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[A1] Comentário: Questões gerais que


abrangem o livro como um todo:

1) Em alguns capítulos aparecem nas


referências autores que não foram citados
em texto, o que descaracteriza a categoria
“Referência”. Podemos deixar assim, mas
uma sugestão é colocar estas referências
em uma categoria separada, após as
referências, denominada “Documentos
consultados”.

2) Ao final dos capítulos, antes das


Referências, tem uma pequena conclusão,
algumas sob título de “Considerações
finais/Consideraciones finales”, “Algumas
considerações” e “Palabras finales”. Para
que o livro fique padronizado, pedimos que
as autoras optem por apenas uma forma.
Nossa sugestão é “Considerações
finais/Consideraciones finales”, por terem
aparecido já em 4 dos 7 capítulos.

3) Apesar de a norma da Editora ser


manter o sobrenome da autoria e o nome
abreviado nas referências (Ex.:
GÊNERO E CONSUMO NO ESPAÇO DOMÉSTICO: SHAKESPEARE, W.), tivemos a impressão
REPRESENTAÇÕES NA MÍDIA DURANTE O SÉCULO XX de que a questão de gênero tem um peso
NA ARGENTINA E NO BRASIL grande nas obras referenciadas. Dessa
forma, optamos por manter os nomes por
Inés Pérez e Marinês Ribeiro Dos Santos extenso. Contudo, alguns primeiros nomes
ainda se encontram abreviados. Dessa
(Orgs.) forma, pedimos o nome por extenso, por
questões de padronização. A maioria
dessas ocorrências foi indicada nos
capítulos.

CURITIBA
2014
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SUMÁRIO

Introdução, por Inés Pérez e Marinês Ribeiro dos Santos ........................................................ 3

Parte I: Trabalho doméstico e consumo: disciplinamento, saberes e representações

Capítulo 1 – El hogar como quehacer: los saberes de la economía doméstica en el debate


sobre la Cuestión Social (Argentina, 1890-1920), por Paula Aguilar .................................... 15

Capítulo 2 – Saberes femeninos: la cocina y la transmisión de las recetas en los clivajes de


las lógicas del consumo ( Argentina 1880-1945) , por Paula Caldo ...................................... 43

Capítulo 3 – O trabalho doméstico na Revista Claudia (Brasil, 1970-80), por Soraia Carolina
de Mello .............................................................................................................................. 67

Parte II: Gênero, classe e nacionalidade na promoção do consumo de tecnologias


domésticas

Capítulo 4 – A Promessa do “American Way of Life” para a América Latina: domesticidade,


tecnologia e consumo, por Mónica Sol Glik ........................................................................ 93

Capítulo 5 – Confort para el pueblo y liberación para el ama de casa: género, consumo y
heladeras en Argentina (1930-1960), por Inés Pérez ......................................................... 117

Capítulo 6 – Representações de feminilidades nos discursos sobre consumo de tecnologias


domésticas na revista Casa & Jardim (Brasil, década de 1960), por Ana Caroline de Bassi
Padilha e Marinês Ribeiro dos Santos ............................................................................... 138 [A2] Comentário: Título não condiz
com o do capítulo no miolo do livro. Qual
deve ser mantido?

Epílogo: O revés da trama: empregadas domésticas, consumo e reconhecimento

Capítulo 7 – De empregada a “empreguete”: a busca por visibilidade e reconhecimento no


contexto transmídia da telenovela “Cheias de Charme”, por Iara Gomes de Moura ......... 161

Sobre as autoras ................................................................................................................... 185


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INTRODUÇÃO

Inés Pérez e Marinês Ribeiro dos Santos

O consumo, entendido em um sentido amplo, tem se revelado como uma prática de


grande importância para o estudo das dinâmicas sociais. Consumir não é algo limitado ao ato
de compra, pois também implica nos usos, nas apropriações, nos descartes. Além disso, diz
respeito às diferentes formas pelas quais recorremos à cultura material para dar sentido às
nossas vidas e para nos relacionarmos com outras pessoas. Logo, não consumimos apenas
“objetos”, mas também ideias, imagens, desejos e expectativas (CAMPBELL, 1995;
MILLER, 2013). A extensão e a diversificação do consumo, assim como a formação de
mercados massivos, são elementos centrais para o entendimento das transformações sociais
ocorridas na modernidade e, em particular, no século XX (DOUGLAS; ISHERWOOD, 1979;
APPADURAI, 1988; MILLER, 1995; SLATER, 2002). Algumas abordagens tratam o
consumo como uma via de potencial homogeneização de práticas culturais diversificadas.
Contudo, ele também tem sido considerado como um meio de acesso à cidadania,
possibilitando a construção de novas identidades e estratégias de distinção, bem como de
novas formas de classificação das estratificações sociais (CANCLINI, 1999;, DAUNTON;
HILTON, 2001; COHEN, 2004).
No século XX, boa parte das práticas de consumo esteveiveram centradas no espaço
doméstico, sendo vinculadas de distintas formas à construção de novas identidades de gênero
(COONTZ, 2000; SPIGEL, 2001; SECHTER, 2003; LAWRENCE-ZÚÑIGA, 2004; De
GRAZIA, 2005). Mediante estratégias de segmentação na promoção das vendas, assim como
pelo reforço de desigualdades no uso cotidiano dos bens de consumo, grande parte das
representações associadas ao universo doméstico vêem atuando na construção de noções
dicotômicas de feminilidades e masculinidades. Essas construções são eficazes na afirmação
de diferenças de gênero, com implicações tanto na divisão sexual do trabalho, quanto na
concepção, organização e ocupação do espaço habitado. Todavia, a problematização de
dicotomias marcadas pelo gênero na idealização do que concerne ao doméstico – como
aquelas relacionadas à separação das esferas pública e privada ou às práticas de produção e
consumo – têem contribuído para a desnaturalização de conceitos normativos, padrões de
comportamentos e arranjos espaciais, cujas repercussões sociais implicam hierarquias de
poder, assim como assimetrias materiais e simbólicas (WAJCMAN, 1994; JACKSON; [A3] Comentário: Ano diferente do que
consta nas referências.
MOORES, 1995; AUSLANDER, 1996; De GRAZIA, 1996, HOLLOWS, 2008).
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O questionamento acerca da suposta oposição entre as esferas pública e privada tem


sido uma preocupação central da crítica feminista, conforme explicita a máxima “o pessoal é
político”. Essa expressão, cunhada pelo movimento feminista de segunda onda nos anos 1960,
afirma as interligações entre as experiências pessoais das mulheres e as condições de
subordinação promovidas pelas relações sociais de poder, denunciando que a vida particular é
indissociável das normas e prescrições definidas no foro público (CAMPAGNOLI, 2005).
Joanne Hollows (2008) nos explica que a metáfora da separação das esferas é
condição estruturante na organização do mundo moderno, pois serviu de fundamento para a
definição do público como o sítio privilegiado da produção, da economia e da política. Por
contraste, o privado foi associado às dimensões do consumo, da individualidade e da vida
doméstica. A autora também menciona o caráter marcado pelo gênero envolvido nessa
clivagem, uma vez que a esfera pública é frequentemente demarcada como masculina,
enquanto a esfera privada é identificada com o femininao. Vale sublinhar que tal marcação de
gênero é hierarquicamente implicada, de maneira a privilegiar a esfera masculina. O público é
valorado como arena de ação, espaço social capaz de proporcionar experiências por meio das
quais as pessoas podem desenvolver percepções acerca do lugar que ocupam no mundo. Em
contrapartida, a esfera privada figura como passiva, destinada à reprodução. Tal oposição
entre público e privado constitui a base da noção de domesticidade. A partir do século XVIII,
na medida em que a casa foi deixando de ser vista como um espaço propício para a produção
econômica, a identificação dos homens com o mundo público veio acompanhada por
discursos que justificavam a divisão sexual do trabalho a partir de diferenças “naturais” entre
mulheres e homens. Assim os que “ganham o pão” passaram a contrastar com as que “tomam
conta” da família e da casa (HEYNEN, 2005).
Contudo, a oposição entre esferas é um construto arbitrário. Na opinião de Antoine
Prost (1992), os limites que demarcam público e privado são contingentes, envolvendo
aspectos culturais e históricos. A noção do que concerne ao privado depende do contraste com
o que é considerado pertinente à vida pública. E como as fronteiras são fluidas, essa noção
pode variar em função de categorias como classe, raça/etnia, geração ou gênero. Entretanto, a
interdependência defendida pelo autor nem sempre corresponde à matriz de entendimento
adotada nas pesquisas acadêmicas. Segundo a historiadora Linda Kerber (1988), a metáfora
da separação das esferas é uma figura de linguagem amplamente adotada nas ciências sociais,
cujo valor heurístico deve ser questionado. A autora defende a necessidade de análises
capazes de superar abordagens dualistas, pois a insistência na oposição entre público e
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privado omite a reciprocidade entre gênero e sociedade, na medida em que impõem um


modelo estático para o estudo de relações que são dinâmicas.
Pela respectiva associação aos universos público e privado, as práticas relacionadas à
produção ganharam relevo quando contrastadas àquelas mais próximas do consumo. Para
Hollows (2000), esta questão consiste em uma outra dicotomia que precisa ser
problematizada. Conforme a autora, tanto o senso comum quanto a crítica social apresentam
abordagens onde em que a produção aparece como uma atividade positiva e masculina,
enquanto o consumo é entendido como uma prática negativa e feminina (SCANLON, 1995;
HOROWITZ; e MOHUN, 1998; ANDREWS; e TALBOT, 2000). Nesse registro, a produção
é posicionada como a instância ativa, por meio da qual atribuímos sentido à vida social. Já as
práticas alinhadas ao consumo assumem certo caráter de aceitação passiva de significados
anteriormente fixados.
Como a instância da produção é historicamente marcada por restrições de acesso e
estratégias de ocultamento da presença feminina, os homens figuram como os principais
atores sociais responsáveis pela produção das condições materiais de existência, assim como
pela determinação de seus significados. À grande maioria das mulheres, restaria consumir
passivamente. Nesse sentido, distintas análises que abordaram a relação entre gênero e
consumo deram ênfase às maneiras pelas quais as estratégias publicitárias e, em termos mais
gerais, os meios de comunicação, criavam um público particular, moldando as expectativas e
modificando as práticas cotidianas. As análises acerca dos modelos de feminilidades e
masculinidades – relacionados aos estereótipos de gênero – presentes em textos e imagens
publicitárias foi um dos aspectos mais elaborados a partir dessa perspectiva, associada a
outros elementos, como a consolidação de um público (e de um mercado) nacional e a
obliteração das desigualdades de acesso decorrentes de diferenças de classe social e de
raça/etnia (STEELE, 2000; MCcCLINTOC, 2000; DE GRAZIA, 2005; PRECIADO, 2010). Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Português (Brasil)
Contudo, essas análises foram complementadas por estudos que abordaram aspectos
relacionados à inadequação entre os modelos construídos no discurso publicitário e as
interpretaçõeãos realizadas pelo público consumidor (ABELSON, 2000; CLARK, 2000). A Formatado: Português (Brasil)

indicação dessa inadequação abriu caminho para análises relacionadas à agência dos sujeitos
em relação ao consumo, marcando a diversidade das formas de apropriação e de resistência a
tais modelos. Nessa perspectiva, a articulação entre a construção das identidades de gênero e
as práticas de consumo começou a ser vista em outros termos. Recorrendo a aproximações
teóricas que mostram os efeitos performativos do gênero sobre os corpos (BUTLER, 2001),
buscou-se demonstrar como as práticas de consumo formam parte da construção não apenas
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das identidades (ou identificações) de gênero, mas também dos corpos das pessoas que
consomem, em sentidos que não necessariamente são aqueles cifrados pelas corporações que
promovem a aquisição e o uso de certos produtos, bens ou serviços.
Pontualmente, em uma linha que este livro busca seguir, Hollows (2000) afirma que o
entendimento do consumo como “o outro” negativo da produção acarreta julgamentos que o
classificam como impulsivo, trivial e passivo, contribuindo para dificultar a compreensão das
atividades relacionadas ao consumo como uma forma de trabalho. Tendo em vista as tarefas
tradicionalmente atribuídas às donas de casa, essa autora ressalta que o consumo doméstico
deve ser percebido como uma prática produtiva, pois, além de estar relacionado ao trabalho
doméstico, também é um exercício interpretativo que oportuniza a materialização de
significados associados à noção de “lar”, bem como está implicado na dinâmica social que se
estabelece entre as pessoas que nele vivem (HOLLOWS, 2008). Formatado: Português (Brasil)

As discussões apresentadas ao longo dos capítulos dessa obra focalizam a relação


entre gênero e consumo no âmbito doméstico, combinando distintas aproximações teóricas e
metodológicas. Uma das preocupações centrais está na articulação entre as práticas de
consumo e o trabalho doméstico, prestando especial atenção para no modo como tais práticas Formatado: Português (Brasil)

foram abordadas em distintos discursos midiáticos. As características de projeto das


habitações modernas, assim como a introdução de novos artefatos, novos recursos energéticos
e novas tecnologias, alteraram as formas de realizar as tarefas cotidianas em vários aspectos.1.
A chamada industrialização do lar (COWAN, 1983) teve como pressuposto a integração da
casa com a um conjunto de sistemas tecnológicos exógenos. Assim, a realização das tarefas
passou a depender cada vez mais de bens e serviços que não podiam ser obtidos no interior
das moradias (COWAN, 1983; OAKLEY, 1974). Além das assimetrias desencadeadas nas
relações de gênero, tal alteração nas condições materiais de desempenho do trabalho
doméstico também tem sido vinculada ao crescimento de desigualdades entre mulheres de
classes sociais distintas (ROBERTS, 1991; DE VAULT; 1991).
Nesse cenário de transformações e embates, os discursos de “especialistas” sobre o
trabalho doméstico ganharam relevância, dando lugar a um processo de profissionalização da
dona de casa, que veio acompanhado de uma nova centralidade pública da sua figura

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Já faz algum tempo que os estudos feministas vêm refutando a ideia de que os eletrodomésticos
diminuíram o tempo dispendido com o serviço doméstico, mostrando que a introdução desses artefatos na rotina
do lar veio acompanhada de incrementos nos padrões de exigência quanto aos resultados esperados. O livro “The
Feminine Mystique” de Betty Friedan (1970), lançado em 1963, é uma referência obrigatória sobre esse assunto,
por trazer uma das primeiras críticas aos discursos que apresentavam os eletrodomésticos como recursos capazes
de “libertar” as mulheres do trabalho doméstico. Uma década mais tarde, a pesquisa de Joann Vanek (1974) daria
sustentação acadêmica às críticas de Friedan. Formatado: Português (Brasil)
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(LEAVITT, 2002; FREEMAN, 2004; JEREMIAH, 2000; LOEHLIN, 1999). Tal


profissionalização apoiou-se na adaptação de certos preceitos aplicados no controle do
trabalho fabril para o gerenciamento das tarefas domésticas, em particular a ideia da sua
“organização científica” (NOLAN, 1990; RYBCZYNSKI, 1991; FREEMAN, 2004).
Representações acerca da racionalização de tempos e serviços, vinculadas à imagem da dona
de casa como gestora do seu próprio trabalho no lar, passaram a circular no discurso
publicitário e, em termos mais amplos, no mercado e nos meios de comunicação massivos
(SPIGEL, 2001; DE GRAZIA, 2005). Nessas representações, é perceptível tanto a
invisibilização intencional do trabalho doméstico – que aparece como algo que pode ser
realizado de maneira fácil e rápida –, como a adoção de uma postura prescritiva, indicativa do
desejo pela homogeneização de suas práticas (FORTY, 1986).
Se o consumo já não se caracteriza como um tema amplamente abordado pela
academia latino-americana (ROCCHI, 2003, e 2006; ORLOVE, 1997; MORENO, 2003;
BARBOSA; CAMPBELL, 2006; MANZANO, 2009; RIAL; SILVA; SOUZA, 2012), o
consumo centrado no lar – assim como seus aspectos relacionados ao trabalho doméstico e à
figura da dona de casa – têem recebido atenção ainda menor, embora crescente (NARI;
FEIJÓO, 1996; MILANESIO, 2006; ELENA, 2006; BONTEMPO, 2006; CARVALHO,
2008; PITE, 2007). Os estudos disponíveis têm mostrado correspondências com
transformações ocorridas nos Estados Unidos e na Europa, mas também – e de forma central
– têm dado relevo às peculiaridades locais vinculadas à massificação e diversificação do
consumo doméstico (FRENCH-FULLER, 2004; e 2006; AGUILAR, 2007; SANTOS, 2010;
PÉREZ, 2012). Que particularidades caracterizam os usos e apropriações locais de novas
tecnologias domésticas e de saberes a elas associados? Que lugar ocupam os discursos dos
meios de comunicação na conformação de tais particularidades? Que elementos podem ser
percebidos como similares aos observados em outros casos e contextos? Como se
configuraram os discursos de “especialistas” no cenário latino-americano e quais são as
estratégias empregadas para a sua veiculação na mídia de massa?
O presente volume reúne algumas das pesquisas apresentadas no simpósio temático
“Gênero, consumo e espaço doméstico”, realizado junto ao “XX Seminário Internacional
Fazendo Gênero: Desafios Atuais dos Feminismos”, que ocorreu em setembro de 2013, na
cidade de Florianópolis. Este simpósio proporcionou um espaço de discussão e intercaâmbio
entre pesquisadoras, provenientes da Argentina e do Brasil, de diferentes afiliações teóricas
provenientes da Argentina e do Brasil. Nesse sentido, o livro apresenta análises empíricas
heterogêneas, em sua maioria de caráter histórico, centradas na discussão de diferentes tipos
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de discursos, em particular naqueles presentes nos meios de comunicação. As autoras fazem


uso de diversas fontes – revistas direcionadas para a mulheres, anúncios publicitários,
manuais de economia doméstica, livros de receitas, programas de televisão – para observar a
construção e circulação de imagens, saberes e representações a respeito das práticas e
artefatos vinculados ao consumo de massa no âmbito doméstico. A recorrência a tais fontes
permite leituras onde as diferenças de gênero se articulam com outras, como as de classe e de
raça/etnia, criando audiências específicas a partir de desejos e ansiedades vinculadas à
distinção e identificação com símbolos de respeitabilidade social. Formatado: Português (Brasil)

