam zonas insalubres
(CASTRO 1964, p. 31).
A transformação do ambiente insalubre, causador de doenças que afetavam os
imigrantes do Norte do Paraná, em clima humano é a época que buscamos analisar do
ponto de vista da mortalidade: da década de 1930 à metade da década de 1940. Por outro
lado, a existência de solos férteis exerceu o papel de atração não só aos futuros produtores
rurais, comerciantes e todo tipo de personagens comuns às frentes agrícolas, mas também
ao capital internacional que buscava áreas não coloniais para inseri-las como fornecedoras
de matérias-primas na economia internacional. O saneamento e a “salubrização regional”
foram necessários para colonização de regiões até então consideradas inabitáveis.
Outro termo importante para compreendermos a análise geográfica da época é o
de aclimatação, isto é, o resultado dos contatos e reajustamentos entre o elemento humano
colonizador e o elemento nativo (CASTRO, 1964, p. 73). A região do Norte do Paraná já
havia enfrentado o despovoamento e a aglutinação de parcela dos grupos indígenas desde
a fundação de dois assentamentos às margens do baixo curso do rio Tibagi: um militar
(1850/55 - Jataí) e um aldeamento indígena (1855 - Colônia São Pedro). Nessa fase
podemos identificar os dois núcleos de ocupação estratégica brasileira num território
ainda demograficamente vazio de população de ascendência européia questionado por
castelhanos. Por este fato, ambos os núcleos poderiam ser classificados como colônias
de posição. Somente após as duas primeiras décadas do século XX podemos classificar
a região no tipo de colônia de enraizamento, com poucos contatos entre a população
imigrante e os raros remanescentes indígenas. Contrariamente aos núcleos coloniais de
outras áreas dos estados da região sul do Brasil estabelecidos no Império, a corrente
migratória que se formou teve a participação de descendentes dos colonos das lavouras
de café paulistas e de trabalhadores rurais de outros estados, em especial mineiros e
nordestinos. O processo de ocupação da região resultou na produção da paisagem cultural
no sentido de ser o produto da ação mútua e das reações conseqüentes entre o meio
natural e o grupo humano (CASTRO, 1964, p. 59), ou numa referência à competência da
Geografia Humana, como o estudo dos resultados, das vitórias do homem sobre a
natureza, concretizadas em manifestações materiais de toda ordem (CASTRO, 1964,
p. 79). O grau das relações entre a sociedade e a natureza, nesse sentido, foi o do
progressivo aniquilamento da segunda pela primeira. Os fatos da economia destrutiva
estiveram presentes desde o início da colonização: a destruição da floresta, a colheita

78
Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007

natural (devastação vegetal), a caça e a pesca (devastação animal) (CASTRO, 1964, p.


80), substituindo rapidamente a paisagem original por lavouras. Não deve se considerar
um atrevimento afirmar que Londrina foi exceção da regra sobre a afirmação de que a
estrada de ferro não é o meio de transportes dos pioneiros, dos que vão descobrir terras
novas como o fez Castro (1964, p. 119). Embora os trilhos tenham “vivificado”
economicamente a região ao possibilitar o escoamento da produção, a chegada do trem
na cidade foi rápida, comparada às áreas paulistas que foram incorporadas à cafeicultura.
Menos de uma década separou o momento da construção do primeiro rancho de palmeiras
da companhia responsável pela colonização em 1929 à chegada do trem em 1938. Embora
as cidades sejam influenciadas pelas ferrovias, e o esplendor transitório das cidades
localizadas no fim, e que, com o avanço posterior dos trilhos, para mais longe,
perdem a sua importância econômica e entram em decadência (CASTRO, 1964, p.
120), não foi esse o destino de Londrina. Cidade “ponta de trilho”, ela recebeu continuamente
uma população etnicamente variada.
A contribuição dos geógrafos supracitados à compreensão das condições de vida
da época podem nos auxiliar à reconstituição das condições de saúde, de salubridade e
das doenças. Não se pretende no artigo fazer uma revisão da saúde dos habitantes na
época do início da colonização do Norte do Paraná sob a ótica da Geografia da Saúde
que conforme Gatrell (2002) incluiriam a poluição industrial das águas e da atmosfera.
Mas há condições de verificar problemas relativos à desigualdade do acesso ao serviço
público de saúde face à privatização da cura das doenças desde os primórdios pelos
médicos contratados no hospital da Companhia de Terras Norte do Paraná. Não foi por
acaso o afluxo intenso de médicos recém-formados em busca de pacientes. A precariedade
e a insuficiência no atendimento médico resultado do crescimento populacional rápido
alimentado pela migração resultaram, na década de 1940, na mobilização dos moradores
para a construção da Santa Casa de Misericórdia na cidade. Embora os municípios tivessem
um Inspetor de Higiene o atendimento era insuficiente e sujeito às pressões do
empreendimento colonizador, como aconteceu ao notificar caso de febre amarela que
acarretou na sua demissão. A malária era endêmica e outras doenças epidêmicas. A
infra-estrutura básica de água tratada e coleta de esgotos atingiu somente uma pequena
parte da cidade de Londrina e também foi promovida pela companhia de colonização. O
papel do Estado foi bastante reduzido na instalação das bases infra-estruturais para o
projeto de assentamento. O crescimento urbano foi bastante rápido e não teve o
acompanhamento dessa infra-estrutura necessária à manutenção de um ambiente salubre.
A Geografia Médica, especialidade que usa os conceitos e técnicas da disciplina
de geografia para investigar tópicos relacionados à saúde, constrói seu objeto de maneira
holística dentro de uma variedade de sistemas culturais e da biosfera (MEADE e
EARICKSON, 2000, p. 1-2). No início do século XX a interação entre homem e ambiente
natural foi analisada sob o determinismo geográfico, que considerava o último como
responsável pelo efeito dominante nos ambientes humanizados, nas atividades

79
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

desenvolvidas e nas condições naturais. O possibilismo ampliou, mas não rompeu totalmente
com a influência do ambiente natural sobre o espaço humanizado. Como lablachianos, e
consequentemente, possibilistas, podemos entender a referência à malária (e não às outras
doenças) feita por Monbeig e à importância dada por Josué de Castro na construção do
clima humano como equivalente à eliminação da insalubridade. Pela importância que a
Geografia Médica deu às doenças infecto-contagiosas (LEMOS e LIMA, 2002) até que
ponto outras doenças não tiveram o merecido destaque na análise geográfica?
O objetivo do artigo restringiu-se ao levantamento das obras relativas à região por
geógrafos e nelas à identificação da situação relativa às condições de saúde e mortalidade
da população nas décadas de 1930 e 1940. A partir dos artigos e textos foi feita a análise
de suas bases conceituais e se buscaram dados referentes às mortes e doenças antes da
fase da colonização. Para isso foram usados os dados registrados nos livros de inumações,
recurso utilizado por historiadores que possibilita aos geógrafos uma aproximação às
condições de vida então existentes na região.

Insalubridade e colonização no Norte do Paraná

O impaludismo no Norte do Paraná tem data anterior à ocupação da frente pioneira


na década de 1930. A sua presença já tinha sido detectada desde seus primeiros habitantes
e na ocasião da fundação da colônia militar de Jataí pelo Barão de Antonina e do
aldeamento São Pedro de Alcântara pelo frei Timóteo de Castelnouvo, as febres dizimaram
colonos e indígenas. Seis anos depois foi solicitada a mudança do sítio de ambas para
local mais salubre. Mas a doença estava disseminada e após 1900 as correntes migratórias
atestaram a sua gravidade ao iniciarem o povoamento da região através da rota que
cruzava o rio Paranapanema. (Moreira, 1935) Vários surtos foram detectados nos anos
de 1911, 1914, 1917 e 1924 no Norte do Paraná. Em outra fonte as epidemias, iniciadas
em 1908, foram mais freqüentes: 1912, 1913, 1914, 1915 e 1917, tendo sido esta última a
mais grave (Araújo, 1919, p. 250).
Os relatórios elaborados por médicos do Instituto de Manguinhos incluíram uma
visita ao estado do Paraná em 1916, constataram a ocorrência de “milhares de vítimas
(da malária) no norte do Estado” (IVANO, 2002, p. 61). Em 1917, essa doença teria sido
a responsável pelo atraso ou o despovoamento de cidades – em Tomazina o comércio
estava paralisado e grande número de casas fechadas. Entre as causas estavam a falta
de assistência médica oficial ou privada, as condições de vida dos habitantes no que diz
respeito à habitação, vestuário, alimentação e trabalho, o analfabetismo e a falta de hábitos
higiênicos, a localização das moradias nas baixadas e nas margens dos rios, a devastação
das florestas nas partes altas com reflexos nos mananciais, a má distribuição das águas e
o represamento ou desvios para atividades como a movimentação de monjolos ou de
tanques para a ceva de porcos. (ARAÚJO, 1919, p. 274). Em 1918, a parte relativa à
profilaxia do Regulamento da Directoria Geral de Saúde Pública, previa trabalhos de

80
Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007

hydrografia sanitária3 . Em 1930, através de decreto n. 1290 (4/7/1930) foi proposta a


execução de trabalhos onde existissem focos dos mosquitos transmissores através da
desobstrução, limpeza e retificação dos cursos de água, aterro ou drenagem dos pântanos,
abertura de valas e canais para facilitar o escoamento das águas e a derrubada de matas,
quando necessário, e limpeza geral dos terrenos em torno das construções. No interior
do Paraná essa doença ainda ameaçava não apenas a população, mas a economia e os
esforços da definição da estrutura fundiária.
Entre 1900 e 1929 houve cinco frentes bem definidas atravessando os limites do
estado de São Paulo na direção do estado do Paraná. Duas delas nos interessam mais
diretamente: a primeira frente seguia na direção oeste, cujo ponto de apoio foi Ourinhos
e se espalhou por Cambará, Andirá, Bandeirantes e Cornélio Procópio, principalmente
formada por grandes cafeicultores. A segunda veio do sul do estado de São Paulo
atravessando o rio Paranapanema e chegando à região formada pela antiga área dos
municípios de Sertanópolis, Cornélio Procópio e São Jerônimo. No Paraná, o processo de
ocupação se deu de três maneiras. A mais documentada ficou por conta das companhias
de colonização. A Colônia Zacarias de Góes que originou as cidades de Primeiro de
Maio, Sertanópolis e Santo Inácio (FRESCA, 2004, p. 49), embora outro autor atribua a
CORAIN e Cia.4 a fundação da colônia Primeiro de Maio5 , desmembrada da colônia de
Limoeiro. Em 1925, famílias portuguesas, inicialmente agricultoras de produtos de
subsistência, começaram a povoar as terras localizadas na bacia do ribeirão do Cerne
(próxima da atual cidade de Sertanópolis), compradores de lotes da Companhia
Colonizadora do Norte do Paraná (CARVALHO, 2002). Outra companhia, a CTNP,
adquiriu terras em 1925 e seus funcionários começaram a abertura de clareira em Londrina
no ano de 1929. A segunda maneira foi formada por cafeicultores mineiros ou paulistas
que compraram terras extremamente baratas e a terceira foi de recém-chegados que se
estabeleceram pelo simples apossamento de terras públicas.
A criação de porcos desempenhou um papel primordial para os primeiros ocupantes
da região. Ela permitia o transporte por áreas em que as vias de comunicação eram
estradas precárias, possibilitavam as paradas para o restabelecimento do peso dos animais,
além de mercado para os produtos de banha e carne. Mas para isso havia a necessidade
de um ambiente minimamente salubre para evitar a transferência de sítios de núcleos
urbanos, como ocorreu com São José da Boa Vista em função de numerosos casos de

3
No regulamento do Serviço Sanitário do estado do Paraná, a que se refere a lei n.º 1.791 de 8 de abril de 1918
há um item Da profilaxia específica das moléstias transmissíveis. Os capítulos 157 e 158 tratam especificamente
da febre amarela. (Roncalio; Martis e Neuert, 2001).
4
... primeiras concessões de terras situadas ao Norte do Paraná, na margem esquerda do Tibagi, feitas pelo
Governo do estado às empresas Corain e Cia. (Primeiro de Maio) e Leopoldo Paula Vieira (Sertanópolis), em
1916, com 50 mil hectares. Lotearam suas concessões em chácaras, sítios e pequenas fazendas (Cardoso,1986.
p. 62).
5
O primeiro sítio da cidade, localizado perto da foz do rio Tibagi no Paranapanema, estava numa região
tomada pela malária e outras doenças, daí a transferência da ribeirinha Vila de Primeiro de Maio, onde houve
uma forte epidemia de malária em 1927, para um novo sítio no espigão em 1936. (Ayres, 2000, p. 115 e 124).

81
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

malária, também na região de Tomazina.


Independente da afirmação corrente em entrevistas de que “a malária dava até
em pé de árvore” na região do Norte do Paraná, a propaganda de uma das colonizadoras
(CTNP) sobre a fertilidade das terras destacava a ausência de saúvas. Entretanto, há
uma total ausência das condições sobre a (in) salubridade para os possíveis interessados.
Tal fato atrapalharia bastante os negócios na venda de lotes aos estrangeiros e aos nacionais.
A assistência médica, inicialmente, foi providenciada pela mesma companhia responsável
pela colonização. A instalação de infra-estrutura mínima para a venda dos lotes exigiu
providências como a construção de hotel e a transferência dos alojamentos dos
trabalhadores da estrada de ferro, das casas dos responsáveis pelo empreendimento
colonizador e do pequeno hospital. Este funcionava inicialmente em Cornélio Procópio e
foi transferido para Londrina em 1932, prestando atendimentos aos trabalhadores da
estrada de ferro e aos compradores de lotes de terras (COUTINHO, 1997. p. 27). Sua
atenção foi até o ponto de recorrer à Fundação Rockefeller quando da erupção, em
dezembro de 1935, de um surto de febre amarela silvestre. Esta fundação desenvolvia
atividades sanitárias nas áreas rurais de países intertropicais afetados por doenças como
a malária, a ancilostomose, a febre amarela. Foi feita vacinação em massa da população
e providenciou-se a caça de macacos silvestres, considerados infectados, em 1936. Além
da necessidade da erradicação das doenças, era vital o estabelecimento de rede de vias
de comunicação, não apenas para trazer os migrantes, mas também para transportar os
produtos da terra (OBERDIEK, 1997). Se a ampliação dos trilhos da estrada de ferro foi
apontada como um dos fatores para o estabelecimento da malária na região pode-se
pensar que exatamente foi através deles que a população pode chegar até as áreas onde
a os vetores da doença pré-existiam. Há registro que em 1936 o Tibagi era, ou melhor,
permanecia um rio maleitoso (PAULA, 1936, p. 46). Essa inversão na interpretação
pode ser auxiliada pelo discurso da simultaneidade da expansão da frente pioneira associada
às relações diretas com o capital industrial ou agrário.

Boca de sertão

Entre 1920 e 1940 os movimentos populacionais no estado do Paraná se


caracterizavam pelo abandono de núcleos coloniais antigos e êxodo para as cidades
(Curitiba e Ponta Grossa) e o crescimento extraordinário nos municípios do norte no
contexto de uma frente pioneira a acompanhar os cafezais e os trilhos da ferrovia. Em
1938, Deffontaines (2004. p. 130) classificava Londrina como cidade típica de boca do
sertão. Ela era a ponta de linha da estrada ferroviária, uma ponta pioneira, a boca
sobre regiões vazias. Sua característica era a de apresentar um aumento populacional
vertiginoso. Esse contingente populacional que chegou ao Norte do Paraná foi formado
majoritariamente por trabalhadores nacionais que não se transformaram imediatamente
em pequenos proprietários. Eles participaram da implantação da colonização nas atividades

82
Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007

de abertura de estradas, ruas, derrubadas de matas, plantio inicial do café.


(OBERDIEK, 1997, p. 58 e 60) A aquisição da terra foi acessível a estes trabalhadores
que conseguiram acumular algum excedente. E a crescente produção agrícola e de porcos
do Norte do Paraná entre os anos de 1931 e 1934 definiu nitidamente a região nesse
período como produtora de alimentos e exportadora de madeiras. Esta última passou de
422 toneladas em 1931 para 10.745 em 1934. Em 1938, toda a madeira transportada pela
estrada de ferro das estações de Ibiporã, Londrina, Nova Dantzig (Cambé) e Rolândia no
ano de 1938 atingiu a soma de 51.325 toneladas (GOMES, 1938). A forma organizada da
colonização baseada em pequenos lotes e a forma de pagamento em várias prestações
não deixou a terra ociosa. Monbeig descreve os pequenos pioneiros como famílias de
recursos modestos, daí a “construção do rancho próximo de um rio, ao lado da horta, um
cercado para os porcos e um pasto (...) as culturas alimentares misturadas com o algodão
ou cafeeiros novos, ocupam a parte alta do terreno” (MONBEIG, 1957, p. 116-117). Isto
aponta para o ritmo crescente da derrubada de matas e o contato de brasileiros e
estrangeiros com vetores de doenças. Além da ferrovia, a rede de rodovias que cortava
Londrina em 1938 ligava a cidade a Jataí e a Sertanópolis e se somava às outras estradas
que passavam por Arapongas, Itambé, Apucarana, Pirapó, Jandaia e Lovat (GOMES,
1938. p. 73-74) O afluxo de pessoas e as redes de comunicação foram acompanhadas do
desmembramento e da criação de novos municípios entre 1930 e 1938.
O que esperava essa população, além do sonho de trabalho e terras acessíveis? As
residências eram extremamente precárias no início da instalação, feitas de troncos de
palmito, chão de terra batida e cobertas por folhas de palmeira (palmito) ou de tabuinhas.
Pouco antes ou paralelamente procedia-se à derrubada de matas, queimada e
destocamento, este raro. A partir de então se iniciava o plantio de café e de lavouras de
produtos de subsistência nas ruas do cafezal. Nessa etapa vários trabalhadores se
dedicavam às diversas tarefas. Geralmente eram nordestinos os que se ocupavam do
desmatamento. Havia também os especializados em formar o cafezal, mas no caso de
trabalhadores e pequenos produtores, a própria família realizava esta tarefa (CARVALHO,
1991). A proximidade entre a mata (e rios) e as lavouras plantadas, a residência ainda
precária (quase ranchos) na área agrícola e casas feitas de tronco de palmeiras e de
madeira na área urbana próximas das matas nas cidades nascentes impunham às famílias
um ambiente hostil. As fontes alimentares inicialmente baseavam-se na oferta natural da
mata, como o palmito e a caça6 . A falta de saneamento eficaz e o controle insuficiente de
vetores foram os responsáveis pela precariedade da saúde dos imigrantes. Podemos
ressalvar os loteamentos onde os pequenos agricultores japoneses construíram suas casas
próximas à parte mais alta do lote, afastando-se assim dos mosquitos que transmitiam a
leshmaniose (MONBEIG, 1957, p. 121). Mas essa localização não foi a mais comum na
região de recém-chegados. Não somente as doenças os atingiam, mas as mortes lhes
6
Dependendo do estágio em que a família se encontrava na nova ocupação o regime alimentar se modificava.
Ver CARVALHO, M. S. A Geografia da Alimentação em frente pioneira (Londrina – Paraná). Terra Livre,
Goiânia, v. 21, n. 2, p. 95-110, 2005.

83
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

sucediam.
Apesar do ritmo de desmatamento pela implantação de lavouras, a proximidade
das matas aos núcleos urbanos deve ser vista como pontos de contato entre os habitantes
da cidade com vetores de doenças típicas de florestas. Entretanto há várias doenças que
não podem ser explicadas por essa interface. A área urbana de Londrina é um exemplo.
Inicialmente a área central restringia-se a poucas quadras pertencentes aos terrenos
“urbanos” da CTNP. Neles havia alguma infra-estrutura que foi sendo construída para o
funcionamento do escritório de vendas e chegou a algumas casas. O local foi sendo
ocupado por casas comerciais, estações rodoviária e ferroviária, e os bancos que
propiciavam o funcionamento econômico do empreendimento colonizador. As chácaras
que foram planejadas para exercerem o papel de “cinturão verde” para a cidade logo se
transformaram em loteamentos (“vilas”) fora da área inicialmente considerada urbana.
São casos típicos a Vila Agari, datada de 1936, vilas Casoni e Nova Conceição, entre
1937 e 1939 (GOMES, 1938; PRANDINI, 1954, p. 66). Castelnou apresenta uma
seqüência com pequenas diferenças: Vila Matarazzo em 1937, Vilas Conceição e Monteiro
(ao norte), o Parque Agari (ao sul) em 1938, a Vila Boa Vista em 1939, e a Vila Casoni
em 1941 (CASTELNOU, 1996, p. 25). Entre 1944 e 1947 seriam 53 vilas fora do traçado
urbanístico inicial apresentando loteamentos com espaços vazios e ocupados, sem infra-
estrutura de esgoto e água encanada e tratada e somente em 1948 a Prefeitura agiu para
frear novos loteamentos através de um decreto (PRANDINI, 1954, p. 66). A ausência
de saneamento explicará em parte o que analisaremos a seguir.

Doenças e mortes em Londrina

A partir de depoimentos de antigos médicos da cidade colhidos pela Associação


Médica de Londrina identificamos as doenças mais freqüentes e as mais temidas. Há
relatos sobre a substituição do Delegado de Saúde que se “indispusera com os diretores
da Companhia de Terras ao denunciar a eclosão de uma epidemia de febre amarela
silvestre, dentro da gleba que estava sendo loteada” (GÓIS, 1992, p.128-129). A construção
de usina hidrelétrica revelou-se uma atividade bastante insalubre pelo contágio de seus
trabalhadores pela malária. O tifo foi bem freqüente e um dos médicos lembrou-se do
surto de febre tifóide no verão de 1937/38, quando “as mortes ocorriam às dezenas
causadas por peritonite, provocada por perfuração intestinal” (NOGUEIRA e
FRANCISCO, s.d, p.20). Outras atividades próprias das atividades de fronteira causavam
acidentes: “Na minha parte de cirurgias, eram os acidentes o que mais atendia. Porque
havia muito transporte de tora de caminhão, desmatamento, o número de acidentes era
incrível e não tinha assistência” (NOGUEIRA e FRANCISCO, s.d, p. 122). Não eram
raras as complicações durante o parto “... quando de placenta retida (sic), lesão de colo
uterino pós-parto obrigava proceder a curetagem uterina, sem condições de higiene e à
luz de vela ou farolete em casebres...” (NOGUEIRA e FRANCISCO, s.d, p. 20). A

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Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007

elevada mortalidade infantil e de natimortos também foi causada por tétano (AYRES,
2000). Os abortos se transformavam em casos de infecção, combatida quando havia
penicilina. Londrina era buscada em casos de emergência, sendo praticamente o único
ponto de apoio médico numa região onde aconteciam conflitos pela terra e desavenças
nas áreas urbanas (TRIGUEIROS FILHO, 1979, p.2 e 4). Foram apontadas outras doenças
como crianças com desidratação por diarréia, pacientes com doenças respiratórias,
cardíacas e circulatórias, casos de ginecologia e obstetrícia, malária, febre tifóide,
leishmaniose cutânea ou nasal, acidentes de derrubadas das matas. Os casos de malária
vinham todos de locais distantes à beira-rio, como Jataizinho que fica às margens do rio
Tibagi, a pouco mais de 20 km de Londrina (NOGUEIRA e FRANCISCO, s.d, p. 62)
Uma primeira vista nos dados do livro de inumações do cemitério da cidade – 1932
a abril de 1943 – e já se destaca uma diferença entre o número de mortes durante os
meses do ano. Elas eram mais numerosas nos meses de novembro, dezembro e janeiro.
As exceções foram os meses de fevereiro de 1936 e outubro de 1940. O aumento das
mortes por ano também não obedece a um crescimento linear. Se mais do que duplicam
de 1935 para 1936, as mortes dos anos de 1937, 1940 e 1942 diminuíram em relação ao
ano antecedente (Tabela 1). A comparação entre o total das mortes das 15 causas mais
freqüentes, inclusive as de causas indefinidas e sem atendimento médico desde 1932 até
abril de 1943, com a população total do município entre 1933 e 1943 mostra um ritmo de
crescimento mais alto da primeira sobre a segunda, apesar de receber um fluxo crescente
de novos moradores. Destacam-se nesse período a criação do município de Londrina em
1934, o seu crescimento populacional extremamente rápido e os desmembramentos de
parte do seu território pela criação dos municípios de Apucarana e de Rolândia em 19437
(Figura 1).

Figura 1.Londrina: Total de mortes* e população - 1933 a abril de


1943

450

400

7
Decreto-lei nº. 199, de 30 de dezembro de 1943 pelo interventor Manoel Ribas.

85
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

* 15 maiores causas de mortes.


Fonte: Arias Netto, M. 1991. p. 169-170. Prefeitura Municipal de Londrina. Londrina. Livro de Inumações
do Cemitério São Pedro. 1943.

Figura 2. Localização dos postos de atendimento e subpostos de tratamento e


margens dos rios com elevado índice de impaludismo. (Dr. Julio Moreira, 1935)

Fonte: Moreira, 1935. Atualizado a partir de mapa base - Fonte: Ipardes – 1995 - Base Cartográfica:
IAP – 1997.

Tabela 1. Londrina: Distribuição do número de óbitos por mês e ano – 1932 a


maio de 1943.

86
Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007
meses 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 mortes
janeiro 2 13 19 36 25 29 36 35 46 53 22 316
fevereiro 3 9 16 43 14 16 25 32 49 37 27 271
março 6 10 14 26 17 26 28 35 52 23 28 265
abril 6 10 9 28 14 15 25 24 43 25 8 207
maio 3 4 2 16 15 17 20 19 22 30 2 150
junho 0 6 14 13 8 17 26 20 32 32 168
julho 5 3 14 20 9 22 33 36 30 29 201
agosto 4 6 11 25 21 20 32 30 33 33 215
setembro 2 9 10 10 16 13 36 31 38 34 32 229
outubro 1 0 9 9 22 13 31 38 50 44 29 245
novembro 0 16 13 14 35 26 33 63 42 45 38 325
dezembro 0 17 20 34 44 40 53 55 44 50 39 396
sem info 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 1
total 3 71 113 167 324 215 315 412 405 480 400 87 2992
Fonte: Prefeitura Municipal de Londrina. Londrina. Livro de Inumações do Cemitério São Pedro.1943.
87
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

A comparação entre os relatos de médicos e os dados do livro de inumações


confirmaram um surto de febre tifóide no verão de 1937 e mortes por peritonite, causada
por perfuração intestinal. Numa análise inicial dos dados referentes aos óbitos entre 1933
e abril de 19438 revelam-se pelo menos cinco surtos graves: febre amarela em 1936, tifo
em 1937 e 1940, e malária em 1935 e 1941. Ao separarmos algumas causas de mortes –
tifo, perfuração intestinal, peritonite, maleita, febre amarela, malária e impaludismo – os
piores anos foram os de 1937 e 1941. Todas elas têm em comum a proximidade de
margens de rios ou a contaminação hídrica por fossas e poços localizados próximos nos
bairros novos da cidade (Figura 2). Somente em 1942 seria criado o primeiro posto de
saúde no município (GOIS, 1992, p. 174).
Determinadas doenças comuns na região levavam à morte. A pesquisa realizada
por ANDRADE (1998) levantou uma lista bem definida. Em Nova Dantzig (atual Cambé)
elas eram a malária, a tuberculose e a febre amarela (ANDRADE, 1998, p. 52). Os
casos de óbito por estas doenças constam no livro de inumações do cemitério Cambé
(Nova Dantzig) entre outubro de 1936 e 1947, porém foram poucos. Muitas mortes tiveram
como causa, considerando esta fonte documental, por moléstias infecto-parasitárias
(ANDRADE, 1998, p. 51). A comparação com os óbitos do livro de inumações do cemitério
São Pedro (Londrina) que entrou em funcionamento em 1932, apresenta aspectos
semelhantes e outros diferentes. Considerando todas as mortes (2.998), 41% não tiveram
a causa identificada e/ou não houve assistência médica (Figura 3). Desse total foi feita a
análise das dezoito causas mais constantes, totalizando 1.464 óbitos. Essa amostra próxima
da metade do universo mantém o destaque da não identificação das causas (571), o que
permite intuir a falta de atendimento médico. Outras causas ficam destacadas, como as
mortes por colapsos, colapsos cardíacos e insuficiência cardíaca (soma igual a 145) e
pneumonia e bronco-pneumonia (107). (Figura 4)
Embora as mortes causadas pelas doenças infecto-parasitárias – disenterias,
diarréias, intoxicações e toxicose - fossem as mais numerosas (353), houve óbitos por
malária (16), tifo (27), e febre tifóide (15) em Londrina entre 1933 e abril de 1942.

Figura 3: Londrina - mortes com causas identificadas e sem assistência médica/


sem causa identificada – 1933 a 1943.

8
O primeiro Livro de Inumações do Cemitério S. Pedro, o primeiro da cidade de Londrina, teve 3 inumações
no ano de 1932.

88
Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007

Londrina: Mortes com causa de morte identificada e sem assistência médica/sem causa
identificada

1943 52
35

1942 125

1941

Fonte: Livro de Inumações do Cemitério São Pedro. 1942 a 1943. Prefeitura Municipal de Londrina.
Londrina.

Figura 4. Principais Causas de Morte – Londrina – 1932 a maio de 1943.

Lon drina: Principais causa d e mortes - 1932 a maio de 1943

sem assistênci a médica


disenteria/diarréia 190
pneumonia e broncopneumonia 157
toxicose e intox. alimentar 108
colapso cardíaco 104
tifo e febre tifóide 42
malária 36

89
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

Fonte: Prefeitura Municipal de Londrina. Londrina. Livro de Inumações do Cemitério São Pedro. 1943.

Conclusão

A infra-estrutura que não ofertava água tratada suficiente aos novos habitantes,
assim como um sistema de coleta de esgotos e tratamento de águas usadas, aliadas à
utilização de poços contaminados por fossas na cidade de Londrina e na área rural revelam-
se pelas doenças e mortes de seus habitantes. Embora existisse em 1935 uma rede de
postos e subpostos de tratamento de saúde nas cidades de Sertanópolis, Jataí, Bandeirantes,
Cambará, Jacarezinho, Ribeirão Claro, Londrina, Figueira, Joaquim Távora, Assai, Santo
Antônio (da Platina), Salto do Itararé, Carlópolis e Barra Bonita (MOREIRA, 1935) eles
não comportaram as necessidades crescentes da população. Mas o que encontramos
leva à pergunta. Houve a ausência ou procrastinação do governo do estado paranaense
no atendimento da saúde pública? O monopólio e a responsabilidade dos serviços públicos
- iluminação, comunicações, transportes, fornecimento de água e assistência médica aos
funcionários e compradores foram transferidos do Estado do Paraná para a CTNP (ARIAS
NETO (1993); TOMAZI (1970) apud. MENDONÇA, 2004. p. 64). Até a abertura de
um hospital particular em 1937, somente os médicos contratados pela CTNP tinham
acesso ao “hospitalzinho” sendo vedado seu uso aos médicos particulares estabelecidos
na região. Esse monopólio levou alguns autores ao questionamento sobre a credibilidade
de alguns atestados de óbitos.
A análise das causas de morte entre os anos de 1932 a 1942 em Londrina aponta
para as más condições de infra-estrutura existentes e a precariedade do atendimento da
saúde pública. Água tratada e esgotos foram instalados mais tarde, mesmo na área central
da cidade de Londrina. A contaminação da água consumida foi motivo suficiente para as
freqüentes mortes causadas por diarréias, disenterias, e possíveis casos classificados
como “intoxicação alimentar”, elevando o número de óbitos infantis. Os casos de tifo
freqüentes em Londrina e em Rolândia, que levaram a mortes, estão diretamente
relacionados com a falta ou precariedade do saneamento básico. Podemos afirmar isso
levando em conta reportagem publicada no jornal Folha de Londrina em 21/08/2005. Ela
trata da inauguração de um hotel situado ao lado do antigo escritório de vendas, cujo dono
afirmava ter um sistema de água tratada e de esgotos particulares, já que a infra-estrutura
existente não comportava um edifício moderno no início da década de 1950:

“O dia é 29 de novembro de 1952, data da inauguração do Conjunto


Arquitetônico Sahão. Os dois blocos foram construídos para ser hotel e
uso misto (residencial e comercial). Antes, aquele lugar era ocupado pela
casa de Arthur Hugh Miller Thomas, gerente de Terras Norte do Paraná.
Para as exigências de um hotel, a construção não seria algo fácil. Não havia
na cidade energia elétrica suficiente para movimentar o elevador e nem
água e rede de esgoto para garantir o funcionamento do prédio projetado
por Roger Henri Weiter. O edifício passou a contar com um serviço de

90
Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007

esgoto próprio, que usava um caminhão-bomba para esvaziar a fossa, e um


gerador Mclaren (movido a diesel) para fornecer luz e movimentar os
elevadores do segundo edifício de Londrina.”

O atendimento médico restringiu-se aos serviços do pequeno hospital (para


trabalhadores e compradores da CTNP) e aos médicos particulares, até a inauguração
da Irmandade Santa Casa de Misericórdia em 1944. A comparação entre as causas de
mortes entre Londrina, entre 1932 e 1943, as de mortalidade infantil em Cambé entre
1933 e 1947 (ANDRADE, 1998) e mortalidade geral do patrimônio londrinense do Heimtal
entre 1931 e 1947 (ALMEIDA, 1997) aponta para a falta de atendimento médico e para
a falha na saúde pública em garantir um bom atendimento às doenças dos trabalhadores
urbanos e rurais que se instalaram na região. As mortes, estágio final das doenças não
curadas, revelam um pouco das condições de vida dos seus habitantes.
As causas não identificadas, as mortes sem atendimento médico e a mortalidade
infantil (até 10 anos) eram elevadas na região. No pequeno núcleo urbano londrinense do
Heimtal, entre 1931 e 1947, do total de 194 mortes, 67,5% foram de natimortos e de
crianças que não atingiram 5 anos de idade, e 106 (54,6%) não tiveram suas causas
conhecidas. Entre as causas conhecidas, a mais freqüente foi decorrente de gastrenterites
e disenterias(34 ou 17,5%) o que nos leva a considerar que ela atingiu as crianças do
pequeno núcleo urbano.
De acordo com os dados do cemitério São Pedro (Londrina) os natimortos e as
crianças que não completaram 10 anos somaram 67% dos 3000 mortos entre 1932 até
abril de 1943.
Em Cambé (antiga Nova Dantzig) foram as doenças infecto–parasitárias, a ausência
de atendimento médico e natimortos. Em Londrina o cenário não foi diferente. Disenterias
somadas às diarréias, pneumonias e bronco-pneumonias, doenças tratáveis mas letais
onde há um sistema eficiente de saúde pública e saneamento básico, predominaram entre
as causas de óbito (Figura 4) somadas às decorrentes das epidemias de tifo, febre tifóide
e paratifo em 1937 e 1940, febre amarela em 1936, e impaludismo (malária) em 1941.
Podemos considerar que parte da presença médica aconteceu somente para elaborar o
atestado de óbito, necessário para a realização do sepultamento, de acordo com lei
municipal.
A análise dos dados de Londrina e a comparação com as causas de morte dos
cemitérios das cidades vizinhas revelaram um panorama não relatado nos textos de
Monbeig. O sistema explicativo do clima humano de Josué de Castro, significando um
clima modificado pela atuação humana, terras agricultadas e crescimento de cidades,
previa que por meio da higiene os meios insalubres seriam saneados. Nesse contexto o
fator cultural seria o principal no conjunto formador dos gêneros de vida. Mas somente
isso não é suficiente para explicar os óbitos mais freqüentes. Ao analisarmos as mortes,
elas foram mais numerosas entre os natimortos e crianças abaixo de 10 anos de idade,
sem considerar a dificuldade enfrentada pelo alto número de óbitos sem causa definida

91
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

ou sem atendimento médico. A criação de um “clima urbano” formado por “vilas” instaladas
em chácaras em torno do núcleo central forjou uma nova insalubridade.
A malária que tanto foi cara aos geógrafos que estudaram as faixas pioneiras
atingiu mortalmente poucos se pensarmos nas faixas etárias maduras ou de mais idade
comparando com os óbitos decorrentes dos colapsos ou outras doenças do sistema
cardíaco. Talvez porque isso reflita a situação da Geografia Médica que naquela época
tinha como objeto de estudo destacado as chamadas “doenças tropicais” e a relação
ambiental direta entre locais recém-desbravados e a população migrante que chegava
em ondas expressivas. A chamada criação do clima humanizado não havia incluído um
sistema de saneamento urbano, além das propostas que se restringiram ao saneamento
dos rios. Mortes por diarréias e disenterias, além da nebulosa denominação de toxicose,
não podem ser somente atribuídas ao consumo de alimentos contaminados devido ao
fator cultural de preparo e técnicas de manipulação dos alimentos. Mas torna-se
compreensível a sua alta incidência se considerarmos o consumo de água inadequada.
Apesar de pensarmos num imaginário de fronteira onde as mortes por causas externas –
quedas de árvores, acidentes de trabalho na lavoura – predominariam e os atingidos
fossem majoritariamente adultos, nos defrontamos com alta mortalidade infantil, filhos
desses migrantes.

Bibliografia

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estudo sobre as famílias pioneiras do Heimtal. Londrina: EDUEL. 1997.
ANDRADE, Ana Paula de Angeli de. A mortalidade infantil em Cambé - PR 1936/1947.
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História. Curso de Especialização em História. Universidade Estadual de Londrina. Londrina:
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ARAUJO, Heraclides C. de Souza. A Profilaxia Rural no Estado do Paraná: esboço de
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ARIAS NETO, J. M. O Eldorado: Londrina e o Norte do Paraná - 1930/1975. Dissertação
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93
CARVALHO, M. S. DE AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO...

Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 01 de Fevereiro de2008

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Resumo: As profundas mudanças ocorridas sob o signo da mundialização
do capital não apenas afetaram as relações de produção no campo de
forma bastante particular, mas acabaram por se tornar portadoras de
O CAMPO BRASILEIRO novas promessas para a agricultura, considerando a possibilidade de que
essa venha a responder, pelo menos em parte, às necessidades de
NO CENÁRIO DA fornecimento de energia ante o cenário de esgotamento do modelo baseado
MATRIZ ENERGÉTICA na queima de combustíveis fósseis. No Brasil, apesar de suas condições
privilegiadas para responder a esse desafio, surgem inquietações, dadas
RENOVÁVEL: NOTAS as perspectivas de que essa seja mais uma ocasião para a exacerbação da
concentração fundiária, para a precarização ainda maior das condições
PARA UM DEBATE de trabalho no campo, bem como para a vulnerabilização da agricultura
camponesa, entre outros. A renúncia política em optar por um modelo
de produção de energia que seja social e ambientalmente sustentável,
tendo o campesinato como protagonista, em prol de um modelo
insustentável em ambos os aspectos, encontra respaldo na tese da
THE BRAZILIAN FIELD ON THE eficiência produtiva e da superioridade técnica do agronegócio, o que
RENEWABLE ENERGETIC MATRIX torna imperativa a reflexão sobre argumentos e teorias que lhes dão
SCENE: NOTES FOR A DEBATE corpo e que têm orientado alguns estudos agrários no Brasil.
Palavras chave: Eficiência produtiva, produção de energia, referenciais
EL CAMPO BRASILEÑO EN LO teóricos, agronegócio, agricultura camponesa.
ESCENARIO DE LA MATRIZ
ENERGÉTICA RENOVABLE: NOTAS Abstract: The deep changes which occurred under the capital world-
PARA UNA DISCUSIÓN widening sign not only affected in a very particular way the production
relations on the field but also came to carry new promises for agriculture,
considering the possibility of it coming to fulfill, at least on parts, the
energy supplying necessity, given the fossil fuel burning based model
depleting scene. In Brazil, besides the country’s favorable condition to
react to this challenge, many worries appear, given the perspectives of
ELIANE TOMIASI PAULINO this being another occasion for the agrarian concentration exacerbation,
for the field work conditions becoming even more precarious, as well as
for the agriculture’s peasant becoming more vulnerable. The political
Professora do Departamento de disagreeing about choosing an energy production model which is socially
Geociências da Universidade and environmentally sustainable and has the field area as a protagonist,
Estadual de Londrina looking after an unsustainable model on both aspects, finds endorsement
on the agribusiness productive efficiency and technical superiority thesis,
what makes imperative the reflection about arguments and theories
eliane.tomiasi@uel.br which give sustentation and guide some agrarian studies in Brazil.
Key words: productive efficiency, energy production, theoretical
references, agribusiness, field agriculture.

Resumen: Los cambios profundos que ocurrieron com la mundialización


del capital han afectado no solamente de una manera muy particular las
relaciones de producción en el campo, pero también vinieron traer nuevas
promesas para la agricultura, en vista de la posibilidad que ella venía
satisfacer, por lo menos en parte, las necesidades de energía, dado el
agotamiento de el modelo basado en la quema de combustible fósil. En el
Brasil, a pesar de sus condiciones favorables para responder a este
desafío, algunas inquietuds aparecen, dado las perspectivas de esta ser
otra ocasión para la exacerbación de la concentración de la tierra, para
precarización de las condiciones del trabajo agrícola, así como para la
vulnerablización de la agricultura campesina, entre otros. La renuncia
política en optar por un modelo de producción energética social y
ambientalmente sustentable con los campesinos en la condición de
protagonistas, en favor de un modelo insustentable en ambos los
aspectos, encuentra endoso en las tesis de la eficiencia productiva e de la
superioridad técnica del negocio agrícola, y qué hace imprescindible la
reflexión sobre discusiones y teorías que le dan cuerpo y dirigen algunos
estudios agrarios en el Brasil.
Palabvras claves: eficiencia productiva, producción energética, referencias
teóricas, negocio agrícola, agricultura campesina

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 95-114 Ago-Dez/2007


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PAULINO, E. T. O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA
RENOVÁVEL...

Introdução

Em tempos de inquietação global, dadas as ameaças que as anunciadas mudanças


climáticas impõem ao planeta, a promessa de mudança da matriz energética parece surgir
como um alento.
Alento tanto maior para nós, brasileiros, porque supostamente essa crise nos trará
dividendos, tendo em vista as condições inigualáveis para a produção e aproveitamento
da biomassa, capaz de atender uma parte importante da demanda mundial por “energia
limpa”.
Afora os ufanismos que essa situação desencadeia, o que é perfeitamente
compreensível, até porque o povo brasileiro aguarda há séculos o encontro com seu
destino grandioso, é imperioso debater estratégias e idéias ora em foco , sob pena de nos
omitirmos em mais esse momento paradoxal, em que as oportunidades tanto podem
desdobrar-se em inclusões quanto em exclusões acentuadas.
Para começar, faz-se necessário transcender a constatação simplista de que o
Brasil é o país que, na atualidade, apresenta as condições para melhor responder ao
desafio da produção energética renovável, para a qual três fatores são fundamentais: sol,
terra e água. Some-se a isso os dois elos necessários ao fechamento da cadeia,
respectivamente mão-de-obra e tecnologia.
A abundância ímpar destes eliminaria qualquer razão para inquietações, não fosse
a forma como essas variáveis tendem a convergir, instituindo arranjos territoriais já
conhecidos e que, aliás, estão no âmago da questão agrária brasileira.
Certamente esse debate remete a uma questão de método, já que para uma parte
da intelectualidade, não há qualquer pertinência em fazê-lo, dado que os impasses da
questão agrária supostamente teriam sido eliminados naturalmente, no curso da própria
dinâmica socioeconômica das últimas décadas.
É, pois, sobre princípios e evidências destes dissensos que iremos nos deter, a fim
de analisar o cenário da produção de energia renovável no contexto da questão agrária,
suas potencialidades e limites, tendo como eixo condutor o tratamento teórico dispensado
ao campesinato, classe que traz em si a possibilidade de responder aos desafios postos de
forma includente e pouco predatória, mas que só poderá fazê-lo caso políticas públicas
contemplem sua participação, e isso exige debates consistentes, para não falar nos embates.

Da crise energética aos estudos agrários

Se pudéssemos raciocinar em termos de crises, desconsiderando as contradições


de classes, já que as mesmas implicam brechas para a acumulação, nos termos indicados
por Harvey (2005), e conseqüente aprofundamento dos mecanismos de extração da mais
valia social, resta a constatação de que estamos diante de uma crise energética premente.
Antes de incorrermos nessa simplificação, que atende às conveniências da coesão

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Terra Livre - n. 29 (2): 95-114, 2007

social impostas ao conjunto da humanidade, porque faz crer que todos são indistintamente
atingidos, é inquestionável o esgotamento do modelo energético baseado na queima de
combustíveis fósseis, seja pelo escasseamento das reservas, seja pelas implicações
ambientais de sua utilização.
Ao que parece, a melhor resposta a ela virá, ou melhor, já está vindo, da agricultura,
que se depara com redefinições produtivas e novas possibilidades de auferição da renda
da terra. Sendo assim, a aparente posição secundária dessa atividade, em vista do triunfo
de um modelo societário amparado pelo que Santos (2005) denomina de meio técnico
científico informacional, é modificada, alçando um grau de importância que jamais perdera,
contrariamente à percepção socialmente construída a seu respeito, fato com que já se
ocupara Marx há mais de um século atrás.

[...] todo desenvolvimento do capital tem por base natural a produtividade


do trabalho agrícola. Se o ser humano não fosse capaz de produzir num dia
de trabalho mais meios de subsistência, ou seja, em sentido estrito, mais
produtos agrícolas que os necessários para reproduzir cada trabalhador, se
o dispêndio diário de força de trabalho de cada um apenas desse para gerar
os meios de subsistência indispensáveis às respectivas necessidades
eventuais, não se poderia falar de produto excedente nem de mais-valia. A
produtividade do trabalho agrícola excedendo as necessidades individuais
do trabalhador é a base de toda a sociedade e sobretudo da produção
capitalista, que libera a produção dos meios imediatos de subsistência parte
cada vez maior da sociedade, convertendo-a [...] em ‘braços livres’,
tornando-a disponível para ser explorada noutros ramos. (MARX, 1974, p.
901)

Se o papel estratégico da agricultura é maior do que se faz crer, é certo que a


participação proporcionalmente menor de seus agentes na partilha da riqueza socialmente
daí derivada resulta de um confronto de forças próprio da dinâmica capitalista, sobre o
qual não iremos nos deter, por extrapolarem os limites da análise aqui proposta.
Todavia, não basta apenas considerarmos que o capitalismo não pode prescindir
do sustentáculo primordial, a agricultura, pois isso poderia levar a outra generalização
indevida, a de que essa se apoiaria em uma base homogênea, o que efetivamente não é o
caso, pois diferentes classes concorrem para essa produção .
A novidade é que à mera tarefa de suprir as demandas energéticas em termos de
consumo humano vital, o de alimentos, soma-se agora o desafio de fornecer energia para
mover as engrenagens produtivas da contemporaneidade, fundamentalmente baseadas
em arranjos espaciais em que os deslocamentos de pessoas e mercadorias são fundantes.
Tais mudanças também trazem implicações aos esquemas teóricos que temos
acionado para compreender o campo, particularmente quando se está do lado dos que
crêem que o conhecimento deve situar-se no contexto das indagações cujo fim último é a
contribuição para a construção de um modelo societário alternativo ao que está posto, e

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PAULINO, E. T. O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA
RENOVÁVEL...

isso supõe o debate com outras formas de pensar, instituídas no próprio curso dos conflitos
de classes.
Entrementes, é bom lembrar que desde a emergência do modo capitalista de
produção, a organização das atividades produtivas foram profundamente alteradas, o que
por sua vez implicou radicais transformações territoriais, a começar pela expansão das
cidades e consolidação de sua centralidade nos processos de controle da produção,
inclusive daquela oriunda do campo.
A transição de centro administrativo e ou comercial, para centro produtivo
privilegiado, com a indústria mediando a produção como um todo, lançou uma incógnita
aos pensadores nascidos nos quadros das ciências humanas emergentes, que buscavam
respostas para uma sociedade perplexa ante um ritmo de transformações de difícil
assimilação.
É no interior desse contexto que começam a surgir estudos agrários abrangentes,
hoje denominados estudos clássicos, e que se propunham a interpretar o processo de
desenvolvimento do capitalismo no campo à luz de referenciais teóricos construídos para
entender a indústria e sua conversão em agente primaz das dinâmicas socioterritoriais.
Desse cenário, interessa-nos aqueles de cunho marxista, cujas abordagens
inicialmente convergem para o pensamento do jovem Marx, que assinalava o caráter
progressista do capitalismo ante o modo de produção anterior. Entretanto, a desenvoltura
com que se invoca o progresso técnico para incutir um padrão de consumo supostamente
gerador de felicidade, ou mesmo para acalentar os que dele não partilham, resulta da
visão que institui a centralidade dos processos sociais numa valorização ambivalente, em
que as técnicas são sobrepostas às ações humanas que as criam, compreensão que não
encontra respaldo no pensamento de Marx, senão vejamos:

São grandes os méritos do modo capitalista de produção, o de ter


racionalizado a agricultura, capacitando-a pela primeira vez para ser explorada
em escala social, e o de ter posto em evidência o absurdo da propriedade
fundiária. Comprou esse progresso ao preço de todos os demais: de início
reduzindo ao empobrecimento completo os produtores imediatos. (MARX,
1974, p. 709)

Em suas análises, Marx jamais abdicou do princípio da contradição para analisar


os paradoxos do desenvolvimento capitalista, mas fragmentos de seu pensamento foram
suficientes para disseminar equívocos.
Um deles diz respeito à compreensão linear da história, como se as mudanças
ocorridas na transição do modo de produção feudal para o capitalista, destacadas pelo
próprio Marx com um avanço em relação às formas escravistas e primitivas de produção,
pudessem seguir um curso inexorável, culminando no socialismo, a ante-sala para uma
sociedade sem amarras, capaz de prescindir de instituições reguladoras, entre elas o
Estado, e do próprio trabalho alienado. Como se verá mais adiante, o legado dessa

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Terra Livre - n. 29 (2): 95-114, 2007

interpretação tem ligação direta com os estudos agrários, porque diz respeito ao futuro da
classe camponesa no seio da agricultura capitalista.
Outro equívoco diz respeito aos atributos conferidos ao próprio capital que, não
raro, é tido como ente dotado de personalidade e determinações próprias, desvinculado
das ações humanas que lhes dá corpo e forma.
Como advertira Marx (1974, p. 936), o capital não é portador de valores intrínsecos,
pois nada mais é do que uma relação social de produção. Em outras palavras, a sua
“demonização” pelos que almejam a superação das mazelas de nosso tempo, ou a sua
exaltação, pelos que compartilham as benesses próprias desse estágio de desenvolvimento
das forças produtivas, em nada contribuem para uma perspectiva transformadora da
sociedade.
Se temos claro que estamos diante do processo social de produção em que as
forças sociais e as formas de trabalho convergem para o que chamamos de história,
parece mais tangível vislumbrar a névoa mística de que nos falava Marx, expurgando a
noção de potência autônoma capaz de sobrepor-se à ação dos sujeitos o que, em síntese,
é a essência da alienação.
Daí a fragilidade de pressupostos teóricos clássicos que instituíram a primazia da
técnica sobre a dinâmica da produção no campo, à medida que propugnaram um cenário
em que a difusão de técnicas modernas seria a tônica da racionalidade e da eficiência
produtiva; por sua vez, estas estariam devidamente associadas ao empreendimento de
larga escala, leia-se capitalista. Desde então, os camponeses passaram, no plano teórico,
à condição de classe anacrônica do capitalismo, sujeita à sentença do inexorável
desaparecimento.
É evidente que desconsiderar a enorme capacidade que os capitalistas têm tido de
perpetuar a lógica da acumulação ampliada, o que pressupõe separação dos trabalhadores
dos meios de produção, seria um contra-senso. Contudo, ao longo do último século isto
não se deu de maneira unidirecional na agricultura, dada sua dinâmica ímpar, a começar
pela dependência dos ciclos da natureza, algo que a produção industrial e demais atividades
urbanas desconhecem.
O próprio Kautsky (1980), que nos legou a teoria do desaparecimento do
campesinato, já advertira sobre a necessidade de atentar para os ciclos distintos dessa
atividade em relação à lógica da indústria, na qual se pautou para analisar o
desenvolvimento do capitalismo na agricultura. Lembrou da pertinência de considerarmos
o meio artificial, adaptado às necessidades da produção industrial, como principal triunfo
que a agricultura não tem a seu favor.
Ademais, em um contexto de deslumbramento ante o aprimoramento do
melhoramento genético, da utilização de energia fóssil em detrimento de energia vital,
entre outros elementos do progresso técnico, marcou um posicionamento à frente de sua
época, advertindo sobre a insustentabilidade das práticas que hoje não apenas se
disseminaram ao limite, mas já atingiram um novo patamar, o da biotecnologia, com todas

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PAULINO, E. T. O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA
RENOVÁVEL...

as suas incógnitas.
Isso não o impediu de render-se às promessas da função arrebatadora das técnicas
incorporadas à agricultura, a começar pelos trabalhadores que, a seu ver, seriam alçados
da barbárie à humanidade pela transição de camponeses a proletários, considerados
superiores, porque partícipes das regras do trabalho social, coisa que não experimentariam
enquanto camponeses, pelo caráter individual/familiar de suas atividades.
Não obstante, faz-se necessário lembrar que como partidário do socialismo, em
um momento ímpar das lutas políticas, a posição de Kautsky era coerente com o princípio
de que somente a experiência da proletarização poderia levar os trabalhadores não apenas
à renuncia da propriedade individual, mas também à necessária aprendizagem das regras
da convivência coletiva.
Daí o sentido de proclamar a condição pré-política do campesinato e a necessidade
de transição de classe, o que viria com a adesão subalterna às fileiras “revolucionárias”
do proletariado. Por outro lado, nasce aí o mito da empresa rural como arrebatadora da
miséria no campo e promotora de transformações benéficas à sociedade. Esse esquema
interpretativo deixou raízes profundas nos estudos sobre o campo, incluindo-se os de
cunho progressista, oriundo de teóricos identificados com a produção de Marx.
De acordo com Shanin (1980), teóricos clássicos e contemporâneos adeptos dessa
leitura se perderam na radicalização dos preceitos de Marx, porque tomaram o capitalismo
como força arrebatadora e irrresistível, negando o princípio da contradição nos recortes
analíticos da realidade.
Considerando as peculiaridades produtivas da agricultura, seus processos e ritmos,
nem sempre a lógica da economia de escala é a que se impõe. Entretanto, é esse corte
analítico que tem prevalecido quando se trata de analisar a agricultura contemporânea e
os cenários futuros dessa atividade.
Dessa maneira, convém buscar as raízes dessa compreensão e o seu sentido na
atualidade, sobretudo no caso brasileiro. Lênin (1982) foi um dos teóricos a ocupar-se do
estudo da agricultura capitalista a partir do referencial marxista. Para ele, o
desenvolvimento técnico definia um caminho inexorável para o campo: o da diferenciação
social, porque nesse paradigma produtivo, racionalidade técnica e altos investimentos
seriam indissociáveis.
Embora pouca atenção tenha sido dada à distinção que Lênin fez entre exploração
e extensão da unidade produtiva, e que culminou na tendência de invocar seus estudos
para naturalizar a associação entre eficiência produtiva e grande propriedade, para ele
era o grau de investimento, e não o tamanho da propriedade, a ser tomado como referência
para diferenciar grandes e pequenas explorações. Em outras palavras, um latifúndio seria
uma pequena exploração, em vista de parcos investimentos e conseqüente baixa capacidade
produtiva, proporcionalmente à área controlada.
Por conveniência de uns e descuido de outros, aqui essa distinção parece ter se
perdido no tempo, prevalecendo a tese da racionalidade técnica vinculada ao tamanho

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Terra Livre - n. 29 (2): 95-114, 2007

das propriedades. Sendo assim, tornou-se lugar comum associar viabilidade técnico-
econômica à grande propriedade, associação essa que tem implicações ponderáveis quando
se trata do Brasil, em geral, e do negócio energético, em particular.
É por isso que não se pode tomar a produção de conhecimentos como um esforço
coeso rumo à transformação da sociedade, e esse aspecto teórico o confirma, porque foi
tomado como instrumento de legitimação em uma sociedade em que os interesses da
classe proprietária de terras são hegemônicos, sobretudo a partir da aliança terra - capital.
Daí a pertinência de pensar métodos, teorias e conceitos como constructos afinados a
concepções filosófico-políticas que apontam para modelos societários divergentes, e que
adquirem sentido ante perspectivas de classe.
Ao esforço em eleger o agronegócio fundado na grande propriedade e na exploração
do trabalho como único setor capaz de responder aos desafios econômicos da
mundialização dos mercados, não esteve alheia a academia. Se o fortalecimento dessa
classe, via renúncia do Estado em promover uma reforma agrária de fato, pode contar
com a máquina pública, até porque essa tende a ser apropriada pelas forças hegemônicas,
não menos importante foi a consolidação da tese de que esse é o desdobramento possível
no interior do capitalismo, e aí entram as formas como são acionadas as teorias.

Das teorias às políticas de gestão do território

Considerando a relação conhecimento comum - conhecimento científico, parece


haver uma sensação generalizada de que alguns ramos da ciência produzem conhecimentos
que darão retorno e outros não. Enquanto poucos duvidam de que os estudos baseados
no manuseio de substâncias em tubos de ensaio e em equipamentos imperscrutáveis
trarão resultados palpáveis, muitos não conseguem vislumbrar a “utilidade” dos estudos
teóricos, sobretudo em ciências humanas, incluindo-se os geográficos. Aliás, pesquisadores
iniciantes e até experientes, não raro, expressam o sentimento de que todos seus esforços
de pesquisa resultaram inúteis, porque reclusos em relatórios e publicações de baixa
circulação.
Não se pretende aqui entrar no mérito do pragmatismo em ciência, meta considerada
obscena por muitos, entre eles Milton Santos, que em resposta a essa prática disseminada
de conhecimento mercantil, conclama à construção de uma “geografia heróica” baseada
em uma ética igualmente heróica, já que “ [...] se deve estar preocupado com o espaço
social, o espaço de todos, e não com o espaço das empresas, o espaço de alguns [...].”
(SANTOS, 2003, p. 34).
Pretende-se sim, refletir sobre desdobramentos das teorias, pois constituem-se em
referenciais não apenas para as pesquisas, mas sustentam visões de sociedade e orientam
a política.
Considerando que a política é o exercício do confronto dos diferentes e das
diferenças sem o recurso à força, em uma sociedade tão díspar como a capitalista, é

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PAULINO, E. T. O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA
RENOVÁVEL...

desse exercício que podem emanar mudanças que favoreçam a diminuição das
desigualdades, da mesma forma como emanam ações que as aprofundam. É isso que
não comporta a neutralidade em ciência e em suas opções teórico-metodológicas, pois a
política alimenta-se do conhecimento, ao mesmo tempo que dela emanam as políticas
territoriais que definem quem ficará ou terá acesso a quê.
Ao trazermos para o foco dessa reflexão a questão agrária, os impasses e as
potencialidades ante a emergência da matriz energética renovável, entendemos que uma
teoria em particular, a do desaparecimento do campesinato, pode e tem sido acionada
para legitimar políticas territoriais excludentes, em especial aquelas que colocam todos os
esforços na viabilização da agricultura de escala.
Ora, a premissa de que os camponeses não existem, ou de que não possuem as
condições materiais, técnicas ou culturais para recriarem-se como classe no contexto da
economia mercantil, contêm uma sentença tácita: a de que não podem ser protagonistas
de um modelo alternativo de produção de energia vinculado à atividade agrícola. Esse é
um convite à não política, porque o confronto entre alternativas produtivas sequer se
anuncia, pavimentando o terreno para a expansão do agronegócio energético fundado na
expropriação, na exploração extrema da força de trabalho e na depredação ambiental.
Entretanto, não se poderá fazer uma vinculação simplista entre tais desdobramentos
e as proposições de Kautsky (1980) e de Lênin (1982), pois as teorias não devem ser
estáticas ou refratárias às mudanças que se impõem no curso da realidade. Dito de outro
modo, esses teóricos tinham diante de si uma realidade em transição, já que as relações
de produção tipicamente capitalistas estavam consolidadas apenas na indústria, enquanto
que no campo eram apenas um esboço.
Baseados na leitura que Marx fizera do capitalismo, cujo recorte não era e nem
poderia ser o campo, acabaram por tomar como válida a projeção de que a agricultura
igualmente experimentaria a separação essencial entre capital e trabalho, daí a
compreensão de que a proletarização seria o destino inexorável do campesinato.
Entretanto, uma análise mais cuidadosa da obra de Marx não permite reafirmar
essa sentença, pois seus estudos estão fundados na compreensão de que o capitalismo,
embora seja o modo de produção dominante, não se limita a uma estrutura bipolar,
constituída exclusivamente pela oposição entre proprietários dos meios de produção e
detentores da força de trabalho.
Por essa razão, a persistência e as potencialidades da agricultura de pequena escala
explicam-se, para além da dinâmica interna do trabalho camponês, pelas necessidades da
própria produção capitalista. Isso não implica tomar essa relação como de mão única, nos
moldes estruturalistas, mas acatar o princípio da contradição para seu entendimento.
Marx nos deu indicações seguras de que é a natureza peculiar de certos setores da
produção agrícola que repele o investimento capitalista. É a partir da teoria do valor
trabalho que se poderá compreendê-la, já que se considera que o valor de troca de qualquer
mercadoria, seja oriunda da forma tipicamente capitalista ou não, é determinado pelo

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tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, senão vejamos:

O tempo de trabalho é sempre tempo de produção, o que é o mesmo que


dizer que é um tempo durante o qual o capital é firmemente mantido na
esfera da produção. Mas o contrário não é verdadeiro, ou seja, nem todo o
tempo em que o capital é mantido no processo de produção é
necessariamente tempo de trabalho. O tempo de produção consiste em
duas partes, um período em que o trabalho é realmente aplicado na produção
e um segundo período, durante o qual a mercadoria ‘inacabada’ deve
aguardar a influência de processos naturais, sem se submeter
simultaneamente ao processo de trabalho. (MARX, 1974, p. 242)

Sendo assim, o valor e, por conseguinte, a mais-valia, não é igual ao tempo que
dura a fase da produção, antes coincide com o tempo de trabalho, materializado e vivo,
empregado durante a exata fase da produção. Separando analiticamente o tempo de
trabalho do tempo de produção ‘improdutivo’, temos que quanto mais ambos coincidirem,
maiores serão a produtividade e a auto-expansão do capital.
Dessa maneira, a agricultura tipicamente capitalista expande-se em setores de
atividade onde o tempo de produção pode ser reduzido com sucesso, sendo descartados
os setores dependentes naturalmente de maior hiato temporal. Por sua vez, situações
inversas tendem a repelir os investimentos capitalistas, as brechas de que se aproveita a
classe camponesa para se recriar.
Cumpre salientar que a circulação é outro elemento que não está dissociada desse
princípio, dada a propriedade de igualmente definir a pertinência dos investimentos na
agricultura.
Sabemos que não é no interior do processo produtivo, mas somente no momento
em que a mercadoria assume a sua forma acabada e ingressa no mercado, é que o valor
nela contido pode ser realizado. Portanto, quanto mais reduzido for o tempo em que há
consumo de energia vital para a produção de um bem, somada à menor quantia de dinheiro
imobilizado para que isso ocorra, maior será, comparativamente, a quantia potencial de
mais valia a ser extraída, pois os capitalistas poderão inclusive pagar salários recorrendo
ao valor criado pelos próprios trabalhadores, já convertido em dinheiro no processo de
circulação. Isso lhes permitirá, inclusive, aumentar a quantidade de força de trabalho a
seu serviço, ampliando a produção.
Por outro lado, quanto mais perecível for uma mercadoria e maior a restrição de
seu tempo de circulação, em virtude de suas características naturais, menos adequada
será à produção capitalista. Evidente que outras variáveis interferem nessa equação, o
que não nos permite uma correlação automática entre alta perecibilidade e baixa
rentabilidade e vice-versa.
Isso porque produtos agrícolas duráveis, a exemplo dos cereais, têm um complicador
quando se considera a dinâmica da circulação: pelo fato de apresentar tempo de produção
relativamente longo, requerem uma determinada quantidade de capital-mercadoria, ou

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PAULINO, E. T. O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA
RENOVÁVEL...

em outras palavras, quantidades disponíveis, para ser ofertado durante o período que
separa uma colheita da subseqüente.
Daí decorre a necessidade de estocagem, já que o consumo é ininterrupto ao longo
do ano, o que implica imobilização de capital sob a forma de estoques. Sabendo-se o
quanto a fluidez de capital na contemporaneidade tem tido como aliada a diminuição dos
estoques, mediante a programação da produção conforme o ritmo da demanda, notamos
ser esta mais uma das razões pelas quais é necessário repensar os parâmetros clássicos
de análise. No limite, é necessário ponderar que tanto produtos agrícolas perecíveis quanto
duráveis criam limitações para a circulação monetária, em moldes ideais aos parâmetros
capitalistas.
Outro ponto a ser destacado diz respeito à noção de que a lógica produtiva nos
parâmetros estritamente capitalistas é portadora de uma capacidade ilimitada de instalar-
se e perpetuar-se. Para Shanin (1980), os teóricos do desaparecimento do campesinato
sobreestimaram a força transformadora do capitalismo. Numa analogia que invoca o
mito de Midas, que a um simples toque, tudo podia transformar em ouro, explica que a
recriação dos camponeses no planeta inteiro, à revelia da sentença de seu desaparecimento,
é uma evidência de que isso não se poderá processar em termos de capacidade de
conversão ao capitalismo.
Contudo, esta premissa continua presente em parte das obras que se ocupam da
questão agrária na contemporaneidade, e a supressão do conceito de campesinato o
demonstra. Como os sujeitos em questão continuam desafiando essa leitura com sua
presença concreta no campo, o caminho tem sido o da desconceituação, a exemplo do
que transforma camponeses em agricultores familiares.
A nosso ver, subjacente a essa opção teórica há uma destituição das relações
sociais implícitas no caráter de classe de que o conceito é prenhe, em favor da conversão
do mercado em elemento fundante da produção econômica e, conseqüentemente, da
recriação social. Uma evidência disto é a tendência à vinculação do termo agricultor
familiar ao conjunto daqueles que desfrutam de uma relação superavitária com o mercado,
atribuindo-se aos depauperados o rótulo de camponeses.
Entretanto, pensar a contemporaneidade desconsiderando a abrangência da
mercadoria é algo fora de propósito, pois a despeito de essa não ser o objetivo primordial
do capitalismo, é por meio de sua produção, circulação e consumo que a mais-valia se
realiza.
Sendo assim, é extemporânea a tese de que camponeses são os que produzem em
um circuito de rudimentar autosuficiência e, quando deixam de fazê-lo, igualmente deixam
de ser camponeses para tornarem-se agricultores familiares. Por sua vez, revela os limites
da rigidez teórica, herdada da sentença fatalista quanto ao destino do campesinato enquanto
classe. Lembremos, no entanto, que esta nasceu no contexto em que a degradação e a
miséria a que foram submetidos os camponeses expulsos do campo reclamava a elaboração
de um projeto político que pudesse agregar forças no sentido da superação da barbárie

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recém instalada.
Esse é o sentido das alianças em torno do ideal de construção da sociedade socialista,
mas que fora traçado por e para o proletariado, restando aos camponeses aderirem ao
projeto na condição de sujeitos pré-políticos. Isso supunha serem tutelados e assim
conduzidos às fileiras do proletariado para, passada a provação da expropriação e da
sujeição real ao capital, adentrarem em condição de igualdade cultural e política o reinado
dos iguais.
O problema desse destino manifesto é que os camponeses não puderam nele se
reconhecer, porque o sentido de sua liberdade estava no acesso à propriedade privada da
terra, mas, diga-se de passagem, em moldes contrários ao princípio da propriedade privada
capitalista da terra.
De acordo com Marx (1974), a presença ou ausência do trabalho assalariado é o
critério fundamental pelo qual a pequena produção de mercadorias será diferenciada da
produção capitalista. Desse modo, a transformação da pequena produção em produção
capitalista requer a transformação das relações sociais de produção.
Dessa maneira, o emprego de máquinas, a especialização da produção, a
competição em mercados, a expansão da produção, em si, nada representam em termos
de diferenciação, ou seja, não são esses elementos que assinalam a distinção fundamental
entre camponeses e capitalistas.
Além das relações de trabalho, há uma lógica peculiar a mover os primeiros. O
sentido da propriedade capitalista da terra é a sua transformação em equivalente de
capital. É o que permite auferir mais valia por meio da exploração direta da força de
trabalho empregada nas atividades em seu interior, somada à extração da renda da terra,
o tributo que a sociedade inteira paga ao conjunto dos proprietários fundiários.
Por outro lado, ainda que o sentido da propriedade privada camponesa da terra
seja a extração da renda, por meio da destinação de sua produção ao mercado, ela
ingressa na forma de recursos a serem empregados na compra de mercadorias
imprescindíveis à reprodução da família.
Enganara-se, pois Lênin (1980), ao rotular os camponeses de pequenos agraristas,
que em tese se diferenciariam dos latifundiários por uma questão meramente escalar: a
quantidade de terras que dispunham.
Kautsky (1980) já contestara esse rótulo, ao mostrar que os camponeses necessitam
da terra tanto quanto os proletários necessitam de um emprego. Em outras palavras, a
terra teria, para os camponeses, a potencialidade de empregar a sua força de trabalho,
sendo a renda a remuneração necessária à sobrevivência da família.
Enfim, na compreensão de Lênin (1980), haveria um romantismo nos estudos
focados nos camponeses, a ser removido em favor de um projeto de socialização pelo
trabalho, o que supunha a completa supressão da propriedade individual da terra.
Em linhas semelhantes raciocinou Kautsky (1980), que vira nessa classe os bárbaros,
os trabalhadores pouco inteligentes, incapazes de incorporar conhecimentos técnicos que

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pudessem revolucionar tecnicamente a agricultura, da qual não se poderia prescindir em


estágios societários mais avançados.
Desconsiderando a coerência desse arcabouço teórico com o contexto ou mesmo
com os propósitos de mobilização transformadora com que se envolveram Kautsky e
Lênin, é oportuno lembrar que em uma situação de extrema concentração fundiária e de
poder desmesurado dos proprietários, como ocorre no Brasil, tais assertivas constituíram-
se e ainda constituem-se em instrumento singular de legitimação das ações que orientam
as políticas territoriais eminentemente concentracionistas.
Embora estejamos no segundo mandato presidencial de um governo que alçou as
esferas decisórias do Estado como portador de um projeto que supunha a superação de
estruturas nefastas, e a agrária é uma delas, não há no horizonte transformações, sequer
mudanças dignas de nota, pois a política de reforma agrária não possui a abrangência
necessária, mesmo considerando-se as metas propostas, que estão longe de serem
alcançadas, a despeito das maquiagens estatísticas .
Portanto, estes são tempos de potenciais avanços dos mecanismos de expropriação,
em face da aquiescência do poder público aos novos paradigmas de produção a nos
rondar. Daí a pertinência em atentar para os apelos da mídia e para os argumentos de
uma parte dos intelectuais de que a grande propriedade é a provedora dos alimentos,
matérias primas e santuário da produção energética do país, da qual não se poderá
prescindir.
Faz-se necessário, então, reafirmar que a concentração da riqueza patrimonial nos
níveis verificados no Brasil, e a concentração da terra é o melhor exemplo, é socialmente
insustentável, porque exclui uma parcela importante da população do usufruto das riquezas
geradas coletivamente. E a melhor forma de fazê-lo é mostrar, por meio dos dados, o
quanto são débeis seus resultados econômicos, proporcionalmente à área monopolizada.

Faces da produção e renda agrícola no Brasil

Ante o reiterado esforço de construção de um consenso sobre a vitalidade do


agronegócio e sua suposta capacidade de dinamizar a economia, o que justificaria o
acesso privilegiado ao patrimônio fundiário e aos recursos públicos, algumas questões
necessitam de uma análise mais cuidadosa. É justamente sobre essa problemática que se
lança Oliveira (2003), analisando o campo brasileiro a partir de contradições identificadas
a partir de um contraponto entre a modernidade anunciada e a barbárie que emana da
estrutura baseada na concentração fundiária.
Num esforço respaldado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), bem como do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
mostra a vinculação equivocada da eficiência produtiva à grande propriedade, ao mesmo
tempo que elucida a capacidade proporcionalmente superior da pequena propriedade em
produzir alimentos e matérias primas, gerar emprego e renda. Percorramos superficialmente

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os dados, a fim de melhor conhecer o panorama da agricultura brasileira.


Considerando que a base de toda produção é o acesso à terra, a agricultura já se
defronta aí com uma distorção grave, posto que de acordo com o INCRA (apud Oliveira,
2003, p. 127), 85,2% dos imóveis rurais tem menos de 100 hectares e ocupam apenas
20% das terras no país. Por outro lado, os imóveis com mais de 1.000 hectares, embora
numericamente inexpressivos, pois representam 1,6% do total, açambarcam 43,8% das
terras.
Entretanto, o argumento de que a reforma agrária é uma bandeira anacrônica no
Brasil atual tem sido utilizado não apenas por sujeitos e agentes do latifúndio mas, não
raro, por intelectuais, senão vejamos:

Reformas têm o seu tempo histórico, e a agrária surgiu nos anos 50, quando
foi entendida como necessária para constituir o mercado interno que
desenvolveria o país. Mas isso não ocorreu, pois após o ‘milagre brasileiro’
o Brasil ressurgiu mais urbano, com sua economia prescindindo da reforma
agrária. (Navarro, 2007, p. 3)

Contrapondo tais argumentos com os dados apresentados por Oliveira (2003), com
os quais dialogamos nas páginas subseqüentes, somos impelidos a retornar novamente ao
pressuposto de que trabalhos científicos podem produzir resultados opostos e inconciliáveis,
mesmo em se tratando do mesmo recorte analítico, quando derivados de identidades de
classes antagônicas.
Poderia discordar o conjunto dos 1,6% dos proprietários, que juntos controlam
quase a metade do patrimônio fundiário brasileiro, da tese de que a reforma agrária foi
uma necessidade de outros tempos, e que o Brasil superou esse entrave ao se tornar
urbano? Mais ainda, conviria aos 27 proprietários, cujas propriedades possuem dimensões
equivalentes às do Estado de São Paulo, questionar essa lógica argumentativa? Por outro
lado, para ficar só nos que vivem na terra, ou melhor, em nesgas de propriedades cuja
área é inferior a 10 hectares, e que somam 1.338.711 proprietários, restaria indagar se
eles também julgam inoportuna uma redistribuição fundiária no país.1
É por isso que compreender as contradições da agricultura brasileira supõe a
transcendência de fragmentos teóricos transportados e, no debate em questão, nos que
versam sobre a indissociabilidade entre racionalidade técnica e grandes extensões de
terra. Trata-se de uma questão de método e que, necessariamente, supõe buscar na
teoria os elementos que iluminam a realidade que se quer iluminar. A operação inversa,
em que a teoria serve para enquadrar a realidade, é um recurso muitas vezes coerente
com as conveniências de classe.
Como mitos e verdades remetem aos ângulos sob os quais se olha, consideramos
oportuno refletir sobre a tão propalada eficiência produtiva que justifica à sociedade a
manutenção da estrutura fundiária que ora expomos.
1
Conf. INCRA apud Oliveira, 2003, p. 127

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De acordo com Oliveira (2003, p. 134-136) a pequena propriedade, seja em volume


da produção, seja em valor da produção, supera a grande em todas as atividades
agropecuárias, excetuando-se a produção de carvão, de madeira e de cana-de-açúcar.
Sabendo-se que tanto o carvão quanto a madeira resultam da atividade extrativa
predatória que, aliás, tem marcado o ritmo da expansão da fronteira agrícola, via de regra
com fins mais especulativos do que produtivos, pouco se pode esperar em termos de
contribuição para o efetivo desenvolvimento do país.
Restaria a cana-de-açúcar, o carro chefe do agronegócio energético, mas o
descumprimento da legislação ambiental e trabalhista, marcantes nessa atividade, torna o
cumprimento da função social da terra previsto na Constituição uma quimera.
Por mais paradoxal que possa parecer, uma pesquisa coordenada por Maria
Aparecida de Moraes Silva identificou nos canaviais do estado de São Paulo condições
de trabalho tão degradantes quanto a dos escravos do século XIX, e isso se aplica à
expectativa de vida dos cortadores de cana (ZAFALON, 2007). Sendo assim, se poderá
falar em crescimento econômico, porém jamais em desenvolvimento vinculado a essa
atividade .
Outra face perversa da grande propriedade é a ociosidade. Embora seja consenso
a idéia de que aí está o locus da pecuária, apenas 21,8% do rebanho bovino encontra-se
nelas. Mais surpreendente ainda é saber que a participação do rebanho existente nas
pequenas propriedades corresponde a 37,7% do total nacional.
Mas haveria ainda o argumento de que o agronegócio majoritariamente se constitui
de atividades econômicas intensivas, e a pecuária não seria um referencial válido, pois as
práticas extensivas puxariam as médias para baixo. Vejamos então os dados apresentados
por Oliveira (2003, p. 135) sobre as fibras têxteis, leguminosas e cereais:
No algodão, o volume da produção da grande propriedade corresponde a apenas
27,2% do total produzido pelos pequenos proprietários. Convém lembrar aqui que em
termos tecnológicos, não é possível estabelecer parâmetros de comparação, pois entre os
pequenos proprietários que o produzem, grande parte são camponeses extremamente
empobrecidos, como os do Norte do Paraná, que realizam a atividade de forma itinerante,
percorrendo a região em busca de terras arrendáveis para tanto. Assim, se o parâmetro
é a eficiência produtiva, os dados falam por si.
Em relação ao arroz, o volume da produção oriundo das grandes propriedades
corresponde a apenas 47,3% do que é proveniente das pequenas. Tal qual no algodão,
discutir eficiência produtiva supõe considerar os recursos de que dispõem os grandes
rizicultores, inclusive em termos de crédito público para custeio, e as condições materiais
e técnicas com que são conduzidas as lavouras camponesas.
Até mesmo na soja a produção oriunda das grandes propriedades corresponde a
apenas 63,6% do volume colocado no mercado pelas pequenas propriedades. Por se
tratar da cultura de maior projeção em termos de exportação, sobre ela recai a maior
fatia de recursos para custeio. Mais à frente demonstraremos como se dá a partilha do

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montante destinado aos financiamentos agrícolas entre grandes e pequenos proprietários.