Os capítulos apresentam uma grande diversidade teórica, tanto em relação às noções


de consumo como às de gênero, o que responde à dinâmica do simpósio que deu origem ao Formatado: Português (Brasil)

livro. O compartilhamento de experiências permitiu a identificação de elementos comuns e


divergentes vinculados às trajetórias de investigação, bem como de inferências quanto às
particularidades de cada caso nacional. A publicação deste livro foi motivada pelo desejo de
dar continuação a esse diálogo, buscando perspectivas interpretativas que, sem descuidar das
dos contextos locais, transcendam as fronteiras entre os dois países. O caráter da publicação
busca não obliterar essa heterogeneidade teórica, uma vez que compõe um panorama de
diferentes aproximações possíveis acerca dos estudos sobre a articulação entre gênero e
consumo doméstico. Com essa iniciativa, objetivamos contribuir para com novas Formatado: Português (Brasil)

possibilidades de leitura quanto às transformações ocorridas nos espaços domésticos latino-


americanos, de maneira articulada e complexa.
Os textos que compõem este livro estão organizados em duas partes e um epílogo. A
primeira parte, intitulada “Trabalho doméstico e consumo: disciplinamento, saberes e
representações”, aborda as transformações no trabalho doméstico em relação à massificação e
à diversificação das práticas de consumo, dando ênfase ao discurso de “especialistas” e ao
disciplinamento envolvido no processo de profissionalização das donas de casa. No primeiro
Capítulo 1, Paula Aguilar discute as relações entre as políticas sociais de estado e o processo
de configuração da domesticidade moderna na Argentina, durante as primeiras décadas do
século XX. Para tanto, a autora toma como base os manuais de “Economia Doméstica”,
endereçados às donas de casa de segmentos populares. Tais publicações faziam circular
discursos que sistematizavam saberes considerados indispensáveis para o bom funcionamento
do lar. Paula Aguilar está particularmente interessada nas prescrições que objetivavam um
tipo de ordem doméstica considerada ideal, onde a gestão econômica do lar é entendida como
um meio para alcançar a ordem e a prosperidade social. Ela argumenta que, nesse registro, o
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protagonismo das donas de casa ganha relevo e as famílias das classes trabalhadoras
tornaram-se o principal foco de intervenção estatal.
Dando continuidade à discussão do caráter axiológico envolvido nas publicações
direcionadas para as donas de casa, no Capítulo 2, Paula Caldo discorre sobre o processo de
feminização da transmissão escrita do saber culinário na Argentina, durante o período de 1880
a 1940. A autora aborda como as práticas de transformação do saber culinário em produtos
editoriais como livros, folhetos e seções de revistas vão sendo tanto apropriadas pelas
mulheres, quanto direcionadas para públicos femininos. Se num primeiro momento esses
compêndios de receitas cumpriam o papel de registrar as formas locais de preparar os
alimentos, com o passar do tempo foram se constituindo como veículos de promoção da
profissionalização do trabalho doméstico e de novos hábitos de consumo. A circulação do
saber culinário ocorre também entre classes. Se o saber registrado nos livros de receitas ia das
mulheres que trabalhavam na cozinha para as da elite – capazes de se interessar pela
indúustria editorial – na sociedade de consumo de massa, especialistas direcionavam seu
saber para um público imaginado como de classe média. Paula Caldo defende que a Formatado: Português (Brasil)

caracterização do saber culinário como atributo feminino trouxe consigo uma série de
dispositivos de educação e disciplinamento das mulheres, contribuindo para moldar a
identidade social da dona de casa como a principal responsável pelas práticas de cuidado com
a família. Dessa forma, se configurava um tipo de feminilidade que, ao alimentar sua prole,
também afirmava normas, valores e formas de conduta implicadas em assimetrias de gênero.
No Capítulo 3, Soraia Carolina de Mello fecha a primeira parte do livro abordando os
discursos em circulação nas publicações voltadas para públicos femininos no contexto
brasileiro. A autora localiza suas discussões nas representações do trabalho doméstico
veiculadas pela revista Claáudia, nas décadas de 1970 e 1980, analisando a relação entre a
imprensa voltada para um púublico feminino e as publicações feministas nesse período.
Estabelecendo um diálogo entre a miríade de tarefas que o periódico atribuía como parte da
rotina das mulheres brancas das classes médias e os debates feministas da época acerca da
caracterização do trabalho doméstico – associado com as atividades de cozinhar, limpar, lavar
e passar, bem como com a condição da dupla jornada das mulheres das classes trabalhadoras
–, Soraia Carolina de Mello chama atenção para a necessidade de ampliação do entendimento
desta questão. Para ela, as reportagens publicadas em Claáudia possibilitam a identificação de
outros tipos de atividades de responsabilidade feminina, apresentadas como indispensáveis
para o bom andamento da casa e das famílias, onde em que as práticas de consumo ganham
relevo. A autora argumenta que marcadores identitários de classe social podem revelar
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grandes variantes no que se refere às atividades realizadas pelas donas de casa para suas
famílias, sem que isso necessariamente desestabilize a sustentação de desigualdades de gênero
baseadas na clivagem entre público e privado e na naturalização das funções familiares
desempenhadas por mulheres.
Os textos reunidos na segunda parte, intitulada “Gênero, classe e nacionalidade na
promoção do consumo de tecnologias domésticas”, exploram a introdução de novas
tecnologias e artefatos nas práticas de trabalho doméstico a partir da problematização dos
discursos que promoveram seu consumo. Em particular, buscam salientar os modos pelos
quais classe social, nacionalidade e gênero se articulam nesses discursos, construindo imagens
de novas identidades sociais. No Capítulo 4, Mónica Sol Glik mostra como a publicidade
comercial publicada na revista The Reader's Digest foi empregada, nos anos 1940, para a
veiculação de propaganda política norte-americana nos países da América Latina. Entendido
como “arma de guerra” contra possíveis avanços das ideias nazi-fascistas no sul do
continente, o discurso publicitário elaborado pelo Departamento de Estado dos EUA passou a
circular por meio de versões traduzidas da revista, direcionadas para países de língua
hispânica e portuguesa. Tais imagens publicitárias associavam a tecnologia desenvolvida para
a guerra com a possibilidade de melhorias na vida doméstica, tendo as mulheres como público
preferencial. Mónica Sol Glik discute aspectos dessa ofensiva cultural na produção e no
consumo, cuja estratégia articulava questões políticas e econômicas com a emergência de um
novo modelo de domesticidade.
A articulação entre política de Estado e espaço doméstico continua em foco no
Capítulo 5. Inés Pérez explora a casa moderna como elemento central na retórica da
“democratização do bem -estar” que caracterizou os discursos políticos e sociais na Argentina
em meados do século XX. Nesses discursos, a noção de “conforto para o povo” e a ideia da
“liberação das donas de casa” tornaram-se elementos- chave para a construção da imagem de
uma “Nova Argentina”. A autora afirma que, em tal contexto, os eletrodomésticos ganharam
relevância no aumento dos níveis de consumo e na promoção de novos modos de vida,
adquirindo importância central na busca por distinção entre a classe média. Para Inés Pérez,
esse processo teve ressonância na visibilidade do trabalho doméstico de uma maneira
paradoxal: ao mesmo tempo em que a profissionalização das donas de casa se converteu em
um tópico recorrente em distintos espaços discursivos, a promoção do consumo desses novos
artefatos prometia a sua substituição. No decorrer do texto, a autora explora como os
eletrodomésticos se converteram em parte da vida cotidiana da classe média argentina, como
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foram desejados ou repelidos pelas mulheres e homens que experimentaram o processo de


tecnificação do espaço doméstico.
No Capítulo 6, Ana Caroline de Bassi Padilha e Marinês Ribeiro dos Santos
encerram a segunda parte do livro, tratando da construção de representações de feminilidades
associadas ao consumo doméstico no Brasil dos anos 1960. Tendo como mote anúncios
publicitários de eletrodomésticos veiculados na revista Casa & Jardim, as autoras discutem as
estratégias discursivas empregadas no periódico para a construção da figura da “dona de casa
moderna”. Elas argumentam que, na década de 1960, o discurso publicitário assumiu um
papel importante na divulgação de novos padrões de consumo direcionados para as camadas
médias. Nesta época, a circulação de imagens publicitárias voltadas para a promoção do
consumo centrado no lar ganha relevo, construindo identificações entre a noção de
modernidade e os artefatos industrializados. As novas tecnologias do lar disponíveis no
mercado eram apresentadas como recursos capazes de facilitar a rotina do trabalho doméstico.
Levando em conta a importância que a figura da dona de casa adquire nesse processo, Ana
Caroline de Bassi Padilha e Marinês Ribeiro dos Santos defendem que as representações de
feminilidades associadas aos eletrodomésticos podem ser entendidas como pedagogias de
gênero, pois operavam na afirmação de valores apresentados como “ideias” para as leitoras da
revista, colocando em circulação discursos e imagens que conciliavam condutas femininas
tradicionais com a modernização das práticas de consumo doméstico.
No Epílogo, intitulado “O revés da trama: empregadas domésticas, consumo e
reconhecimento”, Iara Gomes de Moura encerra o livro, discorrendo sobre a importância
conferida às práticas de consumo na busca pelo reconhecimento social no contexto
contemporâneo. Para desenvolver o argumento, a autora toma como exemplos a telenovela
“Cheias de Charme” – cuja trama gira em torno de três personagens que são empregadas Formatado: Fonte: Itálico

domésticas – e o concurso “As empregadas domésticas mais Cheias de Charme do Brasil”,


promovido pelo programa dominical “Fantástico”, ambos veiculados no Brasil pela Rede
Globo de Televisão, durante o ano de 2012. Iara Gomes de Moura relaciona esses produtos
culturais à emergência econômica da chamada “nova classe C”, caracterizando-os como parte
de uma estratégia de mercado interessada em conferir legitimidade aos hábitos de consumo e
aos estilos de vida atribuídos às mulheres desse estrato social.
Em conjunto, os capítulos que compõem este volume problematizam diferentes
vínculos entre consumo, trabalho doméstico e gênero. Uma vez que as maneiras de definir o
trabalho doméstico são múltiplas no transcurso do século XX, os artigos reunidos na primeira
parte mostram diferentes modos pelos quais o consumo foi incorporado às tarefas atribuídas
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às donas de casa. Em um movimento inverso, os textos agrupados na segunda parte abordam


os discursos que promoviam o consumo a partir da promessa da liberação do trabalho
doméstico. Localizado em um recorte temporal mais próximo, o último capítulo enfatiza
como as práticas de consumo também teêm sido apropriadas como instâncias por meio das
quais se negociam distinções sociais, em particular, entre empregadoras e trabalhadoras
domésticas.
O livro que aqui apresentamos permite diferentes caminhos de leitura, que cruzam
várias áreas de interesse dos estudos da história e da cultura, entre elas, a vida familiar, as
políticas públicas, as publicações periódicas, a publicidade, a escrita e a leitura. Ressaltamos a
necessidade de analisá-las a partir de um enfoque de gênero, assumindo sua importância
central no estudo da construção de assimetrias sociais. A aposta que fazemos com este livro é
a de discutir a articulação entre gênero, consumo e trabalho doméstico em um diálogo que
considere percursos, paralelos e simultâneos, entre Argentina e Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[A4] Comentário: Esta data está
correta?
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PARTE I – TRABALHO DOMÉSTICO E CONSUMO: DISCIPLINAMENTO,


SABERES E REPRESENTAÇÕES
20

CAPÍTULO 1 – EL HOGAR COMO QUEHACER: LOS SABERES DE LA Formatado: Fonte: Itálico

ECONOMÍA DOMÉSTICA EN EL DEBATE SOBRE LA CUESTIÓN SOCIAL


(ARGENTINA, 1890-1920)2 [A5] Comentário: Substituir todos os
“ob. cit”, “idem”, “ibidem” pela informação
repetida. Uma sugestão é não colocar a
fonte em nota, mas apenas ao final, em
Paula Lucía Aguilar categoria separada, para reduzir a carga de
texto no rodapé. Como que devemos
proceder?

INTRODUCCIÓN

El factor económico no sólo da valor a la Ciencia Doméstica sino que se lo


acrecienta, debido principalmente a que nuestros recursos, por lo general, quedan
estacionados o aumentan poco: mientras que las necesidades se multiplican de una
manera extraordinaria, en proporción casi siempre mayor que aquellos.3.

La utilidad de esta ciencia, es sin embargo, excepcional; pues no hay persona, por
humilde que sea, rica o pobre, instruida o ignorante, célibe o casada, que no necesite
poner orden en su presupuesto casero y saber administrar sus recursos, de modo que
le alcancen para procurarse el mayor bienestar posible y para prevenir o remediar
una desgracia.4.

En las primeras décadas del siglo XX la problematización5 del hogar como ámbito de
intervención en y por las políticas sociales en la Argentina tuvo, en la disputa por la
conformación de un “orden doméstico”, una de sus expresiones fundamentales. Los discursos
que sistematizaban los saberes y las tareas consideradas como indispensables para alcanzar

2
Una primera versión de este trabajo fue presentada en ocasión de las XI Jornadas Nacionales de
Historia de las Mujeres y VI Congreso Iberoamericano de Estudios de Género realizado entre los días 20 y 22 de
Septiembre de 2012. Agradezco los amables comentarios de Inés Pérez y Elizabeth Hutchison. Este artículo está
parcialmente basado en el capítulo “El hogar como quehacer” correspondiente a la Tesis doctoral: “El hogar
como problema y como solución: Una mirada genealógica de la domesticidad a través de las políticas sociales.
Argentina 1890-1940” (Inédita). Formatado: Espanhol (Espanha-
3
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar: Curso de ciencia doméstica. Buenos internacional)
Aires: Librería del Colegio, 1920, p. 5. Formatado: Fonte: Não Negrito,
4
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas escrita Itálico
expresamente para la Cía Sansinena de carnes congeladas. Buenos Aires: 1923, p. 14)
5 Formatado: Fonte: Não Negrito,
Entendemos por problematizar estudiar “por qué ciertas cosas (comportamientos, fenómenos, procesos) Itálico
se articulan como “problemas”, cómo son ligados o separados de otros problemas y las diversas formas
(condiciones y procesos) a través de los cuales esto sucede” (OSBORNE; ROSE, 1997, p. 97). Así la
identificación y construcción analítica de una problematización toma en cuenta “ciertos procedimientos técnicos
(como investigaciones, reportes, metodologías estadísticas, procedimientos de observación) que tornan los
objetos “visibles” (OSBORNE; ROSE, 1997, p. 98). Es decir un conjunto de técnicas y saberes que habilitan la
inteligibilidad y por ende la construcción de comportamientos, fenómenos, procesos, cualidades en problemas Formatado: Espanhol (Espanha-
válidos como objetos de pensamiento (y acción). internacional)
21

aquel orden circulaban bajo el rótulo de Economía o Ciencia Doméstica6 en distintos formatos
entre los que se destacaban exhaustivos manuales (LIERNUR, 1997; CALDO, 2009). Una
lectura atenta de estos textos nos permite observar cómo la consecución de exigentes
postulados sobre moral, higiene y economía era señalada como un requisito básico para la
existencia y reconocimiento de cualquier hogar que se preciara de serlo.
Este trabajo se detiene sobre el discurso de la llamada Economía Doméstica en tanto
expresa un conjunto de saberes expertos postulados para la constitución o reforma del hogar
cuyas huellas es posible rastrear en la trama de debates en que se formulan los diagnósticos y
propuestas sobre la “cuestión social” (DONZELOT, 2007; GRASSI, 2003; SURIANO, 2000).
La inscripción de los discursos de la Economía Doméstica en el debate acerca de los
problemas sociales permite describir los modos en que una cierta noción de domesticidad se
construye en el diagnóstico sobre las condiciones de vida y trabajo de la población, al tiempo
que orienta los sentidos de su reforma, contribuyendo así a la delimitación del hogar de la
“familia obrera” como ámbito de intervención estatal. En este sentido, la Economía
Doméstica forma parte de un corpus más amplio y heterogéneo de discursos a partir de los
cuales es posible identificar, desde una perspectiva genealógica, rasgos del proceso de
configuración de la domesticidad moderna (AGUILAR, 2012). [A6] Comentário: Não está nas
referências.
Entre los muchos consejos e instrucciones provistos por la Economía Doméstica para
alcanzar el anhelado “hogar ideal” abordamos aquí aquellos que involucraban un despliegue
de saberes y prácticas para su administración “material” o “económica”7 sostenida en una
disciplinada organización de las tareas, el espacio, el tiempo y los objetos. En particular, las
prescripciones relativas al correcto manejo de los recursos monetarios del hogar y su registro,
plasmadas en las instrucciones para la realización de la contabilidad doméstica y el
presupuesto familiar como herramientas que permitirían alcanzar una equilibrada distribución
de los recursos y gastos del hogar y, de este modo, lograr cubrir las necesidades de sus
habitantes.

6
Este conjunto de saberes es denominado en idioma español casi indistintamente como Economía
Doméstica, Artes del hogar, Ciencia del Hogar o Ciencia Doméstica (LIERNUR, 1997; NARI, 2004). Esta
última es la utilizada por Bassi en su trabajo aquí analizado. Ver BASSI, Angel. Gobierno, administración e Formatado: Fonte: Não Negrito,
higiene del hogar…, ob. cit. Los catálogos de las bibliotecas en las que la indagación fue realizada los ubican Itálico
bajo la etiqueta de “Economía Doméstica” (Biblioteca Nacional y Biblioteca del Congreso de la Nación) o
“Educación Doméstica”, “Economía Doméstica”, “Enseñanza Doméstica” y “Enseñanza de las Artes
Domésticas” (Biblioteca del Maestro). Sobre la disciplina y sus modos de nominación véase también (CALDO,
2012). A los efectos de este trabajo, utilizaremos “Economía Doméstica”. Formatado: Espanhol (Espanha-
7
Nos limitamos aquí a las prescripciones explícitas de la Economía Doméstica sobre la administración internacional)
del hogar. Claro está no fue este el único modo en que el hogar fue problematizado en términos económicos.
Para un desarrollo de la consideración económica del espacio doméstico desde la Economía Política y su Formatado: Espanhol (Espanha-
delimitación en tanto ámbito sustraído del mercado. Véase GARDINER (1999). internacional)
22

Para ello consideramos dos sistematizaciones de los consejos para la correcta


administración del hogar que circulaban a inicios de la década de 1920: el manual
“Administración higiene y gobierno del hogar” de Ángel C. Bassi, publicado por primera vez
en 1914 y con una segunda edición ampliada de 1920 y el libro “Para mi hogar: síntesis de
economía y sociabilidad domésticas” de Luis Barrantes Molina publicado en 1923. El primero
es un extenso libro de texto de 470 páginas, escrito por un reconocido educador de amplia
trayectoria y producción y destinado a la formación docente con el explícito afán de fortalecer
la enseñanza de la Ciencia Doméstica en los establecimientos escolares (CALDO, 2012). El
segundo constituye un compendio de 375 páginas publicado en 1923 por iniciativa de la
“Compañía Sansinena de Carnes Congeladas”, mejor conocida como “Frigorífico La Negra”,
y redactado por Luis Barrantes Molina, escritor costarricense radicado en la Argentina,
columnista de la revista Criterio y más tarde activo miembro de Acción Católica (ACHA,
2000). Si bien difieren en tono y estilo, ambos resumen con esmero una infinidad de
recomendaciones para alcanzar el anhelado orden doméstico, y por extensión, el orden social.
Ambos textos destacan los beneficios tanto en el nivel familiar como social de la
aplicación de los preceptos de la Economía Doméstica. En este sentido, una buena
administración de los recursos era clave. Para ello proponían que el “ama de casa”,
consignada como la encargada principal de la administración doméstica, llevara un registro
minucioso de los ingresos y egresos monetarios del hogar. Una suerte de teneduría de libros
hogareña en la que debían figurar desde las mínimas compras cotidianas hasta la sumatoria de
los gastos agrupados por rubros (alimentación, vestido, vivienda, etc.).
La técnica básica de esta contabilidad doméstica era el presupuesto. Con diferentes
periodicidades según el tipo gasto efectuado (mensual, anual o estacional), la realización del
presupuesto debía prever las principales erogaciones familiares además de evaluar lo actuado
y, de ser necesario, modificar los futuros cursos de acción de modo adecuado a los ingresos
disponibles, priorizando siempre el ahorro y evitando el potencial derroche. Es en este
carácter reflexivo de la confección del presupuesto doméstico donde se entrecruzan dos de los
deberes fundamentales asignados al ama de casa en la consecución del orden doméstico: la
administración económica y la administración moral del hogar.
Entendemos que es posible estudiar la contabilidad doméstica en general y la figura
del presupuesto en particular, como modos específicos de delimitar la inteligibilidad
económica del hogar y su gobierno. En tanto técnicas de recolección y sistematización de la
información acerca de las necesidades, recursos y gastos, formaban parte de una construcción
de conocimiento acerca de las prácticas cotidianas de la unidad doméstica. Se esperaba así
23

que la correcta confección de la contabilidad hogareña habilitara el examen y la orientación


de las conductas económicas (el consumo, la previsión, el ahorro) a partir de un conjunto de
normas indicadas para alcanzar la óptima administración. Asimismo, es dable pensar en
términos cualitativos el contenido de los presupuestos y planillas desplegados en los textos de
Economía Doméstica aquí analizados como expresión de una forma de organización
“deseable” de la economía hogareña que implicaba la jerarquización de unas ciertas
necesidades por sobre otras, la realización de unos gastos y ahorros específicos, así como
también una determinada composición de las familias, y de los aportes realizados por sus
distintos miembros al sostenimiento del hogar.
En suma, proponemos analizar las formulaciones sobre la mejor administración
económica del hogar contenidas en el discurso de la Economía Doméstica como parte del
conjunto de prácticas y saberes expertos específicos que contribuyeron a delimitar el hogar en
su carácter de unidad económica, inteligible tanto para sus habitantes como para sus
potenciales reformadores.
Para ello, este capítulo se organiza en cuatro apartados. En primer lugar, presentamos
brevemente la Economía Doméstica en tanto sistematización de saberes y prácticas y sus
condiciones de circulación en el contexto argentino durante las primeras décadas del siglo
XX. En segundo lugar nos detenemos en sus principales diagnósticos y propuestas relativas al
hogar en tanto unidad económica y las pautas prescriptas para la correcta administración de
sus recursos. En tercer lugar desarrollamos las instrucciones para la confección de la
contabilidad doméstica contenida en los textos de Bassi8 y Barrantes9 antes presentados y las
formas en que se despliega el presupuesto como la herramienta adecuada para tal fin. En
cuarto lugar describimos la importancia fundamental que en ambos autores adjudican al
ahorro como una consecuencia esperada de la buena administración del hogar. Para finalizar,
dejamos planteadas algunas notas de lectura sobre la relación entre saberes expertos,
domesticidad y el estudio de los presupuestos domésticos como grilla de inteligibilidad del
hogar.