No caso do milho, outra commodity de relevância, a grande propriedade alcança
apenas 19,8% do volume colocado no mercado pela pequena propriedade. Se no caso do
trigo, a diferença é espantosa: apenas 8,4%, o que não dizer do feijão, pois o volume da
produção proveniente das grandes propriedades corresponde a apenas 5,85% do que
disponibilizam aos brasileiros as pequenas propriedades.
Enfim, em qualquer ordem que se queira elaborar a lista da produção agrícola no
Brasil, os números contestarão a tese consagrada da eficiência produtiva da grande
propriedade, muitas vezes imposta por discursos que as apresenta à sociedade como
responsável pela produção dos alimentos que temos à mesa. Discursos convertidos até
em adesivos de potentes caminhonetes circulando nas cidades, sendo comum os dizeres:
“Se você se alimentou hoje, agradeça ao produtor rural”
Entretanto, essa incapacidade concreta de transformar não apenas chavões, mas
sobretudo condições materiais privilegiadas em produção efetiva, em contraposição à
capacidade que têm demonstrado os camponeses em driblar as barreiras impostas pela
limitação de terra e de recursos, parece não ser motivo de dissuasão, quando está em
foco a pertinência de se alterar a estrutura fundiária, senão vejamos:

[...] o mundo rural se tornou mais heterogêneo e a produção de alimentos e


matérias-primas, ainda nos anos 80, encontrou-se com a demanda. Assim,
reforma agrária para garantir oferta de produtos e uma política que precisasse
ser uniforme em todo o país também sumiram do mapa dos argumentos.
(Navarro, 2007, p. 3)

Resta considerar que há limites estruturais para a resposta produtiva que tem dado
a pequena propriedade. A concentração fundiária se mantém e certamente os dados do
novo censo agropecuário o confirmarão. Ademais, de acordo com Oliveira (2003, p.
151), o volume da produção de alimentos básicos, como o arroz e o feijão, mantém-se
praticamente inalterado desde o início dos anos 1990. Assim, o país que já importa esses
alimentos, poderá ter que fazê-lo em escala diretamente proporcional à variação
demográfica da população brasileira. Contudo, Navarro (2007, p. 3) afirma que: “A
conclusão inevitável é que hoje inexistem razões, sob qualquer ângulo, para a realização
desta reforma em todo o Brasil.”
Ainda que o mercado mundializado indique não haver razões para o país se
preocupar com a segurança alimentar, já que a obtenção de alimentos pode ser assegurada
com importações a preços muitas vezes inferiores ao custo da produção interna, há questões
estratégicas que não podem ser desconsideradas, a não ser que continuemos tendo como
horizonte a ‘utopia do possível’, nos termos do stablishment.
Tratemos, pois, da questão da soberania alimentar, inalienável nas políticas
estratégicas dos países desenvolvidos e que, aliás, vem determinando os sucessivos
fracassos nas tentativas de regulação do comércio internacional, como ocorreu com a

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“Rodada de Doha” de junho de 2007. Nesse caso, fracassaram as negociações porque


os países desenvolvidos, embora desejassem a liberalização dos mercados para os produtos
industriais, não cederam à pressão para diminuir os subsídios agrícolas, bandeira daqueles
países, entre eles o Brasil, que há muito abdicaram da prerrogativa de subsidiar a sua
produção como forma de assegurar, em primeiro lugar, o abastecimento, a geração e a
retenção interna da renda com equidade.
Mesmo que se argumente que a soberania alimentar deve ser considerada como
secundária em relação a outras políticas estratégicas, não se poderá perder de vista a
questão da renda interna, fato aliás que demarca o nível e a intensidade da economia do
país.
Nesse sentido, não se equivoca Navarro (2007), quando afirma que a reforma
agrária foi uma bandeira vinculada ao anseio de consolidação de um mercado interno
como caminho para o desenvolvimento do país. Esquiva-se, contudo, quando não aborda
os desdobramentos do reiterado abandono dessa bandeira.
De acordo com Furtado (1984), a difusão do progresso técnico e o aumento da
produtividade, que indubitavelmente caracterizam setores do agronegócio, entre outros,
não eliminou as mazelas sociais, antes as aprofundou, em virtude da introdução de processos
produtivos capazes de aumentar a eficiência na utilização de recursos, mas voltados ao
atendimento da demanda de apenas uma parcela da população.

Basta observar esse quadro para perceber que o sistema industrial brasileiro
não poderá derivar das exportações seu principal impulso de crescimento.
Ou ele recupera sua vocação de formador do mercado interno ou terá de
modificar sua estrutura, renunciando a alcançar a autonomia requerida para
auto-sustentar seu próprio crescimento. (FURTADO, 1983, p. 86)

Ensina esse autor que o centro dinâmico da economia de todos os países ditos
desenvolvidos está assentado no mercado interno, fato fundamental, de acordo com sua
perspectiva, inclusive para o desenvolvimento tecnológico e a respectiva capacidade
competitiva. É por essa razão que enquanto alguns propalavam que o tempo da reforma
agrária havia passado, esse autor indagava ao país qual o caminho a seguir: o do
fortalecimento do mercado interno, baseado na distribuição de renda, ou da inserção
subordinada no mercado mundial, mesmo contando com setores competitivos
tecnologicamente, porém extensões das empresas multinacionais, que contribuem para o
desenvolvimento social do seu país de origem, e não onde instalam suas filiais.
Esse é um dos sentidos da reforma agrária. No atual estágio técnico, em que a
composição de capital constante do setor produtivo permite um descarte progressivo da
força de trabalho, a agricultura é o setor da economia que possui o maior potencial de
absorção de mão-de-obra, fator fundamental para a geração de renda, a base do mercado
interno que nos fala Furtado.
Entretanto, uma ressalva deve ser feita, já que nesse aspecto, é a pequena

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propriedade que poderá fazê-lo. De acordo com Oliveira (2003, p. 129), a pequena
propriedade responde por 86,6% de todos os empregos e ocupações no campo. Por outro
lado, a grande propriedade, a despeito da área controlada, é responsável por apenas 2,5%
deles.
Por isso, discordamos de Navarro (2007, p. 3) quando assevera que:

Nem mesmo existe uma demanda social digna do nome, cada vez mais
raquítica. Quando muito, a reforma agrária concentrada exclusivamente no
chamado ‘polígono das secas’ ainda seria justificável, pois reduziria a
incidência da pobreza rural.

Diria Prado Júnior (1981) que as disposições contra a reforma agrária somente
adiam a constituição de um pacto social que possa alterar o equilíbrio de forças políticas
capazes de viabilizar, de fato, políticas públicas aptas ao fomento adequado da pequena
produção. Na atualidade, isso não poderia ficar mais patente do que nas formas como
vêm sendo geridos os recursos e respectivas dívidas do setor agrícola.

[...] em 2003, dez grandes grupos econômicos multinacionais obtiveram


R$ 4,3 bilhões do Banco do Brasil, quase o mesmo valor acessado por 1,3
milhão de camponeses (R$ 4,5 bi). Além da proporção desigual, a gestão de
recursos voltados à política agrícola é marcada pela concentração e
favorecimento ao capital internacional. Segundo a Via Campesina, no ano
passado, R$ 4,6 bilhões foram destinados em financiamentos a 27 grandes
grupos econômicos. (VALENTE, 2007)

Embora grande parte dos recursos destinados à agricultura acabe nas mãos dos
grandes proprietários, é esse segmento que engrossa uma dívida que se arrasta ano a
ano. De acordo com Valente (2007), na safra 2004/2005, as grandes propriedades
absorveram 39,5 bilhões de reais do crédito agrícola, enquanto as pequenas tiveram a seu
dispor sete bilhões. Vimos, contudo, a resposta em termos de produção de ambos os
segmentos.
Já o plano safra 2007/2008 prevê a disponibilização de 58 bilhões de reais, com
uma redução da taxa de juros para 6,75% ao ano. Entretanto, neste ano a dívida dos
produtores superou a casa dos 100 bilhões de reais. E como trata-se de uma dívida
sistematicamente rolada, novamente os ruralistas mobilizaram-se para garantir novas
rolagens e mais crédito em conta.
Esse astronômico valor mostra o quanto o setor vem sendo eficiente em não saldar
os débitos e ampliar a participação no fundo público. Como a bancada ruralista é, desde
sempre, maioria no Congresso Nacional, sistematicamente vem conseguindo impor suas
demandas.
A partir de uma negociação com o governo de Fernando Henrique Cardoso, no
ano de 2000 os grandes produtores conseguiram que as dívidas só começassem a ser

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pagas cinco anos depois de contraídas, obtendo um prazo de até 25 anos para saldarem
os compromissos. De acordo com Valente (2007), em 2002, outro acordo estipulou novos
subsídios e juros fixos de 3% ao ano, enquanto a taxa Selic, que regula os índices de juros
no país, oscilava entre 15 e 20%. A diferença, a chamada equalização de juros, passou a
ser bancada pelos cofres públicos e ter o Tesouro Nacional, que nada mais é que a
reserva de dividendos formada a partir da arrecadação de impostos da população, como
avalista. Ou seja, se os produtores não pagarem a dívida, cabe ao governo fazê-lo.
Portanto, essa é uma evidência da estratégia de socialização das perdas por meio
do acesso ao fundo público. O rentismo de que nos falam Oliveira (2003) e Martins
(1995) tem aí uma de suas melhores expressões, pois a manutenção da grande propriedade
tornou-se um dos caminhos privilegiados para o acesso aos recursos públicos.
Enquanto não formos capazes de construir, por meio do circuito conhecimento
científico - conhecimento comum, um diálogo consistente sobre os fundamentos da questão
agrária, prevalecerão assertivas que ocultam o essencial e projetam o que convém aos
setores hegemônicos da sociedade, os quais têm na propriedade concentrada da terra um
de seus sustentáculos primordiais. O negócio energético promete ser mais uma ocasião
para o saque anunciado.

Considerações Finais

A monopolização da terra semeada nos primórdios da colonização germinou, deitou


raízes. E por isso deu frutos, que ora os colhemos. Mas que contrariamente à generosidade
dos frutos da terra lavrada, são frutos gerados pela eterna espera. Espera pela justiça
social que nos foi negada, pela cidadania que nos foi arrancada, pela segurança que nos
foi roubada. Enfim, esperas, que tornam a esperança num país social e ambientalmente
sustentável uma utopia.
A não ser que esse país se reconcilie com seu povo, e isso supõe o encontro com
o território negado pelas estratégias históricas de cerceamento da terra, implementadas
pelas oligarquias, travestidas ao gosto de cada época. E que na atualidade vestem a
roupagem da eficiência produtiva redentora do agronegócio. Afinal, poderíamos prescindir
dele?
Não, seria a resposta, se aceitarmos como verdadeiro o pressuposto de que a
racionalidade técnica, leia-se maior eficiência produtiva, supõe propriedades extensas.
Não, também seria a resposta, se fossem as grandes propriedades as principais
responsáveis pela produção agrícola no Brasil.
Mas nesse país em que o Presidente da República denomina “heróis” aqueles que
extraem dos trabalhadores a energia vital que só os senhores ousaram extrair de seus
escravos não pode haver espaço para (in)certezas.
Também não pode haver espaço para saudades, pois até escravos temos, e em
profusão, invariavelmente vinculados ao agronegócio e predominantemente nas áreas de

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fronteira agrícola, mas não apenas nelas.


E no rol de fatos sinistros, a morte grassa, igualmente intensa nas áreas recém
incorporadas à agricultura de escala, como demonstraram estudos publicados em 2007,
em que ao lado de índices que nem países em guerra exibem, como os 165,3 assassinatos
por 100.000 habitantes (Colniza-MT), a prosperidade é maculada pela aliança
desmatamento e morte. De acordo com o mapa da violência no Brasil, 61 dos 100
municípios com os maiores índices de desmatamento são também os que apresentam as
maiores taxas de assassinatos no país. E não se poderá invocar o fetiche da violência
urbana para explicá-las, pois muitos de seus núcleos urbanos são menores que um bairro
qualquer de nossas metrópoles, surpreendentemente mais seguras que esses quintais do
latifúndio.
É por isso que afora a defesa das estruturas agrárias que aí estão, por aqueles que
delas se beneficiam ou com elas se identificam, e que certamente recebem como dádiva
a demanda ora gerada pela necessidade da humanidade em encontrar fontes renováveis
de energia, cabe indagar:
Que tipo de Brasil teremos, ante os novos cenários mundiais desenhados pela
questão energética? Um Brasil de seres humanos reduzidos a condições de vida similares
a dos escravos do século retrasado? Um país acuado pela violência de que é portador o
latifúndio, agente da morte nos rincões e da inclusão precária, para não falar em exclusão,
no restante do país, e que igualmente reverbera em violência?
Por que é gigante por natureza, natureza agora a ser apropriada na perspectiva da
energia renovável, o Brasil está diante de mais uma oportunidade histórica de questionar
a sustentabilidade do berço esplêndido em que repousa a oligarquia, oculta em diversas
máscaras, até porque no Brasil grandes proprietários são também grandes comerciantes,
industriais, banqueiros e políticos de carreira.
Mais uma vez nos é dada a possibilidade de escolher o caminho da partilha fundiária,
viável como nunca, dado o cenário promissor da produção energética. Na lógica camponesa,
poderá gerar, além da energia, alimentos, renda, cidadania. No modelo monopolista, mais
um capítulo da tragédia agrária brasileira.

Referências Bibliográficas

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Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 14 de Fevereiro de2008

114
Resumo: Este estudo está centrado na ideologia do discurso do
desenvolvimento a ser apreendida nas relações contraditórias do
DESENVOLVIMENTO espaço do capital. Compreende-se que o discurso do
LOCAL COMO desenvolvimento a partir dos anos 1980 direcionou uma reflexão
sobre o processo histórico-social que faz do Banco Mundial a
SIMULACRO DO instituição chave do ajuste estrutural e o seu papel veiculador da
ENVOLVIMENTO: O ideologia do desenvolvimento local. Engendrada pela mundialização
NOVO-VELHO SENTIDO do capital, a dimensão local traz o caráter dinâmico do território,
sustentado na idéia de potencialidade latente. Os lugares se tornam
DO DESENVOLVIMENTO interessantes, atrativos e úteis à acumulação e garantem mobilidade
E SUA FUNCIONALIDADE ao capital. O discurso do desenvolvimento, longe de ser uma questão
PARA O SISTEMA DO da promoção do bem-estar da sociedade, tem um caráter ilusório ao
cumprir uma importante função ideológica: a legitimação das
CAPITAL relações de produção capitalistas que operam as diferenças, ou, em
outras palavras, dirigem a produção da pobreza.
Palavras-chave: Território, desenvolvimento regional,
desenvolvimento local, desenvolvimento desigual e combinado,
LOCAL DEVELOPMENT AS Banco Mundial
SIMULATION OF INVOLVEMENT: THE
NEW-OLD MEANING THE Abstract: This study is centered in the ideologic speech of the
DEVELOPMENT AND ITS implied development apprehended in the contradictory
FUNCTIONALITY TO THE SYSTEM OF relationships of the capital space. Investigated that understanding
CAPITAL of the speech of the development starting from 1980 addressed a
reflection on the historical-social process that makes the World
EL DESARROLLO LOCAL COMO Bank the key institution of the structural adjustment and its
SIMULACIÓN DE PARTICIPACIÓN: EL transmitter paper of the ideology of the maintainable local
NUEVO SIGNIFICADO DE EDAD EL development expressed in the use of the territory for the capitalist
DESARROLLO Y SU FUNCIONALIDAD exploration as manifestation of the regional development.
AL SISTEMA DE CAPITALES Engendered by the mundialization of capital, the local dimension
brings the dynamic character of the territory, sustained in the idea
of latent potentiality. The places become interesting, attractive and
useful to the accumulation and guarantee the capital mobility. The
speech of the development, far away from being a subject of the
promotion of the well-being of the society, shows its illusory
Josefa Bispo de Lisboa character while accomplishing an important ideological function:
the legitimation of capitalist production relationships that operates
Professora Dra. do Núcleo de the differences, or, in other words, drive the poverty production.
Geography has, the paper of watching the unequal and combined
Geografia – Universidade Federal character of the development, corroborating for the elucidation and
de Sergipe - Campus Itabaiana overcoming the contradictions.
Key-words: Territory, regional development, local development,
unequal and combined development, Word Bank
E-mail: josefalisboa@uol.com.br
Resumen: Este estudio se centra en el discurso de la ideológicos
implica el desarrollo detenido en el contradictorias relaciones de la
capital espacial. Investigó la comprensión de que el discurso del
desarrollo a partir de 1980 dirigió una reflexión sobre el proceso
histórico y social que hace el Banco Mundial la clave de la institución
Alexandrina Luz de ajuste estructural y su papel de transmisor de la ideología de la
mantenible desarrollo local expresado en el uso del territorio para la
Conceição exploración capitalista como manifestación del desarrollo regional.
Engendrado por el mundialization de capital, la dimensión local
Dra. do Núcleo de Pós- aporta el carácter dinámico del territorio sostenido en la idea de la
potencialidad latente. El convertirse en lugares interesantes, atractivo
Graduação em Geografia – y útil a la acumulación y la garantía de la movilidad del capital. El
Universidade Federal de Sergipe discurso del desarrollo, lejos de ser un tema de la promoción del
bienestar de la sociedad, muestra su carácter ilusorio en tanto que el
cumplimiento de una importante función ideológica: la legitimación
E-mail: aluz@oi.com.br de las relaciones de producción capitalista que opera las diferencias,
o, en otras palabras, impulsar la producción de la pobreza. Geografía
tiene, el papel de mirar del carácter desigual y combinado del
desarrollo, corroborante para el esclarecimiento y la superación de
las contradicciones.
Palabras clave: Território, el desarrollo regional, desarrollo local,
desarrollo desigual y combinado, Banco Mundial

Terra Livre Presid ente Prud ente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 115-132 Ago-Dez/2007
115
LISBOA, J. B; CONEIÇÃO, A. L. DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO...

Introdução

O artigo analisa a ideologia do discurso do desenvolvimento local no Brasil, a partir


dos anos 1990, direcionando uma reflexão sobre o processo histórico-social que faz do
Banco Mundial uma instituição fundamental para a implementação das modificações que
dão conta do ajuste estrutural e do falacioso discurso do desenvolvimento local. Engendrada
pela mundialização do capital, a dimensão local traz o caráter dinâmico do território,
sustentada na idéia da potencialidade dos lugares, que se tornam interessantes, atrativos
e úteis ao movimento do capital.
Nesse ponto, interessa mostrar que a face mais visível do declínio do nacional-
desenvolvimentismo no Brasil, durante os anos 1980, foi a crise da dívida, que levou o
Estado ao esgotamento financeiro minando sua capacidade de planejamento. Tendo em
vista a importância dos investimentos públicos, a repercussão da crise da dívida no Brasil
foi decisiva para a estagnação econômica e a conseqüente dificuldade de investimento
tanto para o crescimento, quanto para o atendimento social.
Este quadro exige a compreensão da crise do capitalismo que se revela em meados
dos anos 1970, em um período de transição entre o padrão de acumulação fordista e a
inauguração da economia flexível em escala internacional, trazendo desdobramentos para
o modelo de desenvolvimento no país.
Nesse contexto, a especulação passou a ser acatada como contrapartida à queda
da rentabilidade do capital na esfera produtiva, já que sem oportunidades de lucros no
setor produtivo, os capitalistas se dirigiram para os investimentos financeiros especulativos
(WALERTEIN, 2003).
Para Chesnais (2003), à proporção que o aumento nos ganhos de produtividade e
o crescimento associaram-se à especulação financeira, a demanda nada mais foi do que
uma criação do regime, sustentada no crédito, enquanto os investimentos são mantidos
por empresas do setor financeiro, garantindo altas taxas de produtividade e crescimento
e, ao mesmo tempo, expressando a instabilidade da financeirização.
A mundialização do capital, que se realiza sob a égide do capitalismo financeiro,
exerce um poder mundial sem precedentes, provocando o desemprego estrutural, seja
em decorrência do declínio nos investimentos produtivos, seja devido aos avanços no
campo da informatização, ou pela preferência pela liquidez em curto prazo (as empresas
optam por aplicar nos mercados financeiros).
As forças econômicas dominantes colocaram um Novo Direito Internacional a
seu serviço, elaborado para costurar a defesa das grandes corporações, garantindo-lhes
o máximo de proteção e de direitos, e ainda procurando inutilizar os direitos nacionais
como, as leis e os regulamentos que garantem a proteção aos consumidores (BOURDIEU,
2001).
As instâncias internacionais como o FMI, o Banco Mundial e a OMC administram
este denominado Novo Direito Internacional e, de modo invisível, também os governos

116
Terra Livre - n. 29 (2): 115-132, 2007

locais. O espaço de decisão permanece desafiado por relações externas e exteriores a


ele, são relações que expressam o jogo de forças inerentes aos interesses das novas
instituições de poder e aos interesses da sociedade.
Não obstante, a atuação predatória da ofensiva neoliberal, ao viabilizar o Novo
Direito Internacional, garantiu maior movimento do capital que se tornou mais flexível,
nestes termos, fugidio, fugaz, tornando-se ‘virtude’ deste novo tempo histórico. Nesse
movimento, o capital se deslocou atrás de garantias de acumulação, apropriando-se de
territórios para o seu consumo (CASTELLS, 1999).
Nesta conjuntura, dada a rapidez da técnica e da informação, há a redução das
barreiras espaciais, assegurando poder de exploração de parcelas do espaço nas suas
diferenças em termos de disponibilidade de materiais de qualidades específicas e custos
inferiores, infra-estrutura, oferta e controle do trabalho sob condições de acumulação
mais flexíveis. As diferenciações de condições de receptividade, conhecimento, técnica,
ciência, estratégias de acumulação das elites locais, redes de poder e influência, também
são requisitos de valorização do espaço. Nota-se que a produção muda de lugar ou de
região e que quanto menores são as barreiras espaciais, mais as variações do lugar se
tornam atrativas ao capital (Ibid).
Em tais circunstâncias se observa que, embora o mundo tenha se tornado menor,
mais curto e mais denso, dado o avanço técnico-informacional, ele se tornou mais complexo,
há nele uma centralização do poder, do dinheiro e, prioritariamente, das decisões, tudo
isso ignorando as forças sociais. A mundialização do capital revaloriza as vantagens
localizacionais, reforçando a competitividade entre os lugares, dessa forma, manifesta
sua iminência em todos os lugares. Cada lugar específico se organiza colocando suas
vantagens localizacionais a serviço do momento da reprodução.
As especificidades que estabelecem a diferenciação entre os lugares resultantes,
tanto dos processos da natureza, como dos processos econômicos e sociais, tiveram seu
valor relativizado pela mundialização do capital. As redes e fluxos complexificaram os
lugares, de modo que a criação e o desfazer dessas parcelas do espaço se processam
com enorme rapidez. Novos territórios são construídos e desconstruídos a depender da
função que vão assumindo para a reprodução do capital.
Para o caso dos países em desenvolvimento que mostraram durante os anos 70,
ritmos de crescimento econômico superiores aos do mundo desenvolvido (embora tal
desempenho tenha se baseado no modelo primário-exportador e na substituição de
importações), o acesso ao financiamento desse desenvolvimento se esgotou nos anos 80,
unindo circunstâncias desfavoráveis adversas. Além do endividamento externo e do
esgotamento do padrão de crescimento econômico interno, esses países tiveram que
enfrentar os desafios da nova revolução tecnológica e organizativa da produção flexível.
Este novo modelo alcançou a década de 1980, nos países em desenvolvimento,
desvendando as contradições do sistema, à medida que houve uma redução dos
empréstimos, em conseqüência ocorreu uma eclosão da crise da dívida nesses países. Os

117
LISBOA, J. B; CONEIÇÃO, A. L. DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO...

novos empréstimos que passaram a ser realizados junto ao FMI (recursos de bancos
privados) exigiram dos países tomadores, as Cartas de Intenção, agravando em muito a
conjuntura.
Assim, a mobilidade geográfica do capital passou a ser central na nova dinâmica
do sistema de acumulação e da produção do espaço, expressando sua dinâmica decisiva
para a gestão do estilo de desenvolvimento, que passou a ser implantado.
Neste contexto, a mudança do discurso do desenvolvimento sob esses novos
pressupostos que o capitalismo vem se configuração nas últimas décadas acentua sua
lógica destrutiva, que concebe:
- a substituição do padrão taylorista e fordista pelas formas produtivas flexibilizadas
e desregulamentadas com foco nos territórios;
- a desregulação neoliberal privatizante e excludente que vem solapando o modelo
de Estado de bem-estar social:
Trata-se de uma transição com especificidades que se explicitam nos campos
econômico-social, político e ideológico.
Demarcando o campo político e econômico-social, a ofensiva foi definida para
fomentar a competitividade entre Estados e empresas e gerar consumo, postulados em
um modelo de desenvolvimento que privilegia a inserção internacional fundada em
operações que se realizam dissociadas das demandas internas. Desenvolvimento é então
apreendido como integração econômica mundial e, esta se materializa a partir da
espacialização da globalização. A globalização, por sua vez é concebida como um
paradigma1 . É como se, de fato, existisse um mundo homogêneo ou em processo de
homogeneização econômica e social.
No campo ideológico, o neoliberalismo lança mão da crença de que as relações
capitalistas são as únicas formas de relações sociais historicamente possíveis, dando ao
mercado a força de regulador livre, equilibrador e justo dos interesses e relações sociais.
O neoliberalismo soube enfrentar o desafio de inculcar suas fórmulas dispondo das
teses de Friedrich Hayek e Milton Friedman que expressam a idéia básica do livre mercado
e da intervenção estatal como um risco para a liberdade individual e o caminho mais
seguro para a imposição de regimes autoritários. Não obstante, é preciso reconhecer que
a aceitação desses seus discursos não se produziu no acaso, mas tomados pela onda
privatista, concernente à reestruturação produtiva em curso. A tese da liberdade do mercado
é a de que o setor público, ou seja, o Estado pela sua ineficiência é o responsável pela
crise2 .

1
Neste domínio, Fiori (1998) examina a globalização como uma apologia ideológica. No dizer de Fiori, o
termo globalização mascara uma lógica do desenvolvimento que é, antes de mais nada, não eqüitativo e
concentrador, e mostra-o como o orientador do novo tipo de desenvolvimento que precisa acontecer.
2
Nessa direção, durante o Consenso de Washington em 1989, esse discurso consolidou as macro-políticas
econômicas e as políticas setoriais que, viabilizariam o programa de estabilização e as reformas para ajustar as
economias dos países devedores às condições de pagamento de suas dívidas com credores externos.

118
Terra Livre - n. 29 (2): 115-132, 2007

Essa tese, subjacente ao quadro atual do capitalismo contemporâneo tem orientado


o debate sobre o futuro dos Estados, obrigando a questionar se na nova ordem mundial
haverá lugar para um sistema político global amparado pelos Estados-nacionais.
Trata-se de uma conjuntura que impõe mudanças de paradigma técnico econômico
e organizativo da produção e adaptações sociais, culturais e institucionais, dentre as quais
cabe citar: a reforma e descentralização do Estado; um destaque para o papel destinado
ao território como ator do desenvolvimento e, não somente, como espaço ou suporte
passivo do desenvolvimento de atividades; e a emergência do desenvolvimento local como
cenário econômico, político e social, exigindo um redirecionamento integrado das políticas
públicas, voltadas para espaços territoriais.

A funcionalidade do Estado na lógica do capital financeiro

Uma vez que as relações econômicas são reguladas pelo mercado, a natureza do
Estado e a sua função, enquanto instituição reguladora e ‘promotora do bem-estar social’
e econômico muda. Este Estado deve conduzir uma economia de mercado perante o
sistema financeiro internacional, com ampla abertura comercial, e privatizações.
A inserção dos países nesse processo se realizou de forma assimétrica e
hierarquizada e vem se traduzindo em limitações à autonomia das políticas nacionais dos
Estados (BELLUZO, 2001).
Na busca por novos mercados e pela internacionalização da produção, a redução
de fronteiras garantiu a flexibilidade necessária às novas articulações, transformando,
principalmente os países menos desenvolvidos, em meros consumidores de produtos
industriais e em fontes de matéria-prima e mão-de-obra barata.
Esta estratégia, facilitada a partir da queda da guerra fria, da implementação do
Novo Direito Internacional, da hegemonia das agências financeiras multilaterais dirigiu
uma reestruturação na economia mundial, que passou a ser dominada por investimentos
à escala global, processos de produção flexíveis e desregulação das economias nacionais.
Nesta conjuntura, as economias nacionais deveriam abrir-se ao mercado mundial
adequando seus preços aos preços internacionais; a exportação deveria ser priorizada;
as políticas monetárias e fiscais tinham que ser orientadas para a redução da inflação e
da dívida pública; a regulação estatal tinha que ser mínima.
Os países periféricos tiveram que se submeter a essas exigências como condição
de renegociação das dívidas externas com as agências financeiras multilaterais. Esta
condição viria garantir o retorno dos investimentos.
Para Boaventura de Souza Santos (2002), o Estado Nação parece ter perdido a
sua centralidade tradicional enquanto unidade privilegiada de iniciativa econômica, social
e política. Observou-se que os Estados, ao buscarem fazer alianças, foram minando sua
soberania dentro de uma lógica justificada por meio do argumento da ineficiência do
Estado, que além de tudo, se encontrava falido. Tal argumento ia legitimando as medidas

119
LISBOA, J. B; CONEIÇÃO, A. L. DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO...

que levaram à quebra dos monopólios públicos, as privatizações, etc.


Os Estados nacionais das economias periféricas absorveram as orientações
emanadas de um poder global que toma as decisões, através de instituições e organismos
multilaterais (OMC, Banco Mundial, FMI, BID). A própria ONU, considerada a mais
abrangente organização multilateral mundial está sendo dominada pela mesma lógica
mercantil e de poder. O Novo Direito Internacional, ou seja, a criação de novas regras,
para os fluxos de capitais, mercadorias, serviços e informações, política de enxugamento
do estado, privatizações, desregulamentações, etc., sustenta a condição do funcionamento
do momento atual da reprodução do capital, como observa Pierre Bourdieu

é a lógica do campo e a força própria do capital concentrado que impõem


relações de força favoráveis aos interesses dos dominantes. Estes detêm os
meios de transformar essas relações de força em regras do jogo
aparentemente universais através das intervenções falsamente neutras das
grandes instâncias internacionais (FMI, OMC) por eles dominadas ou sob
o véu das representações da economia e da política que estão em condições
de inspirar e de impor e que tinham encontrado sua formulação mais bem
acabada no projeto do AMI (Acordo Multilateral de Investimento): essa
espécie de utopia de um mundo livre de todas as coerções do Estado e
entregue apenas à arbitrariedade dos investidores dá uma idéia do mundo
realmente globalizado que a internacional conservadora dos dirigentes e
dos executivos das multinacionais industriais e financeiras de todas as nações
visa impor ao apoiarem-se no poder político, diplomático e militar de um
Estado imperial pouco a pouco reduzido a funções de manutenção da ordem
interna e externa (2001, p. 114).

Mas a forte presença dessas organizações, de forma contraditória e combinada,


confirma o que a história recente do capitalismo tem demonstrado. Na medida em que os
Estados continuam contribuindo decisivamente para o funcionamento do mercado,
sobretudo, nos países centrais (onde a atuação dos governos tem sido fundamental para
o bom funcionamento dos negócios na esfera dos mercados), eles sustentam um papel
decisivo na disputa/manutenção de posições no espaço econômico mundial (SOUZA,
2000)3 .
Nas nações dominantes o Estado vem assumindo a defesa dos interesses não só
dos seus próprios capitais, mas do capital de origem estrangeira, quer dizer, quando atrai
investimentos externos, o estado assegura vantagens em relação a esse capital forâneo,
que deve se articular ao fortalecimento do capital local. Entretanto, coisa bem diferente
se passa no caso dos estados dos países periféricos. Nestes casos a mundialização do
capital tem tido o efeito de reforçar a subordinação aos interesses do capital financeiro

3
Os Estados Nacionais continuam a ocupar papel crucial na defesa dos seus capitalistas no cenário internacional.
Eles criam as condições para que os fluxos se realizem e funcionam como mola propulsora, promovendo a
abertura das economias nacionais para mercadorias e capitais produtivos e especulativos.

120
Terra Livre - n. 29 (2): 115-132, 2007

internacional, dessa forma, se tornando mínimo para as questões nacionais (Ibid). Nas
palavras de Mészáros (2003), o sistema do capital não sobreviveria uma única semana
sem o forte apoio que recebe do Estado.
Destarte, se o Estado capitalista aparece como o ‘comitê executivo’ do mercado
(conforme destaca Francisco de Oliveira), do que o árbitro neutro, colocado acima das
classes sociais (como em Hobbes e Locke), isto se deve às articulações do capital
financeiro dentro de cada estado nacional. Sem as políticas de desregulamentação, de
privatização e de liberalização do comércio empreendidas pelos governos nacionais, o
capital financeiro e os grupos internacionais não teriam conseguido romper os obstáculos
e explorar os recursos existentes e necessários à sua ampliação.
Desse modo, a eliminação dos Estados nacionais não é procedente para o atual
momento do capitalismo, mas por outro lado, nos países de economia periférica, eles
precisam ser desmantelados para abrigar as determinações dos grandes grupos financeiros
que operam independentemente da soberania nacional.
Para Pierre Bourdieu (Op. cit.), esta operação que leva à globalização não causa
uma homogeneização, mas ao contrário, leva à extensão de um pequeno grupo de nações
dominantes sobre o conjunto das praças financeiras nacionais. Enquanto para muitos a
globalização se coloca como inexorável e irreversível, para outros, a globalização é apenas
uma retórica pregada pelos governos que precisam justificar sua submissão ao processo
de financeirização da economia.
Como principal conseqüência se tem o aumento das desigualdades de oportunidades
entre pessoas e entre países ricos e pobres, expressando exatamente o contrário do que
propõe o discurso da homogeneização, portanto, “é vão esperar que essa unificação
garantida pela ‘harmonização’ das legislações conduza exclusivamente por sua lógica, a
uma verdadeira universalização” (Ibid, p. 121). Essa integração na realidade tende a
enfraquecer os poderes locais, regionais e nacionais, sendo o dado mais perverso neste
plano, o processo de naturalização da exclusão. Essas condições aprofundam a
dessocialização do capital e libertam-no dos vínculos sociais que garantiram certa proteção
social na fase do Welfare State.
Sob o manto da descentralização, o Estado, que se tornava mínimo para a defesa
do nacional no Brasil, realizou, durante a década de 1980, reformas políticas importantes,
particularmente a retomada das eleições diretas e as deliberações da Constituição Federal
de 19884 .
A democratização e a descentralização propostas pela Constituição de 1988
legitimam a alteração das bases de autoridade dos governos. Nesse contexto, a
descentralização foi compreendida como distribuição das funções administrativas entre
os níveis de governo.

4
Considerava-se que a excessiva centralização do regime militar negava a participação da sociedade civil nos
processos decisórios que, associada à cultura de corrupção, produzia consenso em torno da emergência de um
modelo de descentralização.

121
LISBOA, J. B; CONEIÇÃO, A. L. DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO...

A descentralização viria permitir a introdução de regras de comportamento privado


no setor público, de modo a estabelecer maior concorrência no âmbito de cada esfera
descentralizada de governo e propiciar condições para a cobrança de serviços públicos
eficientes por parte da população. Trata-se de um novo paradigma de organização que
pressupõe a eficiência do setor público.
No conceito de Benett (1990), a descentralização consiste na redistribuição de
recursos, na criação de espaços de decisão e competências, e em atribuições de
responsabilidade e de poder político-econômico em cada formação econômico-social
específica. Nota-se que o elemento decisivo nesta conceituação é a redistribuição de
poder político-econômico. Constitui desse modo, uma resposta do Estado à necessidade
de atender à multiplicidade de demandas territorialmente diferenciadas, ou seja, de
enfrentar o desafio de articular o geral com as particularidades na gestão pública.
Esta redemocratização e/ou descentralização, associada ao contexto da crise do
Estado inaugura um período de transição com a ruptura do padrão de financiamento do
setor público e a perda por parte do Estado de definir interesses regionais que possam
fortalecer as regiões e minimizar suas diferenças. Ao mesmo tempo, fortalece-se o discurso
da presença necessária da sociedade civil, esta que é chamada para administrar suas
próprias demandas.
Surge um novo ordenamento, onde as iniciativas locais devem constituir a expressão
da descentralização e, onde a sociedade civil é chamada para ser protagonista. A
descentralização emerge como mecanismo de redistribuição do poder político que pode
permeabilizar o regime às pressões e à participação dos setores populares. Significa
também um instrumento de implementação sobre determinada base territorial de um
desenvolvimento em favor das maiorias sociais, mediante a redistribuição espacial de
recursos (RIKER, 1987).
Na prática, as políticas públicas enquanto ações direcionadas para modificar uma
determinada realidade territorial, têm de um lado, a população sendo convidada a definir
prioridades, e do outro, as decisões relacionadas a recursos ainda fortemente concentradas.
O destaque é para o território enquanto ator do desenvolvimento. Entra em vigência
um modelo que visa o uso do território em decorrência dos seus potencias. Trata-se de
entender as interconexões entre o local (a comunidade) e o global (o supranacional)
trazendo para o centro dos interesses econômicos a valorização do potencial de cada
território. Os lugares são tornados territórios pelo capital e passam a apresentar a
alternativa encontrada pelo capitalismo para suprir as suas demandas, por sua vez, a
descentralização transfere para a sociedade civil (contraditoriamente, retira dela) a
responsabilidade pela eficácia desse território.

O território como ator do/no desenvolvimento

122
Terra Livre - n. 29 (2): 115-132, 2007

O capital produz territórios, à medida que desenvolve práticas espaciais visando


sua conquista/apropriação e uso, ou seja, estabelece sua territorialidade quando vai
definindo relações sociais e de produção no lugar. Esta idéia de dominação/apropriação,
pelo poder do capital, se estabelece no momento que, ao abrir novos espaços para a sua
acumulação/reprodução, o capital os torna territórios de uso e exploração em função dos
seus fins.
Assim, o território se conforma como uma estratégia de política econômica para o
crescimento e fortalecimento dos sistemas produtivos locais. O território aparece como o
local apropriado para a inovação tecnológica e organizativa e o fortalecimento do tecido
produtivo empresarial local.
À medida que a crise de financiamento da década de 1980 começa a demandar
soluções, exigindo que o Estado procure na potencialidade dos seus territórios a garantia
da produção de superávit para pagamento dos juros da dívida interna e externa, impõe-se
um redirecionamento no papel das políticas, que devem partir do território. Este deixa de
ser apenas um suporte passivo do desenvolvimento e passa a ser ator no processo de
desenvolvimento. Ele resulta da apropriação e controle por parte de um determinado
agente social. Esta apropriação não está vinculada à propriedade, mas ao controle efetivo,
legitimado ou não pela sociedade.
Milton Santos adverte que “as configurações territoriais são apenas condições.
Sua atualidade, isto é, sua significação real advém das ações realizadas sobre elas” (2001,
p. 248) e por isso não é possível pensar o território como base material, pois “deveremos
levar em conta a interdependência e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a
natureza, e o seu uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política” (ibid, p.
247). Ou seja, é o uso do território e não o território em si mesmo que o faz importante.
Enquanto existirem vantagens localizacionais nesses territórios, do ponto de vista da
reprodução, as empresas têm olhos para seus próprios fins, o que coloca a exclusão
como condição inerente à produção capitalista do espaço (MILTON SANTOS, 2001;
DAVID HARVEY, 2005 & NEIL SMITH, 1998).
Para Marcelo Lopes de Souza (1995), os territórios existem e são construídos e
desconstruídos em diferentes escalas, desde a da rua à escala internacional. Quer dizer,
sempre que houver homens em interação com um espaço, primeiramente transformando
a natureza, criando continuamente valor, ao modificar esta natureza através do trabalho,
estar-se-á também diante de um território.
As economias locais se recriam diante da articulação mundial: novas formas de
organização surgem – redes de pequenas empresas, produção flexível e descentralizada
são conectadas às forças do mercado global que enquadram os territórios em redes e
viabilizam uma globalização que se realiza pelo interesse dos grupos empresariais
detentores do controle das técnicas e da informação5 .
5
A globalização se reveste da oportunidade de inclusão ao permitir que novos lugares manifestem sua
especificidade, sua criatividade. O capital abre novos espaços, cujas características empreendedoras passam
a representar vantagens localizacionais para o capital.

123
LISBOA, J. B; CONEIÇÃO, A. L. DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO...

Sobre esse aspecto, Milton Santos (1996) salienta que a articulação em redes vem
impondo uma união vertical dos lugares, à medida que vão sendo disponibilizados créditos
internacionais para os países pobres e nessa união ocorre um acontecer hierárquico ou
uma tendência à racionalização das atividades sob o comando do mercado universal e
dos governos mundiais.

O FMI, o Banco Mundial, o GATT, as organizações internacionais, as


Universidades mundiais, as Fundações que estimulam com dinheiro forte e
pesquisa fazem parte do governo mundial que pretendem implantar, dando
fundamento à globalização perversa e aos ataques que hoje se fazem, na
prática e na ideologia, ao Estado Territorial (Ibid, p. 18).

Para Milton Santos (Ibid), a partir dessa realidade se observa que vai emergindo
no território, tanto as verticalidades - enquanto normas, regras utilitárias que colocam os
lugares no mercado mundial em benefício das relações de mercado, como as
horizontalidades, que se constituem na própria forma de organização do território em
função dos seus próprios interesses de produção e de consumo. Para esse autor, o território
hoje pode ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede. Todavia, são os mesmos
lugares que formam as redes e que formam o espaço banal. “São os mesmos lugares, os
mesmos pontos, mas contendo simultaneamente funcionalizações diferentes, quiçá
divergentes ou opostas” (Ibid, p. 16).
O lugar neste momento tem (re)surgido impulsionado pela globalização, que se
nutre das suas especificidades e dos custos, quer sejam de mão-de-obra, quer sejam de
matérias-primas ou ainda, vantagens fiscais. A reconstrução do lugar o coloca em evidência
de uma forma diferente. O lugar ganha uma capa diferente dando a impressão de ser um
campo aberto para especulações. Passa a adotar uma imagem de território dinâmico,
empreendedor, apto para receber investimentos externos.
Concentram-se os esforços em apresentar um potencial de atração de recursos
com base na imagem, nas capacidades de gerar relações positivas em torno de suas
características ambientais específicas, os atores sociais e sua mobilização, as estratégias
e projetos para o desenvolvimento produtivo local.
Aparecem os discursos do empreendedorismo, de autonomia e participação, com
a adoção de políticas públicas ditas descentralizadoras. Estas políticas racionalizam
recursos, pois se o território tem seu potencial e as comunidades, o conhecimento para
lidar com a produção - então os investimentos podem ser abreviados em função das
vantagens ali alocadas.
Para Marcelo Lopes de Souza (Op. cit), a questão primordial que deve preocupar,
não está nas características geoecológicas, nem nos recursos naturais de certa área, nem
mesmo nas ligações afetivas e de identidade entre o grupo social e seu espaço, pois os

124
Terra Livre - n. 29 (2): 115-132, 2007

territórios podem ter um caráter permanente ou uma existência periódica. Para o autor,
tudo depende dos interesses do capital num dado momento da reprodução, o que importa
é perceber como se estabeleceram a apropriação, o controle, a vulnerabilidade e
flexibilidade as quais os territórios estão submetidos.
Neste ponto, é importante salientar o caráter empreendedor dos Estados, cujos
esforços no sentido de se tornarem chamarizes dos investimentos do capital, os transformam
em gabinetes para viabilização de estratégias de atração de empreendimentos, pois
dificilmente, na contemporaneidade, “desenvolvimento algum em larga escala acontece
sem que o governo local (ou a coalizão mais ampla de forças que constitui a governança
local) ofereça como estímulo, um pacote substancial de ajuda e assistência” (HARVEY,
2005, p. 175). Promove-se um pseudo-poder de decisão para as esferas administrativas
mais próximas do cidadão. A retórica da autonomia do lugar, do respeito à gestão do e
pelo lugar torna as cidades ou os municípios atrativos6 .
Os atores locais ganham maior destaque, na medida em que conhecem melhor as
suas potencialidades (circunstâncias ambientais, econômicas, culturais e políticas)
concretas.
Dessa forma, o que se nota é que as políticas neoliberais, não apenas procuram
explorar as eventuais potencialidades dos territórios, como buscam o corte de custos por
parte dos estados nacionais, para que esses optem por acertos nos balanços de pagamento,
de modo a garantir superávit (imprescindível à remuneração dos juros da dívida interna e
externa).
Pode-se ver como a reestruturação econômica impõe adaptações pondo em
evidência a interação entre os âmbitos local e global, considerando que é o nível local que
dispõe do ambiente propício à inovação. Nestes termos, os gestores públicos são
convocados a estimular as iniciativas de desenvolvimento local com intervenções na
reestruturação dos seus sistemas produtivos, de modo que esta orientação do
desenvolvimento possa promover a revanche ao caos provocado pela globalização.
Esta possibilidade de correção dos desajustes oriundos da reestruturação produtiva
não é a mesma daquela apresentada por Milton Santos (Op. cit) quando se referia ao
espaço banal. Para Santos (Ibid), o espaço banal é o espaço de todos e este é elaborado
pelas horizontalidades, ou seja, quando o território se articula como espaço de luta dos
trabalhadores oprimidos para estabelecer a sua revanche à força das redes verticais.

A iminência do desenvolvimento local no cenário econômico, político e social

O desenvolvimento local no Brasil, como temática de estudo ganhou maior significado


na segunda metade da década de 80, com as reflexões sobre as primeiras experiências
de descentralização de políticas públicas durante o debate em torno da formulação da
6
No caso do espaço urbano, segundo Harvey (2005), os investimentos enfocam a qualidade de vida. A
valorização de áreas urbanas degradadas, inovação cultural e melhoria da estrutura urbana servem de atrações
para que esses espaços possam ser consumidos.

125
LISBOA, J. B; CONEIÇÃO, A. L. DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO...

Constituição Federal. No entanto, o local - visto sob a perspectiva de um novo enfoque de


construção do desenvolvimento, ou como base de uma nova visão de desenvolvimento,
somente surgiu na década de 1990, quando foram exercitadas diversas experiências
apoiadas por organismos internacionais, governamentais e não governamentais7 .
Atualmente, o processo de mudança em curso torna atual a reflexão sobre o local
como cenário revestido de significado, constituindo-se palco das estratégias e políticas de
desenvolvimento voltadas para a melhoria da qualidade de vida das populações. O
desenvolvimento local se coloca como uma resposta endógena às conseqüências da crise
econômica e, ao mesmo tempo, como reflexo da descentralização econômica, política e
social.
A dimensão local engendrada pelos processos concomitantes de mundialização
do capital, descentralização e mudanças no papel do Estado vem sendo interpretada
como uma comunidade de atores públicos e privados, que oferece um potencial de recursos
humanos, infra-estruturas educativas e institucionais, na qual a mobilização e a valorização
geram idéias e projetos de desenvolvimento alternativo (PRÉVOST, 1996). Daí por que
se considera que o que estrutura o local, ou seja, os relacionamentos, as redes que ligam
o pequeno mundo territorial com o mundo cultural, político, econômico e social, se constitui
o contraponto à globalização (Ibid).
Para muitos autores, a globalização questiona o padrão anterior de desenvolvimento
apoiado no Estado Nacional, o que a faz ampliar as possibilidades de desenvolvimento
local, pois as condições da globalização na dinâmica dos sistemas produtivos “ha favorecido
las vinculaciones entre los elementos funcionales y territoriales, lo que impulsa al encuentro
de las estratégias de desarrollo endógeno y de desarrollo exógeno” (VÁZQUEZ
BARQUERO, 1998, p. 23).
Segundo Barquero, o desenvolvimento econômico local se define como um processo
“de crescimiento y cambio estructural que mediante la utilización del potencial de desarrollo
existente en el território conduce a la mejora del bienestar de la población de una localidad
o un território” (Ibid, p. 16). Ao contrário da visão do desenvolvimento exógeno de caráter
redistributivo, que incentiva a atração de capitais e empresas externas para impulsionar o
desenvolvimento das localidades periféricas, o novo paradigma do desenvolvimento
endógeno ou local considera como espaço preferencial, economias de regiões e cidades,
que possam crescer utilizando o potencial de desenvolvimento presente no território.
Tem a ver com o estreitamento das articulações entre o sistema produtivo e a
sociedade, conforme as orientações emanadas na lógica do ajuste estrutural. É uma
interpretação “orientada para a ação, na qual os atores locais determinam o caminho de
crescimento da economia local através de suas decisões de investimento e de suas
iniciativas” [...] (Ibid, 2001, p. 93).

7
Merece destaque, a iniciativa do Projeto de Cooperação entre o Banco do Nordeste e o PNUD (Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento) que em 1995 deu início a um Programa de Apoio ao
Desenvolvimento Local.

126
Terra Livre - n. 29 (2): 115-132, 2007

A teoria do desenvolvimento local refere-se a organizações produtivas imersas


“em entornos que permitam formar coalizões entre atores locais – de modo a impulsionar
a inovação — bem como remete a mudanças estruturais e ao desenvolvimento local”
(ibid).
Em documento produzido para a Conferência de Istambul, J. Borja e Manuel
Castells (1997) observam que na relação global/local, o local se constitui o lócus de
gestão do global, dada a sua importância no tocante à produtividade e competitividade
econômicas, a possibilidade de integração sociocultural e da representação e gestão das
políticas públicas. De acordo com o documento, pretende-se dar um poder superior aos
governos locais que poderão desenvolver seus empreendedorismos locais, de modo a
atrair capital e ampliar sua competitividade,

os governos locais dispõem de duas importantes vantagens comparativas


com respeito a seus tutores nacionais. De um lado, gozam de uma maior
capacidade de representação e legitimidade com relação a seus representados;
são agentes institucionais de integração social e cultural de comunidades
territoriais. De outro, gozam de muita flexibilidade, adaptabilidade e capacidade
de manobra em um mundo de fluxos entrelaçados, demandas e ofertas
cambiantes e sistemas tecnológicos descentralizados e interativos (BORJA
& CASTELLS, 1997, apud BOURDIEU, 2001, p. 19).

O local adquire um sentido mais soberano e incorpora o poder da representatividade


legítima, tanto do pensar a comunidade, quanto do fazer para a comunidade. Reitera-se
que nas estratégias de desenvolvimento, a sociedade local não se comporta passivamente
aos processos de transformação em curso, ela desenvolve iniciativas a partir de suas
particularidades territoriais conforme os planos econômico, social, cultural e político.
O local como resultado da nova espacialidade imposta pelas condições da dinâmica
capitalista alia cooperação e concorrência, incorpora trabalhadores informais (como saldo
da crise estrutural), famílias, e empresas. Combina especialização com flexibilidade e
trás como elemento central a organização territorial do sistema produtivo baseado em
micro, pequenas e médias unidades. Estas devem desenvolver vantagens e produzir um
ambiente favorável a mudanças (CRUZ, 2004).
A expectativa da geração de trabalho, emprego e renda é central na perspectiva
do desenvolvimento local. Nesse campo entram as políticas públicas, que têm por objetivo
promover o desenvolvimento econômico à escala local e regional, dentro das novas
condições concorrenciais do capitalismo.
Conforme assinala Cruz (Ibid), os elementos sociais e culturais, como cooperação
ou espírito comunitário, solidariedade, tornam-se fatores de produção ou se combinam
para produzir vantagens competitivas de elevada performance. Para ele, esses elementos
acabam por produzir capacidade de realizar um processo efetivo de democratização
dentro das comunidades.

127
LISBOA, J. B; CONEIÇÃO, A. L. DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO...

Nesse aspecto, as diferenças de enfoque em relação ao modelo anterior podem


ser percebidas no quadro abaixo:

ENFOQUE CONVENCIONAL ENFOQUE ALTERNATIVO


i. Crescimento quantitativo como guia: i. Maior preocupação para:
maximização da taxa de crescimento · melhorar distribuição de
do produto interno bruto; renda;
· assegurar a
· Desenvolvimento sustentabilidade ambiental;
polarizado; · elevar a qualidade de vida;
· Crescimento hierarquizado · melhorar as relações
e cantralizado; trabalhistas;
· Controle exercido pelas · satisfazer as necessidades
classes economicamente básicas da população;
dominantes;
· Intervenções setoriais: ii. Potencialização dos recursos
pólos de crescimento, próprios:
polígonos industriais,
zonas francas; · articulação do tecido
produtivo territorial;
ii. Estratégia baseada no apoio · maior vinculação do tecido
externo: investimentos empresarial local;
estrangeiros, ajuda exterior; · mais controle do processo
de desenvolvimento
iii. Tese do transbordamento ou difusão
do crescimento a partir dos núcleos iii. Estímulo de iniciativas de
centrais: tese da locomotiva: os desenvolvimento local;
países centrais arrastam os países em iv. Desenvolvimento territorialmente
desenvolvimento; mais equilibrado;
v. Criação de ambiente institucional que
impulsione o desenvolvimento do
potencial local;
vi. Controle exercido pelas
comunidades locais;
Quadro 1 - Diferenças de Enfoque de Modelo de Desenvolvimento.
Fonte: Adaptado de: ALBUQUERQUE, Francisco. Fortaleza: BNB, 1998.

Como se pode observar, na busca do equilíbrio do desenvolvimento se supõe um


potencial de desenvolvimento endógeno, que deve ser identificado e se manter articulado
à estrutura social e política. Os gestores locais devem atuar promovendo a criação dos
espaços de intervenção, que por sua vez, devem definir uma agenda de atuação que
envolva o conjunto da sociedade organizada.
Verifica-se nesta formulação, que é o fator endógeno quem deverá transformar o
crescimento em desenvolvimento através da organização da região e, ao mesmo tempo,
a capacidade de inclusão social.
Contudo, para delimitar com maior precisão o conceito de desenvolvimento local
ou endógeno é necessário diferenciá-lo do mero crescimento econômico. A presença de
novas atividades numa região, num estado ou município pode elevar os seus níveis de

128
Terra Livre - n. 29 (2): 115-132, 2007

produção e renda, sem que, entretanto, ocorra um processo de desenvolvimento econômico


e social. Para Boisier (1993), o processo de desenvolvimento de uma região depende
fundamentalmente

da sua capacidade de organização social que se associa ao aumento da


autonomia regional para tomada de decisões, ao aumento da capacidade de
reter e reinvestir o excedente econômico gerado pelo processo de
crescimento, a um crescente processo de inclusão social e a um processo
de permanente conservação e preservação do ecossistema regional (Ibid,
p. 53).

A noção de poder local aparece fundamentada na presença de uma rede de atores


locais e das relações que configuram o sistema produtivo no qual, os agentes econômicos,
sociais, políticos e institucionais se organizam com sua cultura própria e geram uma dinâmica
de aprendizagem coletiva. Juntos, exercem a cooperação para inovar e competir, resultando
“que el desarrollo regional jamás puede ser exógeno; el atributo de la ‘endogeneidad’ és
condición sine qua non del desarrollo, pero no necesariamente del crescimiento”
(VÁZQUEZ BARQUERO, 1998, p. 20).
Não é demais assinalar os aspectos mais substantivos da nova formulação:

Impulso
Nova de estratégias
Formas de
formulação
Avanço da de
dedesenvolvimento
desenvolvimento
políticas de
descentralização
local
difuso (sistemas locais
desenvolvimento
de empresas
local

Crise do
modelo pós-
fordista

Figura 5 – Transição para o Modelo de Economia Flexível.


FONTE: Adaptado de: ALBUQUERQUE, Francisco. Fortaleza: BNB, 1998.

Trata-se de uma estratégia que deve impulsionar mecanismos de ações para a


comunidade local, a valorização do seu potencial inovador e os seus valores culturais, em
um processo de articulação produtiva entre os atores locais e os agentes do
desenvolvimento. Naturalmente, o que se faz é uma transferência de competências e de
poder, num contexto de descentralização político-territorial.
Para tal realização deve ocorrer um processo de negociação estratégica de agentes
territoriais, o apoio político administrativo dos gestores públicos locais, além da incorporação

129
LISBOA, J. B; CONEIÇÃO, A. L. DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO...

de inovações tecnológicas no tecido produtivo local. Nesta perspectiva, o território


socialmente organizado e suas peculiaridades culturais são aspectos importantes.
Observa-se, no entanto, que a heterogeneidade econômico-regional das diferentes
nações, somada às transformações estruturais pelas quais a economia mundo vem
passando resulta na falta de correspondência entre o discurso presente nos projetos que
são elaborados para o local e as práticas espaciais desenvolvidas.
Uma evidência empírica desta prática territorial pôde ser analisada em pesquisa
de campo, realizada no município de Barreira, no estado do Ceará, durante o mês de julho
do ano de 2006.
O território apropriado pelo capital vem tendo seu uso regulado para fins de um
bom aproveitamento. Um aproveitamento em estreita correspondência com padrões
adequados aos interesses do mercado. Essa prática envolve não só atores privados
empresariais e a sociedade civil em seu conjunto, mas gestores públicos, alertando para
que o desenvolvimento pretendido não é resultado exclusivo de ações empresariais, mas
depende, fundamentalmente da forma como o conjunto da comunidade organiza as
condições da produção. O espaço territorial, dado o seu potencial, é concebido como
agente no processo de adequação das condições pretendidas pela lógica de
desenvolvimento que se institui.
Esse contexto indica a emergência do território e do seu caráter empreendedor, da
autogestão, participação e poder local, como pressupostos da sustentabilidade do/no
desenvolvimento. Um conjunto de conceitos, cujos conteúdos revestem-se (seja no plano
do ‘empreendedorismo destacado’8 , seja no plano das políticas de redução da pobreza)
do clichê da valorização cultural, que impulsiona a otimização da eficiência e dos resultados.
Para Alexandrina Luz Conceição, partidos e sindicatos perdem espaço enquanto agentes
de mudanças para associações filantrópicas, organizações comunitárias e não-
governamentais.

A sociedade civil é convocada, em nome do princípio da cidadania, para


assumir o dever cívico de substituição dos poderes políticos ‘corrompidos’.
Papel exacerbado, a partir de valores estigmatizados na responsabilidade da
representação da cidadania, arregimentados nos novos pilares sociais da
mediação das esferas pública e privada, tendo a família como signo da
necessidade do amor, do respeito e da disciplina, e a comunidade como
signo da necessidade da manutenção da solidariedade, da negação da violência
(CONCEIÇÃO, 2005, p. 167).

Tudo em nome da soberania absoluta do mercado que, via de regra, demanda a


ampliação da exploração dos recursos e dos homens. Supõe uma mudança de paradigma

8
David Harvey, no livro A Produção Capitalista do Espaço, destaca que o novo empreendedorismo se apóia
na parceria público-privada, por meio da construção especulativa do lugar, em vez da melhoria das condições
num território específico, enquanto seu objeto econômico imediato (ainda que não exclusivo) (2001).

130
Terra Livre - n. 29 (2): 115-132, 2007

de gestão, que responde às necessidades de todos, à justiça social. A idéia de


desenvolvimento local trás um conteúdo de assunção pela sociedade civil do controle de
suas atividades de produção, de sua vida cotidiana e das decisões públicas, isso tudo para
dar sentido a um modelo ideal de desenvolvimento, que procura escamotear o caráter
contraditório do capitalismo (LOWY, 2000).
O discurso do desenvolvimento local trás a vantagem de possibilitar, de maneira
tranqüila, uma das formas mais perspicazes de dominação de grupos e pessoas. Em
nome de todos, dos interesses da humanidade, ultrapassa-se os direitos mais primários
das nações.
Mas, se na leitura crítica o desenvolvimento local se constitui apenas um fetiche,
ele é atrativo e artificioso e o seu caráter falaz faz com que os governos responsáveis
pela espacialização de políticas públicas, o utilize, de maneira a tornar suas propostas
consensuais, sobremodo, entre as populações carentes.
Conclui-se que, a exaltação a uma prática que reifica o local, por que atribui à
comunidade local as determinações do sucesso ou do insucesso das políticas públicas ou
programas de desenvolvimento, não admite a imersão dos lugares na competição do
capital transnacional, e nem a sua obediência aos parâmetros de exploração próprios do
modelo de acumulação que se estabelece pela subjugação ao mercado.
O discurso do desenvolvimento local com justiça social ignora a lógica da
competição e do lucro sempre crescente. Ao assumir esta leitura, observa-se que a
produção do lucro pela apropriação dos lugares é a forma da produção da pobreza,
confirmando a tese de que o domínio do espaço se realiza de forma perversamente
desigual e combinadamente contraditória, o que inviabiliza a possibilidade de um modelo
de desenvolvimento mais justo.

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Recebido para publicação dia 29 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 12 de Fevereiro de2008

132
Resumo: A escala é um poderoso recurso metodológico
A ESCALA à disposição da geografia. Porém, pequena ainda é a
discussão e problematização da escala geográfica como
GEOGRÁFICA: um objeto teórico que exige elaboração mais profunda.
NOÇÃO, Na verdade, a escala geográfica não é um a priori ou
CONCEITO OU uma mera questão de escolha do analista quando
TEORIA? delimita suas estratégias investigadoras. A definição
da escala geográfica condiciona a própria maneira de
apreender e lidar com o objeto da análise. Nesta
perspectiva, este texto problematiza a escala como
T HE G EOGRAPHIC S CALE : noção e como conceito a partir da literatura surgida
NOTION , CONCEPT OR sobre o tema nos últimos anos e aponta para a
TEORY? necessidade de construção de uma teoria da escala
geográfica, principalmente do ponto de vista de uma
Geografia Política.
L A E SCALA G EOGRÁFICA : Palavras-chave: Escala geográfica; Geografia Política;
NOCIÓN , CONCEPTO Ó
TEORÍA ? Pensamento Geográfico.

Abstract: The scale is a powerful metodological


resource to the geographers. However, the reduced
EVERALDO SANTOS problematization of the geographic scale as a
MELAZZO theoretical object demands more elaboration. In fact,
the geographic scale is not a a priori one or a mere
Docente do Departamento de question of choice of the analyst when circumscribes
Planejamento, Urbanismo e his investigating strategies. The definition of the
Ambiente da FCT/UNESP, geographic scale conditions the proper way to
Presidente Prudente apprehend and to deal with the object of the analysis.
In this perspective, this text deals with the scale as
E-mail: notion and as a concept from the literature appeared
melazzo@fct.unesp.br in recent years and points the necessity of a
construction of a theory of the geographic scale,
mainly of the point of view of a political geography.
Key-Words: Geographic scale; Political geography;
Geographic thought
CLOVES ALEXANDRE
CASTRO R e s u m é n : La escala es un recurso de gran alcance
metodológico a la disposición de la geografía. Sin embargo,
Doutorandoem Geografia no aún nos es suficiente la elaboración de la escala geográfica
Instituto de Geociências da como objeto teórico lo que requiere seguir en su
UNICAMP, Campinas. Bolsista investigación. En realidad, la escala geográfica no es a un a
CAPES priori o simplemente una cuestión de elección del analista
cuando empieza sus estrategias de investigación. La
E-mail: definición de la escala geográfica condiciona la manera
clovesacastro@yahoo.com.br apropiada de ocuparse del objeto del análisis. En esta
perspectiva, el texto pone en discusión la escala como noción
y como concepto desde la literatura especializada de los
últimos años, cuestionando y proponiendo la elaboración
necesaria de una teoría de la escala geográfica,
principalmente desde el punto de vista de una Geografía
Política.
Palabras-Clave: Escala geográfica; Geografía Política;
Pensamiento Geográfico

T e rr a L iv re P re sid e n t e P ru d e n t e A n o 2 3 , v .2 , n . 2 9 p. 1 3 3 -1 4 2 A go - D e z / 2 0 0 7
133
MELAZZO, E. S.; CASTRO, C. A. A ESCALA GEOGRÁFICA...

1. Introdução

A escala, de maneira mais ou menos visível, tem se constituído em um


poderoso recurso metodológico à disposição dos geógrafos. Porém, é possível
afirmar que se está presente desde sempre na análise geográfica, ela quase
sempre também comparece como um a priori, ou como um dado ontológico
(isto é, como se fosse um receptáculo de cada processo, antecedendo-os). Isto
fez da escala geográfica uma noção não problemática, não sujeita a investigações
mais rigorosas na medida em que se constituía, sempre, em fronteiras
hierarquizadas de espaços de diferentes “dimensões”, conduzindo segundo Castro
(2001) a um ‘uso acomodado do termo’.
Ainda deste ponto de vista, é possível afirmar que a escolha da escala da
análise restringe-se às preferências do investigador, sendo que cada qual pode
escolher, com anterioridade, qual a melhor escala (e não a escala apropriada)
para sua investigação.
Só muito recentemente esta discussão tem recebido a atenção dos
geógrafos tornando a escala geográfica um objeto em particular, como uma
realidade que precisa ser investigada por si mesma. Ou seja, é recente o debate
que traz para a análise a escala como um objeto teórico, tal como nos propõe o
já citado texto de Castro (2001), Neil Smith a partir de 1984 e os desdobramentos
desta discussão, no que poderíamos denominar de uma nova abordagem da
Geografia Política, desde então.
A que se deve este interesse atual pela escala geográfica? Seria possível
mapear este percurso de retomada da discussão das escalas na Geografia? Quais
as contribuições que esta discussão vem aportando ao debate e ao conhecimento
da realidade? Podemos nos referir a uma teoria da escala geográfica ou
estaríamos frente apenas a uma noção ou, mais além, frente a um conceito?
Antecipando uma possível conclusão (ainda precária), a escala geográfica
pode ser considerada ao mesmo tempo como uma noção, um conceito e uma
teoria (ainda que em construção). Assim, a forma como a discussão das escalas
será apropriada, compreendida e utilizada dependerá da construção teórica que
as ciências sociais em geral, ou a Geografia em particular, lhe darão.
O contexto mais amplo para a problematização desta discussão é o debate
sobre o papel do espaço na teoria social e, mais particularmente o que é o
espaço e como pode ser compreendido. Ele é necessário e inerente aos processos
sociais ou ele é contingente? É abstrato ou concreto? As diferenças espaciais
são um dado da realidade ou são formas de apreensão desta realidade, ou melhor,
elas somente ganhariam sentido se organizadas a partir de uma leitura teórica
da realidade?
Estas questões não admitem respostas fáceis. Na verdade, as clivagens

134
Terra Livre - n. 29 (2): 133-142, 2007

presentes entre os analistas e suas abordagens decorrem justamente das


diferentes respostas que dão a estas questões. Enquanto para alguns o espaço
é meramente o recipiente que contém os processos sociais ou o palco onde se
desenrolam, para outros o espaço comparece como a fôrma que modela tais
processos sociais, determinando-os.
Colocado desta maneira simplista é possível presumir que o espaço é algo
dado, objetivamente observável. Ele existe. E por existir, jogaria algum papel
(mais ou menos relevante) nos processos sociais. Porém, a simplificação do
debate desta maneira acaba por deixar de fora as contribuições teóricas que
afirmam a necessidade de que espaço e diferenças espaciais são constructos
imprescindíveis para a apropriação da realidade social, uma vez que ‘apreender
o modo de existência espacial das sociedades’ implica em tomar o espaço ao
mesmo tempo em que produto das relações sociais concretas e também como
produtor de relações sociais historicamente determinadas.
No interior deste debate que remonta às origens da Geografia moderna,
marcada por um objetivismo que procura a compreensão de fatos que seriam
geográficos por que inscritos no espaço ou produzidos em um território, são
observadas diferentes posturas metodológicas tributárias de distintas correntes
filosóficas.
Dadas as indagações apontadas, dividimos este texto em 4 itens, além
desta Introdução. No item 2, a seguir, iniciamos a discussão da escala tomando-
a como uma noção para, em seguida, no item 3 analisar sua construção enquanto
um conceito geográfico. Acreditamos que esta passagem de noção a conceito
pode ser apreendida através da proposta de Neil Smith, em um conjunto de
textos produzidos originalmente nos anos 80, isto é, datados historicamente e no
interior de um processo de ampliação das possibilidades da análise geográfica.
Em seguida, e ainda apoiados em Neil Smith a partir de uma produção mais
recente (anos 90), são anotados e comentados conceitos articuladores de uma
teoria da escala geográfica.
Por fim, à guisa de considerações finais, procuramos apontar o debate
sobre uma teoria da escala geográfica enquanto uma teoria política das escalas
geográficas.

2. A Escala como Noção

Como uma noção, ou seja, uma idéia utilizada em diferentes matrizes


científicas discursivas, a escala encontra-se associada a uma representação: o
elemento que tecnicamente permite representar a realidade, ampla, complexa
ou mesmo grande, de maneira a ser apreendida, visualizada, manejável.
É neste sentido que o termo aparece na Enciclopédia dos Iluministas, tal

135
MELAZZO, E. S.; CASTRO, C. A. A ESCALA GEOGRÁFICA...

como na passagem a seguir, citada por PETIT (1998: 89).

“Na geografia ou na arquitetura, uma escala é uma linha dividida


em partes iguais e colocada no rodapé de um mapa, de um desenho
ou de uma planta, para servir de medida comum a todas as partes
de um edifício ou então a todas as distâncias e a todos os lugares
de um mapa” (Encyclopédie, 1755).

A escala aparece, aqui, como um recurso a ser utilizado por geógrafos e


arquitetos para conhecerem o mundo. Este recurso é a medida. A medida comum
a todas as partes. A medida capaz de um duplo propósito: de um lado, estabelece
a proporção entre as coisas (o distante e o próximo, o grande e o pequeno, o
micro e o macro) e, de outro, estabelece a homologia entre a realidade e as
coisas (neste sentido, a escala nos aparece como uma relação apropriada para
as representações entre um mapa e a medida real no local).
Neste último sentido, a escala aparece, ainda, como uma estratégia de
reprodução de uma realidade anterior e já dada, restando a quem a mapeia a
tarefa de reproduzi-la.
Trata-se, aqui, de tomar a escala enquanto uma escala cartográfica, como
medida matemática, como “... uma fração que indica a relação entre as medidas
do real e aquelas da representação gráfica.” (CASTRO: 2001, p.117).
Mais que isto, uma realidade dada, penetra de maneira furtiva aqui a noção
de que a realidade seria também imutável. Ou seja, caberia ao analista a tarefa
de representá-la. Portanto, a Geografia ao tomar emprestada a noção
cartográfica de escala responde a uma visão de espaço geométrico, como um
dado a ser apreendido.
É interessante observar, como o faz o historiador Bernard Lepetit (1998,
p.90) que:

“Por trás da operação cartográfica figura um realismo. A escala do


geógrafo associa um representante, o mapa, e um referente, o
território cuja configuração está dada e precede a operação intelectual
que é a realização do mapa”.

Porém, em que pese a riqueza da análise deste historiador que lança mão
desta discussão de maneira singular e fecunda para enfrentar o debate
historiográfico que se estabelece entre a micro e macro história (debate este
que toma conta desta ciência na década dos 80), não há como simplificar o
debate da escala no seio da Geografia às contribuições da cartografia.
Na verdade, e o próprio Lepetit reconhece, se é certo que a escala nos
remete ao debate da cartografia, remete também ao debate sobre os

136
Terra Livre - n. 29 (2): 133-142, 2007

“fenômenos” e suas organizações espaciais, ou seja, à compreensão sobre a


estruturação do mundo e à complexidade do social.
Nesta perspectiva, o debate tem dado conta de que mudando a escala,
mudamos também a ótica e o nível da informação. Ou seja, cada processo social
deve ser analisado segundo sua própria escala e esta deve ser selecionada de
maneira coerente ao objeto a ser estudado.
Castro (2001), ao rever alguns geógrafos que se lançaram neste debate
(Lacoste, Grataloup, dentre outros), reconhece que paulatinamente a Geografia
vem tentando se debruçar sobre a questão e que pouco a pouco novos aportes
têm sugerido que, mais do que uma noção, a escala deve receber um tratamento
conceitual específico na Geografia.
As interrogações colocadas, de maneira a encaminhar o debate, poderiam
ser assim sumariadas: os fenômenos, processos e estruturas mudam se mudamos
a ótica e/ou nível de informação? Para cada processo existiria uma e apenas
uma escala de análise possível? Ou, pelo contrário, seria possível apreender o
mesmo processo segundo diversas escalas?
As disjuntivas acima são epistemológicas e metodológicas e dizem respeito
ao como conhecer a realidade, se esta realidade está previamente organizada
em relação ao ato de apreendê-la ou se a organização é conferida pelo ato de
pensá-la.

3. A Escala como Conceito Geográfico

Exploremos um pouco mais este caminho. Se a cada processo corresponde


uma escala específica de análise para sua apreensão, novas questões se colocam:
como conciliar o caráter discreto das escalas (apreendidas aqui como fronteiras)
à continuidade fundamental e concreta do mundo real? Como ter certeza da
existência de um processo, se não temos antes a certeza de que escolhemos a
escala correta que fornece sua interpretação ou representação? Como a variação
da escala pode dar conta da complexidade do real, que é uno e contínuo?
As respostas a estas questões somente podem ser dadas se escaparmos
de um debate que reduz as escalas a proporções (às medidas, do verbete
iluminista, plenas de conteúdos geométricos e aritméticos), pensando as escalas
como oposições, como fronteiras, como conceito que define os limites de cada
processo social. Devemos então nos lançar na discussão da escala como relação,
ou melhor, como correlação entre o que é e o que não o é, pois a representação
do mapa, enquanto representação é uma abstração de algo.
Tal relação, segundo Castro (2001) envolve basicamente quatro elementos:
o referente, a percepção, a concepção e a representação.
O referente trata do sujeito, o olhar não neutro de quem investiga a

137
MELAZZO, E. S.; CASTRO, C. A. A ESCALA GEOGRÁFICA...

realidade e a fragmenta para compreendê-la. A percepção aparece como primeira


mediação entre o conhecimento e a realidade. A concepção, tomada aqui como
entendimento, como decodificação e, portanto, conhecimento. E, por fim, a
representação entendida como maneira específica de apreensão da realidade.
Não é nossa intenção aqui problematizar esta concepção da realidade
como representação. Basta-nos, neste momento, apontar que submetida ao jogo
das representações, a escala se transforma em estratégia de revelar ou ocultar
determinadas facetas somente apreensíveis a partir da escolha deliberada do
sujeito cognoscente.
Por fim, e antes de prosseguirmos na elaboração conceitual da escala
geográfica, vale lembrar que esta é “... artifício analítico que dá visibilidade
ao real” (CASTRO: 2001, p.133), isto é, frente a complexidade do espaço,
produto e produtor de relações entre os homens, a escala confere sentido aos
fenômenos, além de se constituir em si mesma um objeto de análise.

3.1. A escala geográfica no pensamento de Neil Smith

Mais recentemente, a maior parte dos autores que discutem e se utilizam


da escala geográfica em suas análises remetem o início desta problematização
à obra de Neil Smith, publicada originalmente em 1984: “Desenvolvimento
desigual. Natureza, capital e a produção do espaço”. Retornemos a esta
obra para situarmos de que maneira a discussão das escalas aí comparecem.
O fio condutor do livro de Smith é a discussão da Geografia do capitalismo
e para isto constrói uma teoria do desenvolvimento desigual. Este, por sua vez,
é a maneira própria através da qual o capital produz o espaço e para tanto não
há como repetir a fórmula de que o espaço é simplesmente o palco onde se
desenrolam as atividades humanas, isto é, tomando o espaço como separado da
sociedade.
Também seria claramente insuficiente para Smith tratar o desenvolvimento
desigual de uma forma a-histórica, como se sempre, todo e qualquer
desenvolvimento fosse desigual ou com o princípio de que ‘... tudo se
desenvolve desigualmente’.
A questão, situada historicamente é a seguinte: o modo de produção
capitalista tem, em seu centro, a produção do espaço de uma maneira específica
e necessária à sua própria dinâmica, expressando geograficamente suas
contradições mais fundamentais: entre valor de uso e valor de troca, entre
sociedade e natureza, entre se fixar para concretamente produzir e se mobilizar
para circular, como valor abstrato.
É em busca da unidade destas contradições que parte Smith para construir

138
Terra Livre - n. 29 (2): 133-142, 2007

uma teoria do desenvolvimento onde o espaço é introjetado na análise do capital.


Mas o próprio autor alerta já no prefácio a edição brasileira (de 1988)
que:
“O nível de abstração nesse trabalho expõe tanto o entusiasmo como
as frustrações. O entusiasmo advém das perspectivas emocionantes
sobre o amálgama das paisagens sociais, políticas e geográficas
expostas à visão profunda composta pelas abstrações abrangentes
invocadas em uma teoria do desenvolvimento desigual. A frustração
baseia-se no fato de que essa teoria do desenvolvimento desigual
necessariamente se restringe a uma escala geral de análise.
Colocando diferentemente, tentei desenvolver conceitos e uma
estrutura para análise que nos levariam a ver o ‘grande cenário’.”
(Smith: 1988 p.11).

Tal constatação já nos permite afirmar que se o autor nos alerta para sua
escala geral de análise, ou para o “grande cenário”, existe no mínimo uma escala
específica de análise, ou “pequenos cenários”, nos quais a produção do espaço
se dá pelo capital. Ou, utilizando de suas palavras:

“Uma teoria do desenvolvimento desigual deve integrar o processo


espacial e social em vários níveis... (...). Pois o capital não somente
produz o espaço em geral, mas também produz as reais escalas
espaciais que dão ao desenvolvimento desigual a sua coerência”
(Smith: 1988 p.19).

As escalas deixam de ser uma noção cartográfica ou um conceito


operacional que dá conta dos limites entre espaços diferenciados e fragmentados
(como em um mosaico) e passa a ser um conceito integrado a uma teoria (a do
desenvolvimento desigual) que procura dar coerência à produção do espaço em
diferentes níveis, entendendo-o sempre como espaço organizado e hierarquizado.
Ou seja, a dinâmica do capital cria um espaço-economia cada vez mais
integrado e organizado e esta integração e organização só pode ser
compreendida através das escalas geográficas. As escalas são assim, produtos
do capital, instâncias de concretização e de negação de seus movimentos
internos. São diferenciações do espaço produzidas e necessárias ao capital para
superar momentaneamente suas contradições. Para Smith, as escalas seriam
hierarquizadas e estariam “... contidas na estrutura do capital”, integrando
os diferentes processos de produção e de circulação do capital. Por isto mesmo,
não seriam fixas, mas mudariam dinamicamente à medida que se alterariam as
próprias condições de produção e circulação.
Resumindo, as escalas geográficas aparecem aqui simultaneamente como
conceito e como realidade produzida pelo capital. Como conceito, a escala

139
MELAZZO, E. S.; CASTRO, C. A. A ESCALA GEOGRÁFICA...

geográfica nada mais é que a apreenção das contradições geográficas do capital


em seu movimento. Como realidade produzida, as escalas expressam a
diferenciação do espaço geográfico, que nada mais é que a diferenciação social
produzida pelo capital.

3.2. Uma teoria das escalas geográficas?

Em outro momento de sua produção, Neil Smith procura avançar na


construção da escala geográfica. Tomemos agora um texto publicado
originalmente em 1997 (Contours of a spatialized politics: Homeless vehicles
and the production of geographical scale”(Revista American Studies, Kansas,
Universidade do Kansas, 55-81) e traduzido no Brasil em 2000 (Smith, 2000).
Neste texto, a propósito de analisar a experiência da construção de um
veículo para os sem teto de Nova York, na década de 80, o autor aponta
explicitamente para a necessidade de se elaborar “... uma teoria esquemática
da produção da escala” (p.133).
Seguindo os passos já apontados no texto anterior, Smith reafirma a escala
geográfica como produzida socialmente, rompendo com uma tradição que toma
o espaço como algo absoluto ou natural, submetido ao tempo e por isto auto-
evidente, não problemático.
A escala, como produção social, aparece como estratégia de produção da
diferenciação espacial, como instrumento teórico para se apreender as diferenças
espaciais e como lugar da luta política.
Em nossa avaliação, o principal elemento que pré configura um avanço na
discussão da escala geográfica é o fato de se ampliar sua produção para a
esfera da arena política e não apenas, como anteriormente citado, pelo capital.
O que temos são processos em suas dimensões escalares e as escalas
são produzidas nos processos. Ou como afirma Smith (2000, 143):

“A construção da escala não é apenas uma solidificação ou


materialização espacial de forças e processos sociais contestados;
o corolário também é válido. A escala é um progenitor ativo de
processos sociais específicos”.

Ainda, segundo Smith (2000), uma investigação a respeito da produção da


escala geográfica deveria considerar quatro elementos: a identidade da escala
(aquilo que a diferenciaria de outras escalas); suas diferenças interiores (ou
seja, os processos que constituem como tal); as fronteiras com outras escalas
(na medida em que a diferença pressupõe limites, mesmo que não sejam rígidos
e estáticos) e suas articulações com outras escalas (o que confere a possibilidade
de pensarmos em uma hierarquia ou em um encaixe entre escalas
140
Terra Livre - n. 29 (2): 133-142, 2007

interconectadas).
A estes quatro elementos, outros poderão/deverão ser desenvolvidos, como
por exemplo, os saltos escalares ou mesmo as aproximações escalares que,
fugindo ao escopo deste trabalho aprofundam tais conceituações e, ambos,
poderiam estar se referindo as certas particulares de articulações entre escalas.

4. À guisa de considerações finais: A Teoria Políticas das Escalas.

Finalizando, faz-se necessário afirmar que tais contribuições apontam para


uma teoria da política das escalas, seja enquanto recurso analítico, ou enquanto
recurso para a ação.
Como indica Vainer (1995) sendo o espaço não apenas um resultado da
reprodução da vida social, mas também ele mesmo um pressuposto para tal
reprodução, as escalas são também produtoras de relações de poder. Portanto:

“... as escalas não estão dadas, mas são, elas mesmas, objeto de
confronto, como também é objeto de confronto a definição das
escalas prioritárias onde os embates centrais se darão.” (VAINER;
1995, 146)

O domínio da escala da ação de cada sujeito, em suas estratégias


espaciais, coloca em discussão o poder e a política de sua definição. Os grupos
sociais em suas assimétricas relações sociais, econômicas, culturais etc. disputam
não apenas a possibilidade de dominar as escalas, mas também a definição das
escalas mais adequadas a sua ação, incluindo-se, aí, a possibilidade de articular
escalas.
As anotações feitas até o momento, indicam que a escala geográfica
admite, assim, um estatuto teórico próprio como um objeto sobre o qual devemos
nos debruçar. Uma teoria da escala geográfica seria assim uma teoria da
estruturação do espaço, onde as diferenças espaciais poderiam ser apreendidas
como resultados de disputas e de relações de poder; deveria atentar para os
diferentes níveis de abstração que cada escala comporta; poderia sistematizar
âmbitos ainda pouco explorados da vida social e explicitar as articulações uni
ou pluriescalares de diferentes grupos sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

141
MELAZZO, E. S.; CASTRO, C. A. A ESCALA GEOGRÁFICA...

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VAINER, Carlos B. As Escalas do poder e o poder das escalas: O que pode o
poder local? In: Anais do VI Encontro da ANPUR: Rio de Janeiro, 1995. p140-
151.

Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 13 de Fevereiro de 2008

142
Resumo: As possibilidades epistemológicas e pedagógicas da
geografia cultural humanista revelam ações fenomenológicas como
POSSIBILIDADES instrumento na elaboração e disseminação do conhecimento humano
em sua ordem científica. Para esse intento, posicionam-se, de forma
EPSTEMOLÓGICAS E sucinta, os saberes epistemológicos da ciência em geral e da geografia
em particular, em sua contemporaneidade. Com isso pontua-se a
PEDAGÓGICAS DA necessidade de adaptação do projeto humano em ambiente
epistêmico e pedagógico, ressaltando que o positivismo, assim como
GEOGRAFIA HUMANA o mecanicismo que formou uma alma-racional e um corpo-mecânico
EM SEU TRONCO devem contar também com os sentimentos mais puros da alma
humana. O artigo ressalta que a geografia, pela sua estrutura
HUMANÍSTICO- epistêmica, dentro do humanismo, pode sustentar
instrumentalmente, mediante descrição subjetiva, em contexto
CULTURAL situacional e intencional, devidamente suspenso, as elucubrações
idiossincráticas, ônticas e dialógicas do ser humano. O artigo busca
refletir as mudanças socioculturais e científicas e as adaptações que
EPISTEMOLOGICAL AND a geografia fenomenológica, seu método e seu caráter pedagógico
PEDAGOGICAL POSSIBILITIES OF podem oferecer ao desenvolvimento humano.
HUMAN GEOGRAPHY IN ITS Palavras-chave: Epistemologia, Geografia Humanista,
HUMANISTIC AND CULTURAL Fenomenologia, Pedagogia.
TRUNK
Abstract: The epistemological and geographical possibilities of
the humanist and cultural Geography reveals phenomenological as
LAS POSSIBILIDADES
EPISTEMOLÓGICAS Y PEDAGÓGICAS a tool in the preparation and dissemination and spreading of the
DE LA GEOGRAFIA HUMANA EM SU
human knowledge in its scientific order. To this intent, stand up,
TRONCO HUMANISTICO-CULTURAL briefly, the epistemological knowledge of science in general and in
particular geography, in its contemporaneity. With all these, is
shown the need of adaptation of the positivism, as well as the
mechanism which formed one rational soul and one mechanic body,
must trust the most pure feelings of the human soul. The article
MARCOS ANTONIO emphasizes that, when well suspended, the Geography by its
epistemological structure, inside the humanism, can sustain
CORREIA instrumentally by the subjective description in situational and
intentional context the idiosyncratic lucubration, ontological and
Professor do Departamento de dialogical of human being. The article searches for the reflection of
social-cultural and scientific changes, as much as the adaptations
Geografia da FAFI-PR that phenomenological Geography and its methodology and
Discente do Programa de pedagogical characteristic can offer to the human development.
Mestrado/Doutorado da UFPR Keywords: Epistemology, Geography Humanist, Phenomenology,
Pedagogy.
E-mail: korreya@uol.com.br Resumen: Las posibilidades epistemológicas y geográfica de la
humanista y cultural de Geografía revela acciones fenomenológica
como na instrumiento en la elaboración y difusión de los
conocimientos humanos en su orden científico. Con este propósito,
de pie, brevemente, el conocimiento epistemológico de la ciencia en
general y, en particular, la geografía, en su contemporaneidad. Con,
se muestra la necesidad de adaptación del positivismo, así como el
mecanismo que forma un alma racional y Un órgano mecánico, debe
confiar en los sentimientos más puros del alma humana. El artículo
hace hincapié en que, cuando así suspendido, la Geografía en su
estructura epistemológica, en el interior del humanismo, puede
sostener instrumentalmente por la descripción subjetiva de la
situación y el contexto intencional idiosincrásicas lucubracion,
ontológica y dialógica del ser humano. El artículo busca el reflejo de
la social-cultural y científico cambios, tanto como las adaptaciones
que fenomenológica Geografía y su metodología pedagógica y
característica puede ofrecer para el desarrollo humano.
Palabras clave: Epistemología, Geografía Humanista,
Fenomenología, Pedagogía.

T erra Livre Presid en te Pru d ente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 143-162 Ago -Dez/ 2007
143
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...

Introdução

A sociedade atual busca alternativas ao seu projeto, que vigora desde o renascimento,
marcando a construção da ciência e seu respectivo espírito científico, o qual direciona e
sustenta o desenvolvimento da sociedade moderna até o presente momento. Uma nova
realidade se apresenta no horizonte dos saberes da humanidade, porém essa nova maneira
de ver as coisas não condena a produção humana até o momento, mas sinaliza outras
possibilidades a serem consideradas, e introduzidas, como maior aproximação do ser
humano de sua essência ôntica, envolvido por elementos físicos e naturais que lhe atribuem
sentido de existência. Isso pode mudar a elaboração dos saberes, principalmente, em seu
caráter científico, pois evidencia o particular, o subjetivo, o intersubjetivo, o estético, a
arte, o holístico, o único, o sagrado e várias outras facetas humanas não contempladas no
conhecimento científico moderno.
O artigo busca refletir essas mudanças no projeto humano, assim como vislumbrar
a possível integração da ciência geográfica, em sua vertente cultural humanista, no tocante
a elaboração epistêmico-metodológica, nesta nova fase do processo de reavaliação e
reconstrução dos feitos do homem durante sua estada no mundo, assim como suas novas
investidas no universo ou nos vários universos, como pensam alguns. Nesse sentido, a
geografia como saber sistematizado e estruturado, abordando conceitos da natureza e do
homem, poderá contribuir nessa empreitada, principalmente seguindo opção
fenomenológica, pois ela resgata o ser humano como ponto de partida e como ponto de
chegada na edificação e disseminação do conhecimento, partindo-se do emocional e do
criativo, indicando, assim, possibilidades mais seguras e condizentes ao ser humano na
procura de sua plenitude.
Na busca de uma estrutura sintética para o artigo que trata das possibilidades
epistemológicas e pedagógicas da geografia humana em sua configuração cultural
humanista de feição fenomenológica, optou-se por seguir pensamentos de estudiosos,
filósofos e geógrafos como: Gomes (1996), Capra (1982), Demangeon (1985), Claval
(1997), Holzer (1997), Tuan (1980 e1983), Buttimer e Lowenthal, In Christofoletti (1985)
e outros, numa primeira parte, subdividida em duas outras que tratam do posicionamento
epistemológico dos saberes na atualidade e da situação epistemológica da geografia
humana no redimensionamento dos saberes e, na seqüência, a última parte aborda,
sucintamente, a possibilidade teórico-pedagógica da utilização da fenomenologia na
geografia cultural humanista. Nessa última parte, observaram-se principalmente as
reflexões realizadas por: Bachelard (1996), Bakhtin (2000), Galeffi, (1986), Bicudo (1999),
Husserl (2001) e (Coelho, 1999), os quais com suas idéias sustentam o artigo.
Sendo assim, é fundamental assinalar o posicionamento dos saberes na atualidade
e a situação da geografia na contemporaneidade, pois esses atuam como antecedentes
no conjunto das idéias básicas deste texto, o qual busca identificar a forma

144
Terra Livre - n. 29 (2): 143-162, 2007

de condução epistêmica da geografia, nos períodos denominados modernidade e a pós-


modernidade1 , assim como refletir a alteração do projeto da sociedade atual em relação
aos saberes produzidos, e a interligação existente entre o homem e o espaço. Pois o
universo é visto como um todo harmonioso e a consciência sobre isso é muito importante
para as próximas ações da humanidade.
Nesse mesmo foco, destaca-se a geografia como uma disciplina que pode contribuir
na combinação da ciência com o espírito humano criativo. Para tanto, faz menção a
Demangeon e Claval, quando eles se referem à geografia humana e à geografia cultural
respectivamente, as quais tem incumbências antropológicas e socias, na elaboração dos
saberes. A seguir vários estudiosos, já mencionados, destacam a fenomenologia, que não
condena radicalmente o cartesianismo e o positivismo, mas aproxima-se dos ideais pós-
modernos, abrindo caminho ao desmembramento de outras teorizações e categorias na
ciência geográfica, como: lugar e espaço vivido, estudados por meio da percepção
fenomenológica do espaço geográfico.
Já, quando se traz à baila a pedagogia, principalmente numa visão fenomenológica
dentro da geografia, procura-se identificar formas de se apropriar do conhecimento
geográfico e, ao mesmo tempo, disseminá-lo por meio da educação. Nesse momento faz-
se menção à geografia escolar, a qual o processo de ensino-aprendizagem, poderá incluir
elementos fundamentais ao próprio conhecimento como: a emoção, o subjetivo e o
intersubjetivo. Sugere-se assim, a introdução desses elementos fenomenológicos no que
diz respeito, principalmente, à educação formal na qual a geografia se insere.
Essas novas manifestações dos saberes no presente momento da sociedade
sugerem a possibilidade de união entre racional e emocional, pois tanto a natureza intelectual
como a criativa, a opinativa e imaginária, através da subjetividade, podem renovar a
produção dos saberes, por sua vez, dinamizando também, o conhecimento geográfico e
posterior disseminação do mesmo.
A geografia escolar para experimentar as abordagens sugeridas, no que diz respeito
a utilização de conteúdo emocional, no processo ensino-aprendizagem, poderá se servir,
epistemologicamente, da descrição subjetiva de gênese husserliana e merleau-pontyana.2
Pois a descrição – instrumento metodológico recorrente na produção da ciência geográfica
— dos elementos da natureza, assim como as realizações humanas em seus determinados
espaços sempre se constituíram em formas epistemológicas imprescindíveis à elaboração
da ciência geográfica. Por outro lado, no campo educacional, algumas intervenções teóricas
podem oferecer aporte às atividades pedagógicas, que por sua vez podem ser aplicadas
no ensino de geografia, como os trabalhos de Wallon, destacando a emoção na

1
De acordo com o Dicionário de Filosofia de Japiassu e Marcondes, o termo modernidade exalta a razão,
valorizada a partir do Renascimento e o termo pós-modernidade seria a superação dessa razão alcançada por
meio da valorização do sentimento, da arte e da criatividade.
2
Nesse caso a descrição deve ser entendida como forma imanente (partindo do interior do ser) de perceber o
objeto e eventos em si. Para a geografia esta forma de descrição poderá abrir perspectivas inovadoras,
principalmente, em ambiente didático-pedagógico.

145
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...

aprendizagem, o estudo da inteligência emocional de Goleman e os estudos das inteligências


múltiplas de Gardner.
A descrição, independente de sua natureza, evidencia necessariamente o texto,
que pode ser manifestado de várias formas. Uma delas estrutura-se em Bakhtin, em que
nas ciências humanas e, por conseguinte, na geografia, o uso da linguagem textual e
análise do discurso, estão sempre presentes, os quais são captados e estruturados em
determinados contextos. No caso da geografia escolar e mesmo da geografia acadêmica3
a descrição clássica, ou convencional (usada como instrumento metodológico na apreensão
e elaboração do objeto de estudo da geografia) associada à descrição subjetiva, coloca o
indivíduo como ponto de partida e de chegada nos fazeres científico e pedagógico, pois,
acredita-se que, o ser sente e percebe seu derredor espacial, compartilhando-o com seus
semelhantes.

Posicionamento Epistemológico dos Saberes na Atualidade

O novo milênio, iniciado no século XXI, apresenta tendência à transição,


reestruturação e evidente metamorfose no projeto arquitetado pela sociedade, desde os
séculos XV e XVI até o presente momento. Essas mudanças levaram o homem a repensar
toda a sua produção nos diversos saberes. A geografia compartilha e pode contribuir
nessas alterações no projeto da sociedade, no sentido de repensar e adequar sua estrutura
teórico-metodológica às necessidades presentes. A esse respeito (Gomes, l996, p.19-21)
diz que o pós-modermo, na visão de alguns estudiosos, inicia-se nos anos setenta do
século XX, por meio de uma nova preocupação estética, — presente na ciência, técnica
e artes — a qual não deixa de lado o monumentalismo4 , suas respectivas técnicas e
materiais consagrados pelo modernismo.5
Entretanto o pós-modernismo, nas palavras de Gomes (1996), exalta o relativismo
e a emoção nas manifestações dos saberes, afastando-se assim do universalismo e das
generalizações que embasaram e embasam o modernismo, pois estabelece outras formas
de legitimidade, diferenciando-se da racionalidade que não valorizou algumas facetas
humanas como: o sentimento, a intuição ilativa; a indefinição, a polimorfologia, a polissemia.
Esses caminhos fogem das unificações generalizadas e evitam a razão totalizante,
promovendo a transposição do moderno ao pós-moderno.
Essas novas concepções estéticas passam pelos diversos saberes modificando as

3
Voltada à pesquisa buscando a elaboração do conhecimento geográfico. Diferente da geografia escolar que se
concentra, prioritariamente, na disseminação dos conhecimentos geográficos.
4
O monumentalismo, em Gomes (1996), refere-se a estética e a criatividade da arquitetura moderna que
sofreu grandes modificações, mas não deixou de usar as técnicas e os materiais do modernismo.
5
Nos relatos de Gomes (1996), o modernismo está ligado a racionalidade, universalidade e generalizações.
Esse, tem seu momento derradeiro no monumentalismo, que renova a estética — de início na arquitetura,
depois em outras áreas — e traz à tona o relativismo, próprio do pós-modernismo.

146
Terra Livre - n. 29 (2): 143-162, 2007

estruturas teóricas e metodológicas das mesmas. Nesse sentido (Gomes, 1996 p.21-23),
diz essas concepções inauguram visões diferenciadas de espaço e tempo, tornando-se
relativas e mutáveis, constituindo-se em renovadas “Unidades Fenomenológicas”, mais
perceptíveis nas manifestações artísticas. Já nos saberes científicos, isto não ocorre com
tanta visibilidade, ao mesmo tempo em que avança de forma mais lenta, no entanto não
menos efetiva. Na ciência, a iniciativa mais evidente é a da teoria anarquista de Feyerabend,
dizendo que os instrumentos metodológicos convencionais são inconsistentes e a hegemonia
da razão e o mito equiparam-se na sua condição epistemológica, valorizando o particular
e o único, advindo do sujeito e seu mundo.
Por outro lado, (Capra 1982, p.14-23), diz que, atualmente o mundo apresenta
conexão entre fenômenos naturais, sociais e psicológico, interligado e interdependentes.
Sendo assim, as elaborações sistêmicas e cartesianas não estão dando conta de satisfazer
o equilíbrio individual e social. Pois nas últimas décadas é estabelecida uma condição de
profunda crise mundial, afetando todos os segmentos da sociedade, delineando crises das
mais profundas, interferindo nas manifestações morais, intelectuais e espirituais do ser
humano, inclusive desencadeando perspectivas iminentes e realísticas de extinção do
gênero humano e dos demais seres vivos do planeta.
Na tentativa de situar essas mudanças paradigmáticas, é importante assinalar que,
a institucionalização da razão efetivou-se no último quartel do século XVII e, segundo
(Gomes, 1996, p.25-26), o conhecimento científico seguindo princípios e modelos galileanos
evocou o racional e a generalização na organização e elaboração dos saberes, constituindo-
se como único caminho para se chegar à conquista do modelo moderno de ciência, firmando-
se em via válida ao conhecimento humano, no período chamado modernismo. Por outro
lado, nesse tempo, ocorreram manifestações diferenciadas as quais não tiveram guarida.
Hoje, porém, ocorrem oposições a essa superestrutura de conhecimento, por meio de
posições anarquistas, místicas e outras, caracterizadas como “Contracorrentes”,6
contestando o poder da razão, do espírito científico e a hegemonia da estrutura dos saberes
ora institucionalizadas.
No que concerne ao pensamento de (Capra, 1999, p.35-37), a razão e a intuição
são maneiras indissociáveis no funcionamento do cérebro humano. A primeira é
concentrada, analítica e linear. Já, a intuição parte da realidade, do vivido, do não-
pensamento, privilegiando a percepção consciente. A cisão entre matéria e espírito, levou
a um pensamento mecanicista, reduzindo e separando os elementos, assim como
seccionando a natureza. Essa mesma cisão estende-se aos organismos vivos, caracterizados
como máquinas formadas por peças disjuntas. Isso ainda ocorre na estrutura básica da
maior parte das ciências, exercendo grande influência em nossa vida, provocando, também,
separação das disciplinas acadêmicas, assim como visões fragmentadas de política de
governo e de entidades responsáveis pelo meio ambiente.
6
As “contracorrentes” sugerem áreas dos saberes como: filosofia da natureza, romantismo, hermenêutica e
fenomenologia, como teorias importantes nas elaborações epistemológicas e metodológicas aplicáveis aos
conhecimentos geográficos.

147
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...

Como reflete (Capra, 1982, p.44), a maior parte dos ramos científicos seguem os
princípios da física clássica, aceitando o reducionismo e o mecanicismo dessa ciência.
Mesmo os economistas, psicólogos e sociólogos acabam aderindo, quase naturalmente à
física newtoniana, na tentativa de tornar científicas suas respectivas teorias. Mas no
último século a visão mecanicista da física passa por grandes modificações, pois, sustenta
a existência de estrutura orgânica e ecológica, aproximando-se do holismo e de certo
misticismo. O universo é visto como um todo harmonioso e indissociável, promovendo
ligações dinâmicas e complexas, unindo todos os objetos, elementos e fenômenos que se
interconectam ao ser humano e sua consciência essencial.
Na realidade retomam-se alguns conceitos de alguns pensadores, como diz (Capra,
1999, p.53-54), que antigamente conceituavam a Terra como mãe nutriente. Esse conceito
sofre alterações nos relatos de Bacon, desintegrando-se por completo na revolução
científica, que optou pela concepção do mundo como máquina, em detrimento de idéias
orgânicas. Esse enfoque foi de grande importância para o assentamento da sociedade
moderna ocidental, arquitetada por dois personagens: Descartes e Newton. O primeiro,
com sua conhecida premissa, “Cogito, Ergo Sum”, “Penso Logo Existo”, deduz que a
essência humana está no pensamento e que o conhecimento correto é adquirido pela
intuição e dedução, caracterizando-se em instrumentos imprescindíveis à edificação do
pensamento e conhecimento humano.
Seguindo o pensamento capreano (1999, p.56-58), o universo material para
Descartes constituía-se, simplesmente, em uma máquina, desprovida de espiritualidade
ou vida, funcionando por meio de leis mecânicas explicadas por intermédio dos movimentos
de suas partes. Com esse pensamento mecanicista, ele tenta constituir parâmetros para
uma completa ciência natural, estendendo essa concepção aos organismos vivos. Plantas
e animais são considerados máquinas e o ser humano, possuidor de alma racional, ligada
ao corpo pela glândula pineal, e tido como animal-máquina. Newton praticamente continua
o pensamento de Descartes, concretizando seu projeto, matematizando a concepção
mecanicista da natureza, sintetizando, inclusive, além de Descartes, as obras de Copérnico,
Kepler; Bacon e Galileu.

Situação Epistemológica da Geografia Humana na Contemporaneidade

Os instrumentos teórico-metodológicos são difusos e insuficientes para se fazer


uma avaliação analítica das perspectivas epistemológicas, filosóficas, técnicas e científicas
da sociedade atual. Devido a isso, o que se percebe é um grande hiato transitivo no
projeto humano contemporâneo, pois, como anuncia (Capra, 1982, p.77), a probabilidade
e o aspecto dual da matéria acabam com a clássica noção de objetos sólidos, que, em seu
nível subatômico, podem ser dissolvidos em ondas padronizadas de probabilidades,
promovendo as interconexões entre as “coisas”, em sua construção subatômica. Isso se
insere na teoria quântica, no caso das interconexões. Por outro lado, Einstein não aceitava

148
Terra Livre - n. 29 (2): 143-162, 2007

a constituição de conexões não-locais e a essência fundamental da probabilidade, o que


não o afastou do cartesianismo.
A geografia humana clássica insere-se na estrutura geral da ciência, desenvolvendo-
se, como indica (Demangeon, 1985, p.49), a partir do quarto quartel do século XVIII,
assentada nos modos de vida dos seres humanos na litosfera terrestre e sua forma de
grupamentos. Materializa seu estudo mediante descrição simples e direta, relatando o
viver cotidiano e diferentes maneiras de ser dos povos. Esses relatos subsidiavam os
viajantes em suas incursões, pois eram narrações românticas, despertando a imaginação
em seus observadores. Seus recortes enumeravam lugares em vários aspectos, desde
distâncias, informações econômicas, históricas, arqueológicas, estatísticas e outras.
Sem entrar no mérito da geografia clássica, diz-se que ela é a base da geografia
humanista, pois ela retira seus conceitos de teorias advindas da física, biologia e sociologia
e fundamenta-se na ciência de tradição moderna. Nesse viés pode-se lembrar as palavras
de (Claval, 1997, p.89-90), que ressaltam as manifestações humanas na Terra, associando-
as a geografia cultural, relacionando os elementos da natureza e do ambiente com as
produções humanas, de acordo com seus gostos e sentimentos, respondendo às suas
necessidades e aspirações, em busca de realização. Há também os pensamentos de Eric
Dardel, que foi o primeiro a destacar e batalhar pela concepção legitimamente humana
da geografia, as quais levaram cerca de vinte anos até seu reconhecimento. Essa geografia
humana sublinha o social e o cultural: como já evidenciado por Vidal de La Blache, por
meio dos gêneros de vida, destacando sua dimensão cultural.
Como diz Paul Claval (1997, p.55), a geografia cultural, sofre renovação a partir
dos anos setenta, juntamente com o conjunto das ciências. Ela toma corpo, em várias
instâncias, da mesma maneira: os lugares são diversos e não possuem as mesmas
características, formas e cores, assim como uma funcionalidade racional e econômica.
As pessoas que os habitam e os freqüentam estão ligadas por sentimentos e emoções em
relação a eles. Nesse aspecto os pesquisadores que estudam as percepções do espaço,
espaço vivido e meio ambiente, aproximam-se de outros estudiosos, principalmente de
psicólogos, tornando os estudos mais proveitosos. Mesmo o romance pode transformar-
se em documento: a intuição do romancista nos ajuda a perceber o espaço pelas emoções
das personagens.

A cultura só existe através dos indivíduos aos quais é transferida, e que,


por sua vez, a utilizam, a enriquecem, a transformam e a difundem. A
cultura é indispensável ao indivíduo no plano de sua existência material. Ela
permite sua inserção no tecido social. Dá uma significação à sua existência
e à dos seres que a circundam e formam a sociedade da qual se sente
membro. Ela não desempenha o mesmo papel nos diversos momentos da
vida. (Claval, 1999, p.89).

A imaginação leva o espírito além do alcance da vista: o viajante antecipa o


que descobrirá, assim que a linha do horizonte for ultrapassada. A criança

149
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...
amante dos mapas e dos selos habita os países construídos por sua fantasia.
O crente aspira à felicidade eterna do paraíso, evita a prova do purgatório e
teme o castigo definitivo do inferno. O espaço freqüentado pelos homens
não se limita jamais àquele revelado pela observação. (Claval, 1999, p.140).

A geografia humanista, já revisada por alguns autores no que concerne,


principalmente, à geografia cultural, propõe a emergência do indivíduo, sua intenção,
vontade, sentimento e emoção em relação a sua subjacência pessoal e interpessoal,
montada na intencionalidade7 do vivido, percebido por ele, consubstancializando-se em
objeto e sujeito do fenômeno em questão, como já prevera Husserl e como declara (Holzer,
1997, p.17). Após trazer as idéias de vários geógrafos humanistas e simpatizantes da
fenomenologia, Holzer diz que, esse caminho coaduna-se com o pós-modernismo, pois
alarga e, em alguns momentos, foge do cartesianismo e do positivismo, ao mesmo tempo
em que não ressalta, nem coteja tanto o sujeito ou o objeto, mas vasculham métodos
alternativos, valorizando o ser e sua espacialidade humanizada, sintonizando-se com a
produção cultural e o momento relacional do indivíduo, seu corpo, sensação e percepção
com o seu ambiente de vivência.
A geografia humanista, nas palavras de (Tuan, 1985, p.159-160), relata que ela
exerce papel fundamental para o conhecimento científico, pois pode revelar materiais
que o cientista, concentrado em sua própria estrutura conceitual, pode estar insensível ao
seu derredor. Esse material contempla a natureza e a totalidade das experiências e reflexões
humanas, assim como, determina “a qualidade e a intensidade de uma emoção, ambivalência
e a ambigüidade dos valores e atitudes, a natureza e o poder do símbolo e as características
dos eventos, das intenções e das aspirações humanas”.
Para (Buttimer, 1985, p.192-93), o método fenomenológico na geografia humanista
pode unir o objetivismo ao subjetivismo, mesmo sobre as críticas mais ferrenhas advindas
de outras áreas do conhecimento, mesmo de alguns setores da própria geografia. Por
outro lado, esse método amplia os caminhos pretendidos pela geografia. Pois já está na
hora de quebrar com a atitude conservadora da prática intelectual ocidental em relação
ao conhecimento científico. Por isso ela diz que, essas manifestações podem “transcender
as barreiras artificiais que nossa herança intelectual ocidental tem colocado entre a mente
e o ser, entre o intelectual e o moral, entre a verdade e a bondade, em nossos mundos
vividos”.
Aproximando-se dessa idéia, observa-se o pensamento de (Lowenthal, 1985, 137),
quando relata que todo conhecimento pode ser concomitantemente subjetivo e objetivo,
pois os “delineamentos do mundo que são puramente materiais e factuais ordinariamente
parecem muito áridos e inanimados para assimilar; somente a cor e o sentido conduzem
à verossimilhança”. Atrás dos costumeiros acontecimentos e fatos, necessitamos de
experiências inusitadas, de primeira mão, que favoreçam opiniões e preconceitos

7
Conceito central da fenomenologia. Em Husserl ela é manifestada por meio da descrição após se realizar a
epoché, ou seja, a suspensão do juízo (o mundo colocado entre parênteses).

150
Terra Livre - n. 29 (2): 143-162, 2007

individuais.

Cada imagem e idéia sobre o mundo é composta, então, de experiência


pessoal, aprendizado, imaginação e memória. Os lugares em que vivemos,
aqueles que visitamos e percorremos, os mundos sobre os quais lemos e
vemos em trabalhos de arte, e os domínios da imaginação e de cada fantasia
contribuem para as nossas imagens da natureza e do homem. Todos os
tipos de experiência, desde os mais estreitamente ligados com o nosso
mundo diário até aqueles que parecem remotamente distanciados, vêem
juntos compor o nosso quadro individual da realidade. A superfície da terra
é elaborada para cada pessoa pela refração através de lentes culturais e
pessoais, de costume e fantasias. Todos nós somos artistas e arquitetos de
paisagens, criando ordem e organizando espaços, tempo e causalidade, de
acordo com nossas percepções e predileções. (Lowenthal, 1985, 137).

Percebe-se que a geografia humana, ancorada no social e cultural, busca efetivar


sua contribuição no estatuto científico atual. Nesse sentido, apresenta a geografia humanista
cultural e a fenomenologia como aportes indicados a esse intento. A abrangência cultural,
antropológica e psicológica almejada pela sociedade atual, faz emergir o sujeito e sua
individualidade, acompanhada de sua vontade, imaginação, memória, sentimento e emoção.
A cultura é imprescindível ao indivíduo no plano de sua existência material e imaterial,
bem como a consciência de seu corpo por meio de sensação e percepção, com o seu
ambiente de vivência pois o espaço freqüentado pelos homens não se limita jamais àquele
identificado na observação.
De acordo com (Correia, 2006, p. 69), a fenomenologia discute o percebido, o
vivido, através do sentido e subjetivamente concebido. Pode-se depreender que estes
fundamentos – já identificados por alguns geógrafos humanistas, fenomenológicos e da
percepção — podem enriquecer a construção epistemológica e metodológica da geografia,
principalmente no que diz respeito a categorias como lugar, espaço vivido e paisagem,
dinamizando até outros fundamentos e categorias da ciência geográfica.

Algumas Ações Epistêmico-Pedagógicas da Geografia Humana no


Redimensionamento dos Saberes

O ser humano é naturalmente um fator de interiorização privilegiado. Parece


que o homem pode sentir e conhecer diretamente as propriedades íntimas
de seu físico. A obscuridade do eu sinto predomina sobre a clareza do eu
vejo. O homem tem consciência de ser, por seu corpo tomado de um vago
sentimento, uma substância. (Bachelard, 1996, p. 159).

Segundo (Bachelard, 1996, p.23-24), os educadores de ciências acreditam


que o espírito inicia-se com uma aula, pois a educação desconhece a idéia de obstáculo

151
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...

pedagógico. Acreditam que é sempre possível reconstituir os procedimentos pela repetição


da lição, mesmo ela possuindo conceitos falhos. Não consideram que o jovem já possui
algum tipo de conhecimento: portanto não se trata de conseguir uma cultura experimental,
mas de alterar a sua cultura, formada pelo seu cotidiano. Mas a cultura científica deveria
passar por uma purificação intelectual e afetiva, pois ela é pré-requisito ao avanço do
espírito científico, assim como da ciência em geral, fazendo sua mobilização, abertura e
dinamicidade.

As ciências exatas são uma forma monológica de conhecimento: o intelecto


contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquela
que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se).
Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo
o homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito
como tal não pode ser percebido e estudado a título de coisa porque, como
sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; conseqüentemente, o
conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico. (Bakhtin, 2000, p.403)

Tratando das matérias que se deverão ensinar, Kant sustenta ser oportuno
que as línguas vivas sejam ministradas pelo uso e pelo léxico mais do que
mediante exercício de memória, através de leitura de autores. Ele reputa
danosas, em geral, as leituras dos romances: com efeito, julga conveniente
começar a instrução com a geografia (...). O ensino científico deve visar,
enfim, a converter em saber exato um simples opinar. (Galeffi, 1986, p.
267).

Seguindo os pensamentos bakhtiniano e kantiano em relação à elaboração e


disseminação do conhecimento, torna-se pertinente reforçar as idéias de (Bakhtin 2000,
p.401-402) em relação às ciências humanas, que oportunamente poderão aproximar-se
da geografia humana, que diz: as coisas estão eivadas de sentido e são desveladas pelas
palavras ligadas aos fenômenos, que estão submersos no caos das manifestações primárias
da existência. Portanto, uma intervenção dos sentidos pode não ser categorizada como
científica em sua concepção clássica, mas ela é inerente às coisas e imprescindível ao
conhecimento e seu respectivo processo de ensino-aprendizagem.
Na estrutura bakhtiniana, o mesmo autor (2000, p.404) reporta-se às ciências
humanas, dizendo que elas se aproximam do espírito e das letras, destacando a palavra
como condutora na elaboração do conhecimento. O texto surge como método para
apreensão e propagação cognitiva, que parte do indivíduo inserido em um contexto. Essa
dinâmica leva a outros indivíduos que também produzem seus textos nos mesmos contextos,
permitindo permutas cognitivas, portanto promovendo uma dialogicidade analítica, acionada
pela comunicação, divulgação e comparação das idéias. Esse cotejamento leva à
compreensão e a novos textos e contextos, iluminando o momento do contato deles e
promovendo perspectivas animadoras às novas elaborações e compreensões nas relações
fenomenais humanas e mundanas. Nesse instante ocorre uma cientificidade diferenciada,

152
Terra Livre - n. 29 (2): 143-162, 2007

pois suas formas de compreensão, cognição e consciência científica fazem do mundo um


acontecimento inacabado, que sempre deve ser revisto.
A geografia humana muito pode contribuir neste contemporâneo status dos saberes
científicos, tanto na sua elaboração quanto em sua disseminação. Ela, nesse modelo
dialógico, rompe com o anterior, monológico, da ciência clássica, destacando o ser humano
na sua existência e toda a sua capacidade de sentir, de se emocionar e criar o seu saber
com seu semelhante. O meu eu e o outro fazem parte do mesmo momento, o qual
contextualizado e devidamente comunicado por instrumentos, essencial e verdadeiramente
humanos, criam na sua interface seus respectivos textos e contextos, que, devidamente
cotejados, remodelam e refazem o conhecimento, partindo de suas necessidades individuais,
portanto subjetivas e intersubjetivas.
Subjacente ao exposto, pode-se sublinhar algumas práticas na ciência geográfica,
como: as viagens, observações no campo, caracterização de determinado espaço (região,
paisagem, lugar) e outras atividades socioespaciais, envolvendo a percepção espacial.
Nesse contexto, pode-se fazer uso da descrição desses fenômenos, não da forma tradicional,
— usada como método desde os primórdios da institucionalização da ciência geográfica,
até hoje — mas de maneira reformulada, como uma descrição subjetiva de cunho
fenomenológico-hermenêutico, para usar a expressão de (Spósito, 2004, p.38-39) que diz:
“(...) o método fenomenológico-hermenêutico contém a redução fenomenológica8 e a
intencionalidade, indo além do subjetivo através da consciência.” Portanto, dessa forma,
as descrições podem e devem transformar-se em criação de conhecimentos geográficos
dinamizados e diferenciados, provocando mudanças, excepcionalmente no ensino da
geografia .
A estrutura epistêmico-metodológica desse conhecimento poderá alicerçar-se na
fenomenologia, principalmente husserliana e merlo-pontyniana, pois os acontecimentos e
fenômenos geográficos poderão ser determinados intencionalmente, antes de passarem
por esse processo. Nesse sentido pode-se dizer:

A vida cotidiana, para seus fins variáveis e relativos, pode contentar-se


com evidencias e verdades relativas. Já a ciência quer verdades válidas (...)
Em conseqüência, do ponto de vista da intenção final, a idéia de ciência e de
filosofia implica uma ordem de conhecimentos anteriores em si, relacionados
a outros, em si posteriores, e, no final das contas, um começo e um
progresso, começo e progresso não fortuitos, mas, ao contrário,
fundamentados “na natureza das próprias coisas”. (Husserl, 2001, p. 30).
A novidade da fenomenologia não é negar a unidade da experiência mas
fundá-la de outra maneira que o racionalismo clássico. Pois os atos
objetivantes não são representações. O espaço natural e primordial não é o
espaço geométrico e, correlativamente, a unidade da experiência não é
garantida por um pensador universal que exporia diante de mim os conteúdos

8
De acordo com o Dicionário de Filosofia de Japiassu e Marcondes, a redução fenomenológica é a concentração
da atenção nas coisas mesmas e não nas teorias.

153
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...
da experiência e me asseguraria, em relação a eles, toda a ciência e toda a
potência. (Merleau-Ponty, 1999, p.394).

De acordo com (Lencioni, 2003, p 149-52), o método fenomenológico husserliano


considera os objetos como fenômenos, os quais devem ser analisados como aparecem na
consciência, priorizando a percepção, entendendo que as idéias prévias, em relação a
natureza dos objetos deve ser abolida. Nesse sentido afirma que o mundo vivido apresenta
possibilidade de viver a experiência sensível, ao mesmo tempo pode pensá-lo de forma
racional. Contudo acrescenta que, no pensamento merleau-pontyana, o centro da discussão
relaciona-se entre natureza e consciência, constituída pela percepção. Ela diz que a
geografia fenomenológica apresenta discussão relativa às representações que as pessoas
fazem do mundo. Pois, “ao mesmo tempo que o espaço é vivido e percebido de maneira
diferente pelos indivíduos, uma das questões decisivas da análise geográfica que se coloca
diz respeito às representações que os indivíduos fazem do espaço.”

Possibilidade Teórico-Pedagógica da Utilização da Fenomenologia na


Geografia Cultural Humanista

Em relação à contribuição da fenomenologia à educação, pode-se dizer que:

Como procedimento didático-pedagógico, ela contribui na medida em que


o seu fazer é caracterizado pela busca do sentido e pela atribuição de
significados, tornando-se um excelente modo de trabalho na realidade escolar.
Trabalha com o real tal como ele é vivido no cotidiano, o que significa que
não parte de proposições lógicas ou de teorizações sobre o aluno, a escola,
a atividade docente e a aprendizagem mais toma alunos e professores no
modo como estão em uma escola específica. (...). A fenomenologia se
mostra apropriada à educação, pois ela não traz consigo a imposição de
uma verdade teórica ou ideológica preestabelecida, mas trabalha no real
vivido, buscando a compreensão disso que somos e que fazemos – cada
um de nós e todos em conjunto. Buscando sentido e o significado mundano
das teorias e das ideologias e das expressões culturais e históricas. (Bicudo,
1999, p.12-3).

De acordo com (Husserl, 2001, p. 37-38), de certa forma, o mundo em uma atitude
reflexiva para o ser está sempre ali, ele é notado como antes mediante manifestações
ocorridas em cada momento. Mas, em contrapartida, mesmo sabendo que os elementos
objetivos e concretos sempre estão presentes, ao se trazer a atitude filosófica, não se
compartilha mais a confiabilidade no existencial da experiência natural. Ela não é tida
mais como crença válida, mesmo sendo captada de forma empírica. Nesse sentido, eles
são considerados “simples fenômenos”, pois, ao que parece, perderam, na transfiguração
de seus valores, sua validação. O mundo objetivo invalidado universalmente, ou ao menos

154
Terra Livre - n. 29 (2): 143-162, 2007

inibido em suas manifestações, é colocado em suspensão ou entre parênteses, para que


possa ser observado de forma diferenciada na busca da apreensão ou percepção do
manifestado. Essa configuração mundana existe para mim em dimensão espacial e
temporal, portanto experenciada, percebida, pensada, julgada e desejada (por mim e pelo
outro) subjetivamente.
Como diz Edmund Husserl (2001, p.44), é por meio da fenomenologia que subtraio
meu eu humano natural e minha condição psíquica – abrangência interna —, meu âmbito
transcendental e fenomenológico. Todo o meu existir constrói-se no mundo objetivo,
existente em mim, o qual parte de mim, sai e volta para mim, valorizando meu sentimento
existencial revelado pela fenomenologia transcendental. Nesse sentido é bom dizer: o
mundano e seus elementos naturais, não o meu ser na realidade, assim como o eu reduzido,
não é fração do mundo. Portanto nossas experiências, representações, idéias, juízo de
valor e atitudes, é que dão e direcionam nossa relação com o mundo, promovendo a
transcendência que é inerente ao mundano, ainda que não possa ser redimensionado por
nós mesmos.
De acordo com (Bicudo, 1999, p.39-40) — inspirado por Husserl – existe uma
conexão indissolúvel entre as pessoas e seus mundos, os quais se substanciam no temporal
e no mundano. Cada homem se projeta no seu cotidiano como uma psique envolvida por
psiques, que se relacionam e se equalizam entre si. Portanto a realidade psíquica é
assentada na intersubjetividade. A redução vai ao encontro da intersubjetividade, onde
acontece intercâmbio entre pessoas e suas apreensões em nível mais elevados, cindidas
pelo espírito em sua seara natural e/ou cultural. Nesse caminho o ego é elaborado e
constitui o outro. Outras culturas são colocadas em oposição ao mundo familiar e
sociocultural do indivíduo. Isso determina relação peculiar entre o mundo físico e muitos
mundos culturais, que são compreendidos por meio da própria cultura de cada um e sua
relação com os mundos estranhos.
Segundo (Coelho, 1999, p.89), é pela imaginação que o ser humano exprime sua
liberdade e diminui os determinismos do mundo. Assim como a educação, sendo uma
atividade intencional, oferece várias possibilidades, no ensino-aprendizagem, à humanidade.
Mas para tanto ela teria que oferecer outras abordagens pedagógicas, além das praticadas
até o presente momento, como: a intelectual, apreensões lógico-matemáticas e linguagem
verbal. Seria adequado, além destas últimas, outras como: música, literatura, artes, poesia,
informática, filosofia e outras, pois auxiliam a ver e a ouvir a natureza, o mundo, o outro,
a sociedade, o próprio aluno, seu professor e tudo o que os envolve.

Ao afirmar a intencionalidade como estrutura fundamental de toda


consciência, a fenomenologia contesta a naturalização da consciência, das
idéias e dos processos sócio-históricos. Recupera a especificidade da
consciência frente ao mundo dos objetos e das ciências sociais e humanas
e, portanto, das ciências da educação, diante das ciências exatas e naturais,
recusando a transposição dos conceitos e métodos das ciências da natureza

155
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...
para o campo das ciências humanas. (...). Ensina-nos a distinguir o que, na
vida pessoal, na existência social e na educação, é de fato significativo.
Recupera a natureza e a identidade do real, do psíquico, da existência e do
fazer humanos, da educação, da escola, das teorias e da prática, do saber,
do ensinar, do aprender, do tempo próprio da pesquisa, do ensino e da
aprendizagem, “des-velando” seu verdadeiro sentido. Aliás, a fenomenologia
ajuda-nos a compreender a questão do tempo, tão importante na educação,
mostrando-nos que, embora real, o tempo da educação, da escola, da
pesquisa, do ensino e da aprendizagem segue uma outra lógica, se desenvolve
em outro ritmo e com outros fins. Sendo diferente do tempo do mercado,
da produtividade, da eficiência e do lucro, não pode a este ser reduzido.
(Coelho, p.90-1).

Ainda em (Coelho 1999, p.108-9), não existe ser humano e mundo: existe homem-
no-mundo. Haja vista sua capacidade de adaptação ao mundo em que ele se faz presente,
e que o modifica e pode ser modificado por ele. Sendo assim, nessa interação homem/
mundo, a ciência não pode partir precipuamente de objetos aprioristicamente dados. Mas
são percebidos em íntima relação, em que se abandona questão da neutralidade científica.
O mundo não é algo acabado, determinado. Portanto é percebido em determinados
momentos por algumas pessoas, em determinados lugares. Devido a isso pode-se
argumentar que a captação do indivíduo é subjetiva, mas as compreensões são
intersubjetivas, mediadas na relação homem/mundo, por componentes históricos, pela
cultura, pela linguagem, movidos pela afetividade, entendimento/interpretação e
comunicação. Apanhado pelas coisas, o ser humano manifesta seu íntimo ontológico,
entende-as e analisa-as para comunicá-las e compartilhá-las com pessoas que estejam
na mesma situação.
Mediante o exposto, percebe-se que as necessidades epistêmico-metodológicas
da geografia cultural humanista poderiam acompanhar os métodos, ou como preferem
alguns, a atitude fenomenológica. Sem falar dela no ensino-aprendizagem e sua
contribuição na disseminação dos saberes, principalmente de ordem científica. Essa
elaboração da ciência humana e/ou da geografia humana concreta-se sobre a
comunicação intra e inter indivíduos e seus respectivos grupos, assentados em ambientes
culturais diferenciados, que manifestam situações do cotidiano, vivendo e experienciando
cenas intencionalizadas. 9
Nos últimos anos a geografia coaduna-se afinadamente com o novo projeto da
humanidade, que coloca, de forma contundente, o homem no centro dos interesses
mundanos, até porque, apenas para lembrar, essa ciência está classificada, pela maior
parte da academia, como ciência social, que trabalha a organização espacial advinda do
humano. Nesse sentido, no contexto fenomenológico, existe uma conexidade
imprescindível entre as pessoas e seus mundos. Cada um com seu corpo e sua mente
constrói, por meio de suas vivências, mundos imaginários e reais, que se podem fundir

9
No sentido fenomenológico husserliano.

156
Terra Livre - n. 29 (2): 143-162, 2007

com a soma e comparações de vivências percebidas por outros em determinado contexto.


A geografia, para ser inserida nesta abordagem fenomenológica, teria que realizar
alguns ajustes, não em relação ao que estudar, mas em relação ao como estudar. Pois
sabendo-se que a natureza, substrato de existência do homem e de suas ações, não
deveriam ser previamente teorizadas, pois o mundo objetivo, previamente esquematizado,
não oferece subsídios necessários às observações fenomenológicas. Por outro lado, deve-
se voltar às coisas que desencadeiam no humano uma forma de desvelar o fenômeno,
mediante apreensões afetivas e intuitivas, proporcionando movimentações qualitativas
em determinadas situações.
A descrição é outro instrumento metodológico imprescindível para a fenomenologia,
assim como para a geografia. Na geografia ela foi importante; em determinada época,
talvez pela forma como era feita, foi criticada. Mas se for usada nos moldes
fenomenológicos, ela se transforma e adquire nova postura, acreditando-se ser de grande
magnitude as elaborações geográficas em sua vertente cultural humanista. Essa forma é
de grande importância, pois parte do indivíduo que descreve as coisas e, para tanto, deve
estar em contexto que determina um texto, organizado pelas palavras, associadas aos
signos e significações, contextualizadas por meio de várias idéias de outros, comunicando
suas percepções, divulgando publicamente suas experiências, mediante linguagem
desenvolvida culturalmente pelo grupo, que a usa na educação de forma didático-
pedagógica, para a apreensão e divulgação dos saberes.
Analisando o lado pedagógico e didático da geografia humanista cultural, fica mais
fácil de entender e até de justificar a subjetividade em relação ao conhecimento e sua
disseminação. Nesse caso pode-se citar as palavras de (Kozel, 2002, p.228), quando diz
que para se perceber a subjetividade das pessoas, tem-se que remontar as representações
mundanas das mesmas. Portanto as representações tornam-se fundamento das ações,
as quais pressupõem conhecimentos e não somente um processo de aprendizagem. A
mesma estudiosa, em outro momento, ressalta o papel fundamental dos mapas mentais e
das representações na produção dos conhecimentos geográficos e também na geografia
enquanto disciplina escolar.
Recordando o exposto, a subjetividade e a emoção fazem parte da natureza humana,
mas não tiveram muito espaço na produção do conhecimento. Por outro lado, no campo
educacional suas colaborações são constantemente solicitadas. Alguns estudos a esse
respeito estão sendo realizados, mas ainda são insipientes. Esse texto apresenta algumas
idéias que futuramente possam ser inseridas em elaborações mais densas e contundentes
na construção teórica e pedagógica, aplicáveis, também, ao ensino de geografia. Sendo
assim coloca a idéia oriunda da psicologia genética walloniana, à qual leva a emoção em
seu core. Isso está presente nessa colocação: “a emoção é, então, o ponto de partida do
psiquismo, (...) afirma que as emoções são a exteriorização da afetividade” (Bastos,
2003, p.48).

157
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...

A teoria psicológica walloniana pode ser aplica na educação, pois ela “deve,
obrigatoriamente integrar à sua prática e aos seus objetivos, essas duas dimensões, a
social e a individual: deve, portanto, atender simultaneamente à formação do indivíduo e
à da sociedade” (Galvão, 1999, p.91). Nesse sentido, ela vem de encontro as teorias
geográficas, quando se aproximam da linguagem e da questão mental, à saber:

A linguagem, ao substituir a coisa, oferece a representação mental o meio


de evocar objetos ausentes e de confrontá-los entre si. Os objetos e situações
concretos passam a ter equivalentes em imagens e símbolos, podendo,
assim, ser operados no plano mental de forma cada vez mais desvinculada
da experiência pessoal e imediata. (Galvão, 1999, p.91)

No ensino-aprendizagem, algumas iniciativas podem ser assinaladas, o que ocorre


em (Campbell; Campbell; Dickinson, 2000, p.21-4), destacando que cada educando é
único e cada indivíduo contribui para o enriquecimento cultural da humanidade. Portanto
tem-se que ter cuidado para não reduzir os programas educacionais somente para questões
predominantemente de inteligências lingüísticas e lógico-matemáticas. Por outro lado,
defensores de outras formas de apreensões cognitivas, destacam a inteligência emocional,
como (Goleman, 1995, p.305-7), a qual, mesmo em seu estágio inicial de estudos, pode
contribuir, pois destaca que a emoção possui uma lógica que lhe é própria e nesse sentido
é muito mais rápida que a mente racional. A mente emocional se utiliza de elementos
semiológicos (signos, símbolos e simbologias) para caracterizar determinada realidade.
Portando necessita da percepção do indivíduo, impregnada de emoção e sentimentos,
isso se apresenta como passo inicial na busca de representações mais complexas e objetivas
(a serem usadas nos conhecimentos geográficos.) 10

Já que a mente racional demora mais para registrar e reagir aos fatos do
que a mente emocional, o primeiro impulso, em circunstâncias emotivas,
não vem da cabeça, mas do coração. Há um outro tipo de reação emocional
que não é tão rápido – fervilha e fermenta no pensamento antes de se
configurar como sentimento. (...) No processo de resposta rápida, ao
contrário, o sentimento precede ou é simultâneo ao pensamento. Essa reação
emocional do tipo jogo rápido assume o comando em situação com urgência
da sobrevivência primal. (Goleman, 1995, p.305).

Ampliando a questão de teorias educacionais, colocam-se as idéias de (Gardner,


2007) quando de sua entrevista à revista Pátio – Ed. Artes Médicas ressaltando as Múltiplas
Inteligências, dizendo que cada indivíduo é singular e em se tratando de inteligências cada
um tem a sua e estas são diferenciadas. Ele relata que no caso da educação a teoria das
inteligências múltiplas, implica no seguinte: “todos nós temos tipos diferentes de mente, e
o bom professor tenta se dirigir à mente de cada criança de forma mais direta e pessoal

10
Grifo nosso — buscando associar essas teorias de ensino-aprendizagem ao ensino de geografia

158
Terra Livre - n. 29 (2): 143-162, 2007

possível (...) mais crianças sentem que suas forças pessoais estão sendo reconhecidas”.
Gardner (2007), em sua entrevista diz que, a maior dificuldade é conhecer cada
educando como ele realmente é; saber o que ele é capaz de fazer e centrar a capacidade
nos interesses de cada um deles. Por outro lado, diz que, o professor é um antropólogo
que estuda cada aluno cuidadosamente, e um orientador que ajuda o educando a atingir
seus próprios objetivos e os objetivos idealizados pela sociedade através da escola. Portando
formas criativas e inovadoras devem passar pela educação, subsidiando educadores e
educandos renovando, dinamizando e disseminando o processo ensino-aprendizagem.

Conclusão

O ser humano é um eterno aprendiz; os diversos movimentos que realiza no ato de


aprender e a própria consumação da aprendizagem podem, na medida de sua vontade,
ambição e sonhos, transformarem-se em ensino, portanto não contrariando o dialogismo
ou multilogismo inerentes ao homem. Não se pode excluir desse processo o conhecimento
científico que substanciou o projeto da sociedade moderna, até o presente momento.
Ocorre que a sociedade, inspirada por sua faceta política, acaba optando pelo racional
em detrimento do emocional. Tudo de gênese material ou física prevalece, inclusive na
elaboração dos saberes, principalmente de ordem científica. Isso deixa a sociedade manca,
e de certa forma engessa algumas partes de seu todo. Isso leva o homem a ser
extremamente objetivo, técnico, frio, autômato, “exato” e outras características que o
fazem afastar-se de sua essência humana.
Portanto o homem perde sua capacidade de imaginar e criar, por meio de seu
sentir e segue o caminho de ser e pensar, que o conduziu a grandes avanços em alguns
setores do conhecimento, os que serviram pelo menos para parte da humanidade em
determinado momento, aos quais hoje já não satisfazem a seus anseios. Inclusive esse
modo de vida causa desconforto e insatisfação na maioria dos mais de seis bilhões de
pessoas que vivem no planeta, sem falar do desgaste dos elementos naturais nele existentes,
que serviram de base para a satisfação das necessidades e também das não necessidades
dos habitantes da Terra.
Diante do exposto, torna-se visível a necessidade de uma reestruturação dos ideais
humanos, partindo-se de uma reeducação de seus saberes e uma revisão de suas
capacidades e possibilidades que atendam a essas necessidades, que não são tão novas
assim, mas ficam subjugadas e proteladas, como já dito, por parte da sociedade, que
talvez não levou em consideração todas a facetas do ser humano na execução de seu
projeto de vida.
Analisando algumas passagens da geografia humana na ciência como um todo e
da geografia cultural humanista, principalmente de cunho fenomenológico, vislumbram-
se algumas possibilidades, principalmente no viés metodológico e pedagógico, que
contemple a sociedade, a ciência e sua produção cultural, pela exaltação da percepção

159
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...

fenomenológica, pois esta apresenta alternativas que auxiliam na apreensão e divulgação


do conhecimento, principalmente em ordem científica, como é o caso da geografia. Ela
respalda-se, como diz (Bicudo, 1999, p.21), na objetividade do mundo natural, e nesse
sentido não contrária a filosofia cartesiana e parte como esta, em busca de idéias palpáveis
e distintas para em seguida tentar compreender o objeto observado. Nesse sentido, o
ponto de partida é determinado pelo indivíduo que busca descrever a parte e a sua totalidade
em determinado contexto.
Visto que a fenomenologia traz em si uma pedagogia alternativa, parte-se, segundo
modelos husserlianos, de uma suspensão intencional e situacional dos eventos, para
posterior, se necessária, comparação e construção de formas e visões diferenciadas.
Isso acaba se materializando nos conhecimentos geográficos por meio da descrição,
inicialmente subjetiva e, na seqüência, intersubjetiva dos seres, em seus mundos e vidas.
Contudo se faz pertinente salientar que existe uma intersubjetividade prévia, que de certa
forma prescreve e intencionalizam as incursões ao conhecimento, daí a importância da
abordagem da geografia cultural humanista e de seu aporte fenomenológico na busca do
conhecimento geográfico contemporâneo.

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(NEPEC). Rio de Janeiro, n.3, 1997.
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161
CORREIA, M. A. POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA
GEOGRAFIA...

Recebido para publicação dia 15 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 01 de Fevereiro de 2008

162
IDENTIDADE Resumo: O direito à titulação coletiva de terras pertencentes
TERRITORIAL às comunidades rurais de negros, concedido pelo Estado
QUILOMBOLA - UMA brasileiro desde 1988, impulsionou uma série de processos e
ABORDAGEM articulações sociais em prol do reconhecimento identitário
GEOGRÁFICA A PARTIR quilombola. Diversos grupos negros rurais se inseriram no
sistema jurídico-político do Estado-nação brasileiro,
DA COMUNIDADE transformando e tornando híbridos seus usos tradicionais
CAÇANDOCA do espaço. As territorialidades destes grupos, formadas no
(UBATUBA/SP)* passado como uma conseqüência à exclusão sócio-espacial
historicamente vivenciada pelos negros explorados pelo
sistema escravista, vem sendo afirmadas e resignificadas
através da posse territorial como um marco identitário. O
presente texto propõe uma análise destes processos a partir
da realidade da Comunidade da Caçandoca, Ubatuba/SP.
TERRITORIAL IDENTITY Palavras-chave: identidade territorial; uso e ocupação do
QUILOMBOLA – A GEOGRAPHY espaço; titulação de terras; comunidades quilombolas;
BOARDING FROM THE COMUNIDADE
território nacional.
CAÇANDOCA
(UBATUBA/SP)
Abstract: The right of the land titling of agricultural black
communities granted in Brazilian Constituition, which secure
IDENTIDAD TERRITORIAL the right of property for quilombo lands, has stimulated
QUILOMBOLA - EL SUBIR
GEOGRÁFICO DE LA COMUNIDADE
processes and social articulations for a identitary reconigtion
CAÇANDOCA of quilombo lands in Brazil. Under the light of this process,
(UBATUBA/SP) black country groups were insered in this Brazilian juridic-
political system, which has transformed and hybridizated the
traditional uses of space. The territorialities of these groups
which were formed in the past by the social, spacial and racial
MARIA TEREZA DUARTE segregation - lived by those exploited people since slaverly
system – have been affirmed and resignificated through the
PAES LUCHIARI territorial ownership as a identity landmark. The present text
considers an analysis of these processes from the reality of
Professora do Depto de the Community of the Caçandoca, Ubatuba/SP.
Sociologia da Universidade
Estadual de Campinas - Key-words: territorial identity; use and occupation of the
UNICAMP space; land titling; quilombolas communities; domestic
E-mail: luchiari@ige.unicamp.br territory.

Resumen: El derecho de titulación de las tierras para las


comunidades negras campesinas, concedidas para el gobierno
ISABEL ARAUJO ISOLDI brasileño desde 1988, estimuló una serie de procesos y
articulaciones sociales en busca del reconocimiento
Mestranda em Geografia - identitario quilombola (remanecientes de esclavos fugitivos).
Universidade Estadual de Este sistema legal-político del Estado-nación brasileño
engloba diversos grupo negros campesinos que pasan por
Campinas - UNICAMP transformar y hibridizar sus usos tradicionales del espacio.
Las territoriedades de estos grupos, formadas en el pasado a
E-mail: través de la exclusión social y espacial vivienciadas
isabelisoldi@yahoo.com.br históricamente por la explotación de los negros durante la
esclavitud, están en proceso de afirmación e resignificación a
través de la propiedad territorial como un marco identitario. El
actual texto considera un análisis de estos procesos de la
* Artigo escrito a partir do trabalho: realidad de la comunidad del Caçandoca, Ubatuba/SP.
Identidades territoriais quilombolas Palabras claves: identidad territorial; uso y ocupación del
– a Comunidade da Caçandoca, espacio; titulación de tierras; comunidades quilombolas;
Ubatuba/SP. Campinas, Instituto de territorio nacional.
Geociências da Universidade
Estadual de Campinas, 2005. 61p.
(Monografia em Geografia).

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 163-180 Ago-Dez/2007


163
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

Introdução

O uso do espaço no território nacional é marcado por relações sociais de poder


que expressam heranças culturais de um passado colonial e escravista, ainda presente
nas questões raciais vivenciadas no cotidiano pela população negra no Brasil. Ainda que
o mito fundador da nação brasileira considere que três principais raças – o branco europeu,
o índio nativo, e o negro africano – deram origem a um povo mestiço e livre de preconceitos,
cuja diversidade cultural é motivo de riqueza, esta suposta democracia racial camufla o
racismo, fortemente presente na sociedade. Para Guimarães (2002, p.119):

“Conquanto a pequena presença demográfica européia, ante a população de


origem indígena e africana, tenha acabado por fazer predominar no país
uma população biologicamente mestiça, ela nunca pôs em cheque o caráter
europeu da civilização brasileira, nem de suas classes dominantes, nem
mesmo a cor branca da maioria da sua população”.

As relações de poder no espaço são evidenciadas por processos dinâmicos de


opressão e resistência que, durante a história da formação da nação brasileira, resultaram
em diversas formas de relações sociais. Os quilombos são um importante exemplo da
resistência negra em relação ao uso capitalista do território, enquanto formações territoriais
baseadas em outra racionalidade, pautada em valores de uso comum da terra e dos
recursos, coletivizados e não geradores de lucro. Segundo Alfredo Wagner, “tradicional é
uma maneira de ser, uma maneira de existir, é uma maneira de demandar, de ter identidade
coletiva”. (ALMEIDA, 2006, p.67).
Ocorre que este longo processo de uso e ocupação do território brasileiro pelos
negros, que remete ao passado colonial e passa por uma série de acontecimentos históricos,
adquire mais uma faceta a partir do fim da década de 1980, quando se finda o período da
ditadura militar e uma nova Constituição Federal é votada. São instituídos instrumentos
legais para que os povos formadores da nação brasileira adentrem a condição de cidadania.
Os artigos 215 e 216 da Constituição de 1988 garantem proteção estatal aos grupos
participantes do processo civilizatório nacional, bem como aos patrimônios materiais e
imateriais que façam referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. (ALMEIDA, 1999).
Além disso, o artigo 68 garante às comunidades negras rurais que comprovarem
suas origens enquanto remanescentes de quilombo, a possuir o título de seus territórios:

Artigo 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (Constituição Federal de 1988)1

1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicaocentração

164
Terra Livre - n. 29 (2): 163-180, 2007

Neste processo, os territórios étnicos negros são reconhecidos pelo Estado em um


processo supostamente contrário à exclusão sócio-espacial a que os negros estão
submetidos desde o início da formação do Brasil. No processo de reconhecimento e
titulação de terras quilombolas, a identidade cultural destes grupos é resignificada, uma
vez que a comunidade se afirma entre si e perante a sociedade enquanto um grupo cuja
herança histórica constitui um patrimônio nacional. O acesso à terra, garantido por lei,
exige a mobilização política das comunidades e lhes garante legitimidade enquanto grupo
formador da sociedade, da qual estiveram historicamente excluídos.
A partir dos anos de 1960 foram desencadeadas intensas mudanças econômicas e
sócio-espaciais, desarticuladoras de antigas ordens locais, tais como os processos
produtivos da sociedade urbano-industrial, orientadas por uma mesma lógica e em
sobreposição aos usos do território pelas comunidades tradicionais e com a supressão de
paisagens construídas ao longo do tempo.
A modernização do território nacional, foi responsável por vetores que criaram
momentos de ruptura em sistemas comunitários estruturados, muitas vezes, por mais de
um século. A questão acaba por assumir um caráter de embate cultural e de sobreposição
de poderes. A terra, principal recurso das comunidades tradicionais, tornou-se alvo de
uma disputa entre o Estado-nação, cujo intuito era modernizar e integrar o território nacional,
as empresas privadas, que se utilizam do território para expandir os investimentos e
reproduzir seus bens, e as populações tradicionais, que se utilizam da terra enquanto
recurso fundamental para a reprodução da vida. Para Becker (1996, p.11), nesse período,
“sociedade e natureza foram tratados como estoques, cujos fluxos deveriam ser
dinamizados através do incremento de mobilidade do trabalho, de incorporação de novas
terras e de extração em larga escala dos recursos minerais e energéticos”.
Os vetores impostos pelos dois grandes agentes, o Estado nacional e as empresas
privadas, criaram rupturas e instabilidade entre as populações tradicionais. Sem estabilidade
no território e impossibilitados de prosseguir com o modo de vida tradicional, os moradores
são impulsionados a admitir um modelo de vida similar ao urbano. No entanto, a falta de
recursos como energia elétrica, asfalto, escolas e postos de saúde, impossibilitam a inclusão
destes enquanto cidadãos. Ficaram a meio caminho, distanciados de sua realidade anterior
ligada às tradições do passado, e distantes da realidade do modo de vida moderno, urbano
e capitalista, pelas impossibilidades de acesso ou ascensão social.
Cabe ressaltar que, ao generalizar um processo tão amplo, corre-se o risco de
uma simplificação. Ao se considerar os casos de regulamentação dos quilombos que
ocorrem por todo o território nacional, muita variedade será encontrada. Por isso, as
situações de conflito necessitam de uma análise mais aprofundada, já que o panorama
notado à primeira vista certamente será complexizado à medida que mais elementos
constitutivos dos processos sejam reconhecidos. É neste viés que o estudo da Comunidade
da Caçandoca, em Ubatuba, no Litoral Norte Paulista, pretende contribuir com a reflexão
aqui apresentada.

165
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

Espaço geográfico e identidade territorial

O valor do espaço é determinado a partir do uso que dele é feito. Por meio de sua
apropriação demarcam-se territórios que, enquanto porções do espaço, são socialmente
construídos e ocupados. Essa apropriação do espaço, concreta ou abstrata, permite a
territorialização de formas, impressas de poder (Raffestin, 1993). Os territórios nacionais
são um exemplo claro de demarcação de fronteiras enquanto posse de uma porção do
espaço, cuja afirmação de identidade e unidade da nação, legitimam uma soberania
nacional.
Cada território desenvolve sistemas territoriais próprios, que asseguram o controle,
impõem ordens e permitem realizar a integração e a coesão. Segundo Raffestin (1993,
p.150), estes sistemas são constituídos por sistemas de malhas, nós e redes que possibilitam
a circulação e comunicação, fundamentais para as dinâmicas territoriais. E é nesse sentido
que cada território desenvolve uma dinâmica singular, que o difere dos demais.
Essa singularidade também se aplica, ainda que em outra escala, aos lugares. O
lugar é a categoria do espaço geográfico onde a realidade acontece. Ao passo que o
mundo nos é estranho, o lugar nos é próximo, nele estão superpostos os tempos externos
das escalas superiores e os tempos internos, da coexistência, onde as noções e as realidades
de espaço e tempo se fundem. (SANTOS, 2004).
É a partir da escala do lugar que o mundo se concretiza por meio de sistemas de
objetos e ações, deixando de ser uma abstração. O espaço é amplo e abstrato, ele apenas
se torna real no lugar, onde ordens globais se materializam. Dessa forma, o lugar não é
somente uma parte do mundo, mas o próprio mundo localizado. (LUCHIARI, 1999, p.10).
Desta maneira, é nos lugares que a vida social se recria. As relações sociais e
territoriais ali se dão enquanto realidade palpável. E, como os lugares e o mundo formam
uma totalidade dinâmica, as identidades dos lugares são produzidas constantemente, não
são apenas cristalizações do passado, heranças do vivido, mas representações do mundo
no lugar e do lugar no mundo. Assim podemos pensar em um espaço social híbrido, onde
novos e velhos usos do território coexistem como um motor de dinâmica do lugar.
Os sistemas territoriais são responsáveis tanto pelas relações de convergência,
através das redes, quanto pelas relações de rupturas e disjunções. Cada sistema segrega
uma territorialidade própria, que é vivida pelos indivíduos e pela sociedade. A territorialidade
se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais. Para a análise das territorialidades
é necessária a apreensão das relações reais recolocadas no seu contexto sócio-histórico
e espaço-temporal. (RAFFESTIN, 1993).
Como formas de expressão da singularidade dos lugares, as territorialidades denotam
as formas de apropriação do espaço, exclusivas a cada localidade. Segundo SOJA, a
territorialidade seria composta de três elementos, o senso de identidade espacial, o senso
de exclusividade e a compartimentação da ação humana no espaço. Ela reflete a
multidimensionalidade do ‘vivido’ territorial pelos membros de uma coletividade e pelas

166
Terra Livre - n. 29 (2): 163-180, 2007

sociedades em geral. Trata-se de “um fenômeno de comportamento associado à


organização do espaço em esferas de influências ou em territórios nitidamente
diferenciados, considerados distintos e exclusivos, ao menos parcialmente, por seus
ocupantes ou pelos que os definem”. (SOJA, E. W. The Political Organization of
Space. Washington, D.C., Association of American Geographers, 1971 apud RAFFESTIN,
1993, p. 159).

“A territorialidade mediatiza a relação entre os homens, e a destes com a


natureza. Assim, podemos dizer que a apropriação da natureza, de certa
forma, exterioriza a dominação entre os homens. A análise da territorialidade
rompe com a dicotomia clássica entre Homem e o Meio, pois, ao traçarem
territorialidades, os homens conjugam as relações com a natureza e as
próprias relações de poder”. (LUCHIARI, 1999, p.31).

Dessa forma, a territorialidade evidencia e caracteriza a maneira como uma


sociedade se apropria do território, a partir de concepções e racionalidades próprias que
muitas vezes se colocam em oposição ou em contradição a outros grupos sociais ou
sociedades. Neste processo, há de se levar em conta os lugares como motor e suporte da
formação de identidades culturais. O lugar é constituinte da vida dos indivíduos e dos
grupos, e por isso influencia e até mesmo produz, tanto subjetivamente como objetivamente,
identidades culturais e sociais. (BOSSÉ, 2004). O uso e a ocupação de determinado
território são fundamentais na formação da identidade cultural.
A construção da identidade passa também pela consideração de uma herança e
pela preservação de um patrimônio sócio-histórico. A capacidade de recordar, preservar
e perpetuar um passado faz parte de um sentimento identitário. Desse modo, a ocupação
de lugares, com o decorrer do tempo, permite o enraizamento e a criação do sentimento
de pertencimento.
Além da importância do processo histórico na formação de identidades culturais, é
importante considerar as práticas que consolidam o cotidiano; “o território identitário não
é apenas ritual e simbólico; é também o local de práticas ativas e atuais, por intermédio
das quais se afirmam e vivem as identidades”. (BOSSÉ, 2004, p.169). Desse modo, as
práticas sociais constitutivas de uma territorialidade simbólica, legitimam o sentido de
pertencimento por meio do qual os grupos afirmam e reivindicam sua identidade cultural
e política em relação ao seu próprio lugar.
A identidade territorial está diretamente ligada aos significados do território na
construção do imaginário social. A noção de pertencimento ao lugar é construída a partir
da vivência e das práticas sociais, e passa a ser constituinte da própria noção de ser.

“Produto e produtor de identidade, o território não é apenas um ‘ter’,


mediador de relações de poder (político-econômico) onde o domínio sobre
parcelas concretas do espaço é sua dimensão mais visível. O território

167
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

compõe também o ‘ser’ de cada grupo social, por mais que a sua cartografia
seja reticulada, sobreposta e/ou descontínua”. (HAESBAERT, 1999, p.186).

A formação da identidade local, assim como o cotidiano dos lugares, se desenvolve


a partir da interação de vetores de diferentes escalas. Os contextos externos ao lugar
criam constantemente relações espaciais que o afetam reciprocamente. É desse modo
que os lugares não podem ser considerados como recipientes identitários fixos e voltados
para eles mesmos, mas como ‘redes porosas, abertas às relações sociais’ que situam
toda a efervescência identitária local em um contexto de fluxos relacionais mais amplos.
(BOSSÉ, 2004, p.171).
Assim, a análise de identidades territoriais deve levar em conta o processo
histórico de formação do lugar enquanto uma herança cultural e material, as práticas
cotidianas do grupo identitário e as relações entre o lugar, a região e o mundo que incidem
neste cotidiano vivido no lugar.

Territorialidades quilombola e Estado nacional

As territorialidades próprias das terras de quilombo só começaram a ser discutidas


cem anos após a abolição da Escravatura, devido à promulgação do artigo 68, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias de 1988. O artigo garante a posse da terra aos
remanescentes de quilombo e acaba por trazer à tona uma série de questões acerca do
tema, desde questões mais pragmáticas de como reconhecer e titular os quilombos, até
as questões referentes à identidade, ao pertencimento e à dívida nacional em relação a
estas populações.
As origens do negro na sociedade brasileira remontam ao trabalho escravo. Devido
à colonização portuguesa no Brasil, muitos africanos e seus descendentes foram feitos
escravos e “inseridos no sistema de exploração do homem pelo homem, enquanto
instrumento de trabalho e capital”. (BASTIDE & FERNANDES, 1971).
A marca desta opressão não se diluiu com a abolição da escravatura, ao contrário
disso, a libertação dos escravos apresentou uma faceta cruel, pois se tratou de um momento
no qual o negro, em vez de adentrar ao sistema produtivo enquanto trabalhador livre foi
substituído pelo trabalhador branco e posto à margem da sociedade.
Uma vez exclusos do sistema econômico vigente, os negros, ex-escravos, foram
condenados à exclusão do acesso legal à terra. A ideologia que tratava o negro como
uma raça inferior, aliada à tentativa de embranquecimento da população, deixou de lado
contingentes populacionais negros, outrora extremamente usados como força de trabalho.
Segregados dos modos produtivos formais, diversos grupos prosseguiram em suas práticas
sociais, sustentados, sobretudo, pelo modo de vida rural, criando territorialidades próprias.
A posse da terra pelos negros não obedecia a uma formalização legal; suas terras lhes
pertenciam de acordo com o uso e não com a titulação formal, legalizada em cartórios.
Durante mais de um século, essas localidades permaneceram praticamente exclusas

168
Terra Livre - n. 29 (2): 163-180, 2007

do reconhecimento da sociedade, devido à pobreza das comunidades, à distância dos


centros urbanos e às dificuldades de acesso. Porém, a partir da década de 1960, diversos
vetores passaram a atingir bruscamente essas localidades. A modernização do território
promovida pelo governo militar e também a expansão do capital urbano atingiram
diretamente o modo de vida de comunidades tradicionais em geral, incluindo caiçaras,
ribeirinhos, seringueiros, quilombolas, entre outras. Diversos são os exemplos de
intervenções no espaço, objetos do planejamento territorial do Estado, ou dos interesses
privados, como a implementação de rodovias, barragens, áreas de conservação ambiental,
urbanização e especulação imobiliária (LUCHIARI, 2002, p.31-32). As terras de posse
de comunidades rurais, cujas documentações eram basicamente inexistentes, passaram
a ser alvo de outros interesses, cujo poder permitiu a expulsão dos moradores tradicionais.
Essas ações tornaram as décadas de 1960 e 1970 um marco de ruptura das antigas
ordens vigentes e das territorialidades vivenciadas pelas populações tradicionais. Muitos
saíram de suas terras, outros deixaram de plantar, pescar, caçar e se utilizar dos recursos
naturais por conta de uma normatização do território visando a preservação ambiental.
Tornou-se necessário adentrar o modelo produtivo capitalista como meio de sobreviver
às transformações.
A questão da terra tornou-se uma grave problemática, uma vez que expulsões
estavam tornando-se comuns no cenário das populações tradicionais. Com o fim do período
militar, as lutas de movimentos sociais, entre eles o Movimento Negro, pode ter uma voz
mais ativa na exigência de direitos. Em 1988, durante a elaboração do texto constitucional,
a participação popular foi às ruas recolher assinaturas para emendas populares elaboradas
nos sindicatos patronais e dos trabalhadores, associações comunitárias, movimentos
indígenas, feministas, estudantis, empresariais, entre outros. Segundo SILVA (1997, p.13):

“O que consta hoje no texto constitucional é o resultante desse caldo


reivindicatório que legitimou a Constituição Federal de 1988 como cidadã e
democrática, exatamente porque exprime a cara de seu povo, e mais, busca
alterar uma realidade extremamente perversa que viola direitos da grande
maioria da população”.