LA ECONOMÍA DOMÉSTICA

El discurso de la Economía Doméstica postulaba en sus diversas versiones un

Formatado: Fonte: Não Negrito,


8
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit. Itálico
9
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. Formatado: Fonte: Não Negrito,
cit. Itálico
24

detallado decálogo de tareas, su distribución temporal, el modo en que debían ser llevadas a
cabo, y los sujetos responsables para su cumplimiento. El “gobierno del hogar” propuesto
como deseable era exhaustivo y comprendía tanto aquellas dimensiones morales como las
materiales que pudieran incidir sobre la vida de sus integrantes presentes y futuros.10. El
discurso científico, en particular aquel de matriz médica relacionado con la higiene y la
prevención de los contagios, constituía una fuente de legitimidad de esta expertise doméstica
(ARMUS, 2007; LIERNUR, 1997). En sus páginas se entretejían los consejos para definir la
orientación física de la vivienda en pos de garantizar su exposición al aire y la luz solar con
las técnicas más apropiadas para la potabilización del agua e instrucciones precisas sobre los
modos de tender la mesa, la conservación saludable de los alimentos, el adecuado lavado de
diferentes prendas, pasando por el cuidado de niños y enfermos; conocimientos básicos de
valores nutricionales e higiene y la promoción del ahorro a través del desarrollo de la
contabilidad hogareña y la correcta administración del salario.11.
Este heterogéneo conjunto de tareas era considerado una responsabilidad asignada
primordialmente a las mujeres de todas las edades, fueran o no madres. Tanto las llamadas
“dueñas de casa” como las integrantes del “servicio” (doméstico) eran destinatarias
privilegiadas de los floridos discursos que buscaban ordenar y optimizar sus labores
cotidianas. Sin embargo se ponía especial énfasis en la necesidad de capacitación en
“quehaceres” hogareños para las mujeres pobres y pertenecientes a los sectores obreros.12.
Ellas eran consideradas como una potencial fuente de mano de obra como personal de
servicio a cargo de los sectores acomodados y, al mismo tiempo, ideales garantes del
cumplimiento del orden doméstico en los hogares obreros como parte de sus deberes
femeninos y extensión de sus aptitudes “naturales” (NARI, 2004).
Para quienes ostentaban una buena posición económica, este saber doméstico
también se presentaba como indispensable. Además de conocer la materia para así dar
instrucciones precisas al personal de servicio a su cargo, ninguna dama estaba exenta de que
un cambio imprevisto de fortuna pudiera obligarla a ganarse el pan por sus propios medios.
En ese caso, el trabajo doméstico se presentaba como una opción digna ante una potencial
caída en desgracia y un conocimiento útil para adaptarse a las circunstancias de tener que
prescindir del personal y realizar sus “propias” tareas hogareñas. La tematización del riesgo Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
10
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit. Formatado: Fonte: Não Negrito,
11
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. Itálico
cit.; BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit. Formatado: Fonte: Não Negrito,
12
GRIERSON, Cecilia. Educación técnica de la mujer: informe presentado al Sr. Ministro de Instrucción Itálico
Pública de la República Argentina. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Tipografía de la Penitenciaría Nacional, Formatado: Fonte: Não Negrito,
1902. Itálico
25

de la “caída en desgracia” está presente en los debates parlamentarios sobre la regulación del
trabajo femenino en general y “a domicilio por cuenta ajena”13 en particular.14. Este riesgo
tenía consecuencias diferenciadas por clase. Según se desprende de las intervenciones
legislativas que se oponían a su prohibición, para las mujeres de clase alta, la posibilidad del
trabajo a domicilio era una forma de preservación de la exposición pública de su cambio de
situación económica (pobre vergonzante). Para las mujeres de las clases trabajadoras la
ausencia del trabajo a domicilio suponía el riesgo de la caída en la prostitución ya que
obturaba una forma decente y aceptada de trabajo femenino en el ámbito privado (AGUILAR,
2012; BARRANCOS, 2000; LOBATO, 2007). [A7] Comentário: Não está nas
referências.
La Economía Doméstica traducía en orientaciones prácticas un conjunto de saberes
necesarios para la construcción del orden doméstico que era sostenido y legitimado
simultáneamente en afirmaciones sobre el progreso de la ciencia y la conservación de la moral
y las tradiciones ancestrales. Esta tensión entre tradición y modernización se hacía evidente a
la hora de problematizar el gobierno del hogar. A éste se le demandaba al mismo tiempo ser
dispositivo de modelación hacia el futuro y a la vez garantía de conservación de las raíces y
tradiciones en un mundo en vertiginosa transformación, en el contexto de un paisaje social
signado por el acelerado proceso de crecimiento demográfico e industrialización de las
primeras décadas del siglo XX, en definitiva, ser un “nido en la tempestad” de la
modernización (LIERNUR, 1997).
Las reflexiones y trabajos sobre la Economía Doméstica en Argentina no eran
indiferentes, como en tantas otras áreas temáticas, a los desarrollos producidos tanto en
Europa como en los Estados Unidos de Norteamérica. En el debate sobre los modelos más
apropiados a seguir en lo que se refería al estudio y la enseñanza de la Economía Doméstica
local circulaban menciones a variadas experiencias extranjeras y evaluaciones sobre la
factibilidad de su adecuación al contexto nacional (AGUILAR, 2013).15.
Este conjunto de saberes era parte del mínimum de instrucción obligatoria contenido
en el artículo 6 de la ley 1420 de educación común sancionada en 1884, y uno de los
contenidos básicos del examen para acceder al puesto de maestra según constaba en “Monitor
de la Educación” (CALDO, 2012, p. 175). Esta publicación contaba además entre sus páginas
con largas descripciones sobre las virtudes de las escuelas urbanas especializadas en New

13
Se denomina así al trabajo realizado en el propio domicilio por cuenta de terceros, quienes proveían la
materia prima y pagaban por pieza terminada. Las tareas más generalizadas eran la costura, confección de
zapatos y lavado. Formatado: Fonte: Não Negrito,
14
Ley 10.505, 1918. Itálico
15
GRIERSON, Cecilia. Educación técnica de la mujer…, ob. cit.; AMADEO, Tomás. La Redención por Formatado: Fonte: Não Negrito,
la mujer. Buenos Aires: Guillermo Kraft Ltda., 1947. Itálico
26

York, Boston o Chicago y relatos de corresponsales que consignaban experiencias educativas


desarrolladas en Suiza, Francia, Inglaterra y Alemania (AGUILAR, 2012). Entre las opciones [A8] Comentário: Não está nas
referências.
circulantes, se destacaban particularmente aquellas dedicadas a la extensión rural en Bélgica y
Francia (GUTIERREZ, 2007).16.
Si bien la mayoría de los manuales y textos escolares específicos provenían del
extranjero, ya en el último cuarto del siglo XIX, algunos se editaban localmente.17. Estos
textos solían ser prologados por la reproducción de cartas y recomendaciones de distinguidas
personalidades y expertos en las materias tratadas por los manuales (higiene, educación,
medicina, cuidados del hogar) que también inscribían, a su modo, la Economía Doméstica y
su enseñanza entre los saberes necesarios y legitimados científicamente para la reforma de las
condiciones de vida de la población.
El discurso de la Economía Doméstica, en sus diversas formulaciones, mostraba una
tensión permanente entre la caracterización de sus estrictas rutinas y tareas cotidianas, como
“menudencias” y detalles, nimiedades del mundo doméstico, al tiempo que adjudicaba una
importancia fundamental a su correcta ejecución.18. La sucesión de tareas propuesta se
desplegaba en una puntillosa serie ordenada secuencialmente desde el alba hasta la caída del
sol. Semana a semana, mes a mes. En su realización minuciosa, detallada, cronométrica
parecía estar en juego no sólo la conformación y el sostenimiento del hogar, ritual cotidiano,
sino de la patria toda. Del orden doméstico al orden social, existía una línea de continuidad
que era trazada en cada quehacer.

Cumpliendo el orden cada ser obtiene su propio bien y el de los demás. Del
desorden resultan la enfermedad, el dolor, la ruina económica y hasta la muerte de
una persona o de una nación.19.

Formatado: Fonte: Não Negrito,


16
AMADEO, Tomás. La Redención por la mujer…, ob. cit. Itálico
17
Hacia principios del siglo XX existían manuales de edición local. Entre los que hemos podido revisar Formatado: Fonte: Não Negrito,
se encuentran “Lectura de economía doméstica” de Lucía Aïn y Cipriano Torrejón (del que se conoce una Itálico
temprana edición en 1887), “El Hogar Modelo” (1902) y “Consejos a mi hija” (1903) de Amelia Palma Formatado: Fonte: Não Negrito,
prologado por Cecilia Grierson y el “Vademécum del Hogar” de Aurora del Castaño (1903). A ellos se sumaba Itálico
la circulación del texto norteamericano de Appleton “Economía e Higiene Doméstica” que contaba con cinco Formatado: Fonte: Não Negrito,
ediciones en castellano para 1903. En el nivel primario, se destacaba el texto “Economía Doméstica al alcance de Itálico
las niñas” de Emilia Salzá (1909). Ver TORREJON, Cipriano; AIN, Lucía. Lectura de Economía Doméstica. Formatado: Fonte: Não Negrito
Buenos Aires: Imprenta Juan Alsina, 1887; PALMA, Amelia. Consejos a mi hija: lecturas de propaganda moral.
Buenos Aires: Jacobo Peuser, 1903; DEL CASTAÑO, Aurora. Vademécum del Hogar: Tratado práctico de la Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
economía doméstica y labores. Buenos Aires: Juan E. Barra, 1903; APPLETON. Economía e Higiene
Doméstica: Arreglada para el uso de la familia en general y para texto en las escuelas y colegios de señoritas. Formatado: Fonte: Não Negrito,
New York: Appleton y Compañía, 1912; SALZÁ, Emilia. La Economía Doméstica al alcance de las niñas. Itálico
Buenos Aires: Cabaut y Cía, 1909. Formatado: Espanhol (Espanha-
18
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. internacional)
cit., p. 23. Formatado: Fonte: Não Negrito,
19
Ídem, p. 30. Itálico
27

Organizar buenos hogares es hacer la mitad de la obra en pro de la formación de


buenos ciudadanos. Es en los buenos hogares, mejor que en las mismas escuelas
donde se modelan los buenos hijos, y son los buenos hijos los únicos capaces de
hacer la patria grande y la humanidad mejor.20 .

Un núcleo fundamental de esta “organización de los buenos hogares” era la


administración de sus recursos económicos. Para dar cuenta de los saberes y prácticas
propuestos para esta administración trabajaremos sobre los capítulos titulados “Contabilidad
doméstica” y “El Arte de Economizar” del ya mencionado texto de Bassi21 y “El orden en las
necesidades humanas”, “Adquisición, conservación y buen uso del Dinero” y “Felicidad
moral y prosperidad económica de las familias” correspondientes al compendio de Barrantes
antes citado.22. Estos capítulos condensan en su argumentación la relevancia económica y
moral de la correcta administración del hogar, la necesidad de elaboración de una contabilidad
doméstica y las consecuencias esperadas de tal proceder.
La selección de estos textos y su tratamiento conjunto tuvo por criterio de pertinencia
su publicación y circulación en la primera postguerra. Esos años constituyeron un momento
fundamental para problematización de la economía argentina y sus limitaciones externas,
expresadas en las dificultades para el comercio exterior y el consecuente aumento de precios
de los alimentos y bienes importados (RAPOPORT, 2007). La crisis económica exigía a las
familias esforzadas estrategias para enfrentar la “carestía de la vida”. Ambos textos dan
cuenta de estas condiciones y de la importancia que adquiere la Economía Doméstica en ellas.

La conflagración europea y los trastornos sociales que le han sobrevenido han


empeorado de tal modo las condiciones económicas que los empleados y
trabajadores, que solo con extrema cordura en el manejo de los ingresos se puede
vivir sin contraer deudas o sin sufrir el azote de la miseria.23.

En la crisis actual, sobre todo despues de la guerra, la Economia es el programa de


todos los gobiernos, porque hay un déficit en la producción mudial y las necesidades
humanas no han disminuido. Esta circuinstancia ha provocado un estudio más atento
y mas hondo de la económica doméstica.24.

En el marco de la crisis, la medición de las condiciones de vida de los sectores


trabajadores urbanos, cuyas prácticas cotidianas la Economía Doméstica pretendía interpelar,
comenzaba a ser un elemento relevante en la consideración de las estadísticas públicas, en
Formatado: Fonte: Não Negrito,
20 Itálico
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. XIII.
21
Ídem, p. 30-46. Formatado: Fonte: Não Negrito,
22
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. Itálico
cit., p. 25-40, 268-306 y 307-337 Formatado: Fonte: Não Negrito,
23
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 5. Itálico
24
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. Formatado: Fonte: Não Negrito,
cit, p. 20. Itálico
28

particular para la realización de los primeros cálculos del “costo de vida” y la confección de
presupuestos familiares como forma de registro (GONZALEZ BOLLO, 1999; OTERO,
2011). La unidad de medición de los relevamientos realizados desde 1913, era la familia [A9] Comentário: Não está nas
referências.
obrera: su composición e ingresos, y los montos destinados a los alimentos, alquiler y ahorro
traducidos en “presupuestos obreros promedio” (GONZALEZ BOLLO, 1999, p. 37;
DANIEL, 2009). Basándose en esos presupuestos familiares y sólo unos pocos años antes de
la publicación de los manuales aquí considerados, en 1918, el Departamento Nacional del
Trabajo había publicado las primeras series de “oscilaciones anuales del costo de vida”
calculadas en el país.
Analizar las recomendaciones para la confección de una contabilidad hogareña
específica y para la realización casera de presupuestos adquiere relevancia si se los pone en
serie con una trama más amplia de registros escritos que pretendían delimitar las fronteras
materiales y simbólicas del hogar, sus cualidades y dinámicas cotidianas. Entendemos que es
posible señalar una significativa afinidad (de formas y contenidos) entre las técnicas
propuestas para alcanzar la inteligibilidad administrativa de “entrecasa”, de puertas adentro,
propuestas por la Economía Doméstica a través de la confección cotidiana de la contabilidad
por medio de los presupuestos familiares y la incipiente necesidad de cruzar las fronteras del
hogar, de estudiar, registrar lo que allí sucedía en términos económicos, postulada desde la
Estadística Estatal. Habría que esperar, sin embargo, hasta la década de 1930 para que el
registro cotidiano de los ingresos y gastos formara parte de las prácticas sistemáticas de
registro estatal en pos de comprender la relación entre salarios, costo de vida y sus efectos
sobre el mercado interno en conformación (GONZALEZ BOLLO, 2004).

EL HOGAR COMO “UNIDAD ECONÓMICA”

La delimitación del hogar en tanto ámbito de administración económica es un núcleo


fundamental de argumentación en el discurso de la Economía Doméstica. En su diagnóstico la
“vida moderna” (vgr. urbana e industrial) había complejizado las necesidades a satisfacer y
las condiciones en las que los hogares debían afrontarlas:

Aumentan las necesidades y las exigencias, se multiplican y crecen los hijos, se


encarecen las mercaderías y la vida y entonces se comprende cómo hace falta más
capacidad más acierto en la distribución de los recursos y en su inversión, y cómo se
29

acrecienta el valor de la ciencia [doméstica] que contribuye a darnos esa capacidad y


ese acierto cada vez más indispensable.25.

En la descripción de la “vida moderna” presente en los textos de Bassi y Barrantes se


delimitan unas cualidades específicas de la unidad doméstica tal como éstos la delimitaban:
urbana, habitada por una familia nuclear, asalariada, donde el ingreso principal correspondía
al varón y en la que los demás miembros de la familia (mujer y niños) podían, llegado el caso,
colaborar con ingresos complementarios. Se esperaba que una adecuada administración del
salario o jornal garantizara no sólo la satisfacción de las necesidades sino también el ahorro,
una de las pocas formas de previsión disponibles ante la falta de trabajo o la imposibilidad de
ejercer una tarea remunerada por causas de imposibilidad física. La administración de los
recursos y su utilización constituía entonces parte imprescindible del adecuado “gobierno del
hogar”.
Esta complejización de las necesidades familiares a resolver con dinero, a través del
trabajo asalariado, era presentada como una característica relacionada con la vida urbana y
situaba la racionalidad en el consumo como una estrategia de preservación económica y
moral. Ante la obturación de la posibilidad de auto-sustento que brindaba la unidad doméstica
campesina, no existía otra opción que recurrir al mercado, dinero mediante, para adquirir los
bienes necesarios para la subsistencia.

El pobre de las ciudades es más pobre que el campesino, porque tiene más
necesidades, debiendo por lo mismo practicar con más diligencia el ahorro. En el
campo el ama de casa realiza su economía solo con su trabajo, pues sus necesidades
son sencillas y ella puede hacer todo lo que consume la familia. En la ciudad no basta
el trabajo sino que son necesarias también la instrucción y la habilidad. Gran parte de
la economía depende en la ciudad de la viveza con que se practican las compras.26.