Devido às pressões populares, o governo se deparou com a necessidade de uma


reclassificação dos imóveis rurais. Através do INCRA e do IBGE iniciou-se um processo
de reconhecimento de propriedades rurais que estavam fora dos padrões reconhecidos
usualmente, uma vez que apresentavam uma forma coletiva de ocupação do território.
Essas propriedades foram definidas como Ocupações Especiais.

“Essas ocupações especiais contemplaram as chamadas terras de uso


comum, que não correspondem a ‘terras coletivas’, no sentido de
intervenções deliberadas de aparatos de poder, e tampouco correspondem
a ‘terras comunais’, no sentido emprestado pela feudalidade. Compreendem
uma constelação de situações de apropriação de recursos naturais (solo,

169
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

hídricos e florestais) utilizando-os segundo uma diversidade de formas e


com inúmeras combinações diferenciadas entre o ‘uso privado’ e o ‘comum’,
per passadas por fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores
históricos, político-organizativos e econômicos, consoante as práticas e
representações própria.”.(ALMEIDA, 1999, p. 11)

As terras consideradas como Ocupações Especiais, se referiam às terras de pretos,


de santos, de índios, de caiçaras, enfim, das populações tradicionais cujas territorialidades
diferem do padrão da sociedade urbano-industrial. Com a denominação de Ocupações
Especiais, o Cadastro de Glebas deu a entender que contemplaria estas situações, mas
não houve nenhum desdobramento. Em 1987 ocorreu um refluxo da pressão dos
movimentos sociais e os termos de negociação dos conflitos revelaram mediadores
debilitados com as mal sucedidas e anti-democráticas Comissões Agrárias. (ALMEIDA,
1999).
Apresentou-se, neste processo, uma grande dificuldade de reconhecimento das
terras de negros. Ainda que o debate tenha culminando no artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias de 1988, o desdobramento foi restritivo e limitante devido à
concepção de quilombo utilizada pela legislação, mais voltada “para o passado e para o
que idealmente teria ‘sobrevivido’ sob a designação formal de ‘remanescentes das
comunidades de quilombo’ ”. (ALMEIDA, 1999, p.11).
Segundo Silva (1997), entre os congressistas de 1988 imperou a frágil concepção
do senso comum, de que as comunidades negras remanescentes de quilombo remontam
ao passado, representando resquícios insignificantes de uma história que deve ser
esquecida. Os quilombolas são tidos neste viés como populações fadadas ao
desaparecimento, ou mesmo inexistentes.
Porém, a história da escravidão no Brasil, encarada sob outro aspecto que não o
oficial e submetida a uma análise detida da conflituosa realidade fundiária urbana e rural
brasileira, autoriza um outro tipo de compreensão do problema. Os quilombos foram uma
importantíssima forma de oposição à escravidão “que em termos históricos é recente e
aflige contemporaneamente as consciências comprometidas com os valores da liberdade
e da igualdade enquanto direitos historicamente construídos pela humanidade”. (SILVA,
1997, p.17). O reconhecimento do valor desta luta é uma obrigação do governo e da
sociedade, uma vez que existe uma dívida da nação brasileira como um todo para com os
afro-brasileiros.
Neste contexto, o artigo 68 do ADCT seria:

“um tipo de operação jurídico-constitucional de compensação, aprovada


no texto legal maior pelo Estado brasileiro, em razão do regime da escravidão,
e fator mais grave, pelo abandono e exclusão do acesso à terra a que foram
sentenciado contingentes populacionais negros em virtude do perverso
processo político-jurídico da abolição, firmado em lei simplória que deu
fim formal ao regime escravocrata”. (SILVA, 1997, p.17).

170
Terra Livre - n. 29 (2): 163-180, 2007

O texto constitucional redigido após o período autoritário, propõe a proteção, por


parte do Estado, às manifestações populares indígenas e afro-brasileiras; e deixa clara a
intenção governamental de tornar patrimônio brasileiro as culturas das populações
historicamente excluídas. É importante ressaltar que, segundo Raffestin (1993), a
discriminação racial conduz a desequilíbrios internos que determinam tensões políticas
muito perigosas para a coesão do Estado. Dessa forma, a inclusão das minorias interessa
ao fortalecimento e unidade do Estado nacional.
O artigo 68 acaba por normatizar a identidade quilombola, uma vez que para a
obtenção da titulação da terra é necessário que a comunidade requerente prove a
veracidade de sua identidade e se enquadre no conceito de quilombo adotado pela
legislação. Ainda que a maioria das reivindicações por titulações de terras de quilombos
seja precedida por conflitos fundiários e não por inquietações em relação à identidade, as
comunidades, muitas vezes, visando articular estratégias políticas para reivindicar seus
direitos, retomam símbolos e valores já esquecidos, que confirmem o seu passado e o seu
pertencimento àquela terra.
Além disso, é necessário que os comunitários apreendam as maneiras de adentrar
o sistema jurídico e político do Estado-nação para participar dos processos de luta por
suas terras. Dessa maneira se dá uma intensa hibridização entre grupos tradicionais e a
modernidade. O termo quilombola, adotado inicialmente de forma política, devido aos
conflitos fundiários que envolvem muitas comunidades, acaba por ganhar sentidos singulares
na medida em que se torna próprio a cada situação de processos em curso. São comuns
os exemplos de pessoas que não queriam ser tratadas por quilombolas por remeterem o
termo à escravidão, uma referência identitária estigmatizada que se pretendia que fosse
esquecida, porém com a apreensão do termo e o consenso da necessidade da titulação da
terra, permitiram que este fosse aceito e revisto. (ISOLDI, 2005).
No contexto brasileiro, ainda que de fora do sistema econômico vigente, do sistema
de trabalho e consumo, grupos sociais como as populações negras formadoras de
quilombos, estiveram durante o processo histórico, construindo e reconstruindo vias
alternativas de pertencimento ao território. Com a atual possibilidade de titulação, as
comunidades passam a existir legalmente perante a sociedade; a institucionalização destes
grupos tradicionais corresponde a um processo de modernização, enquanto uma
possibilidade de inclusão na cidadania.

A Comunidade Quilombola da Caçandoca (Ubatuba/SP) – territorialidades e


mudanças

As transformações nos usos do espaço no litoral norte paulista, marcados pela


urbanização turística (LUCHIARI, 2000), e pela implantação de unidades de
conservação, sobretudo pela normatização do Parque Estadual da Serra do Mar, de 1977
2
, desestruturaram as territorialidades das comunidades litorâneas, de modo que o sistema

171
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

comunitário de uso de recursos naturais e da produção e troca de alimentos, foi


desorganizado. Tornou-se necessário ingressar no mercado de trabalho capitalista, na
sociedade de consumo e no sistema de propriedade privada. As territorialidades tradicionais
de posse comum da terra e uso dos recursos naturais entraram em choque com as ordens
impostas pela expansão do capital e da técnica.
É neste contexto que a Comunidade Quilombola da Caçandoca, localizada no sul
do município de Ubatuba, Litoral Norte do Estado de São Paulo, em uma planície costeira
típica deste trecho do litoral, onde encontramos importantes remanescentes de Mata
Atlântica, tem seu modo de vida tradicional desestruturado e se vê diante da necessidade
de transformação, como possibilidade para a sua sobrevivência enquanto grupo. A situação
conflituosa na qual a Comunidade da Caçandoca foi inserida é muito semelhante às
situações de outras comunidades tradicionais brasileiras, cujas territorialidades foram
suplantadas pelos sistemas técnicos da sociedade urbano-industrial.
As origens desta comunidade remontam a uma fazenda de café, de propriedade
de José Antunes de Sá, desde 1858. A fazenda produzia sob o regime escravagista e era
administrada em três núcleos, sendo eles Caçandoca, Saco da Banana e Saco da Raposa,
cuidados por cada um dos filhos do proprietário, Isídio, Marcolino e Simphonio. (SCHIMITT,
2000, p. 16).
No fim do século XIX, a produção de café no litoral entrou em decadência; o solo
e o clima da região desfavoreciam a produção, que foi intensificada no interior do estado
de São Paulo. Por conta disso, diversas fazendas do litoral paulista entraram em decadência
no mesmo período. O desmembramento da fazenda Caçandoca se deu em 1881, com o
abandono por parte do proprietário e a substituição da produção de café pelo cultivo de
banana e mandioca, que eram trocados ou vendidos entre comunidades vizinhas. Com o
dinheiro comprava-se sal, querosene e roupas. Além disso, os moradores plantavam roças
para consumo próprio, pescavam, caçavam e extraiam matéria-prima das matas.
(SCHIMITT, 2000).
Neste núcleo estabeleceu-se uma comunidade de remanescentes de escravos e
os descendentes gerados entre estes e os filhos do antigo proprietário. Os núcleos
administrativos deram lugar a bairros rurais, onde as festividades, o cultivo da terra, a
pesca e as intrincadas teias de parentesco marcavam uma vida comunitária. A relação
com as localidades de fora da comunidade ocorria nas ocasiões de venda de banana e
farinha de mandioca, compra de alguns produtos e também das festividades. O modo de
vida, similar ao caiçara, perdurou por muitos anos, do começo do século até meados da
década de 1960, quando novos processos de uso do território desestruturaram uma antiga
ordem vigente.
A memória do grupo enquanto descendentes de escravos é viva na comunidade;
vários moradores da Caçandoca têm lembranças de seus avós ou bisavós que foram

2
O decreto estadual n° 10.251 de 30 de Agosto de 1977, institucionalizou uma área de 315.390 ha como área
de preservação

172
Terra Livre - n. 29 (2): 163-180, 2007

cativos e trabalharam na antiga fazenda de café. A convivência da comunidade era ‘muito


gostosa’, segundo a senhora Marciana dos Santos3 , 62 anos, moradora da Caçandoca.
De acordo com os depoimentos dos moradores com mais de 50 anos, não havia maldade
entre as pessoas e estas eram mais ingênuas. A educação dada aos filhos era mais rígida
e os filhos respeitavam muito mais os pais, pediam a benção e ouviam seus conselhos.
Estes moradores relatam o passado como um tempo de trabalho em conjunto, de festas,
de fartura alimentícia e cultural - um tempo que ainda povoa a memória.
Estima-se que, na década de 1960, a população total da comunidade da Caçandoca
era de cerca de 70 famílias, somando 800 pessoas. Esse número diminuiu consideravelmente
após as diversas expulsões em função dos conflitos envolvendo suas terras. Várias das
famílias que tiveram de deixar a Caçandoca residem em cidades próximas do litoral e do
Vale do Paraíba Paulista, e mantêm contato com os que permaneceram na comunidade,
atualmente composta por 19 famílias. (SCHIMITT, 2000).
A educação é precariamente oferecida para a comunidade. As duas escolas
municipais que existiam na Caçandoca foram fechadas na década de noventa, sendo
alegado pela prefeitura de Ubatuba a quantidade insuficiente de alunos para a permanência
das atividades. Para ter acesso ao ensino é necessário que os alunos se locomovam para
a Maranduba, com um ônibus municipal. No entanto, em dias de chuva o ônibus não
chega até a comunidade, já que a estrada que os liga até a BR 101 não é asfaltada. Além
disso, alguns alunos ao chegar da escola de noite, sentem medo de andar no escuro na
Caçandoca, pois o ônibus os deixa na praia do Pulso, sendo necessário andar cerca de 1,5
a 2 km para estar em casa.
Além das dificuldades estruturais, existem outros problemas. Os professores da
Maranduba não estão preparados para tratar da realidade dos alunos da Caçandoca.
Eles reclamam que seus professores ‘nem sabem o que é quilombo’. Em sala de aula não
são tratados os temas referentes à realidade local, como a história do quilombo, o significado
da resistência e da posse da terra ancestral.
A existência de uma escola dentro da Comunidade, cujos professores façam
parte da realidade local e estejam preparados para tratar dos temas relevantes as situações
da Caçandoca e da população negra em geral, é fundamental. Tal ação fortificaria a
identidade e o sentimento de pertencimento da comunidade, uma vez que a coesão entre
o grupo seria intensificada e valorizada.
Atualmente, poucas são as atividades que integram os moradores. Desde que as
atividades tradicionais foram suplantadas, ações coletivas como plantios, festas e mutirões
de construção não ocorreram mais. A ausência de atividades cotidianas realizadas em
conjunto determina um afastamento e uma perda do sentido comunitário. O passado
como referência é um marco muito presente na memória e no cotidiano dos moradores;
os mais velhos, que vivenciaram a vida em comunidade, se referem ‘àqueles tempos’
como um período bom e que deveria voltar. Os mais jovens, que não conheceram tal

3
Entrevistas realizadas em janeiro de 2006, entre os moradores da Comunidade Quilombola Caçandoca.

173
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

situação, anseiam por recursos que tornem a Caçandoca mais habitada, com luz elétrica,
asfalto e escola.
A principal atividade tradicional da população era a roça, proibida hoje em dia pela
legislação ambiental. Ao entrevistar os moradores, muitas referências foram feitas à
vontade e à saudade de plantar, principalmente entre os mais velhos. O processo de
abandono da atividade agrícola, induzido pelas leis ambientais e pela especulação imobiliária,
foi generalizado no Litoral Norte Paulista. Esta perda para as populações tradicionais
induziu transformações nas bases econômicas e culturais, e desestruturou as comunidades
locais, indígenas, caiçaras e quilombolas. Os moradores da Caçandoca acreditam na
importância do retorno das atividades agrícolas como uma maneira de retomar a antiga
estrutura social, da qual foram apartados. Tal feito garantiria a alimentação de uma maneira
mais saudável e econômica, além de os arraigar à terra. Atualmente os moradores precisam
ir à cidade para comprar alimentos, que nutricionalmente, são muito inferiores ao cardápio
degustado por seus pais e avós no tempo em que a Caçandoca se sustentava a partir de
seus recursos.
Com o distanciamento da atividade agrícola, o conhecimento acerca das espécies
e dos modos de plantio torna-se desvalorizado. As crianças e jovens não se interessam
em aprender sobre nome de plantas, função das espécies, modos de plantar baseado nas
luas, os segredos das ervas medicinais e suas aplicações, ou seja, o ajuste ecológico
vivido por essas populações, a lida com a terra e o uso dos recursos naturais como modo
de vida, torna-se uma referência do passado.
A pesca é realizada ainda, assim como a coleta de mariscos e a produção e
venda de bananas. Porém, em sua maioria, as pessoas trabalham fora da comunidade.
Grande parte das mulheres trabalha como empregada doméstica nas casas do condomínio
da Praia do Pulso, ou em vendas no centro urbano de Ubatuba ou Caraguatatuba. Na
época de temporada, o trabalho na praia é o mais procurado; as pessoas trabalham em
quiosques ou como vendedores ambulantes.
O uso dos recursos naturais, tão abundantes no território quilombola, é limitado
devido à instabilidade que enfrentam em relação ao direito de uso e posse da terra, pelas
proibições das leis ambientais e pela mudança de racionalidade já introduzida nos
moradores. Os jovens cresceram em outro ambiente, com referências urbanas, de forma
que o trabalho na terra não lhes é habitual.
Devido à falta de recursos dentro da Comunidade, a circulação para centros urbanos
próximos é freqüente. As pessoas precisam sair da Caçandoca para fazer compras de
alimentos e outros gêneros, ir à escola, ao médico ou dentista, visitar parentes e por
vezes, trabalhar. Praticamente todos os moradores possuem parentes que não moram na
Caçandoca.
O período presente é separado do passado a partir de fins da década de 1960 e
início da década de 1970, quando a comunidade passa a enfrentar sérios conflitos e
transformações em seu modo de vida. Essa data é considerada como uma ruptura entre

174
Terra Livre - n. 29 (2): 163-180, 2007

o modo de vida antigo e o atual.


Este marco é muito significativo, pois diferencia um período passado de suposta
fartura e união, quando os moradores tinham seu modo de vida diretamente ligado ao uso
da terra comunitária e dos recursos naturais, de outro de instabilidade com relação à
posse da terra e pobreza, uma vez que os recursos já não mais asseguram o excedente
necessário para a reprodução da vida na Comunidade.
O trecho da BR 101 que passa por Ubatuba foi construído no ano de 1974. O
município, antes praticamente isolado, passou a ser alvo de especuladores imobiliários,
entusiasmados com a valorização das terras propiciada principalmente pela facilidade de
acesso ao local e pela exuberância das paisagens. Por conta disso, várias famílias caiçaras
e quilombolas foram pressionadas a abandonarem suas posses no intervalo de poucos
meses.
Nos relatos feitos pelos moradores, as primeiras mudanças citadas se referem à
saída dos homens para trabalhar na pesca em Santos, e na construção civil do Guarujá,
como é o caso da história de vida da moradora da Caçandoca, Bárbara Sumara, 25 anos,
cujo pai foi pescar em Santos e o avô foi um ‘desbravador’ do Guarujá, na década de
1970.
Mas a situação é formada por um conjunto de fatores. A implantação da rodovia
desorganizou o sistema de trocas entre comunidades. Antes da BR101 ser construída, o
comércio local era realizado pela navegação de cabotagem entre as comunidades vizinhas.
Com a construção da rodovia, a estrada substituiu o mar na circulação de mercadorias.
Devido aos moradores da Caçandoca não terem acesso à rodovia por estrada, nem a
possibilidade de comprar barcos de cabotagem, o comércio tornou-se inviável para a
grande maioria, levando muitas pessoas a optaram pelo trabalho fora da comunidade.
(SCHIMITT, 2000).
Outro marco que acentua a transformação do modo de vida tradicional da
Caçandoca, foi a implantação do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM). O núcleo
Picinguaba, localizado no município de Ubatuba, engloba uma área de 10.000 ha de Mata
Atlântica, sendo metade da área regularizada e a outra metade formada por posses,
terrenos escriturados, em litígio e de domínio particular. (DIEGUES&VIANNA, 1995).
A necessidade de preservação, como conseqüência da exploração dos recursos
naturais de maneira insustentável, surge na sociedade urbano-industrial. Escolhem-se
áreas que ainda apresentam fauna e flora abundantes para serem locais de preservação.
No entanto, estas áreas só permaneceram com alta biodiversidade devido ao modo não
predatório com que os habitantes utilizam os recursos naturais.

“Os quilombos estão em áreas de preservação ambiental porque é exatamente


nessas regiões que sobrou parte da vegetação. O sistema de trabalho dos
quilombolas facilita a conservação das áreas verdes. Mas quem veio na
frente, a unidade de preservação ou a comunidade quilombola?” (Benedito
Alves da Silva, o Ditão, quilombola da comunidade de Ivaporanduva no

175
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

Vale do Ribeira, em entrevista para Carta Maior, 30/06/2005).

A área da Comunidade da Caçandoca não se encontra circunscrita ao PESM,


porém, com a implantação do Parque, a fiscalização se tornou muito mais presente. As
leis ambientais que passaram a serem cumpridas após a implementação do PESM, tornaram
ilegal diversas atividades realizadas pelos quilombolas, desde seus ancestrais. As
queimadas e derrubadas de áreas, atividades que precedem o plantio das roças, tornaram-
se ilegais. Assim, a atividade agrícola que garantia a alimentação da comunidade, deixou
de ser exercida e a população teve de se vincular ao comércio urbano de Caraguatatuba
ou de Ubatuba para a obtenção de alimentos e demais produtos.
Contudo, o principal marco da transformação da vida na Comunidade é o conflito
fundiário de disputa pela posse da terra, entre os moradores e a empresa imobiliária
Urbanizadora Continental. O processo da especulação imobiliária incidiu a partir da década
de 1970, não somente na Caçandoca, mas em todo município de Ubatuba e outros
municípios do litoral. As atividades turísticas voltadas para os locais de natureza exuberante,
fizeram com que grileiros invadissem terras de populações tradicionais, como quilombolas
e caiçaras, pagando preços baixíssimos ou os expulsando, a fim de construírem condomínios,
hotéis e demais opções para o turismo.4
A empresa Urbanizadora Continental chegou a Caçandoca num período em que
muitos homens estavam fora, trabalhando para empresas de pesca. Encontraram então
uma maioria de mulheres e crianças, trabalhando nas roças. Casas foram vendidas e não
foram pagas, outras foram queimadas e as famílias postas para fora. As marcas desse
período ainda estão presentes na memória dos moradores e na paisagem.
Uma batalha judicial entre essa empresa e a comunidade quilombola estende-se
desde 1975. O interesse da empresa era a construção de um condomínio fechado, com
acesso às cinco praias da terra quilombola. Diante da violência da ação da empresa
Urbanizadora Continental, muitos moradores deixaram suas terras. Segundo os relatos
de moradores da comunidade, a negociação com os agentes imobiliários era marcada
pela pressão e pela coerção. Os valores pagos às posses, quando pagos, eram muito
baixos. Além disso, eram constantes as ameaças e violências àqueles que não aceitassem
as propostas e se recusassem a sair das terras.
Nos anos de luta, muitas são as marcas da violência; famílias expulsas, casas e
plantações queimadas, ameaças à integridade das mulheres, circulação restringida, violência
moral e física. A empresa tentou demolir a igreja localizada na Praia da Caçandoca,
considerada um patrimônio coletivo da comunidade quilombola, mas, a comunidade reagiu
e formou, em 1987, a Associação para Melhoramentos da Caçandoca, para reabrir a
igreja, fechada pela Urbanizadora Continental. Ao resistir em entregar a Igreja, a população
afirmou sua posse da terra através de um marco territorial.

4
Sobre a desestruturação de comunidades tradicionais ver especialmente: DIEGUES, A.C. MOREIRA,
A.C.C.(orgs)Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: NUPAUB, 2001. LUCHIARI, M.T.P.D.
Caiçaras, migrantes e turistas: a trajetória da apropriação do litoral norte paulista. IFCH, UNICAMP, 1992.

176
Terra Livre - n. 29 (2): 163-180, 2007

Em 1998 foi fundada a Associação da Comunidade dos Remanescentes do


Quilombo da Caçandoca, para que o Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José
Gomes da Silva” (ITESP), desse início ao processo de regularização fundiária da área
requerida. A comunidade foi reconhecida como Remanescente de Quilombo no ano de
2000, com uma área de 890 hectares. Desses, 210 hectares estavam ocupados pela
Urbanizadora Continental.
Em maio de 2001 cerca de 30 famílias retornaram para uma pequena faixa de
terra localizada ao longo da estrada vicinal que liga Caçandoca à rodovia BR 101. Desta
vez contaram com o apoio do Ministério Público Federal, que solicitou ao juiz de Ubatuba
que fosse revogada a liminar de reintegração de posse anteriormente concedida à
Urbanizadora Continental. As famílias permaneceram na área, mas vivendo em condições
precárias, em barracos de lona e sem qualquer infra-estrutura. Em outubro do mesmo
ano, mais cinco famílias retornaram a uma nova área, deixando os conflitos na região
ainda mais tensos.
Por seis vezes a Urbanizadora Continental teve a causa ganha e, com a reintegração
de posse ordenada, pretendeu expulsar os moradores da área que declara de sua posse.
Essas reintegrações foram sempre revogadas e a empresa teve seus intentos adiados. O
último caso de perigo de despejo da comunidade aconteceu em maio de 2005, quando
uma juíza de Ubatuba cedeu a reintegração de posse para a Urbanizadora Continental.
Porém, devido à articulação política, a ameaça de despejo chamou a atenção de vários
atores envolvidos, como outras associações de quilombos e entidades do Movimento
Negro, que entregaram uma carta, em 13 de maio de 2005, para a Secretaria Estadual de
Justiça.
A resposta veio no dia 1º de junho de 2005, quando o Tribunal de Justiça de São
Paulo suspendeu a liminar de reintegração de posse da área de Caçandoca. No mesmo
dia, o Incra reconheceu as terras como pertencentes aos quilombolas, e abriu caminho
para o longo processo que levou à desapropriação. Em 27 de outubro de 2006, a União
decretou os 210 hectares como área de interesse social, desapropriando a empresa.
Apesar dessa vitória, a Comunidade da Caçandoca ainda não tem a titulação de seus 890
hectares de terra reconhecidos e garantidos por lei.
Este caso da Comunidade Quilombola da Caçandoca, que apresenta especificidades,
mas está longe de ser o único no território brasileiro, impõe uma reflexão importante: a
conquista dos direitos dessas comunidades tradicionais só se legitima pela afirmação de
uma identidade coletiva particular, pela regularização da posse da terra, e pela organização
econômica e política de uma coletividade que, até então, viveu à margem da sociedade
em geral. São estas as reflexões que abrem a possibilidade de elaborar uma abordagem
geográfica da identidade territorial quilombola no Brasil.

Considerações finais

177
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

A luta da comunidade da Caçandoca pela terra não é uma luta exclusiva. Em todo
o Brasil a luta pela terra é cotidiana e faz parte da realidade de muitos grupos excluídos,
como indígenas e trabalhadores rurais. Ainda que o acesso à terra para os remanescentes
de quilombos esteja garantido por lei desde a Constituição de 1988, na prática trata-se de
uma conquista árdua, que exige articulação política e uma longa espera.
Em verdade, trata-se de uma luta pelo direito à cidadania. Os negros estiveram
excluídos do processo de formação da nação e buscam hoje sua inserção. O Estado-
nação brasileiro, novo e em crise, propõe formalmente esta inclusão, mas cabe às
comunidades a organização política dos grupos, a aceitação da identidade negra como
símbolo de distinção social, e a recuperação permanente, assim como a criação, de
territorialidades quilombolas .

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179
LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A. IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 01 de Fevereiro de 2008

180
APROPRIAÇÃO SOCIAL
DO ESPAÇO URBANO Resumo: O artigo procura desenvolver uma reflexão crítica
acerca do planejamento urbano sob os imperativos da
E
racionalidade capitalista e do mundo da mercadoria, na
TERRITORIALIDADE: perspectiva de uma condição mais democrática e favorável a
O DESEJO E A uma efetiva apropriação social do espaço, envolvendo a
ESPERANÇA PELOS discussão dos limites e das possibilidades deste percurso.
INTERSTÍCIOS* Apresenta-se como um estudo de caso o bairro de Santa Tereza,
localizado na Região Leste da cidade de Belo Horizonte, Minas
Gerais.
SOCIAL APROPRIATION OF THE Palavras-chave: planejamento urbano; apropriação do espaço;
URBAN SPACE AND território; territorialidade; bairro de Santa Tereza; Belo
TERRITORIALITY: THE DESIRE AND Horizonte, Minas Gerais.
HOPE FOR THE INTERSTICES
Abstract: This article intends to develop a critical reflection
APROPRIACIÓN SOCIAL DEL concerning the urban planning under the imperatives of the
ESPACIO URBANO Y capitalist rationality and the world of the merchandise, in the
TERRITORIALIDAD: EL DESEO Y LA perspective of a condition more democratic and favorable to
ESPERANZA POR LOS INTERSTÍCIOS
an effective social appropriation of the space, involving the
debate of the limits and the possibilities of this course. The
quarter of Santa Tereza is presented as a case study, located
in the East Side of the city of Belo Horizonte, Minas Gerais.
ULYSSES DA CUNHA Key words: urban planning; appropriation of the space;
territory; territoriality; quarter of Santa Tereza; Belo Horizonte,
BAGGIO Minas Gerais.

Professor do Curso de Geografia Resumen: El artículo se propone desarrollar una reflexión crítica
do Departamento de Artes e referente al planeamiento urbano sus los imperativos de la
Humanidades da Universidade racionalidad capitalista y del mundo de la mercancia, en la
Federal de Viçosa; Doutor em perspectiva de una condición más democrática y favorable a
Geografia Humana pela una efectiva apropriación social del espacio, implicando la
discusión de los limites y las posibilidades de este curso.
Universidade de São Paulo
Presenta un estúdio de caso del barrio de Santa Tereza, situado
em la Región Este de la ciudad de Belo Horizonte, Minas Gerais.
E-mail: ulybaggio@ufv.br Palabras clave: Planeamiento urbano; apropriación del
espacio; território; territorialidad; barrio de Santa Tereza; Belo
Horizonte, Minas Gerais.
* Este texto, com diversas modifi-
cações e adendos, integra partes da
minha tese de doutorado intitulada
A luminosidade do lugar – circuns-
crições intersticiais do uso de es-
paço em Belo Horizonte: apropri-
ação e territorialidade no bairro
de Santa Tereza, defendida junto
ao Programa de Pós-graduação em
Geografia Humana da USP, em no-
vembro de 2005. Ele também se
vincula a um projeto autônomo de
pesquisa que ora desenvolvo no De-
partamento de Artes e Humanida-
des da UFV, intitulado Território e
sociedade no horizonte de uma ge-
ografia libertária: percursos de
uma epistemologia do desejo.

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 181-206 Ago-Dez/2007


181
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

Introdução

Diferentemente de uma perspectiva teleológica, projetando no futuro a redenção


dos problemas do presente, partimos da idéia que uma concepção democrática de
planejamento urbano envolve um trabalho político-técnico concebido e realizado de modo
democraticamente compartilhado entre Estado e sociedade urbana, pelo qual ele deve se
orientar ao desenvolvimento sócio-espacial presente e futuro, de modo a proporcionar à
urbe condições favoráveis à formação de um espaço de vivência e de reprodução social
em patamares dignos, melhorando continua e progressivamente a qualidade de vida dos
citadinos e a justiça social. Desse modo, tal concepção se pautaria por preceitos éticos e
por um explícito e sólido senso de responsabilidade sócio-ambiental. Neste sentido, ela
não se identificaria e muito menos compactuaria com uma visão estritamente mercantil
do espaço urbano, ou ainda como uma forma de tratamento da cidade que a tomasse
como um negócio. Vale lembrar que o tratamento mercantil da cidade, forma bastante
difundida nas políticas de planejamento urbano na contemporaneidade, figura como uma
variável robusta dentre aquelas que conformam a crise urbana, que, por sua vez, se
revela mais propriamente como uma crise do trabalho e do mundo do trabalho.
Esta condição tem motivado os debates em torno das possibilidades e dos limites
às ações devotadas aos problemas urbanos (emprego, educação, saúde, moradia,
transporte, meio-ambiente etc.) e à vida dos citadinos de modo geral. Trata-se, portanto,
de uma empreitada a demandar a ação conjunta de sujeitos sociais (poder público,
organizações não-governamentais e sociedade organizada), em que pese a urgência reativa
diante de um quadro de desfiguração do homem e dos seus respectivos espaços de
vivência e reprodução social, principalmente nas grandes aglomerações. Considerando-
se que a urbanização - sobretudo sob as condições atuais de desenvolvimento da
globalização - encerra dinamismos que dificilmente poderiam ser contidos, adrede o avanço
da polarização social, urge pensar o seu redirecionamento em bases mais aceitáveis.
Vale dizer que a urbanização no Brasil ainda leva a marca da concentração da população
urbana em poucas metrópoles, ao mesmo passo em que se aprofundam as desigualdades
sociais e a segregação espacial, com o crescimento dos bolsões de pobreza e miséria. E
o instrumento representado pelo planejamento urbano no país tem se mostrado ao longo
dos tempos um ingrediente de peso a colaborar, desgraçadamente, mais na formação de
exclusão social e, ou de inserção precária1 de segmentos sociais na cidade e na economia
urbana, do que na diminuição das desigualdades e na melhoria das condições de reprodução
social. Isto não significa que o planejamento seja um instrumento a ser “condenado” ou
deixado de lado, pois ele ainda representa uma opção importante no tratamento de diversos
problemas que afligem a vida nas nossas cidades, que estão submetidas a grandes
transformações nessa fase de desenvolvimento acelerado da globalização. Neste sentido,

1
Pode-se falar aqui de inserção precária ou perversa de segmentos sociais na cidade e na economia urbana, os
quais não estariam propriamente excluídos. Sobre o assunto ver Martins, 2004.

182
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

ele se mostra uma opção efetivamente válida desde que opere pautado nos princípios da
gestão participativa, da continuidade das ações e da flexibilidade de sua realização.

Planejamento urbano e racionalidade capitalista: limites e possibilidades

Ao refletir sobre o significado e o verdadeiro sentido do planejamento, Luis Boada


(1991, p.13 e 14) oferece-nos uma contribuição valiosa, quando nos diz que:

O planejamento não inclui em sua base unicamente valores de troca, portanto


não deve pautar-se com os parâmetros eleitos pela economia. Ao contrário,
essa ampliação do âmbito dos valores considerados deve permitir-lhe
reconhecer que seu objeto caracteriza-se pela abundância e até pelo excesso,
que é a forma que podem adotar os desequilíbrios produzidos pela abundância.
Desse modo, o objetivo do planejamento será o conhecimento, o
reconhecimento, a ordenação, a regulamentação da abundância e a correção
do excesso. Portanto, frente ao planejamento defensivo ou terapêutico que
considera apenas os valores de troca, terá de afirmar-se um planejamento
criativo. Esse planejamento criativo pode ser visto como uma verdadeira
economia, literalmente “construção” e “administração”, dos organismos
naturais: o mundo e o ser humano. Isso significa que o planejamento pode
possibilitar o conhecimento, o reconhecimento e, sobretudo, a administração
e recriação não apenas dos valores de troca, mas da abundância natural do
mundo e do ser humano, transformando-a em valor essencial, uma vez que
ela é de fato constitutiva de sua essência.

Este entendimento remete ao fato de que as ações públicas locais, voltadas à


transformação das estruturas de decisão e gestão da cidade demandam, para serem
melhores sucedidas, uma ampliação do conceito de urbano na sua base, ou seja, que na
busca da qualidade de vida efetiva dos moradores da cidade se garanta, para além da
incorporação da participação popular na gestão pública, a participação na própria economia,
sem a qual aquela não se sustenta.

Fazê-lo significaria introduzir outros assuntos como objeto da política pública


local: o emprego e outras formas de realização do trabalho, a remuneração
dos fatores produtivos possuídos pelos setores populares e o fornecimento
de bens e serviços, dos quais os serviços “urbanos” são uma parte, aquela
eleita pelos urbanólogos como própria de seu campo profissional. (...) As
políticas urbanas (dirigidas a reformar a vida urbana) devem centrar-se na
economia urbana e suas possibilidades de desenvolvimento. Sem essa
consideração, nem o ordenamento territorial, nem a distribuição de serviços,
nem a própria possibilidade de avançar para uma democracia sustentável
podem formular-se ou resolver-se adequadamente. Ademais, centrar a
análise no econômico responderia às prioridades manifestadas pelos próprios
setores populares, em geral mais interessados em conseguir uma renda

183
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

estável que um melhor acesso aos “serviços urbanos”. (Coraggio, 1994,


p.222-224).

O debate em torno da questão do planejamento e de suas possibilidades coloca-


nos, ainda, uma questão importante: seria possível a um Estado capitalista desenvolver
formas de gestão que contrariam preceitos capitalistas? Ou ainda, poderia o Estado realizar
um planejamento efetivamente democrático sob a racionalidade hegemônica do
capitalismo?
O problema encerra dificuldades no seu equacionamento, sobretudo ao considerar-
se na análise as relações estreitas entre Estado e capital ou ainda Estado e mercado,
particularmente no que tange às designadas economias em desenvolvimento. Nestas se
evidencia o uso do intervencionismo estatal como um recurso de traço basicamente
“corretivo”, de modo a dotar o território, e a economia nele inscrita, de condições materiais
e infra-estruturais (técnicas e sociais) para viabilizar a reprodução ampliada do capital.
(Schimidt, 1983). Neste sentido,

O Estado [...] desenvolve estratégias que orientam e asseguram a reprodução


das relações no espaço inteiro (elemento que se encontra na base da
construção de sua racionalidade). Assim, o espaço se revela como
instrumento político intencionalmente organizado, e manipulado pelo Estado;
é, portanto, meio e poder nas mãos de uma classe dominante que diz
representar a sociedade, sem abdicar de objetivos próprios de dominação.
(Carlos, 2001, p.31).

Longe de quaisquer idealismos ou mesmo de interpretações de cunho tecnocrático,


argumenta-se que embora esta racionalidade e as relações que a fundamentam sejam
dominantes, e se consubstanciem como um poder 2 , elas não são, contudo, únicas, absolutas
e definitivas, colocando-se sempre a possibilidade de se forjar algo novo, de se criar
outras possibilidades. Vale pensarmos, acerca disso, sobre o sentido das palavras de
Hannah Arendt (1981, p.190-191):

Com a criação do homem, veio ao mundo o próprio preceito de início; e


isto, naturalmente, é apenas outra maneira de dizer que o preceito de liberdade
foi criado ao mesmo tempo, e não antes, que o homem.
É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser
previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de
surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem.
[...] O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis
estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos,
equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre.
O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o
inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto,

2
Emprego o sentido que lhe atribui Claude Raffestin (1993, p.52-53), para o qual “o poder é parte intrínseca
de toda relação”, sendo ele “um processo de troca ou de comunicação”.

184
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

por sua vez, só é possível porque cada homem é singularmente novo. Desse
alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia
ninguém.

Essa racionalidade é crítica, sendo ela uma criação humana e como tal sujeita às
suas próprias interferências e ações. Não há Estado sem contra-Estado e poder sem
contrapoder. Os contrapoderes insinuam-se como um conjunto de forças e ações variadas
capazes de perturbar e até mesmo ameaçar o Estado e sua racionalidade. Não há
racionalidade em si mesma, e tampouco pode existir racionalidade absoluta; o que se
mostra racional hoje pode não sê-lo amanhã, e o racional de uma dada sociedade pode
ser tomado como o irracional de outra (Santos, 1993, p.53).
Desde os anos 60 do século XX ocorre um recrudescimento dos contrapoderes na
esteira da crise/redefinição do Estado, quando as empresas transnacionais encarregam-
se, de modo proeminente, do crescimento econômico. Eles emergem das regiões, das
periferias dos grandes centros urbanos, das diferenças. Não se quer dizer com isso que
eles estejam orientados para uma dissolução do Estado, para a sua superação, mas mais
propriamente sinalizando virtualidades políticas importantes quanto à possibilidade de um
percurso rumo a uma condição mais democrática.3 Conforma-se, assim, um campo de
relações dialéticas, dinâmicas e conflituosas entre contrapoderes e poder político existente
(Lefebvre, 1976).
Os termos dessa interpretação sugerem que a racionalidade capitalista não
necessariamente elimina a possibilidade do percurso democrático, até por que a própria
democracia se revela como uma construção, sempre uma construção, não se mostrando
como uma condição plena, definitiva e acabada4 ; condição que, aliás, também vale ao
próprio capitalismo. É próprio da natureza humana, e do próprio homem, agir, de um
modo ou de outro, em busca de melhores condições à sua existência - conquanto o
inverso também seja verdadeiro... A racionalidade capitalista não é maior do que as
essenciais e indissolúveis necessidades humanas.5 Os movimentos sociais, bem como
outras formas de insurgência, encerram virtualidades nesse sentido. Esta racionalidade
encerra contradições que se agudizam nos tempos hodiernos com o aprofundamento da
crise do processo civilizatório capitalista, fazendo da crise um vetor de dinamismo e,
desse modo, estimulando iniciativas e ações reativas de matizes diversos, nos mais variados
setores, segmentos sociais e lugares, tanto em países de capitalismo avançado como em
países semiperiféricos (como é o caso do Brasil) e países pobres.

3
De acordo com Demétrio Magnoli, a democracia não se limita ao horizonte estreito da eleição, mas se
apresenta mais propriamente como “[...] o produto de uma teia de instituições e leis que limitam o poder dos
governantes, escrutinam os atos do poder, resguardam os direitos dos cidadãos e protegem a expressão da
minoria”. (Folha de São Paulo, Opinião, 8 de dezembro de 2005, p. A2).
4
Acerca disso Henri Lefebvre nos diz que: “A democracia consiste, essencialmente, em uma luta pela
democracia. Jamais completamente vitoriosa, porque, em virtude de suas contradições, a democracia pode
sempre avançar e regredir” (1979, p.101).
5
Não estamos considerando aqui às “necessidades” artificialmente criadas pelos veículos de publicidade a
serviço das empresas e do consumismo desenfreado.

185
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

Um outro problema, certamente, poderia ainda ser destacado como um robusto


fator de constrangimento à implementação de uma forma de planejamento urbano
democrático e participativo, isto é a ampliação e a difusão sócio-espaciais do tráfico de
drogas, uma vez que as quadrilhas de traficantes incrustadas nas favelas impõem enormes
restrições aos movimentos associativos, intimidando-os, cooptando lideranças e até mesmo
neutralizando suas ações. (Souza, 2000).
Mudar a cidade, sobretudo em condições de profundas desigualdades, não é
efetivamente uma tarefa inexeqüível, ainda mais no curto prazo, tornando-se um tanto
que nebuloso vislumbrar no horizonte do drama social os efetivos protagonistas deste
processo e seus avanços. A mudança da cidade para uma condição sócio-espacial digna
e democrática, com justiça social instaurada, implicaria uma longa e difícil construção,
demandando tanto o trabalho coletivo e participativo (com participação de agentes variados
e de múltiplas identidades), como também modificações nas próprias subjetividades. Esta
condição requereria, seguramente, o direito e a liberdade de se determinar a(s) forma(s)
do nosso meio ambiente, ou ainda dos modos de sua organização, o que pressupõe o
exercício da responsabilidade ao que é comum a todos. O que vale dizer que nenhum
programa social poderá alcançar a condição democrática à revelia do espaço, do mesmo
modo que a realização eficiente de uma dada prática social implica na apropriação efetiva
de um espaço. A consecução deste percurso significaria, portanto, a amplificação da
política e de sua necessária invenção a fim de repor os dissensos, estimular a autonomia
e, com isso, favorecer as iniciativas de caráter autogestionário para além do ambiente
das empresas, que são fundamentais à consolidação de uma verdadeira condição
democrática.
A instauração processual de uma democracia avançada, com a ampliação do
exercício da democracia direta 6 , enfrenta certamente dificuldades em sociedades
progressivamente urbanas, perpassadas por múltiplas clivagens e hierarquias,
principalmente em macro aglomerações, como é o caso das metrópoles. Mas isso não
significa a sua impossibilidade, haja vista as possibilidades oferecidas pelas políticas de
descentralização territorial, pelo artifício da delegação, pelas novas tecnologias de
comunicação e tratamento da informação (Souza, 2002, p.330-33). De modo geral, as
restrições parecem ser substancialmente maiores em países não avançados ou não
desenvolvidos, como é o caso do Brasil. Elas se colocam em parte nos limites da própria
racionalidade capitalista, mas também para além dela, e isto em razão dos problemas e
dificuldades inerentes a uma condição de ingente concentração urbana, marcada pela
diversidade e pela diferença. Ademais, as desigualdades sociais e econômicas afetam
negativamente as instituições democráticas, afetando, desse modo, a participação e o
6
Por democracia direta compreende-se uma situação (ou regime político) na qual as demandas e os problemas
sociais não apresentam como mediação única o Estado e seus representantes, mas, para além deles, outros
agentes da sociedade civil, a exemplo de movimentos sociais diversos que atuam numa perspectiva mais
independente e de caráter autogestionário, de modo que os indivíduos atuem mais diretamente nos processos
decisórios, o que modernamente implicaria no emprego do recurso da delegação e da descentralização político-
territorial.

186
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

consenso, embora o direito à participação esteja garantido. E a não participação pode ser
atribuída ao fato de que os custos desta participação não condizem com as condições dos
possíveis interessados. Vale lembrar que as próprias intervenções estatais impactam
fortemente esta condição metropolitana, produzindo sensíveis constrangimentos à
democracia urbana. Acerca disso, Ana Fani A. Carlos observa que

O Estado, com seus instrumentos legais, produz grandes transformações


nos usos e funções dos lugares da cidade, reproduzindo a hierarquia desses
lugares no conjunto do espaço metropolitano. Mas, ao direcionar-se os
investimentos em infra-estrutura, aprofundam-se as desigualdades na
metrópole, interferindo de modo profundo nas formas de apropriação do
espaço à medida que produzem, com sua intervenção, um processo de
valorização diferencial do solo urbano. (Carlos, 2001, p.27).

Como já observado, avança no mundo e no Brasil uma forma de tratamento da


cidade norteada por critérios explicitamente mercadológicos sob o patrocínio do Estado.
Esta orientação expõe o sentido e os fundamentos de um processo de reprodução e
reestruturação espacial marcado pela proeminência sócio-esopacial do valor de troca,
submetendo o valor de uso. Tal primado do valor de troca significa objetivamente

[...] um conflito entre interesses organizados em torno do espaço social,


enquanto local dos valores sociais de uso e do desdobramento de relações
comunais no espaço, e interesses em torno do espaço abstrato, enquanto
espaço de desenvolvimento imobiliário e administração governamental – a
articulação combinada entre modo político e modo econômico de dominação.
(Gottdiener, 1993, p.164-165).

Contudo, é preciso acautelar-se quanto ao cálculo das potencialidades e da extensão


da proeminência do valor de troca na totalidade espaço-temporal. Superestimá-las
significaria praticamente suprimir do horizonte de análise as virtualidades e possibilidades
do uso, com seus nichos de insurgência e resistência, malgrado se reconheça o amplo
dinamismo espacial do valor de troca. Há que se considerar a diversidade e as
potencialidades de insurgências e práticas sócio-espaciais de resistência que emergem
mais propriamente no universo do espaço social. Trata-se de práticas que, de modo
geral, provêm de baixo para cima. Elas são protagonizadas, sobretudo, nos interstícios da
sociedade e da cidade, cujas respectivas conformações político-territoriais não raro são
obnubiladas pela versão ideologizada da cidade oficial, e não da cidade real. Daí o alerta
importante de Ermínia Maricato (2000, p.186), quando nos diz que

Na sociedade brasileira, podemos dizer que a realidade é subversiva ao pensamento


conservador. Daí o potencial de uma ação pedagógica sobre o reconhecimento da
cidade real, em especial da “cidade oculta”.

A transformação da cidade e a apropriação do espaço urbano

187
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

Esse panorama remete à questão da democratização do Estado e da sociedade e,


portanto, da própria cidade. Imaginar uma sociedade sem poderes instituídos é uma ficção.
A transformação da cidade envolve tanto a atuação do Estado no tratamento dos problemas
urbanos como da sociedade na sua diversidade. A título de exemplificação, podem-se
destacar os programas de orçamento participativo.
Afora as críticas que recaem sobre as formas de gestão participativa e, em especial,
do orçamento participativo, envolvendo a discussão acerca dos seus próprios limites, tais
programas constituem instrumentos importantes a serem aperfeiçoados para a
democratização da gestão das cidades. Eles representam a possibilidade da sociedade
civil propor e introduzir modificações na vida política e melhorar políticas voltadas ao
atendimento de demandas dos segmentos sociais de baixa renda. Acerca dos limites à
proposta do Orçamento Participativo, Leonardo Avritzer (2002, p.37) aponta dois deles
que “parecem bastante claros”. O primeiro seria a “pouca democratização na relação
entre os próprios atores sociais e a incapacidade de estender o OP para áreas sociais nas
quais o que está em jogo são alternativas de políticas públicas”. Entretanto, adverte para
o fato de que embora o OP pareça constituir um importante instrumento de democratização
entre Estado e Sociedade, há evidências no âmbito interno das comunidades que indicariam
certa restrição desta condição, uma vez que se constata uma “relação hierárquica e
pouco democrática” nas mesmas. O segundo limite está na proeminência representada
pela questão da distribuição de recursos materiais, chamando a atenção para o fato de
que, “até o momento, a maior parte das decisões do OP diz respeito a questões materiais”.
Oferecem-se como exemplos7 os casos de Porto Alegre (a partir de 1989) e
Belo Horizonte (a partir de 1993), embora nestas duas cidades o associativismo comunitário
seja anterior ao OP, porém apresentando perfis distintos. Porto Alegre tem uma formação
histórica mais ativa, com mais participação, menos relação com mediadores políticos e
mais mobilização dos próprios atores comunitários. Belo Horizonte tem uma formação
histórica mais conservadora, com menos mobilização e maior presença dos mediadores
políticos. Tal tradição só mudou mais recentemente. (Avritzer, 2002, p.37).
Essas experiências, entre outras, comparecem com certo destaque no percurso
da luta pela democratização no Brasil. Ela tem se desenvolvido fundamentalmente em
âmbito local, haja vista o fato de que as cidades, sobretudo os grandes centros, terem sido
o núcleo-base de construção, e sustentação, do projeto autoritário no país na esteira da
modernização conservadora, de modo a promover o crescimento industrial sobre as bases
de uma urbanização permanente (Davidovich, 1995). Em diferentes níveis e expressões
a sociedade civil expõe uma atuação política auspiciosa de uma variedade de movimentos
sociais e ONGs, capazes de desempenhar ações complementares de grande relevância à

7
Embora estas sejam experiências bastante conhecidas, no Brasil a prática do orçamento participativo
começou no final da década de 70, em pleno regime militar, em Lages (SC). A partir daí dezenas de programas
de pressuposto participativo se seguiram pelo Brasil, despontando como experiências tanto nacional como
internacionalmente conhecidas os casos de Porto Alegre (RS) e Belo Horizonte (MG), que se tornaram
referências inspiradoras a outros governos municipais.

188
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

atividade estatal, em diversas áreas e setores: moradia, meio-ambiente, educação, saúde,


lazer, etc.

O fato de que muitas decisões e soluções repousam sobre os ombros da


sociedade civil (embora a dinâmica da sociedade civil possa ser positivamente
influenciada ou catalisada pelo Estado sob circunstâncias especiais) obriga
os planejadores críticos a abdicarem do hábito usual de superenfatizar
discussões sobre instrumentos em detrimento do debate em torno dos
(possíveis ou potenciais) protagonistas, seus valores e sua dinâmica. Por
outro lado, isso não constitui qualquer perda ou concessão: a sociedade
civil [...] pode ser essencial como complemento para a ação estatal, além
de poder (e deve) ser pensada e valorizada independentemente do Estado e,
mesmo, contra o Estado. Caso contrário, o risco de reproduzir o
estadocentrismo e o racionalismo tecnocrático, ainda que mitigados e
envolvidos por uma roupagem alternativa (“tecnocratismo de esquerda”) é
total. Lidar com a dinâmica social, em vez de circunscrever-se a uma
discussão técnica sobre instrumentos, está longe de ser, meramente, um
desafio analítico, ainda que também o seja; o desafio é, igualmente, prático-
político, e reside no fato de que a cultura (valores, cultura política) e a
psicologia social dificilmente podem ser influenciadas por ações planejadas,
a não ser, quiçá, no longo prazo. De toda maneira, certamente não serão
influenciadas de modo “controlável” e monitorável: não se concebe aqui,
um tratamento à la “engenharia social”. (Souza, 2002, p.523).

Diante disso, vale dizer que a história nos mostra que as situações de crise
- com a decorrente queda da taxa média de lucro e da mais-valia - constituem um fator
de dinamismo, de reações, de inovações, de insurgências, condição na qual o novo pode
ser engendrado, não necessariamente para melhor, é bem verdade, mas inclusive. O
mundo nos apresenta, em variados lugares e situações, uma diversidade de práticas sócio-
espaciais que indicariam a possibilidade de alternativas factíveis 8 , reveladoras de melhores
possibilidades ao homem e aos seus respectivos espaços de vivência. Se a cidade, e o
território de modo geral se inserem nos circuitos de valorização, não se pode perder de
vista que esse movimento não é uma via de mão única, pois encerra uma dinâmica
conflituosa permanente, e agora mais recrudescida, entre a propriedade e a apropriação.
E não sem razão é que Odette Seabra (1996, p.71) nos diz que “[...] a história bem que
poderia ser lida, contada, interpretada pelo movimento conflituoso entre a apropriação e
a propriedade”, na qual a primeira, segundo a autora, está “referenciada a aspectos
qualitativos, a atributos”, ao passo que a segunda “a quantidades, a comparações
quantitativas, igualações formais, ao dinheiro (que delimitando o uso tende a restringi-lo)”
8
Pode-se oferecer, a título de exemplificação, o projeto de desenvolvimento urbano realizado na cidade de
Bogotá, na Colômbia, que viabilizou a conexão da periferia com o centro da cidade, proporcionando ganhos
em termos de qualidade de vida aos seus moradores, sobretudo nos locais envolvidos por esta conexão.
Ademais, emergem na América Latina e, em específico, no Brasil, movimentos urbanos, de variados matizes,
de música, arte, literatura, que ao lado de outros movimentos sociais, como os de luta pela terra, moradia, meio
ambiente, entre outros, reivindicam a condição cidadã e um espaço mais digno. Pode-se recomendar ainda a
leitura do importante livro organizado por Santos, B., 2002.

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BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

Ela situa essa tensão entre os momentos racionais e os da apropriação, e explica:

Esse conflito traduz-se numa luta pelo uso, pela apropriação, que
absolutamente não é nem poderia ser entendida como marginal, à parte do
todo, fora da sociedade e do social. Nesses termos, se o uso se insurge e
ganha visibilidade, restabelece a dialética da propriedade em outros termos,
em outros planos. É um processo que pressupõe atos práticos. (1996,
p.76).

Pensar a cidade, a forma como ela é apropriada e transformada pressupõe uma


concepção mais ampliada de território, o que se aplica também a alguns de seus atributos.
Parte-se do pressuposto que o território revela a complexa totalidade do universo social e
suas múltiplas formas de relações. Isto vale dizer que ele é tanto produzido pela dinâmica
social como é por ela modelado, de modo a representar o universo geográfico de um
complexo sistema de relações sociais diversificadas. Para além da acepção que o qualifica
como um construto essencialmente material e econômico, ele também se qualifica como
um valor simbólico na arena das relações sociais. Desse modo, ele envolve a valorização
de práticas históricas e culturais empreendidas pelos sujeitos sociais e de suas relações
com o espaço vivido. Nessa perspectiva, Rogério Haesbaert observa que

O território é o produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o


domínio ou o controle político-econômico do espaço e sua apropriação
simbólica, ora conjugados e mutuamente reforçados, ora desconectados e
contraditoriamente articulados. Esta relação varia muito, por exemplo,
conforme as classes sociais, os grupos culturais e as escalas geográficas
que estivermos analisando. Como no mundo contemporâneo vive-se
concomitantemente uma multiplicidade de escalas, numa simultaneidade
atroz de eventos, vivenciam-se também, ao mesmo tempo, múltiplos
territórios. (2002, p.121).

Assim, o território se desvela mais que um simples conjunto de objetos, por meio
dos quais se realiza o trabalho social, a circulação e a moradia, mas também como um
dado simbólico, ou ainda o produto de uma apropriação simbólica. Assim, ele compreende
a identificação que os diversos grupos sociais têm ou realizam com os seus respectivos
espaços de vivência. E aqui é importante ter clareza quanto ao fato de que

A função do símbolo não é apenas instituir uma classificação, mas também


introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos e
indicando as possibilidades de êxito dos seus empreendimentos.
Os mais estáveis dos símbolos estão ancorados em necessidades profundas
e acabam por se tornar uma razão de existir e agir para os indivíduos e para
os grupos sociais. Os sistemas simbólicos em que assenta e através do qual
opera o imaginário social são construídos a partir da experiência dos agentes
sociais, mas também a partir dos seus desejos, aspirações e motivações.

190
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

Qualquer campo de experiências sociais está rodeado por um horizonte de


expectativas e de recusas, de temores e de esperanças. (Baczko, 1985,
p.296-332).

Portanto, enquanto um dado simbólico o território é valorizado pelos investimentos


afetivos nele realizados e vivenciados cotidianamente, investimentos estes que se inscrevem
no uso do espaço. Daí poder-se dizer que um dado lugar pode alcançar certas condições
que favoreçam os anseios e demandas de sua comunidade a partir do momento em que
se formam laços afetivos (simbólicos) com o lugar. Por outro lado, o esvaziamento, ou
ainda a destituição de significações valorativas do território conformaria uma condição
de alienação territorial, podendo-se mesmo falar de um território alienado, estranho ao
espírito e à razão. Compreende-se, então, que as experiências vividas no espaço fazem
dele um espaço conhecido, familiar, dotado de certa personalidade, atributos pelos quais
ele se consubstancia em lugar. Para YI-Fu Tuam, “quando o espaço nos é inteiramente
familiar, torna-se lugar”, que se revela como “um mundo de significado organizado”.
(Tuam, 1983, p.83). Num sentido mais amplo, Ana Fani A. Carlos observa que o lugar é

[...] a porção do espaço apropriável para a vida, revelando o plano da


microescala: o bairro, a praça, a rua, o pequeno e restrito comércio que
pipoca na metrópole, aproximando seus moradores, que podem ser mais
do que pontos de troca de mercadorias, pois criam possibilidades de encontro
e guardam uma significação como elementos de sociabilidade. A análise da
vida cotidiana envolve o uso do espaço pelo corpo, o espaço imediato da
vida das relações cotidianas mais finas: as relações de vizinhança, o ato de
ir às compras, o caminhar, o encontro, os jogos, as brincadeiras, o percurso
reconhecido de uma prática vivida/reconhecida em pequenos atos
corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laços profundos de
identidade, habitante-habitante e habitante-lugar, marcada pela presença.
São, portanto, os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem
respeito a sua vida cotidiana, lugares como condição da vida, que vão
ganhando o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites).
Trata-se, portanto, de um espaço palpável, real e concreto – a extensão
exterior, o que é exterior a nós, e ao mesmo tempo interior. São as relações
que criam o sentido dos “lugares” da metrópole. Isto porque o lugar só
pode ser compreendido em suas referências, que não são específicas de
uma função ou de uma forma, mas produzidas por um conjunto de sentidos,
impressos pelo uso. É assim que os percursos realizados pelos habitantes
ligam o lugar de domicilio aos lugares de lazer, de trabalho, de comunicação,
ordenados segundo as propriedades do tempo vivido.
Nesse processo se desvenda a base da reprodução da vida passível de ser
analisada pela relação habitante-lugar (pela mediação do uso), como produtora
de identidade do indivíduo. A construção da cidade, hoje, revela a dupla
tendência entre a imposição de um “espaço que se quer moderno”, logo
homogêneo e monumental, definido, ou melhor, “desenhado” como espaço
que abriga construções em altura associadas a uma rede de comunicação
densa e rápida, e de outro “as condições de possibilidade”, que se referem

191
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

à realização da vida (que se acham à espreita, de modo contestatório),


revelando uma luta intensa em torno dos modos de apropriação do espaço
e do tempo na metrópole – um processo que ocorre de modo profundamente
desigual, revelando-se em seus fragmentos. (2001, p.35-36).

Uso, apropriação e territorialidade: o bairro de Santa Tereza, Belo Horizonte,


MG

À luz destas considerações oferecemos, a título de exemplificação, um caso


estudado em nossa tese de doutorado (Baggio, 2005) a fim de pensar as possibilidades ao
uso e à apropriação social do espaço. Trata-se de uma prática político-territorial matizada
pela resistência a certas medidas urbanísticas tomadas pelo Estado, acolitada pelas sanhas
do capital imobiliário, ávido por negócios lucrativos na cidade. A práxis sócio-espacial em
tela traduz ainda uma significativa valorização simbólica local, o que nos levou a refletir
sobre a formação de uma efetiva territorialidade em torno das condições de apropriação
do espaço, mais especificamente do bairro de Santa Tereza, localizado na porção leste da
cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, sobre o qual discorreremos a partir de agora.
Embora Santa Tereza tenha nascido com a cidade planejada de Belo Horizonte,
estando a sua área prevista na zona suburbana da nova capital, com seus traçados
projetados desde a fundação da cidade em 1897, com indicação de ruas e suas respectivas
designações, este lugar não se configurou, entretanto, como um espaço rigidamente
planejado, tal como se deu com a zona Central de Belo Horizonte. Esta área correspondia
ao que hoje é a extensão compreendida entre a Avenida Silviano Brandão, as ruas Salinas
e Conselheiro Rocha, e a Avenida do Contorno. Naquela época, tal área constituía parte
da Sétima Seção Suburbana. Registre-se que os terrenos desta seção foram, em parte,
doados ao funcionalismo público e aos militares, e outra parte disponibilizada para a venda
a particulares. A planta desta área só seria aprovada em 1926 (com a aprovação da
segunda Planta geral da cidade). Esclareça-se que o levantamento de todas as áreas
pertencentes à margem esquerda do Ribeirão Arrudas (Carlos Prates, Lagoinha, Floresta,
Américo Werneck, Imigração) foi motivado pela necessidade de se iniciar o projeto do
reservatório do Menezes e outros trabalhos infra-estruturais, empreitada que envolveu
grandes dificuldades, à medida que os técnicos se ressentiam da inexistência de marcos
de alinhamentos feitos pela Comissão Construtora para toda a região externa à Avenida
do Contorno. Desse modo, em 1923 são descritos os trabalhos de campo para a região
designada Imigração, onde hoje está Santa Tereza, para a qual foi confeccionado o cadastro
completo do terreno, figurando, ainda, no desenho da planta a conformação topográfica
do solo através de curvas de nível com intervalos de um metro.
Até o final dos anos 10, a comunidade ainda não contava com ruas abertas, o que
se daria mais efetivamente a partir dos anos 20, quando diversas obras de terraplanagem
e calçamento foram realizadas no local, assim como a dotação de alguma infra-estrutura
de esgoto e rede de água. Parte destes construtos ainda pontua na paisagem do bairro até

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Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

os dias hoje, podendo-se destacar a conhecida praça central de Santa Tereza (Praça
Duque de Caxias). Esta praça comparece na história do bairro como uma conquista da
comunidade local junto ao poder público, fruto de suas reivindicações. Sua inauguração
deu-se em 1937, sofrendo diversas reformas ao longo do tempo, a última delas na gestão
do prefeito Célio de Castro (gestão 01/01/1997 a 27/03/2003)9 , que em 30/06/2000 a
reinaugurou, passando a contar com uma área maior, pisos novos, canteiros e anfiteatro
para shows. Por enquanto, ela é o principal local do bairro para a realização de eventos
públicos de maior monta.
Até os anos 30 a maior parte das ruas do bairro apresentava-se em precário estado
de conservação e com baixo índice de pavimentação, ruas que praticamente ficavam
intransitáveis em situações de maior incidência pluviométrica. O bairro só teria suas
principais ruas calçadas e iluminadas na década de 1940, quando começou a ganhar
alguma projeção em jornais e folhetins da cidade como um “bairro novo” e “agradável”,
embora seus moradores continuadamente reclamassem das suas deficiências infra-
estruturais. Nestes tempos a Praça de Santa Tereza afirmava-se como o principal lugar
de encontro da comunidade, local de realização de festividades e do footing, sobretudo
nos finais de semana. Na Rua Mármore, bem ao lado dela, realizava-se o levantamento
das duas torres da igreja matriz, que é considerada pelos moradores do bairro um dos
seus principais ícones identitários. Vista à distância - como, por exemplo, da Avenida dos
Andradas -, suas imponentes torres destacam-se na paisagem, servindo como uma clara
referência ao bairro. A praça, até o momento, é o lugar de maior atração e concentração
de pessoas do bairro, sobretudo às noites, quando se converte no “epicentro da boemia”
deste lugar10 , destacando-se no universo da sua vida cotidiana e da sua sociabilidade.
Desde o início das obras de construção da matriz em 1931 até a sua inauguração
oficial em 01/05/1962, transcorreram-se, portanto, 31 anos de trabalho coletivo, o que
certamente contribuiu para afirmá-la no imaginário dos moradores do bairro. E tudo leva
a crer que a edificação da igreja matriz bem como a construção do antigo coreto da
Praça Duque de Caxias, e os jardins que ali foram construídos, consolidaram este lugar
como a área central de Santa Tereza. Nas narrativas de seus moradores a praça e a
igreja comparecem como os dois principais ícones identitários do lugar.
Na década de 1950 já se podia observar, com maior clareza, o predomínio de
construções de uso residencial no bairro, quando começaram a surgir construções de
pequenos edifícios. Vale dizer que o período compreendido entre o final dos anos 40 e
aproximadamente meados dos anos 50 é caracterizado em Belo Horizonte como uma
fase na qual o mercado expõe um traço predominantemente especulativo, quando então

9
Cumpre observar que o prefeito Célio de Castro foi reeleito para o período de 01/01/2001 a 31/12/2004.
Contudo, por motivos de saúde, foi licenciado em 31/12/2002 e aposentado em 27/03/2003.
10
Esta condição da Praça Duque de Caxias e seu entorno, com a presença de bares e restaurantes, mereceu
uma matéria de duas páginas no jornal “O Tempo”, com o título “Santa Tereza reafirma a cada dia sua vocação
notívaga”. Cf. Jornal O Tempo, 2001, p.10-11.

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operou uma enorme oferta de lotes, sinalizando para a abertura de novas frentes do
processo de expansão urbana por meio do loteamento de grandes áreas. Nestas, apenas
se fazia a abertura de ruas, sem qualquer dotação de infra-estrutura básica, conduzindo à
formação de bairros cada vez mais longínquos, o que consolidou a expansão periférica e
a conurbação, precipitando desse modo a metropolização de Belo Horizonte. (Plano Diretor
de Belo Horizonte, 1995). Os avanços da industrialização e da urbanização representaram
para o bairro o recrudescimento dos empreendimentos imobiliários, principalmente a partir
dos anos 80, como evidencia a construção de pequenos conjuntos habitacionais na época.
O adensamento populacional e a expansão da área construída desencadearam a
formação de uma teia de conflitos entre a apropriação da rua para o desfrute dos moradores
e o recrudescimento do tráfego, em detrimento da primeira. Entretanto, este movimento
não representou uma ampla supressão de práticas de uso no local, sendo ainda observáveis
nos seus interstícios (sobretudo nas ruas de menor tráfego) bem como na Praça Duque
de Caxias. Estas áreas não estão, obviamente, incólumes aos problemas sociais e seus
agravos, com ocorrências esporádicas de pequenos furtos, agressões, roubos, uso miúdo
de drogas, etc.
As obras de infra-estrutura na região onde se localiza o bairro de Santa Tereza
tornaram esse bairro bem mais vulnerável aos empreendimentos imobiliários de maior
monta, quando já se podia constatar a expansão do uso comercial e da construção de
edifícios. Pode-se destacar, por exemplo, a verticalização permitida pelo zoneamento
ZR-4 (criada para a área em torno do centro da cidade), que induz a ocupação residencial
multifamiliar vertical. (Plano Diretor de Belo Horizonte, 1995).
Foi nesse contexto que emergiu em 1996 se não a maior uma das maiores
mobilizações dos moradores na defesa do bairro frente às ameaças representadas pela
voracidade dos capitais imobiliários, episódio que precipitou a resistência da comunidade
local face à mudança de padrão de ocupação estabelecida pelo poder público municipal.
O evento mais marcante desta mobilização foi, indubitavelmente, o ato público ocorrido
em 21 de abril de 1996, quando os seus participantes fizeram um “abraço simbólico” em
torno da Praça Duque de Caxias. Este acontecimento é o que melhor simboliza o percurso
da resistência local, explicitando para a comunidade do bairro e para a cidade de Belo
Horizonte os motivos desta luta e o seu sentido, evidenciando a determinação de seus
moradores quanto à importância de se preservar a identidade do bairro.
Esta ação efetivamente teve fortes ressonâncias junto ao poder público, conduzindo
à aprovação do artigo 83 da Lei 7.166/96, mais precisamente em 14/06/1996 pela Câmara
dos Vereadores, que resguarda o bairro de comprometimentos ao seu patrimônio
arquitetônico-urbanístico. Desta ação resultou uma das emendas acatadas pela Comissão
que analisou o Plano Diretor de Belo Horizonte de 1995, pela qual o bairro passou a ser
considerado uma ADE (Área de Diretrizes Especiais)11 . O parágrafo primeiro deste
11
A ADE (Área de Diretrizes Especiais) é definida como uma área que, em função das características ambientais
e da ocupação histórico-cultural, demanda a adoção de medidas especiais para proteger e manter o uso
predominantemente residencial.

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Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

artigo prevê ainda mecanismos de participação da comunidade e na gestão da região. O


parágrafo segundo estabelece que além de uso residencial, somente é permitido na ADE
Santa Tereza o funcionamento das atividades relativas aos usos do Grupo I, isto é, prédios
com até três andares e com altura máxima de 15 metros e para os casos que não impliquem
a demolição das edificações hoje existentes. Desse modo, o novo Plano Diretor da Cidade
(aprovado no final de 1996 e com vigência a partir de 1997), estabeleceu diretrizes especiais
para construção e implantação de atividades no bairro, dificultando a construção de
espigões. Vale dizer que a área construída de Santa Tereza expõe um expressivo percentual
de casas, pouco mais de 70%, e os quase 30% restantes de prédios de apartamentos.
Entretanto, se estas medidas impuseram restrições à construção de “arranha-céus”
no bairro, elas não têm conseguido conter de forma ampla a construção de prédios de
menor porte. Percorrendo-se as ruas do bairro, pode-se observar a presença destes
edifícios em vários pontos. Porém, não ainda a ponto de entabular uma ampla e profunda
descaracterização do bairro. Acrescente-se, ainda, que além do impedimento à
verticalização de maior volumetria, outro fator de ameaça e constrangimento que a
regulamentação da ADE pretende evitar, é o atravessamento do bairro pelo chamado
tráfego de passagem.
Esta ação de resistência à descaracterização do bairro, conducente à sua
transformação em ADE (a primeira a ser criada em Belo Horizonte), ocorreu logo após
a descoberta, por um grupo de moradores, de que o bairro de Santa Tereza tinha sido
incluído no novo Plano Diretor de 1995, como Zona de Adensamento Preferencial (ZAP).
Este fato precipitou a formação do Movimento Salve Santa Tereza - tido como o principal
responsável por esta conquista -, de modo a barrar uma desfiguração maior que já se
manifestava em alguns pontos, como, por exemplo, na Rua Hermílio Alves, que já
apresentava prédios de 12 andares.12 Este movimento emergiu, portanto, na eminência
efetiva desta ameaça representada pela nova legislação urbana de Belo Horizonte. A
pressão exercida pelo Movimento se deu no sentido de modificar o projeto do Plano, mais
especificamente da lei de parcelamento, ocupação e uso do solo urbano. Desse modo,
diante da verticalização e da flexibilização permitidas na proposta do Plano Diretor
(rejeitadas pelo Movimento), afirma-se o desejo da comunidade do bairro pela manutenção
das suas características locais, tendo em vista o resguardo de certa tranqüilidade, da
qualidade de vida e da sua sociabilidade. De um pequeno grupo de pessoas, o então
embrionário movimento se alarga, angariando apoios importantes pela cidade como, por
exemplo, do IAB e da OAB.
A proximidade de Santa Tereza à zona central de Belo Horizonte, à região hospitalar
e ao bairro Savassi (áreas já há algum tempo saturadas), conferiu-lhe grande vulnerabilidade
às sanhas do capital imobiliário, condição reforçada com a classificação de ZAP (Zona

12
Segundo diagnóstico feito pelas secretarias municipais de Planejamento e Atividades Urbanas, até 1998,
Santa Tereza apresentava 5 edifícios com mais de 11pavimentos (sendo um deles com três blocos), 7 entre 8
e 10 pavimentos, 14 entre 5 e 7 pavimentos, e mais de 3 mil edificações com até quatro pavimentos. In: Hoje
em Dia, Belo Horizonte, 13 de outubro de 1998. p.5.

195
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

de Adensamento Preferencial) proposta inicialmente pelo Plano Diretor. Após todo um


trabalho de convencimento junto aos vereadores e à opinião pública, no sentido de se
chamar a atenção para a relevância da região do bairro e, mais especificamente, de
Santa Tereza à cidade de Belo Horizonte (o que contou com uma boa divulgação pela
mídia) o resultado foi a criação da ADE.
Não fosse essa mobilização de resistência dos moradores, e os apoios que o
movimento recebeu de várias instituições, poder-se-ia prever, como um dos cenários
mais prováveis (sem a criação da ADE), uma rápida e efetiva descaracterização do
bairro pelo capital imobiliário. Isto seguramente acarretaria sérios comprometimentos
aos seus espaços de convívio (ainda existentes e insinuantes), assim como ao seu acervo
arquitetônico e urbanístico (que ainda guarda um expressivo casario do início do século
XX, sobretudo dos anos 20 e 30) pela substituição progressiva do patrimônio edificado.
Ademais, o recrudescimento da verticalização levaria a sobrecargas na infra-estrutura
de água, de esgoto e de trânsito.
Pelo nosso entendimento, esse percurso de mobilização e resistência expõe a
conformação de uma situação espacial em Santa Tereza, na qual os moradores decidiram
conscientemente acerca do lugar de moradia, vivência e existência. O questionamento
diante do prescrito, da situação indesejada de descaracterização representada pelas normas
urbanísticas inicialmente propostas pelo Plano Diretor, suscitou uma “tomada de
consciência”. Tal condição sugeriria uma perspectiva oposta a uma reificação sócio-
espacial, uma vez que esta práxis territorial de resistência encerra (e está pautada por)
sentimentos, afetividade entre as pessoas e destas com o lugar de vivência, aspectos que
se inscrevem na historicidade topofílica do bairro, política e socialmente valorizada.
Conquanto o bairro ocupe atualmente uma área correspondente a 84,292 km2,
delimitada ao norte pela Rua Pouso Alegre, ao sul e a leste pela Rua Conselheiro Rocha,
e mais a oeste pela av. Flávio dos Santos e av. do Contorno, com uma população estimada
(dados de 2000) em 12.122 habitantes13 (entre eles, muitos moradores antigos, estudantes
universitários, professores, artistas plásticos, músicos, ceramistas, poetas etc.14 ), Santa
Tereza conformou-se como um bairro predominantemente residencial, evidenciando-se
no contexto sócio-espacial de Belo Horizonte pela sua vida boêmia, festiva e artística.

13
Esclareça-se que a estimativa se fez a partir de dados disponibilizados no Censo do IBGE de 1991 para os
bairros de Santa Tereza e Floresta (respectivamente com 10.761 e 18.852 habitantes) para o ano 2000, quando
então os dados não são apresentados por bairro nem pelo IBGE (que opera com setores censitários) e nem
pela Prefeitura de Belo Horizonte (que trabalha com Unidades de Planejamento). Assim sendo, levantei no
Anuário Estatístico de Belo Horizonte (2001) os dados da Unidade de Planejamento Floresta/Santa Tereza de
2000 (que indica apenas a população de forma agregada, no caso de 33.357 habitantes) para fazer esta
estimativa. Trabalhando-se os dados destes dois períodos (1991 e 2000), pode-se constatar, de forma
aproximada, que a população de Santa Tereza e da Floresta em 2000 perfaziam, respectivamente, 12.122 e
21.235, muito embora não seja prudente e nem razoável afirmar que estes bairros tenham crescido na mesma
proporção. Trata-se, portanto, de uma aproximação.
14
Cumpre observar, acerca disso, que a literatura sobre valorização do espaço, que atravessa a geografia
econômica, fala dessa presença social “alternativa” que tem “certa cultura” e pode ser intermediária – no
tempo da capitalização possível – de outros usos e moradores.

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Esta tríade é uma de suas características mais marcantes. Ela representa um traço forte
nas suas práticas sócio-espaciais e, desse modo, na sua identidade e territorialidade. O
que faz deste lugar um espaço de atração e de “philia”, de procura constante por moradores
de diversas partes de Belo Horizonte e mesmo de outras cidades, inclusive do exterior. É
um traço historicamente constituído no bairro, consolidado e inscrito no universo da festa,
do encontro, da afetividade e, portanto, do uso (concomitantemente do tempo e do espaço).
Eis o que lhe é proeminente, éter que o envolve e matiza a sua singularidade. Vejamos,
acerca disso, alguns depoimentos de moradores:

Escolhi Santa Tereza, que me chamava atenção por ser mais parecida ainda
com cidade do interior, mais família. Cheguei no bairro há 10 anos e os
vizinhos me procuram, uma coisa que na capital, na cidade grande, não
existe, esse cuidado dos vizinhos, que vem e procuram, que quer saber,
saber o que é que faz. E isso me atrai muito, me sinto muito à vontade com
essa coisa de ser uma grande família. Me sinto mais segura, de não ser tão
anônima na grande cidade. [...]. Aqui tem ainda muita casa. Quis morar
num bairro com mais casas do que prédios. A gente batalhou pra ter leis
que protegessem o bairro. A comunidade é unida, eles discutem, cobram.
[...] A grande diferença é a semelhança com o interior. Aqui se conhece
todo mundo. Há dez anos que estou aqui e as pessoas são assim, não
apenas os vizinhos. [...] Há um afeto entre os moradores.15

Um outro morador, que reside a 51 anos em Santa Tereza acredita que o bairro seja

[...] um dos melhores bairros para se morar da cidade. A vida aqui é mais
tranqüila. [...] É difícil alguém não conhecer a outra pessoa. [...] Aqui tem
muitas famílias antigas. Permaneço até hoje no bairro porque tenho relações
de amizade antigas.16

Em depoimento de outra moradora, que vive no bairro há 36 anos, e que diz adorar
a cidade de Belo Horizonte, Santa Tereza comparece como o lugar preferido da capital
mineira, no qual tem a maior parte de seus familiares. Embora identifique no bairro um
relativo avanço da violência e uma insuficiência do policiamento, o bairro, mesmo assim,
é considerado “um bom lugar para se viver”. E explica:

[...] talvez porque tenha ainda muita residência, menos edifícios, o povo
ser mais socialmente amigo. A gente sai aqui, todo mundo sai se
cumprimentando como se fosse uma cidade do interior. [...] Todo mundo
te cumprimenta; de início pergunta as coisas, conversa, sai andando, fazendo
uma compra, conversando, como se fossem conhecidos; mas, às vezes,
se conhecem só de vista, pouco se sabe da pessoa.17

15
A entrevistada é artista plástica e tem 60 anos (entrevista realizada em 01 de maio de 2004).
16
Técnico de contabilidade e tem 66 anos (entrevista realizada em 04 de agosto de 2004).
17
Aposentada, tem 76 anos (entrevista realizada em 05 de agosto de 2004).