La acertada distribución de los recursos monetarios del hogar, la “viveza” a la hora


de consumir tenía por pilares una buena administración y una adecuada preparación teórica y
práctica para llevarla a cabo, o sea, el conocimiento de los preceptos de la Economía
Doméstica.
Ahora bien, ¿en qué consistía la correcta administración del hogar en términos
económicos? ¿Cuáles eran los medios para alcanzarla? Según señalan tanto Barrantes como
Bassi, para alcanzar este objetivo, era preciso hacer ingresar las prácticas económicas
cotidianas en un registro minucioso, que permitiera conocer en todo momento cuál era la
Formatado: Fonte: Não Negrito,
25
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 5. Itálico
26
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. Formatado: Fonte: Não Negrito,
cit., p. 292. Itálico
30

situación económica del hogar y que, previa evaluación, impidiera la realización de gastos
superfluos en relación con los recursos disponibles buscando incorporar los hábitos del ahorro
y la previsión. La ordenada administración de los recursos conllevaba un aspecto moral
importante: la prudencia. Esta virtud, una vez alcanzada, permitiría gobernar los impulsos y
discernir entre lo útil y lo superfluo, entre la satisfacción inmediata del lujo y los placeres
satisfechos a costa de las necesidades del hogar; o la capacidad de posponer estas
satisfacciones para garantizar su armonía presente y futura.27.

Entonces una buena señora piensa en todas estas cosas y distribuye los recursos con
criterio de economía y previsión, de manera que siempre alcancen, o más bien que
sobren y ninguna necesidad quede desatendida, formulando para mejor proceder un
cálculo de entradas y un presupuesto de gastos, y llevando una sencilla
contabilidad.28.

El salario o jornal (masculino) se presentaba, tanto en las instrucciones como en las


figuras de los presupuestos que acompañaban el texto, a modo de ilustración, como la fuente
principal de ingresos domésticos. En caso de excepcional necesidad, el ama de casa podía
eventualmente colaborar en el ingreso familiar realizando algunas tareas “complementarias”
al ingreso del varón por las que podía obtener ingresos extras para la familia.

Contribuye a aliviar el presupuesto de la familia obrera, el trabajo que hace la


esposa: lavaditos, planchados o costuras para afuera, y los obsequios de las
relaciones o de los protectores, en forma de ropa usada o vestiditos para los nenes, y
además de las changuitas extras que a veces es capaz de ganar el mismo operario.29.

Sin embargo, era la capacidad femenina para administrar el salario la que, según se
indicaba, garantizaría la supervivencia y el buen desarrollo del hogar.30. Así, de acuerdo con
las prescripciones de la Economía Doméstica, era deseable que el dinero fuera entregado a la
mujer de la casa pues era ella quien debía conocer al dedillo las reales necesidades cotidianas
y futuras de los suyos y por lo tanto velaría por su satisfacción del mejor modo posible. Para
ello, debían poseer ciertas cualidades:

27
De acuerdo con los textos trabajados, la satisfacción de los placeres e impulsos tiene una clara
diferenciación por género reiterada en variadas formulaciones: en el caso de las mujeres se centra en el derroche
en teatro, moda, vestidos y abalorios; en los varones el alcohol, las apuestas y el club. Formatado: Espanhol (Espanha-
28
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 8. internacional)
29
Ídem, p. 23. Formatado: Fonte: Não Negrito,
30 Itálico
Cabe destacar que las primeras mediciones regulares y oficiales de Costo de Vida (1918, 1933)
Señalaban la imposibilidad de los hogares de sostenerse con un solo salario o jornal. Se reconocía, no sin rodeos, Formatado: Fonte: Não Negrito,
la existencia del trabajo femenino extradoméstico e infantil que permitía el sustento de las familias obreras Itálico
(unidad sobre la cual se efectuaba la medición). Ver Instrucciones para realizar la investigación del costo de la Formatado: Espanhol (Espanha-
vida de la población obrera de la Capital Federal. Argentina: Departamento Nacional del Trabajo, 1933. internacional)
31

Las mujeres trabajadoras, vigilantes, económicas, modestas son las que impulsan
enérgicamente a sus hogares hacia el progreso moral y material; ellas saben mejor
que los hombres, en qué y cómo deben ser empleados en la casa el dinero y tiempo;
esas mujeres son verdaderos ministros de hacienda de la familia.31 .

La Economía (…) es la cualidad por excelencia de las mujeres; ella sola atrae muy
pronto todas las otras cualidades que forman el hechizo en el interior del hogar. La
mujer sabiamente económica y que conoce lo que vale el dinero, sabiendo, por
consiguiente, gastarlo cuando le conviene, es una mujer de orden, que equilibra los
gastos con los ingresos, que sabe colocarse al abrigo de la pobreza y que todavía
tiene los días de fiesta alguna sorpresa agradable que dar a su familia.32.

Paradójicamente, el código civil impidió la administración legal de bienes por parte


de las mujeres hasta 1926 (NARI, 2004). La organización propuesta implicaba entonces, una
suerte de administración “de puertas adentro” pero también y, cada vez con mayor frecuencia
a lo largo de la década de 1920, la toma de decisiones cotidianas respecto del consumo
familiar de bienes y servicios.33. Ambos textos indicaban pautas de educación al ama de casa
en tanto consumidora. Era necesario que conociera “el valor real de las cosas, su precio actual
en el mercado, su calidad y las falsificaciones”, así como también que supiera cómo comprar
al por mayor aquella mercadería que pudiera reservarse, dejando los alimentos perecederos
para la compra minorista diaria.34. Debía asimismo evitar la compra a los vendedores
ambulantes, evaluar la relación precio/calidad y apartar mes a mes el dinero necesario para la
compra en cuotas de los bienes durables.35.
También se planteaba como deseable que estuviese preparada para cualquier
eventualidad que provocara la ausencia del marido, por tanto se estimaba necesario que
conociera sus asuntos y colaborara en su orientación hacia el ahorro y la previsión.

[Ganar el dinero] Debería constituir un asunto de la casi exclusiva incumbencia del


hombre; pero como la mujer debe colaborar a su lado en todo aquello que pueda
contribuir al bien del hogar, y sobre todo, debe estar preparada para cualquier
imprevisto, incluso el de quedar viuda y a cargo de numerosos hijos, conviene influya
con el esposo y lo ayude en el sentido de aprovechar de los posibles ahorros o
ganancias para ponerlos al servicio de los medios de atenuar o reparar el infortunio.36.

31
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 100. Formatado: Fonte: Não Negrito,
32
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. Itálico
cit., p. 288. Formatado: Fonte: Não Negrito,
33
Para un análisis de la interpelación a las amas de casa en su rol de consumidoras a través de los medios Itálico
de prensa y la publicidad radiofónica véase TRAVERSA (1997) y ROCCHI (2000). Para el análisis de los
modos en que la Economía Doméstica deviene en “Ciencias del consumo” en el contexto de los EEUU véase
STAGE y VICENTI (1997). Formatado: Espanhol (Espanha-
34
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. internacional)
cit., p. 293.
35
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit.
36
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 48.
32

El ama de casa se presentaba entonces como la administradora más capaz de bienes y


recursos. Era ella quien estaba en condiciones de hacer “rendir el salario” mediante múltiples
técnicas cotidianas. Sin embargo, si no estaba lo suficientemente preparada para su correcta
administración, también corría el riesgo de derrocharlo en frivolidades o gastos innecesarios
poniendo en peligro la economía hogareña.37 . Era por eso necesaria, según sus impulsores, su
formación en Economía Doméstica. Se vislumbra aquí una contradicción en los argumentos:
era necesaria la preparación específica, científica y económica de las mujeres, aun para la
realización de aquellas tareas proclamadas como supuestamente “propias de su condición
femenina”. En este sentido, la capacidad de administración hogareña se consideraba una
cualidad a inculcar desde la más tierna infancia. Era posible por tanto “enseñar el hogar”.
Tanto Bassi como Barrantes sugerían para ello la asignación de tareas y pequeñas
responsabilidades domésticas a niños y niñas para que, a modo de juego, fueran incorporando
el sentido del orden y la administración, y la virtud del ahorro con sus efectos moralizadores.
Aún la contabilidad podía aprenderse desde la infancia:

Una madre no dará nunca dinero a su hija antes de haber recibido la nota de cómo la
niña ha gastado la suma anterior. Esa pequeña contabilidad que le hace llevar a su
hija la acostumbrará a llevar libros más serios e indispensables después.38.

La administración eficiente de los recursos económicos y la toma de decisiones


correctas sobre los gastos familiares debía sostenerse en el ejercicio de un prolijo registro a
través de técnicas contables. En este sentido, es posible pensar la contabilidad como parte de
una trama de escrituras a través de las cuales se va delimitando el hogar en su dimensión
económica; una “escritura de las prácticas” cotidianas que podría tornarlas legibles para sí y
para los demás, que permitiría captarlas a la vez que orientarlas (CHARTIER, 2001).39. [A10] Comentário: Não está nas
referências.
La contabilidad prescripta por la Economía Doméstica, de concretarse, iluminaría a
través del presupuesto la opacidad de la privacidad del hogar y dejaría huellas observables “en

37
Recordamos sobre este punto, los argumentos de Alejandro Bunge bregando por la construcción del
“sentido económico de la mujer” en el que incluía la toma de decisiones en las compras (AGUILAR, 2012;
NARI, 2004). Ver BUNGE, Alejandro. Formación del sentido económico de la Mujer. En BUNGE, Alejandro
La economía Argentina Vol. I La conciencia Nacional y el problema económico. Buenos Aires: Agencia
General de Librerías y Publicaciones, 1928. Formatado: Espanhol (Espanha-
38
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. internacional)
cit., p. 303.
39
Podría relacionarse la importancia que se asigna a este registro minucioso de las entradas y salidas del
hogar con un diario en el que se refleja su intimidad. En este sentido, cabe recordar los argumentos de ARIÉS en
la introducción a la Historia de la vida privada (1991) que vincula la confección de los diarios íntimos con el Formatado: Espanhol (Espanha-
surgimiento de la reflexividad moderna. internacional)
33

el papel” de su ingresos y consumos, de sus gastos y ahorros, en suma, de sus condiciones de


vida. Un afán de larga data como bien mostraban las encuestas sociales realizadas en los
países centrales que habían hecho del presupuesto doméstico una de sus herramientas
fundamentales para la construcción de conocimiento social (GONZALEZ BOLLO, 1999;
TOPALOV, 1991; y 1992). Sobre las características de esta escritura, nos detenemos a
continuación.

LA ESCRITURA DEL HOGAR

El registro, a través del presupuesto, de ingresos y egresos corrientes o


extraordinarios y la identificación de los gastos necesarios (o superfluos) para el normal
funcionamiento del hogar, era la propuesta de la Economía Doméstica que permitiría ordenar
y hacer legibles, a la vez que traducir en términos de cálculo económico (racionales y
previsibles), la actividad de sus miembros.

Una buena ama de casa debe establecer su presupuesto procurando que quede
siempre un excedente de sus entradas sobre sus gastos para hacer frente a las
necesidades imprevistas; y si ese ahorro no le es posible, debe procurar al menos que
nunca se altere el equilibrio entre el dinero que entra y sale de la casa.40 .

En sus versiones más simples, los textos promovían la confección de un presupuesto


familiar donde constaran los principales ingresos (renglón que generalmente correspondía al
salario o jornal del varón) y los egresos estimados, divididos en categorías y rubros
específicos. Para poder contrastar aquel presupuesto con lo efectivamente erogado, se sugería
la confección de planillas de gastos diarios (o libro diario de bolsillo), realizadas con
preferencia al final de cada día donde el ama de casa registrara detalladamente las entradas y
las salidas de dinero. Este libro podía ser una simple libreta, pequeña, que cupiese en un
bolsillo, donde se fueran anotando, a doble columna, todos los gastos realizados e ingresos
obtenidos. También se indicaba llevar tantas libretas como créditos se tuvieran abiertos (ej.
con el almacén, el carnicero, etc.).
En aquellas propuestas más complejas como las desarrolladas en los textos de Bassi
y Barrantes aquí considerados, el sistema de registro incluía además la confección de un libro
mayor o resumen mensual que sintetizara el gasto realizado para cada uno de los rubros
estimados. La contabilidad doméstica configuraba entonces, además de un registro diario de

40
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. cit., p. Formatado: Fonte: Não Negrito,
292. Itálico
34

los ingresos y consumos, un examen resumido de las actividades del hogar, traducido a la
forma del presupuesto como herramienta de planificación, evaluación y control. Éste debía
comprender “el cálculo de recursos, de gastos y de ahorros”.41. De acuerdo con Barrantes, la
confección del “presupuesto casero” tenía tres pasos fundamentales:

1. Clasificar las categorías de las diversas entradas y sumarlas 2. Hacer una lista de
los diferentes grupos de gastos 3. Repartir la suma de las entradas entre los
diferentes capítulos de los gastos. Esta última tarea consiste en cálculos que solo la
experiencia permite hacer con exactitud.42.

Una mirada a los presupuestos utilizados como ilustración en el manual Bassi nos
permite observar los rubros más usuales indicados para el registro de la economía hogareña de
familias de distinta composición y con ingresos dispares (Figura 1). Según aclara el autor,
estos ejemplos no debían ser tomados

como absolutos, por cuanto unos en ciertos casos estarán de más y otros faltarán, en
virtud de que los presupuestos varían según los recursos, el número de miembros de
que se componen la familia, la posición social que ocupa y los hábitos de vida, ya
sean éstos de frugalidad y sencillez o de regalo y bienestar.43 .

Esta observación es interesante ya que nos advierte del carácter variable en términos
sociales e históricos de aquellos gastos plausibles de ser considerados como imprescindibles y
los modos de satisfacción de las necesidades reconocidas socialmente como tales. Algo
similar plantea Barrantes cuando afirma que “las necesidades humanas son múltiples y varían
según el grado de cultura o de moralidad de una persona”.44. Señala entonces la existencia de
necesidades legítimas correspondientes a tres órdenes de la vida: moral, intelectual y material.
Estas necesidades poseían una jerarquía entre sí, por cuanto “El orden impone al ama de casa
la obligación de satisfacer las necesidades indispensables para la vida antes que la secundarias
que pueden suprimirse y antes que los refinamientos superfluos”.45.

FIGURA 1 – PROYECTOS DE PRESUPUESTOS FAMILIARES Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado

Formatado: Fonte: Não Negrito,


41 Itálico
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 18.
42
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. Formatado: Fonte: Não Negrito,
cit., p. 292. Itálico
43
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 19. Formatado: Fonte: Não Negrito,
44
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. cit., p. Itálico
36. Formatado: Fonte: Não Negrito,
45
Ídem. Itálico
35

FIGURA 1 – PROYECTOS DE PRESUPUESTOS FAMILIARES Formatado: Fonte: Não Negrito


FUENTE: BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 22-23).
Formatado: Centralizado

De acuerdo con los proyectos teóricos propuestos por Bassi a modo de ejemplo,
mientras que el presupuesto teórico de la familia de mayores ingresos quintuplica el propuesto
para el caso de la “familia obrera” (un ingreso estimado de 500 pesos para la primera y de 100
pesos mensuales para la última), cabe destacar en este último ciertas aclaraciones dispuestas
entre paréntesis junto al renglón presupuestario correspondiente, que establecen la cualidad de
“mínimos” en aquellos rubros considerados como “extra” a las necesidades de alimentación,
vestido y vivienda, y por lo tanto, prescindibles. Entran en esta recomendación de “mínimos”
la recreación y el mobiliario. En este señalamiento también se evidencia una jerarquización
(moral) de las necesidades para la “familia obrera”.
También se puede observar en los presupuestos de menores ingresos la realización en
el ámbito del hogar del lavado y la ausencia de servicio doméstico, como elementos clave de
la diferenciación por clases sociales de la realización de los quehaceres domésticos. Un
elemento importante de diferenciación en la capacidad de consumo se hace evidente en las
características de la vivienda considerada. Mientras que en los presupuestos I y II de la Figura
1 se estimaba el alquiler de una vivienda que no debía exceder el 20 % del total de los
ingresos familiares, en el caso del presupuesto III, ese 20% alcanzaba únicamente a afrontar el
alquiler de una única pieza de conventillo para una familia de cuatro miembros. En todos los
36

casos se sugería la reserva de dinero para “eventuales” (tal es la categoría utilizada para los
gastos imprevistos) y montos específicos para previsión y ahorro.
En la Figura 2 puede observarse un ejemplo de “libro diario”. Según se consigna, es el
“libro diario correspondiente a la semana de una familia obrera con tres hijitos cuyo jefe percibe
cada sábado el importe de sus jornales”.46. Este registro del movimiento cotidiano del dinero del
hogar “en el papel” nos brinda algunos aspectos interesantes sobre la distribución hipotética de
los recursos y gastos que plantea el autor para una familia de ingresos modestos. Los gastos más
importantes son los destinados a la alimentación y el alquiler (en este caso semanal). Entre los
gastos cotidianos se presentan la compostura de zapatos y arreglo del sofá, lo que permite
observar cierto cuidado de los objetos y aprovechamiento de los existentes (máximas clave de la
Economía Doméstica). También figura el pago a una sociedad de socorros mutuos como forma
de previsión. Se destaca atención la inclusión de la “compra de un periódico”, clasificada luego
en el libro mayor como “vida intelectual”.

FIGURA 2 – LIBRO DIARIO Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado

Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Figura 2 – Libro Diario Italiano (Itália)
Formatado: Fonte: Não Negrito,
46
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 24. Itálico
37

FUENTE: BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 25-26. Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Italiano (Itália)
El único ingreso que surge de la Figura 2 es el jornal del esposo, quien además tiene
Formatado: Fonte: Não Negrito,
un monto separado para sus gastos personales. Este otorgamiento de un dinero registrado Itálico
Formatado: Fonte: Não Negrito
como “gastos menores del esposo” se propone como solución ante la dificultad de lograr que
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Espanhol (Espanha- internacional)
el marido “anote” cada uno de sus gastos y entonces perder control de ese dinero en la suma
total. Es sugerido en ambos textos consultados. Por contraste, es notoria la ausencia de los
gastos de la esposa, abnegada administradora de las necesidades de los demás (CALDO,
2012). La vivienda ocupa un lugar importante en los presupuestos domésticos sugeridos. En
este caso, el pago en mensualidades de un terreno nos presenta la expectativa de abandonar la
pieza de conventillo que figura en el rubro habitación. La compra en cuotas de lotes alejados
del centro de la ciudad, constituía una apuesta a mediano plazo, habilitada por la extensión de
las líneas de tranvía (SCOBIE, 1986) único medio de transporte que figura en el registro [A11] Comentário: Não está nas
referências.
cotidiano de los gastos presentados (AGUILAR, 2012). [A12] Comentário: Idem.

Estos gastos diarios eran luego incluidos en una planilla de resumen semanal o libro
“mayor” (Figura 3) que agrupaba los rubros y permitía evaluar el egreso del mes agregado por
cada uno de ellos. Cabe destacar que los presupuestos de todos los niveles de ingreso
contenían un renglón específico para la beneficencia. Según indicaba Bassi, no podía “faltar
ni en el presupuesto más humilde. Si el que tiene salud y trabajo es pobre, con toda seguridad
habrá otros que lo son mucho más y que están necesitados de socorros urgentes”.47. Coincidía
Barrantes en la necesidad de destinar parte de los ingresos a la caridad al señalar que:

Una parte de las economías debe ser destinada a socorrer a los necesitados, no
solamente por razones de conciencia y humanidad, sino por motivos económicos. La
utilidad así lo aconseja pues la caridad social evita los delitos y las agitaciones
sociales que arruinan las familias burguesas y rentistas.48.

FIGURA 3 – LIBRO MAYOR DOMÉSTICO Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado

Formatado: Fonte: Não Negrito,


47
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 21. Itálico
48
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob. Formatado: Fonte: Não Negrito,
cit., p. 297. Itálico
38

FIGURA 3 – Libro Mayor Doméstico Formatado: Fonte: Não Negrito


FUENTE: BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 27.
Formatado: Centralizado
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
En el texto de Barrantes, encontramos la sugerencia de, además de la realización del
Formatado: Fonte: Não Negrito
registro de ingresos y egresos monetarios, de llevar un fichero con informaciones propias y
útiles para el hogar (Cuadro 1) donde constara desde el número de calzado de sus miembros
hasta las recetas de cocina, pasando por las tarjetas de visita de amigos y familiares, de modo
que permitiera de un vistazo, obtener toda la información necesaria para la adquisición de los
bienes y la correcta administración de los recursos.

CUADRO 1 – FICHERO Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado
1º Cuentas de la casa
Subdivididas por meses y con una recapitulación por año. Fichas separadas para el mercado, el almacén, los
medicamentos los criados, etc.

2º Fichas del menaje


A - Fichas para determinados artículos personales como zapatos, camisas, guantes, guardarropa.
B - Fichas indicando los lugares en que están colocados los vestidos.
C - Inventario de ropa blanca con indicación de la cantidad, precio y fecha de compra.
D - Reservas alimenticias en la despensa.
E - Datos sobre aniversarios y festividades particulares de la casa, la familia y los amigos.
F - Fichas de regalos y felicitaciones.

3º Fichas de la biblioteca
A - Poesía, Moral y Educación.
B - Medicina, Higiene y Economía Doméstica.
C - Historia Novelas y Lecturas recreativas para los niños.
D - Referencias sobre libros que interesa leer o comprar.
39

E - Música, repertorio teatral escogido y moral.

4º Fichas de relaciones Sociales y profesionales.

5º Sugestiones útiles
A - Sobre los niños.
B - Sobre el tocador y conservación de la ropa.
C - Sobre el jardín y las flores.
D - Sobre diversiones.

6° Fichas financieras
A - Impuestos.
B - Inventario de títulos.
C - Cuentas con el Banco.
D - Artículos a recibir.
E - Artículos a pagar.
F - Inventario general.

Cuadro 1 – Fichero Formatado: Fonte: Não Negrito


FUENTE: BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…, ob.
Formatado: Fonte: Não Negrito
cit., p. 34-35.
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
Este tipo de prácticas de registro detalladas eran tan engorrosas que incluso su mismo Formatado: Fonte: Não Negrito

impulsor admitía tener dudas de su efectiva practicidad, no así respecto de la contabilidad


doméstica, que en sus distintas formas define como imprescindible. Sin embargo, Barrantes
advertía que su importancia fundamental en tanto técnica radicaba en que sirviera como
examen y evaluación de lo actuado, que dejara una “enseñanza”:

La perfección en la contabilidad domestica no consiste tanto en anotar


minuciosamente el más pequeño gasto como el saber clasificar y agrupar las salidas
para deducir de su observación útiles enseñanzas.49.

Consideradas desde una perspectiva que analiza las técnicas y tácticas de gobierno,
entendido como “conducción de las conductas” a través de relaciones de poder y saber, la
confección de estas planillas de registro cotidiano puede comprenderse como una técnica de
orientación hacia la reflexividad de las prácticas económicas, es decir, la construcción de una
pauta de conducta a través de un ejercicio que ingrese la prudente evaluación de necesidades y
gastos, el cálculo racional, en la rutina cotidiana (FOUCAULT, 1982). Así, quien lleva un [A13] Comentário: Não está nas
referências.
registro minucioso:

Sabe con exactitud cuánto ha invertido en cada renglón de su presupuesto, y dónde


puede estirarse o dónde debe hacer economías. En su contabilidad encuentra, pues,
claramente consignada la aplicación de sus recursos y señalada la norma de
conducta a seguir en lo sucesivo. Por otra parte, la contabilidad enseña cómo las

49
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…,
ob. cit., p. 294.
40

pequeñas cifras, a fuerza de ser repetidas diariamente, se transforman en grandes


sumas.50.

La Contabilidad Doméstica por medio de la confección del presupuesto y la


teneduría (actualizada) de los libros domésticos habilita la reflexión meditada sobre el
ordenamiento de los recursos y, a partir de esta reflexión, la evaluación de la mejor manera de
administrar el hogar. Un hogar ahorrativo y trabajador, permitiría entonces la mejora de sus
condiciones de vida.

[La contabilidad] hace pensar sobre el asunto y así incita a economizar, a formar el
hábito del ahorro, cuyo hábito constituye una de las más apreciables conquistas que
pueden hacerse, puesto que por medio del trabajo y del ahorro no es difícil labrarse
un bienestar financiero, tal vez una fortuna y con esto, llevar días más felices y
placenteros que cuando asedia la estrechez, la pobreza o la miseria por todos
lados.51.

Cuando hay orden en los gastos, tanto las familias ricas como las pobres pueden
considerarse prósperas con tal de que éstas tengan trabajo remunerado. Las familias
de obreros dedicadas al trabajo manual están en condición favorable cuando tienen
ocupación conveniente y estable un salario suficiente para mejorar gradualmente su
estado.52.

Los flujos monetarios del hogar, no debían pasar desapercibidos, se esperaba que
dejaran huella, fuera ésta visible para sus miembros o para quienes potencialmente necesitaran
observarlo53. El gobierno del hogar reposaba, una vez más, sobre los detalles, las nimiedades,
los centavos. Tal como se ejemplifica en el libro diario: un lápiz, carreteles de hilo o carbón
para la cocina, todos son gastos registrables. La capacidad para distinguir entre lo útil y lo
superfluo es fundamental en este ejercicio reflexivo económico y a la vez moral.

Cada vez que sienta la necesidad o el deseo de hacer un gasto, una compra, piénsese,
medítese, consúltese ¿es indispensable esto, es útil, es superfluo? Si lo primero, no
vacilar en hacerla; si lo segundo, tampoco, cuando se vea que la utilidad es
rendidora y hay dinero sobrante; si lo tercero, sólo cuando la situación pecuniaria
sea desahogada.54.

50
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 44.
51
Ídem, p. 18.
52
BARRANTES MOLINA, Luis. Para mi hogar sintesis de economía y sociabilidad domésticas…,
ob. cit., p. 18.
53
La recomendación acerca de la confección de un presupuesto doméstico está presente también en las
indicaciones para la “Encuesta social” indicada durante los años 30 a las Asistentes de Higiene por el Dr.
Germinal Rodriguez, entre otros. Ver RODRIGUEZ, Germinal. Servicio Social: Principios generales de
Asistencia social. Buenos Aires: Editorial Universitaria, 1952. Formatado: Espanhol (Espanha-
54
BASSI, Angel. Gobierno, administración e higiene del hogar…, ob. cit., p. 32. internacional)
41

Se esperaba que la práctica de la contabilidad doméstica contribuyera a identificar las


consecuencias potencialmente beneficiosas de las prácticas económicas guiadas por la
prudencia, base del ahorro y la previsión. La conducta económica hogareña deseable era
aquella que se adecuaba hacia la consecución del ahorro. Sobre aquellos argumentos que lo
promovían y las instrucciones para el “arte de economizar” trata el siguiente apartado.

LA IMPORTANCIA DEL AHORRO

Un objetivo explícito de la Economía Doméstica en general y de la contabilidad


doméstica en particular era la evaluación de la posibilidad de ahorrar, y de concretarla toda
vez que fuera viable. Según se indicaba, tanto ricos como pobres estaban a merced de la
incertidumbre que indefectiblemente traería el futuro por lo que la potencial caída en el
infortunio era una probabilidad siempre presente tanto para las familias ricas como para las
clases trabajadoras.
Además de su función de previsión ante el infortunio, el discurso sobre la necesidad
del ahorro se sostenía sobre una perspectiva de acumulación y mejora de la posición social.
Según se señalaba, el dinero se obtenía con esfuerzo y era necesario conservarlo. Para ello
debían conocerse y aplicarse los múltiples preceptos del “arte de economizar”, plausibles de
ser sintetizados, para su fácil memorización, en tres consejos básicos: “llevar una vida
sencilla”, “gastar nada más que lo indispensable” y “gastar siempre menos de lo que se
gane”.55. Más allá de la cantidad de dinero que pudiera reservarse cotidianamente, lo
fundamental era construir el hábito que permitiera restringir las salidas de dinero a lo
estrictamente necesario. El ahorro cumplía una función reguladora de las costumbres,
enseñaba a reprimir “demasías” y “superfluidades”, sobre todo para aquéllos que sólo
contaban con su trabajo diario56 o un salario mensual:

No importa que lo que se economice sea poca cantidad; lo importante es adquirir la


costumbre de economizar; una vez conseguido esto, se mira y reflexiona mucho
antes de gastar un centavo, pues preocupa todo lo que representa una salida de
dinero; apréndase a estudiar, a comparar continuamente las entradas y salidas, lo
cual lleva a descubrir dónde existe una demasía o superfluidad e inspira los medios
para reprimirlas, siendo tan excelente práctica la que convence así que los centavos

55
C Ídem, p. 46.
56
El trabajo con pago de salario diario o intermitente constituye una verdadera preocupación en la
formulación de estos discursos sobre la Economía Doméstica. La administración ideal presupone un salario
mensual, pagado en fecha, que permitiría comprar en cantidad los alimentos logrando mejores precios, disponer
un monto para el ahorro y pagar en mensualidades los bienes durables cuando no fuera posible adquirirlos en Formatado: Espanhol (Espanha-
efectivo. internacional)
42

forman los pesos, la moneda menuda de las pequeñas economías acumuladas forman
un capital.57.

A través de las prácticas cotidianas de registro y por medio de la observación de la


conducta a la hora del consumo se lograría modelar las costumbres que conspiraban contra la
posibilidad de ahorrar. Siguiendo a Liernur (1997, p. 20), “el ahorro, se afirmaba, es un medio
de dominar las pasiones y por lo tanto el camino del perfeccionamiento moral”. Prometía
además la posibilidad de conservar y hasta multiplicar el dinero.

Economizar dinero equivale a ganarlo. Si una persona derrocha o malgasta mil


pesos, por ejemplo, para volverlos a poseer tiene que ponerse a trabajar de nuevo;
mientras que si en lugar de derrocharlos o malgastarlos los economiza, tendrá esa
cantidad sin necesidad de realizar esfuerzo alguno.58.

La previsión y el ahorro eran mínimas acciones cotidianas que, ejecutadas con la


vista puesta en un horizonte de mediano y largo plazo, se presentaban como las claves de la
conservación y mejora en la posición económica. La riqueza, la posesión de capital, se
presentaba como el horizonte último del ahorro. Así como la beneficencia se postulaba como
un deber para los hogares de toda posición social, la pobreza se relativizaba en su gravedad si
existía una capacidad de reserva, aunque más no fuera de unos pocos centavos.
La ausencia de otras formas de protección frente a los imprevistos ubicaba al ahorro
como una de las pocas estrategias disponibles para asalariados y jornaleros.59. Se advertía sin
embargo que el ahorro podía tener potenciales consecuencias malsanas si, a su vez, el exceso
de prudencia se convertía en avaricia. Se necesitaba entonces la construcción de una voluntad
firme, que permitiera privaciones y economías, pero sin comprometer en el camino el bien
vivir de la familia. En ambos textos consultados, el endeudamiento bajo todas sus formas y la
compra a crédito se presentan como la contracara de este arte de economizar. Bajo todo punto
de vista debía evitarse entonces el pago fiado, las deudas o libretas de crédito, salvo que no se
dispusiera de efectivo o en una situación extrema no dejara otra alternativa. Tanto la previsión
como el ahorro se enunciaban como actos de la voluntad, que derivaban de virtudes
personales cuyo despliegue permitiría un horizonte de ascenso en la escala social.
Siguiendo el conjunto de pautas descripto, un hogar bien administrado se orientaba,
entonces, hacia el progreso. La Economía Doméstica, a través del arte de economizar, la

57
Ídem, p. 99.
58
Ídem, p. 29.
59
En el texto de Bassi se sugieren algunos “medios de previsión contra el infortunio” Estos son: la
vivienda propia, la caja de ahorros, los títulos de renta, el dinero sobre hipoteca, las sociedades mutuas de
pensiones, el seguro de vida y los seguros contra accidentes de trabajo. Ídem, p. 47-54.
43

inserción del hogar en una trama de registros y escrituras, el ahorro y la prudencia,


garantizaría la racional adecuación entre necesidades, ingresos y consumos necesarios para
afrontar sin sobresaltos la complejidad mercantilizada de la “vida moderna”. El seguimiento
de sus preceptos permitiría avizorar entonces un horizonte de ascenso social, o al menos evitar
la miseria. Por lo pronto, se esperaba que la adecuada administración doméstica del salario lo
hiciera “rendir” lo suficiente como para cubrir las necesidades de los miembros del hogar.
El rol de las mujeres como administradoras de “puertas adentro” se presentaba como
central. Su figura en el discurso de la Economía Doméstica es la de un sujeto responsable, que
guía del consumo y el ahorro hogareño a partir de su expertise (con basamento científico y
moral) a partir de los preceptos e indicaciones de las Ciencias del Hogar y, hacia los años
veinte, comienza a ser destinataria principal del discurso publicitario en tanto decisora de los
consumos cotidianos. En su buena administración de los hogares estaba la clave de su éxito o
fracaso económico. Su virtud: evitar el derroche y el lujo, manteniendo abnegadamente el
orden doméstico moral y económico.

CONSIDERACIONES FINALES

A lo largo de este trabajo hemos examinado aspectos de la Economía Doméstica en


tanto conjunto de saberes expertos para la constitución o reforma de los hogares y como parte
de una indagación más amplia sobre los modos de configuración discursiva de la
domesticidad en y por los debates de la cuestión social en las primeras décadas del siglo XX.
Piezas de un corpus documental mayor, los textos seleccionados sin dudas no agotan
la indagación sobre la trama de elementos que confluyen en la construcción de domesticidad.
Sin embargo brindan interesantes indicios para estudiar las formas y contenidos específicos
que delimitan la problematización del hogar como ámbito de intervención en el período
indicado. Ambos constituyen recopilaciones de consejos y prácticas entendidas como
deseables para la mejor administración moral y económica del hogar a partir de las que ser
esperaba orientar las conductas de las mujeres a los que explícitamente se dirigían: docentes
en el caso de Bassi, amas de casa consumidoras de los productos elaborados por el frigorífico
auspiciante en el caso de Barrantes.
Describimos su inscripción en la Economía Doméstica y el despliegue de sus consejos
relacionados con la administración de los recursos monetarios. Sin embargo, la tarea analítica
emprendida también involucró observar la materialidad de sus formas textuales: el vocabulario
utilizado, el despliegue de sus gráficos, los modos de resumir sus preceptos, la utilización de
44

enumeraciones, las ilustraciones escogidas. Esta mirada sobre las formas enriqueció la lectura y
nos llevó a prestar especial atención sobre la contabilidad doméstica sus consejos para la
traducción y disposición a doble columna de los movimientos monetarios cotidianos, y al
presupuesto como técnica de registro, evaluación y control. Al mismo tiempo, permitió establecer
afinidades con otras expresiones de la forma “presupuesto”, del registro escrito de los flujos
económicos del hogar, postulada desde otros discursos que también contribuyeron a delimitar el
hogar, sus fronteras materiales y simbólicas, y a construir conocimiento sobre sus cualidades
específicas, tales como las promovidas por las incipientes mediciones del Costo de Vida.
Fue posible sugerir entonces puntos de contacto entre el presupuesto teórico
propuesto por la Economía Doméstica y las grillas de inteligibilidad económica de la familia
obrera promovida por las técnicas de medición estatal. Esta puesta en serie permitió observar
en distintas escalas el hogar como objeto de observación y reforma. Una línea analítica que se
va trazando desde la prescripción sobre la importancia del registro cotidiano interno al hogar,
a la medición de sus aportes a la Economía Nacional en construcción. Ambas instancias,
forman parte de un conjunto de saberes expertos (La Economía Doméstica y la Estadística o
la Economía – a secas) que confluyen en la configuración de la inteligibilidad del hogar como
unidad económica.
La reflexividad en las conductas promovida por la Contabilidad Doméstica, la
prudencia y el ahorro destacadas como virtudes fundamentales, ponen de manifiesto también
la estrecha relación entre administración económica y administración moral que se
entrecruzan en la figura del “hogar bien gobernado” como núcleo de una domesticidad
deseable. Este aspecto también se puede observar en la jerarquización de la satisfacción de las
necesidades y la posibilidad de discernir entre lo útil y lo superfluo. En este sentido, los
presupuestos, distribuidos por rangos de ingreso dan cuenta de una diferenciación por clase de
los gastos, las prioridades y también de la división sexual del trabajo en la resolución de las
tareas cotidianas relativas a la reproducción.
Es posible entender entonces el presupuesto como una delimitación cuantitativa y
cualitativa del hogar en tanto potencial objeto de reforma. Una huella textual de la búsqueda por
alcanzar el orden doméstico de espacios, tiempos y tareas que traduce en una lista de ingresos,
egresos y ahorro dibujada a dos columnas, las condiciones de vida de las familias obreras. Eran
justamente esas condiciones de vida, su registro y su reforma lo que estaba en juego.

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publicado o objeto? Anais, resumos do
evento...? Está faltando informação aqui
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em evento científico”, como parece ser
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[A15] Comentário: “En prensa” quer
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Barcelona: Gedisa, 1997.
48

CAPÍTULO 2 – SABERES FEMENINOS: LA COCINA Y LA TRANSMISIÓN DE


LAS RECETAS EN LOS CLIVAJES DE LAS LÓGICAS DEL CONSUMO,
(ARGENTINA, 1880-1945)

Paula Caldo

INTRODUCCIÓN

He afirmado con respecto a los reyes y a las reinas: “ellos no me necesitan”. Yo no


recuerdo por qué lo he dicho, pero pienso que si esta observación me vino a la
mente, es porque tengo la siguiente certeza: no me necesitan, hay otras personas que
pueden escribir sobre ellos… Me intereso por hombres y mujeres más ordinarios que
ya están muertos… Sé que no soy la única que va a trabajar sobre ellos, pero tengo a
pesar de todo la impresión de que yo debo hacerlo… (ZEMON DAVIS, 2006, p.
119).