197
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

Perguntado sobre as suas impressões sobre Santa Tereza, um outro entrevistado


respondeu o seguinte:

As melhores possíveis. Um bairro bom de morar porque não é super-


populoso. Apresenta uma infra-estrutura urbana razoável ou fácil acesso a
equipamentos urbanos. Não passou por processo de verticalização como
Floresta, Sagrada Família e Santa Efigênia. Apesar de alguns relatos dando
notícias de roubos e assaltos, tenho a impressão de segurança, de conforto
ao caminhar ou percorrer de carro as ruas do bairro, que são bastante
simpáticas.18

Embora as relações entre os moradores revelem-se diversificadas, o bairro, como


se viu, ainda guarda relações estreitas de vizinhança (de boa vizinhança), fato que pode
ser atribuído, de um lado, à presença e permanência de moradores antigos nas suas
dependências, cuja longa convivência proporciona um conhecimento mútuo e íntimo dos
seus hábitos; de outro, pelo relativo “insulamento” do bairro em relação ao centro e
demais áreas de maior dinamismo da cidade, resguardando-se, até certo ponto, de uma
efetiva elitização sócio-econômica, aspecto pelo qual ele ainda se apresenta como um
bairro predominantemente de segmentos de renda média e baixa.
Como mencionado a pouco, a constituição deste quadro sócio-espacial mais
“particularizado” ao longo dos tempos pode ser atribuída ao relativo isolamento geográfico
que o lugar experimentou durante um bom tempo em relação ao seu entorno.
Historicamente, o bairro se encontrava “fora” da zona urbana, demarcando, assim, uma
descontinuidade espacial no processo mais geral de formação da cidade. Mas esta
descontinuidade não se reduz apenas à dimensão territorial, mas se estende aos modos
territoriais de vivência no/do bairro. O fato do bairro não ter sido drenado por grandes
artérias de circulação, contribuiu significativamente para um relativo resguardo dessa
conformação sócio-espacial. Santa Tereza afirmou-se no interior da metrópole como um
lugar em que seus moradores o reconhecem como seu, evidenciando interações
observáveis entre as formas físicas e as formas sociais, pelas quais se forma o vínculo
entre preservação e comunidade. Portanto, seu percurso de formação sugere a constituição
de uma outra sociabilidade, que não foi forjada pelos imperativos da racionalidade
geométrica. A própria conformação das suas ruas - caracterizada, entre outras formas,
também pela presença de becos, ruas estreitas e tortuosas -, favorece a aproximação e o
encontro entre as pessoas, o contato direto, ainda favorecendo uma maior aproximação
entre as pessoas.
Pode-se dizer que Santa Tereza se afirma no movimento mais amplo de estruturação
e evolução da metrópole interiorana (Belo Horizonte) como um lugar histórica e
geograficamente vivenciado pela comunidade que nele se inscreve. Enquanto um espaço

18
Morador do bairro há alguns anos, o entrevistado tem 36 anos, é historiador e professor universitário
(entrevista realizada em 20 de abril de 2004).

198
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

vivido, e não simplesmente um espaço visto, condição pela qual se realiza historicamente
a ação e a exploração do indivíduo no espaço, o bairro se insinua no conjunto da cidade
como um lugar diferenciado, dotado de certa singularidade - e cada lugar é, à sua maneira,
o mundo... Para tal singularidade há que se levarem em conta seus modos territoriais de
vivência, que se manifestam, sobretudo, na sua musicalidade, na vida boêmia, nas rodas
de “bate-papos” (principalmente nos bares e restaurantes), na vida religiosa da Paróquia
de Santa Tereza, na mobilização política em torno da preservação do bairro, nas feiras,
etc. Eles representam efetivos vetores de socialização no bairro, à medida que entabula
o compartilhamento coletivo (por grupos) e individual em diversos lugares, conferindo-
lhe, assim, um sentido locacional de presença e co-existência.
Vinculando-se a esses modos territoriais de vivência, a formação sócio-espacial
de Santa Tereza expõe ainda a existência de uma territorialidade insinuante, que é matizada
essencialmente pela valorização simbólica e afetiva do lugar por seus moradores e, de
forma correlacionada, pela politização em relação às questões que envolvem a sua
preservação.
Sendo a territorialidade compreendida como uma categoria relacional espaço-
sociedade, ela “[...] corresponde ao conjunto das relações que permitem aos diversos
grupos fazer valer seus interesses no espaço, tornado lugar de vida”. (Bailly; Beguin,
1998, p.16). Neste sentido, ela se traduz e se inscreve como um fenômeno existencial,
uma experiência possível manifesta no tempo e no espaço. É por meio dela que um dado
grupo social ou mesmo o indivíduo adquirem consciência do seu espaço de vida. Desse
modo, a territorialidade assume um valor bem particular, uma vez que reflete a
multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos membros da coletividade, pelas
sociedades em geral. (Raffestin, 1993, p.158). Para o autor, a territorialidade sempre
apresenta em sua base

[...] uma relação, mesmo que diferenciada, com os outros atores. Cada
sistema territorial segrega sua própria territorialidade, que os indivíduos e
as sociedades vivem. A territorialidade se manifesta em todas as escalas
espaciais e sociais; ela é consubstancial a todas as relações e seria possível
dizer que, de certa forma, é a “face vivida” da “face agida” do poder.
(1983, p.161-162).

É preciso esclarecer que não se trata de uma simples relação com o espaço, ou
mesmo como uma suposta admissão da idéia pela qual a forma determina o conteúdo,
haja vista que as formas espaciais, por si mesmas, são insuficientes para explicar a
sociedade no seu estatuto ontológico. Todavia, não se postula aqui a inversão da situação
através da negligência para com o espaço, o qual não se expressa tão somente como um
mero reflexo da sociedade, mas simultaneamente como o terreno onde as práticas sociais
se exercem, sendo, concomitantemente, [...] “a condição necessária para que elas existam
e o quadro que as delimita e lhes dá sentido”. (Gomes, 2002, p.172).

199
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

Considerando-se que a territorialidade encerra uma dinâmica, em que seus fatores


constitutivos são passíveis de modificações espaço-temporais, postula-se que a
territorialidade de Santa Tereza se inscreveria, mais especificamente, no universo relacional
entre “uma territorialidade estável” e “uma territorialidade instável” (Raffestin, 1983,
p.162). De acordo com Raffestin, na “territorialidade estável [...] nenhum dos elementos
sofre mudanças sensíveis a longo prazo”, enquanto na “territorialidade instável [...] os
elementos sofrem mudanças a longo prazo”. (1983, p.162). É plausível admitir, então, que
Santa Tereza se apresentaria, ao menos por enquanto, como um construto sócio-espacial
dotado de uma territorialidade híbrida, assentada em relações de troca e/ou comunicação,
na qual parte dos seus elementos constitutivos pode mudar e outra permanecer estável.
Esta interpretação remete à dimensão da vida cotidiana na modelação do bairro,
uma vez que é nela que se inscrevem os chamados “benefícios simbólicos”. Segundo
Pierre Mayol (1997, p.39),

Esses benefícios deitam suas raízes na tradição cultural do usuário, não se


acham totalmente presentes à sua consciência. Aparecem de maneira parcial,
fragmentada, no modo como caminha, ou, de maneira geral, através do
modo como “consome” o espaço público. Pode-se também elucidá-lo através
do discurso de sentido pelo qual o usuário relata a quase totalidade de suas
iniciativas. O bairro aparece assim como o lugar onde se manifesta um
“engajamento” social ou, noutros termos: uma arte de conviver com
parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato
concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição. (grifo do autor).

Portanto, o bairro comparece no universo da metrópole (que só parcialmente pode


ser vivida) como um espaço dotado de uma dimensão relacional entre os sujeitos e o
território, entabulando uma prática cotidiana que,

[...] introduz um pouco de gratuidade no lugar da necessidade; ela favorece


uma utilização do espaço urbano não finalizado pelo seu uso somente
funcional. No limite, visa conceder o máximo de tempo a um mínimo de
espaço para liberar possibilidades de deambulação. [...] O bairro é, no sentido
forte do termo, um objeto de consumo do qual se apropria o usuário no
modo da privatização do espaço público (Mayol, 1997, p.44-45).

Este percurso nos leva, assim, a uma reflexão sobre a apropriação social do espaço.
Estando a apropriação vinculada diretamente ao uso habitual do espaço, pelo qual ele
localmente se insere num circuito relacional mais imediato e próximo do usuário, o espaço
se torna, então, uma espécie de extensão do espaço residencial mais particular, que é a
casa. O que vale dizer que a apropriação, tal qual a territorialidade, se inscreve no universo
da moradia, relacionando-se com a ambiência sócio-espacial urbana. A fixidez do habitat
do usuário associada ao uso cotidiano do bairro faz com que ele, gradativamente, se insira
numa esfera privada pelos investimentos regulares que o citadino realiza no seu ambiente,

200
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

capturando e introduzindo-o no seu universo existencial. Isto estabelece no lugar uma


relação de aproximação e envolvimento. O sentido desta esfera privada do espaço não
está referenciado propriamente pela propriedade, mas no seu uso cotidiano, através do
qual ele é apropriado por agentes sociais que trazem em suas vidas a experiência de uma
esfera privada íntima, que de certo modo se exterioriza pelos domínios do espaço público.
Trata-se de uma apropriação em que o corpo, com sua relação mais imediata e efetiva
com o lugar, opera um papel primordial, dado que esta apropriação traduz a dimensão do
espaço enquanto espaço vivido, com fluxos e ritmos referenciados ao humano, que não
necessariamente se anula em função da velocidade da técnica e das dinâmicas do capital
frequentemente a ela associadas, podendo mesmo “escapar” delas. Neste sentido, Ana
Fani A. Carlos (1996, p.22) observa que

Os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domicílio aos


lugares de lazer, de comunicação, mas o importante é que essas mediações
espaciais são ordenadas segundo as propriedades do tempo vivido. Um
mesmo trajeto convoca o privado e o público, o individual e o coletivo, o
necessário e o gratuito. Enfim o ato de caminhar é intermediário e parece
banal – é uma prática preciosa porque pouco ocultada pelas representações
abstratas; ela deixa ver como a vida do habitante é petrificada de sensações
muito imediatas e de ações interrompidas. São as relações que criam o
sentido dos “lugares” da metrópole. Isto porque o lugar só pode ser
compreendido em suas referências, que não são específicas de uma função
ou de uma forma, mas produzidas por um conjunto de sentidos, impressos
pelo uso.

As áreas demarcadas por relações mais diretas e regulares com o lugar, e pelo
lugar, circunscreveriam uma relação inseparável entre apropriação do espaço e
territorialidade. Há, sem dúvida, limites ou restrições à apropriação espacial, porém as
noções de limite e restrição relativas a ela não significam a sua impossibilidade, a sua
não-realização absoluta, conquanto as contradições potencializadas do capitalismo em
crise açulam novos dinamismos e transformações na relação sociedade/espaço.
Ademais, a questão relativa à apropriação do espaço e à formação da(s)
territorialidade(s) envolve dificuldades e questionamentos, entre os quais a da ambigüidade
entre o real e a sua representação. O próprio significado de representação é alvo de
debates, oscilando desde interpretações que a consideram uma ilusão, isto é, uma expressão
descolada do real, até leituras que a qualificam como parte integrante e formativa do
próprio real, havendo ainda compreensões menos polarizadas que a situa num universo
intermediário, um misto de real e de sua figuração. Buscamos aqui trabalhar com a
categoria da representação numa perspectiva geográfica, pelo aporte da territorialidade.
Enquanto uma práxis inscrita no social, a apropriação e a formação da territorialidade
- embora restringidas no curso do desenvolvimento da modernidade – encerram
potencialidades que indagam sua dimensão e seu alcance na contemporaneidade, sobretudo

201
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

potencialidades de práxis de caráter inventivo, que não devem ser confundidas com práxis
estritamente repetitivas. (Lefebvre, 1958). Se no âmbito do social engendram-se fronteiras
e limites, estes limites não são automáticos e absolutos, uma vez que o social é, por
excelência, o universo relacional e comunicacional em que emergem proposições de
novas possibilidades e ações. Assim, o social compreenderia mais propriamente

Um espaço em que Eu e Outro se encontram, exploram identidades,


constroem símbolos e expressam afetos. Nesse sentido, o social é também
um espaço para transcender fronteiras institucionalizadas e para instituir
novas fronteiras. A teoria das representações sociais deve ser explícita em
sua concepção do social – ele não é uma variável independente; não é uma
estrutura externa, não é uma influência. O social é a arena própria que
constitui a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva do fenômeno das
representações sociais. O jogo entre o subjetivo e o objetivo, e entre a ação
e a reprodução, que constituem o social está no centro do processo de
formação das representações sociais. (Jovchelovitch, 2000, p.180-181).

Admitindo-se que a territorialidade se circunscreva no âmbito da representação,


portanto do discurso e da narrativa, é necessário levar em conta que elas estão referenciadas
no e pelo real, uma vez que o imaginário social não resulta do nada. Contudo, cabe evocar
o alerta cautelar de Ítalo Calvino, para o qual “[...] jamais se deve confundir uma cidade
com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles”. (Calvino, 1997,
p.59). À medida que o imaginário emerge e se constitui no plano das chamadas realidades
intersubjetivas, a territorialidade revelar-se-ia então como uma expressão espacial
intelectualmente construída a partir de referências da realidade. Nesse sentido poder-se-
ia dizer que as ações humanas sofrem influências das representações, podendo estas
modelar comportamentos e práticas sociais. Portanto, a territorialidade estaria circunscrita
aos limites de uma “realidade ilusória”, confinada tão somente ao universo mental,
intelectual? A media que ela se integra à esfera existencial, portanto da vida, a territorialidade
enquanto representação não seria ela própria parte da realidade? Afora polêmicas em
torno da questão, compreendemos que o procedimento de apartá-las do real, ou tomá-las
como uma espécie de “real distorcido” sugere uma concepção científica (ou, talvez,
cientificista) de objetividade, que condena o investigador a um tratamento cognitivo do
objeto de conhecimento que faz dele uma expressão vazia e destituída de subjetividade.
Neste sentido,

As coisas objetivamente consideradas podem ter peso, volume, estrutura


atômica e tudo aquilo que os instrumentos científicos conseguirão medir.
Mas a subjetividade humana é soberana em seus domínios e não cede as
suas prerrogativas. [...] A luminosidade vivida não reflete a luminosidade
medida. Ninguém, é verdade, enxerga no escuro. Mas a luz que de fato
importa e a luminosidade das coisas vistas [...] dependem muito do estado

202
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

mental de quem vê. (Giannetti, 1997, p.86).

Assim, a formação da territorialidade implica também o nível da representação,


estando esta amalgamada àquela. O sentimento de pertencimento, bem como o de
compartilhamento a um dado lugar (ingredientes importantes na formação da
territorialidade), como vimos no caso de Santa Tereza, envolve fatores diversos, bem
como são diversas as formas pelas quais eles se realizam. Mas é no plano da experiência
sócio-espacial efetiva – real - que eles são forjados.
Fazemos ainda um último adendo no debate em torno do significado de apropriação,
que se enriquece com a contribuição de Rogério Haesbaert (2002), fundamentado nas
idéias de Henri Lefebvre, de modo a apresentar uma distinção entre apropriação e
dominação do espaço. Haesbaert observa que Lefebvre faz uma advertência para o fato
de que embora estas expressões sócio-espaciais devessem aparecer associadas, juntas,
elas também se tornaram separadas e contraditórias com o desenvolvimento do capitalismo
e do processo de acumulação. Com eles, a posse, no sentido da propriedade, serviu
concomitantemente como uma “condição” e um “desvio” da atividade de apropriação do
espaço, em razão das demandas e possibilidades dos diversos grupos que a realizam.
Nesta perspectiva, o conceito de apropriação de Lefebvre, segundo Haesbaert,
comportaria fundamentalmente duas dimensões, quais sejam:

Um processo efetivo de territorialização, que reúne uma dimensão concreta,


de caráter predominantemente “funcional”, e uma dimensão simbólica e
afetiva. A dominação tende a originar territórios puramente utilitários e
funcionais, sem que um verdadeiro sentido socialmente compartilhado e/
ou uma relação de identidade com o espaço possa ter lugar.
Assim, associar ao controle físico ou à dominação “objetiva” do espaço
uma apropriação simbólica, mais subjetiva, implica discutir o território
enquanto espaço simultaneamente dominado e apropriado, ou seja, sobre o
qual se constrói não apenas um controle físico, mas também laços de
identidade social. Simplificadamente podemos dizer que, enquanto a
dominação do espaço por um grupo ou classe traz como conseqüência um
fortalecimento das desigualdades sociais, a apropriação e construção de
identidades territoriais resultam num fortalecimento das diferenças entre
grupos, o que, por sua vez, pode desencadear tanto uma segregação maior
quanto um diálogo mais fecundo e enriquecedor. (Haesbaert, 2002, p.120-
121).

Considerações finais

Malgrado os impactos que a modernidade capitalista provoca no território e, mais


especificamente, nas relações de solidariedade e de sociabilidade num dado lugar, isto
não autoriza, contudo, afirmações apressadas de que elas necessariamente desapareçam

203
BAGGIO, U. DA C. APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE...

ou se transmutem em relações alienadas, circunscritas a uma “cidadania caricatural” -


conquanto se admita as dificuldades de realização da cidadania sob a condição capitalista
atual. Diante disso é que se reitera a necessidade de um olhar mais cuidadoso em relação
ao presente, de modo a valorizar certas conquistas e avanços auspiciosos da práxis social,
evitando-se generalizações e posturas totalizantes e pretensamente certas, não raro
tendentes a um certo niilismo.
O primado do valor de troca no universo espaço-temporal não é suficiente a ponto
de estabelecer um território árido no qual a esperança e os desejos, bem como o uso e as
territorialidades a ele vinculadas sejam banidos do mundo sensível, ou mesmo qualificados
como expressões da alienação. Sinaliza-se, assim, para os limites deste movimento e as
brechas que se abrem às possibilidades do uso e da apropriação social do espaço. Avanços
quanto à constituição de uma condição sócio-espacial mais aceitável podem, até certo
ponto, ocorrer mesmo sob o capitalismo, de modo a se valorizar as possibilidades do
presente e a urgência de ações social e ambientalmente desejáveis e conseqüentes19 . No
entanto, mudanças mais profundas certamente requereriam transformações nas bases
da sociedade, o que se colocaria como um projeto de longo prazo. O que nos leva a
asseverar que não haveria um protagonista exclusivo ou principal no processo de
transformação do espaço e da cidade, sendo mais razoável se pensar num ator coletivo
eficaz, social e politicamente reconhecido, cujo dimensionamento não se fizesse pela
somatória de suas partes (ou agentes), mas por sua efetiva capacidade de articulação e
integração em prol da melhoria das condições sócio-espaciais e, assim, da reprodução
social e da existência presente e futura.
Conquanto as condições sócio-espaciais da contemporaneidade encerrem
dificuldades e imponham certos limites a uma efetiva democratização do espaço, ainda
assim estão lançadas no horizonte a possibilidade efetiva de um maior envolvimento e
participação renovada das pessoas naquilo que afeta mais diretamente as suas vidas,
constituindo no seu conjunto formas de atuação e operacionalização mais refratárias a
dirigismos e cooptações do Estado. Dado que o poder político é um fenômeno histórico,
os diversos grupos sociais que compõem a sociedade têm revelado, e deverão continuar
a revelar, novas e imprevisíveis formas de organização e ação, tanto nos interstícios das
estruturas burocráticas como à margem delas. Neste sentido, as práticas sócio-espaciais
de caráter mais autonomista delineiam não apenas novos arranjos político-territoriais,
19
Não sendo o propósito deste trabalho arrolar pormenorizadamente possibilidades de caminhos e estratégias
alternativas, pode-se, ao menos, chamar a atenção, concordando com Ermínia Maricato, para a necessidade de
se produzir e se disseminar para a sociedade, as lideranças comunitárias e os administradores públicos o
conhecimento sistemático e fidedigno sobre a “cidade real” (que não se confunde com a “oficial”), de modo a
estimular o debate democrático e a desconstrução de mitos, reduzindo substancialmente a grande desinformação
reinante e imprimindo maior transparência às práticas administrativas. Podem-se mencionar também as
diversas experiências de administração participativa, com práticas relativamente bem-sucedidas de orçamento
participativo. Além disso, vale lembrar também a criação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001), que
envolve a definição da “função social” da propriedade, prevista na constituição de 1988, e que institui a
obrigatoriedade de Planos Diretores para municípios com mais de 20 mil habitantes. Cf. Maricato, 2000;
Maricato, 2001. E, não menos importante, caberia ainda levar a cabo uma profunda e conseqüente reflexão
acerca da ação das mídias, e o embotamento da imaginação e do pensamento que a multiplicação imagética e
ideológica que ela veicula acarreta.

204
Terra Livre - n. 29 (2): 181-206, 2007

como também conferem à escala do lugar a condição de lócus privilegiado de uma


geopolítica não institucional estatal. Elas se revelam como formas localizadas de ação
política coletiva que, dadas as novas possibilidades comunicacionais engendradas pela
globalização, se encontram sensivelmente estimuladas agora, desafiando e redimensionando
o poder do Estado. Sendo portadoras de um novo sentido e de uma nova espacialidade à
política, é preciso, pois, avaliar de forma sistêmica os seus vetores de transformação
quanto às condições objetivas e subjetivas da vida social. Embora o Estado seja, por
enquanto, o principal agente político na organização do espaço, cumpre, pois, dar visibilidade
política a elas.
É preciso observar ainda que a percepção clara do perigo que nos assombra e a
magnitude bruta dos seus impactos não se revelam como uma derivação puramente
lógico-mental, mas como objetivações da condição humana na contemporaneidade,
integrando, portanto, o mundo prático-sensível. Trata-se da formação ampliada de uma
condição em que os homens perdem o controle de suas vidas pela afirmação do fetichismo
da mercadoria, exercendo constrangimentos e reduzindo sobremaneira o exercício da
autodeterminação e da crítica, conducente à constituição de um campo privilegiado ao
triunfo do valor de troca e do seu mundo de equivalências, reino da uniformidade do
pensamento único.
Esta condição-limite suscita a possibilidade de se forjar outros caminhos e estratégias
que sejam capazes de reverter essa trajetória indesejável e preocupante de degradação
sócio-espacial que se anuncia a passos largos. O que nos leva a pensar que o homem
continua sendo, mais do que nunca, um projeto social, projeto que para além de encerrar
preocupações com a sua sobrevivência física mais imediata, perquira a integridade de
sua essência. Urge, portanto, repensar crítica e radicalmente a economia capitalista e a
cultura contemporânea por ela modelada, para além do reino do valor de troca. Isto
pressupõe a efetiva assimilação de um desejo profundo pela liberdade, tanto quanto ela
seja possível, de modo a se pensar num anti-valor, mais propriamente num valor calcado
na afetividade entre os homens. Eis o sentido maior dessa crítica radical.

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Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 24 de Fevereiro de 2008

206
Resumo: Este artigo pretende trazer à discussão temas
VERTENTES ÉTICAS E próximos ao debate geográfico e que ainda foram pouco
REGÊNCIA DE OUTRA apropriados e estudados pelos pesquisadores geógrafos, tais
como: ética, comunidade, solidariedade dentre outros. Nesse
ORDEM sentido, busca-se uma articulação com o conceito de região,
TERRITORIAL* chamando atenção para as dimensões política, econômica e
ambiental. Além disso, focamos o debate ético em quatro
conjuntos que consideramos fundamentais para a
compreensão do tema proposto: a ética do pensamento
SLOPES ETHICS & GOVERNING OF complexo, com a religação da cultura humanista e científica; a
ANOTHER ORDER TERRITORIAL ética da alteridade, com ênfase na relação do Eu com o Outro;
a ética armorial, com sinergia entre tradição e evolução social;
VERTIENTES ETICAS Y REGENCIA
DE OTRA ORDEN TERRITORIAL
e a ética capitalista, com destaque para a racionalização da
vida social segundo fins e valores. Assim, as reflexões sobre
região e ética são inscritas como possibilidade de
entendimento do funcionamento da sociedade
contemporânea.
Palavras-chave: Ética – ordem territorial – região – comunidade
– meio ambiente.

Abstract: This article intends to broach subjects close to


geographic debate and little appropriated and studied by
CLÁUDIO UBIRATAN geographers as: ethics, community, solidarity. We look for an
GONÇALVES articulation with region concept, specifically on the political,
economic and environmental dimensions. We focus the debate
on ethics considering four essential groups to the
Professor Adjunto da
comprehension of that subject: complex thinking ethics, with
Universidade Federal de Sergipe –
the link of human and scientific culture; alterity ethics, with
Campus Prof. Alberto Carvalho -
emphasis on the relation between myself and the other;
Grupo de Trabalho de Geografia
armorial ethics, with synergy between tradition and social
Agrária da Associação dos
evolution; and capitalist ethics, with emphasis on
Geógrafos Brasileiros – seções
rationalization of social life according to values and goals.
Niterói e Aracaju.
The reflections about region and ethics are registered as a
E-mail: ubiratan@ufs.br possibility of understanding the contemporary society.
Keywords: Ethics – territorial order – region – community –
environment.

Resumen: Este artículo pretende discutir temas próximos al


debate geográfico y que todavía fueron poco apropiados y
estudiados por los pesquisadores geógrafos como: ética,
comunidad, solidaridad entre otros. En este sentido, se busca
una articulación con el concepto de región llamando la
atención para las dimensiones política, económica, y ambiental.
Además de eso, enfocamos el debate ético en cuatro grupos
*
Este artigo é parte da tese de que consideramos fundamentales para la comprensión del tema
doutorado do autor defendida no propuesto: la ética del pensamiento complejo, con la unión
PPGEO/UFF em 2005 sob a de la cultura humanista y científica; la ética de la alteridad,
orientação do Prof. Dr. Jacob con énfasis en la relación del Yo con el Otro; la ética armorial,
Binsztok. Sou grato as substanciais con sinergia entre tradición y evolución social; la ética
criticas e observações de: Ruy capitalista, con destaque para la racionalización de la vida
Moreira e Jorge Luiz Barbosa social según fines y valores. Así, las reflexiones sobre la región
(UFF), Levi Furtado Sampaio y ética son inscritas como posibilidad de entendimiento del
(UFC) e Regina Ângela Landim funcionamiento de la sociedad contemporánea.
Bruno (UFRRJ). Palabras-clave: Ética-orden territorial-región-comunidad-medio
ambiente.

T erra Livre Presid en te Pru d en te An o 23, v. 2, n . 29 p . 207-230 Ago -Dez/ 2007


207
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

Considerações iniciais

Ao longo das últimas décadas e, sobretudo, nos últimos anos do século XX e início
deste século XXI, constatamos um interesse crescente pela questão ética. Seja nas
instâncias responsáveis pela elaboração e pela formulação de políticas públicas como o
Estado e as Organizações Não-Governamentais, ou mesmo, no espaço acadêmico
responsável por reflexões e experimentações acerca do uso conceitual e da delimitação
metodológica da ética, o termo tem logrado importância estratégica nas decisões políticas
da sociedade moderna.
No caso da Geografia não tem sido diferente. Os constantes debates acerca do
modelo de desenvolvimento desigual capitalista têm se aprofundado sobre as exigências
éticas relacionadas com a justiça social, a interação humana com a natureza e os aspectos
culturais em contextos específicos. Na verdade, as questões normativas suscitadas na
esteira do debate ético na Geografia estão carregadas de ambivalência de sentidos e de
disputas políticas.
Para isto, analisaremos as principais vertentes que tratam a ética correlacionando-
a com o debate conceitual de região, focando processos e formas no Cariri Cearense,
lugar que abrigou nosso estudo para tese de doutoramento. Nesse aspecto da tentativa
de busca de respostas ou pelo menos de pistas sobre a existência de um novo Cariri,
referenciado na diferenciação interna do trabalho, nos debruçamos sobre os valores que
as pessoas e as instituições reconheciam como fundamentais na identificação da região
do Cariri. O passo seguinte foi identificar de onde partiam os feixes articuladores do
processo de modernização e os atores que detinham o discurso modernizador da região.
Partimos então na direção de Crato e Juazeiro do Norte, municípios que concentram de
forma mais expressiva os feixes econômicos (artesãos, Estado, ONGs, setor informal),
administrativos (Estado) e Institucionais (Igreja, Estado) irradiadores do desenvolvimento
regional.

Ética e Região: o possível diálogo

Nesse aspecto, é necessário ultrapassar a superfície das palavras e de seus


prefixos, visando identificar as permanências do que é essencial na apreensão dos sentidos
e na possibilidade de explicação dos eventos e processos geográficos. Com isso,
ressaltamos os fundamentos da idéia de região a partir da compreensão de espaço social
de Lefebvre (1986), tendo em vista o espaço vivido e sua correlação com os elementos
essenciais do imperativo ético.
Lefebvre parte de uma concepção disciplinar do espaço que abarca as formas
de apropriação e dominação através do poder para entender a gênese da sociedade. O
espaço social não deve ser pensado de forma reducionista como um objeto concreto; ele
é, na verdade, uma relação de práticas e representações sociais.

208
Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

O espaço social atravessa as relações da vida partindo da escala local até a global,
contendo as relações sociais de produção juntamente com a organização da família. A
imbricação da família, da força-de-trabalho e das relações de produção constitui as três
esferas fundamentais que são a base do pensamento lefebvriano. Tornando ainda mais
complexa esta situação na perspectiva da totalidade, o espaço contém representações
desta tripla interferência de produção e reprodução sociais. Pelas representações
simbólicas, ele se mantém em estado dinâmico de coexistência e coesão.
De acordo com o autor, figura uma triplicidade sobre a qual se retorna a muitas
retomadas:
a) Prática espacial: engloba produção e reprodução, lugares específicos e conjuntos
espaciais próprios a cada formação social que assegure coesão. A coesão implica
o espaço social e a relação ao espaço de cada indivíduo de tal sociedade e, por sua
vez, uma competência certa e uma certa performance;
b) As representações do espaço: ligado às relações de (formalização da vida) de
produção, à ordem que as impõe e, assim, à dos conhecimentos, dos signos, dos
códigos, das relações frontais;
c) Os espaços de representação: presença dos simbolismos complexos, ligados ao
lado clandestino ou subterrâneo da vida social, e também na arte, que poderia
eventualmente ser definido não como código do espaço, mas como o código do
espaço de representação (Idem, 1986).
Convém notar que as práticas espaciais, numa interação dialética, estão ligadas à
reprodução das relações de produção. Elas destilam o espaço de dada sociedade e de
cada individuo, revelando funções e formas. A prática espacial corporifica o espaço
percebido que, por sua vez, realiza a mediação entre o espaço concebido e o espaço
vivido.
As representações do espaço, ou espaço concebido, constituem o espaço dominante
de uma sociedade (um modo de produção). As concepções do espaço tenderiam para
um sistema de signos verbais elaborados a partir do saber (misto de conhecimento e
ideologia). O espaço concebido envolve a prática social e política entre os objetos e os
sujeitos e representa uma lógica que não se submete à coerência.
O espaço de representação está ligado às formas de apropriação das imagens e
dos símbolos do espaço físico. É o espaço dos habitantes e dos usuários, nele se vive e se
fala, ele contém os lugares da paixão e da ação. É o espaço dominado, e nele se faz de
fato a combinação prática de coisas, relações e concepções. Coexistência de relações
sociais de tempos históricos diferentes.
Não obstante, o discurso dos sujeitos sociais no âmbito do espaço vivido apresenta
elementos que reforçam a performance e a coesão da comunidade e de seu pertencimento
a partir das formas de apropriação e uso da natureza. O pertencimento e a exaltação de
valores, nem sempre coerentes, constituem a organização do trabalho no espaço regional.
No percurso de gênese e consolidação do pensamento geográfico, a região

209
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

desempenhou, e ainda continua desempenhando, um papel chave no rol das noções centrais
da ciência espacial, a despeito de mortes e ressurgimentos (Lacoste, 1993; Thrift, 1996;
Haesbaert, 2002b).
Seja pelo seu caráter de complexidade e pela dificuldade em precisar o termo, ou
mesmo pelo cultivo da ambigüidade que o perpassa, o fato é que todas as vertentes
teóricas da geografia fizeram uso político-ideológico do conceito, de acordo com as
circunstâncias e interesses predominantes em cada momento. Elas o usaram para ressaltar
características do funcionamento da natureza, aspectos do desenvolvimento desigual das
sociedades ou para fortalecer a intervenção e a organização do Estado. Assim ocorreu
com as concepções de região da geografia clássica, pragmática-quantitativa, radical ou
humanista.
Todavia, a região ainda conserva sua perspectiva instrumental de ordenamento
dos objetos no território. Objeto entendido aqui como resultado do trabalho, produto de
uma elaboração social (Santos, 1999:52).
Na verdade, permanecem em disputa todas as formas e tentativas de compreensão
dos objetos e regionalização do espaço, a colocação da ordem no território através da
regulação social e da identificação de seus habitantes. Estado, organizações não-
governamentais, corporações privadas e movimentos sociais, entre outras instituições,
disputam o controle na ordenação dos objetos no território. Nessa perspectiva, prevalece
a região concebida pelo Estado como um dado manipulável que sofre transformações em
seus elementos constituintes. Os estudos que perseguem o planejamento regional e de
políticas públicas se debruçam sobre os dados dinâmicos e internos do arranjo territorial,
preocupados com os princípios de unidade e homogeneidade, ignorando, porém, as
contradições existentes.
A unidade regional é exaltada ora pelo critério de uniformidade e coesão, ora pelo
critério da diversidade e da noção de contradição. Nesse sentido, é importante perceber
os riscos que se corre com a possibilidade de mecanizar as ações dos sujeitos no espaço
na justificativa de definir uma região qualquer de modo mais objetivo e racional. Os
princípios de uniformidade e coesão não devem ser tratados de forma hermética e linear.
Quando enquadrados sob o prisma da alteridade, valoriza-se a experiência existencial e
moral dos sujeitos, a relação com o contraditório. Acrescentando novos elementos à
compreensão dos processos de unidade/complexidade e da unidade/diversidade regional.
A idéia de valorização dos sujeitos a partir da perspectiva humana apresenta o
pensamento da alteridade e da complexidade como busca do diálogo possível, do respeito
mútuo e da tolerância entre pessoas e culturas diferentes, baseada na consciência histórica
e no espírito de universalidade. É um sistema formado por elementos distintos em
interdependência. Esse conceito molecular, nem rígido demais, nem flexível demais, implica
simultaneamente a unidade orgânica e a diversidade dos elementos que o constituem
(Pena-Vega et al., 2003).
A constatação do processo de complexidade da questão e da interdependência nas

210
Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

relações humanas ressalta o aspecto da responsabilidade nas decisões que envolvem o


Eu e os Outros. A manifestação da subjetividade ocorre com a condição de ser refém do
outro, de apreender o rosto do outro como interpelação de justiça social.
A região permanece como um conceito relevante tanto no espaço concreto quanto
no espaço teórico. Na verdade, não há totalmente uma negação do papel exercido pela
região, mediadora entre o lugar e o global. Ocorre uma mudança na arrumação das
categorias constitutivas do discurso e do fazer geográfico, e a região não está à margem
desse processo de transformação.

Combinação Regional e Laços de Solidariedade

Entretanto, outra vertente teórica considera a região como um espaço-equilíbrio.


Equilíbrio nas regulações entre o número e a coerência. Equilíbrio na hierarquia das
combinações. Equilíbrio entre as relações superiores, nacionais ou internacionais e as
relações de produção e de trocas elementares. Equilíbrio entre o domínio do familiar e do
conhecido e o do estranho, do excepcional.
Quando se trata da região, o conceito de escala permite compreender a intensidade
dos acontecimentos e dos fenômenos. As diferenças de escala determinam constituições
em diversas formas, uma muito extensa e distendida, a outra reduzida e coerente. Entre
estes extremos, o próprio da região é provavelmente ser média e, por conseguinte, o
equilíbrio: suficientemente vasta para englobar populações numerosas em relações
horizontais múltiplas, suficientemente reduzidas para conservar uma forte coerência no
cimento das relações verticais. A região aparece assim como a unidade essencial da
regulação espacial.
O método geográfico da Combinação Regional, sugerido por Frèmont (1980),
conjuga a estrutura, as inter-relações, a dinâmica e a imagem de uma região em questão.
Desse modo, a região é uma estrutura: um conjunto, uma combinação de relações que
caracteriza uma parte do espaço terrestre. Para analisar a estrutura que forma a
combinação regional, podemos enumerar os seus componentes nas inter-relações, que
traduz melhor a reciprocidade das influências.
Temos inter-relações ecológicas que regulam as relações entre os homens e os
meios em que vivem. Em seguida temos as inter-relações sócio-econômicas que se
estabelecem em conformidade com as relações de produção que distinguem os grupos e
as classes. As inter-relações sócio-culturais dão aos homens uma imagem de si próprios
e do mundo. Formalizam-se através de jogos de signos: línguas, informações escritas,
expressões visualizadas e paisagens. Por fim, as inter-relações sócio-demográficas regulam
o número e a repartição numérica dos homens no interior de um grupo ou entre grupos.
Os três ou quatro feixes principais de inter-relações também desenvolvem
movimento de intercruzamento entre eles. O conjunto assim soldado é o que constitui a
combinação regional. A dinâmica da cadeia das inter-relações é tal que não pode mudar

211
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

um componente sem que daí resultem conseqüências para o conjunto do sistema (Frèmont,
107:1980).
Interessante atentar que, para uma transformação ser adotada e desdobrada no
interior da combinação, é preciso que seja conhecida e reconhecida como economicamente
proveitosa e considerada culturalmente aceitável pelo grupo ou grupos sociais envolvidos.
A resistência local - regional realiza uma filtragem das contribuições exteriores e uma
assimilação da inovação aos seus próprios valores.
Outra noção que visa apreender a materialidade espacial completando, em certo
sentido, a noção desenvolvida anteriormente, propõe a região como campo de ações
concomitantes de intensidades variáveis mais do que a inscrição espacial precisa de
equilíbrio fundamental. Os limites regionais são múltiplos, dinâmicos; agindo tanto como
freios quanto como forças, eles contêm em si mesmos sua própria superação (Kaiser,
1966).
Nessa perspectiva, a metodologia do estudo regional compreende a população nos
aspectos sócio-demográficos, os recursos e sua utilização, o consumo, as relações
exteriores e a estrutura geográfica. Não podemos deixar de lado o desigual desenvolvimento
sócio-econômico das regiões. As condições naturais e humanas diferentes que o observador
encontra são os primeiros fatores de uma inevitável diferenciação geográfica.
Na tipologia do autor, interessa o aspecto do laço de solidariedade existente entre
os habitantes. Tais laços englobam as relações e os caracteres comuns fornecendo uma
coesão e imprimindo no espaço uma certa homogeneidade. A evolução da organização
econômica e social que produz a região funciona através de um movimento em torno de
um pólo. Se excluirmos os fatores do meio natural e humano, a estrutura social e as
heranças da história, restará a questão da produtividade do espaço através dos homens
que o habitam.
Na verdade, os traços dialéticos que vivificam a região tornando-a mais dinâmica
e em estado de movimento trazem em seu bojo as exigências de maior precisão teórica
na definição de seus próprios contornos. É nesse sentido que as escalas intermediárias
assumem relevância no desvendamento da estruturação do poder e no modo da organização
política da sociedade.
Outra perspectiva que contribui para o esclarecimento e a análise da realidade
regional pensada a partir do entrelaçamento das relações políticas e no contexto da
dependência econômica é evidenciada por Oliveira (1993). De acordo com esta
concepção, o econômico e o político se imbricam dialeticamente na região, assumindo
formas de bloqueios ou aberturas no produto social da economia nacional. Regiões com
desníveis econômicos sofrem uma espécie de colonização interna por outras regiões
mais desenvolvidas. Nesse contexto, é necessária a intervenção do Estado, incentivando
e estimulando políticas de desenvolvimento econômico.
As relações de contradição da reprodução do capital e da divisão do trabalho
subordinam as regiões situando-as em consonância com os estágios de desenvolvimento.

212
Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

No contexto dado pelas formas diferenciadas de reprodução do capital e das relações de


produção, o planejamento emerge como instrumento de intervenção do Estado para a
necessária integração nacional.
Outro aspecto que merece destaque no contexto da dependência regional e das
formas do desenvolvimento capitalista é a questão da natureza. De forma geral podemos
simplificar a título de compreensão didática as inúmeras variações contemporâneas a
respeito da interação com a natureza e afirmar que está em jogo o embate político de dois
campos opostos de poder. A natureza como um bem é vista por um campo estritamente
como mercadoria que, na perspectiva utilitarista, deve satisfazer de todas as formas as
necessidades do modelo vigente de desenvolvimento. Outro campo de poder observa a
natureza como um patrimônio e tem como valor ético fundamental o respeito em relação
aos processos vitais e aos limites da capacidade de regeneração e suporte.

Aqui, juntamente com uma ética, se delineiam também uma racionalidade


ambiental e um sujeito ecológico que se afirmam contra uma ética dos
benefícios imediatos e uma racionalidade instrumental utilitarista que rege o
homo oeconomicus e a acumulação nas sociedades capitalistas. O campo
ambiental, portanto, busca afirmar-se na esfera das relações conflituosas
entre éticas e racionalidades que organizam a vida em sociedade, buscando
influir numa certa direção sobre a maneira como a sociedade dispõe da
natureza e produz determinadas condições ambientais (Carvalho, 2001:37).

O conflito entre os princípios éticos na demarcação da forma de usufruto e


apropriação do meio ambiente coloca em evidência a relação sociedade – natureza. Na
dinâmica conflituosa da disputa de legitimidade social, um campo visa ampliar a capacidade
de influência de seus princípios sobre o outro campo.
Aspecto que confirma a constatação de Lefebvre (1986): a natureza não é mais
que a matéria primeira sobre a qual operam as forças produtivas das sociedades diversas
para a produção de seus espaços, uma matéria resistente e infinita em profundidade,
porém vencida, porque em curso de evacuação e de destruição.
Assim, as vertentes que dão sentido à idéia de região também reforçam seu
desenvolvimento enquanto algo concreto, com possibilidade de intervenções. Ou seja, a
idéia de região pressupõe uma intervenção intencional a partir dos instrumentos técnicos
disponíveis para a adequação do espaço geográfico aos moldes exigidos pela solidariedade
de seus habitantes e pela mobilização comunitária.
Portanto, todos os argumentos desenvolvidos anteriormente acerca do conceito de
região contribuem, de alguma forma, com nossa idéia de análise regional com base na
comunidade. A região como relação de práticas e de representações espaciais sinaliza
para o discurso e o sentimento de pertencimento de seus habitantes. A região se torna
sujeito corporificando imagens e símbolos a partir do trabalho elaborado no contexto da
diversidade das ordens econômicas existentes internamente.

213
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

Assim, a formação social do Cariri está ligada às várias formas de uso e de


apropriação do território de acordo com o recorte temporal que queremos realizar. Nesse
aspecto, nos interessa o discurso produzido a partir da relação de conflito e de solidariedade
estabelecidos no contexto da combinação das dimensões ecológicas, sociais, políticas,
econômicas, demográficas e da organização do trabalho.

Diversidade ética e ordem territorial-ambiental

A seguir levantaremos algumas perspectivas em torno da questão ética e do conteúdo


que fundamenta o seu sentido. As diferentes visões, resgatadas num leque relativamente
vasto existente sobre a temática, traduzem sua importância crescente e chamam a atenção
para o retorno, hoje, da investigação sobre a ética como pressuposto do desenvolvimento.
Desenvolvimento que, numa dada vertente, pode ser econômico e político e que, em
outra, assume facetas do cultural, ambiental e comunitário. No fundo, a questão que se
evidencia é a ética conjugada enquanto projeto do desenvolvimento humano e material.
Por conseguinte, trazemos a visão sobre éticas sob diferentes prismas. O do
pensamento da complexidade, o subjetivo à luz da alteridade, o estético-armorial e o do
espírito capitalista. No quadro abaixo esboçamos de forma sintética as principais idéias-
força que caracterizam suas propostas, ethos e visão de comunidade e de natureza a
partir de cada proposta conceitual.
As diferentes propostas sugeridas nesse quadro suscitam, a partir do ethos – modo
de proceder individual ou coletivo –, questões que são reflexos da relação com os aspectos
da natureza e da própria interação na vida comunitária. Com isso, constatamos que quanto
maior é a diversidade ética maiores são as chances de apresentação de um rico repertório
que envolva a representação social e a reprodução material de valores que orientam as
ações sociais de desenvolvimento humano. Na verdade, a riqueza reside no permanente
processo de complementação e confronto entre as propostas conceituais, não permitindo
a hegemonia completa de uma sobre as demais e possibilitando, com isso, maior abrangência
da totalidade do ser.
Quando abordamos os campos éticos, destacamos a ética da complexidade como
um esforço de compreensão multidimensional de recusa da simplificação, exaltando, por
outro lado, a totalidade integrativa da existência humana. Enquanto a ética da alteridade
resgata na subjetividade a interpelação ética que acontece na epifania do rosto do outro,
a ética armorial vem carregada do trágico e da arte da vida e se traduz na fusão do real
com o imaginário através dos espaços estéticos do político e do religioso. O espírito da
ética capitalista se manifesta no espaço racional da disciplina e no estabelecimento de
rígidos parâmetros de controle dos aspectos subjetivos e objetivos. A seguir, analisamos
minuciosamente, um a um, os aspectos das respectivas éticas.
Assim, consideramos de grande importância a idéia sobre ética tratada por Morin.
Afirma ele: Parece que a exigência de ética que se manifesta um pouco em toda parte

214
Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

nesse momento está ligada a uma tomada de consciência do desgaste, e mesmo da


dissolução das éticas tradicionais em uma sociedade fortemente individualizada (2003:39).
Nesta visão é proposta o uso da auto-ética explicada pela fé acerca do valor do
conhecimento. Para além da ética da liberdade, é preciso a fé na fraternidade, no amor e
na comunidade. Nessa concepção, fraternidade, amor e comunidade são fontes de energia
para alimentar a fé da concretização da auto-ética.

Quadro 1 - CONCEITOS BÁSICOS DA ÉTICA: UMA PROPOSTA DE


SISTEMATIZAÇÃO
CONCEITO PROPOSTA ETHOS COMUNIDADE NATUREZA PRINCIPAIS AUTORES

Ética do - Religação da - Contradição - Apelo à - Integrada ao homem - Edgar Morin


Pensamento cultura humanista fraternidade;
Complexo e científica

- Cuidado - Incerteza e Fé - Destino comum - Idéia do todo


planetário

Ética da - Relação do Eu - Acolhimento - Responsabilidade - Dinâmica própria - A. Sidekum


Alteridade com o Outro com o Outro

- Respeito à - Engajamento - Caridade - Transcendental - M. Pelizzoli


diferença
- E. Lévinas

Ética Armorial - Sinergia entre - Contemplação - Imagem como - Fonte imaginária - A. Suassuna
Tradição e instrumento de
Evolução Social sociabilidade

- Estetização do - Valorização de - Reino de mistérios e - C. Leitão


social ritos e alegorias encantamentos
- Emoção
partilhada

Ética Capitalista - Racionalização - Devotamento - Apoio nos - Reserva de recursos - Max Weber
da vida social ao trabalho fundamentos materiais
segundo fins e afetivos, emotivos e
valores - Ênfase na tradicionais - Fragmentada/dominada
parcimônia,
esforço,
sacrifício e
retidão
Organizado por Cláudio Ubiratan, 2005.

Longe de ser simplesmente mais uma alternativa de abordagem da realidade, a fé


do paradigma da complexidade manifesta-se quando transcendemos a idéia de fraternidade,
invocando alguma coisa anterior, que é o espírito/mito da maternidade. Na verdade, esta
perspectiva nos desperta para o sentimento que temos em relação à mesma origem
maternal e a mesma identidade e amor pela mãe, não perdendo a consciência de

215
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

comunidade e do todo (Morin, 2003:41).


Morin chama atenção não só para a necessidade de revisão de todos os princípios
culturais e políticos estabelecidos, como propõe o enfrentamento do que denomina
problemas da Era Planetária. As contradições, as incertezas de toda ordem e a necessidade
de mergulho profundo no próprio Eu são aspectos que compõem a outra face da natureza
esquecida. O despertar para o respeito com a Terra-Mãe remete à descoberta da árvore
da vida. Mais que uma simples metáfora, trata-se da possibilidade concreta de entendimento
da dinâmica das interações humanas, tendo em vista a colaboração com a solidariedade
ecológica, ao invés da opção do auto-exílio.
Nesse sentido, o percurso sugerido para se chegar à auto-ética requer passar
antes pelo processo de contradição, incerteza e convicção do Eu. As contradições éticas
residem na tarefa de decidir quem são os próximos. O imperativo ético existe em nós, por
isso é preciso estar consciente da ética da responsabilidade como prolongamento e
consolidação, e não como algo virtual. O risco constitui o problema das contradições
éticas. As incertezas éticas estão relacionadas ao assumir a liberdade como risco de
incerteza quanto aos resultados de nossa ação. Por fim, o autor trabalha o micro-universo
do indivíduo, quando aponta para o processo do Eu em relação a si mesmo ou convicção
a respeito de si. Relaciona-se com as virtudes da sinceridade e autenticidade. Quando
examinamos a convicção, percebemos a mentira ou o engano a respeito de si mesmo.
Dessa maneira:

(...) O pensamento complexo tenta dar conta daquilo que os tipos de


pensamento mutilantes se desfaz, excluindo o que eu chamo de
simplificadores e por isso ele luta, não contra a incompletude, mas contra a
mutilação. Por exemplo, se tentamos pensar no fato de que somos seres ao
mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais,
é evidente que a complexidade é aquilo que tenta conceber a articulação, a
identidade e a diferença de todos esses aspectos, enquanto o pensamento
simplificante separa esses diferentes aspectos, ou unifica-os por uma redução
mutilante. Portanto, nesse sentido, é evidente que a ambição da complexidade
é prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas,
entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento. De fato, a
aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Ela
não quer dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas
respeitar suas diversas dimensões. (...) Ao aspirar à multidimensionalidade,
o pensamento complexo comporta em seu interior um principio de
incompletude e de incerteza (Morin, 1998:177).

O complexo é o que está tecido junto, é a busca da superação da mutilação do


saber pela sua incompletude, é o desenvolver de forma compartilhada o conhecimento
com competência para juntar as articulações despedaçadas. Portanto, o imperativo da
complexidade inclui o pensar e o agir de forma organizacional e de forma extremamente

216
Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

elaborada, de modo a atender as exigências da relação entre as partes e o todo.


Por sua vez, Emmanuel Lévinas (1997), aborda a vertente da alteridade ética
delineando nova postura pelo foco da antropologia filosófica. Nesse sentido, pensar uma
ética da alteridade pressupõe pensar a ética como filosofia primeira. Ou seja, a
inteligibilidade ética junto da ontologia e da metafísica do próprio ser, antecedendo a
cosmologia, a epistemologia do conhecimento verdadeiro e do domínio do mundo por ele,
e ainda antecedendo o interesse econômico produtivista que exalta o individualismo.
O nível ético aponta para o sentido da subjetividade como “para outrem”. Ou seja,
eu só tenho sentido se me encontro com outrem no nível da maturidade e responsabilidade.
Não vendo o humano somente como objeto e resultado das necessidades do EU, mas
como desejo do outro como OUTRO. O ser humano só é verdadeiramente humano se
realiza o potencial ético e de relação de alteridade que recebe enquanto criatura, vivendo
cada momento, enquanto um ser grandioso e capaz, mas ao mesmo tempo altamente
vulnerável, sensível, sujeito da afecção, ou seja, precisando demais de outrem e acolhendo
outrem para dar sentido à vida (Lévinas, 1997).
A compreensão da ética do outro lhe confere significação a partir da interpelação
do Ser. Compreendo o outro por meio de sua história, do seu meio, de seus hábitos e do
seu rosto. O rosto do outro convoca minha responsabilidade sobre o próximo.
Responsabilidade entendida não como privação do saber da compreensão e da captação,
mas como a excelência da proximidade ética na sua sociabilidade, no seu amor sem
concupiscência.
Nesse aspecto, quando há uma inversão humana do “em si e do para si”, do “cada
um por si”, em um Eu ético, ocorre uma re-volta radical que produz o encontro com o
rosto do Outro. É na relação pessoal do Eu com o Outro que o acontecimento ético, da
caridade e da misericórdia, da generosidade, e também do conflito, conduzem na direção
de uma mudança de postura do ser.

As categorias bíblicas, o órfão, o pobre, a viúva e o estrangeiro, utilizadas


na filosofia de Lévinas, recebem uma significação concreta e um destino na
filosofia da libertação. O outro é o oprimido, que se chama de índio, de
camponês sem terra, de marginalizado nas periferias dos grandes centros
urbanos, de desempregado, de pobre do povo, que clamam por justiça. A
revelação desse outro exige uma correspondente práxis libertadora. Esse
outro não poderá ser negado nem desconsiderado, uma vez que ele se
encontra justamente fora da dimensão do jogo do meu eu. O outro que vem
ao meu encontro, que clama por justiça em sua interpelação, rompe com o
sistema da opressão, com a ideologia ou ilusão, ele rompe com o egoísmo
do eu (Sidekum, 2002: 155).

A filosofia da libertação materializa o outro subjetivado, nomeando os sujeitos sociais


que lutam contra a opressão do individualismo e a favor da utopia concreta. Neste sentido,
a libertação é uma reação da dimensão comunitária do ser humano e expressão

217
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

histórica da solidariedade transformadora na busca da justiça.


Desse modo, a solidariedade e a comunidade são aspectos apresentados como
elementos fundamentais na experiência da responsabilidade com o outro. A partir da
interpelação do rosto do outro ocorre a transcendência do eu, que se manifesta na
exterioridade das relações, que desencadeia a busca da libertação ética em comunidade
numa relação social de solidariedade.

Numa espiritualidade que eu defino por esta responsabilidade por outrem –


para a qual o eu é eleito, ou condenado, chamado a responder pelo outro (e
talvez seja propriamente isto misericórdia e caridade) – é preciso doravante
que eu compare; que eu compare os incomparáveis, os únicos. Não há
retorno ao “para si de cada um”. Mas é preciso julgar os outros. No encontro
do rosto, não foi preciso julgar: o outro, o único não suporta julgamento,
ele passa diretamente à minha frente, estou com obrigações de fidelidade
para com ele. É preciso julgamento e justiça, logo que aparece o terceiro.
Em nome precisamente dos deveres absolutos para com o próximo, é
preciso um certo abandono da obrigação absoluta que ele postula. Eis o
problema de uma nova ordem para a qual se faz mister haver instituições e
uma política, todo o aparelho do Estado (Lévinas, 1997:270).

A virtude da caridade é ressaltada como instrumento de justiça social no amor que


move a vontade individual de busca efetiva do bem de outrem. A perspectiva pietista de
transcendência na responsabilidade pelo outro apresenta limitações quando na relação de
fidelidade e de dever do Eu para com o Outro, aparece o terceiro. O problema consiste
na necessidade de julgamento e de justiça por parte do Eu, e de abandono da obrigação
absoluta do outro. Desse modo, na relação de comunidade do eu com o outro e o terceiro
é preciso a mediação institucional do Estado na regulação das obrigações e dos deveres.
A ética da alteridade recupera o lado humano da singularidade, da solidariedade e
da pluralidade que habita o Eu e que é, na verdade, reflexo da relação na diferença com
o outro (Pelizzoli, 2002). O outro que é descoberto como uma interação humana e não
como um obstáculo a ser ultrapassado. Esta postura compõe-se como uma crítica
conjugada ao questionamento das conseqüências éticas das diversas teorias influenciadas
pelo pensamento do Ocidente, consubstanciada a partir de uma crítica ético-epistemológica.
De fato, Lévinas elabora uma crítica ao imperativo ético, que está ligado no fio do
tempo ao caminho da tradição aristotélica valorizadora da ética da felicidade, da alegria e
da virtude como o fim da vida política. Outro aspecto alvo da crítica seria o da tradição
kantiana da ética do dever, entendendo a virtude como conformidade do querer com o
dever. Nesta última, os impasses são mais sublinhados, enquanto que na primeira enfatiza-
se a concepção de prudência como virtude da reta decisão humana.
Desse modo:

A ética de Aristóteles é, sem dúvida, social, e a sua política é ética. Na ética,

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Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

não se esquece que o homem individual é essencialmente um membro da


sociedade. Nem, na Política, que a virtude do Estado está conforme a virtude
dos seus cidadãos (Ross, 1987:193).

A epistemologia da racionalidade do ser de Aristóteles, da busca da felicidade e do


bem-estar da existência humana possibilita perceber a relação entre seus princípios éticos
e a noção de virtude como conduta. A ética se encontra imersa nas circunstâncias da
conduta e no modo como ela é concebida a partir do exercício do caráter em sociedade.
Na ética capitalista, Weber (2003) aborda a influência de idéias religiosas na
formação do espírito econômico, ou do ethos de um sistema econômico. Na verdade, se
trata da ligação da economia capitalista com a ética racional moderna disseminada a
partir de valores e da disciplina religiosa tendo como fim a questão do trabalho. Nesse
aspecto, as atitudes morais de orientação de vida do empreendedor capitalista estão
embasadas nas virtudes da honestidade, nas relações sociais, na pontualidade e no
devotamento ao trabalho árduo e parcimônia como forma de segurança no
empreendimento.

(...) trata-se do racionalismo específico e peculiar da cultura ocidental.


Ora, por essa conclusão, pode-se entender coisas muito diferentes. Há, por
exemplo, as racionalizações da contemplação mística, ou seja, em um
contexto que, considerado de outras perspectivas, é especificamente
irracional, da mesma forma que há racionalizações da vida econômica, da
técnica, da pesquisa científica, do treinamento militar, do direito e da
administração. Cada um desses campos pode ser racionalizado segundo
fins e valores muito diferentes, e o que de um ponto de vista parece racional,
poderá ser irracional de um outro. As racionalizações dos mais variados
aspectos têm existido nos mais diversos setores da vida e em todas as áreas
culturais. Para caracterizar sua diferença do ponto de vista da história da
cultura, deve-se analisar primeiro qual setor é racionalizado e em que âmbito
(Weber, 2003:13).

Neste aspecto, a racionalização da contemplação mística exerceu importante papel


nos primórdios da organização material do sistema produtivo dominante, pois trouxe à
tona seus pontos de vulnerabilidade e superação. De um lado, o pietismo enfatizava a
forte intensidade emocional do desejo de separar o eleito do mundo para viver um tipo de
vida comunitária monástica de caráter semicomunista (Weber, 2003). De outro, o elemento
racional e ascético do pietismo superou o emocional e o trabalho passou a ser exercido
como vocação dentro de um campo de organização técnica e econômica.
A ética do capitalismo moderno, gestado inicialmente em oposição ao mundo
tradicional do camponês, consiste no uso da força a partir das estruturas racionais do
direito e da administração. Neste ambiente onde se cultiva o cálculo e a contabilidade, a
falta de racionalidade se apresenta como um grave obstáculo no desenvolvimento dos
ideais éticos da materialidade e da produção capitalista (Weber, 2003).

219
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

Assim, a responsabilidade dentro desse ponto de vista é totalmente diferente das


perspectivas éticas apresentadas anteriormente. O homem responsável não é
simplesmente aquele que considera o universo do Outro ou preocupa-se em cuidar da
terra como espaço comunitário de todos. Pelo contrário, o empreendedor responsável é
aquele que observa a norma competitiva aplicada ao trabalho. Ou seja, a racionalização
dos campos da vida ocorre segundo fins e valores estabelecidos a partir dos interesses
econômicos. Seu trabalho se coloca a serviço de uma organização racional para o
abastecimento da humanidade em bens materiais nas mais diversas áreas culturais.

O racionalismo econômico, embora dependa parcialmente da técnica e do


direito racional, é determinado pela capacidade e pela disposição dos homens
em adotar certos tipos de conduta racional. Onde esses tipos foram
obstruídos por obstáculos espirituais, o desenvolvimento de uma conduta
econômica também tem encontrado uma séria resistência interna. As forças
mágicas e religiosas e os ideais éticos de dever decorrentes sempre estiveram
no passado entre os mais importantes elementos formadores da conduta
(Weber, 2003:14).

Segundo o autor, no mundo moderno, a ética do trabalho se desligou das paixões


religiosas que lhe deram origem e hoje faz parte do capitalismo racional baseado na
ciência. A valorização do próprio trabalho mais que seus resultados abalou fortemente a
antiga doutrina aristotélico-cristã de que uma pessoa só deveria obter riquezas suficientes
para viver e fazer o bem. Com isso, a teoria econômica burguesa associou o
empreendimento ao conceito de risco, ou seja, a possibilidade da ruína é a justificação
moral do lucro e os riscos constituem o caminho para o sucesso ou fracasso da estrutura
econômica.
Neste aspecto, as éticas da complexidade, da alteridade e da racionalidade
capitalista quando correlacionadas a partir da perspectiva da natureza e da comunidade
apresentam contradições e complementaridades de fundamental importância na elucidação
da diferenciação interna do trabalho na ordem territorial.
Neste sentido, enfatizamos o sujeito armorial pelo viés da comunidade, tendo como
fonte de referência o lúdico e o trágico no ambiente sertanejo. A obra intitulada “Por um
ética da estética” (Leitão,1997) apresenta uma reflexão acerca da chamada ética armorial
nordestina e sua importância na constituição de laços sociais e formação da comunidade,
tendo como área de estudo o município de Jardim no Cariri Cearense.

A nós interessaria estabelecer um pensamento crítico sobre a ética, distante


de tentações moralizadoras ao mesmo tempo que atento à relatividade e ao
pluralismo das relações sociais no final deste século. Num mundo que se
“tribaliza”, que se fragmenta em pequenas comunidades renegando a utopia
das nações, a proliferação ética não passa de uma expressão amoral de
resistência do homem a uma ratio que não mais lhe convém (Leitão,
1997:44).

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Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

Inegavelmente, a obra sublinha a importância real dos valores morais por meio das
representações sociais, colocando em questão a lógica moralista que estamos acostumados
a aplicar e impor aos fatos sociais. A partir do denominado mundo imaginal, se enfatiza
um modo contemplativo da ambiência da arte. A emoção partilhada do sentimento coletivo
é o ethos social que se estabelece entre a ética e a estética da vida sertaneja.

(...) Nestes “pequenos mundos”, onde as éticas libertas de seus pudores


morais adequam-se à diversidade do ideal comunitário, o mundo do sertão
nos interessa particularmente. De um lado, ele confirma o renascimento do
ideal comunitário após o declínio do ideário moderno simbolizado pelo mito
do Estado-Nação; de outro, ele exprime a “ética imagética” de seus habitantes,
cuja socialidade se fundamenta a partir de imagens religiosas e políticas. A
“armorialidade” da ética sertaneja se situa no modo como o homem do
sertão trata comunitária, trágica e ludicamente os espaços do político e do
religioso em sua vida. A ética armorial do sertanejo seria, portanto, a sua
capacidade de fusionar o real e o imaginário, através desses espaços,
transformando-os em bons “álibis” para festejar a efemeridade de sua vida
e de seu destino. Nesta perspectiva, a vida se torna uma forma de arte
quando exprime de forma ritual a tragédia da existência humana, quando
almeja, através do fenômeno da festa, dominar, ainda que momentaneamente,
o tempo e o espaço (Leitão, 1997: 170).

De acordo com esse olhar, os habitantes do sertão ritualizam cotidianamente os


atos mais banais e fazem da vida uma forma de arte quando vivenciam, através de
imagens, suas diversas origens, provocando a fusão dos diversos mundos, diversos reinos
e a junção do bem e do mal. O ideal de nação se subdivide em pequenos ideais que dão
origem a pequenos grupos cujas éticas estão desvinculadas de uma moral absoluta. A
relatividade que sugere a ética armorial demonstra a pluralidade de costumes, a
miscigenação de raças, a profusão de sangues, culturas e imagens.
A ética moderna que por todos os meios suprimiu a diversidade da vida social na
intenção de preservar sua coerência, reduziu as várias expressões do social simplesmente
a um único modelo. Inúmeras éticas a uma só ética. Ora, o saber ético acabará em
choque com os próprios valores no momento em que desdenhar a vida ética, e, embora
competente na distinção entre moral e direito, o pensamento sistemático moderno fracassará
face à ética, sempre confundida com princípios de ordem moral (Idem, 1997).
A ética pressupõe a convivência pacífica entre os diferentes e dos diferentes com
o meio. Quando o convívio ocorre considerando as contradições e os conflitos inerentes
às diferentes maneiras de relacionamento humano e às diferentes formas de interações
com o meio, a convivência ultrapassa o signo da intolerância apontando na direção dos
laços de coesão e solidariedade. Os espaços do sagrado e do profano se fundem no
mesmo território, não como palco de conflito, mas como forma de resistência.
Desse modo, a unidade regional decorrente desse processo de desenvolvimento
não deve ser exclusivamente mensurada pela manipulação tendenciosa de números,

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GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

privilegiando-se a vertente economicista das relações sócio-espaciais. A ênfase deve ser


dada essencialmente ao desenvolvimento humano e comunitário considerando o rosto do
outro e os pequenos agrupamentos sociais dispersos territorialmente. O desafio consiste
exatamente na conjugação da diversidade cultural com a unidade político-administrativa.
Na realidade, a ética é considerada como um conjunto de valores que disciplinam
o território usado por indivíduos que convivem numa sociedade ditada pelas normas do
produtivismo e do consumo. Tal dogma está em evidência e começa a ser questionado na
sua capacidade de garantia e suporte de bem estar social e de sustentabilidade econômica
universais.
O ethos (Weber, 2003; Morin, 1998; Sidekum, 2002; Leitão, 1997) entendido aqui
como modo de proceder, hábitos, costumes e funcionamento das instituições, referindo-
se à forma de morada e à organização do povo caririense, passa a ser reformulado em
sua essência. A territorialidade do homem caririense, junto à elaboração de uma nova
ordem ética, ocupa o centro dos debates.
Por outro lado, a temática da ética e da moral gradativamente preenche um vazio
existente na ciência geográfica. É possível encontrar algumas publicações nas últimas
décadas, sobretudo na Europa Ocidental e EUA (ver Harvey, 1980; Tuan, 1989; Smith,
2000). Assuntos como justiça social territorial, aspectos morais da interação humana com
a natureza e do desenvolvimento, diferenças culturais em contextos específicos são parte
de um corpo que adquire forma.
Smith (2000) chama atenção para o envolvimento contemporâneo dos geógrafos
com questões normativas. Ele o associa com a crise moral que vem cercando as
sociedades carregadas de abundante desigualdade e despreocupadas em relação aos
excluídos dos benefícios do desenvolvimento capitalista. Identifica discursos éticos na
geografia apontando para a necessidade de uma definição aperfeiçoada nos campos de
investigação da nova face interdisciplinar com a filosofia. Algumas indagações – qual o
lugar da ética na geografia? E qual o lugar da geografia na ética? - ajudam na identificação
de tensões entre os pares particularidade/universalidade, empírico /teórico e geográfico/
abstrato.
Buscando ultrapassar esse conjunto de idéias, a observação do comportamento
moral em contextos particulares pode contribuir para o desenvolvimento ou refinamento
da ética como teoria moral. Nessa circunstância, novas questões vêm à tela sobre o
significado moral da proximidade entre comunidade e localidade, e propõem, a partir do
diálogo com a filosofia, uma revisão das leituras morais de paisagem e lugar – conceitos
chaves na geografia.
Torna-se urgente apontar os elementos mais significantes de uma outra possível
ordem ética do território, pensada a partir do modo de vida comunitário. Já é possível
perceber uma ética que protesta mudanças nos rumos do desenvolvimento capitalista e
exige uma revisão do sentido da norma e da convivência coletiva que contemple a lógica
organizativa dos pequenos ou dos grupos sociais que vivenciam diversificadas experiências

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Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

de comunidade.
A ética comunitária dos pequenos pode ser vista sob diferenciados ângulos, nosso
olhar privilegia, entretanto, a dimensão política que inspira a aproximação entre os sujeitos
sociais e a natureza a partir da divisão dos bens materiais e do poder de dominação.
Sobre o ethos e modo de produção da ética dos pequenos ver os seguintes trabalhos:
Barros & Peregrino (1996); Leitão (1997); Woortmann & Woortmann (1997).

Por uma Ética do Desenvolvimento Solidário.

Dessa forma, ética e região, a nosso ver, são abstrações que assumem concretude
a partir da relação dos elementos que compõem a sociedade – natureza, como, por exemplo,
os aspectos ecológicos, sócio-econômicos, sócio-culturais e demográficos. Assim, nossa
observação recai sobre o Cariri em sua totalidade territorial, embora nossa atenção esteja
principalmente voltada para os núcleos mais populosos como Crato, Juazeiro e Barbalha
que, segundo o IBGE (2000), concentram juntas 363.081 habitantes.
No tempo presente, o Cariri, através da articulação de suas instituições do Estado
e da sociedade civil, passa por uma dinâmica e salutar efervescência nos movimentos
sociais reivindicatórios, no rearranjo da estrutura religiosa hegemônica e na proposta de
novo modo de interação e aproveitamento dos recursos naturais. Tais acontecimentos
ocorrem dentro de um contexto macro estrutural, de acordos coletivos e revisão histórica
de ações políticas, que desempenharam papel fulcral no ordenamento sócio-territorial do
passado recente. Nessa ótica de reatualização das ações que visam melhorias na qualidade
de vida dos cidadãos e desenvolvimento do Sul Cearense é fundamental não só o uso do
termo, como a vivência de determinado(s) tipo(s) de ética(s) que sejam adequadas à
região.
Nesse sentido, o caminho de aproximação entre ética e etnia pode esclarecer
novas pistas e preciosos significados no entendimento da construção da região e na ruptura
de seu secular atraso. É preciso considerar as subjetivações culturais das margens do
espaço regional expressas nas bandas cabaçais, folia de reis, manero pau, artesãos, romeiros
e piquizeiros, enquanto manifestação de grupo social portador de um projeto de maior
abrangência e de mudança social. No Cariri, não existe apenas uma ordem econômica
interna. Há uma diferenciação interna que também é cultural devido às várias formas de
uso e de apropriação do território.
Apesar de pontuais, são perceptíveis as mobilizações políticas nas ruas, experiências
de êxito nas ações afirmativas de inúmeras associações e organizações não governamentais
(ONG’s), sem falar nos indicativos visíveis de mudanças na máquina administrativa e na
postura das instituições religiosas e estatais. Porém, esse projeto de convivência e
desenvolvimento na região somente será viável à medida que ocorrer confluência e
negociação das propostas éticas dos distintos grupos sociais envolvidos.
Quando trazemos para o primeiro plano as dimensões ambiental, religiosa e política

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GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

da ética, estamos propondo um outro olhar para a região do Cariri Cearense. As populações
tradicionais que habitam e sobrevivem nos meandros dos vales e serras do Araripe não
podem continuar figurando em segundo plano, pois são eles que detêm o saber herdado
dos nativos que coabitavam anteriormente de forma menos impactante com a natureza.
Esse saber, considerado durante muito tempo como portador de arcaísmos e retrocessos,
é hoje re-valorizado em razão de sua possibilidade de acrescentar novas questões à
reflexão e práticas sobre os bloqueios que a vida moderna impôs. Podemos denominar
este saber vivenciado em comunidade de ética da diferenciação interna do trabalho.
Nesse aspecto, a comunidade é uma relação social quando a atitude na ação social
inspira-se no sentimento subjetivo afetivo ou tradicional dos partícipes da constituição de
um todo. Por outro lado, a sociedade consiste na busca por uma compensação de interesses
por motivos racionais de fins ou valores e uma união de interesses com idêntica motivação
(Weber, 1973:140). Dessa forma, a diferença tem como base a atribuição de valores
ideológicos para a comunidade e a sociedade. Enquanto a primeira se apresenta carregada
de subjetividade e domínio da tradição, a segunda é marcada pela idéia do moderno e de
objetividade.
O conceito amplo de comunidade denota, em nosso caso, enquanto relação e
estrutura de socialização entre as mesmas pessoas, uma ordem territorial solidária que
prioriza os valores e fundamentos de afetividade, emoção, tradição e justiça social.

Comunidade só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento,


a ação está reciprocamente referida – não bastando a ação de todos e de
cada um deles frente à mesma circunstância – e na medida em que esta
referência traduz o sentimento de formar um todo (Weber, 1973:142).

Desse modo, o aparecimento de contrastes conscientes em relação a outros grupos


ou comunidades pode criar o conteúdo de sentido das relações sociais. No sentimento
comunitário, aspectos tais como os costumes, a lingüística ou até mesmo a conduta
fundamentam a consciência social acerca da existência da comunidade e de seu
reconhecimento. Os laços de solidariedade social referenciados nas ações de reciprocidade
onde ninguém sai em desvantagem e toda a comunidade se plenifica com o ganho.
A segunda idéia fundamental no esboço de outra ordem territorial está relacionada
com a vivência complexa da comunidade de destino. Há uma real comunidade de origem
dos seres humanos próximos de suas raízes, próxima de um destino comum que ultrapassa
o limite de nação e pátria chegando ao que concerne ao planeta. Nesse aspecto, a liberdade
e a solidariedade são os dois lados da mesma moeda que funcionam como amálgama da
complexificação da sociedade. A liberdade existe e significa que os indivíduos são livres
para desenvolver suas aptidões e criatividades. A solidariedade é o sentimento de
fraternidade, de pertencer a alguma coisa que une e dá coesão social.

A solidariedade – o fato de se unir – pressupõe a própria ética mesma da

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Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

complexidade humana. E, ao inverso, a complexidade humana requer a


ética da solidariedade. É a solidariedade que permite que a liberdade não
seja criminosa, que cada um não se entregue livremente à agressão, à
dominação do outro (Pena-Vega et al, 2003:50).

O processo de complexidade absoluta significa em certo sentido a desintegração


da sociedade, visto que não haveria nenhuma obrigação ou vínculo social inspirado na
autoridade e na proibição. No aspecto da comunidade de destino terrestre todos os
humanos partilham o destino da perdição, ou seja, todos os humanos estão ameaçados
pela morte nuclear e a morte ecológica, os humanos vivem a situação agônica da transição
do milênio.
A exigência ética da tomada de consciência da perdição da comunidade de destino
é o salto necessário de acolhida ao rosto do outro, numa ordem que se deseje mais
humana por meio das ações de revisão dos valores éticos vigentes. Este chamamento de
minha responsabilidade pelo rosto que me convoca e reclama mais humanidade aponta
na direção do território, da manifestação do concreto como ideal possível de realização.
Quando identificamos a emergência de outra ordem territorial, não estamos tratando
de dar ênfase ou revalorização ao modelo urbano-industrial ou, por outro lado, de retornar
aos princípios de uma ordem agrário-camponesa. A questão ética avança na contribuição
quando dá visibilidade à organização social dos “de baixo”. E quem são os “de baixo?”
Quem são “os pequenos”? São aqueles que se organizam em ambiente de conflito e de
tensão, que se solidarizam em torno da criatividade e inventividade no enfrentamento das
incertezas e dos riscos como instrumento de mudança.
Portanto, a contribuição ética dos artesãos, dos extrativistas e das comunidades
tradicionais do Cariri não deve ser desconsiderada diante da construção de um possível
caminho de superação da ética capitalista vigente. Na criação dos espaços de esperanças,
eles detêm um modo de vida singular, diverso e não linear, não programado e não
completamente preso ao racional quando comparado com o mundo capitalista moderno.
Nesse sentido, invocamos Leff et al. (2002), que afirma ser complexo denominar,
através de uma forma geral, as comunidades fundadas em múltiplas matrizes de
racionalidade. Dizer que são não ocidentais significa falar do que elas não são, e não
delas próprias. Chamar de tradicionais implica reconhecer os riscos da idéia de oposição
e aceitar uma distinção que só tem sentido para as sociedades modernas. As significações
induzem essas classificações: hierarquizações, discriminações e desqualificações.
Diegues (1996) ressalta a existência de uma ambigüidade quanto ao significado
dos termos populações nativas, tribais, indígenas e tradicionais. Por trás das classificações
simplificadoras reside um continuum entre uma e outra categoria, cujo equilíbrio entre as
populações humanas e o ambiente não é mantido por decisões conscientes, mas por um
conjunto complexo de padrões de comportamento, fortemente marcados por valores éticos,
religiosos e por pressão social.

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GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

Partilhamos da visão de cultura tradicional para o Cariri desse autor que entende
como padrões de comportamento transmitidos socialmente os modelos mentais usados
para perceber, relatar e interpretar o mundo com seus símbolos e significados, além de
seus produtos materiais. Desse modo, realiza uma caracterização da população tradicional
a partir de um conjunto de critérios fundamentais descritos abaixo:
a) dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os
recursos naturais a partir dos quais se constrói um modo de vida;
b) conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete
na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse
conhecimento é transferido de geração em geração por via oral;
c) noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica
e socialmente;
d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns
membros individuais possam se ter deslocado para os centros urbanos e voltado
para a terra de seus antepassados;
e) importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de
mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica uma relação
com o mercado;
f) reduzida acumulação de capital;
g) importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações
de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e
culturais;
h) importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e
às atividades extrativistas;
i) tecnologia utilizada relativamente simples, de impacto limitado sobre
meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo
o artesanal, cujo produtor (e sua família) domina o processo de trabalho até o
produto final;
j) fraco poder político que, em geral, pertence aos grupos de poder dos
centros urbanos;
k) auto-identificação ou identificação pelos outros de pertencer a uma cultura
distinta das outras (Diegues, 1996:88).
Complementando essa lógica de organização social da produção da população
tradicional, Altieri (2000) salienta que o conhecimento do agricultor sobre os ecossistemas
geralmente resulta em estratégias produtivas multidimensionais de uso da terra. Considera
que, através da agricultura tradicional, informações importantes podem ser utilizadas no
desenvolvimento de estratégias agrícolas apropriadas, adequadas às necessidades,
preferências e base de recursos de grupos específicos de agricultores e de
agroecossistemas regionais.