¿Mujer se nace o se hace…? Antiguo dilema que, en el presente, los estudios de


género han resuelto logrando un consenso en torno al carácter de construcción cultural de la
feminidad. En esta clave, a ser mujer se aprende viviendo en el marco de registros y contextos
condicionados por clivajes sociohistóricos. Habitar la feminidad no es una práctica que activa
esencias, sino el resultado de decisiones históricas, nutridas por efectos performativos,
marcados a su vez por discursos políticos, científicos, prescriptivos pero también por
consensos o resistencias. Así, ser “mujer” no tiene un sentido único o inevitable.
Sin embargo, pensar lo femenino como una construcción social resulta una
aseveración contemporánea que colisiona con concepciones profundamente arraigadas en el
sentido común de la cultura occidental. Entendemos que el sentido común resulta ser una
amalgama de saberes residuales de teorías cargadas de internacionalidades. De este modo,
adquiere conexión con las teorías que digitan los rumbos sociales desde las esferas del poder
(GUHA, 2002). Es por ello que, y sin temor de equivocarnos, estimamos al siglo XIX como
un gran laboratorio de discursos y prácticas tendientes a la reglamentación del tránsito social
de las mujeres (tanto en el espacio público como en el privado). El resultado de dicha labor
fue la naturalización de la mujer doméstica como destino obligado de toda mujer. Al decir
mujer doméstica, estamos pensando en esas mujeres que asumen el matrimonio, la maternidad
y el cuidado del hogar como paraje inevitable y, además, deseado (MORANT; BOLUFER,
1998; ARMSTRONG, 1987). Esa naturalización estuvo acompañada por una profusa
producción de saberes exclusivos para las mujeres, puestos a rodar en la sociedad tanto por
49

varones como por mujeres, y supervisados y generados también por ambos (NARI, 2004,;
1995).
Por tanto, en el presente artículo nos detendremos en la construcción de dichos
saberes, y más específicamente en una arista de la misma: el proceso de feminización de la
transmisión del saber culinario en un recorte temporal y espacial particular: Argentina entre
1880 y 1945. Vale aclarar que, por ser ésta una pesquisa anclada en la historia cultural, tanto
la delimitación del tiempo como del espacio poseen demarcaciones fluctuantes y
aproximativas (BARRÁN, 2008). Es decir, estudiar procesos de transmisión y difusión de
saberes implica el abordaje de un objeto que se resiste a quedar anclado en un recorte
específico. Los sentidos circulan más allá de sus momentos puntuales de producción y de los
espacios en los que se amarran los problemas.
A fin de dar forma a esta propuesta, nos posicionamos desde una perspectiva
historiográfica erigida en el punto de intersección entre la ya mencionada historia cultural
(SERNA; y PONS, 2005), la historia de las mujeres y los estudios de género (SMITH, 1998;
BUTLER, 2001; BARRANCOS, 2001) y la historia de la alimentación (MONTANARI,
2004; CALDO, 2009). Mientras que la primera aporta las claves de análisis para interpretar
textos escritos, prácticas, efectos performativos y consumos, la segunda nos permite historiar
la agencia de las mujeres en los procesos socio-históricos, como así también la
performatividad del género, y la última brinda claves para interpretar a la cocina y a la
alimentación como prácticas culturales y situadas. La amalgama teórica invita a pensar que
enseñar o aprender a cocinar, lejos de ser prácticas ingenuas y recurrentes, cargan una
semántica con connotaciones políticas y de género.
A partir de este enfoque, el contenido de estas páginas se organiza en tres secciones.
La primera, presenta una aproximación general al problema, destacando conceptos e hipótesis
motivadoras. La segunda, se detiene en la experiencia de las primeras autoras de recetarios de
cocina. En este espacio demostraremos cómo el saber culinario va modelándose en un entre
mujeres donde el saber cocinar se negocia con el saber escribir (MARCUS, 2009). El
resultado será la producción de libros impresos que aspiran no tanto a educar a la mujer, sino
a realizar una etnografía de las formas de comer. Finalmente, la tercera sección avanza en el
tiempo para presentar la figura de la ecónoma como autora y experta en la culinaria. Estas
mujeres asumieron el oficio de generar saber culinario, de cocinar y, además, de transmitirlo a
sus congéneres, tanto en actos presenciales como mediante la escritura. Lo hicieron en el
marco de un trabajo y valiéndose de las condiciones de posibilidad brindadas por la sociedad
50

del consumo. El cierre estará marcado por una reflexión en torno a la cocina como saber
femenino.

APROXIMACIONES GENERALES AL PROBLEMA

La cocina es un arte de hacer, una práctica, una técnica orientada a la transformación


de los ingredientes tomados de la naturaleza en alimentos aptos para el consumo del género
humano (MONTANARI, 2004; GIARD, 2006). Por su factura cultural, esta práctica se
adquiere en procesos concretos y conlleva un plus que la sustrae del orden del discurso. En
esta clave, es posible afirmar que a cocinar se aprende en el marco de la acción, cocinando.
O sea, para que este saber coagule en palabras es necesario desplegar una operatoria de
traducción lenta y sutil que, al tiempo que perfecciona, enrarece las prácticas cotidianas. Ese
enrarecimiento contribuyó a la fragmentación del saber culinario entre la gran o alta cocina y
las cocinas populares, domésticas o cotidianas (REVEL, 1995; SARTI, 2003). La primera fue
patrimonio de varones y destinada al abastecimiento de los grandes banquetes: desde la mesa
del emperador pasando por la corte, noble y mundana, hasta alcanzar la sociabilidad burguesa
decimonónica, en la cual los señores junto a sus esposas o queridas disfrutaban de la buena
comida. Esos menús fueron cuidadosamente conservados por la escritura con el objeto de
preservar la calidad alimentaria de los/as comensales en un doble sentido: placentero pero
también saludable (evitar el veneno, lo contaminado, lo prohibido).
En cambio, la segunda, la cocina cotidiana, se estructuró alrededor de una serie de
saberes construidos al calor de la acción concreta y nutrida con los recursos materiales
provistos por el contexto más cercano. Esta última cocina fue eminentemente femenina y
transmitida en forma empírica más que oral: mirando cómo se cocina, percibiendo ruidos,
colores, olores, etc. Las mujeres cocineras construyeron sus saberes en la acción y los
transmitieron en esa cadencia. Justamente, en el recetario editado en 1890 por la escritora
salteña Juana Manuela Gorriti se encuentran varios ejemplos ilustrativos de la condición
femenina del saber culinario. Por ejemplo, al escribir la receta del Seviche, Ursina Ponce de
Sandoval recupera el orden práctico de la cocina y dice:

Recetaré un Plato más, y me eclipsó, dejando lugar a tantas confecciones deliciosas


que el sexo femenino ha acumulado en este hermoso libro, y que – no sea más que
para saborearlas – dan ganas de vivir. ¡Benditas sean ellas y las manos que saben
hacerlas!...60
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
60
GORRITI, Juana Manuela. Cocina ecléctica. Buenos Aires: Aguilar, 1999, p. 61. Formatado: Português (Brasil)
51

Como arte de hacer, la cocina demanda poner “las manos en la masa”. Sin el gesto
práctico, el trabajo se obtura y pierde sentido. La práctica otorga un saber que forma a sus
hacedoras y las vuelve entendidas en él. Quien hace no es ingenua, sabe lo que hace y el
termómetro de ese hacer está marcado por la intervención de sus manos (SENNETT, 2008).
Empero, las manos que cocinan están generizadas. En el mismo recetario de Gorriti, la limeña
Rosa Riglos de Orbegoso, al presentar la receta del Lomito criollo, se encarga de tal mención:

En todas partes se encuentra lo necesario para la confección de este plato, siempre


exquisito, pero esencialmente sabroso, a la hora del lunch o de la cena. Necesita
solamente, pero de manera indispensable, manos de mujer, para darle ese punto,
que, en tal clase de platos, los más entendidos cocineros desconocen. Y nada, sin
embargo, más sencillo que su confección…61

La sinécdoque que destaca las manos de mujer como figura alusiva a la mujer
cocinera y garante de la calidad culinaria está fundada en teorías que enraízan en la feminidad
el carácter de mujer nutriente y ama de casa. De tal forma, la buena cocina tiene que tener
manos de mujer con la sensibilidad y la pericia que se identifica con ellas.
Hasta aquí venimos delimitando el perfil asignado al saber culinario, doméstico y
femenino. Ejercicio que demanda introducir algunas notas sobre el concepto de conocimiento.
Optamos por citar a Norbert Elias (1997), quien entiende por conocimiento al conjunto de
significados construidos para distinguir símbolos que sirven para la orientación social. Esta
noción acentúa el carácter práctico y social del conocimiento, situándolo como un conjunto de
herramientas útiles para sobrellevar la vida diaria. Entonces, cada grupo genera su propio
arsenal de conocimientos para resolver los dramas del mundo que lo rodea y, en esta clave, la
cocina cotidiana adquiere especificidad. Como conocimiento, la culinaria aporta los medios
de orientación para responder a los qué, cómo, cuándo y dónde alimentarse; respuestas nada
menores en tanto involucran la preservación directa de la vida (FISCHLER, 1995).
Ahora bien, los humanos somos los únicos seres vivos que cocinamos lo que
comemos y también tenemos la exclusividad en cuanto a comer selectivamente: en
determinados lugares y tiempos, asociando horas y alimentos y empleando determinadas
formalidades. El saber culinario asume la sistematización y transmisión de estas cuestiones y,
al avanzar el siglo XX, las mujeres fueron ubicándose como las autoras y transmisoras de las
mismas bajo el rótulo de experta en Economía Doméstica o ecónoma. No obstante, este
proceso no fue lineal ni espontáneo y estuvo envuelto en las condiciones de posibilidad

61
Ídem, p. 239. Formatado: Português (Brasil)
52

generadas por los clivajes propios de las prácticas de consumo. La paulatina transición de la
sociedad con consumo a la de consumo, estipuló no solo un modo particular de relacionarse
con el mercado sino que, además, modeló sensibilidades. En este escenario, en el cual
consumir resulta una necesidad vital, los varones y las mujeres adquirieron modos de ser
específicos (ROCCHI, 1999). Alrededor de estas cuestiones trazamos una serie de hipótesis
que estimamos valederas para el caso argentino.
El planteo principal sostiene que el saber culinario de factura femenina, lejos de toda
inocencia, aspiró a configurar un dispositivo de disciplinamiento, control y educación
destinado al público femenino. Entre 1880 y 1945, mientras que las prácticas, contenidos y
formas de la cocina variaron, el sitio de las mujeres en el hogar fue perfeccionándose en
relación con la domesticidad, el cuidado de la familia y el lugar de ángel del hogar
(MASIELLO, 1989; CANTERO ROSALES, 2007). Se procuró moldear a una mujer que, al [A18] Comentário: Não está nas
referências.
alimentar a su prole, también le proveyera valores, rituales, pautas de conducta y maneras de
ser.
Esta hipótesis general, cuya validez se prolonga en la extensión de nuestro planteo,
conlleva dos hipótesis secundarias. La primera indica que, para escribir las prácticas
culinarias, las autoras debían conocer las técnicas de la lecto-escritura. Esto provocó que,
entre 1880 y 1920, las primeras interesadas no fuesen cocineras sino señoras letradas y, por
supuesto, dotadas de recursos económicos para solventar el costo de las publicaciones. Ellas,
en un trabajo de colaboración con las cocineras de oficio, compilaron y publicaron sus libros.
Recetarios estos que, sin apuntar abiertamente a la consolidación de una mujer ama de casa,
eran el registro etnográfico de la cultura alimentaria de una época. Precisamente, estos libros
comenzaron a circular en un terreno aledaño mas no igual al de la Economía Doméstica,
disciplina que en aquel entonces sí bregaba por la educación de la mujer como responsable del
hogar (CALDO, 2012). Pero el proceso de feminización de la escritura culinaria
inexorablemente inscribió a las mujeres en el registro de una gramática culinaria que no
podía sustraerse del universo del hogar. Aunque en la práctica concreta no cocinaran, en el
plano discursivo las señoras eran dueñas de casa y, como tales, contribuyeron a la
transformación de los quehaceres domésticos en un saber específico que les permitió transitar,
desde una arista políticamente correcta, el universo de las publicaciones editoriales y, desde
allí, direccionar el deber ser femenino.
Si los primeros recetarios de cocina fueron escritos por señoras sibaritas, viajeras y
casi etnógrafas, legitimadas como amas de casa, el siglo XX vendría a imprimir cambios en el
perfil de las autoras. Es por ello que nuestra segunda hipótesis afirma que, en la década de
53

1930, se renovó ese rol de autora dando lugar a la experta en cocina. Se trata de mujeres que
irrumpieron en la escena pública como profesionales, como transmisoras, pero también como
trabajadoras remuneradas en el rubro de la cocina. Acompañando el proceso, la cocina se
transformó en el eje de la Economía Doméstica. Al llegar la década de 1940, las mujeres
cocineras pasaron a ser los ángeles del hogar, guardianas y puntales morales y simbólicos de
las familias.
Así, estudiar el proceso de feminización de la escritura del saber culinario doméstico
y cotidiano amerita la ponderación de dos momentos. El primero nos enfrenta con las
escritoras de recetarios de cocina clásicos (1890-1920). Éstas, más que cocineras, fueron
mujeres letradas escribiendo la cocina como una práctica cultural y no tanto como una
prescripción propia de la Economía Doméstica. En todo caso, la fuerza performativa del
género gravitó en el tema elegido. Ellas se colocaron bajo la luz pública escribiendo
recetarios, un saber que a todas luces parecía anidar en las artes de hacer y, por ende, en las
manos femeninas. El contenido de los libros fue producto de un trabajo coral y de conjunto,
entre mujeres que se dieron a conocer a partir de un tema, quizás no practicado pero sí
aceptado socialmente como femenino: la cocina. Un tópico de escritura en el cual se
continuaron reproduciendo diferencias de clase a partir del control escrito del saber culinario.
En cambio, el segundo momento se distingue fundamentalmente por la intervención
del mercado y sus consecuentes estrategias publicitarias. Si las otrora autoras fueron damas de
los sectores acomodados de la sociedad, capaces de escribir pero no necesariamente de
cocinar, las nuevas se legitimaron gracias a su saber hacer en la cocina. Así, las empresas de
productos alimenticios y las editoriales contaron con la colaboración rentada de especialistas
en Economía Doméstica que, en realidad, eran cocineras. Desde la prensa gráfica a los
folletos de marcas, y desde estos a los recetarios de autora: fue el trayecto recorrido por la
cocina industrial y comercial en Argentina (GOODY, 1995). A partir del estudio de los
citados soportes textuales, exponemos cómo el mercado, valiéndose de sus estrategias
publicitarias, capitalizó el saber culinario en beneficio del fomento del consumo y, para ello,
desplegó un discurso que, amparado en la idea de superación cognitiva femenina en materia
de saberes para el cuidado del hogar, insistía en hacer coincidir a la mujer consumidora con la
madre doméstica, ama de casa y cocinera. Se reforzaba así una construcción muy férrea del
sitio de lo femenino, donde la lógica del mercado operaba en beneficio de una inclusión
excluyente de las mujeres en el espacio público (BARRANCOS, 2001).
Escribir recetarios de cocina y cocinar a partir de ellos constituyen prácticas que, de
una u otra manera, se vinculan con los actos de consumo. Comprar el recetario y los
54

ingredientes son gestos que anteceden a las prácticas culinarias aquí tratadas. El largo plazo
que recorre nuestro estudio lleva en su interior el pasaje de la sociedad con consumo a la de
consumo. En la bisagra de los siglos XIX y XX, si bien los varones y las mujeres consumían,
el acto de comprar no era eje de las prácticas y de sus vidas; en cambio, el devenir del siglo
XX, marcado por crisis y reestructuraciones del mercado capitalista, hará del acto de comprar
el motor de las prácticas sociales. Así, en la sociedad de consumo comprar supondrá una
obligación que tematiza la vida, y las mujeres ocuparán un lugar relevante en tal proceso
(ROCCHI, 1999).

SABERES NEGOCIADOS, CORALES, POLIFÓNICOS (1880-1920)

Al menos para el caso argentino, los primeros recetarios de cocina escritos por
mujeres datan de fines del siglo XIX. Quizás esta afirmación deje fuera a otros que, por ser
libros que transmiten artes de hacer (GIARD, 2006), fueron fagocitados por la dinámica de las
prácticas. Conservados en las cocinas, utilizados para guiar acciones pero también como
portadores de un saber estimado menor, no fueron sometidos a los mismos rituales de
conservación que la bibliografía meritoria de biblioteca (CHARTIER, 1994).
La primera mención a un recetario de cocina escrito por una mujer puede encontrarse
en el Anuario Bibliográfico de la República Argentina. Esta publicación, referida a un período
extendido entre los años 1879 y 1897, tuvo por cometido registrar “año a año, el número de
casas impresoras, los géneros que editaban y las características de un mercado de impresiones
en el que predominó un sistema por suscripción” (DE SAGASTIZÁBAL, 2002, p. 20). En el
volumen correspondiente al año 1881 es mencionado el Almanaque de la cocinera argentina.
Dicho almanaque reunía trescientas recetas celosamente custodiadas por quien ofició de
autora, “la Sra. Pueyrredón de Pelliza”. Corpus que, en el año 1880, el propietario de la
Librería de Mayo, Carlos Casavalle, publicó, con la anuencia de las herederas, en forma de
almanaque. Dice Navarro Viola:

Es una curiosidad. Contiene más de 300 recetas culinarias de platos del país o
modificados, por lo menos, según nuestras costumbres y preferencias. El Sr.
Casavalle consiguió a fuerza de empeños copia del manuscrito de recetas que
publica en forma de almanaque, debido a la pluma de la señora Pueyrredón de
Pelliza y conservado por una de sus hijas como precioso recuerdo de familia.62.

Formatado: Fonte: Não Negrito,


Itálico
62
NAVARRO VIOLA, Alberto. Anuario bibliográfico de la República Argentina, 1880. Año II. Buenos Formatado: Espanhol (Espanha-
Aires: Imprenta del Mercurio, 1881, p. 344. internacional)
55

Aunque el comentarista no ahondó en los detalles de la culinaria sugerida, sí enunció


cuáles fueron los sitios de procedencia de la misma: por un lado, el gusto alimentario
tradicional argentino, y por otro, la creatividad de la autora potenciada por sus viajes, por sus
participaciones en banquetes y por las conversaciones sobre estilos y formas de comer. Ante
la imposibilidad de consultar la fuente original, quedan fuera de nuestro alcance los listados
de manjares, los ingredientes, el estilo de escritura, los guiños al/la lector/a, como así también
todos los detalles del soporte material del texto. Suponemos que el formato almanaque
articuló comida y tiempo, marcando los ritmos y momentos adecuados para cocinar tal o cuál
menú. El registro anual, además de profundizar en los detalles de las distintas comidas,
especificaba los platillos vinculados con “días” especiales del calendario o con las estaciones
del año.
Conocer, al menos nominalmente, la existencia del Almanaque culinario…, resulta
un dato atractivo en dos sentidos. Por un lado, invita a reflexionar alrededor de las
condiciones culturales que provocaron la desaparición física de este tipo de publicaciones. Sin
dudas, se trata de textos cuyo cometido era auxiliar a las mujeres en la concreción de las
prácticas cotidianas. Por lo tanto, las formas de utilizarlo, los espacios de conservación y las
maneras de cuidar el objeto no fueron similares a las desplegadas en torno a los libros
consagrados por la alta cultura (letrada, racional y erudita). Al respecto y pensando en la
Francia del siglo XVIII, dice Roger Chartier: “el libro no tiene lugar señalado: puede
encontrarse en cualquier lugar de la casa, en la habitación única –que es regla general–, en la
cocina, cuando existe, o en las diversas y menudas dependencias (sobradillos, antecámaras,
guardarropas)…” (1994, p. 142). Sin dudas, por su propia semántica, el Almanaque culinario
de Pueyrredón de Pelliza debió de ser un texto guardado en la cocina, siempre dispuesto para
el auxilio de los/as cocineros/as.
Asumiendo el gesto corrosivo del tiempo sobre los libros destinados a enseñar a
cocinar, nos circunscribimos al análisis de tres recetarios escritos por mujeres, efectivamente
conservados y estimados dentro de los primeros de origen argentino. Los títulos son: La
perfecta cocinera argentina (1888) de Teófila Benavento o Benavente (Susana Torres de
Castex)63; Cocina ecléctica (1890) de Juana Manuela Gorriti64 y La cocinera criolla y

63
Susana Torres de Castex (1866-1937) nació en la ciudad de Buenos Aires, hija de Gregorio Torres y
Joaquina Arana. Fue una dama de la sociabilidad de la ciudad de Buenos Aires, cuyas prácticas eran
extravagantes. Poco afecta a participar en sociedades de beneficencia, llevó una vida sibarita y viajera. Editó las
recetas que ella misma cocinaba. Su casona porteña se destacó por tener una cocina moderna y luminosa donde
ensayaba sus recetas. La identidad de Teófila fue revelada por una de sus hijas en 1940, cuando donó los
derechos de autor de su madre a una institución benéfica. La editorial que asumió el trabajo fue Jacobo Peuser Formatado: Espanhol (Espanha-
(Buenos Aires). internacional)
56

recetario curativo doméstico (1914), por Marta (Mercedes Cullen de Aldao) 65. Con nombre
propio o acudiendo a seudónimos (BATTICUORE, 2005), estas damas emprendieron un
trabajo de escritura y publicación del saber culinario cuyo contenido, lejos de derivar de la
experiencia personal como amas de casa, resultó ser producto de un ejercicio de compilación
de recetas de cocina. Ellas, provenientes de los sectores encumbrados del país, utilizaron los
atractivos de la temática culinaria como un atajo para adentrarse en el mercado editorial y de
ese modo obtener recursos, ya sea para la subsistencia personal (caso de Gorriti), para la
beneficencia (Cullen de Aldao) o como deleite personal (Torres de Castex). De esta forma, la
cocina operó en estas vidas femeninas como un elemento de la cultura general y no como un
saber directo y alusivo a los quehaceres del ama de casa. En general, ellas fueron
compiladoras del saber culinario mas no cocineras. Para publicar sus libros debieron negociar,
por un lado, en el mundo editorial (fundamentalmente masculino), y, por otro, en el propio de
las mujeres cocineras (fuentes del saber culinario). El resultado fue un conjunto de libros de
cocina escritos desde la mesa, desde el comedor, con los valores, gustos y formas de la cultura
dominante y bajo la supervisión de alguna experta en el oficio.
Más allá de las diferencias biográficas que singularizan a nuestras tres mujeres, la
escritura de esta cocina en particular es hojaldrada, escondiendo entre sus capas diferentes
voces (propias, ajenas, robadas, prestadas, etc.). Como ya dijimos, estos libros formaron parte
de los primeros de autoría femenina destinados a poner por escrito un conjunto de prácticas
que hasta entonces anidaban en la plena oralidad e incluso en la mera acción. De hecho,
muchas de estas recetas serán listados de ingredientes con escasas alusiones a los
procedimientos que, por residir en el hacer, dificultaban su puesta en relato (ONG, 1997).

Receta Nº 332, Ruglophe: “¼ libra harina, 6 onzas manteca, ¼ azúcar, 15 gramos de


levadura, 2 limones, pasas grandes y chicas y sal, se deja un poco leudar y al
horno”.66.

64
Juana Manuela Gorriti (1816-1892), oriunda de Salta e hija de José Ignacio Gorriti y María Feliciana
Zuviría. Escritora y fundadora de una de las primeras escuelas de señoritas en Lima. Anfitriona de tertulias
literarias. Casi al final de su vida decidió editar el libro, principalmente para obtener dinero que le permita
sobrevivir, pero también para competir con una colega española, Emilia de Pardo Bazán. La editorial que llevó a
cabo la propuesta fue Librería Mayo de Carlos Casavalle (Buenos Aires). Formatado: Espanhol (Espanha-
65
Mercedes Cullen de Aldao (Santa Fe, 1865-1957). Fue hija de Tomás Cullen y Rodríguez del Fresno y internacional)
Josefa Comas, ambos integrantes de las familias más destacadas de la sociedad santafesina. Se caracterizó por ser
una dama de la sociedad de beneficencia. Publicó el recetario para recaudar fondos a fin de construir la capilla del Formatado: Espanhol (Espanha-
Hospital La Caridad de la ciudad de Santa Fe, por entonces dirigido por su hermano, José María Cullen. Los internacional)
fondos obtenidos con la venta del libro permitieron lograr tal cometido. La editorial encargada de la tarea fue Luis Formatado: Fonte: Não Negrito,
Gili Librero-Editor (Barcelona), pero luego el texto será reeditado en Santa Fe por emprendimientos de la ciudad. Itálico
66
BENAVENTO, Teófila. La perfecta cocinera argentina. Buenos Aires: Casa Editora de Jacobo Peuser, Formatado: Espanhol (Espanha-
1901, p. 138. internacional)
57

Receta Nº 329, Savarín: “1 libra harina, 6 onzas manteca, 1 onza azúcar, un poco de
sal, 20 gramos levadura, 5 huevos, pasas secas y al horno”.67.

Receta Nº 213, Masitas de almendras y avellanas: “6 onzas harina, ½ libra azúcar, 5


onzas almendras, 5 onzas avellanas, 16 yemas, 8 claras”.68.

Cuesta imaginar el producto final de las Masitas de almendra al calor de la prosa de


Benavento. En todo caso, la escritura adelanta una lista de ingredientes a conseguir, dejando
reposar en la acción la combinación de los mismos. Entonces, recuperando la materialidad y
la simbología de las fórmulas culinarias, confirmamos que se trató de una cocina escrita por
mujeres que vivieron el hecho alimentario desde la fase del consumo, desde la mesa y como
parte de la sociabilidad, no así desde la cocina misma (GOODY, 1995). Sin embargo, en
franca alianza con las cocineras de oficio, las escritoras propusieron un saber que, aún
dirigido a sus congéneres y con la figura de la mujer guardiana del hogar presente, las
interpeló como lectoras, viajeras, sibaritas y mundanas.
Esta caracterización abre dos alternativas: o la escritora desconocía los
procedimientos y se limitó a copiar al dictado sin intervenir ni vislumbrar los detalles faltantes
en torno al proceso de elaboración o, por ser un arte de hacer, la cocina resiste a encorsetarse
en la escritura. Consideramos que, en las historias de estas primeras autoras, ambas cuestiones
resultan valederas. Sus biografías no las revelan cocineras y sí las muestran intercambiando
experiencias con las expertas en el oficio, ya empleadas de la casa familiar o en algún
restaurante u hotel visitado durante los viajes. En esta clave, el recetario de Juana Manuela
Gorriti, Cocina ecléctica, resulta ser un semillero de ejemplos acerca del encuentro y los
procesos de negociación de saberes entre las escritoras (señoras de la casa) y las cocineras.
Entre tanto, una muestra:

Pastelitos de huevo a la nena


La picaruela sueña con ellos en el colegio los treinta días del mes.
Así, también, desde que llega a la casa, y no bien recibe los besos maternos corre a
la cocina.
–¿Y?– demanda con autoridad a la déspota del fogón.
–¡Ya! Listos, frititos y ricos, para esa linda boquita– responde la vieja cocinera, que
sólo para ella es sumisa y comedida, ¡qué digo! Amante aduladora.
Y la chica, en las tres comidas de estas benditas doce horas de hogar, tritura la tierna
pasta rellena, con una delicia que da envidia de contemplar.
–Yo quisiera esta exquisita confección para el libro de nuestra amiga– le dije.
–¿Por qué no la pides a Úrsula?
–¡Dios me libre! Había de negármela esta terrible cordobesa.
La nena fue a ella y con dos besos le arrancó la receta.
Hela aquí:

Formatado: Espanhol (Espanha-


67
Ídem, p. 142. internacional)
68
Ídem, p. 90. Formatado: Português (Brasil)
58

Se hace una masa de hojaldra (sic), y bien estirada con el palote, se la corta en
cuadritos de ocho centímetros, que se van extendiendo sobre un mantel.
En una sartén, puesta al rescoldo vivo, se echa un trozo de mantequilla.
Cuando la mantequilla, ya derretida, está bien caliente, se le quiebran encima los
huevos, espolvoreándoles sal y pimienta.
Desde que la clara blanquea, se toma el huevo cuidadosamente con dos cucharas, y
se le acomoda sobre el cuadrito de hojaldra (sic), cubriéndola con otro, después de
haber echado sobre el huevo una cucharada espesa de leche cruda.
Los bordes inferiores y superiores del pastelillo se cierran, humedeciéndolos
interiormente con el dedo humedecido en leche.
Se fríen en grasa de chancho para el almuerzo. Mas, para servirlos en la comida, es
mejor cocerlos al horno.69.

Pastelitos de huevo…, es la receta que Carolina de Castilla aportó a la compilación Formatado: Fonte: Itálico

de Gorriti. En el texto escrito se superponen varias voces: la de Carolina, la de la pequeña y,


finalmente, la de Úrsula. El caso indica que el orden del afecto es el que habilita el pasaje de
la receta entre estas mujeres. La pequeña comensal puede obtener esa fórmula que la “déspota
cocinera” atesora a la vez que esconde de la dueña de casa. Sin embargo, los pastelitos entran
al orden de la escritura a partir de una prosa que posee un estilo dual. La primera parte,
anecdótica, es fluida, descriptiva y detallista. En cambio, la segunda, la de la receta, se vuelve
rígida y prescriptiva. Aunque, a diferencia de los ejemplos extraídos del recetario de
Benavento, Úrsula acentúa el proceso de elaboración en su descripción y no así el detalle de
los ingredientes. Las cantidades son omitidas en beneficio de los pasos a seguir para la
elaboración de la receta. El proceso revela una pericia sensorial en la cocinera. Es decir, los
ritmos de la cocción están marcados por temperaturas, colores y texturas que la hacedora debe
detectar en el plano de la acción. De tal forma, el saber culinario se revela como un arte de
hacer cuya especificidad se encuentra en la cocina, en el ensayo directo de las recetas.
Finalmente, estos primeros recetarios poseen una calidad de perfil bifronte. Por un
lado, son objetos estéticamente bellos: buenas encuadernaciones, excelente calidad de papel y
profusos en el listado de recetas ofrecidas. Por otro, en la prosa utilizada para transmitir el
contenido, se destaca la imprecisión. No hay unidad de criterios en cuanto a pesos, medidas,
cantidades, nombres de ingredientes y de procedimientos culinarios; además, las marcas se
escriben con minúscula y en carácter de sinónimo de los nombres genéricos (el ejemplo más
frecuente es el empleo del término royal en lugar de polvo leudante). Estas ambigüedades
discursivas responden, al menos, a dos factores. El primero se relaciona con el saber práctico
de la cocinera que actúa al margen del discurso, en el orden de la acción y guiada por el “a Formatado: Fonte: Itálico

ojo” y “a gusto”. El segundo factor está vinculado con la ausencia de los hábitos propios de Formatado: Fonte: Itálico

la sociedad del consumo. Aquí las marcas no resultan ser las ordenadoras de las prácticas.
Formatado: Fonte: Não Negrito,
69
GORRITI, Juana Manuela. Cocina ecléctica…, ob. cit., p. 92-93. Itálico
59

Será el consumo el gesto que unificará criterios, pesos y medidas en función de las marcas y
de la necesidad de garantizar la compra constante de productos en el mercado. Las ecónomas
ocuparán un rol central en esta tarea y, para demostrar esta afirmación, damos paso al
siguiente apartado.

SABERES UNIFORMES: LA VOZ DE LA ECÓNOMA (1920-1940)

Al promediar la primera mitad del siglo XX, fue perfilándose un nuevo modo de
elaborar y también de transmitir el saber culinario. Analizar tal cambio requiere interpretar el
lugar que las mujeres ocuparon en la sociedad de consumo y en el discurso de una de sus
principales estrategias: la publicidad. La crisis de 1930 estableció una reestructuración de las
prácticas de compra y venta, y la recuperación económica trajo consigo la hegemonía de las
mujeres en los actos de consumo. La publicidad interpeló al ama de casa, madre, novia,
esposa, maestra, a los efectos de guiarla en la compra de alimentos, vestuario, cosméticos,
productos de higiene y mobiliario de uso más familiar que personal (ROCCHI, 1999; COTT,
1993; CALDO, 2013; BERGER, 2013). En esta acometida, los ingredientes culinarios
ocuparon un lugar de privilegio, y los recetarios de cocina, junto a sus expertas autoras,
fueron aliadas indiscutidas del proceso.
Tal novedad trajo consigo la renovación del modo de transmitir la cocina, cuyo
análisis demanda la revisión, al menos, de dos transformaciones: por un lado, el cambio en los
soportes materiales de la transmisión. Por otro, las modificaciones en el estilo escritural de las
recetas. Ambas vienen de la mano de una nueva manera de enseñar y aprender a cocinar,
como así también de una innovación en la especificidad del saber culinario doméstico,
cotidiano y preferentemente femenino.
En primer lugar, la sociedad del consumo flexibilizó los vehículos abocados a la
transmisión del saber culinario. Tal flexibilización consistió en dejar de lado los antiguos
recetarios de cocina caracterizados por encuadernaciones lujosas, papel de alto gramaje e
importante volumen de páginas, en beneficio de una variedad de soportes de menor
envergadura y de bajo costo. Esto es: las recetas aparecieron en folletines, en secciones
exclusivas de diarios y revistas, en la publicidad e incluso en los envases de los ingredientes
culinarios. En esta nueva clave, el libro de cocina dejó de ser un objeto de consumo en sí, para
convertirse en un disparador de numerosos actos de consumo. Es decir, si otrora se compraba
el recetario escrito por tal o cual autora, ahora las recetas podían conseguirse en forma
gratuita o por canje. Veamos algunos ejemplos.
60

La prensa fue el principal medio de transmisión de la recetas. Los diarios y revistas,


producto de emprendimientos editoriales privados, acuñaron un conjunto de auspiciantes entre
los que se destacaron las marcas de productos alimenticios. En esta sintonía, la publicidad y
las secciones exclusivas de cocina ocuparon un lugar destacado.
En principio podemos nombrar el caso de revistas como El hogar70, Para ti71 o
Damas y damitas.72. Estos semanarios, dirigidos al público femenino, consagraron una
sección al saber culinario. Recetas prácticas dirigidas a un ama de casa curiosa y tendiente a
innovar en los modos de alimentar a su prole. Generalmente, las fórmulas que integraban
estas notas aparecieron despojadas de marcas comerciales. Es decir, se emplearon términos
genéricos para nombrar a los ingredientes. Pero, en el paratexto, sí fueron impresas marcas
auspiciantes de aceites, mantecas, fiambres, polvos leudantes, harinas, etc. Asimismo, estas
secciones no fueron privativas de las revistas femeninas: la prensa periódica también las
incorporó. Diarios de tirada nacional como La Nación73 o provincial como el rosarino La
Capital74 también dedicaron un renglón a las recetas. Así, en el mismo diario que repasaba el
esposo, la señora podía encontrar recetas y secretos prácticos de cocina.
En general, estas secciones adquirieron el carácter de intercambio epistolar entre la
encargada del área de cocina y las lectoras. Usamos el femenino porque las fuentes
consultadas siempre estuvieron marcadas por este género, y el ida y vuelta de cartas reveló un
entre mujeres hablando de cocina. Las lectoras solicitaban lecciones acerca de cómo decorar
tortas, hacer empanadas, aligerar tiempos, ornamentar platos, acondicionar una fiesta, cocinar
pastas, preparar un menú de cumpleaños o confeccionar dulces de frutas de estación. Cada
sección estuvo marcada por el tono ideológico de la publicación general, y esa semántica
indicó en algunos casos recetas con connotaciones religiosas (fiestas de comunión, bautismos,
vigilias) o patrióticas (empanadas de 9 de julio, mazamorra, la Torta independencia
argentina, etc.).
Muchos de estos emprendimientos editoriales no quedaron exclusivamente en el
orden del discurso. Rápidamente El hogar o Damas y damitas fundaron academias de
70
Editada a partir del año 1904 por Editorial Haynes. Esta revista surgió en la ciudad de Buenos Aires
con intenciones de entretener e informar a toda la familia, empero en su devenir terminó focalizando en la mujer Formatado: Espanhol (Espanha-
y, para los años treinta, era un semanario femenino (dedicado a la mujer, la casa y el niño). internacional)
71
Desde el año 1922 y hasta el presente, Editorial Atlántida (fundada en 1818 por Constancio C. Vigil) Formatado: Espanhol (Espanha-
publicó la revista semanal Para ti, dedicada exclusivamente al público femenino. Desde la ciudad de Buenos internacional)
Aires tuvo alcance nacional por el sistema de suscripciones. Formatado: Espanhol (Espanha-
72
Revista semanal difundida por la editorial que ostentaba el nombre de su propietario: Emilio Ramírez. internacional)
Comenzó a publicarse en 1939 y hemos encontrado ejemplares hasta el año 1945. Se editó en la ciudad de Formatado: Espanhol (Espanha-
Buenos Aires y fue distribuida en todo el país por el sistema de suscripciones postales. internacional)
73
Diario fundando en 1870 por Bartolomé Mitre en la ciudad de Buenos Aires. Perdura en la actualidad. Formatado: Espanhol (Espanha-
74
Diario fundado en 1867 por Ovidio Lagos en la ciudad de Rosario. Perdura en la actualidad. internacional)
61

estudios domésticos en las cuales las mujeres podían aprender las labores propias del género
femenino. En cada número aparecía información sobre estas escuelas con el detalle de las
condiciones de acceso a las mismas. Por sorteo o pagando los aranceles estipulados, las
lectoras podían convertirse en alumnas, accediendo así a los cursos prácticos. La cocina fue
una de los principales rubros y, generalmente, la coordinación de estos cursos estuvo a cargo
de la misma profesora que dirigía la sección en la revista.
A su vez, la prensa incorporó las recetas en los anuncios publicitarios. Es decir, los
textos de los avisos, además de imágenes y frases contundentes, emplearon recetas. El caso de
la marca de polvo leudante Royal es uno de los más significativos:

BIZCOCHOS DE CAFÉ ROYAL


(Todas las medidas a nivel)
2 tazas de harina –225 gr.
½ cuch. pequeña de sal –2 gr.
3 cuch. grandes de azúcar –42 gr.
4. cuch. pequeñas de Royal Baking Powder –16 gr.
2 cuch. grandes de manteca o grasa –8 gr.
2/3 taza de leche –1/6 lit.
Ciérnase juntamente la harina, la sal, el azúcar y el Royal Baking Powder. Añádase
la manteca o grasa derretida y suficiente leche para hacer una masa consistente.
Extiéndasela en una forma engrasada a un espesor de ½ pulgada –2 mm. Se esparce
por encima el siguiente azucarado y se cuece después en un horno de temperatura
media por espacio de 30 m.

AZUCARADO
2 cuch. grandes de harina –18 gr.
1 cuch. grande de canela –7 gr.
3 cuch. grandes de azúcar –42 gr.
3 cuch. grandes de manteca o grasa –42 gr.
Se mezcla la harina, la canela y el azúcar y después de ello se deshace con los dedos
la manteca o grasa. Cúbrase el bizcocho con un buen grueso de este azucarado y
póngase a cocer.
Esta es una de las muchas recetas para bizcochos, tortas, pasteles, etc. que pueden
hacerse con facilidad y economía en casa, usando el Royal Baking Powder.
Úsese el ROYAL BAKING POWDER para hornear y se verá que en muchas recetas
pueden suprimirse huevos. Basta con añadir por cada huevo omitido una cucharada
pequeña de Royal Baking Powder.