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Terra Livre - n. 29 (2): 207-230, 2007

Assim, preservam e repassam informações de geração a geração por meios orais


ou empíricos. Preservam a biodiversidade não somente nas áreas cultivadas, mas também
naquelas sem cultivos. Mantêm áreas cobertas por florestas e pastagens no interior ou
em áreas adjacentes aos seus campos de cultivos, suprindo-se assim de produtos úteis,
como alimentos, materiais de construção, medicamentos, fertilizantes orgânicos,
combustíveis, artigos religiosos e alimentos para o gado e para o consumo humano (Altieri,
2000).
É importante ressaltar que não há consenso firmado acerca do termo “população
tradicional”, o que torna o conceito aberto a novos acréscimos de critérios, tendo em
vista, a transversalidade da questão. Por outro lado, a nova categoria está sendo ocupada
pelos sujeitos sociais, dispostos a lhe dotar de sentido político por meio de pactos e práticas
de troca de benefícios, como o direito à territorialidade, aspecto vital para a conservação
do seu modo de vida (Xavier, 2004). Portanto, o desafio que se coloca é maior que a
polarização entre as racionalidades opostas, moderno-tradicionais. É preciso trazer a
questão à superfície assumindo todos os riscos, evidenciando os princípios éticos do padrão
produtivo do que entendemos aqui por população tradicional.

Considerações Finais

A solidariedade não pode ser entendida de modo isolado. Nesse contexto, é essencial
trazer juntamente com os laços solidários dos indivíduos a questão do conflito. Não há, na
comunidade, a eliminação da categoria conflito, pois o conflito se manifesta no momento
de ver o outro, de desenvolver algum tipo de relação social com o outro. O conflito se faz
presente quando tenho que admitir que o outro existe e não é igual a mim. Então trabalhamos
com níveis de solidariedade e níveis de conflitos para entender a ética na comunidade. O
que para nós é relevante é a idéia do conflito como algo que não é estanque e não deve
ser separado da solidariedade, na verdade, se complementam. A própria comunidade tem
uma necessidade de conflito, de se organizar contra/com algo para permanecer existindo.
Quando há a organização da comunidade, há a mobilização na reivindicação contra alguma
coisa que lhe é antagônica, e com alguma coisa que lhe é próxima, mas não comunga dos
mesmos valores. A solidariedade por si só é insuficiente, a ética da comunidade tem seus
conflitos.
Sem embargo, é no espaço social que atravessam as relações da vida contendo as
relações dos espaços vivido, concebido e percebido, e que identificamos as práticas espaciais
das formas de apropriação das imagens e dos símbolos do espaço físico. Nesse aspecto,
a unidade regional é objetivada no critério da diversidade e da noção de contradição onde
a alteridade dos sujeitos e a interdependência das relações sociais, políticas, econômicas
e ecológicas são amplamente consideradas. O espaço regional pressupõe vontade política
e uma intervenção intencional a partir do instrumental técnico disponível para mudar a
materialidade ética dentro de uma lógica mediadora no âmbito da negociação. Materialidade

227
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

ética que aponta para a adequação do espaço geográfico aos moldes exigidos pela
mobilização comunitária e pela solidariedade de seus habitantes.

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229
GONÇALVES, C. U. VERTENTES ÉTICAS...

Recebido para publicação dia 12 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 10 de fevereiro de 2008

230
O ‘LUGAR’ NÃO É Resumo: Ao pensarmos os saberes e fazeres presentes no
MAIS O MESMO: cotidiano escolar a partir da compreensão do currículo não apenas
ARTICULAÇÃO DOS como uma lista de conteúdos a serem ministrados, mas como
criação cotidiana daqueles que “fazem as aulas”, nos deparamos
MÚLTIPLOSLOS
com uma prática que envolve tanto os saberes e processos
ESPAÇOS-TEMPOS interativos do trabalho pedagógico quanto os múltiplos
COTIDIANOS NAS conhecimentos e práticas desenvolvidos fora das atividades
PRÁTICAS ESCOLARES escolares, nos espaços-tempos da vida cotidiana que, em
permanente articulação a espaços-tempos mais amplos, permeiam
todo o nosso estar no mundo e que nos constituem. Nesta
perspectiva, foram investigados neste trabalho os sentidos
particulares atribuídos ao “lugar” nos currículos praticados por
professores do sistema público de ensino básico.
Palavras-chave: Geografia Escolar, lugar, espaços-tempos
cotidianos, currículo praticado.
AMANDA REGINA
GONÇALVES Abstract: When thinking knowledge and practices presents in
the school’s everyday from the understanding of curriculum not
Doutora em Geografia, only like a list of contents to be given, but like daily creation by
Professora Substituta do Curso who “make the classes”, to appear us with a practice that involves
de Geografia, Departamento de such the knowledge and interactive processes of the pedagogical
Educação, UNESP, Campus de work, whatever to the multiple knowledge and practices developed
Rio Claro-SP. out of the school activities, that is to say, in the spaces-times of
the everyday life that - in permanent articulation at wider spaces-
E-mail: amandarg@rc.unesp.br times ampler - they permeate all our being in the world and that
constitutes us. In this perspective, we researched the attributed
particular meaning to the “place” in the curriculum practiced by
teachers from Brazilian public system of basic education were
investigated in this work.
Key-words: Scholl Geography, place, everyday spaces-times,
ROSÂNGELA DOIN DE curriculum practiced.
ALMEIDA
Resumen: Al pensar los saberes y haceres presentes en el
cotidiano escolar desde la comprensión del currículo no sólo
Professora Adjunta (voluntária) como una lista de contenidos a ser suministrados, sino como
do Programa de Pós-Graduação creación cotidiana de aquellos que “hacen las clases”, nos
em Geografia, IGCE/ UNESP, deparamos con una práctica que involucra tanto los saberes y
Campus de Rio Claro-SP. procesos interactivos del trabajo pedagógico, cuanto a los
múltiples conocimientos y prácticas desarrollados fuera de las
E-mail: rdoin@rc.unesp.br actividades escolares, es decir, en los espacios-tiempos de la
vida cotidiana que – en permanente articulación a espacios-
tiempos más amplios – permean todo nuestro estar en el mundo
y que nos constituyen. En esta perspectiva, fueran investigados
en esto trabajo los sentidos particulares atribuidos al “lugar” en
los currículos practicados por profesores del sistema público
brasileño de enseñanza básica.
Palabras-claves: Geografía Escolar, lugar, espacios-tiempos
cotidianos, currículo practicado.

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 231-246 Ago-Dez/2007


231
GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O
MESMO...

Introdução

As atuais categorias curriculares – como território, região, paisagem e lugar – são


constituídas em distintos contextos da institucionalização da Geografia Escolar, nas quais
foram e são gestadas diversas concepções que professores, alunos atribuem à geografia
e à pertinência do conhecimento de seus temas. Conotações, ampliações, estrangulamentos
dados aos sistemas de idéias construídos sobre estas categorias têm implicado em
“finalidades plurais na escola, pois cada discurso do pensamento geográfico traz inscrições
conceituais diferenciadas” (Tonini, 2003, p. 13), a maioria prescrita nos textos didáticos e
nos textos oficiais; resultando formações discursivas e práticas distintas.
No entanto, mesmo relevando a importância dos “saberes a serem ensinados” na
prática cotidiana docente, a centralidade deste texto está situada menos na constituição
desses saberes e mais nos “saberes ensinados”, ou ainda no que André Chervel (1990)
chama de “cultura escolar”, por serem estes verdadeiros constituintes do currículo
praticado da geografia escolar, o que nos animou a investigar o “ensino do lugar” a partir
de um estudo da sua representação em textos oficiais e textos didáticos, bem como em
fazer um mergulho em práticas cotidianas de ensino.
Desta forma, vamos tratar os currículos praticados sobre o “lugar” não como o
ensino de um conceito transposto da Geografia, mas como saberes e práticas sobre
elementos dos espaços cotidianos dos alunos e professores alinhavados aos de outros
espaços, percebidos através do que evidenciamos no tecido das aulas como efeitos zoom.
Isto por que é a partir daí que podemos compreender o conhecimento escolar nos seus
aspectos metodológicos de construção e insistirmos numa direção de currículo e de
formação docente que tenha como referência o trabalho de professores.
A investigação da importância do “lugar” nos currículos praticados se deu junto
a professores das séries iniciais do Ensino Fundamental da rede pública municipal de Rio
Claro (SP), envolvidos num projeto que buscou integrar universidade e escola por meio
de uma pesquisa colaborativa1 , reunindo, durante dois anos, professores da universidade,
professores da rede de ensino básico municipal e graduandos em Geografia, preocupados
com o ensino da localidade e o uso do Atlas Municipal Escolar de Rio Claro.

O “lugar curricular”: o conceito nos textos oficiais e didáticos

A partir da década de 1990, depois de um período de elaboração de políticas


curriculares, se ensejou a proposição dos Parâmetros Curriculares Nacional (PCN),

1
A pesquisa intitulada “Integrando Universidade e Escola por meio de uma Pesquisa em Colaboração: Atlas
Municipais Escolares - Fase II” foi desenvolvida ao longo de dois anos na UNESP (Campus Rio Claro),
financiada pela FAPESP (modalidade Ensino Público) e concluída em julho de 2003. Em pesquisa anterior,
foram produzidos Atlas Municipais Escolares (para os municípios paulistas de Rio Claro, Limeira e Ipeúna),
também por meio de uma pesquisa em colaboração (financiamento FAPESP, 1997-1999); ambas coordenadas
por Rosângela Doin de Almeida. Os Atlas, hoje publicados pelas respectivas prefeituras, destinam-se a
alunos de 3a a 6a séries do Ensino Fundamental.

232
Terra Livre - n. 29 (2): 231-246, 2007

“significando uma assunção federal da política curricular brasileira” (Sposito, 1999). Assim,
o Brasil conhece uma reforma educacional – profundamente embasada na Reforma
Curricular Construtivista Espanhola de 1987 – advinda com a apresentação dos PCN
como “baliza” curricular para o Ensino Fundamental e Médio2 .
Alguns aportes de concepções humanísticas aparecem sob formas restritas e
enunciativas nos PCN, prevendo que os conteúdos a serem abordados em sala de aula
devem permitir discussões a respeito das “dimensões subjetivas do espaço geográfico e
as representações simbólicas que os alunos fazem dele” (Brasil, 1998, p. 61).
No entanto, embora muitos autores concordem com o fato dos PCN terem avançado
ao acrescentar a subjetividade aliada à objetividade no estudo da Geografia, os conteúdos
que dizem respeito ao ensino do lugar, um dos mais próximos desta tal subjetividade, não
se consolidam claramente nos parâmetros.

Na tentativa de aliar a teoria à vivência “concreta” dos professores, alguns


exemplos poderiam ser inseridos nos PCNs sobre espaços concretos ou
sobre problemas vivenciados pelas sociedades no Brasil e no Mundo
(Pontuschka, 1999, p. 17).

Os textos dos PCN privilegiam acentuadamente o conceito de paisagem, somente


a partir do qual o lugar aparece, ainda com importância secundária; o que pode ser
evidenciado quando apresentam esses dois conceitos da seguinte forma:

O estudo de uma totalidade, isto é, da paisagem como síntese de múltiplos


espaços e tempos deve considerar o espaço topológico – o espaço vivido e
percebido – e o espaço produzido economicamente como algumas das
noções de espaço dentre as tantas que povoam o discurso da Geografia
(Brasil, 1997, p. 110).

Observa-se ainda que, embora coloquem como importante considerar as


percepções, vivências e memórias dos alunos, esta consideração aparece não para que
se pense nas contradições, diferenças, questões étnicas, de classe, de raça ou de gênero,
mas limita-se a uma “constituição do saber geográfico”.
Também o lugar aparece como uma etapa cognitiva a ser alcançada e não como
intrínseco a qualquer sujeito. Isso ocorre pela visão cognitivista que fundamenta os PCN,
que salienta as relações entre as etapas de escolaridade e o nível de desenvolvimento
cognitivo dos alunos e os processos de ensino-aprendizagem dos conceitos fundamentais
da Ciência Geográfica. Desse modo, a escola ensina um sistema, ou melhor, “uma
combinação de conceitos mais ou menos encadeados entre si” (Chervel, 1990, p. 181).
Entre as noções para “aprender e ensinar geografia no Ensino Fundamental” consta
2
Estes documentos foram elaborados pelo Ministério da Educação e do Desporto (MEC), sob consultoria de
um grupo de pesquisadores espanhóis liderados por César Coll, que se fundamentam na teoria construtivista
de educação.

233
GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O
MESMO...

a seguinte enunciação: “a paisagem local, o espaço vivido pelos alunos deve ser o objeto
de estudo ao longo dos dois primeiros ciclos” (Brasil, 1997, p. 116), explorada de uma
maneira que vivifica a idéia de uma Geografia ainda aprisionada no localismo geográfico:
“inicia-se, assim, um processo de compreensão mais ampla das noções de posição, sítio,
fronteira e extensão, que caracterizam a paisagem local e as paisagens de forma geral”
(Brasil, 1997, p. 127).
Quando trata do lugar como espaço de experiência cotidiana vivida, os objetivos
de ensino não encontram muito sentido, a não ser nos “critérios de avaliação” que sancionam
a promoção dos alunos pelo currículo seqüenciado ao longo da escolaridade; por exemplo,
ao apresentar o tema “O lugar e a paisagem” como um bloco temático, o documento
defende que:

Esses blocos temáticos contemplam conteúdos de diferentes dimensões:


conceituais, procedimentais, atitudinais que, segundo esta proposta de ensino,
são considerados como fundamentais para atingir as capacidades definidas
para este segmento da escolaridade (Brasil, 1997, p. 134).

A leitura dos conteúdos sobre o lugar que os PCN apresentam revela indícios de
como os sistemas escolares foram e continuam sendo uns dos mais intencionalmente
capturados e usados para difusão dos processos de racionalização, sistematização e
controle social, a fim da manutenção das metas e padrões hegemonicamente pré-definidos.
Como mais um instrumento deste sistema, os PCN projetam demandas e conseqüências
várias e contraditórias sobre os sistemas educativos. São, ao mesmo tempo, requisitados
tanto para servir à lógica dominante e globalizante quanto resistir a ela.
Além dos textos oficiais, os textos didáticos fazem parte de maneira intensa de
uma das bases do conjunto de significados que carregam os conceitos de “geografia” e
de “lugar” e funcionam, em sua maioria, como “tradutores” deles à prática docente.
Como já mencionamos, André Chervel (1990)3 considera que a história das
disciplinas escolares não é equivalente à história das ciências de referência, dado que
aquelas são construções próprias encarregadas de veicular uma cultura particular, o que
o autor denomina de “cultura escolar”, e que está constituída por um conjunto de
conhecimentos, competências, atitudes e valores que a escola se encarrega de transmitir
explicita ou implicitamente aos estudantes como bagagem cultural e patrimônio comum
para todos os cidadãos. Segundo Chervel (1990, p. 187) “a história dos conteúdos é
evidentemente seu componente central, o pivô ao redor do qual ela se constitui”. Sendo
assim, na forma como é considerado pela Geografia, o “lugar” é um conteúdo dessa
disciplina e, mais que isso, é um componente central, visto que foi também colocado
como categoria analítica dela.
3
No contexto da sociologia crítica da educação, uma importante vertente voltou-se para a investigação sobre
o processo de constituição do conhecimento escolar, o que deu origem ao campo de estudos História das
Disciplinas Escolares, no qual se destacam os trabalhos do francês André Chervel e dos ingleses Basil
Bersntein e Ivor Goodson.

234
Terra Livre - n. 29 (2): 231-246, 2007

Esta indicação implica para Ivor Goodson (1990, p. 235) uma perspectiva que vê a
disciplina escolar não subjugada às matrizes acadêmicas, especialmente a Geografia
Escolar que “precede cronologicamente suas disciplinas-mãe” e causa a criação de uma
base universitária. Por conseguinte, podemos entender a matéria escolar como uma
comunidade de sujeitos escolares, em competição e colaboração entre si, buscando suas
fronteiras e identidades, o que permite o poder de produção própria, dos próprios sujeitos
envolvidos no processo de construção de conhecimento.
O “lugar”, fazendo parte dos conteúdos historicamente presentes nos currículos
de geografia aparece, em geral, nos documentos oficiais e livros didáticos como incursões
genéricas, descontextualizadas ou exemplificadas com lugares mais conhecidos (mais
veiculados na mídia ou em outros livros didáticos) e, são estas incursões que, correntemente,
são usadas nas escolas para explicar “os ‘lugares’ dos alunos”. Lança-se mão nas aulas
de comparações e analogias nem sempre pertinentes.
Os livros didáticos por também fazerem parte dos saberes a serem ensinados,
muitas vezes influenciam e “dão forma” ao conhecimento produzido na sala de aula, já
que neles não estão contidos somente o que, mas como ensinar determinado conteúdo,
através da seleção, classificação, ordenamento, modo de apresentação, linguagens
utilizadas ao apresentar os conteúdos. Rodríguez Lestegás (2000, p. 57, tradução nossa)
descreve os saberes a serem ensinados da seguinte forma:

Constitui uma mediação indubitável entre o saber erudito e o saber ensinado.


Está definido por quem tem poder de decisão sobre o sistema educativo e
se expressa principalmente através do conjunto de disposições oficiais
(orientações e instruções, programas). Em todo caso, o habitual é que os
livros didáticos sejam os artefatos encarregados de fazer chegar e apresentar
o saber a ser ensinado tanto para professores como para alunos.

Estas considerações ficam evidentes em livros didáticos em que predominam verbos


imperativos, situações operacionais de conhecimento com etapas graduadas a serem
seguidas, cujos exercícios mais próximos da escala local apresentados são geralmente
relacionados a um lugar imaginário ou ao Estado, com preocupações de localização e
nomeação.
Alguns textos didáticos, por exemplo, justificam a causa da diferença entre
determinados lugares nas diferenças comportamentais ali permitidas, mesclando discursos
que informam ao leitor o significado dos lugares com discursos que oferecem uma
explicação com base comportamental para cada tipo de lugar, correndo o risco de
racionalizarem seus discursos à obediência a regras e comportamentos de alguns grupos
sociais.
Remeter-se a lugares generalizantes (as capitais estaduais, por exemplo) ou a
lugares imaginários (o que permite as fugas perante problemáticas reais de qualquer
lugar), são outros modos com que se generalizam os lugares através de grandes narrativas

235
GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O
MESMO...

e de que a configuração e as regras para os mais diferentes lugares são as mesmas, às


quais nos subordinamos.
Outro modo de abordagem é aquele que se baseia em atividades de simulações e
relações de pertencimento de um lugar situado em mapas de diferentes escalas ou figuras
com níveis ou dimensões graduais (casa, bairro, município). Nesta abordagem, embora
fundada em importantes princípios articuladores entre espaços, parte, geralmente, de um
bairro de uma cidade desconhecidos pela criança e uma correspondência deste bairro em
outros mapas de escalas municipal, regional, nacional, continental e mundial.
O lugar é discutido, portanto, privilegiando-se as divisões político-administrativas e
a localização geográfica de um “lugar-exemplo”, mas desvinculado de uma discussão
sobre como se configura o lugar dos alunos a quem se ensina. Assim, as noções são
desenvolvidas por meio de conceitos, como espaço geográfico, o que acaba por distanciar
ou abstrair o espaço pensado do espaço de ação.
Enfim, mesmo considerando a importância dos textos oficiais e didáticos no ensino
de Geografia, é nos saberes e fazeres dos sujeitos escolares, espacialmente situados,
onde acreditamos estar e ser constituído o sentido do estudo do lugar. Como nos alerta
Inês Barbosa de Oliveira (2003, p.69), nos “currículos praticados e nos mais distintos
espaços de formação dos sujeitos são redesenhadas as prescrições”, através do
enredamento de valores, saberes e possibilidades de intervenção, experiências e criação,
potencializando aprendizagens múltiplas e articuladas que vão muito além do previsto e
do suposto oficialmente.
Aos currículos praticados é trazido um sem-número de outros saberes que,
articulados aos conteúdos formais, criam os efetivos processos de aprendizagem dos
alunos, constituídos na interface entre a pequena e a grande escala, entre as raízes e as
opções, entre as normas e as realidades.

As formas próprias dos espaços-tempos cotidianos nos currículos praticados

Foram nas aulas, como espaços de cruzamento e produção de representações,


que fomos encontrar os aspectos constituintes do “lugar” que investigávamos.
Á priori, faz-se necessário ressaltar que a apreensão do conceito de “lugar” através
de uma aproximação prévia com literatura geográfica acadêmica fez da nossa investigação
nas salas de aulas uma constante busca de fios que alimentassem a trama de significados
tecidos ao longo do processo de disciplinarização do campo de conhecimento da Geografia.
Fundamentos prévios nos alertavam quanto às diversas lógicas de funcionamento
do “lugar”, historicamente estruturadas em intensas discussões teórico-epistemológicas
de distintos grupos de especialistas. Por exemplo, fundamentos fenomenológicos que,
diferenciando-se dos caminhos positivistas, vinculam o estudo da Geografia ao conceito
de “paisagem cultural”, incorporando a subjetividade que estava implícita à concepção de
lugar (Sauer, 1983).

236
Terra Livre - n. 29 (2): 231-246, 2007

Ou ainda, fazendo parte do repertório analítico das correntes fundadas na chamada


Geografia Crítica, o “lugar” recebe atenção inserido no processo de globalização, de
maneira que ela passa a não ser mais passível de entendimento se analisado de forma
isolada do mundo. Assim, ora o lugar é compreendido como produto e condição para a
reprodução da vida, podendo ser analisado pela tríade “habitante-identidade-lugar” (Carlos,
1996, p. 26), numa proposta lefebvriana de se “incorporar ao espaço a crítica da vida
cotidiana, que põe o acento na reprodução das relações sociais” (Damiani, 2005, p. 161).
Ora como parte de uma teoria que busca entender o mundo contemporâneo através das
“formações sócio-espaciais”, que traz ao debate a questão das “especificidades dos
lugares”, ao entender que “os modos de produção tornam-se concretos sobre uma base
territorial historicamente determinada”, na qual co-existem solidariedades organizacionais
e orgânicas, verticais e horizontais (Santos, 1997).
Como dissemos, apreensões como estas, a priori, nos mobilizaram a buscar nas
práticas educativas elementos (explícitos ou implícitos) nos quais reconhecêssemos
conjecturas como essas tramadas no universo acadêmico ou aquelas curricularmente
difundidas em textos didáticos e oficiais. No entanto, os fios que fazem parte da tessitura
da aula, em sua maioria, não são puxados destas lógicas estabelecidas nos ensaios de
geógrafos ou outros teóricos. Constatamos na origem dos fios que tecem as aulas,
representações de saberes e práticas sócio-espaciais cotidianos tanto dos professores
como dos alunos. Sendo estes os fios da meada, a partir deles é que são estabelecidas
relações entre as ações e os usos dos espaços mais amplos e abstratos, como os sediados
nas mais distintas escalas geográficas.
Ao mergulharmos nas práticas curriculares cotidianas, entendemos que o currículo
não consiste apenas numa lista de conteúdos a serem ministrados, mas sim numa “criação
cotidiana daqueles que fazem a escola” e como “prática que envolve todos os saberes e
processos interativos realizados entre professores e alunos, e os saberes que permeiam
todo nosso estar no mundo e que nos constituem” (Oliveira, 2003).
Consequentemente as situações de interlocução com os alunos observadas nos
conduziram à ampliação da noção de conhecimento, reconhecendo-o sob a estética de
uma tessitura, cujos fios podiam estar numa experiência, numa prática que podia estar
situada no banal do cotidiano, na esfera acadêmica, escolar ou familiar, na mídia, nos
lugares de lazer, de consumo, de trabalho, ou seja, nos lugares abarrotados de
representações, conflitos, simbologias, relações de poder, de raça, gênero, classe,
diferença... Portanto, o conhecimento não é privilégio de nenhuma cultura em particular,
seja ela determinada pelo status acadêmico, pela classe social, pela condição de gênero
ou etnia; sendo uma rede, ele perde seu caráter hierarquizante, para ganhar a
horizontalidade de sua condição de existência, uma vez que se admite como conhecimento
tudo o que é referenciado na prática social.
A seguir, são apresentadas práticas curriculares em sala de aula, das quais
destacaremos dois conjuntos de onde emergem modos singulares de criação e reinvenção

237
GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O
MESMO...

do que chamamos até aqui de “lugar”, situações estas centradas por um lado nos critérios
de delimitação sócio-espacial e, por outro, no fenômeno da mobilidade social, como
apresentaremos a seguir.
Observemos uma atividade de ensino desenvolvida pela professora Marina, em
que os alunos de uma escola municipal de Rio Claro trouxeram fotos antigas de bairros,
para que pudessem compará-las com as paisagens atuais, através de visita a esses lugares.

Professora Marina: As fotografias podem mostrar como eram as pessoas, os


lugares, as construções, os terrenos. Como era o terreno da escola?
Aluno: Não tinha nada.
Aluno: Minha irmã me contou que só depois que colocaram os postes de luz
que começaram a construir a escola.
Professora: Estas mudanças no bairro estão ligadas às mudanças na nossa
cidade, em?
Alunos: Rio Claro.
Aluno Adalberto: Santa Gertrudes.
Professora: O nosso município, que nosso bairro faz parte é Rio Claro. Que
está no Estado de?
Alunos: São Paulo.
Aluno Adalberto: Mas é que eu vou para Santa Gertrudes de bicicleta com
minha mãe todo dia depois da aula.
Aluno William: Professora, sabia que esse bairro (o fotografado) é o Pé no
Chão, é perto do Conduta, mas é o Pé no Chão?!
Professora: A é?
Aluno William: O Pé no Chão é só pedra, não tem asfalto, o prefeito não
asfaltou ainda.
Professora: Uma parte do Pé no Chão não foi asfaltado ainda? É isso?
Aluno William: O Pé no Chão inteiro (não é asfaltado), tem só até a casa do
Lucas, que é o Conduta, que só vai até ali o asfalto, depois é o Pé no Chão.
Aluno: É tipo de um cascalho que tem lá.
Professora: Depois nós vamos discutir mais sobre isso, lá na visita. Lá no
fundo (mostra o segundo plano da foto), o que mais que vocês podem ver? A
mercearia que vocês falaram que estava construindo. Que ano? Quando foi
tirada esta foto?

A interlocução registrada traz uma diversidade de representações. A princípio,


cabe ressaltar que a definição espacial de “lugar”, ou seja, o que lhe dá sentido não é,
necessariamente, o bairro, o município ou espaços delimitados por critérios político-
administrativos (como os limites municipais), pois estes limites muitas vezes não definem
os espaços cotidianos com que mantêm suas relações, uma vez que vivem numa zona
limítrofe com o pequeno município de Santa Gertrudes, mais conhecido pelos alunos que
o próprio município de Rio Claro, e onde referenciam grande parte das intervenções que
trazem para a sala de aula.
Por outro lado, podemos observar que a professora atribuiu maior importância ao

238
Terra Livre - n. 29 (2): 231-246, 2007

registro das paisagens, pois justifica o estudo das fotos por meio de indícios que lhes
atribuem significado curricular como representação do lugar: data da foto, objetos nelas
registrados (terreno da escola, mercearia); vai além, estabelecendo uma relação direta
entre elementos da paisagem com o conceito de limite político-administrativo (P: Lá no
fundo, o que mais que vocês podem ver? ... O nosso município, que nosso bairro
faz parte é Rio Claro. Que está no Estado de?).
Este modo de estabelecer relação entre o que havia nas fotos com situações atuais
parecia não estar fazendo sentido para os alunos, que respondiam paulatinamente as
perguntas da professora; porém outras relações sócio-espaciais podiam ser identificadas
nas falas dos alunos (A: Sabia que esse bairro é o Pé no Chão?), demonstrando
sentidos particulares àquelas relações que a professora buscava fazer.
Um novo sentido foi atribuído ao “lugar”, não mais como área instituída formalmente,
mas como espaço percorrido cotidianamente (A: Mas é que eu vou para Santa Gertrudes
de bicicleta com minha mãe todo dia depois da aula.).
Um outro sentido ao “lugar” é dado quando os alunos reforçam fazer-se necessária
a separação entre dois pequenos bairros vizinhos, localizados próximos à escola (vistos
pelas professoras como “o bairro Conduta, lugar de procedência da maioria de seus
alunos”). Assim, os alunos incluem o bairro Pé no Chão nas relações espaciais que vinham
realizando, trazendo a constatação de que, embora o Pé no Chão seja visto e conhecido
como parte do Jardim Conduta, ele consiste em outro lugar claramente delimitado pelas
diferenças de infra-estrutura entre estes dois bairros, que marca a desigual atenção pública
a ambos (A: ... é perto do Conduta, mas é Pé no Chão?!/ A: ... só vai até ali o
asfalto, depois é o Pé no Chão./A: É tipo de um cascalho que tem lá.)4 .
Enfim, ressaltamos que o trabalho com fotos antigas do bairro provocou uma tensão
no estudo do lugar, pois por dizer respeito a lugares e pessoas comuns aos alunos, possibilitou
aos mesmos a apresentação de seus conhecimentos sobre o tema em estudo, extrapolando
o sentido atribuído àquelas fotos pela professora, tendendo a uma horizontalização da
autoridade de posse do conhecimento, geralmente atribuído à professora ou à informação
dos livros didáticos. Isto seria dificultado se o material usado para esta aula dissesse
respeito a lugares distantes, desconhecidos ou imaginários.
Observamos também que a paisagem pareceu ser considerada como uma primeira
aproximação do lugar, uma chave inicial para apreender as diversas determinações desse
lugar. Como analisa Lana Cavalcanti (1998, p. 100), “é pela paisagem, vista em seus
determinantes e em suas dimensões, que se vivencia empiricamente um primeiro nível de
identificação com o lugar”.
A tessitura com os alunos de compreensões espaciais utilizando-se do tão aclamado
“partir do lugar” nas propostas metodológicas de ensino de geografia, consiste não somente
em tratar elementos do espaço imediato, mas tratar de múltiplos fragmentos espaços-
4
O bairro Pé no Chão faz parte de um projeto do governo municipal de assentamento urbano através de
loteamento de terrenos públicos. No caso deste bairro, ainda que municipalmente reconhecido, foi assentado
em área de várzea, sujeito a constantes alagamentos.

239
GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O
MESMO...

temporais, com suas relações de poder, seus nós, fronteiras, continuidades e


descontinuidades, seus domínios materiais e não materiais. Isto porque os alunos, assim
como nós todos, para realizarmos atividades cotidianas as fazemos por meio de fragmentos
reconhecidos nos referenciais espaciais que temos tanto no tempo-espaço presente como
na memória (da qual também participam conteúdos oriundos da mídia), sendo que as
cenas cotidianas são carregadas de elementos simbólicos multitemporais e espaciais.
Outro conjunto de práticas curriculares cotidianas que se destacaram nas
observações a uma problemática em torno do sentido de “lugar”, que vem se intensificando
nas salas de aula e impondo novos desafios à esfera educacional, àquela que resulta de
um fenômeno em escala mundial, mas que, especialmente no Brasil, país de extensa
dimensão territorial, o tem de maneira expressiva dentro de suas fronteiras internas5 : o
fenômeno da mobilidade humana.
Destacamos a seguir três recortes dos registros das aulas do professor Vitor. A
escola em que trabalha está situada na periferia da cidade de Rio Claro6 e atende alunos
dos bairros populares localizados em seu entorno. Ainda que não hajam discussões
diretamente referenciadas à esta temática nas situações registradas, ela aparece como
emergente em distintos momentos.

Este primeiro recorte traz uma aula centrada na questão das atividades urbanas
e rurais.
Quando o professor destacava num mapa do município de Rio Claro (SP) a
área urbana e rural, um aluno conta: Quando eu era pequeno e minha mãe me
levava para a roça, lá no Paraná, daí para a onça não me comer ela fazia um
buracão no chão, colocava eu lá e tampava.
Professor: Vocês vieram de um lugar, de uma realidade diferente, onde tem
mais trabalhos rurais. Será que aqui em Rio Claro tem muitas oportunidades
para trabalhar no campo?
Alunos: Não.
Professor: Então onde as pessoas acabam trabalhando?
As: Nas fábricas
Professor: Agora seu pai trabalha na “Tigre” (indústria instalada em Rio Claro),
junto com os pais de vários colegas, né?
Aluno: Mas parece que a Tigre vai sair de Rio Claro, vai lá para o Sul.

5
No Brasil, o fenômeno da migração historicamente abrage distintos fluxos migratórios: de imigrantes
estrangeiros na formação inicial de seu território; entre as populações das regiões brasileiras; e também, mais
atualmente, o fluxo de emigração internacional do país, incluindo-se no chamado “fenômeno migratório
transnacional”.
6
Do total da população residente no município de Rio Claro (168.218 hab.), 25.905 (15%) provêm de outros
estados, em sua maioria dos estados de Minas Gerais, Paraná, Bahia e Ceará (IBGE, 2000). Estas são pessoas
que passaram a fazer parte da configuração da sociedade multicultural de Rio Claro, onde a escola é um lugar
de encontro de suas crianças.

240
Terra Livre - n. 29 (2): 231-246, 2007

Em outra aula quando se discutiam textos sobre modos de vida, escritos pelos
alunos com ajuda dos pais e avós, um aluno diz: Minha mãe me contou que no
Ceará meu avô comprou uma tela que colocava na frente da televisão e ela
mudava de cor, mas a gente não trouxe esta televisão pra Rio Claro, compramos
uma colorida aqui. (...) No Ceará, minha avó tinha uma rempa de filho, mas
meus tios ficaram todos lá, eu nem vi mais eles.
Outro aluno diz: Eu sei que o dono do canavial do Paraná era muito rico, tinha
usina e tudo, mas nem eu nem minha mãe conhecemos ele.

Numa discussão sobre meios de transporte, um aluno diz: Mas o meio de


transporte em Araponga (MG) é o caminhão, a minha mãe sempre pegava
carona para ir para a cidade. Só quando eu mudei para Rio Claro que a gente
anda de ônibus e moto.

Estes se tornam eventos cada vez mais presentes nas escolas, porque quando se
ensinava sobre o lugar há anos atrás, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes,
uma vez que as dimensões espaciais da vida da criança eram dominadas por sua vida
social, pelos espaços presentes, por atividades localizadas, pois há de se considerar que
as imagens e informações sobre os lugares eram mais selecionadas e mais facilmente
controladas, até mesmo pelas características das densidades técnicas da época, pela
relativa lentidão e acesso restrito aos meios de comunicação. Hoje, os locais são fortemente
contaminados por influências sócio-espaciais bastante distantes deles. O sociólogo inglês
Stuart Hall (2003, p. 72) diz que “o que estrutura o local não é simplesmente aquilo que
está presente na cena, a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas que
determinam sua natureza”.
Isto nos leva a mais uma parcela de elucidação do sentido atribuído ao “lugar” nos
modos particulares em que aparecem em sala de aula: o sentido do “lugar”, se como já
vimos, às vezes, não se refere a um espaço de controle político-administrativo, por vezes
também não se refere a um espaço contínuo ou de “contigüidade espacial”, como propõe
Santos (1997). Diz respeito sim a um mosaico de locais e memórias que uma vez já
fizeram parte das experiências prático-teóricas dos sujeitos ao longo de suas vidas, ou
seja, aos espaços-tempos de fazeres e conhecimentos dos sujeitos. Aqui pode estar uma
das diferenças entre local e lugar. A diferença de que os locais e os tempos são variados,
mas ainda assim eles podem ser “georeferenciados” e periodizados, enquanto que o
sentido de “lugar” pode ser um só, o de “espaços-tempos cotidianos, em permanente e
dinâmica articulação com outros espaços-tempos, onde e sobre os quais tecemos e re-
tecemos conhecimentos e práticas sociais” (GONÇALVES, 2006).
É para esta dinâmica e diversidade de espaços-tempos (e não só às relações de
permanência ou continuidade) que os professores são chamados a promover a interlocução
em sala de aula, articulando as aprendizagens sobre as normas e regularidades do sistema
social e espacial com outras, fruto de vivências e experiências nos pequenos espaços e

241
GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O
MESMO...

circunstâncias da vida cotidiana. Nas observações e registros, por exemplo, percebemos


que a maioria das falas em que os alunos trouxeram experiências vividas em outros
lugares (que não somente nas aulas anteriores de geografia) aconteceu em atividades
que permitiam algum tipo de participação aberta deles ou em atividades que os remetiam
a diálogos com os pais, avós e vizinhos, ou ao uso de materiais produzidos localmente
como jornais, folhetos, fotos e mapas locais ou de lugares que faziam parte de suas
memórias sócio-espaciais.
Por um lado, este é um processo de articulação – o que passamos a denominar de
efeitos zoom – que passa a dar sentido às práticas e aos conhecimentos que os alunos
desenvolveram em seus variados espaços-tempos ao longo de suas vidas, assim como
pode dar sentido a lugares comuns e relações de contigüidade (“solidariedade orgânica”)
que podem estar sendo - ou vir a ser - compartilhados por eles como, por exemplo, a
indústria que emprega a maioria dos pais dos alunos ou o ônibus urbano que compartilham
diariamente.
Por outro lado, o enredamento passa a dar sentido àqueles espaços de “solidariedade
organizacional” e às ações de agentes hegemônicos (Santos, 1997), que atuam segundo
seus interesses e se colocam distantes de outros sujeitos, como o provável latifundiário do
canavial em que trabalhava a mãe de um aluno (A: ... nem eu nem minha mãe conhecemos
ele.); um distanciamento que tem em sua finalidade a exclusão mesma de alguns, um
apartamento que tenta ofuscar o quanto estes agentes necessitam estar ligados, imbricados
com estes sujeitos, para conseguir manter suas relações de poder e “incluí-los na exclusão”.
Nestas descobertas o espaço é um dado fundamental, por que é nele que se dão os
conflitos, as negociações e as relações de solidariedade, onde uma ordem espacial é
permanentemente recriada. Este encontro de uma lógica e um sentido próprio construídos
nas redes de espaços-tempos constitui a configuração de identidades e pertencimento, ou
ainda, da territorialidade. E é desta territorialidade que os alunos têm que se munir para
orientar-se quando se depararem novas paisagens e os novos espaços-tempos, de uma
maneira que seu repertório histórico e espacial não tenha que ser anulado e lhes sirva de
referência e parâmetro na constituição de suas identidades.
Dando continuidade às contraposições e resistências que são criadas no lugar e
nele co-existem e se articulam com outras lógicas e espaços, trazemos o enredamento
como definidor das identidades individuais e sociais e de seus fragmentos e dinamismos.
Neste sentido, a Geografia pode ter um papel relevante, se vista como um
componente curricular integrador de outros espaços e tempos, de outros modelos culturais,
cujo conhecimento favoreça o intercâmbio, o enriquecimento cultural e o fortalecimento
das articulações espaços-temporais na produção das novas identidades sócio-espaciais.
A configuração do lugar, tal como o apresentamos acima, tem função fundamental, uma
vez que ele faz a mediação entre referenciais locais e de alhures, num entendimento do
território como um mosaico desenhado pelas múltiplas experiências e memórias sócio-
espaciais e pelas relações de poder reconhecidas nelas.

242
Terra Livre - n. 29 (2): 231-246, 2007

Neste contexto, a escola destaca-se como instituição aglutinadora da diversidade


cultural. Sendo assim, sua função socializadora pode se centrar na busca pelas diferentes
formas de se construir dinâmicas sociais mais justas e participativas. Por isso pensamos
que a escola – e também o ensino de geografia – podem se tornar marcos de referência
na construção da identidade social e espacial dos alunos.
No entanto, o poder disciplinar está preocupado, com a regulação - a vigilância é o
governo da espécie humana ou de populações inteiras; preocupa-se com a “regulação do
indivíduo, do corpo” (Oliveira, 2003). Um exercício que contribui, antes de tudo, com o
isolamento, a individualização e a competitividade entre os sujeitos.
Mas, utilizando-nos da metáfora das “escalas” da “cartografia simbólica” que
Boaventura de Souza Santos (1995) usa para compreensão das relações sociais e
referências espaciais com a quais as sociedades imaginam todos os aspectos da realidade
– são nas minudências das ações sociais que uma educação inter-cultural pode promover
relações de igualdade e respeito entre os sujeitos, ao mesmo tempo em que a chave para
o alcance de desafios maiores está no reconhecimento destas ações da grande escala
para que subsidiem mudanças na orientação curricular. Uma mudança que exige que se
supere o “disciplinamento” em que se encontra imerso o Currículo e conte com uma
fundamentação prático-teórica escolar que considere a percepção da territorialidade dos
sujeitos na construção da cidadania.
Uma Geografia Escolar com este enfoque requer mais que uma mera introdução
de unidades temáticas sobre “Pluralidade Cultural” (Brasil, 1997), atividades isoladas ou
limitadas às datas comemorativas. É no sentido de superar reducionismos como estes
que vimos ressaltando a importância das práticas curriculares que buscam enredamentos
dos saberes e das práticas desenvolvidas nos ou sobre os espaços-tempos cotidianos dos
sujeitos escolares. Currículos praticados por meio da consideração das representações
espaços-temporais e de seu entrelaçamento tanto com as lógicas estruturais do espaço
mais amplo, quanto com a configuração territorial do lugar de contigüidade. Também
práticas de sala de aula com uma visão da mobilidade humana não como um problema,
mas como algo provocador de novas identidades, das solidariedades étnicas ou culturais
até as solidariedades sociais e profissionais.
Os recortes de aula que destacamos trazem à tona questões que envolvem o
deslocamento da população em busca de melhores condições de trabalho e de qualidade
de vida em locais onde as chances de sobrevivência são maiores (P: ... pessoas que
trabalharam na zona rural e agora seu pai trabalha na Tigre. ... Eles vêm de um
lugar onde tem mais trabalhos rurais. Será que aqui em Rio Claro tem muitas
oportunidades para trabalhar no campo? Então onde as pessoas acabam
trabalhando?).
São amplos os motivos em que se fundam as decisões dos movimentos migratórios
entre as fronteiras dos territórios na atualidade. Como nos lembra Stuart Hall (2003)
sobre os fatores da migração, ela é impulsionada pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo

243
GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O
MESMO...

subdesenvolvimento econômico, por colheitas fracassadas, pela guerra civil, pelos distúrbios
políticos, pelos conflitos regionais, pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela
dívida externa acumulada de seus governos para os bancos centrais.
Indícios de condições precárias de trabalho no campo em suas cidades de origem
são colocados pelos alunos, através da apresentação de situações específicas e marcantes
na construção de suas identidades, constituídas dos fazeres e conhecimentos em espaços
experienciados em suas histórias de vida (A: ... minha mãe me levava para a roça, lá
no Paraná, daí para a onça não me comer ela fazia um buracão no chão, colocava
eu lá e tampava. / A: Uma vez eles estavam roçando a floresta para fazer plantação
de banana, e eles faziam barraca.).
Além de problemáticas estruturais que envolvem o desemprego, as más condições
de trabalho, a desigualdade social, a concentração de terras e de renda, outro dos principais
impactos do fenômeno migratório é que ele resulta no que Hall (1992) chama de “mix
cultural”. Junto com as novas tecnologias da informação e comunicação, os imigrantes
trazem de forma mais latente para os lugares a mistura, a diversidade, as descontinuidades
históricas e a não coincidência de sua história de vida com a história de configuração
territorial do novo lugar onde ele passa a viver.
Nas falas dos alunos, por exemplo, aparecem elementos que não fazem parte do
cotidiano social e espacial da cidade de Rio Claro na atualidade (um cotidiano que
historicamente compartilham os que têm gerações de familiares aqui enraizadas), como
onças, jaguatiricas, plantação de banana, buraco em subsolo para proteger-se de animais,
“caronas” em caminhões, telas para colorir imagens da televisão, entre muitos outros que
não elencamos aqui. Estes são exemplos de elementos constitutivos do repertório cultural
dos alunos e são inerentes às referências que delimitam suas ações sócio-espaciais, as
quais podem se deparar com barreiras sociais, políticas, econômicas preocupadas em
reconstruírem identidades purificadas para que se restaure a coesão e o fechamento
frente à diversidade, podendo tornar o lugar a sede de uma vigorosa alienação, que
marginaliza os que não detém seus códigos, como a maioria dos migrantes (Santos, 1997);
podem também se deparar com ações sociais, políticas, econômicas voltadas para a
produção de novas identidades que vêm se formando nos “novos lugares”, o que pode
ser facilitado e promovido na escola a partir das articulações dos repertórios culturais
sócio-espaciais dos alunos aos processos locais e aos mais amplos e globais dando origem
a formas inusitadas de conhecimentos e práticas.
Eventos estes que mostram como a intensidade do fenômeno migratório e a
influência dos meios de comunicação vêm pondo em questão o mundo de fronteiras, de
continuidades e as velhas certezas e hierarquias das identidades locais. Diante, por exemplo,
daquelas experiências espaciais cotidianas na cidade de Santa Gertrudes dos alunos de
Marina ou desta mistura de repertórios culturais dos alunos de Vitor, o que significa ser
rio-clarense hoje?

244
Terra Livre - n. 29 (2): 231-246, 2007

Considerações finais: tecendo arremates e nós

Os episódios das aulas de Marina e de Vitor nos levaram a refletir sobre o modelo
de organização política e social que temos e, mais especificamente, sobre o desenho
curricular em que se ampara a educação.
Estes alunos emergem como um exemplo do caráter político e posicional das novas
identidades, demonstrando uma formação em e para tempos e lugares específicos, mas
ao mesmo tempo um modo de como a identidade está articulada ou entrelaçada em
identidades múltiplas, em espaços-tempos múltiplos, nunca um anulando o outro.
A análise nos mostra que a rapidez e intensidade que vêm assumindo os fluxos
migratórios, bem como as novas formas de experimentação do tempo e do espaço que
caracterizam o período atual vêm transformando os modos das pessoas realizarem suas
vidas. Porém ainda vêm acompanhadas de respostas contraditórias dadas pelos âmbitos
público e privado, onde são desconsideradas suas potencialidades de enriquecimento
cultural e político, mantendo-os como minorias étnicas, migrantes, pobres, discriminados.
Portanto, entende-se que para permitir o desenvolvimento das potencialidades dos
sujeitos, há de se considerar que as identidades não são coisas com as quais nós nascemos,
mas são formadas e transformadas no interior da representação, no conjunto de
significados que tem por base uma variedade de conhecimentos e de práticas referenciados
num entrelaçado de espaços e de tempos.
E se estamos preocupados com o papel do ensino dos espaços-tempos cotidianos
na construção destas identidades, é importante oferecer condições para que as relações
híbridas se constituam, contribuindo para que o aluno possa alargar seu entendimento de
si, de seu entorno e do mundo em sua multiplicidade e dinamismo, no passo em que possa
questionar a naturalidade do que lhe chega e apropriar-se criticamente dos conhecimentos
que os cercam; que possa criar perspectivas de pensar e construir um futuro mais plural
e menos desigual, uma vez que, como diz o sociólogo português Boaventura de Souza
Santos (2005) “todo mundo tem direito à igualdade quando a diferença discrimina e todo
mundo tem direito à diferença quando a igualdade descaracteriza”.
Os currículos praticados, como os aqui investigados, ensinam às pesquisas de
Didática e Currículo da Geografia Escolar, que apresentar o conceito de lugar como uma
construção social da realidade, e não como a própria realidade, significa demonstrar o
caráter relativo do conceito.
Assim, se grande parte dos limites à efetivação destas perspectivas vêm de
teorizações circunscritas à pequena escala, às autoridades educacionais, que muitas vezes
desenham o sistema educativo e as propostas curriculares em função das “raízes”
normativas e gerais sem levar em consideração as “opções” que as práticas cotidianas
realizam (Oliveira, 2003), exaltamos aqui as orientações curriculares que se apropriam
daquilo que é particular no modo de produção de conhecimento no trabalho cotidiano
docente.

245
GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O
MESMO...

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Recebido para publicação dia 02 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 08 de Fevereiro 2008
246
Resumo: As discussões constantes nesse artigo objetivam apresentar o
A CLIMATOLOGIA processo de produção e constituição da especialidade científica
PRODUZIDA NO identificada como climatologia geográfica a partir da análise de teses e
INTERIOR DA CIÊNCIA dissertações produzidas em seis programas brasileiros de pós-graduação
em Geografia, defendidas no período de 1944 a 2003, bem como contribuir
GEOGRÁFICA para o debate acerca do papel desempenhado pelo fenômeno climático
BRASILEIRA: UMA na ordenação dos espaços pela sociedade. Foi constatado que as
ANÁLISE DE TESES E orientações teórico-metodológicas propostas pelo professor Dr. Carlos
Augusto de Figueiredo Monteiro propiciaram a formação de uma escola
DISSERTAÇÕES de climatologia geográfica brasileira, subsidiada na análise rítmica e
DEFENDIDAS EM episódica e no estudo do clima urbano, além de outros quatro eixos
temáticos: variabilidade pluvial, o clima na análise ambiental e da paisagem,
PROGRAMAS DE PÓS- modelagem estatística em climatologia e teoria e método da climatologia.
GRADUAÇÃO EM Mas, também, foi identificado que essa produção apresenta uma escassez
GEOGRAFIA* de análises sobre as questões epistemológicas da Geografia, dificultando
a apreensão da espacialidade do clima na composição das novas
territorialidades.
Palavras-chave: Climatologia geográfica brasileira, clima, espacialidade,
Climatology Raised Within sociedade.
Brazilian Geographic
Science: a study on the Abstract: This paper surveys and analyses the thesis and scientific
accomplishment of outcomes achieved by six Brazilian M.A. and PhD programs in
graduated programs in Geography, from 1944 to 2003, in order to outline the process of
Geography institution of Geographic Climatology as a scientific specialty, and to
contribute to the debate about the role of climate on the spatial arrangement
La Climatología of a given society. It was verified the importance of Professor Dr.
Producida en el Interior Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro’s theoretical and methodological
de la Ciencia Geográfica accomplishments to the settlement of Brazilian School of Geographic
Brasileña: un análisis de Climatology, mainly on the basis of rhythm and episodic analysis, and
tesis y disertaciones of urban climate, besides pluvial variability, the climate on the
defendidas en programas environmental and landscape analysis, statistical modeling in climatology
de postgrado en Geografía and climatology methodology. However, it was also verified that the
Brazilian School lacks a deep concern for epistemological problems of
Geography, a gap wich makes difficult to understand the role of climate
DEISE FABIANA ELY spatiality in the making of new territorialities.
Key words: Brazilian Geographic Climatology, climate, spatiality,
society.
Professora Doutora do
Departamento de Geociências da Resumen: Las discusiones constantes en ese artículo objetivan
Universidade Estadual de presentar el proceso de producción y constitución de la especialidad
Londrina – UEL. Rodovia Celso científica identificada como climatología geográfica a partir del análisis
Garcia Cid (PR 445), Km 380, de tesis y disertaciones producidas en seis programas brasileños de
Caixa Postal 6001 – Fone (43) postgrado en Geografía, leídas en el período de 1944 hasta 2003, así
3371-4246, Fax (43) 3371-4216. como contribuir para la discusión acerca del papel desempeñado por el
fenómeno climático en la ordenación de los espacios por la sociedad.
E-mail: deise@uel.br Fue constatado que las orientaciones teórico metodológicas propuestas
por el profesor Dr. Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro propiciaran
la formación de una escuela de climatología geográfica brasileña,
subsidiada en el análisis rítmico y episódico y en el estudio del clima
urbano, además de otros cuatro ejes temáticos: variabilidad pluvial, el
clima en el análisis ambiental y del paisaje, paradigma estadístico en
climatología y teoría y método de la climatología. Pero, además de eso,
fue identificado que esa producción presenta una escasez del análisis
*
O texto apresentado constitui parte sobre las cuestiones epistemológicas de la Geografía, dificultando la
das reflexões desenvolvidas em Tese aprehensión de la espacialidad del clima en la composición de las nuevas
de Doutorado, defendida junto ao territorialidades.
Programa de pós-graduação em Palabras clave: Climatología geográfica brasileña, clima, espacialidad,
Geografia da FCT/UNESP – Campus sociedad.
de Presidente Prudente / SP.

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 247-264 Ago-Dez/2007


247
ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

Introdução

As questões epistemológicas da ciência geográfica, assim como da ciência em


geral, constituem um contínuo e amplo debate e proporciona um repensar sobre as formas
de análise da realidade espacial. Entretanto, no Brasil, tais discussões são mais marcantes
nos discursos dos geógrafos que se dedicam às questões humanas da Geografia e são
poucos os geógrafos formados na tradição da chamada geografia física que se interessam
pela reflexão epistemológica, como bem demonstrou o levantamento feito por Jesus (1995,
p. 19 – 24), constatando que os manuais e periódicos que abordam temas da climatologia
utilizados no Brasil apresentam escassas discussões epistemológicas e metodológicas
sobre o estudo geográfico do fenômeno climático.
Diante dessas considerações, o presente texto procura analisar o processo de
produção da especialidade científica da climatologia geográfica brasileira, quais os seus
vínculos teóricos e suas principais características de ordenação metodológica, feita a
partir de um recorte, ou seja, das teses e dissertações produzidas em alguns dos programas
brasileiros de pós-graduação em geografia.
A escolha desse universo de análise é justificada pelo fato de que no processo de
pós-graduação as tendências teórico-metodológicas tornam-se mais evidentes na prática
dos pesquisadores, além das instituições que ofertam tais cursos congregarem profissionais
que contribuem para a disseminação e expansão do conhecimento acerca da climatologia
geográfica no país.

As contribuições científicas sobre o clima advindas de algumas instituições


brasileiras

A institucionalização das universidades no Brasil foi um processo tardio, concretizado


no decorrer da década de 1930. Até então, parte do conhecimento científico produzido no
Brasil era efetivado no interior de algumas instituições, entretanto nosso território era
fonte de pesquisas para viajantes, naturalistas e pesquisadores estrangeiros que, em suas
expedições, produziam estudos pautados em variados postulados teóricos procedentes da
efervescência do pensamento científico europeu.
Em nossas terras eram escassos profissionais com formação específica nos variados
campos do saber, principalmente naqueles que se dedicavam ao reconhecimento,
mapeamento e análise do território, bem como aos estudos do clima. As análises com
esse caráter eram desenvolvidas por diferentes estudiosos ou profissionais oriundos de
instituições e universidades européias, que procuravam descrever e enumerar os arranjos
espaciais que caracterizavam nosso território.
Os estudos referentes aos climas do Brasil eram publicados no interior das

248
Terra Livre - n. 29 (2): 247-264, 2007

descrições narrativas e, conforme Sant´Anna Neto (2001), reproduziam os fundamentos


de duas correntes clássicas do pensamento geográfico: aquela derivada do romantismo
alemão e embasada na concepção de paisagem natural de Humboldt, que analisava
conjuntamente as características do quadro natural, dentre elas os aspectos climáticos; e
outra, em que predominava a visão determinista e fatalista do clima sobre a sociedade,
enaltecendo as correlações das altas temperaturas e umidade tropicais com a lassidão, a
preguiça e a ociosidade dos habitantes dessas áreas, limitadores do progresso dessas
sociedades e utilizada como justificativa para a reafirmação da superioridade dos brancos
e dos povos europeus.
Segundo Moreira (2006), na Europa, na segunda metade do século XIX, a ciência
estava redirecionando seus postulados filosóficos. Era o período de emergência do método
positivo que tinha como preocupação fundamental a delimitação de leis gerais que
permitiriam ao cientista a definição das regularidades dos fenômenos naturais e sociais,
considerando o homem como um ser evoluído, superior e externo à natureza, essa última
entendida como física e inorgânica e seu conhecimento requeria, essencialmente, a coleta,
a manutenção e a análise de dados quantitativos.
O princípio da valorização dos dados quantitativos enquanto sinônimo de
conhecimento cientificamente comprovado demandava pelo estabelecimento de redes
de postos de coleta de dados climatológicos, bem como sua publicação, visando à
elaboração da catalogação das características dos climas brasileiros buscando o
entendimento de sua regularidade e dos eventos extremos. A coleta de dados
meteorológicos acontecia de forma esparsa em algumas localidades do Brasil, entretanto
os arquivos do Observatório Nacional, junto a Repartição Central Meteorológica da
Marinha e aqueles do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro merecem destaque por
constituírem o registro das primeiras estações meteorológicas do país. (PEREIRA, 1980)
Nesses dois institutos, além da coleta e do tratamento estatístico dos dados
climatológicos, procurava-se estabelecer as possibilidades da geografia para a administração
estatal com a divulgação de documentos e mapeamentos em todas as suas áreas correlatas,
realizando o levantamento topográfico, geológico, geográfico e as possibilidades da
agricultura, tendo, também, como foco de interesse a região nordestina assolada pelas
constantes secas.
A coleta de dados meteorológicos propiciou a elaboração de análises sobre o regime
e a variabilidade climática, proporcionando também a confecção de uma classificação
dos climas do Brasil, desenvolvida por Henrique Morize, no início do século XX; além do
estabelecimento das primeiras regras para a previsão do tempo em nosso território. Nesse
período também foi promovida a unificação dos serviços meteorológicos brasileiros com
a criação da Diretoria de Meteorologia e Astronomia, dedicada ao estudo das secas, do
regime das estiagens e cheias de alguns rios e à previsão do tempo, já que os procedimentos
de coleta e arquivamento dos dados climáticos estavam sendo padronizados pela mesma.
Em 1921, a referida diretoria foi desmembrada em dois institutos, sendo que o de

249
ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

Meteorologia ficou a cargo de Sampaio Ferraz, que procurou incentivar a vinda de alguns
técnicos estrangeiros para auxiliar na instalação de novos serviços e na formação de uma
escola de meteorologia.
Mesmo com diferenças de objetivos e de metodologias, a climatologia e a
meteorologia eram trabalhadas pelos técnicos do respectivo instituto. A atividade agrícola,
a navegação e o transporte aéreo impulsionaram os trabalhos de cunho meteorológico,
influenciados pelos avanços da física da atmosfera. Assim, meteorologistas e geógrafos
trabalhavam em cooperação.

De tal modo que ao mesmo tempo em que a Geografia fornecia valiosas


contribuições em termos da fisiologia das paisagens, de caráter mais regional,
os meteorologistas se empenhavam na compreensão dos mecanismos da
circulação atmosférica – superior e secundária, possibilitando uma análise
de interfácie entre os fenômenos atmosféricos e suas relações com a
superfície terrestre, em termos de organização do espaço. (SANT’ANNA
NETO, 2001, p. 119)

Esse trabalho conjunto propiciava a produção de conhecimentos de bases científicas


sobre o clima no Brasil seguindo os preceitos teóricos divulgados pela Física e pela
Geografia de então, tendo-se como referência o manual de climatologia sistematizado
por Hann (“Handbuch der klimatologie”) que abordava, didaticamente, as bases gerais
da climatologia e a descrição dos climas regionais e apresentava as primeiras definições
para os termos clima e tempo, designando o primeiro como “[...] o conjunto dos fenômenos
meteorológicos que caracterizam a condição média da atmosfera sobre cada lugar da
Terra” (HANN, 1882 apud MONTEIRO, 1976, p. 22). E o segundo destacado como
uma fração da sucessão daqueles fenômenos, reproduzindo-se com maior ou menor
regularidade no ciclo anual (SANT’ANNA NETO, 2001, p. 82).
Uma outra menção presente nos estudos climáticos do período era a idéia de tipos
de tempo formadores dos climas proposta por Köppen e sua classificação climática regional
que, até hoje, é largamente utilizada, bem como suas observações meteorológicas e o
exercício de correlação entre dados de pressão do ar e ventos e suas indicações sobre a
possibilidade de análise do caráter dinâmico das condições atmosféricas.
As contribuições de Hann e Köppen constituíram os primeiros passos para a
construção de um projeto que elevasse os estudos climatológicos ao status de conhecimento
científico em termos positivistas, pois preconizavam a observação dos elementos climáticos,
posteriormente transpostos para a linguagem matemática (dados) visando o
estabelecimento das leis gerais de sua regulamentação, universalizando o conhecimento
dos mecanismos de funcionamento desses fatos, tornando-os coisas passíveis de
mapeamento e classificação em suas manifestações absolutas, vislumbrando a continuidade
do progresso do conhecimento coeso e da sociedade.
Esses pressupostos foram claramente discutidos por De Martonne na segunda

250
Terra Livre - n. 29 (2): 247-264, 2007

parte do volume I de sua coletânea “Panorama da Geografia” (1953), apresentando um


verdadeiro manual de estudo do clima e seus elementos e finalizando-o com sua proposta
de classificação climática, comumente aludido nos estudos climáticos produzidos no Brasil.
As intensas atividades do Instituto de Meteorologia foram abaladas durante a década
de 1930 em função dos problemas políticos brasileiros, da mudança de governo e da
redução no repasse de recursos financeiros, prejudicando a publicação das séries
meteorológicas.
Após a deflagração da Segunda Guerra Mundial, voltou-se a valorizar as séries de
dados e os estudos meteorológicos, pois esses passaram a ser constantemente requisitados
para as possíveis investidas das missões militares.
Entretanto, a pesquisa em climatologia mantinha-se no Conselho Nacional de
Geografia, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística implantado na década de
1930 e dava-se início as pesquisas sediadas na Universidade de São Paulo (USP) e na
Faculdade de Filosofia ou Universidade do Brasil, institucionalizadas no mesmo período.

A climatologia produzida no interior da ciência geográfica brasileira

Monteiro (1980, p. 10) salienta que a geografia produzida pelo Conselho Nacional
de Geografia possuía um caráter político e comprometido com o poder estatal, que para
a sua afirmação necessitava da determinação das divisões territoriais nacionais
vislumbrando o estabelecimento das regiões geográficas administrativas que possibilitariam
a otimização de suas ações. As atividades desse Conselho, durante muito tempo, foram
organizadas por pesquisadores estrangeiros. A admissão de profissionais brasileiros somente
foi possível após a instalação dos cursos de geografia junto às universidades nacionais e
que contribuíram para a ampliação dos conhecimentos dos tipos climáticos e para o
desenvolvimento de uma climatologia regional, baseada nos pressupostos da geografia
lablacheana e associada às monografias explicativas e interpretativas de Emmanuel De
Martonne, além da influência de Hartshorne na composição de uma geografia científica.
Os estudos climatológicos e meteorológicos eram desenvolvidos pelos profissionais
dessas instituições e os seus resultados, inclusive aqueles efetivados pelos meteorologistas
do Instituto de Meteorologia, eram divulgados por meio dos canais de publicação da
geografia, ou seja, a Revista Brasileira de Geografia, publicada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística / IBGE e os congressos e anais dos encontros promovidos pela
Associação dos Geógrafos Brasileiros / AGB.
Nesse período, merecem destaque os trabalhos de climatologia geográfica de Ary
França, que se graduou em Geografia na França e desenvolveu a primeira tese de
doutorado dedicada aos temas da climatologia geográfica. Em seus trabalhos discutiu as
idéias de Max Sorre e de Jean Tricart, referências trazidas daquele país e que possibilitou
inovar os estudos de climatologia, trazendo importantes contribuições metodológicas,

251
ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

principalmente, quando se referia ao conceito de clima. Para ele deveríamos “[...] adotar
a definição de ambiência atmosférica, no sentido de incorporar a noção de ocorrência de
tipos de tempo na sua sucessão habitual”. (SANT’ANNA NETO, 2001, p. 130)
Sob os auspícios sorreanos, Ary França salientava uma análise climática
comprometida com a geografia, preocupando-se com as camadas de ar que recobrem
imediatamente a superfície de um lugar, enquanto que a meteorologia nos subsidiaria com
o estudo das massas de ar pautado na Física moderna. Interpretações teóricas que
impulsionaram outros rumos para a climatologia brasileira.
Enquanto que os trabalhos de cunho meteorológico se aprofundavam nos postulados
da termodinâmica e nas inovações tecnológicas (balões, satélites meteorológicos e, bem
mais tarde, os super-computadores) direcionando-se para o aperfeiçoamento das previsões
do tempo, culminando com a implantação de cursos de graduação em Meteorologia e do
Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), junto ao Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (INPE).
A procura pela origem dos processos atmosféricos já vinha sendo realizada no
Brasil, a partir dos trabalhos de Serra e Ratisbonna e de França. As contribuições desses
autores, associadas às perspectivas teóricas e metodológicas da análise sistêmica e as
inovações provocadas pela absorção do conceito de clima de Sorre, motivaram Monteiro
no estabelecimento de estudos sobre a organização climática do Brasil. Inicialmente, ele
procurou enaltecer a estratégia descritiva, desenvolvida por Emmanuel De Martonne
que aglutinava grandes grupos climáticos por afinidades de regimes (comportamento
qualitativo), correlacionando-a com a classificação genética dos climas de Strahler, baseada
na dinâmica das massas de ar.
O enfoque dinâmico desenvolvido a partir das teorias da circulação atmosférica e
da perspectiva sorreana, permitiu uma explicação da gênese do desencadeamento rítmico
dos estados do tempo, configurando-se Monteiro como o grande incentivador brasileiro
para os estudos de climatologia sob o referido conceito, salientando a importância da
consideração das noções de sucessão habitual dos tipos de tempo e de movimento para a
configuração climática dos lugares, justificando o caráter dinâmico do clima através do
desvendamento do seu ritmo.
Para Monteiro (2001, p. 148) o ritmo compreende uma ordem do movimento que
“[...] Pode ser tido também como uma alteração de elementos contrastantes. Associando
movimento e contraste, aparece a condição sine qua non do ritmo que é a periodicidade,
uma configuração de movimentos não recorrentes”; filiando a origem etimológica desse
termo aos pressupostos filosóficos de Platão.
O referido autor destaca que o conceito de ritmo, enquanto o encadeamento
sucessivo de tipos de tempo (meteorológico) sobre um determinado lugar, constitui o
paradigma que propicia uma análise geográfica do clima. O ritmo é a estratégia espacial
e temporal que Monteiro propõe para entender o clima no cotidiano da sociedade,
esclarecendo que: “Quando enunciamos que o clima de um lugar (espaço) é a resultante

252
Terra Livre - n. 29 (2): 247-264, 2007

do comportamento dinâmico mais habitual ou recorrente da atmosfera cronologicamente


desenvolvido (tempo) sobre aquele dado lugar, teremos o problema de definir que lugar é
este”. (MONTEIRO, 1999, p. 10)
Assim, é salientada a necessidade de se constituírem análises climáticas
considerando a dinâmica da atmosfera e a sua espacialidade (MOREIRA, 2004, p. 193),
ou seja, ao estudo do clima de um lugar, onde é produzida uma relação espacial específica
entre a radiação solar incidente, a atmosfera e os atributos sociais e geográficos.
Em seu artigo “Da necessidade de um caráter genético à classificação climática
(algumas considerações metodológicas a propósito do estudo do Brasil Meridional)”,
publicado na Revista Geográfica em 1962, defende a necessidade da adoção da abordagem
dinâmica da meteorologia que introduz a análise do complexo atmosférico por meio das
massas de ar e seus conflitos frontológicos e a discussão do encadeamento das diferentes
escalas do clima, esclarecendo que “[...] não poderemos alcançar o clima local sem o
prévio estudo da circulação atmosférica regional a qual, sob a influência dos fatores
geográficos dentro da região, vai possibilitar a definição dos climas locais” (MONTEIRO,
1962, p. 30) e a conseqüente identificação do ritmo climático.
Para o reconhecimento do ritmo ressalta a utilização de dados climáticos diários e
das seqüências das cartas sinóticas do tempo numa análise associativa e qualitativa,
permitindo também a análise quantitativa por meio do cálculo da freqüência da atuação
das massas de ar e a obtenção de índices percentuais, rompendo com a rigidez abstrata
dos valores médios comumente empregados nos estudos da meteorologia analítica.
Assim, a análise climática deve atentar para a disponibilidade das séries de dados,
podendo ser menor que os 30 anos de registros exigidos pela meteorologia analítica, mas
que sejam de fontes confiáveis e permitam representar as variações anuais e mensais
dos elementos climáticos, possibilitando a verificação de episódios mensais recorrentes
em vários anos e a definição do seu regime. Ou seja, são identificados anos representativos
do padrão habitual e dos extremos.
A verificação do regime climático ou dos anos padrão conduz para a procura do
ritmo temporal e de sua distribuição espacial que só é atingida na decomposição diária
dos estados atmosféricos, para a qual Monteiro propôs a confecção do gráfico de análise
rítmica, que consiste na representação simultânea dos elementos climáticos básicos e dos
mecanismos da circulação secundária, ensejando a definição dos tipos de tempo.
Na elaboração desse gráfico dois elementos são fundamentais: 1- a radiação solar
que incide sobre a atmosfera e responde pelo estabelecimento e variações dos componentes
climáticos verticais em função da latitude e 2- a circulação atmosférica regional que
reflete as componentes horizontais do clima.
Há uma ênfase na escala regional justificada na dinâmica da circulação atmosférica
que sofre a influência dos fatores geográficos e expressam diferentes climas regionais,
analisados qualitativamente. Por meio da análise rítmica tais climas são decompostos,
revelando um refinamento escalar (os climas locais) que faculta a análise quantitativa

253
ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

(graus de aquecimento, de resfriamento, totais pluviométricos, etc.) estabelecida conforme


os objetivos que o pesquisador pretende atingir.
Dentre as várias aplicações de sua metodologia para a concretização de estudos
com temáticas e objetivos variados, Monteiro se propôs a investigar o clima urbano (clima
local, considerado um sistema singular, produto da co-participação da natureza e do homem),
culminando na publicação, em 1976, de sua tese de livre docência intitulada “Teoria e
Clima Urbano”, em que discute, dentre muitos conceitos, aqueles de sistema, organismo,
organização e teorias advindas da Biologia e da Termodinâmica, concluindo com uma
proposta metodológica para o estudo do Sistema Clima Urbano.
No que tange aos aspectos teóricos que subsidiam Monteiro, está a Teoria Geral
de Sistemas, desenvolvida por Berthalanffy, vista com poder explicativo para os vários
campos do saber, desde a natureza até a sociedade, pois a análise científica é possibilitada
tanto pelo método indutivo quanto pelo dedutivo. Segundo Monteiro (1973, p. 5) essa
teoria se configura em um instrumento formal da lógica de análise do clima. Esse passa
a ser considerado um todo, um verdadeiro sistema dinâmico, aberto, cujo caráter está
além da simples adição de seus elementos e introduz “[...] novas propriedades intensivas,
tais como tempo – tipos de tempo, cadeias de tipos de tempo – ritmo [...]”.
Essa teoria originada na Biologia adentrou a Geografia por meio dos conceitos de
organismo e de ecossistema, realçando os aspectos da organização, da estrutura e dinâmica
funcional dos sistemas, que Monteiro aplicou ao entendimento das escalas do clima.
Para Monteiro a organização climática está vinculada ao conceito de hierarquia,
não como idéia de grandeza ou de distribuição espacial, mas sim a uma árvore viva, um
multinivelado, estratificado e esgalhado padrão de organização, conforme escreveu
Koestler (apud MONTEIRO, 1976). Essa proposição escalar do clima, pautado na idéia
de árvore, é defendida por Monteiro pelo fato de ser considerada mais dinâmica, revela
as partes e suas ligações (hólons) e, principalmente, admite a noção de crescimento e
evolução do sistema.
Monteiro utilizou, ainda, o termo hólon, estabelecido por Koestler (apud
MONTEIRO, 1976, p. 112), para a análise climática. Conforme esse último autor, hólon
designa “[...] formas intermediárias de organização que participam tanto das propriedades
autônomas do todo quanto das propriedades dependentes das partes”. Ou seja, as noções
de todo e de partes são superpostas e revelando-se estruturas intermediárias, os nós da
árvore, os hólons, que contém as partes e estão contidos no todo.
Numa transposição dessas idéias de Koestler para o estudo do clima urbano,
Monteiro (1976, p. 115) escreveu: “Os elos de ligação e afinidades espaciais estariam
para ser encontrados, portanto, no ritmo, no modo de variação e no quantum expresso
pelos elementos discretos em que se pode reduzir o tempo ou condições atmosféricas”;
ligações essas que devem ser investigadas no entrelaçamento dos planos verticais e
horizontais em que o fenômeno climático ocorre.
Monteiro procurou evidenciar a possibilidade de caracterização do clima dos lugares

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Terra Livre - n. 29 (2): 247-264, 2007

através de sua manifestação sobre as atividades humanas e sobre a organização espacial,


indo de encontro com a idéia de clima preconizada por Leslie Curry (1952), considerada
enquanto abstração que se realiza e se manifesta através das atividades econômicas
estabelecidas pela sociedade.
Para Monteiro, a consideração do conceito de clima como uma abstração teórica
se configura em uma possibilidade de generalização estabelecida pela razão humana,
permitindo a elaboração de classificações climáticas que podem resultar da aplicação de
cálculos matemáticos, da consideração de parâmetros qualitativos ou da associação de
ambos; salienta ainda, a importância das noções de sucessão habitual dos tipos de tempo
e de movimento para a configuração climática dos lugares, justificando o caráter dinâmico
do clima através do desvendamento do seu ritmo em conjunto com as possibilidades
apresentadas pelos novos métodos advindos da Física moderna.
Monteiro (1991 e 2001) contribui com a climatologia geográfica brasileira procurando
esclarecer filosoficamente as bases da consideração da atmosfera como um fluido
extremamente dinâmico que, em cada momento cronológico e num determinado espaço
possui uma configuração correlativa de seus elementos, ou seja, discute a possibilidade
de existência de uma pulsação essencial que desencadeia o ritmo dos tipos de tempo.
Também incorpora em sua análise rítmica as noções de movimento e de equilíbrio como
estado provável da atmosfera preconizadas pelos estudos da termodinâmica, interpretando
a sucessão dos tipos de tempo como a possibilidade de permanência ou recorrência dos
sistemas atmosféricos sobre os lugares e permitindo a verificação da ocorrência de uma
provável ordenação.
Monteiro anteviu o caráter relacional da análise geográfica do fato climático a
partir do conceito de clima proposto por Sorre, destacando que o clima é o produto do
encadeamento espacial do ritmo climático e quando sua análise se dá isolada de sua
espacialidade não tem significado geográfico.
Concordamos com a perspectiva acenada por Monteiro para o estudo geográfico
do clima, a partir da qual é constatada a especificidade da climatologia geográfica que se
dedica ao estudo do clima de um lugar, ou seja, quais as implicações espaciais do ritmo
atmosférico; distinguindo-se da abordagem meteorológica do clima.
Essa abordagem da climatologia subsidia a Geografia que, em nossa concepção,
procura compreender como as sociedades se organizam em suas relações com o espaço,
contribuindo com o desvendamento da lógica espacial da realidade enquanto produto da
relação sociedade / natureza, pressupondo uma análise minuciosa dos variados fatores
que entram nessa relação, sejam eles materiais ou não materiais.
Nada na realidade localiza-se aleatoriamente, havendo uma razão para as coisas
estarem onde elas estão e a Geografia tem o papel de discutir essa espacialidade, na qual
o fator climático está inserido. Para uma análise geográfica do clima, entende-se que não
é suficiente a indicação de onde e por que é mais quente, mais frio, mais úmido ou mais
seco, mas faz-se necessário o estudo de quais as implicações do clima sobre a ordenação

255
ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

espacial da sociedade.
Feitas essas considerações acerca do estudo geográfico do clima no Brasil, discutido
a partir das proposições metodológicas de Monteiro para uma climatologia geográfica,
parte-se para a investigação de como essa perspectiva foi incorporada pelas análises
climáticas efetivadas pelos autores de teses e dissertações defendidas junto a alguns
programas brasileiros de pós-graduação em Geografia, no período de 1944 a 2003.

A climatologia geográfica brasileira analisada a partir de teses e dissertações


defendidas junto a alguns programas de pós-graduação em geografia

A análise das teses e dissertações defendidas nos programas brasileiros de pós-


graduação em geografia é justificada pelo fato das universidades, no Brasil, congregarem
a maior parte dos profissionais que contribuem para a disseminação e expansão do
conhecimento acerca da climatologia geográfica no país e porque tais trabalhos apresentam
pormenorizadamente as metodologias e as variadas formas de abordar o fenômeno
climático, além da disponibilidade nas bibliotecas facilitar o acesso a esse acervo de
dados.
Na consulta dos acervos das respectivas bibliotecas, in loco ou por meio da rede
mundial de computadores (WEB), foram identificados 150 trabalhos que tratam de temas
relativos à climatologia geográfica, defendidos no período de 1944 a 2003 junto aos
programas de pós-graduação em Geografia de seis universidades brasileiras. A análise
abordou 103 títulos, compostos por 65% de dissertações e 35% de teses, subsidiada no
estudo elaborado por Gamboa (1987).
A grande maioria dos trabalhos analisados (68%) foi produzida no programa de
pós-graduação em geografia física da Universidade de São Paulo (USP). Os trabalhos
elaborados no programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual
Paulista (UNESP), das unidades de Presidente Prudente e de Rio Claro, compõem 22%
do universo analisado.
Os demais trabalhos analisados foram defendidos nos programas de pós-graduação
em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (4%); da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (3%); da Universidade Estadual de Maringá (2%) e da Universidade
Federal do Paraná (1%).
Na análise detalhada dessa produção bibliográfica foi verificado que os autores
têm como uma de suas preocupações o esclarecimento dos aspectos topológicos, pois as
teses e dissertações são iniciadas com a apresentação de mapas com as respectivas
coordenadas geográficas que delimitam a área de abrangência da investigação climática.
Após a localização da área de estudo são apresentadas as características geográficas
que individualizam os espaços estudados, é destacada a constituição dos compartimentos
geomorfológicos com suas variações hipsométricas, declividades, formas do relevo, sua
composição geológica, pedológica, as características da drenagem, a disposição das

256
Terra Livre - n. 29 (2): 247-264, 2007

formações vegetais naturais e a dinâmica atmosférica secundária é caracterizada a partir


de revisão bibliográfica.
Por meio dos dados dos censos do IBGE e de mapeamentos que utilizam fotografias
aéreas e imagens de satélites são expostas as formas de ocupação, os processos de
produção do uso do solo, as atividades econômicas desenvolvidas, a caracterização da
evolução da população e a densidade demográfica das áreas pesquisadas.
Posteriormente passa-se para o detalhamento do clima dos lugares eleitos para a
investigação subsidiando-se na definição sorreana de clima, ou seja, “[...] a série de
estados atmosféricos acima de um lugar em sua sucessão habitual” (SORRE apud
MEGALE, 1984, p. 31 – 32). A consideração dos estados atmosféricos desencadeados
sobre os diversos lugares justifica a caracterização topológica, pois essa representa os
fatores geográficos que interferem na configuração dos climas regionais e locais, enquanto
que as manifestações físicas das propriedades internas da atmosfera, isto é, seus elementos,
são desdobrados em uma análise climática considerando a atmosfera como um sistema
aberto.
Na busca pelo entendimento da organização e funcionamento desse sistema, são
estudadas as manifestações temporais do clima coordenadas com os mecanismos
dinâmicos da circulação atmosférica que se expressam no espaço pelo comportamento
dos seus elementos. Esses elementos representam a quantidade de energia que adentra
o sistema intimamente relacionado com os fatores geográficos que determinam as variações
locais, as transmissões, o armazenamento e o pulsar dessa energia, numa análise que
incorpora o conceito de ritmo climático.
As teses e dissertações analisadas, subsidiadas no conceito de clima de Sorre, têm
o ritmo como a essência da análise geográfica do clima e sua compreensão, segundo
Monteiro (apud AOUAD,1978, p. 2), pressupõe uma metodologia associativa entre os
atributos qualitativos e quantitativos do referido fenômeno. O autor citado propõe que tal
procedimento seja realizado através da análise rítmica, sintetizando que a definição do
ritmo climático e a expressão quantitativa dos elementos se complementam, formando
um importante binômio. E, ainda, salienta que a organização dos fatos climáticos não
pode estar dissociada do seu aspecto causal e que a idéia de coerência interna é essencial
à organização dos espaços climáticos. Essa coerência é dada pelo ritmo e se revela na
solidariedade entre os atributos e no dinamismo do espaço-tempo definido num campo-
presente (segmento temporal) expresso em momentos que, embora extremamente
mutantes, guardem uma lógica rítmica que se projeta sobre o espaço físico e estrutura a
unidade de organização climática.
A partir desses preceitos foi verificado que as dissertações e teses partem da
interpretação do comportamento quantitativo dos elementos climáticos associados às
explicações qualitativas dos dados das cartas sinóticas de superfície, procurando evidenciar
a gênese, a deflagração e a trajetória dos sistemas atmosféricos que desencadeiam tipos
de tempo sobre os lugares, incorporando os procedimentos estatísticos com o objetivo de

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ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

estabelecer um status técnico-científico às suas proposições sobre os climas brasileiros.


O processo de elaboração dessa ordenação metodológica permite a concepção do
clima como uma abstração teórica que incorpora totalidades espaço – temporais
indissociáveis, ou seja, seus elementos e fatores. Todavia, o pensar exige decomposições
e os elementos climáticos são desmembrados pelas pesquisas analisadas. A chuva, a
temperatura do ar e do solo, a umidade relativa do ar, a evaporação, a radiação solar, a
insolação, a direção e a velocidade dos ventos e a circulação atmosférica são analisadas
separadamente.
No processo de análise das teses e dissertações foi percebido que elas foram
efetivadas segundo recortes temáticos semelhantes e conforme uma metodologia que
assegura sua independência temática, agrupadas conforme o Quadro que segue.

A classificação temática apresentada foi composta a partir das palavras-chave


que foram identificadas no decorrer da leitura dos trabalhos. Contudo, ressalta-se que
esse agrupamento comporta uma generalização e que poderia ter sido feita a partir de
outros parâmetros classificatórios (escalas, temas de enfoque meteorológico ou geográfico),
mas compreende-se que a síntese temática exposta congrega os principais temas discutidos
no interior da climatologia geográfica brasileira.
Quando confrontamos a presente classificação temática com a análise elaborada
por Fialho e Azevedo (2006), que identificaram que a produção científica dos estudos
climatológicos divulgados nos Simpósio Brasileiros de Climatologia geográfica no período
de 1992 a 2004 se concentra nas pesquisas dos seguintes temas: campo térmico, qualidade
do ar, recursos hídricos, secas, impacto pluvial, estudos climáticos regionais e locais,
dinâmica da atmosfera, clima e agricultura, clima e ensino e outros (neve, vento,
desertificação e saúde), verifica-se que tais temas convergem para temáticas semelhantes
à classificação proposta a partir da análise das teses e dissertações.
Diante do exposto e da abrangência temática exposta no Quadro 1, evidencia-se
que as teses e dissertações trabalham, preferencialmente, a temática do clima urbano.
Essa temática ganhou notoriedade após a publicação da tese de livre docência de Monteiro,

258
Terra Livre - n. 29 (2): 247-264, 2007

em 1976 e que motivou o desenvolvimento de uma escola brasileira de climatologia urbana,


conforme Mendonça (2003, p. 8), no decorrer dos anos da década de 1990.
O espaço urbano abordado pode comportar portes variados (metrópoles, regiões
metropolitanas, cidades grandes, médias ou pequenas) e são estudados conforme os três
canais de percepção humana: canal I – Conforto Térmico, canal II – Qualidade do Ar e
canal III – Impacto Meteórico, propostos por Monteiro (1976, p. 100).
Geralmente, esses trabalhos apresentam o histórico de formação espacial e a
expansão das áreas urbanas pesquisadas, mapeando os diferentes momentos de
constituição do uso do solo urbano, a rugosidade urbana, a composição dos materiais das
edificações, a densidade de construções e da população, dados sobre o tráfego de veículos
e pessoas, dentre outras informações que caracterizam a dinâmica das ações humanas
nesses espaços.
Posteriormente, os dados climáticos são tratados estatisticamente visando o
estabelecimento de Medidas de Tendência Central e Dispersão e dos cálculos de
Regressão e Correlação Linear Simples, além da aplicação das técnicas cartográficas de
isopletas, do painel temporo-espacial, de diagramas e cartogramas e do gráfico de análise
rítmica para a identificação de ilhas de calor, de frescor, ilhas úmidas, secas, o efeito
obstáculo das construções sobre a circulação dos ventos, inversões térmicas, a emissão
e concentração de núcleos de condensação no interior das cidades, sempre procurando
correlacionar o ritmo climático com as especificidades do uso do solo urbano.
Também procuram analisar dados dos componentes químicos da atmosfera (dióxido
de enxofre, dióxido de nitrogênio, ozônio, etc.), de material particulado, dos índices de
acidez da chuva considerando seu potencial hidrogênico (pH), calculam suas médias
diárias e mensais e as correlacionam com as informações meteorológicas e sinóticas
para a explicação dos períodos de concentração extrema dos componentes atmosféricos
poluentes.
Ao realizar essas pesquisas é pretendido, ainda, a constatação dos malefícios e os
incômodos provocados pela poluição do ar e da água da chuva, a identificação das fontes
poluidoras, a ocorrência de doenças, o conforto ambiental e a satisfação dos habitantes
em residir nas cidades por meio da aplicação de entrevistas, bem como a explicação
sobre os fatores que desencadeiam a ocorrência de episódios climáticos extremos.
As análises das informações climáticas sobre a atmosfera das cidades permitem,
ainda, comparações com aquelas provindas das áreas rurais circunvizinhas consentindo
na avaliação e verificação das tendências climáticas particulares das áreas urbanas, dando
indícios da diminuição da disponibilidade de umidade relativa do ar, da correlação positiva
entre o aumento populacional e a temperatura do ar, bem como a alta variabilidade anual
da precipitação pluvial sobre as superfícies densamente edificadas.
Desse modo, os pesquisadores investigam e definem os parâmetros que interferem
no conforto da sociedade, buscando uma melhor convivência com as especificidades dos
climas das cidades e estabelecendo recomendações para o seu planejamento e

259
ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

desenvolvimento.
Alguns trabalhos que valorizam a coleta dos dados específicos para o estudo do
clima urbano sobressaem pelo fato de discutirem o processo de formação das cidades e
a constituição de espaços desiguais a partir da perspectiva histórico-dialética, evidenciando
a apropriação desigual dos espaços pela sociedade.
A temática da variabilidade pluvial é discutida por 28% das teses e dissertações,
procurando explicar os aspectos geográficos de diferentes espaços brasileiros envolvidos
na mesma. São utilizados dados meteorológicos coletados em estações para o cálculo
dos totais anuais e das normais climatológicas das séries temporais. Procuram estudar o
clima como a totalidade dos ritmos atmosféricos para uma determinada relação espaço-
tempo, identificado pelo dinamismo dos sistemas atmosféricos inter-relacionados aos fatores
da superfície terrestre vislumbrando a definição da tipologia pluvial e sua interferência na
produção e no rendimento dos cultivos agrícolas, incorporando a gênese dos episódios
pluviais importantes para o monitoramento e desenvolvimento das safras.
A realização desses estudos orienta-se na consideração do conceito de variabilidade
definido por Sorre (1951 apud SAKAMOTO, 2001, p. 18) como sendo a amplitude dos
desvios entre valores sucessivos de um elemento do clima, ou seja, uma medida quantitativa
do ritmo que expressa o retorno mais ou menos regular dos mesmos estados, e do conceito
adotado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), que estabelece a variabilidade
climática como a maneira pela qual os parâmetros climáticos variam no interior de um
determinado período de registro (apud SANT’ANNA NETO, 1995, p. 34 – 35).
A investigação das flutuações pluviométricas interanuais é realizada a partir da
aplicação do método dos anos padrão desenvolvido por Monteiro (1971), complementando
a análise com a estatística descritiva citada anteriormente. Geralmente, os resultados
desses cálculos estatísticos são espacializados por meio do emprego das técnicas
cartográficas supracitadas.
No exame detalhado dessas pesquisas foi verificado que, aos poucos, ocorre uma
atualização dos recursos estatísticos e cartográficos mediante a utilização da informática
e de novas técnicas estatísticas, tais como: percentual chuvoso, índice de Gibbs Martin,
índice de sazonalidade de Markham e índice de Walsh e Lawler. (CHRISTOFOLETTI,
1992)
Depois de investigadas as causas e a tipologia da variabilidade pluviométrica de
regiões do território nacional, de estados, de municípios, de cidades, de bacias hidrográficas,
dentre outros recortes escalares, procura-se entender como essa variabilidade influencia
as atividades humanas (o consumo de água, o desempenho das safras agrícolas, do
comércio, do consumo de energia elétrica, a extração de sal marinho, a vazão das bacias
hidrográficas, etc).
A maioria dos trabalhos que tratam dessa temática procura analisar as relações
solo–planta–atmosfera, havendo um pequeno número de estudos que se dedicam à
explicação sobre os processos históricos, econômicos e políticos envolvidos na inserção

260
Terra Livre - n. 29 (2): 247-264, 2007

de determinados cultivos agrícolas em algumas regiões do país, considerando os aspectos


da modernização da agricultura nacional e do modo de produção.
O terceiro recorte temático investiga o papel da dinâmica climática na análise
ambiental e o reconhecimento de possíveis modificações nos padrões climáticos em função
da ocupação dos diferentes espaços pelas atividades humanas, subsidiando-se na
concepção de que o clima, correlacionado com os demais componentes naturais, ajuda a
definir a estrutura do espaço ambiente, bem como sua funcionalidade e organicidade.
Esclarecem ainda que as variações do ritmo climático local decorrem da dinâmica
atmosférica global e regional, detalhando a análise de alguns episódios geradores de
impactos ambientais que interferem no desenvolvimento agrícola, na deflagração de
movimentos de massa, no escoamento superficial, na geração de erosões. Também são
buscadas explicações para a origem de eventos pluviais extremos que permitem a
conferência das hipóteses de mudanças climáticas, dos processos do estabelecimento da
desertificação em variadas áreas do território brasileiro, além de investigações sobre a
correlação das condições climáticas nas escalas administrativas municipais com a incidência
de algumas doenças.
Os trabalhos que enfocam a temática ambiental também procuram correlacionar o
ritmo climático com o mapeamento das diferentes unidades da paisagem, incorporando
informações da média e alta atmosfera produzidas pela meteorologia através de avançados
recursos técnicos e metodológicos. A anexação dessas informações enriquece as análises
que buscam entender a organização espacial, pois trazem novas diretrizes para a elucidação
do comprometimento da dinâmica atmosférica na composição dos diferentes espaços.
Os trabalhos desenvolvidos sob o tema da modelagem e estatística em climatologia
geográfica visam à confecção e proposição de modelos matemáticos e computacionais
que auxiliem e agilizem os cálculos estatísticos aplicados à climatologia geográfica, indicando
como os sistemas geográficos de informações podem ser úteis nessas análises, além de
se dedicarem à elaboração de classificações climáticas.
Destaca-se que 5% das teses e dissertações analisadas dedicam-se às discussões
teóricas da climatologia geográfica e à verificação de mudanças e avanços metodológicos
nos diferentes momentos históricos do processo de construção desse ramo do saber. São
procedidas revisões bibliográficas que motivam comparações de trabalhos que abordam
o clima urbano, as diferentes possibilidades para a elaboração das classificações climáticas,
as concepções do conceito de clima e das escalas climáticas, as contribuições da cartografia
e as diversas possibilidades do ensino desse conhecimento em seus diferentes níveis de
aprendizagem.

Considerações Finais

A análise das principais características de ordenação metodológica das dissertações


e teses que constituíram o universo analisado e do processo histórico de construção

261
ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

desse saber no Brasil permite verificar que o estudo geográfico do clima foi edificado a
partir do método hipotético-dedutivo, que lhe proporcionou segurança e status de
conhecimento técnico-científico passível de ser aplicado na resolução dos mais variados
problemas enfrentados pela sociedade, além de possibilitar o planejamento de suas ações
futuras no espaço urbano e agrícola, dentre outras temáticas abordadas pelas mesmas.
O estudo dessa produção bibliográfica reflete o processo de fragmentação do
conhecimento científico que atingiu seu objetivo de desvendar a realidade a partir de suas
diversas nuances, nas quais o clima também tem seu destaque e é analisado de forma
dissociada, desmembrado na caracterização (quantitativa e qualitativa) de seus fatores e
elementos que, depois de entendidos seus mecanismos particulares é que se processa a
síntese e, consequentemente, sua explicação.
O universo analisado segue como pressuposto metodológico a associação do método
estatístico com a análise da dinâmica da circulação atmosférica secundária, facultando o
estabelecimento da gênese da dinâmica climática dos lugares estudados.
Destaca-se que os trabalhos analisados têm a constante preocupação de apresentar
a caracterização topológica, ou seja, a localização da área de estudo e as respectivas
características geográficas (compartimentação geomorfológica, hipsometria, declividades,
formas do relevo, composição geológica, pedológica, drenagem, vegetação, usos do solo,
densidade de construções), relacionando-as com o ritmo climático diário, semanal,
quinzenal, mensal, sazonal e anual dos recortes territoriais elencados ou, até mesmo,
desenvolvendo coletas específicas de dados que expliquem tal correlação.
Na elaboração das teses e dissertações, de forma geral, permanece a discussão
sobre o ritmo climático, a ação antrópica (ação biológica do homem) e os impactos
ambientais procurando esclarecer as relações de causa e efeito do clima na superfície
terrestre e defendendo a necessidade de preservação das condições climáticas para a
sobrevivência humana.
A análise das ações humanas que produzem o sistema espacial a partir da idéia de
ação antrópica promove um entendimento de que as desigualdades existentes na relação
homem – meio e na organização espacial são naturais, derivadas das próprias condições
naturais que se organizam em determinados lugares para o favorecimento da agricultura,
da indústria, do turismo, dentre outras atividades econômicas e que, em outros locais, tais
condições não propiciam o desenvolvimento dessas atividades, que devem ser destinados
para outros fins.
Diante do exposto, conclui-se que a grande maioria do universo analisado (80%)
direciona suas análises, muito especificamente, para a dinâmica da atmosfera, não
enfocando a perspectiva do homem enquanto produtor dos territórios, de conhecimentos
e da cultura que dão sentido para a sua existência, além de considerar a apresentação
minuciosa e seqüencial das condições geográficas das áreas estudadas e sua respectiva
localização enquanto sinônimo de análise geográfica do clima.
Um percentual de 20% dos trabalhos enquadrados nas temáticas de clima urbano,

262
Terra Livre - n. 29 (2): 247-264, 2007

da variabilidade pluvial e da análise ambiental e da paisagem merece destaque, pois tais


pesquisas procuraram esclarecer o desencadeamento rítmico do clima conjugado às
condições sócio-econômicas, discutindo como tal ritmo interfere na produção de distintas
e desiguais espacialidades.
Diante de tais dados, verifica-se que grande parte das teses e dissertações analisadas
edifica sua metodologia a partir do método monteriano de análise do ritmo climático,
finalizando suas análises juntamente com a compreensão da variabilidade dos elementos
atmosféricos ou da dinâmica atmosférica. O que não é um trabalho fácil, considerando a
escassez de estações e de dados meteorológicos.
Contudo, ressalta-se que apenas o percentual citado, de 20% dos trabalhos
analisados, procura implementar a metodologia monteriana em sua íntegra, ou seja, são
providenciadas análises do ritmo climático dos lugares numa associação com a
espacialização da dinâmica das atividades socioeconômicas, tais como a produção de sal
marinho, o consumo de água e de energia elétrica em áreas urbanas, o desempenho das
safras agrícolas, as atividades comerciais, dentre outras.
O trabalho intelectual desenvolvido pelo universo analisado demonstra uma carência
de discussões sobre as questões da epistemologia da geografia, sobre suas categorias,
conceitos, teorias e dos seus paradigmas, o que dificulta a proposição de outras formas
de analisar o fenômeno climático, ou até mesmo, a compreensão do clima enquanto um
dos elementos constituintes do desvendamento da lógica espacial; pois quando o clima é
analisado isolado de sua espacialidade não tem significado geográfico.
Assim, entende-se que o conceito de clima proposto por Sorre e a metodologia da
análise rítmica de Monteiro ainda apresentam um caráter inovador que subsidia o estudo
geográfico do clima, pois exaltam a espacialidade específica produzida pela incidência da
radiação solar, pela atmosfera e pelos demais fatores geográficos, bem como aqueles de
ordem sócio-econômica. Esse referencial conceitual não se caracteriza como insuficiente
para as análises empreendidas pela climatologia geográfica brasileira, mas que, atualmente,
as explicações para os novos arranjos territoriais requerem uma leitura mais atenta e
detalhada dos pensadores da geografia que contribuíram e contribuem para o entendimento
da relação entre a sociedade e a natureza como produtora das diferentes espacialidades.
A partir dessa breve análise, espera-se ter contribuído para que o olhar e as ações dos
geógrafos, interessados no estudo do clima, se voltem para a compreensão do fenômeno
climático como um dos fatores da organização territorial da sociedade e para que se
possa discutir e investigar o papel desempenhado pelo referido fenômeno no entendimento
dos novos arranjos espaciais, produzidos por uma sociedade extremamente complexa e
desigual, além de colaborar com a discussão de que o homem é o produtor dessa sociedade,
das diferentes concepções de mundo, de ciência, de territórios, de natureza e de clima.

Referências

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263
ELY, D. F. A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

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Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente.

Recebido para publicação dia 30 Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 14 de Fevereiro 2008
264
Resumo: A geografia brasileira tem desconsiderado a dinâmica territorial
POR UMA GEOGRAFIA anterior ao século XVI. Por quê? Durante a investigação desse passado
duas constatações se apresentaram: há limitações nas abordagens atuais
DO PASSADO e invisibilidades no discurso acadêmico, reproduzidas por ideários
DISTANTE - MARCAS modernos e seus corolários na ciência. Do esforço de superar essas
PRETÉITAS NA limitações resultou uma proposta de abordagem do passado anterior ao
século XVI, argumentos iniciais a uma geografia do passado distante,
PAISAGEM COMO que busca nas informações arqueológicas e paleoambientais suas fontes,
MEMÓRIA SOCIAL DAS sob o viés interpretativo da escola arqueológica pós-processual,
SOCIEDADES etnogeografia e história ambiental. Parte da trilogia física, biológica e
social da paisagem para investigar tanto a dinâmica ambiental quanto
AUTÓCTONES social, entendendo as marcas e a cultura material na paisagem como
memória sócioespacial. Na tentativa de realizar análises sócioambientais
e aproximar diferentes disciplinas, incorpora princípios de complexidade
BY A GEOGRAPHY OF THE PAST na estruturação de um método complexo que seja capaz de lidar com
DISTANT - PRETERITS’S MARKS IN sistemas de objetos e ações sócioambientais no espaço-tempo.
THE LANDSCAPE AS AUTOCHTHONOUS Palavras-chave: história ambiental, etnogeografia, método,
SOCIETIES’S SPACE MEMORY complexidade, arqueologia social.
PARA UNA GEOGRAFÍA DEL PASADO Abstract: Brazilian geography has been disregarding the territorial
DISTANTE - MARCAS DEL PASADO EN
EL PAISAJE COMO MEMORIA
dynamics before 16th century. Why? During investigation of the past
ESPACIAL DE LAS SOCIEDADES we verified two problems. There are limitations in the current approaches
AUTOCTONOS and invisibilities in the academic language, reproduced by modern ideases
and their corollaries in the science. Of the effort of overcoming these
limitations resulted an proposal to approach the past before 16th century,
initial arguments to a geography of the past distant, that have in the
archaeological information and paleoenvironmental their sources, under
interpretation of post-processual archaeological school, ethnogeography
and environmental history. With support in the physical, biological and
social trilogy of the landscape it investigates the environmental dynamics
SÉRGIO ALMEIDA and social, understanding marks and material culture in the landscape as
LOIOLA a space memory. To accomplish social and environmental analyses and
to integrate different disciplines this approach incorporates complexity
Universidade Federal de Goiás principles in the construction of a complex method, able to dialogue
with systems of objects and actions social and with the environment, in
UFG the space-time.
Key-words: environmental history, ethnogeography, method,
E-mail: sergioaloiola@gmail.com complexity, social archaeology.

Resumen: La geografía brasileña tiene desconsiderado la dinámica


territorial anterior al siglo XVI. ¿Por qué? En las investigaciones de este
pasado, dos aspectos surgieran: limitaciones en los enfoques actuales y
invisibilidades en el discurso académico, reproducido por idearios
modernos y sus corolarios en la ciencia. Del esfuerzo de superar estas
limitaciones resultó una propuesta de enfocar del pasado anterior al
siglo XVI, discusiones iniciales a una geografía del pasado distante, que
tiene en la información arqueológica y paleoambiental sus fuentes, con
interpretación de la escuela arqueológica pos-processual, del etnogeografia
y de la historia ambiental. Con soporte en la trilogía física, biológica y
social del paisaje investiga tanto la dinámica social cuanto ambiental, al
* Resultado de pesquisa. Programa
de Pesquisa e Pós-graduação em presuponer las marcas y cultura material en el paisaje como memoria
Geografia do Instituto de Estudos sócioespacial. En la tentativa de hacer análisis socioambiental y aproximar
Sócioambientais, IESA, UFG. diferentes disciplinas, incorpora principios de la complejidad en el
Orientação: Prof. Dr. Alecsandro construcción de un método complejo, capaz de ocuparse de los sistemas
José Prudêncio Ratts. Bolsa da de objetos y de las acciones socioambientales en el espacio-tiempo.
CAPES. Palabra-llave: historia ambiental, etnogeografia, método, complejidad,
arqueología social.

Terra Livre Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29 p. 265-292 Ago-Dez/2007


265
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

Introdução

Embora a geografia possua meios para investigar a diversidade sociocultural e o


ambiente atual e pretérito, no Brasil os geógrafos relutam em pesquisar a formação
sócio-espacial anterior ao século XVI. Por quê? Durante a investigação desse passado
três constatações de difícil superação se apresentaram: escassez de trabalhos dedicados
ao passado distante; limitações das abordagens e invisibilidades no discurso acadêmico.
Apesar desse esquecimento, a arqueologia tem demonstrado que a produção do
espaço de vivência é superior a onze mil anos AP1 na terra brasilis (Barbosa, 2002;
Loiola, 2004).2 As pesquisas sugerem a existência de mais de mil sociedades antes do
século XVI, cerca de cinco milhões de habitantes, centenas de línguas, tanto no centro
quanto no litoral, cuja complexidade contraria os relatos etnográficos do século XIX (Prous,
2006; Guidon, 2006; Wüst, 1990, 1983; Funari, 2002; Gonzalez, 1996)
Essas informações, a existência atual de centenas de etnias e os anseios desses
povos remetem à questão central nos estudos do passado distante: o que havia antes de
1500 na terra brasilis? Na tentativa de superar limitações a esse tema, foi iniciada a
construção de uma abordagem do passado anterior ao século XVI, denominada aqui de
geografia do passado distante, resultado da aproximação entre arqueologia, geografia
e história ambiental, sob uma perspectiva teórico-metodológica complexa.3
Mais que apresentar argumentos sob o ponto de vista das técnicas e da estruturação
do espaço, busca-se ampliar os significados em torno das civilizações autóctones e o
ambiente, bem como contribuição destes à formação sócioespacial brasileira, oferecendo
marcos históricos e teóricos para aprofundamentos posteriores.

Invisibilidade Sociocultural no Discurso Moderno e os Outros

“Os outros somos nós mesmos.” AUTOR DESCONHECIDO

Na atualidade o padrão científico impõe três limitações às pesquisas orientadas ao


passado: invisibilidade no discurso, determinismo histórico evolutivo e o esquecimento
das sociedades milenares. Esse padrão científico e o sistema produtivo hegemônico se
sustentam numa doutrina profunda e longeva, originado desde o resgate de valores
clássicos na Europa renascentista: o pensamento moderno (Hissa, 2002).
Se os sistemas produtivos e científicos se fundam na ideologia moderna, a superação
de abordagens na ciência devem, antes, verificar as bases de sustentação desse paradigma
(Unger, 1978). Entretanto, um paradigma extrapola as noções de Kuhn (2001). As

1
AP: Antes do Presente. O presente considerado é o ano de 1950.
2
Terra brasilis: Termo derivado do mito europeu do Paraíso Terrestre associado a tradições Celtas que,
segundo Souza (1999), englobava as ilhas Brasil. Conjunto de ilhas nos Açores, no Oceano Atlântico, cujo
nome se transformou várias vezes: Brasill, Brazil, Bracil, Braxil, etc., registrado nas cartas de navegação de
Pizigano desde 1367. Terra brasilis é usado aqui para momentos anteriores ao século XVI.
3
Referente aos princípios para um paradigma da complexidade de Edgard Morin.

266
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

realizações científicas universalmente aceitas, capazes de prover problemas e soluções


modelares durante um período, envolvem, além do nível lógico, o semântico e o ideológico
(Morin, 1991). Desta forma, almeja-se aqui evidenciar as limitações desse paradigma, já
que sua transcendência requer a crítica total ao ideário (Unger, 1978).
Apoiado na tríade: progresso, pátria e a objetividade de uma razão instrumental,
o pensamento moderno permeia a vida cotidiana. No entanto, o esgotamento de seus
valores o põe em crise. Há uma descrença na promessa de progresso, pois a tentativa de
alcançá-lo aprisionou a sociedade (Maldonado, 2001; Pelbart, 2000), e tem gerado
desequilíbrios sócioambientais (Capra, 2001; Gonçalves, 2002; Monteiro, 2003; Lorenz,
1986). Justamente o oposto dos corolários de igualdade, fraternidade e liberdade.
As sociedades tradicionais foram impedidas de participar das superestruturas
sóciopoliticas, e suas culturas desqualificadas ao desenvolvimento moderno (Little, 2002;
Gonçalves, 2002). A razão se colocou aos desígnios mercadológicos e estatais em
detrimento do bem estar social. Simultaneamente, o fragmentário método positivo-cartesiano
camufla a teia física, biológica e social do real, ao separar e isolar suas partes, e invisibilizam
a diversidade sócioambiental (Morin e Moigne, 2000).
Essa invisibilização ocorreu análoga ao que Said (1990) denominou de
orientalismo: um conjunto de idéias construídas por europeus, ora coagindo, ora
distorcendo imagens acerca dos povos árabes, operando no plano literário, do conhecimento
e no político a fim de dominá-los. De modo análogo a invisibilidade das sociedades
autóctones resultou da subestimação cultural, sobretudo durante a expansão mercantil
dos séculos XV e XVI, na busca por rotas e ampliação territorial. Nesse período, o
eurocentrismo não concebia cultura e civilização fora da “herança” greco-latina
renascentista (Lambert, 2001). Sob pretensões econômicas e religiosas inferiorizaram
sociedades fora do seu contexto.
Por vezes desconsideraram outros povos como derivações do gênero humano, a
fim de legitimar a exploração, sem ferir a moral cristã: “Sabe-se que, em 1556, quando já
se difundia pela Europa cristã a leyenda negra da colonização ibérica, decreta-se na
Espanha a proibição oficial do uso das palavras conquistas e conquistadores, que são
substituídas por descobrimentos e pobladores, isto é, colonos.” (Bosi, 2002, p.12). Termos
cujo uso corrente distorce a compreensão do que existia no século XVI: um continente
povoado por civilizações. Sem saberem suas designações, denominaram de América.4
Assim, reduziram a representação dos autóctones a selvagens, indígenas, bichos,
irracionais, atrasada, pobre, inferior, primitiva, rude, bárbara e preguiçosa (Apolinário,
2006; Ratts, 2003, 1996; Benavides, Guidon, 2005; 2001; Lambert, 2001; Moraes, 2000;
Wüst, 1999; Ribeiro, 1995), subestimando civilizações nos continentes americanos, africano,
asiático, Oceania e na própria Europa (Lambert, 2001). No processo de colonização, o
“Novo Mundo”, que de novo pouco havia, foi inserido no circuito de acumulação capitalista,
fornecendo matérias-primas, mercados e a mão-de-obra por meio da reinvenção de formas

4
Denominação dado a este continente em homenagem ao navegador italiano Américo Vespúcio.

267
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

de trabalho compulsórias violentas (Bosi, 2002).


Contudo, mais que força de trabalho, as sociedades locais eram dotadas de elevado
grau de conhecimento, cultura e organização social, e resistiram. Supondo no início um
encontro de culturas, como a visão do paraíso da carta de Caminha, este logo passaria
ao confronto, com o estabelecimento de uma fronteira entre civilizações.
Caminha elogiou às sociedades encontradas: “Eles porem andam muito bem curados
e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como aves ou animais monteses
que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que as mansas, porque os corpos seus são
tão limpos e tão gordos e tão formosos que não poderia ser melhor [...]”. E prenunciou o
que viria: “[...] mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que é salvar esta
gente, e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.” 5
O salvacionismo e a expansão econômica moderna não tardariam a invadir o
território, desestruturando as sociedades ainda no século XVI (Wüst, 1999). Os germes
trazidos por europeus e guerras internas contribuíram na desestruturação (Diamond, 2001),
mas não reduziram a importância das civilizações pré-existentes, cujo esquecimento
reflete a tentativa de apagar a culpa dos colonizadores, e a lembrança que a nossa
sociedade se fez com o sacrifício delas (Guidon, 2005). Dos 25 milhões de habitantes
estimados na região do atual México, 15 milhões foram mortos entre 1492 e 1542, reduzidos
a um milhão em 1605 (Las Casas, 1552, apud Bosi, 2002). No século XVI Montaigne
testemunhou:

Quem jamais pôs a tal preção o serviço da mercancia e do tráfico? Tantas


cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, tantos milhões de homens
passados a fio de espada, e a mais rica e bela parte do mundo conturbada
pelo negócio das pérolas e da pimenta: mecânicas vitórias. Jamais a ambição,
jamais as inimizades públicas empurraram os homens uns contra os outros
a tão horríveis hostilidades e calamidades tão miseráveis. (Michel de
Montaigne, 1588, apud Bosi 2002, p. 22)

Na terra brasilis e entorno, no início do século XVI existiam cerca de cinco


milhões de habitantes, mais de 1400 grupos étnicos (Nimuendaju, 1944), e 1200 línguas
(Rodrigues, 1997). Ciente dessa ocupação, a Coroa portuguesa foi hábil na apropriação.
Já em 1549 o Regimento Tomé de Souza de D. João III regulava a criação de
espaços ocidentalizados de servidão: aldeamentos (Moraes e Rocha, 2001). Essas
intencionalidades se acirrariam no século XVIII com as premissas ilustradas de progresso,
fraternidade, igualdade e liberdade, as quais fizeram o salvacionismo ceder a primazia
ao ideal de civilização, tutorado pelo Estado (Perrone-Moisés, 1992). Guiadas por esses
corolários e a febre do ouro, as frentes se expandiram ao sertão, em busca de metais,
pessoas para escravizar e usurpar o território (Apolinário, 2006).

5
Carta de Pero Vaz Caminha, enviada ao rei português em 1500. In: PAPAVERO, 2002, p.73, p.79.

268
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

Embora a Coroa tivesse afirmado numa provisão (lei) de 1726 que a liberdade dos
povos era um direito natural, ela não seria cumprida. O desejo de expropriar e eugenizar
se evidenciaram nas leis pombalinas indigenistas de integração. A lei do Diretório de
1758 reconhecia os autóctones como vassalos de El Rei, mas os declarou em estado de
menoridade civilizacional, ordenando cercos de guerra e paz na tentativa de confiná-los
nos aldeamentos (Apolinário, 2006)
Tal qual o litoral, no interior predominavam sociedades agricultoras-ceramistas
fixas (Wüst, 1990), que atuaram com habilidades defensivas, ora aliadas aos vizinhos em
guerras contra os europeus, ora em acordos de paz com estes. Quando expropriados,
utilizaram táticas bélicas flexíveis. “A percepção de uma política e de uma consciência
histórica em que os indígenas são sujeitos e não apenas vítimas, só é nova eventualmente
para nós. Para os indígenas ela parece ser costumeira.” (Cunha, 1992, p. 18)
A inexistência de um poder central não impediu o estabelecimento de alianças e
acordos políticos horizontalizados (Prous, 2006). Análises evolucionistas falham no
entendimento dessa estruturas espaciais de poder por insistirem na comparação com a
hierarquia estatal, comumente encontrada em sociedades ocidentais.

Da Fronteira Cultural à Demonização do Ambiente

O estranhamento não se deu somente no plano cultural. Referenciadas em


paisagens e climas temperados, as descrições européias do ambiente tropical oscilaram
entre paraíso e inferno (Teixeira e Papavero, 2002; Prestes, 2002). O paraíso descrito
por Caminha foi convertido a “inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos
mulatos e das mulatas” na visão do Jesuíta André João Antonil, em 1711 (Souza, 1999, p.
79).

Em parte, a idéia de “inferno verde” decorreu do etnocentrismo europeu


em relação aos diferentes meios de vida nos ambientes tropicais. Por muito
tempo os cientistas guiaram-se pelo senso comum, considerando as
economias indígenas como pobres ou atrasadas, em vez de considerá-las
apenas diferentes da sua economia capitalista e urbana. (Funari e Noelli,
2002, p.31)

É provável que esse paradoxo tenha se sustentado na afirmativa aristotélica de


inviabilidade da vida nos trópicos. A evidência empírica oferecida pela diversidade biológica
nos trópicos não teria sido fortalecida por um corpo teórico que apagasse de a noção
aristotélica (Prestes, 2000), pois predominava a idéia de inadequabilidade tropical ao
ser humano (Almeida, 2003; Doles e Nunes, 1992). O que pode ter induzido os relatórios
de naturalistas no século XIX. Saint-Hilaire considerou as sociedades autóctones selvagens
e a vegetação, embora tida como exuberante, foi dita inútil:

269
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

Se alguns exemplares dos meus relatos resistirem ao tempo e ao


esquecimento, as gerações futuras talvez encontrem neles informações de
grande interesse sobre essas vastas províncias, provavelmente
transformadas, então, em verdadeiros impérios. E ficarão surpreendidas ao
verificarem que, nos locais onde se erguerão então cidades prósperas e
populosas, havia outrora apenas um ou dois casebres que pouco diferentes
das choças dos selvagens; [...]; que, em lugar das extensas plantações de
milho, de mandioca, de cana-de-açúcar, e de arvores frutíferas, o que havia
eram terras cobertas por uma vegetação exuberante, mas inútil. 6 (Saint-
Hilaire, 1975, p. 14)

Nessa linha, a teoria do degeneracionismo de Von Martius (1845), e pensadores


europeus, considerava o trópico desfavorável à humanidade. O clima quente e úmido das
florestas induziria ao desordenamento sexual, criação de etnias e línguas, degeneração
cultural e moral, levando à extinção. O ser humano foi reduzido a um subproduto ambiental:
“Também podemos observar que, se as teorias explicativas encontram-se sempre
imbricadas na sociedade que as origina, está claro que o determinismo ambiental insere-
se em certa visão de mundo colonialista.” (Funari e Noelli, 2002, p.52)
Longe de serem boas ou más, as sociedades autóctones interferiram nas florestas
com o manejo ambiental, desmatando e queimando para plantar, domesticaram espécies,
caçavam, pescavam, guerreavam para conquistar, defender territórios, capturar mulheres,
crianças, ou inimigos para serem incorporados (Prous, 2006). Essa é a sociedade real
desse passado, resultante do convívio com seu ambiente há milênios.

Fronteira entre Civilizações, uma Fronteira de Fronteiras

Se a fronteira designa um ambiente onde sujeitos, ideários, culturas, imagens e


interesses se digladiam por territorialidades (Martins, 1997), a invasão colonial gerou uma
fronteira entre civilizações; ainda não estancada, composta inicialmente pelas civilizações
ocidental e autóctone, posteriormente a africana (Loiola e Ratts, 2006). Do seu
desdobramento derivaram as fronteiras da mineração, agro-pastoril e demográfica,
configurando-se numa fronteira de fronteiras.7

Produto da apropriação mental de base empírica, essas fronteiras não só tiveram


forma visível, como resultaram tanto da intencionalidade de seus atores (Loiola e Ratts,
2006), quanto das representações disciplinares por aqueles que a investigam (Hissa, 2002);
no plano das idéias, crenças, saberes, culturas, método de pesquisa e do desejo de negação
do outro, de modo que os conflitos, dilemas e contradições da fronteira sócioespacial são
corolários de fronteiras imaginárias, de grande fluidez e abstração.

6
Grifo nosso.
7
Sugerida por Luiz Sérgio Duarte da Silva em palestra no auditório do FCHF, UFG, 30/6/2005.

270
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

Desta forma, ao adentrar o continente, os europeus já continham os pressupostos


do confronto. Sob olhar cristão medieval, o ambiente e a cultura dos outros não foram
considerados dignos, abrindo caminho à imposição da fé cristã, saque, escravização,
expropriação e tentativas de re-ocupação, sob signos modernos.
Tem sido tradição da geografia lidar com a fronteira sócioespacial. Como é o caso
da contribuição de Frederick J. Turner acerca da dinâmica da fronteira sobre oeste dos
EUA no século XIX. Porém, a geografia brasileira carece de teorias de e das fronteiras
adaptadas ao nosso contexto, que incorporem princípios da complexidade de Morin (2001),
dialoguem com outras disciplinas e contemple a diversidade etnocultural, tratando os
contextos social, ambiental, histórico e econômico de forma integrada.

Reprodução da Invisibilidade Sóciocultural no Discurso Acadêmico

Tributárias da consolidação dos ideários modernos e da mobilidade de suas fronteiras


(Hissa, 2002), algumas representações invisibilizam as sociedades autóctones no meio
acadêmico. Contudo, tem sido crescente a crítica. Benavides (2001) alerta para o discurso
homogeneizador das diferenças da mestiçagem8 , Lambert (2001, p.164), Guidon (2005)
e Wüst (1999) apontam a conotação pejorativa do termo índio, Ladouceur (1992) e Little
(2002) criticam o ideal de nação única.
É inegável a miscigenação ocorrida no Brasil. Porém, ao contrário do que previam
Freyre (1997) e Ribeiro (1995), difusores da mestiçagem, esta não homogeneizou as
diferenças etnoculturais (Bosi, 2002; Ladouceur, 1992, 2003; Ratts, 2003, 1996). Existem
227 sociedades autóctones, 340 mil habitantes em aldeias, cerca de 400 mil em cidades,
falando mais de 200 línguas (FUNAI, 2002; ISA, 2004; IBGE, 2000; Figura 1).9 Além de
dezenas de grupos de origem africana, asiática e européia.
A Figura 1 sugere que a invisibilidade étnica muitas vezes é camuflada na
metodologia. Quando a FUNAI procura por etnias nas aldeias, a Região Sudeste apresenta
demografia pouco expressiva e as Regiões Nordeste, Sul, Centro Oeste e a Região Norte
assistem redução de 50% na população. Mas se indagada a auto-declaração no Censo
geral, caso do IBGE (2000), a representatividade absoluta autóctone cresce distribuída
em todo o território.
Esses grupos remanescentes têm mantido sua cultura e modos de vida (Little,
2002). Não se identificam com a etnia brasileira, nem aceitam a anulação de sua
diversidade. Mas desejam relativa autonomia territorial sem deixar de pertencer ao território
brasileiro. Anseiam por reconhecimento de suas territorialidades, historicidades e cultura:
“Ninguém respeita aquilo que não conhece. Precisamos mostrar quem somos, a força, a
beleza, a riqueza da nossa cultura. Só assim vão entender e admirar o que temos” (Wabua
Xavante, 2004). Não oferecem, portanto, ameaça ao Estado nacional.
8
Raça cósmica superior, proposto inicialmente por Vasconcelos no século XIX, México, constituída pela
homogeneização das matrizes autóctones americana, africanas e européias (Benavides, 2001).
9
ISA: Instituto de Estudos Sócioambientais.

271
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

Elaboração: Loiola, 2007. Fontes: Censo demográfico IBGE, 2000; FUNAI, 2007.

A Figura 1 sugere que a invisibilidade étnica muitas vezes é camuflada na


metodologia. Quando a FUNAI procura por etnias nas aldeias, a Região Sudeste apresenta
demografia pouco expressiva e as Regiões Nordeste, Sul, Centro Oeste e a Região Norte
assistem redução de 50% na população. Mas se indagada a auto-declaração no Censo
geral, caso do IBGE (2000), a representatividade absoluta autóctone cresce distribuída
em todo o território.

272
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

Esses grupos remanescentes têm mantido sua cultura e modos de vida (Little,
2002). Não se identificam com a etnia brasileira, nem aceitam a anulação de sua
diversidade. Mas desejam relativa autonomia territorial sem deixar de pertencer ao território
brasileiro. Anseiam por reconhecimento de suas territorialidades, historicidades e cultura:
“Ninguém respeita aquilo que não conhece. Precisamos mostrar quem somos, a força, a
beleza, a riqueza da nossa cultura. Só assim vão entender e admirar o que temos” (Wabua
Xavante, 2004). Não oferecem, portanto, ameaça ao Estado nacional.

Esquecimento da Diversidade Histórico-cultural na Geografia

Diante da reprodução dos discursos invisibilizadores, à geografia brasileira cabe


indagar se a abordagem centrada em processos econômicos das fronteiras não a estaria
limitando ao uso instrumental? De fato, no Brasil, os geógrafos têm se preocupado mais
com os aspectos econômicos (Martins, 1997; Moreira, 2000; Ladouceur, 1992; Gonçalves,
2002), por dois motivos: um político-ideológico e outro por deficiências teóricas (Chaveiro,
Loiola e Oliveira, 2005). Vejamos a duplicidade desse problema.
De um lado, no plano político-ideológico e a idéia de territórios vazios estiveram
relacionados à institucionalização da geografia no final do século XIX e início do XX
(Machado, 1995). Desde então, essa ciência esteve empenhada num projeto estatal de
integração territorial, muito mais que compreendê-lo. Esse projeto fundamentava-se no
ideal positivo de August Comte, de nação homogênea e centralidade do poder, o qual
influenciou Vargas e Kubitschek na “marcha para o oeste” (Bosi, 2002).
Quanto à representação de espaços vazios, no passado, e em certa medida hoje,
a produção acadêmica se concentrou no litoral (Vidal e Souza, 1997; Leonídio, 2001). De
lá, sem conhecer a diversidade do território reproduziram-se imagens europeizadas de
sertão “vazio” e diversidade ecológica. Contribuindo para que as políticas freqüentemente
induzissem conflitos e/ou degradação ambiental, por desconhecimento dos sujeitos, suas
historicidades, aspirações e o ambiente da ação.
De outro lado, está a carência teórica, resultante em parte, de interpretações
equivocadas das ciências sociais da teoria da evolução, ao acreditar que padrões pudessem
ser preditos (Morin e Moigne, 2000; Gonçalves, 2002; Lorenz, 1986; Capra, 2001). Assim,
por teorias derivadas, o desenvolvimento é pensado em etapas obrigatórias e universais,
referenciadas nas histórias dos países do norte, de climas temperados, outros ambientes,
culturas e interesses (Souza, 1997).
Muitas dessas concepções derivam da teoria do degeneracionismo de Von Martius
descrita. Em 1845 Martius publicou sua teoria no ensaio “Como se deve escrever a
História do Brasil” e, com ele venceu um concurso do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB). Tal fato evidenciou a influência sobre os intelectuais, cujo alcance
perdurou até a década de 1970. Entre os seguidores estiveram Darci Ribeiro, e outros,
sobretudo em instituições, como a FUNAI (Funari e Noelli, 2002).

273
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

A obra intitulada Handbook of South American Indians (1946-50), organizada


por Julian Steward reproduziu essas idéias deterministas. Na arqueologia Betty Megers
seguiu Stewart. Em América Pré-histórica (1978) Megers atribuiu a diferença de
desenvolvimento entre os Estados Unidos e o Brasil ao ambiente.
Alimentam esses equívocos alguns relatos deixados por naturalistas, que por vezes
geraram observações ora simplificadoras, ora deformadoras (Doles e Nunes, 1992, p.
83). Entre eles cita-se Silva e Souza (1849) [1849], Spix e Martius (1816 a 1819)[1981],
Luis D’Alincourt (1818)[1975], Cunha Mattos (1824)[1874], Pohl (1818-1820) [1976],
Saint-Hilaire (1819)[1975], Burchell (1827-1828)[Ferrez, 1981], Gardner (1839-1840)[1975]
e Castelnau (1843)[2000]. Contudo, no Brasil central,

As pesquisas arqueológicas realizadas nos últimos vinte anos em Goiás e


no Mato Grosso modificaram consideravelmente esta visão tradicional que
foi orientada por um forte viés evolucionista e que era tão conveniente para
justificar o extermínio destas populações e a ocupação de suas terras. (Wüst,
1993, p. 100)

Influenciada por esses ideários, a geografia brasileira retratou mais as redes do


que o conteúdo: os sujeitos e o ambiente (Ladouceur, 1992; Freitas, 2003; Souza, 1997;
Moreira, 2000; Martins, 1997; Gonçalves, 2002), e considerou a produção do espaço
somente a partir do século XVI (Loiola e Ratts, 2005). O esquecimento desse passado
no ensino e pesquisa minimizou as contribuições dos autóctones na formação territorial,
perpetuando os mitos de selvagens e nômades sobre seus antepassados.
Na atualidade o determinismo ambiental tem sido contrariado pelos vestígios
arqueológicos e diversas áreas atentas à justificativa da exploração da América Latina,
travestida de destino ecológico (Funari e Noelli, 2002). Além do esquema monolítico
barbárie ou civilização, análogo à representação céu-inferno, ocorreram múltiplas
possibilidades, entre elas a formação sócio-espacial igualitária da terra brasilis. 10 É
preciso construir meios para compreender diferentes temporalidades do espaço.

Da Invisibilidade Sóciocultural Moderna à Visão Complexa

“O simples não existe, há o simplificado” GASTON BACHELARD

Se os métodos de pesquisa desqualificaram ambientes e culturas milenares, cabe


re-escrever essas histórias (Benavides, 2001). Todavia, os sujeitos de pesquisa precisam
fazer escolhas diante das limitações. Sob o pragmatismo moderno a perspectiva mecânica

10
Caracterizada por domínio territorial e laços de poder horizontalizados tanto na gestão, organização quanto
na defesa; divisão social do trabalho, modo de produzir e viver voltados a auto-suficiência, de base agrária,
associados a valores culturais de não- acumulação; pouca concentração de poder e hierarquia; flexibilidade e
laços socioculturais no plano interno e externo com grupos de diferentes etnias, línguas e bases econômicas.
Ver Prous (2006), Guidon (2003; 2005) e Loiola, 2007.

274
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

e fragmentária da realidade fracionou o saber (Morin e Moigne, 2000); promoveu a


cristalização do determinismo cultural, social, psicológico, econômico, ambiental, teleológico
e o evolutivo (Gomes, 1996). Reduziu assim a capacidade de apreender as possibilidades
históricas, aprofundando invisibilidades sócioambientais.
Reaproximar ciências da natureza, humanas e filosofia é um meio para superar
essas limitações (Dosse, 2003). Tais aproximações adquirem maior coerência quando
subsidiadas pelos princípios de complexidade, entendendo o real como uma teia de
interações físicas, biológicas e antropossociais de densidade temporal (Morin, 1984, 2000).
Nesse dilema fronteiriço encontra-se a geografia entre o “paraíso” simplificador e a
complexidade (Passos, 2004; Hissa, 2002; Souza, 1997; Castro, 1995).
Se por um lado predomina na geografia o paradigma simplificador, por outro se
pode afirmar que o desenvolvimento de abordagens complexas já se territorializaram,
subvertendo a ordem vigente (Chaveiro, Loiola e Oliveira, 2005). É nesse contexto que
a abordagem a seguir busca estabelecer diálogos.

Em Busca de uma Geografia para lidar com o Passado Distante

Não é difícil reconhecer a carência na geografia de métodos que lidem com a


trajetória temporal de suas categorias analíticas. Como alternativa, busca-se estruturar
uma abordagem que aproxime geografia, história ambiental e arqueologia na investigação
do passado (Figura 2 - página 276).
Esses são argumentos iniciais a uma geografia do passado distante, que tem
nas informações arqueológicas e paleoambientais suas fontes. Parte-se da trilogia física,
biológica e social da paisagem, para investigar a dinâmica ambiental e social. Na tentativa
de realizar análises sócioambientais e integrar diferentes disciplinas, incorpora princípios
de complexidade. Para tanto, visa à estruturação de um método complexo, capaz de
perceber com sistemas de objetos e ações sócioambientais no espaço-tempo.

O método da Totalidade como base para uma abordagem complexa

Apesar da geografia lidar com o meio físico, biológico e social, a divisão das
disciplinas e a precariedade dos métodos para integrá-las reproduz uma falsa dicotomia
entre geografia física e humana, camuflando as teias dos próprios objetos (Passos, 2004;
Monteiro, 2003; Mendonça, 2001; Moreira, 2000).
Um enfoque conjuntivo encontra correspondência no método da totalidade de
Santos (1985), o qual propõe investigar o real por meio de categorias analíticas: forma,
processo, função e estrutura, reintegrando-as na síntese. No entanto, as categorias do
método da Totalidade carecem de tratamento para dialogar com o todo indiviso da teia
física, biológica e antropossocial de uma realidade, deliberadamente analisada. Aqui se
encontra o arquétipo, cujo aprofundamento requer esforço coletivo.

275
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

GEOGRAFIA
GEOGRAFIA
DO
DO
PASSADODISTANTE
PASSADO DISTANTE

GEOGRAFIA
GEOGRAFIA

ETNOGEOGRAFIA HISTÓRIA
HISTÓRIA
ETNOGEOGRAFIA

Figura 2: Proposta de abordagem geográfica do passado distante.

Sistema de objetos e ações no espaço-tempo

Nenhum aspecto das sociedades se impõe tanto quanto o espaço de vivência,


presente desde tempos imemoriais (Santos, 1979). Por ser lugar da escrita da história, o
espaço é marcado pela dinâmica social ao longo do tempo. Marcas cujos significados são
atributos dos momentos vividos pelas sociedades. Assim, as interpretações de fenômenos
geográficos necessitam de compreensão temporal.
É a paisagem a guardiã das sucessivas temporalidades: “O seu traço comum é ser
a combinação de objetos naturais e de objetos fabricados, isto é, objetos sociais, e ser
resultado da acumulação da atividade de muitas gerações.” (Santos, 2004, p. 53).
Processos sociais e naturais refuncionalizam a paisagem. No entanto, parcelas residuais
permanecem, tornado-a um acúmulo de tempos, permitindo resgatar parte dos atributos
de uma formação sócio-espacial de outrora. É disso que se alimenta a arqueologia ao
entrar em contato com os vestígios fósseis, artefatos, construções e pinturas rupestres.
A forma dessa cultura material na paisagem é parte da herança de processos
históricos, cujos sistemas de significados, objetos e ações permitem caracterizar formações
sócio-espaciais, interpretar parte da função e estrutura dos elementos, bem como inferir
sobre os processos (Santos, 2004, 1996, 1985, 1979). Pode-se, assim, ir além da
geograficização da história e prover uma interpretação geográfica do passado.

O tempo no espaço: multiplicidade, não-linearidade e anacronia

Embora não contenha a totalidade sócio-espacial de outrora, objetos e signos da


paisagem interferem nas sociedades contemporâneas, que agem sobre formas de hoje e
276
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

do passado, constituindo o processo de realização geográfica da sociedade (Santos, 2004,


p.60). Ainda que indiretamente, formas pretéritas interagem com as sociedades atuais,
de modo que “A inserção da sociedade atual nesse conjunto de formas é um dos mais
difíceis problemas epistemológicos. O estudo desses processos pretende-se, ao mesmo
tempo, à história e à arqueologia.” (Santos, 2004, p.60), e agora, à geografia.
No ocidente, artefatos do passado adquiriram maior importância após o século
XIX, a partir da teoria da evolução das espécies (Prous, 2005).11 Desde então, de relíquias
esses objetos assumiram valores históricos, de memória, científicos e econômicos. Se
essas formas interagem com o presente, o tempo é atrelado ao espaço.

Mas o resultado real deste argumento é que o tempo precisa do espaço para
ele mesmo avançar; tempo e espaço nasceram juntos, junto com a relação
que os produz. Tempo e espaço tem que ser pensados juntos, pois eles
estão inextricavelmente entrelaçados. Neste caso, a primeira implicação deste
ímpeto de considerar a temporalidade/história como genuinamente aberta é
que a espacialidade tem que ser integrada como uma parte essencial deste
processo da ‘contínua criação de novidade’. (Massey, 1999, p. 274)

Se o espaço tem uma componente empírica, unificar tempo e o espaço requer


empiricizar o tempo (Santos, 1996). É por meio da técnica que se pode mensurar o tempo
imerso no espaço, pois a técnica é um meio constitutivo do espaço e do tempo, tanto no
campo operacional quanto percebido, ou subjetivo. A técnica, por meio do trabalho, é um
recurso unificador do espaço e do tempo, tornando-os mutuamente conversíveis,
historicamente e epistemologicamente, e fornece a possibilidade de empiricização do
tempo e de qualificar o ambiente (Santos, 1996, p. 44). Desse modo, o espaço de vivência
como sistema de ações e objetos é espaço-temporal.
As temporalidades desse espaço-tempo têm componentes anacrônicas, diacrônicas
e sincrônicas. Ao se debruçar sobre o passado com questões do presente, volta-se ao
presente com o aprendizado do passado, realizando um anacronismo controlado (Loraux,
1992). Já o tempo diacrônico forma-se nas sucessões de momentos históricos, distinguindo
o tempo presente e o passado; e o tempo sincrônico ocorre num eixo cujas temporalidades
sociais diferem entre si, mas são simultâneas (Santos, 1996). Assim, os lugares só podem
ser compreendidos pela interação de sucessões diacrônicas, coexistências sincrônicas e
interação anacrônica, numa totalidade multireferencial.
Passado e presente podem estar relacionados anacronicamente, e ser
complementares (Loraux, 1992), numa permanente reconstrução do presente, com base
na memória coletiva, marcas na paisagem e documentais, de acordo com as possibilidades
do momento (Reis, 2002; Benavides, 2001; Funari, 1998). Multiplicidade, linearidade e
não-linearidade são atributos da história e do espaço social de vivência.

Função da forma: Marcas na paisagem como memória espacial da cultura


11
Palestra ao Mestrado em gestão do patrimônio na Universidade Católica de Goiás, 2005.

277
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

No tempo, a dinâmica cultural comporta-se análogo a um imenso computador de


programas autônomos, abertos e inacabados (Morin, 1991). Essa cultura é o espírito que,
associado às emoções (alma), dão vida ao ser (Lorenz, 1986); conferindo sentido à
existência (Dosse, 2003; Santos, 1996). Espírito (cultura) e alma (emoções) em ação
produzem o espaço de vivência. Atuam indissociáveis. Imprimem a experiência humana
na Terra, interagindo com o ambiente para atender as necessidades e aspirações (Santos,
1996, 2004). Resultante de ações pretéritas, essas marcas denotam maneiras de se
relacionar com o meio, entre si e indicam como o ser se auto-elabora (Claval, 1995).
Impressas na paisagem, as marcas se tornam matriz cultural, pois a organização e
as formas que estruturam a paisagem transmitem usos e significações às novas gerações
(Berque, 2004). Assim, paisagem é também memória espacial da cultura, dá suporte às
representações sociais e promove as identificações étnicas e culturais (Loiola, 2007).
Sua forma traz conteúdos de dinâmicas sócioespaciais pretéritas, as quais adquirem novos
significados ante as leituras do presente (Santos, 1985, 1997, 2004). Se há uma
geograficidade nessas marcas, a geografia pode ajudar a interpretá-las.
Para a geografia, a arquitetura de aldeias e casas, a distribuição, inscrições,
ferramentas, uso do solo, alterações ecológicas, uso da energia demonstram as técnicas
e os instrumentos do seu sistema de engenharia; ajudam a revelar a estrutura espacial e
política, seus sistemas de referência, rotas, fluxos, práticas espaciais, redes, hierarquias,
domínio territorial, demografia, comportamento e a compreender o modo de produzir,
organizar e se proteger (Gomes, 1998; Claval, 1997; Santos, 1997, 2004; Berque, 2004).

Trilogia e significados da paisagem

Por ser o lugar central das formações sócioespaciais, a paisagem destaca-se na


análise. Sua ontologia informa que além do simbolismo e da memória, nela há processos
físicos e biológicos, relativamente autônomos (Cronon, 1996; Freitas, 2003).
Considera-se assim, três grupos de processos interagentes na paisagem: o
sociocultural, no qual predominam as atividades sociais, econômicas, culturais e simbólicas
(Chaveiro, 2005); o físico, sob uma fisiologia da paisagem, com processos
morfodinâmicos, suportado por morfoestruturas passíveis de serem compartimentadas
(Ab’saber, 1969), resultante de processos socioculturais, físicos e biológicos. Em terceiro,
processos biológicos, ecológicas e biogeográficas, incluindo o gênero humano (Barbosa,
2002). Esse conjunto diz respeito à auto-organização, à cultura, à disponibilidade de recursos,
às escolhas e a conservação das marcas.
Assim, a paisagem é o retrato da sociedade e do ambiente no tempo, construída
numa interação de trabalho e matéria, sociedade e ambiente, sons, cor, odor e ação
(Chaveiro, 2005). Assume dimensões físicas, biológicas e simbólicas ao materializar desejos
e aspirações (Santos, 2004), necessitando de uma noção de escala que permita relacionar
fenômenos de natureza e amplitudes distintas: uma noção complexa.

278
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

Noção de escala na abordagem complexa

Um dos empecilhos à integração da parte ao todo na geografia tem sido a redução


da noção de escala a uma proporção geométrica, limitando a percepção sistêmica de um
espaço polimórfico, no qual fatos e fenômenos de natureza e tamanhos distintos,
aparentemente desconexos, interagem num espaço de referência (Castro, 1995). O que
requer, além do recorte temporal e espacial, incorporar a escala como operador de
complexidade, oposta a noção positivo-cartesiana.
Numa realidade não-analítica deliberadamente analisada, a parte conserva
interações com a totalidade indivisa (Bohm, 2001). Se a parte não possui os recortes
epistêmicos, e nem detêm hierarquias e dimensionalidades proporcionais a priori (Castro,
1995), a escala resulta de escolhas estratégicas envolvendo a significação da pesquisa: o
que vemos é aquilo que escolhemos ver. (Giovanni Levi, 1998, p. 203).
O território não contém os recortes de escala, nem é por ela contido (Morin, 1984).
Seus diferentes níveis temporais e espaciais são representações abstratas de uma
realidade não-objetiva (Granger, 1994). É dotado de níveis diferentes de realidade,
complementares e com interações não-locais (Bohm, 2001; Nicolescu, 2000).
Requerendo transformações qualitativas não-hierárquicas na análise (Castro, 1995).
Integrada ao todo, a parte contém suas inscrições: a realidade é holográfica (Morin
e Moigne, 2000; Bohm, 2001)12 seja o local, a memória individual e coletiva, bacia
hidrográfica, rio, solo, etnia, paisagem, território usado, clima, célula “tronco”, espécie,
região, sociedade ou indivíduo. Nela importa relevar a sistemicidade, a
multidimensionalidade dos fenômenos e fatos que se imbricam numa teia de densidade
temporal, necessitando de abordagens que estão entre, através e além das disciplinas
(Nicolescu, 2000). Todavia, as limitações derivam mais da forma de perceber, compreender
e conceber o real e da utilização dos instrumentos teóricos que dos aparelhos de medida,
do objeto e suas especificidades (Bohm, 2001; Capra, 2001).
Assimilar a escala por referenciais de complexidade requer entendê-la como
estratégia metodológica para perceber, conceber, compreender, relacionar, diferenciar,
reunir e representar o objeto na dinâmica do espaço-tempo, verificando permanências e
rupturas (Castro, 1995). Suas propriedades incluem ordem-desordem, não-linearidade e
linearidade, micro e o macro, complexidade e caos (Souza, 1997). Exige abstrair atributos
além da forma. Aproximar dados empíricos, mensuração indireta, teorias e categorias
abstratas para observar e compreender um todo relacional.
Desse modo, a parte se aproxima cada dia mais ao plenum do filósofo grego
Zenão (Bohm, 2001). Entretanto, requer atenção aos geógrafos: em que medida as
inscrições do todo integram e interagem com a parte analisada? Como operacionalizar
pesquisas com um objeto espaço-temporal polimórfico?

12
Em uma imagem holográfica cada parte, ou pixel, contém informações da imagem como um todo.

279
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

Arqueologia como fonte de pesquisa na geografia

A tradição oral das sociedades autóctones na terra brasilis, a distância no tempo


e as especificidades ambientais requerem desenvolvimento teórico metodológica específico
da geografia e demais ciências para interpretar esse passado. Nesse sentido, na atualidade,
mais que fornecer subsídios à arqueologia, é necessário realizar uma abordagem geográfica
com maior nível de abstração, aproximar ciências afins sob princípios de complexidade e
construir entendimentos geográficos abrangentes acerca das sociedades e seus territórios
em conjunto com a dinâmica ambiental na terra brasilis no longo tempo.
É a partir dos vestígios revelados pela arqueologia, dos estudos paleoambientais e
dos registros etnográficos que se pode confirmar e interpretar a complexa dinâmica
sócioambiental anterior ao século XVI (Wüst, 1999). Esses vestígios são fontes não só
para a arqueologia, mas biogeografia, paleontologia, paleantropologia, etnobotânica,
etnoastronomia, etnopedologia, etnomatemática, geografia e outras ciências que lidam
com esse passado. Há rica fonte de pesquisa divulgada pela arqueologia em relatórios,
teses, dissertações, revistas, artefatos em museus, bem como um arcabouço teórico-
metodológico desenvolvido na geografia, história ambiental e arqueologia.
Essas informações resultam de interpretações arqueológicas, abstraídas de fonte
primárias de difícil acesso, exigindo rigor técnico no resgate. Dadas as características de
umidade e temperatura elevada, a cultura material se degrada rápido (Prous, 1992).
Sementes, artefatos de madeira, restos alimentares são encontrados geralmente em abrigos
cobertos e secos, já que o intemperismo acelera a atividade bioquímica. Esse tipo de
deterioração predomina sobre a cultura material dos ancestrais dos autóctones.
Apesar dessas limitações, métodos arqueológicos contemporâneos permitem extrair
muitas informações. Dos esqueletos encontrados são inferidos costumes, sexo, filogenia,
idade, características físicas, patologias, tipo de trabalho e alimentação (Prous, 2006).
Dos restos de caça apreende-se o preparo dos alimentos, as técnicas de caça, os costumes
e preferências; e dos restos vegetais conhecer as espécies domesticadas, as formas de
coleta, plantio e período de colheita.
Os artefatos de pedra, osso, cerâmica e madeira fornecem características
tecnológicas do grupo e a comparação com outros grupos vizinhos. As análises químicas
e de microscopia revelam os materiais empregados. A arte rupestre (grafismos, pinturas
e gravuras), seja em paredões ou pequenos objetos, contém signos que possibilitam
especular o simbolismo, temas, ritmos, contexto, as técnicas, comportamento, territorialidade
etc funções (Guidon, 2005, 2006). O clima, relevo, ciclos sazonais, fauna, flora e hidrografia
são variáveis no tempo e influenciam as sociedades (Cronon, 1996; Freitas, 2003); permitem
supor o potencial ecológico e a adaptabilidade (Barbosa, 2002), a criatividade e escolhas
culturais (Funari, 2002).
Em geral, a cultura material é “guardada” por processos de sedimentação, cuja
estratigrafia é correlata a climas e ambientes predominantes. Em condições especiais

280
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

pode ocorrer no interior dos sedimentos a mineralização por substituição das substâncias,
ou fossilização. Contudo, muito além desses objetos, a arqueologia contemporânea se
preocupa com os aspectos espaciais, a estrutura do sítio ou conjunto de sítios, a fim de
resgatar a vida cotidiana, a divisão do trabalho, a distribuição demográfica e a exploração
do território (Prous, 2006).
Para tanto, verifica a implantação no relevo, os sistemas de abastecimento e de
engenharia, a posição dos objetos, a localização do sítio, a arquitetura e as diferenciações
intra-sítio; considera comportamentos que geraram a cultura matérial: cosmologia, divisão
de gênero, forma de trabalho, técnica, ideologias e as estruturas sócio-políticas. Pode-se
assim inferir a diferenciação social, a estruturação, as relações externas e estratégias
adotadas diante das condições ambientais (Wüst, 1999).
Ao utilizar essas informações como fonte é preciso observar que culturas
arqueológicas não só diferem da noção de cultura nas ciências sociais em geral, como
não são suficientes para abarcar a realidade em estudo (Wüst, 1999), já que geralmente
são atributos metodológicos classificatórios para levantamento (Prous, 1999).
Desse modo, sugere-se partir tanto quanto possível da demanda do presente sob
quatro pressupostos (Santos, 1997; Maia 2005;3 Ferro, 1979): 1. Marcas na paisagem
deixadas por processos socioculturais pretéritos são memória espacial de culturas (Berque,
2004; Loiola, 2007). 2. A produção do espaço de vivência ocorre há mais de 10.000 anos
na terra brasilis (Guidon, 2006; Loiola, 2004; Barbosa, 2002). 3. Etnia refere-se
necessariamente a um lugar, ou espaço de referência (Little, 2002; Ratts, 2003). Por
fim, recomenda-se utilizar correlações etnológicas com etnias atuais.
Procurar significados que tenham conexão com a realidade presente, traz maior
objetividade à investigação de sujeitos históricos com emergente visibilidade política
(Benavides, 2001). Assim, as marcas na paisagem foram, e são, co-produtos espaço-
temporais dos antepassados de sociedades vivas entre nós, à espera de quem lhes atribua
novos significados. Contudo, ao utilizar informações arqueológicas, é preciso estar atento
às escolas arqueológicas e o significado por elas atribuído à cultura material e,
simultaneamente, buscar pontos de convergências com essa ciência.

Compatibilidades entre discursos geográficos e arqueológicos

A geografia tem fornecido importantes estudos especializados do passado como


paleoclima, geomorfologia, pedologia etc. No Brasil existem diversos centros e trabalhos
com tradição de pesquisas físicas, entre os quais os estudos geomorfológicos de Aziz N.
Ab’ Saber e Antônio Christofoletti e climáticos de Carlos A. F. Monteiro. Esses estudos
são fundamentais à investigação arqueológica.
No entanto há na geografia carência de pesquisas relacionados as sociedades
autóctones e o ambiente momentos anteriores ao século XVI, numa aproximação direta

3
Prof. Carlos Maia, em aula ao mestrado em geografia, IESA, UFG, primeiro semestre de 2005.

281
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

com a arqueologia. Entre os poucos trabalhos estão o de Albuquerque (1990), voltados


aos depósitos correlativos, discutindo a participação da geografia na interpretação
arqueológica; e Kashimoto (1992), a qual investigou a influência dos aspectos geográficos
no estabelecimento das populações humanas. Fora do Brasil não é difícil encontrar temas
com essa aproximação, como é o caso de Waters (1992), Chambers (1994), Hodder
(1991) e Pimenta (1996).
No campo da geografia cultural a aproximação teve ênfase a uma arqueologia da
paisagem. Na escola americana Calr Sauer (1998), no início do século XX, resgatou
estudos corológicos, destacando a individualização e diferenciação das paisagens
culturais sauerianas, e Wagstaff (1987, 1991) aproximou geografia e arqueologia dos
estudos culturais e da paisagem. São igualmente conhecidos os trabalhos da geografia
cultural renovada, resgatando interações entre a paisagem e a cultura, a partir da década
de 1980: Claval (1995), Retaille (1995), Berque (1984) na escola francesa e Cosgrove
(1998) na escola inglesa.
O recuo no tempo dessa aproximação não poderia estar distante. Consolidada a
partir do interesse em estudar a cultura material do passado, a arqueologia teve
desenvolvimento recente no Brasil e no globo. Data do final do século XIX, dedicada ao
conhecimento descritivo e pontual (Alves, 2002). Configurou-se como acadêmica após
meados do século XX, mas já traz relevantes informações, contribuições teóricas, técnicas
e metodologias (Prous, 1999). Entretanto, sofre com a separação de ciências afins e o
método positivo-cartesiano, e busca a reaproximação com a história, antropologia,
sociologia, geologia, geografia etc (Reis, 2002; Benavides, 2001).
A arqueologia aborda a vida quotidiana, atribuindo importância à interação cultura-
ambiente; dado ao afastamento temporal de seu objeto (Prous, 1999). Possui metas e
recursos similares às ciências humanas. Procura entender as adaptações, desenvolvimento,
funcionamento e representações simbólicas da sociedade necessitando das ciências da
terra, da vida e exatas para tratar a cultura material (Reis, 2002).
Entretanto, as interpretações arqueológicas não são definitivas por usarem métodos
mais precisos, vez que representam as possibilidades do momento (Prous, 2006). Como
em todo conhecimento científico, constrói representações interpretativas do real (Granger,
1994), não sendo suas teorias espelhos de uma realidade objetiva, pois são co-produtos
do espírito humano e das condições sócioculturais (Morin, 1991).
No Brasil, as principais escolas arqueológicas atuantes são: histórico-cultural,
processual ou nova arqueologia, francesa e pós-processual. Esta agrega a arqueologia
social, objeto de nosso interesse, por valorizar o indivíduo, ou como poucos indivíduos
alteram a sociedade, considerando aspectos ideológicos, políticos e religiosos do passado,
e dos arqueólogos na interpretação (Benavides, 2001). Apesar da herança linear do
materialismo histórico dialético, a arqueologia social trouxe contribuições às ciências sociais
em toda América Latina, ao ponderar a ação dos arqueólogos enquanto construtores do
passado a partir de sua classe social, ideologia, cultura e gênero nas questões formuladas.

282
Terra Livre - n. 29 (2): 265-292, 2007

Preocupa-se mais com o destino histórico do continente, que os aspectos tipológicos e


cronológicos da cultura material.
Na arqueologia, de forma similar à geografia, a paisagem e a análise espacial são
centrais em diversas abordagens. Boado (1999) se dedica a uma arqueologia da paisagem,
com base em três aspectos: o ambiente e o histórico biogeográfico; em seguida, busca na
paisagem sinais que permitam caracterizar padrões de uso, técnicas e formações sócio-
espaciais; por último, especula sobre os significados dos objetos encontrados, o simbolismo
e as formas de interação ou apropriação da natureza.
Outros trabalhos como os de Wüst (1983, 1991) focam a análise espacial por visão
sistêmica. Priorizam estratégias de implantação do relevo, arquitetura, formato e a distância
entre aldeias, território, permanência, demografia, divisão do trabalho, uso de técnicas e
do solo. Essa perspectiva baseia-se na nova abordagem estadunidense, a qual a visão
sistêmica de cultura a considera uma interação de subsistemas de fatores culturais e não
culturais (Mello e Viana, 2006). Essa abordagem sistêmica pressupõe subsistemas
passíveis de serem analisados. Admite várias estruturas interpretativas das diferenças e
similitudes da cultura material, a fim de investigar continuidades e mudanças. É capaz de
dialogar com não-linearidade, descontinuidade, o ambiente e a não hierarquização de
processos e de estruturas sóciopoliticas.
Assim, as informações arqueológicas dependem do viés interpretativo da pesquisa,
pois, o arqueólogo ao pesquisar estende sua vivência para dentro do passado, desvela o
presente e projeta o futuro (Reis, 2002), sem sair da realidade (Loraux, 1992).

Etnogeografia e História Ambiental a serviço da investigação do passado

Na geografia há um campo de estudo que permite melhor aproximação com a


arqueologia: a etnogeografia. Fruto da abordagem cultural renovada pós-1980, seu
arcabouço viabiliza a investigação de grupos que tenham grande relação com o ambiente
(Retaille, 1995), e permite investigar a diversidade cultural (Claval,1997), embora não
dedicada somente a esses fins. Investiga os sistemas de representação, o espaço e o
ambiente, buscando como as culturas “tiram partido da natureza para se alimentar, se
proteger contra intempéries, se vestir, habitar etc., modelar o espaço a sua imagem e em
função de seus valores e de suas aspirações” (Claval, 1997, p. 114).
Ao supor que os conhecimentos no passado relativos ao espaço, à natureza, à
sociedade, ao ambiente e à forma de explorá-lo se diferenciam pouco dos científicos,
procura relacionar esses saberes, “[...] analisar suas bases e seus modos de elaboração
e inventariar as categorias [...]” que a cultura recorta do real e atribui significado,
questionando “[...] como esses conhecimentos são utilizados, reinterpretados, respeitados
(ou transgredidos) [...]” (Claval, 1997, p. 113), reproduzidos e transmitidos.
Sua abordagem entende a cultura por três aspectos indissociáveis (Claval, 1997).
1. O sistema de representação, manifestação da sua forma de sentir e perceber o mundo

283
LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

(cosmologias); 2. Dedica-se a dimensão coletiva dessa representação, sua comunicação


padronizada, ou códigos e normas para reproduzir o conhecimento, que nas sociedades
autóctones ocorre por meio da língua, cantorias, mitos, ritos, danças, pinturas e artefatos.
3. Está atenta a cultural dos indivíduos, que é dinâmica e não homogênea, dada às
diferenças de gênero, formação e criatividade.
Fruto desse processo cultural criativo, os grupos se diferenciam no espaço e no
tempo, e podem ser apreendidos pela etnogeografia na análise de três perspectivas:
atividade biológica; a transformação do meio por um conjunto de técnicas e, a cultura
como manifestação simbólica em que normas, valores, crenças, cosmologias, códigos e
suas significações atuam na organização social e no ambiente (Gomes, 1998). Essas
dimensões dão pistas sobre o modo de vida, as relações sociais, a divisão do trabalho, a
interação com a paisagem e a estruturação sócioespacial.
Essa abordagem etnogeográfica se enriquece quando associada aos fundamentos
da história ambiental, ramo recente da História e História natural. Para a história ambiental,
a cultura resulta de interações físicas, biológicas e antroposociais, mantendo uma via de
duplo sentido com o ambiente, com reflexos na reprodução do espaço de vivência, deixando
marcas na paisagem. (Worster 1984, 1991; Turner, 1990; Cronon, 1996; Freitas, 2003,
2002c). Tanto o ambiente com suas oscilações e ciclos atuam sobre a cultura e as
formações sócioespaciais, quanto a cultura constrói objetivação, simbolismos e artefatos,
elaborando a paisagem junto com os processos naturais.
Os três níveis de abordagem da história ambiental a aproximam da etnogeografia
e da arqueologia social. Um trata da história natural, investigando o histórico biogeográfico
dos ambientes (Worster, 1991). O segundo enfoca o plano socioeconômico e político,
objetivando as decisões sobre o ambiente na história. Terceiro, no plano cultural, procura
saber como um grupo ou indivíduo, percebe, cria valores, ritos, mitos e outras estruturas
de significação a partir da dinâmica ambiental.
Aproximar a perspectiva da história ambiental ao da etnogeografia e arqueologia
social permite simultaneamente olhar para a sociedade e o ambiente no passado e no
presente, sem afirmar os determinismos limitantes descritos. Contudo, um método, ou
métodos para transitar entre, através e além dessas perspectivas necessita de
aprimoramentos e permanente atualização, que não se fará sem a operacionalização de
pesquisas conjuntas por diferentes atores da ciência.
Isso pressupõe que fenômenos físicos, biológicos e antroposociais formem a
totalidade complexa da teia da vida no tempo, cuja apreensão se viabiliza na conjunção
dos ramos especializados (Cronon, 1996; Morin, 1990, 2000; Capra, 2001, Monteiro, 2003,
Santos, 1996; Moreira; 2000; Mendonça, 2001). Pois, fenômenos físicos são mais antigos
e relativamente autônomos, dos quais derivaram a história da vida, e indissociável desta
emergiu a história humana (Morin, 2002). À compreensão dessa história requer reunir e
distinguir essa tríade, e não isolar e separar.

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Considerações Finais

A inerência entre espaço e tempo torna o passado distante um vasto terreno a ser
investigado na geografia, desde que superadas as limitações modernas que invisibilizam
nossos ancestrais. Mais que objetos de museus, a cultura material produzida por essas
sociedades representa parte da memória de culturas vivas. Frequentemente noticiadas
reivindicando o direito à terra, festejando seus mitos em rituais ou como objetos de
exploração turística, mas que têm conquistado crescente representação política.
Por meio dessa cultura material a arqueologia tem confirmado não só uma densa
ocupação deste continente, como o elevado nível técnico, organização sociopolítica e
territorialidades definidas, sobretudo nos trópicos sul-americanos. Afastado da noção
mitológica do nomadismo, na formação sócioespacial da terra brasilis predominaram
sociedades ceramistas-agricultoras sedentárias no século XV. Do mesmo modo,
contrariando relatos etnográficos e as previsões deterministas histórico-lineares, ao aumento
demográfico não correspondeu a formação de superestruturas políticas centralizadas.
Os grupos fizeram escolhas. Construíram seu próprio caminho.
As afirmativas teóricas acerca da inadequabilidade tropical para o desenvolvimento
de sociedades humanas não se confirmam no passado distante (Guidon, 2007; Funari
2002). Não só foram nesses ambientes onde se consolidou o gênero humano, como neles
se constituíram as primeiras grandes civilizações. De modo que neste continente ocorreu
o inverso de hoje: a América do Sul e Central eram desenvolvidas e a América do Norte
era periférica e subdesenvolvida.
É enganoso afirmar o descobrimento, início do povoamento e a (re)produção do
espaço de vivência somente a partir do século XVI no território brasileiro e neste continente.
A produção do espaço de vivência humana nessa porção dos trópicos se dá há mais de
10.000 anos AP. Como seria então a formação sócio-espacial, ou sócioambiental, entes
do século XVI? Levantar argumentos a essa questão na geografia se mostra promissor,
já que arqueologia, geografia e história ambiental não só têm similitudes na linguagem e
ciências auxiliares comuns, como construíram convergentes escolas teórico-metodológicas.
Todavia, ao usar o anacronismo controlado do tempo cabe desconstruir imagens
de feras rudes acerca dos personagens do passado desde o neolítico, dado o grau de
sofisticação requerido à elaboração de suas culturas, que não estiveram estáticas. Suas
histórias são sagas de continuidades e mudanças do gênero humano. Dessa forma, o
termo pré-história é inadequado à caracterização das sociedades na terra brasilis nos
séculos anteriores ao XVI.
Embora orientada aqui às sociedades autóctones, esse olhar ao passado distante
não escolhe temas, convida à sua continuidade, aproximar diferentes ciências no
entendimento de dinâmicas sócioambientais pretéritas que, de alguma forma, têm reflexo
sobre o hoje.

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LOIOLA, S. A. POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE...

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Recebido para publicação dia 28 de Novembro de 2007


Aceito para publicação dia 08 de Fevereiro 2008

292
RESENHA

293
294
Os Estabelecidos e os Outsiders
Norbert Elias e John L. Scotson

ALEXANDRE BERGAMIN VIEIRA

UNESP – Presidente Prudente


alegeobv@yahoo.com.br

O livro Os estabelecidos e os outsiders, vinculada à sociologia histórica, foi publicado


pela primeira vez no ano de 1965, baseado em uma pesquisa empírica de duração de três anos,
realizada por um dos autores (o professor da escola básica John Scoatson) numa pequena cidade
inglesa (denominada ficticamente de Winston Parva), de aproximadamente cinco mil habitantes na
região de Leicester, com o objetivo inicial de compreender a delinqüência juvenil.
Porém, com a colaboração de Norbert Elias, e com a combinação dos dados obtidos pela
pesquisa empírica participante (o professor Scotson era membro “outsiders respeitado” da
comunidade), estatísticas oficiais, relatórios governamentais, documentos jurídicos e jornalísticos,
que permitem alcançar diferentes pontos de vista sobre a realidade social, o texto buscou refletir
como, em uma pequena cidade inglesa, membros de um determinado grupo, residentes em
determinada área da cidade (os estabelecidos), mantêm entre si a crença de que não são apenas
mais poderosos, mas seres humanos melhores do que o outro grupo (os outsiders)? E, ainda, “que
meios eles utilizam para impor a crença em sua superioridade humana aos que são menos poderosos”
(p.20).
Ou seja, os autores se propõem a realizar um trabalho que procura compreender as relações
de poder existente entre os grupos estabelecidos e outsiders, analisar como ocorre a estigmatização
de um grupo em relação ao outro numa pequena cidade onde não se observava diferenças nas
paisagens dos distintos bairros, não havia uma diferença nos padrões das moradias, a nacionalidade
dos moradores dos bairros era a mesma, não se percebia diferenças de raça, cor ou religião; os
moradores possuiam o mesmo tipo de ocupação e emprego e, portanto, não havia diferenças nos
níveis de renda e educação entre eles.
Assim, a partir da análise da cidade, cujo um bairro apresentava um maior número de
ocorrências de delinqüência entre os jovens, em relação aos outros dois bairros da cidade e que,
no decorrer da pesquisa, passa a inexistir a diferença, os autores procuraram compreender como
um estudo em escala local permite explicar eventos parecidos na escala global, como a exclusão
social, por exemplo.
Portanto, esta é uma grande contribuição do livro para o conhecimento científico,
procurando, a partir de um estudo de caso, levantar elementos que permitam compreender como
ocorre a estigmatização de diferentes grupos sociais (no caso do livro, os outsiders) na sociedade
como um todo.
Porem, neste sentido, o livro, e a própria realidade analisada, não permite que se identifique

295
na cidade e na sociedade como um todo as desigualdades existentes entre as diferentes classes
sociais, como se observa nas diferentes realidades urbanas atuais, pois os autores afirmam que a
relação estabelecidos e outsiders não se resume ás desigualdades econômicas existentes, indo
além delas, abarcando outras relações e fatores sociais e culturais, tecendo, assim, severas críticas
ao “economicismo” da obra de Marx, que, para os autores, não explicaria a relação estabelecidos
e outsiders na realidade analisada.
Assim, percebe-se que a obra, apesar da riquíssima contribuição à análise sociológica da
realidade de uma pequena cidade inglesa da década de 1960, não possibilita a análise da realidade
socioespacial das diferenes cidades do período de estudado nem as cidades contemporâneas,
onde os processos de segregação socioespacial e exclusão social são cada vez mais acirrados e o
reconhecimento da existência do conflito de classe é essencial para a compreensão da realidade.
Isso reflete a complexidade que se apresenta aos pesquisadores sociais em compreender
as relações entre pessoas e grupos na sociedade que não é em momento algum estática, mas
mutável e tremendamente desigual e que necessita da análise multidisciplinar para possibilitar a
completude do conhecimento científico, que cada vez mais se apresenta fragentado.
O que os autores afirmam é que o principal fator na formação da relação estabelecidos e
outsiders seria o tempo de moradia na cidade e a coesão possibilitada por isso no grupo estabelecido,
pois apresentavam um passado comum que permitia ao grupo um estoque de apegos, lembranças
e aversões comuns.
Ou seja, o grupo estabelecido vivia na cidade, mais especificamente na Zona 2, denominada
de aldeia, há duas ou três gerações, desde a fundação da cidade por Charles Wilson, em 1880,
quando da construção de aproximadamente 700 casas idênticas. Isso permitiu com que o grupo
adquirisse costumes, tradições e um estilo de vida próprios que os permitia diferenciar-se dos
forasteiros/outsiders residentes na Zona 3 (beco dos ratos ou loteamento), construído nos anos
de 1930, recém chegados, sem vínculos pessoais e com o local e com costumes e culturas
diferentes.
Essa discussão poderia remeter-se ao conceito de lugar, pois os estabelecidos tinham o
sentido de pertencimento e se reconheciam pelo seu local de habitação. Suas relações pessoais e
profissionais oriundas de longo período lhes permitia uma coesão como grupo social, fechado e
exclusivo, fomentando o preconceito e a estigmatização daqueles que não pertenciam ao lugar,
para os recém chegados, que, no imaginário coletivo criado pelo grupo estabelecido, era uma
grande ameaça aos “bons costumes” do lugar.
No entanto, por ser um trabalho sociológico, o livro não valorizou esta questão do conceito
de lugar como um dos fatores determinantes na consolidação da relação estabelecidos (do lugar)
e os outsiders (forasteiros).
O que aponta também para não considerarem a questão espacial no processo de
diferenciação entre estabelecidos e outsiders, como ocorre nos processos de segregação
socioespacial e exclusão social, que também refletem as desigualdades e as diferenciações existentes
nos espaços intraurbanos contemporâneos.
Entende-se ainda que os autores, mesmo adotando uma perspectiva de compreender e
desvendar as características de determinada especificidade social, em uma pequena comunidade

296
a partir do processo histórico, ou seja, uma leitura da sociedade não pelo “aqui e agora”, fazem uma
leitura da realidade que não considere as possibilidade de transformação e mudança a partir dos
conflitos existentes, pois para eles o processo de exclusão e estigmatização de um grupo pelo
outro não foi um plano premeditado ou concebido a partir de um planejamento prévio.
Seria resultado apenas de uma ideologia de que os forasteiros são desordeiros, que não
se enquadram nos padrões sociais estabelecidos naquela comunidade que possui determinados
costumes e tradições que não devem ser questionados.
Além disso, a estigmatização dos outsiders pelos estabelecidos apenas seria possível
pela aceitação desta condição pelos primeiros, sendo, portanto, um processo característico da
formação histórica daquela pequena cidade, não apresentando, assim, possibilidades de serem
revertidos, pois não haveria culpados, como podemos observar na citação a seguir.

Os aldeões (...) formavam um grupo relativamente fechado. Tinham


desenvolvido tradições e padrões próprios. Quem não cumpria essas
normas era excluído como sendo de qualidade inferior. (...) Entraram na
luta contra os intrusos, usando todas as armas características de que
dispõem as comunidades bem estabelecidas e razoavelmente unidas,
em suas relações com os grupos recém chegados. (...) Eles cerraram
fileiras contra os intrusos. Esnobaram-nos. Excluíram-nos de todos os
postos de poder social, fosse na política local, nas associações
beneficentes ou em qualquer outra organização local em que sua
influência fosse predominante. Acima de tudo, desenvolveram como
arma uma “ideologia”, um sistema de atitudes e crenças que enfatizava
e justificava sua própria superioridade, e que rotulava as pessoas do
loteamento como sendo de categoria inferior. Ela também ajudou a
bloquear a percepção de qualquer acontecimento que tivesse alguma
possibilidade de contradizê-la. Isso não quer dizer que houvesse um
plano deliberado dos “aldeões” de agir dessa maneira. Tratou-se de
uma reação involuntária a uma situação específica conforme a toda a
estrutura, toda tradição e visão de mundo da comunidade aldeã. (ELIAS
e SCOTSON, p.65)

No entanto, uma ideologia não se relaciona apenas com uma situação específica, como
apontam os autores. E a relação estabelecidos e outsiders não era específica apenas daquele
período, pois a própria comunidade dos aldeões, dos estabelecidos existia e exercia sua
“predominância” em relação aos moradores do loteamento desde que este fora instalado havia
aproximadamente trinta e cinco anos.
Portanto, o que realmente define a relação estabelecidos e outsiders é a forma como as
próprias estruturas da sociedade, enquanto grupo organizado, moldam as formas de agir, pensar e
viver dos seres humanos enquanto indivíduos. Ou seja, segundo os autores, não havia inimizades
pessoais entre os indivíduos dos grupos diferentes, havia até uma convivência harmoniosa dentro

297
de determinados limites impostos pelo grupo dos estabelecidos aos seus próprios integrantes.
Isso é importante pois demonstra como os indivíduos são influenciados em suas atitudes
e modos de pensar e agir a partir de determinações do grupo social do qual fazem parte e como a
estigmatização de um grupo pelo outro se dá como um fator natural.
Essa análise abordada pelos autores é de grande relevância pois aponta para o
questionamento de que não seria, naquele caso específico, a família a unidade básica primária da
sociedade, como definem algumas abordagens sociológicas. Ela também se molda às estruturas
impostas pela sociedade.
Outro ponto de discussão relevante apontada no texto, senão o principal, é com relação
ao exercício de poder exercido por uma parcela da população, os estabelecidos, em relação aos
demais e a aceitação dessa relação por parte dos outsiders. Pois na leitura atenta do livro, percebe-
se nitidamente que os moradores da zona 3, o loteamento, sem o sentido de pertencimento ao
bairro, sentiam-se realmente inferiores em relação aos estabelecidos da zona 2 (aldeia), aceitando,
portanto, a exclusão do convívio com seus superiores, reconhecendo que os postos de poder
político e social não lhes era de direito.
Portanto, o livro “Os estabelecidos e os outsiders” apresenta uma outra visão – não
econômica – das relações de diferenciação e desigualdade existentes nas cidades, que leva ao
questionamento se os elementos apontados pelos autores podem ser considerados na escala das
grandes e médias cidades contemporâneas, como eles procuraram afirmar: um estudo localizado
em uma pequena cidade pode servir de paradigma para estudos em outras escalas.
Está lança do o desafio aos estudos urbanos, sejam sociológicos, políticos, históricos ou
geográficos, etc.

298
NORMAS

299
300
Terra Livre - n. 29 (2): 293-300, 2007

REVISTA TERRA LIVRE


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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

data, página inicial-página final. Ex.: FRANK, Mônica Weber. Análise


geográfica para implantação do Parque Municipal de Niterói, Canoas - RS.
In: SUERTEGARAY, Dirce. BASSO, Luís. VERDUM, Roberto (Org.).
Ambiente e lugar no urbano: a Grande Porto Alegre. Porto Alegre: Editora
da Universidade, 2000, p.67-93.
c) No caso de artigo: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do
periódico, local de publicação, volume do periódico, número do fascículo,
página inicial- página final, mês(es). Ano. Ex.: SEABRA, Manoel F. G.
Geografla(s)? Orientação, São Paulo, n.5, p.9-17, out. 1984.
d) No caso de dissertações e teses: SOBRENOME, Nome. Título da
dissertação (tese). Local: Instituição em que foi defendida, data. Número
de páginas. (Categoria, grau e área de concentração). Ex.: SILVA, José
Borzacchiello da. Movimentos sociais populares em fortaleza: uma
abordagem geográfica. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, 1986. 268p. (Tese, doutorado em
Ciências: Geografia Humana).
9. As ilustrações (figuras, tabelas, desenhos, gráficos, fotografias ...) devem ser enviadas
preferencialmente em arquivos digitais (formatos JPG ou TIF). Caso contrário, adotar-
se-à suporte de papel branco. Neste caso, as fotografias devem ter suporte brilhante em
preto & branco. As dimensões máximas, incluindo legenda e título, são de 15 cm, no
sentido horizontal da folha, e 23 cm, no seu sentido vertical. Ao(s) autor(es) compete
indicar a disposição preferencial de inserção das ilustrações no texto, utilizando, para
isso, no lugar desejado, a seguinte indicação: [(fig, foto, quadro, tabela, ...) (n0)].
10. Os originais serão apreciados pela Coordenação de Publicações, que poderá aceitar,
recusar ou reapresentar o original ao(s) autor(es) com sugestões de alterações editoriais.
Os artigos serão enviados aos pareceristas, cujos nomes permanecerão em sigilo, omitindo-
se também o(s) nome(s) do(s) autor(es). Os originais não aprovados serão devolvidos
ao(s) autor(es).
11. A Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) se reserva o direito de facultar os
artigos publicados para reprodução em seu sítio ou por meio de cópia xerográfica, com a
devida citação da fonte. Cada trabalho publicado dá direito a dois exemplares a seu(s)
autor(es), no caso de artigo, e um exemplar nos demais casos (notas, resenhas,
comunicações, ...).
12. Os conceitos emitidos nos trabalhos são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es),
não implicando, necessariamente, na concordância da Coordenação de Publicações e/ou
do Conselho Editorial.
13. Os trabalhos devem ser enviados à Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) -
Diretoria Executiva Nacional/Coordenação de Publicações - Terra Livre - Av. Prof.
Lineu Prestes, 332 -Edifício Geografia e História - Cidade Universitária - CEP 05508-
900 - São Paulo (SP)-Brasil. e-mail: terralivre@agb.org.br
14. A Coordenação de Publicações está composta com os seguintes companheiros(as):
Antonio Thomaz Júnior (AGB/Presidente Prudente-SP- thomazjrgeo@fct.unesp.br); Ana
Paula Maia Jansen (AGB/Rio Branco-AC- apjansen@gmail.com); José Alves (AGB/
Rio Branco-AC-bairral@hotmail.com); José Messias Bastos (AGB/Florianópolis-SC-
jbastos@cfh.ufsc.br); Sônia M. R. P. Tomasoni (AGB/Salvador-BA-
smtomasoni@hotmail.com).

302
Terra Livre - n. 29 (2): 293-300, 2007

TERRA LIVRE
SUBMISSION GUIDELINES

Terra Livre is a semestrial publication from the Association of Brazilian Geographers


(ABG) that aims to divulge present matters and issues concerned with the geographers
formation and practical affairs and with their participation in the construction of citizenship.
This effort receive writings as articles, notes, releases and so, from everybody that are
interested and participate of the knowledge shaped within Geography and that are related
to the theoretical, methodological and practical discussions developed and used in this
process, as far as under the conditions and situations that has been expressed and their
perspectives.
1. All text contributions mailed to this publication must be unpublished and writen in
portuguese, spanish, english or french.
2. Texts must be presented in the minimum extention of 15 and the maximun of 30 sheets,
with margins (right, left, top and bottom) of 3 cm, in white paper, A4 formal (210 x 297
mm), printed in only one side, with no handmaded corrections, mailed in two prinled
copies and one 3 ½ flexible disk copy from (IBM PC compatible). The file formal must
be MS Word, text using Times New Roman font, size 12 and space 1 ½ between lines.
3. Header must have Title (and Sublille if it’s the case) in portuguese, spanish, french and
english. The second line musl have author(s) name(s) and, in the third line, information
about the instilution(s) where they work, as well as their e-mail and postal address.
4. Text must have abstracts in portuguese, spanish, french and english, from 10 to 15
lines, simple space between lines, and five keywords.
5. Text structure must be divided by not-numbered subtitles. It’s recommended that all
texts may have an introduction and a conclusion parts.
6. Footnotes may not be used for bibliographic references. This aspect should be used
only if it’s extremely necessary and each note must be a maximum of three lines long.
7. Long textual citations (more than 3 lines) must be in a different paragraph. When
mentioning ideas or informations along the lext, they must be formatted as (Author last
name, date) or (Aulhor last name, date, page). Example: (OLIVEIRA, 1991) or
(OLIVEIRA, 1991, p. 25). When lhe author’s name is part of the text, only the date must
be parenthesis indicated. Example: “By this respect, Milton Santos showed lhe limits...
(1989).” Different titles from the same author published in the same year must be identified
by a low case letter after the date. Example: (SANTOS, 1985a), (SANTOS, 1985b).
8. Bibliography must be presented in the end of lhe text, in alphabetical order from the
last names of the autors, as in lhe examples:
a) when it’s a book: LASTNAME, Name. Book title. Place of publication:
Editors, date. Example: VALVERDE, Orlando. Estudos de Geografia
Agrária Brasileira. Petrópolis: editora Vozes, 1985.
b) when it’s a book chapter: LASTNAME, Name. Chapter title. In:
LASTNAME, Name (Org.). Book title. Place of publicalion: Editors, date,
fïrst page-last page. Example: FRANK, Mônica Weber. Análise geográfica
para implantação do Parque Municipal de Niterói, Canoas - RS. In:
SUERTEGARAY, Dirce. BASSO, Luís. VERDUM, Roberto (Org.).
Ambiente e lugar no urbano: a Grande Porto Alegre. Porto Alegre: Editora
da Universidade, 2000, p.67-93.
c) When it’s an article: LASTNAME, Name. Article litle. Publication title,

303
SUBMISSION GUIDELINES
place of publication, volume of publication, number of publication, firstpage-

last page, month. Year. Ex.: SEABRA, Manoel F. G. Geografïa(s)? Orientação,


São Paulo, n.5, p.9-17, oul. 1984.
d) When it’s a MSc, DSc or PHD Thesis: LASTNAME, Name. Thesis
title. Place: Institution, date. Number of pages. (Type, degreee and knowledge
field). Ex.: SILVA, José Borzacchiello da. Movimentos sociais populares
em Fortaleza: uma abordagem geográfica. São Paulo: Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1986.
268p. (Tese, doutorado em Ciências: Geografia Humana).
9. All images, figures, tables, drawings, graphs, maps and pictures must be mailed attached
as digital files (JPG or TIF formais are accepted). If it’s not in digital format, we prefer
printings in white paper. In this cases, photos must be supported in brilliant papers and
printed in black & white Standard. Maximum size, including legends and titles, are Hight:
15 cm and Width: 23 cm. The authors must indicate the right position to insert the pictures
in the text, indicating as [(fig, photo, chart, table,...) (number)].
10. The original submission materiais will be evaluated by the Coordination of Publications
of ABG, that can accept, refuse or return the original materiais for further editing by the
authors. The text will be sent to the scientific commission members, whose names will
not be divulged, as well as the author’s names that are submiting materiais. The original
texts not approved will be returned to the authors.
11. The Association of Brazilian Geographers reserves the right to publish all approved
articles in it’s internet website, in the regular printed publication and in any other media,
but granting the authors and other sources citation, as well. Each published article allow
two printed volumes to their authors. Other types of contributions (notes, comments etc.)
allows one printed volumes to their authors.
12. The concepts evolved in the contributions are from entire response of their authors,
and are not, necessarily, of agreement from the Publications Coordinator of ABG nor the
scientific commission members.
13. Submissions must be sent to Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) - Diretoria
Executiva Nacional/Coordenação de Publicações - Terra Livre - Av. Prof. Lineu Prestes,
332 -Edifício Geografia e História - Cidade Universitária - CEP 05508-900 - São Paulo
(SP) - Brasil, e-mail: terralivre@agb.org.br
14. Publishing management is constituted by the fllowing members: Antonio Thomaz
Júnior (AGB/Presidente Prudente-SP- thomazjrgeo@fct.unesp.br); Ana Paula Maia
Jansen (AGB/Rio Branco-AC- apjansen@gmail.com); José Alves (AGB/Rio Branco-
AC- bairral@hotmail.com); José Messias Bastos (AGB/Florianópolis-SC-
jbastos@cfh.ufsc.br); Sônia M. R. P. Tomasoni (AGB/Salvador-BA-
smtomasoni@hotmail.com).

304
Terra Livre - n. 29 (2): 293-300, 2007

REVISTA TERRA LIVRE


NORMAS PARA PUBLICACIÓN

Terra Livre es una publicación semestral de la Asociación de los Geógrafos Brasileños


(AGB) que tiene por objetivo divulgar matérias concernientes a los temas presentes en la
formación y práctica de los geógrafos y profisionales afins y su participación en la
construcción de Ia ciudadanía. En ella son escogidos textos sobre la forma de artículos,
notas, resenas, comunicaciones, entre otras, de todos los que se interesan y participan del
conocimiento propiciado por la Geografia, y que estén relacionados con las discusiones
que envuelven las teorias, metodologias y prácticas desarrolladas y utilizadas en este
proceso, así como las condiciones y situaciones sobre las cuales se viene manifestando y
sus perspectivas.
1. Todos los textos enviados a esta revista deben ser inéditos y redirigidos en português,
español, inglés o francés.
2. Los textos deben ser presentados con una extensión mínima de 15 y máxima de 30
hojas, con margen (derecha, izquierda, superior e inferior) de 3 cm. En hojas de papel
blanco, formato A-4 (210x297mm), impreso en una sola cara, sin rasgunos y/o
rectificaciones, enviados en dos vias impresas acompanadas de versión en disket (de
3,5") de computador padrón IBM PC, compuestos en Word para Windows, utilizando la
fuente Times New Roman, tamano 12, espacio 1e ½ .
3. La Sumilla debe contener el título (y subtítulo, si hubiera) en português, espanol y
francês o inglês. En la segunda línea, el/los nombre(s) del/los autor(es), y, en la tercera,
las informaciones referentes a la(s) institución(es) a Ia que pertenece(n), así como el/los
correo(s) electrónico(s) y dirección postal do(s) autor(es).
4. El texto debe ser acompanado de resúmenes en português, espanol y francês o inglês,
con mínimo de 10 e máximo de 15 líneas, en espacio simple, y una relación de 5 palabras
clave que identifiquen el contenido del texto.
5. La estructura del texto debe ser dividida en partes no numeradas y con subtítulos. Es
esencial que contenga introducción y conclusión o consideraciones finales.
6. Las Notas de zócalo no deberán ser usadas para referencias bibliográficas.
Ese recurso puede ser usado cuando sea extremamente necesario y cada nota debe
tener en torno de
3 líneas.
7. Las citaciones textuales largas (más de 3 líneas) deben constituir un párrafo
independiente. Las menciones a ideas y/o informaciones en el transcurrir del texto deben
subordinarse al esquema (Apellido del autor, fecha) o (Apellido del autor, fecha, página).
Por ejemplo.: (OLIVEIRA, 1991) o (OLIVEIRA, 1991, p.25). Si el nombre dei autor
este citado en el texto, se indica solo Ia fecha entre paréntesis. Por .ejemplo.: “A ese
respeto, Milton Santos demostro los limites... (1989)”. Diferentes títulos del mismo autor
publicados en el mismo año deben ser identificados por una letra minúscula después de la
fecha. Por ejemplo: (Santos, 1985a), (Santos, 1985b).
8. La bibliografia debe ser presentada a finales del trabajo, en orden alfabética de apellido
de/los autor(es), como en los siguientes ejemplos.
a) En el caso de libro: APELLIDO, Nombre. Título de Ia obra. Local de
publicación: Editora, fecha. Por ejemplo.: VALVERDE, Orlando. Estúdios
de Geografia Agrária Brasileira. Petrópolis: editora Vozes, 1985

b) En el caso de capítulo de libro: APELLIDO, Nombre. Título del capítulo. In:

305
NORMAS PARA PUBLICACIÓN

APELLIDO, Nombre (Org.). Título dei libro. Local de publicación: Editora,


fecha, página inicial-página final. Por ejemplo.: FRANK, Mónica Weber.
Análisis geográfico para implantación dei Parque Municipal de Niterói,
Canoas-RS. In: SUERTEGARAY, Dirce. BASSO, Luís. VERDUM, Roberto
(Org.). Ambiente y lugar en el urbano: La Gran Porto Alegre. Porto Alegre:
Editora de Ia Universidad, 2000, p.67-93
c) En el caso de artículo: APELLIDO, Nombre. Título del artículo. Título
del periódico, local de publicación, volumen del periódico, número del fascículo,
página inicial- página final, mes(es). Año. Por ejemplo.: SEABRA, Manuel
F. G. Geografía(s) Orientación, São Paulo, n.5, p.9-17, out. 1984.
d) En el caso de disertaciones y tesis: APELLIDO, Nombre. Título de la
disertación (tesis). Local: Institución en que fue defendida, fecha. Número
de páginas. (Categoria, grado y área de concentración). Por ejemplo.: SILVA,
José Borzacchiello de la. Movimientos sociales populares en Fortaleza: un
abordaje geográfico. São Paulo: Facultad de Filosofia, Letras y Ciências
Humanas de la Universidad de São Paulo, 1986. 268p. (Tesis, doctorado en
Ciências: Geografia Humana).
9. Las ilustraciones (figuras, cuadros, dibujos, gráficos, fotografias) deben ser enviadas
preferentemente en archivos digitales (formatos JPG o TIF). De lo contrario, se adoptara
el soporte de papel blanco. En este caso, las fotografias deben tener soporte brillante en
negro & blanco. Las dimensiones máximas, incluyendo leyenda y título, son de 15 cm, en
el sentido horizontal de la hoja, y 23 cm, en su sentido vertical, al/los autor(es) compite
indicar la disposición preferente de inserción de las ilustraciones en el texto, utilizando,
para eso, en el lugar deseado, la siguiente indicación: [(figura, foto, cuadro, tabla,...) (n0)].
10. Los originales serán apreciados por la Coordinación de Publicaciones, que podrá
aceptar, rechazar o reapresentar el original al/los autor(es) con sugerencias de alteraciones
editoriales. Los artículos serán enviados a los revisores, cuyos nombres permanecerán
en sigilo, omitiéndose también el/los nombre(s) del/los autor(es). Los originales no
aprobados serán devueltos al/los autor(es).
11. La Asociación de los Geógrafos Brasileños (AGB) se reserva el derecho de facultar
los artículos publicados para reproducción en su sitio o por médio de fotocopia, con a
debida citación de la fuente. Cada trabajo publicado da derecho a dos ejemplares a su(s)
autor(es), en el caso de artículo, y uno ejemplares en los demás casos (notas, resenas,
comunicaciones,...).
12. Los conceptos emitidos en los trabajos son de responsabilidad exclusiva de/los autor(es),
no implicando, necesariamente, en la concordância de la Coordinación de Publicaciones
y/o del Consejo Editorial.
13. Los trabajos deben ser enviados a la Asociación de los Geógrafos Brasileños
(AGB) - Dirección Ejecutiva Nacional/Coordinación de Publicaciones - Terra Livre -
Av. Prof. Lineu Prestes, 332 -Edifício Geografia e Historia - Ciudad Universitária -
CEP 05508-900 - São Paulo (SP)-Brasil. e-mail: terralivre@agb.org.br
14. La Coordenación de Publicaciones está composta con los seguintes companeros(as):
Antonio Thomaz Júnior (AGB/Presidente Prudente-SP - thomazjrgeo@fct.unesp.br); Ana
Paula Maia Jansen (AGB/Rio Branco-AC- apjansen@gmail.com); José Alves (AGB/
Rio Branco-AC-bairral@hotmail.com); José Messias Bastos (AGB/Florianópolis-SC-
jbastos@cfh.ufsc.br); Sônia M. R. P. Tomasoni (AGB/Salvador-BA-
smtomasoni@hotmail.com).

306
COMPÊNDIO
DOS NÚMEROS ANTERIORES

307
308
Terra Livre - n. 29 (2): 301-318, 2007

Compêndio dos números anteriores

01) MOREIRA, Ruy. O Plano Nacional de Reforma Agrária em questão. Ano 1, n. 1,


p. 6-19, 1986.
02) THOMAZ JÚNIOR, Antonio. As agroindústrias canavieiras em Jaboticabal e a
territorialização do monopólio. Ano 1, n. 1, p. 20-25, 1986.
03) OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A Apropriação da renda da terra pelo capital na
citricultura paulista. Ano 1, n. 1, p. 26-38, 1986.
04) VALVERDE, Orlando. A floresta amazônica e o ecodesenvolvimento. Ano 1, n. 1,
p. 39-42, 1986.
05) SALES, W. C. de C., CAPIBARIBE, P. J. A., RAMOS, P., COSTA, M. C. L. da.
Os agrotóxicos e suas implicações socioambientais. Ano 1, n. 1, p. 43-45, 1986.
06) CARVALHO, Marcos Bernardino de. A natureza na Geografia do ensino médio.
Ano 1, n. 1, p. 46-52, 1986.
07) SANTOS, Douglas. Estado nacional e capital monopolista. Ano 1, n. 1, p. 53-61,
1986.
08) CORRÊA, Roberto Lobato. O enfoque locacional na Geografia. Ano 1, n. 1, p. 62-
66, 1986.
09) PONTES, Beatriz Maria Soares. Uma avaliação da Lei Nacional do Uso do Solo
Urbano.
Ano 1, n. 1, p. 67-72, 1986.
10) PLANO DIRETOR DA AGB NACIONAL GESTÃO 85/86. Ano 1, n. 1, p. 73-75,
1986.
11) A AGB e o documento final do projeto diagnóstico e avaliação do ensino de Geografia
no Brasil. Ano 1, n. 1, p. 76-77, 1986.
12) GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Reflexões sobre Geografia e Educação: notas
de um debate. n. 2, p. 9-42, jul.1987.
13) VLACH, Vânia Rúbia Farias. Fragmentos para uma discussão: método e conteúdo
no ensino da Geografia de 1° e 2° graus. n. 2, p. 43-58, jul.1987.
14) VESENTINI, José William. O método e a práxis (notas polêmicas sobre Geografia
tradicional e Geografia crítica). n. 2, p.5 9-90, jul.1987.
15) REGO, Nelson. A unidade (divisão) da Geografia e o sentido da prática. n. 2, p. 91-
114, jul.1987.
16) PONTUSCHKA, Nídia Nacib. Análise dos planos de ensino da Geografia. n. 2, p.
115-127, jul.1987.
17) PAGANELLI, Tomoko Iyda. Para a construção do espaço geográfico na criança. n. 2,
p. 129-148, jul.1987.
18) VIANA, P.C.G., FOWLER, R.B, ZAPPIA, R.S., MEDEIROS, M.L.M.B.de.
Poluição das águas internas do Paraná por agrotóxico. n. 2, p. 149-154, jul.1987.
19) AB’ SABER, Aziz Nacib. Espaço territorial e proteção ambiental. n. 3, p. 9-31,
mar.1988.
20) GOMES, Horieste. A questão ambiental: idealismo e realismo ecológico. n. 3, p. 33-
54, mar.1988.

309
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES

21) BERRÍOS, ROLANDO. Planejamento ambiental no Brasil. n. 3, p. 55-63, mar.1988.


22) BRAGA, Ricardo Augusto Pessoa. Avaliação de impactos ambientais: uma abordagem
sistêmica. n. 3, p. 65-74, mar.1988.
23) LIMA, Samuel do Carmo. Energia nuclear – uma opção perigosa. n. 3, p. 75-88,
mar.1988.
24) SUERTEGARAY, Dirce Maria Antunes e SCHÄFFER, Neiva Otero. Análise
ambiental: a atuação do geógrafo para e na sociedade. n. 3, p. 89-103, mar.1988.
25) ESTRADA, Maria Lúcia. Algumas considerações sobre a Geografia e o seu ensino
- o caso da industralização brasileira. n. 3, p. 105-120, mar.1988.
26) MESQUITA, Zilá. Os “espaços” do espaço brasileiro em fins do século XX n. 4, p.
9-38, jul.1988.
27) RIBEIRO, Wagner Costa. Relação espaço/tempo: considerações sobre a materialidade
e dinâmica da história humana. n. 4, p. 39-53, jul.1988.
28) SILVA, José Borzacchiello da. Gestão democrática do espaço e participação dos
Geógrafos. n. 4, p. 55-76, jul.1988.
29) REGO, Nelson. A experiência de autogestão dos trabalhadores agrários de Nova
Ronda Alta e o seu significado para o Movimento dos Sem Terra. n. 4, p. 65-76, jul. 1988.
30) VALLEJO, Luiz Renato. Ecodesenvolvimento e o mito do progresso. n. 4, p. 77-87,
jul.1988.
31) VLACH, Vânia Rubia Farias. Rediscutindo a questão acerca do livro didático de
Geografia para o ensino de 1° e 2° graus. n. 4, p. 89-95, jul.1988.
32) SCHÄFFER, Neiva Otero. Os estudos sociais ocupam novamente o espaço... da
discussão. n. 4, p. 97-108, jul.1988.
33) SANTOS, Milton. O espaço geográfico como categoria filosófica. n. 5, p. 9-20, 1988.
34) SOUZA, Marcelo José Lopes de. “Espaciologia”: uma objeção (crítica aos
prestigiamentos pseudo-críticos do espaço social). n. 5, p. 21-45, 1988.
35) GOMES, Paulo César da Costa e COSTA, Rogério Haesbaert da. O espaço na
modernidade). n. 5, p. 47-67, 1988.
36) SILVA, Mário Cezar Tompes da. O papel do político na construção do espaço dos
homens). n. 5, p. 69-82, 1988.
37) SOUZA Marcos José Nogueira de. Subsídios para uma política conservacionista dos
recursos naturais renováveis do Ceará). n. 5, p. 83-101, 1988.
38) KRENAK, Ailton. Tradição indígena e ocupação sustentável da floresta. n. 6, p. 9-
18, ago.1989.
39) MOREIRA, Ruy. A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária
no Brasil. n. 6, p. 19-63, ago.1989.
40) SADER, Regina. Migração e violência: o caso da Pré-Amazônia Maranhense. n. 6,
p. 65-76, ago.1989.
41) FAULHABER, Priscila. A terceira margem: índios e ribeirinhos do Solimões. n. 6, p.
77-92, ago.1989.
42) TARELHO, Luiz Carlos. Movimento Sem Terra de Sumaré. Espaço de
conscientização e de luta pela posse da terra. n. 6, p. 93-104, ago.1989.
43) OLIVEIRA, Bernadete de Castro. Reforma agrária para quem? Discutindo o campo

310
Terra Livre - n. 29 (2): 301-318, 2007

no estado de São Paulo. n. 6, p. 105-114, ago.1989.


44) BARBOSA, Ycarim Melgaço. O movimento camponês de Trombas e Formoso. n.
6 ,
p. 115-122, ago.1989.
45) MENDES, Chico. A luta dos povos da floresta. n. 7, p. 9-21, 1990.
46) BARROS, Raimundo. O seringueiro. n. 7, p. 23-42, 1990.
47) GONÇALVES, Carlos Walter Porto. A defesa da natureza começa pela terra. n. 7,
p.4 3-52, 1990.
48) COLTRINARI, Lylian. A Geografia e as mudanças ambientais. n. 7, p. 53-57, 1990.
49) SILVA, Armando Corrêa da. Ponto de vista: o pós-marxismo e o espaço cotidiano. n. 7,
p. 59-62, 1990.
50) COSTA, Rogério Haesbaert da. Filosofia, Geografia e crise da modernidade. n. 7,
p. 63-92, 1990.
51) RIBEIRO, Wagner Costa. Maquiavel: uma abordagem geográfica e (geo)política. n. 7,
p. 3-107, 1990.
52) CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos e GOULART, Lígia Beatriz. Uma
contribuição à reflexão do ensino de geografia: a noção de espacialidade e o estatuto
da natureza. n. 7,
p. 109-118, 1990.
53) CORDEIRO, Helena K. Estudo sobre o centro metropolitano de São Paulo. n. 8,
p. 7-33, abr.1991.
54) MAURO, C.A., VITTE, A.C., RAIZARO, D.D., LOZANI, M.C.B., CECCATO,
V.A. Para salvar a bacia do Piracicaba. n. 8, p. 35-66, abr.1991.
55) PAVIANI, Aldo. Impactos ambientais e grandes projetos: desafios para a universidade.
n. 8, p. 67-76, abr.1991.
56) FURIAN Sônia. “A nave espacial terra: para onde vai?” n. 8, p.77-82, abr.1991.
57) ALMEIDA, Rosângela D. de. A propósito da questão teórico-metodológica sobre o
ensino de Geografia. n. 8, p. 83-90, abr.1991.
58) FILHO, Fadel D. Antonio e ALMEIDA, Rosângela D. de. A questão metodológica
no ensino da Geografia: uma experiência. n. 8, p. 91-100, abr.1991.
59) ESCOLAR, M., ESCOLAR, C., PALACIOS, S.Q. Ideologia, didática e
corporativismo: uma alternativa teórico-metodológica para o estudo histórico da Geografia
no ensino primário e secundário. n. 8, p. 101-110, abr.1991.
60) ARAÚJO, Regina e MAGNOLI, Demétrio. Reconstruindo muros: crítica à proposta
curricular de Geografia da CENP-SP. n. 8, p. 111-119, abr.1991.
61) PEREIRA, D., SANTOS, D., CARVALHO, M. de. A Geografia no 1° grau: algumas
reflexões. n. 8, p. 121-131, abr.1991.
62) SOARES, Maria Lúcia de Amorim. A cidade de São Paulo no imaginário infantil
piedadense. n. 8, p. 133-155, abr.1991.
63) MAMIGONIAN, Armen. A AGB e a produção geográfica brasileira: avanços e
recuos. n. 8, p.157-162, abr.1991.
64) SANTOS, Milton. A evolução tecnológica e o território: realidades e perspectivas. n. 9,
p. 7-17, jul.-dez.1991.

311
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES

65) LIMA, Luiz Cruz. Tecnopólo: uma forma de produzir na modernidade atual. n. 9, p.
19-40, jul.-dez.1991.
66) GUIMARÃES, Raul Borges. A tecnificação da prática médica no Brasil: em busca
de sua geografização. n. 9, p. 41-55, jul.-dez.1991.
67) PIRES, Hindemburgo Francisco. As metamorfoses tecnológicas do capitalismo no
período atual. n. 9, p. 57-89, jul.-dez.1991.
68) OLIVEIRA, Márcio de. A questão da industrialização no Rio de Janeiro: algumas
reflexões. n. 9, p. 91-101, jul.-dez.1991.
69) HAESBAERT, Rogério. A (des)or-dem mundial, os novos blocos de poder e o sentido
da crise. n. 9, p. 103-127, jul.-dez.1991.
70) SILVA, Armando Corrêa da. Ontologia analítica: teoria e método. n. 9, p. 129-133,
jul.-dez.1991.
71) SILVA, Eunice Isaías da. O espaço: une/separa/une. n. 9, p. 135-141, jul.-dez.1991.
72) ANDRADE, Manuel Correia de. A AGB e o pensamento geográfico no Brasil. n. 9,
p. 143-152, jul.-dez.1991.
73) MORAES, Rubens Borba de. Contribuições para a história do povoamento em São
Paulo até fins do século XVIII. n. 10, p. 11-22, jan.-jul. 1992.
74) AZEVEDO de Aroldo. Vilas e cidades do Brasil colonial. n. 10, p. 23-78, jan.-jul.
1992.
75) PETRONE, Pasquale. Notas sobre o fenômeno urbano no Brasil. n. 10, p. 79-92,
jan.-jul. 1992.
76) CORRÊA, Roberto Lobato. A vida urbana em Alagoas: a importância dos meios de
transporte na sua evolução. n.10, p.93-116, jan.-jul. 1992.
77) VALVERDE, Orlando. Pré-história da AGB carioca. n. 10, p. 117-122, jan.-jul. 1992.
78) SOUZA, Marcelo José Lopes de. Planejamento Integrado de Desenvolvimento:
natureza, validade e limites. n. 10, p. 123-139, jan.-jul. 1992.
79) ANDRADE, Manuel Correia de. América Latina: presente, passado e futuro. n. 10,
p. 140-148, jan.-jul. 1992.
80) GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Geografia política e desenvolvimento sustentável.
n. 11-12, p. 9-76, ago.92-ago.93.
81) RODRIGUES, Arlete Moysés. Espaço, meio ambiente e desenvolvimento: reeleituras
do território. n. 11-12, p. 77-90, ago.92-ago.93.
82) EVASO, A.S., VITIELLO, M.A., JUNIOR, C.B., NOGUEIRA, S.M., RIBEIRO,
W.C. Desenvolvimento sustentável: mito ou realidade? n. 11-12, p.91-101, ago.92-ago.93.
83) DAVIDOVICH, Fany. Política urbana no Brasil, ensaio de um balanço e de
perspectiva. n. 11-12, p. 103-117, ago.92-ago.93.
84) MARTINS, Sérgio. A produção do espaço na fronteira: a acumulação primitiva revisitada.
n. 11-12, p. 119-133, ago.92-ago.93.
85) IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. Os dilemas históricos da questão agrária no Brasil.
n. 11-12, p. 135-151, ago.92-ago.93.
86) FERNANDES, Bernardo Mançano. Reforma agrária e modernização no campo.
n. 11-12, p. 153-175, ago.92-ago.93.
87) ROCHA, Genylton Odilon Rêgo da. Ensino de Geografia e a formação do geógrafo-

312
Terra Livre - n. 29 (2): 301-318, 2007

educador. n. 11-12, p. 177-188, ago.92-ago.93.


88) PONTUSCHKA, Nídia Nacib. Licenciandos de Geografia e as representações sobre
o “ser professor”. n. 11-12, p. 189-207, ago.92-ago.93.
89) VESENTINI, José William. O novo papel da escola e do ensino da Geografia na
época da terceira revolução industrial. n. 11-12, p. 209-224, ago.92-ago.93.
90) PAGANELLI, Tomoko Iyda. Iniciação às ciências sociais: os grupos, os espaços, os
tempos. n. 11-12, p. 225-236, ago.92-ago.93.
91) RIBEIRO, Wagner Costa. Do lugar ao mundo ou o mundo no lugar? n. 11-12, p. 237-
242, ago.92-ago.93.
92) PINHEIRO, Antonio Carlos e MASCARIN, Silvia Regina. Problemas sociais da
escola e a contribuição do ensino de Geografia. n. 11-12, p. 243-264, ago.92-ago.93.
93) SILVA, Armando Corrêa da. A contrvérsia modernidade x pós-modernidade. n. 11-12,
p. 265-268, ago.92-ago.93.
94) ROSA, Paulo Roberto de Oliveira. Contextos e circuntâncias: princípio ativo das
categorias. n. 11-12, p. 269-270, ago.92-ago.93.
95) CALLAI, Helena Copetti. O meio ambiente no ensino fundamental. n. 13, p. 9-19,
1997.
96) CAMARGO, L.F. de F., FORTU-NATO, M.R. Marcas de uma política de exclusão
social para a América Latina. n. 13, p. 20-29, 1997.
97) KAERCHER, Nestor André. PCN’s: futebolistas e padres se encontram num Brasil
que não conhecemos. n. 13, p. 30-41, 1997.
98) CARVALHO, Marcos B. de. Ratzel: releituras contemporâneas. Uma reabilitação? n.
13, p. 42-60, 1997.
99) PONTES, Beatriz Maria Soares. Economia e território sob a ótica do estado autoritário
(1964-1970). n. 13, p. 61-90, 1997.
100) SOUSA NETO, Manuel Fernandes de. A ágora e o agora. n. 14, p. 11-21, jan.-jul.
1999.
101) FILHO, Manuel Martins de Santana. Sobre uma leitura alegórica da escola. n. 14,
p. 22-29, jan.-jul. 1999.
102) COUTO, Marcos Antônio Campos e ANTUNES, Charlles da França. A formação
do professor e a relação escola básica-universidade: um projeto de educação. n. 14, p.
30-40, jan.-jul. 1999.
103) PEREIRA, Diamantino. A dimensão pedagógica na formação do geógrafo. n. 14,
p. 41-47, jan.-jul. 1999.
104) CASTELLAR, Sonia Maria Vanzella. A formação de professores e o ensino de
Geografia. n. 14, p. 48-55, jan.-jul. 1999.
105) CALLAI, Helena Copetti. A Geografia no ensino médio. n. 14, p. 56-89, jan.-jul.
1999.
106) PONTUSCHKA, Nídia Nacib. Interdisciplinaridade: aproximações e fazeres. n. 14,
p. 90-110, jan.-jul. 1990.
107) CAVALCANTI, Lana de Souza. Propostas curriculares de Geografia no ensino:
algumas referências de análise. n. 14, p. 111-128, jan.-jul. 1990.
108) SOUZA NETO, Manoel Fernandes de. A Ciência Geográfica e a construção do

313
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES

Brasil. n. 15, p. 9-20, 2000.


109) DAMIANI, Amélia Luísa. A metrópole e a indústria: reflexões sobre uma
urbanização crítica. n. 15, p. 21-37, 2000.
110) SOUZA, Marcelo Lopes de. Os orçamentos participativos e sua espacialidade:
uma agenda de pesquisa. n. 15, p.39-58, 2000.
111) FERNANDES, Bernardo Mançano. Movimento social como categoria geográfica. n.
15, p. 59-85, 2000.
112) ALENTEJANO, Paulo Roberto R. O que há de novo no rural brasileiro? n. 15,
p. 87-112, 2000.
113) BRAGA, Rosalina. Formação inicial de professores: uma trajetória com
permanências eivadas por dissensos e impasses. n. 15, p. 113-128, 2000.
114) ROCHA, Genylton Odilon Rego da. Uma breve história da formação do(a)
professor(a) de Geografia do Brasil. n. 15, p. 129-144, 2000.
115) PONTUSCHKA, Nídia Nacib. Geografia, representações sociais e escola pública. n. 15,
p. 145-154, 2000.
116) OLIVEIRA, Márcio Piñon. Geografia, Globalização e cidadania. n. 15, p. 155-164,
2000.
117) GONÇALVES, Carlos Walter Porto. “Navegar é preciso, viver não é preciso”:
estudo sobre o Projeto de Perenização da Hidrovia dos Rios das Mortes: Araguaia e Tocantins. n. 15,
p. 167-213, 2000.
118) VITTE, Antonio Carlos. Considerações sobre a teoria da etchplanação e sua
aplicação nos estudos das formas de relevo nas regiões tropicais quentes e úmidas. n. 16,
p. 11-24, 2001.
119) RAMIRES, Blanca. Krugman y el regresso a los modelos espaciales: ¿La nueva
geografía? n. 16, p. 25 - 38, 2001.
120) FERREIRA, Darlene Ap. de Oliveira. Geografia Agrária no Brasil: periodização e
conceituação. n. 16, p. 39-70, 2001.
121) MAIA, Doralice Sátyro. A Geografia e o estudo dos costumes e das tradições. n. 16,
p. 71-98, 2001.
122) SPOSITO, Eliseu. A propósito dos paradigmas de orientações teórico-metodológicas
na Geografia contemporânea. n. 16, p. 99-112, 2001.
123) MENDONÇA, Francisco. Geografia socioambiental. n. 16, p. 113-132, 2001.
124) CALLAI, Helena Copetti. A Geografia e a escola: muda a geografia? Muda o
Ensino? n. 16, p. 133-152, 2001.
125) PIRES, Hindenburgo Francisco. “Ethos” e mitos do pensamento único globaltotalitário.
n. 16, p. 153-168, 2001.
126) REGO, Nelson. SUERTEGARAY, Dirce Maria. HEIDRICH, Álvaro. O ensino
de Geografia como uma hermenêutica instauradora. n. 16, p. 169-194, 2001.
126) SUERTEGARAY, Dirce M. Antunes; NUNES, João Osvaldo Rodrigues. A natureza
da Geografia Física na Geografia. n. 17, p. 11-24, 2001.
127) OLIVA, Jaime Tadeu. O espaço geográfico como componente social. n. 17, p. 25-
48, 2001.

314
Terra Livre - n. 29 (2): 301-318, 2007

128) NETO, João Lima Sant’anna. Por uma Geografia do Clima – antecedentes históricos,
paradigmas contemporâneos e uma nova razão para um novo conhecimento. n. 17, p. 49-
62, 2001.
129) SEGRELLES, José Antonio. Hacia uma enseñanza comprometida y social de la
Geografía en la universidad. n. 17, p. 63-78, 2001.
130) RIBEIRO, Júlio Cézar; GONÇALVES, Marcelino Andrade. Região: uma busca
conceitual pelo viés da contextualização histórico-espacial da sociedade. n. 17, p. 79-98,
2001.
131) CIDADE, Lúcia Cony Faria. Visões de mundo, visões da Natureza e a formação
de paradigmas geográficos. n. 17, p. 99-118, 2001.
132) NETO, Manuel Fernandes de Sousa. Geografia nos trópicos: história dos náufragos
de uma Jangada de Pedras. n. 17, p. 119-138, 2001.
133) ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. O espaço geográfico dos remanecentes de
antigos quilombos no Brasil. n. 17, p. 139-154, 2001.
134) GUIMARÃES, Raul Borges. Saúde urbana: velho tema, novas questões. n.17, p.
155-170.
135) CAPEL, Horácio. A Geografia depois dos atentados de 11 de setembro. Ano 18, v.
1, n. 18, p. 11-36.
136) HAESBAERT, Rogério. A multiterritorialidade do mundo e o exemplo da Al Qaeda.
Ano 18, v. 1, n. 18, p. 37-46.
137) ZANOTELLI, Cláudio Luiz. Globalização, Estado e culturas crimonosas. Ano 18, v.1,
n. 18, p. 47-62.
138) SEGRELLES, José Antonio. Integração regional e globalização. Uma reflexão
sobre casos do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da Área de Livre Comércio das
Américas desde uma perspectiva européia. Ano 18, v. 1, n. 18, p. 63-74,
139) RIBEIRO, Wagner Costa. Mudanças climáticas, realismo e multilateralismo. Ano
18, v. 1, n. 18, p. 75-84.
140) MANGANO, Stefania. Evolução do conceito da planificação territorial na Itália. Ano 18,
v. 1, n. 18, p. 85-94.
141) STRAFORINI, Rafael. A totalidade do mundo nas primeiras séries do ensino
fundamental: um desafio a ser enfrentado. Ano 18, v. 1, n. 18, p. 95-114.
142) KEINERT, Tânia M. M., KARRUZ, Ana Paula, KARRUZ, Silvia Maria. Sistemas locais
de informação e a gestão pública da qualidade de vida nas cidades locais. Ano 18, v. 1, n. 18,
p. 115-132.
143) GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Dilemas nas (re)estruturações das metrópoles. Ano 18,
v. 1, n. 18, p. 133-142.
144) DINIZ Filho, Luis Lopes. Contribuições e equívocos das abordagens marxistas na Geografia
Econômica: um breve balanço. Ano 18, v. 1, n. 18, p. 143-160.
145) CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Geografia brasileira, hoje: algumas reflexões. Ano 18,
v. 1, n. 18, p. 161-178.
146) NUNES, Luci Hidalgo. Discussão acerca de mudanças climáticas (notas). Ano 18, v. 1,
n. 18, p. 179-184.

315
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES

147) MELAZZO, Everaldo Santos. Renda de cidadania: a saída é pela porta (resenha).
Ano 18, v. 1, n. 18, p. 185-186.
148) RAMIREZ, Blanca. Terra Incognitae: el surgimiento de nuevas regiones y territorios
em el marco de la globalización (resenha). Ano 18, v. 1, n. 18, p. 187-190.
149) MARTIN, Jean-Yves. Uma Geografia da nova radicalidade popular: algumas
reflexões a partir do caso do MST. Ano 18, v. 2, n.19, p. 11-35.
150) CALLE, Angel. Análisis comparado de movimientos sociales: MST, Guatemala y
España. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 37-58.
151) CALDERÓN ARAGÓN, Georgina. Un lugar en la bandera (la marcha zapatista). Ano 18,
v. 2, n. 19, p. 59-74.
152) FABRINI, João Edmilson. O projeto do MST de desenvolvimento territorial dos
assentamentos e campesinato. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 75-94.
153) MARQUES, Marta Inez Medeiros. O conceito de espaço rural em questão. Ano 18,
v. 2, n. 19, p. 95-112.
154) FERNANDES, Bernardo M., DA PONTE, Karina F. As vilas rurais do Estado do
Paraná e as novas ruralidades. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 113-126.
155) SMITH, Neil. Geografia, diferencia y las políticas de escala. Ano 18, v. 2, n. 19, p.
127-146.
156) ARANA, Alva Regina Azevedo. Os avicultores integrados no Brasil: estratégias e
adaptações – o caso Coperguaçu Descalvado – SP. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 147-162.
157) GÓES, Eda, MAKINO, Rosa Lúcia. As unidades prisionais do Oeste Paulista:
implicações do aprisionamento e do fracasso da tentativa da sociedade de isolar por
completo parte de si mesma. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 163-176.
158) LEAL, Antonio Cezar, THOMAZ Jr., Antonio, ALVES, Neri, GONÇALVES,
Marcelino A., DIVIESO, Eduardo P., CANTÓIA, Silvia, GOMES, Adriana M.,
GONÇALVES, Sara Maria M. P. S., ROTTA, Valdir E. A reinserção do lixo na sociedade
do capital: uma contribuição ao entendimento do trabalho na catação e na reciclagem.
Ano 18, v. 2, n. 19, p. 177-190.
159) SANTOS, Clézio. Globalização, turismo e seus efeitos no meio ambiente. Ano 18, v. 2, n.
19, p. 191-198.
160) REGO, Nelson. Geração de ambiências: três conceitos articuladores. Ano 18, v. 2, n. 19,
p. 199-212.
161) SILVA, Silvio Simione. A liberdade no “fazer ciência” em Geografia. Ano 18, v. 2, n. 19,
p. 213-228.
162) SILVA, Tânia Paula da. Fundamentos teóricos do cooperativismo agrícola e o MST.
Ano 18, v. 2, n. 19, p. 229-242.
163) TFOUNI, Leda Verdiani, ROMÃO, Lucília Maria Sousa. O discurso sobre Canudos
e a retórica do massacre. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 243-256.

316
Terra Livre - n. 29 (2): 301-318, 2007

164) FRANCO GARCÍA, Maria, THOMAZ Jr., Antonio. Trabalhadoras rurais e luta
pela terra no Brasil: interlocução entre gênero, trabalho e território. Ano 18, v. 2, n. 19, p.
257-272.
165) STACCIARINI, José Henrique Rodrigues. Ética, humanidade e ações por cidadania:
do impeachment de Collor ao Fome Zero do governo Lula. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 273-
284.
166) BESSAT, Frédéric. A mudança climática entre ciência, desafios e decisões: olhar
geográfico. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 11-26.
167) SARTORI, Maria da Graça Barros. A dinâmica do clima do Rio Grande do sul:
indução empírica e conhecimento científico. Ano 19, v. 1, n. 19, p. 27-49.
168) SANT’ANNA Neto, João Lima. Da complexidade física do universo ao cotidiano
da sociedade: mudança, variabilidade e ritmo climático. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 51-63.
169) ZAVATINI, João Afonso. A produção brasileira em climatologia: o tempo e o espaço
nos estudos do ritmo climático. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 65-100.
170) NUNES, Lucí Hidalgo. Repercussões globais, regionais e locais do aquecimento
global. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 101-110.
171) SILVA, Maria Elisa Siqueira, GUETTER, Alexandre K. Mudanças climáticas
regionais observadas no Estado do Paraná. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 111-126.
172) PACIORNIK, Newton. Mudança global do clima: repercussões globais, regionais e
locais. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 127-135.
173) VERÍSSIMO, Maria Elisa Zanella. Algumas considerações sobre o aquecimento
global e suas repercussões. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 137-143.
174) ASSIS, Eleonora Sad de. Métodos preditivos da climatologia como subsídios ao
planejamento urbano: aplicação em conforto térmico. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 145-158.
175) FRAGA, Nilson César. Clima, gestão do território e enchentes no Vale do Itajaí-SC.
Ano 19, v. 1, n. 20, p. 159-170.
176) BEJARÁN, R., GARÍN, A. De, SCHWEIGMANN, N. Aplicación de la predicción
meteorológica para el pronóstico de la abundancia potencial del Aedes aegypti en Buenos
Aires. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 171-178.
177) FERREIRA, Maria Eugenia M. Costa. “Doenças tropicais”: o clima e a saúde
coletiva. Alterações climáticas e a ocorrência de malária na área de influência do
reservatório de Itaipu, PR. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 179-191.
178) CONFALONIERI, Ulisses E. C. Variabilidade climática, vulnerabilidade social e
saúde no Brasil. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 193-204.
179) MENDONÇA, Francisco. Aquecimento global e saúde: uma perspectiva geográfica
– notas introdutórias. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 205-221.
180) CLAVAL, Paul. The logic of multilingual cities and their political problems. Ano 19, v. 2,
n. 21, p. 11-23.

317
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES

181) ALENTEJANO, Paulo Roberto R. As relações campo-cidade no Brasil do século XXI.


Ano 19, v. 2, n. 21, p. 25-39.
182) BOMBARDI, Larissa Mies. Geografia Agrária e responsabilidade social da ciência. Ano
19, v. 2, n. 21, p. 41-53.
183) GRABOIS, José, CEZAR, Lucia Helena da S., SANTOS, Cátia P. dos, GREGÓRIO Filho,
Gregório. O habitat e a questão social no Noroeste Fluminense. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 55-71.
184) ALMEIDA, Rose Aparecida de. O conceito de classe camponesa em questão. Ano 19,
v. 2, n. 21, p. 73-88.
185) FERNANDES, Bernardo M., SILVA, Anderson A., GIRARDI, Eduardo P.
DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra: uma experiência de pesquisa e
extensão no estudo da territorialização da luta pela terra. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 89-112.
186) OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Barbárie e modernidade: as transformações
no campo e o agronegócio no Brasil. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 113-156.
187) BERNARDES, Júlia Adão. Territorialização do capital, trabalho e meio ambiente
em Mato Grosso. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 157-167.
188) ABREU, Silvana de. Racionalização e ideologia: o domínio do capital no
espaço matogrossense. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 169-181.
189) OLIVEIRA, Cristiane Fernandes de. A busca do desenvolvimento sustentável na
gestão dos recursos hídricos brasileiros. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 183-192.
190) PASSOS, Messias Modesto dos. A construção da paisagem no Pontal do
Paranapanema – uma apreensão geo-foto-gráfica. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 193-211.
191) MARTINS, César Augusto Ávila. Empresas na pesca e aqüicultura: anotações do
uso do território. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 213-223.
192) ZANOTELLI, Cláudio Luiz. Desterritorialização da violência no capitalismo
globalitário: o caso do Brasil e do Espírito Santo. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 225-240.
193) MORATO, Rúbia G., KAWAKUBO, Fernando S., LUCHIARI, Ailton. Mapeamento
da qualidade de vida em áreas urbanas: conceitos e metodologias. Ano 19, v. 2, n. 21, p.
241-248.
194) HENRIQUE, Wendel. A natureza nos interstícios do social – uma leitura das idéias
de natureza nas obras de Milton Santos. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 249-262.
195) PANCHER, Andréia M. FREITAS, Maria Isabel C. de. Mapeamento do crescimento urbano
em áreas de várzea na passagem do Rio Corumbataí por Rio Claro/SP. Ano 19, v. 2, n. 21,
p. 263-279.
196) SPOSITO, Eliseu Savério. Dinâmica regional e diversificação industrial (Resenha). Ano 19, v.
2, n. 21, p. 281-284.
197) SEABRA, Manoel. Os primeiros anos da Associação dos Geógrafos Brasileiros. Ano 20,
v. 1, n. 22, p. 13-68.
198) VIEIRA, Alexandre B., PEDON, Nelson R. O papel das comunidades científicas: a
318
Terra Livre - n. 29 (2): 301-318, 2007

AGB Nacional e a Seção Local de Presidente Prudente/SP. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 71-83.
199) Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Dourados. AGB – Seção Dourados:
memória e história de um processo de construção coletiva. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 85-97.
200) SANTANA, Mário Rubem C., AMORIM, Itamar G. De, GOMES, Denize S. AGB
– Salvador, quase 50 anos de Geografia. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 99-112.
201) FONTOURA, Luiz Fernando M., DUTRA, Viviane S. Os 30 anos da Associação
dos Geógrafos Brasileiros – Seção Porto Alegre. Ano 20, v. 1, n. 22, p.113-123.
202) CROCETTI, Zeno Soares. AGB: Desejos de transformação. Ano 20, v. 1, n. 22, p.
125-132.
203) CHAVES, Manoel R., MESQUITA, Helena A. da, MENDONÇA, Marcelo R. Inserção,
crítica e intervenção na realidade: a AGB e a Geografia em Catalão – GO. Ano 20, v. 1, n. 22,
p. 133-143.
204) ALENTEJANO, Paulo Roberto R. AGB-Rio: 68 anos de história. Ano 20, v. 1, n. 22,
p. 145-152.
205) FONSECA, Valter Machado da. A história da AGB – Uberaba (MG) e a perspectiva de
construção de um pólo do pensamento geográfico no Triângulo Mineiro. Ano 20, v. 1, n. 22,
p. 153-160.
206) ROMANCINI, Sônia R., SILVESTRI Magno. Trajetória histórica e perspectivas
da AGB – Seção Local Cuiabá. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 161-168.
207) GOMES, Horieste. Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Goiânia. Ano 20, v. 1,
n. 22, p. 169-176.
208) ANTUNES, Charlles da França. AGB-Niterói: notas de um começo de história.
Ano 20, v. 1, n. 22, p. 177-189.
209) Diretoria Executiva da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Bauru. O
trabalho técnico-político-pedagógico da Associação dos Geógrafos Brasileiros na Seção
Local Bauru – AGB/Bauru. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 189-195.
210) RODRIGUES, Arlete Moysés. Contribuição da AGB na construção da Geografia
Brasileira: uma outra Geografia sempre é possível. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 199-209.
211) ANDRADE, Manuel C. De. A AGB – 1961/62 – Um depoimento. Ano 20, v. 1, n. 22,
p. 211-212.
212) ALEGRE, Marcos. Os setenta anos da AGB 1934 – 2004. Ano 20, v. 1, n. 22, p.
213-230.
213) ALVES, William Rosa. A permanente busca do horizonte: a história da AGB-BH. Ano 20,
v. 1, n. 22, p. 231-255.
214) RODRIGUES, Renata M. de A. Estudos de Impacto Ambiental e o perfil do geógrafo.
Ano 20, v. 1, n. 22, p. 237-248.
215) ELIAS, Denise, RODRIGUES, Renata M. de A. Os presidentes da Associação dos
Geógrafos Brasileiros. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 251-260.

319
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES

216) BENKO, Georges. Murano et les verries: um district industriel pas comme les autres.
Ano 20, v. 2, n. 23, p. 15-34.
217) HAESBAERT, Rogério. Precarização, Reclusão e “exclusão” territorial. Ano 20, v.
2, n. 23, p. 35-51.
218) GOETTERT, Jones Dari. “Lúcia Gramado Kaigang”: como me redescobri na Serra
Gaúcha. Ano 20, v. 2, n. 23, p. 53-74.
219) REFFATTI, Lucimara Vizzotto, REGO, Nelson. Representações de mundo, geografias
adversas e manejo simbólico – proximações entre clínica psicopedagógica e ensino de Geografia.
Ano 20, v. 2, n. 23, p. 75-85.
220) SILVEIRA, María Laura. Escala geográfica: da ação ao império? Ano 20, v. 2, n. 23,
p. 87-96.
221) LIMA, Luiz C., MONIÉ, Frédéric, BATISTA, Francisca G. A nova geografia econômica
mundial e a emergência de um novo sistema portuário no Estado do Ceará: o Porto do Pecém.
Ano 20, v. 2, n. 23, p. 97-109.
222) KAWAKUBO, Fernando S., MORATO, Rúbia G., CORREIA JUNIOR, Paulo A.,
LUCHIARI, Ailton. Utilização de imagens híbridas geradas a partir da transformação de IHS
e aplicação de segmentação no mapeamento detalhado do uso da terra. Ano 20, v. 2, n. 23,
p. 111-122.
223) SCOLESE, Eduardo. De FHC a Lula: manipulações, números, conceitos e promessas
de reforma agrária. Ano 20, v. 2, n. 23, p. 123-138.
224) OLIVEIRA, Ivanilton José de. Sustentabilidade de sistemas produtivos agrários em
paisagens do cerrado: uma análise no município de Jataí-GO. Ano 20, v. 2, n. 23, p. 139-159.
225) GADE, Daniel W. Geografia: leituras culturais (Resenha). Ano 20, v. 2, n. 23, p. 163-164.
226) CLAVAL, Paul. Geografia: leituras culturais (Resenha). Ano 20, v. 2, n. 23, p. 1165-167.
227) CLAVAL, Paul. The nature and scope of Political Geography. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 13-
28.
228) VLACH, Vânia R. F. Entre a idéia de território e a lógica da rede: desafios para o ensino
de Geografia. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 29-41.
229) AUED, Idaleto M.; ALBUQUERQUE, Edu Silvestre de O método de desconstituição
do capital e a Geografia. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 43-60.
230) HASSLER, Márcio L. Áreas de proteção ambiental e unidades territoriais de
planejamento na porção leste da região metropolitana de Curitiba. Ano 21, v. 1, n. 24, p.
61-75.
231) MORETTI, Edvaldo C.; LOMBA, Gilson K. Precarização do trabalho e
territorialidade da atividade turística em Bonito-MS. Ano 21, v. 1, n. 24,
p. 77-99.
232) SOUSA, Givaldo V. de; DUTRA JUNIOR, Wagnervalter. O imaginário social e
território no distrito de José Gonçalves – BA. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 101-117.

320
Terra Livre - n. 29 (2): 301-318, 2007

233) GIL FILHO, Sylvio F. Geografia da religião: o sagrado como representação. Ano 21, v. 1,
n. 24, p. 119-133.
234) SUERTEGARAY, Dirce M. A. ; VERDUM, Roberto ; BELLANCA, Eri T. ; UAGODA,
Rogério S. Sobre a gênese da arenização no Sudoeste do Rio Grande do Sul. Ano 21, v. 1, n. 24,
p. 135-150.
235) HENRIQUE, Wendel. Proposta de periodização das relações sociedade-natureza:
uma abordagem geográfica de idéias, conceitos e representações. Ano 21, v. 1, n. 24, p.
151-175.
236) PINHEIRO, Antonio C. Tendências teórico-metodológicas e suas influências nas
pesquisas acadêmicas sobre o ensino de Geografia no Brasil. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 177-
191.
237) CUSTODIO, Vanderli. Inundações no espaço urbano: as dimensões natural e social
do problema. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 193-210.
238) LORENTE, Silvia Díez. Propuesta metodológica y conceptual para el estudio de los
Riesgos Naturales: la situación en España. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 211-230.
239) SEEMANN, Jörn. Geografia: ciência do complexus: ensaios transdisciplinares
(Resenha). Ano 21, v. 1, n. 24, p. 233-236.
240) PINHEIRO, Antonio C. Ensinar geografia: o desafio da totalidade-mundo nas séries
iniciais (Resenha). Ano 21, v. 1, n. 24, p. 237-241.
241) ELIAS, Denise; PEQUEÑO, Renato. Espaço urbano no Brasil agrícola moderno e
desigualdades socioespaciais. Ano 21, v. 2, n. 25, p. 13-33.
242) SERPA, Ângelo. Espaço público, cultura e participação popular na cidade
contemporânea. Ano 21, v. 2, n. 25, p. 35-48.
243) FABREGAT, Clemente Herrero. La formación simbólica del profesorado en
Geografía. Ano 21, v. 2, n. 25, p. 49-65.
244) MARANDOLA JR, Eduardo. Arqueologia fenomenológica: em busca da experiência.
Ano 21, v. 2, n. 25, p. 67-79.
245) MIZUSAKI, Márcia Yukari. Mato Grosso do Sul: impasses e perspectivas no campo.
Ano 21, v. 2, n. 25, p. 81-93.
246) CARVALHO, Márcia S. de. A Geografia da Alimentação em frente pioneira
(Londrina-Paraná). Ano 21, v. 2, n. 25, p. 95-110.
247) CARVALHO, Antônio Alfredo Teles de. Josué de Castro - entre o ativismo e a ciência, a
introdução da Geografia da Fome na história do pensamento geográfico no Brasil. Ano 21, v. 2,
n. 25, p. 111-120.
248) IORIS, Antônio A. R. Água, cobrança e commodity: a Geografia dos Recursos Hídricos
no Brasil. Ano 21, v. 2, n. 25, p. 121-137.
249) SOUZA, Bartolomeu Israel de; SUERTEGARAY, Dirce Maria Antunes.
Contribuição ao debate sobre a transposição do Rio São Francisco e as prováveis

321
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES

conseqüências em relação a desertificação nos Cariris Velhos (PB). Ano 21, v. 2, n. 25,
p. 139-155.
250) CASTRO, João Alves de. Tantos cerrados: múltiplas abordagens sobre a
biodiversidade e singularidade sociocultural (Resenha). Ano 21, v. 2, n. 25, p. 159-162.
251) CHASE, Jacquelyn. Colapso: como sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso
(Resenha). Ano 21, v. 2, n. 25, p. 163-166.
252) OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A Amazônia e a nova geografia da produção
da soja. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 13-43.
253) SILVA, Sílvio Simione da. Camponeses da floresta: apontamentos para a
compreensão da diferenciação dos trabalhadores seringueiros do campesinato acreano.
Ano 22, v. 1, n. 26,
p. 45-61.
254) CRUZ, Valter do Carmo. R-existências, territorialidades e identidades na Amazônia.
Ano 22, v. 1, n. 26, p. 63-89.
255) NOGUEIRA, Amélia Regina Batista. A geograficidade dos comandantes de
embarcação no Amazonas. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 91-108.
256) SZLAFSZTEIN, Claudio.; STERR, Horst.; LARA, Rubén. Estratégias e medidas
de proteção contra desastres naturais na zona costeira da região amazônica, Brasil. Ano
22, v. 1, n. 26, p. 109-125.
257) CAMPOS, Agostinho C.; CASTRO, Selma S. de. Unidades de Conservação, a
importância dos parques e o papel da Amazônia. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 127-141.
258) ROCHA, Genylton O. R. da; AMORAS, Izabel C. R. O ensino de geografia e a
construção de representações sociais sobre a Amazônia. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 143-164.
259) COSTA, Maria A. F.; RIBEIRO, Willame de O.; TAVARES, Maria G. da C. Entre
a valorização da diversidade humana e a negação da historicidade sócio-espacial: o que
pode o ecoturismo na Amazônia? Ano 22, v. 1, n. 26, p. 165-175.
260) TRINDADE JR, Saint-Clair C. da. Grandes projetos, urbanização do território e
metropolização na Amazônia. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 177-194.
261) BRITO, Lílian S. A.; COSTA, Léa M. G. Estratégias de desenvolvimento regional
para a Amazônia pós-1950: lições do passado, possibilidades do futuro. Ano 22, v. 1, n. 26,
p. 195-205.
262) SILVA, José Borzacchiello da. La fabrication du Brasil: une grande puissance en
devenir (Resenha). Ano 22, v. 1, n. 26, p. 209-210.
263) ALEGRE, Marcos. Os setenta anos da AGB-1934-2004 (Depoimento). Ano 22, v.
1, n. 26, p. 213-221.
264) MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. Aziz Nacib Ab’Saber – geógrafo
brasileiro. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 15-30.
265) VITTE, Claudete de Castro Silva. Integração, soberania e território na América do
Sul: um estudo da IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-

322
Terra Livre - n. 29 (2): 301-318, 2007

Americana). Ano 22, v. 2, n. 27, p. 31-48.


266) GÓES, Eda; ANDRÉ, Luis André. Violência e fragmentação: dimensões
complementares da realidade paulistana. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 49-68.
267) ANTUNES, Ricardo. Perenidade e superfluidade do trabalho: alguns equívocos
sobre a desconstrução do trabalho. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 71-84.
268) MASSEY, Doreen. Travelling thoughts / Pensamentos itinerantes. Ano 22, v. 2, n.
27, p. 85-92 / 93-100.
269) LINDÓN, Alicia. Os hologramas sócio-espaciais e o constructivismo geográfico.
Ano 22, v. 2, n. 27, p. 101-120.
270) NUNES, João Osvaldo Rodrigues; SANT’ANNA NETO, João Lima;
TOMMASELLI, José Tadeu Garcia; AMORIM, Margarete Cristiane de Costa Trindade;
PERUSI, Maria Cristina. A influência dos métodos científicos na Geografia Física. Ano
22, v. 2, n. 27, p. 121-132.
271) HESPANHOL, Antonio Nivaldo; HESPANHOL, Rosangela Aparecida de Medeiro.
Dinâmica do espaço rural e novas perspectivas de análise das relações campo-cidade no
Brasil. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 133-148.
272) FERREIRA, Maria da Glória Rocha. (Re)organização do espaço a partir da produção
de soja: Balsas-MA. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 149-164.
273) QUEIROZ FILHO, Alfredo Pereira de. Considerações sobre a interatividade na
Cartografia. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 165-184.
274) NUNES, Flaviana Gasparotti. A importância do econômico na Geografia atualmente:
algumas questões para o debate. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 185-196.
275) REOLON, Cleverson Alexsander; SOUZA, Edson Belo Clemente de.
Reestruturação sócio-espacial: as estratégias espaciais de ação adotadas pelas empresas
do Paraná. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 197-210.
276) FERRAZ, Cláudio Benito O. Geografia de exílio (resenha). Ano 22, v. 2, n. 27, p.
213-216.
277) Manuel Correia de Andrade, Correinha: (Terra e) Homem do Nordeste. Jones
Dari Goettert. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 15-26
278)A Geografia escolar: gigante de pés de barro comendo pastel de vento num fast
food?
Nestor André Kaercher. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 27-44.
279) Ensino de Geografia, Mídia e Produção de Sentidos. Iara Guimarães. Ano 23, v. 1,
n. 28, p. 45-66.
280) O Raciocínio na era das Tecnologias Informacionais. Valdenildo Pedro da Silva.
Ano 23, v. 1, n. 28, p. 57-90.
281) Lugar e Cultura Urbana: Um Estudo Comparativo de Saberes Docentes no Brasil.
Helena Copetti Callai; Lana de Souza cavalcanti; Sonia Maria V. Castellar. Ano 23, v. 1,
n. 28, p. 91-108.

323
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES

282) O Lugar da escola na Cidade: A Escola Normal da Parahyba no início do século XX.
Carlos Augusto de Amorim Cardoso. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 109-128.
283) O ensino de Geografia nas séries iniciais do Ensino Fundamental: uma análise dos
descompassos entre a formação docente e as orientações das políticas públicas. Maria
Cleonice B. Braga. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 129-148.
284) Estudos em Geografia: Um desafio para o Licenciando em Pedagogia. Marcea
Andrade Sales. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 149-162.
285) Ensino e pesquisa: refletindo sobre a formaçãoprofissional em Geografia pautada no
desenvolvimento da competência investigativa. Ana Maria Radaelli da Silva; Juçara Spinelli.
Ano 23, v. 1, n. 28, p. 163-176.
286) A Geografia, a educação e a construção da ideologia nacional Rogata Soares del
Gáudio; Rosalina Batista Braga. ANO 23, V. 1, N. 28, P. 177-196.
287) A Ideologia nos Livros Didáticos de Geografia Durante o Regime Militar no Brasil.
Edinho Carlos Kunzler; Carme R. F. Wizniewsky. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 197-220.
288) A educação docente: (re)pensando as suas práticas e linguagens. Ângela Massumi
Katuta. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 221-238.
289) A Educalçao Ambiental como Possibilidade de Unificar Saberes. Graça Aparecida
Cicillini; Sandra Rodrigues Braga; Walter Machado da Fonseca. Ano 23, v. 1, n. 28, p.
239-256.
290) Saberes e Práticas na Construção de Sujeitos e Espaços Sociais: Educação,
Geografia, Interdisciplinaridade. Cláudia Luiza Zeferino Pires (resenha). Ano 23, v. 1, n.
28, p. 259-261.

324
325
Título A Geografia no Tempo de
Novos Conhecimentos
Preparação de originais
e revisão de textos Gilson Kleber Lomba
Arte final da capa Gilson Kleber Lomba
Editoração eletrônica Alexandre Aldo Neves
Formato 18x26
Tipologia Times New Roman
Papel Sulfite 75g
Número de páginas 326
Tiragem 1000 exemplares
Impressão Copy Set (copyset@superig.com.br)

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