¡CUIDADO!
Al comprar pida Vd. siempre ROYAL BAKING POWDER, que significa Polvo
Royal para hornear. No use la palabra Royal solamente, pues esto da lugar a
entregarle algo que no es el legítimo. Fíjese que la lata que obtiene lleva reproducida
en la etiqueta la misma lata con la palabra ROYAL. Sin ese requisito no es el
legítimo.
Solicite Vd. nuestro libro de cocina gratuito, mandando su nombre y dirección a
nuestro representante en Buenos Aires, L. Van Bokkelen, Casilla Correo Nº. 1037, o
bien a Royal Baking Powder Co., New York, N.Y. .75.

75
El hogar, Nº 711, 1 de junio de 1923, Empresa Editora Haynes, Buenos Aires, p. 51.
62

El extenso aviso comercial, además de ofrecer el producto, indicaba los modos de


uso del mismo y, para ello, la receta de cocina era la entrada obligada. Esta estrategia no fue
exclusiva de estas marcas sino que resultó de uso frecuente en los anuncios de productos
alimenticios de la época. A efectos de lograr una mejor explicación de la misma, la prosa se
dividió en dos partes: ingredientes (entre los que se destacó con mayúsculas el producto
estrella), por un lado, y procedimientos, por otro. Sin dudas, la intención de la empresa fue
mostrar los posibles usos de un producto que irrumpía novedoso en el mercado. Es decir, era
necesario, más que enseñar a hacer tortas, instruir en el uso de Royal en las recetas. El eje de
la seducción estaba en la “facilidad” y los bajos costos de la producción culinaria hogareña.
Asimismo, el anuncio advertía en letras mayúsculas ¡Cuidado!, y, paso seguido, enunciaba
cómo evitar las trampas del mercado. En este sentido, la única imagen presentada en el
anuncio fue la latita de Royal en la que, a partir de una serie de flechas, se indicaba a la
lectora-consumidora cómo distinguir el producto original.
El comercial cerraba con una invitación: solicitar en cualquiera de las sucursales de
la empresa (en Argentina o en Nueva York) el librito de recetas Royal. La receta expuesta en
el anuncio era, seguramente, una muestra de las otras tantas que podrían hallarse, de manera
gratuita, en el recetario. Ésta resultó ser la tercera estrategia de promoción comercial de las
marcas. La prensa periódica o semanal acercaba el cupón de canje a partir del cual quedaba
garantizado el acceso al recetario. Estos libros eran modestos, de pocas páginas, enfundados
en tapas blandas y, en cuanto a la edición, incorporaron imágenes y una cantidad abultada de
recetas por página que conllevó una marcada reducción en el tamaño de la letra de impresión.
Ahora bien, una vez que la lectora conseguía el recetario, ¿qué hallaba en él? Por
ejemplo, en una edición del año 1922 de Royal. Recetas culinarias, se expuso, primero, una
serie de indicaciones generales y consejos útiles para cocinar (tablas de equivalencias,
sugerencias para usar el horno, las propiedades y utilidades del producto, etc.), y, paso
seguido, eran transcritas las 82 recetas divididas en los siguientes rubros:
Variaciones de la receta para pancitos Royal Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Variedades de pasta frola
Variedades de la torta Royal de manteca
Otras tortas a partir del procedimiento de la torta Royal Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Variedades de budín inglés
Tortas para ocasiones especiales
Variaciones del popular bizcochuelo
63

Cómo hacer dos tortas con cuatro huevos Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Variedades para preparar arrollados
Diferentes baños, azucarados y cremas
Masitas deliciosas de fácil preparación
Galletitas fáciles y rápidas
Masas que no necesitan horno
Pizza y sus variaciones
Alfajores provincianos
Variedad de recetas criollas: las empanadas y los pastelitos

A lo largo del recetario, estos rótulos generales florecían en numerosas recetas. Cada
una de ellas fragmentaba su exposición en ingredientes y procedimientos. Entre los primeros,
el único destacado por su marca comercial fue el ROYAL BAKING POWDER. Asimismo,
gran parte de las fórmulas estuvieron acompañadas por imágenes que capturaban escenas del
procedimiento general. En todas esas fotografías se reiteraba, cual ejercicio de fijación
inconsciente, “la latita de Royal”. Para reforzar aún más la adhesión al producto, en la primera
página del folleto se explicitaba:

Estas recetas fueron ideadas para el Polvo ROYAL. No se exponga a fracasos


utilizando sustitutos.76.

Si la cocinera era infiel a la marca, la empresa no se responsabilizaba por los fracasos


culinarios. Era condición sine qua non para el éxito en la cocina el empleo de Royal. A su vez,
la prosa de las recetas y la de las indicaciones generales eran escritas en un tono indicativo y
de modo impersonal, resultando difícil detectar el género tanto de los sujetos de la autoría
como de los propios de la recepción. No obstante, la hegemonía femenina se infería a través
de las imágenes que complementaban la edición. Estas visibilizaban, puntualmente, las manos
y la cintura enfundada en delantales con volados o telas estampadas que envolvían a una
silueta femenina.
La propuesta de Royal difundió recetas de panadería, repostería y algunas pastas que
demandaban polvo leudante para su elaboración. Por tanto, una multiplicidad de comidas
quedó excluida de esta propuesta en particular. Sin embargo, otros compendios, como los de
frigoríficos o aceiteras, se dedicaron a la divulgación de recetas afines a sus productos; carnes,

76
Royal. Recetas culinarias, 1922, p. 1.
64

enlatados, embutidos, etc. Es decir, cada marca publicó un corpus de recetas dignas de
capitalizar las potencialidades del producto ofertado y, en esa gimnasia, las propuestas
quedaron siempre limitadas a tales potencialidades. Por caso, mientras que los frigoríficos
trabajaban sobre viandas saladas para almuerzo, cena y lunch, los polvos leudantes lo hacían
sobre la pastelería, características que los recetarios clásicos de cocina desconocían. No
obstante, y quizás para subsanar estas falencias, muchas ecónomas popularizadas por las
empresas publicaron sus propios recetarios de cocina. Estos libros se encontraban entre el
estilo clásico de los decimonónicos y los nuevos aires impuestos por el mercado.77.
Ahora bien, esta transformación, además de repercutir en la materialidad de los
soportes, modificó el contenido de las recetas. El primer cambio fue la aparición de la figura
de la ecónoma, presente en los recetarios, en las secciones exclusivas y también en los
anuncios comerciales. Entre estas mujeres, el nombre que se destacó fue el de Petrona C. de
Gandulfo. Los primeros pasos de Petrona por el universo de la transmisión del saber culinario
enseñaban a utilizar el horno de gas para luego, con su histrionismo, colonizar la radio y la
prensa escrita, hasta alcanzar, en 1934, la publicación de su recetario. Ella fue la autora del
best-seller de la cocina nacional: El libro de doña Petrona. Recetas de arte culinario (PITE,
2013).
Lejos de ser aislada, la experiencia de Petrona se inscribe dentro de la de un grupo de
mujeres dedicadas específicamente a transmitir el saber culinario a sus congéneres. Esa
especialización conllevó una formación en Economía Doméstica (la ecónoma) y en cocina (en
academias destinadas a tal fin) que permitía a la poseedora trabajar en las secciones de
Economía Doméstica de la prensa en general o de la prensa femenina en particular, como así
también en los departamentos dedicados al rubro que sistemáticamente fueron montándose en
las fábricas de productos alimenticios. Otro ejemplo de ello es el de Lorenza Taberna, quien
fuera la ecónoma y directora del área de Economía Doméstica de la marca de polvo leudante
Levarol y, en esta condición, publicó numerosos recetarios de cocina de la firma y uno propio
llamado La cocina de Lorenza Taberna (década de 1940).78. A este nombre podemos sumar:
Ida P. de Ruiz Rivas (1935, ecónoma de Swift), Julia E. de Bourdieu (1939, revista Damas y
damitas), Elvira Rigner (1939, diario La Capital, Rosario), entre otras. En esta misma línea,
otras marcas como Royal o Maizena mantuvieron la lógica del seudónimo (BATTICUORE,

77 Formatado: Espanhol (Espanha-


Ejemplos de ellos son GANDULFO, Petrona. El libro de doña Petrona. Recetas de arte culinario.
internacional)
Buenos Aires: Talleres Gráficos Cía. Gral. Fabril Financiera, 1934; TABERNA, Lorenza. La cocina de Lorenza
Taberna. Manual práctico de cocina moderna. Buenos Aires: Editorial Salus, 1957; o PIETRANERA, Lola. El Formatado: Fonte: Não Negrito,
arte de la mesa. Recetario de Doña Lola. Buenos Aires: Guillermo Kraft Ediciones, 1955. Itálico, Italiano (Itália)
78
TABERNA, Lorenza. La cocina de Lorenza Taberna…, ob. cit. Formatado: Italiano (Itália)
65

2005) para aludir a la ecónoma garante de las recetas: Laura Real (Royal, 1930) o Doña
Maizena (1940).
La irrupción de las ecónomas no implicó un mero cambio nominal sino que marcó
una transformación en el plano del contenido de las recetas. El nombre de la autora unificó los
criterios y el estilo de presentación de las fórmulas. La experta transmitía recetas previamente
probadas por ella. Su nombre era el garante y esa garantía se traducía en el rigor expositivo de
las fórmulas. Paulatinamente, las recetas se fragmentaron en una exposición taxativa de los
ingredientes, con su dosificación de pesos y medidas, para luego desarrollar la combinatoria
de los mismos en el procedimiento.
Entre 1920 y 1945 observamos un proceso de consolidación de la mujer como
receptora pero también como productora y autora del saber culinario. Un saber cuyo
contenido y forma fueron gradualmente modificados por los usos y costumbres de la sociedad
de consumo. De este modo, al tiempo que se unificaron criterios de pesos y medidas, de
marcas y nombres genéricos, fueron separándose las recetas en dos partes: la lista de
ingredientes (a resolver en el mercado) y los procedimientos (a trabajar en la cocina). Los
quehaceres culinarios fueron revolucionados por la industria y, por ende, sus hacedoras
operaron con adelantos y procedimientos desconocidos para sus predecesoras. Las tareas se
agilizaron pero siguieron gravitando, aun con más densidad, sobre las figuras femeninas.

PALABRAS FINALES

Retomando nuestro epígrafe, aquí no hablamos de reyes ni de reinas, sino de mujeres


interesadas por el universo culinario. Específicamente nos concentramos en las instancias de
negociación de saberes generadas en torno al proceso de feminización de la escritura del saber
culinario en Argentina (1880-1945). Sabido es que la alta cocina fue materia de varones,
dejando para el género femenino aquellas experiencias privadas y domésticas, marcadas por
un explícito corte de clase. Esto es: la mujer cocinera se desempeñó en el ámbito íntimo de los
sectores populares o, avanzado el siglo XIX, lo hizo para el consumo diario de las familias
burguesas, quedando sustraída de hacerlo en los eventos públicos.79. En esta instancia
visualizamos un claro reparto de la producción del saber culinario, quedando por un lado los
varones, cocinando y produciendo saber ligado a la gastronomía y a los placeres de la mesa, y,
por otro, las mujeres, ocupadas en la vianda diaria. De tal forma, la cocina femenina es

79
Formatado: Espanhol (Espanha-
No así en las fiestas, para las cuales se contrataban chefs de renombre (CALDO, 2010). internacional)
66

modesta, dependiente de los recursos del contexto, espontánea y, en cierto sentido, sufriente
(los recetarios curativos iban muchas veces juntos con los de cocina). Pero, en la bisagra de
los siglos XIX y XX el rol femenino en materia culinaria irá perfeccionándose hasta alcanzar
estatuto de ciencia (la ciencia doméstica). Ellas, cual ángeles del hogar, velaron por la salud y
la higiene de las familias, siendo la culinaria un aspecto central de tales prácticas sanitarias.
Así, la cocina de las madres fue afianzándose en dirección del control y los cuidados de la
buena salud, la moral y los hábitos de la prole. Fue así como se avanzó en preocupaciones en
torno a la alimentación de los/as hijos/as y del esposo en términos morales, éticos, sociales
pero también químicos, médicos, nutricionales, etc.
Mientras la cocina doméstica fue adquiriendo el perfil descrito, los recetarios de
cocina comenzaron a ser elaborados por mujeres. La figura de la ecónoma, experta en
Economía Doméstica, coronó la primera mitad del siglo XX. Petrona C. de Gandulfo es el
nombre que sintetiza tal oficio en Argentina. Empero, antes que ella e incluso en simultáneo,
un nutrido grupo de mujeres adquirió relevancia pública en las portadas de libros de cocina,
firmando recetas sueltas o en secciones exclusivas en la prensa. Es decir, un batallón de
expertas en culinaria comenzó a reglamentar los modos de comer cotidianos.
En los prolegómenos del proceso de feminización de la transmisión escrita de la
cocina hemos encontrado mujeres dedicadas a la tarea de compilar, escribir y publicar recetas
de cocina, más no cocineras. Las pioneras, lejos del oficio de cocineras, fueron señoras
viajeras, cultas y situadas en los sectores acomodados de la sociedad. La condición social fue
la nota que, al tiempo que las eximió de los quehaceres diarios de la cocina, posibilitó el
acceso al lugar de autoras. Ellas fueron, en general, compiladoras de recetas. Evidencias de
dicho rol quedaron ilustradas en la heterogeneidad propia de la prosa de cada una de las
propuestas. Ciertas fórmulas respondieron a una estructura discursiva común, pero otras
expresaron la pluralidad de voces que operaron en la trastienda de la obra, colaborando con
quien finalmente oficiaría de autora. Estas damas tuvieron a bien narrar la cocina desde la
mesa y desde el comedor.
Sin embargo, al llegar a los años veinte, la fisonomía de los recetarios recibirá una
notable modificación. El soporte material fue flexibilizándose y, en esa acometida, las
fórmulas se escaparon de los libros para quedar impresas en secciones de revistas o de diarios,
en pequeños folletos e incluso en los envases de los mismos ingredientes. Esa transformación
además de ampliar el público lector, mutó el contenido, la forma y la autoría de las recetas.
Justamente, el nombre de la ecónoma garantizó la unidad de criterios, estilos, pesos, medidas,
nominaciones, etc. Esto se debió, por un lado, a la impronta del mercado y de sus estrategias
67

de venta tendientes a lograr la calidad en la aplicación de los productos, y, por otro, a la


sabiduría de la mujer dedicada al oficio. Las mujeres que participaron en la elaboración de las
recetas se legitimaron por la formación y el conocimiento en el oficio de cocinar. Asimismo,
dicho saber permitía ingresar en el mercado laboral y publicar sus recetas con el auspicio de
las marcas. Se presuponía que, para ellas, trabajar en este rubro, más que una conquista, era
una habilitación a descubrir un atributo inscrito en la sensibilidad femenina. En otras palabras,
cocinar y enseñar la cocina eran cosas de mujeres. La cocina requirió de manos femeninas,
manos que sabían cocinar, reforzando así el lugar convencional de lo femenino en la sociedad.
Es relevante mencionar que las primeras escritoras produjeron sus recetas en el
marco de una sociedad con consumo, en la cual, si bien existían el mercado y el consumo, no
eran ejes de las prácticas sociales. En tal sentido, decir polvo leudante o royal no tenía una
connotación económica ni comercial. En los recetarios de fines del siglo XIX, el nombre
genérico se confundía con la marca y eso no parecía ser un problema para las autoras ni
responder a la demanda de un patrocinador comercial. El fin que motivaba la existencia de
esos recetarios pasaba por el lucimiento personal de la autora o por sus tareas vinculadas con
la caridad. Pero, en los años veinte, estos libros comenzaron a coexistir con otros que, en
formatos editoriales sencillos, transmitían la cocina desde la iniciativa de las marcas. Esta
impronta fue conquistando gradualmente la región editorial destinada a la transmisión del
saber culinario doméstico y hogareño y, en su acometida, transformó el perfil asignado a las
mujeres (autoras o receptoras). A mediados de los años treinta, nombres de cocineras y
marcas comerciales se mancomunaron para transmitir el saber culinario. En esta acometida,
las recetas dejaron de ser un objeto de consumo en sí para transformarse en un disparador de
consumos culinarios y femeninos.
Al promediar el siglo XIX, el ángel del hogar cristalizó en el cuerpo femenino y, en
esa lógica, la alimentación de la prole fue uno de los principales ejes del saber de las mujeres.
Primero como práctica y luego como saber escrito, la cocina se afianzó en las arcas femeninas
y se volvió una trinchera de acción con un frente interno (el hogar) pero también con otro
externo, como posibilidad de trabajo y acceso al espacio público. Esto resultó un lento
proceso de conquistas cuyos resultados generaron un entre mujeres en dirección a la
consolidación de un perfil femenino que, aunque público, no dejó de operar en la clave de la
domesticidad alada y hacendosa de la mujer cocinera.

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71

CAPÍTULO 3 – O TRABALHO DOMÉSTICO NA REVISTA CLAUDIA (1970-1989) Formatado: Português (Brasil)

Soraia Carolina de Mello

Este capítulo é uma pequena parte da discussão que venho realizando em minha tese
de doutorado, na qual busco historicizar os diálogos e apropriações dos debates feministas a
respeito do trabalho doméstico por parte da revista Claudia, no Brasil, entre 1970 e 1989.80. Os
feminismos são importantes para o meu olhar sobre a revista nestas décadas, uma vez que foram
os principais responsáveis no Brasil por colocar o trabalho doméstico em debate. A bibliografia
publicada nas décadas de 1970 e 1980 sobre o trabalho doméstico no país é sobretudo feminista.
Entretanto, os feminismos deste período trazem um discurso mais ou menos coerente, fechado,
a respeito do trabalho doméstico (superexploração social da mão de obra feminina), que
propositalmente não representa a visão mais difundida, mais mainstream, desta ocupação.
Posto isso, buscando debater, mesmo que de um ponto de vista feminista,
representações mais correntes, mais difundidas do trabalho doméstico feminino no período no
Brasil, a revista Claudia foi aqui eleita como representante da imprensa voltada para
mulheres81 e como fonte de pesquisa, e as justificativas dessa escolha são inúmeras.
Primeiramente, como o foco das discussões feministas que se busca encontrar nas revistas é o
daquelas sobre o trabalho doméstico, uma revista voltada à dona de casa parece ser o tipo
ideal. Temos também a impecável periodicidade da revista, mensalmente publicada desde
outubro de 1961, o que abarca e extrapola o recorte temporal da minhadesta pesquisa, e
oferece um volume grande de fontes, 240 exemplares em duas décadas.82. A liderança da

80
Este recorte temporal se deve à emergência das discussões sobre o trabalho doméstico feminino no
Brasil nestes anos, que surge principalmente como uma problematização feminista. Formatado: Português (Brasil)
81
Apesar da revista Claudia contar com uma maioria de mulheres em seu corpo editorial no recorte
temporal da pesquisa, inclusive em cargos de chefia, nem sempre as chamadas revistas femininas são ou foram
produzidas por mulheres. Em decorrência disso utilizo em alguns momentos “imprensa voltada para mulheres”
ou “revistas para mulheres” para lembrar que, se seu público-alvo é basicamente feminino, nem sempre essas
publicações são gerenciadas e/ou produzidas por mulheres.
82
Dos 240 exemplares de Claudia lançados entre 1970 e 1989, consultei 168 números: 101, 104, 106-111,
116, 118-123, 125-131, 133-136, 138, 139, 141-145, 147-154, 156, 159, 161-165, 167-169, 171, 174-185, 187-190,
192-232, 234, 236-238, 240-244, 246-248, 252-255, 257-259, 262, 264, 265, 272, 274, 282, 284, 299-302, 304-310,
312, 314, 315, 317-319, 322-332, 334, 339. Alguns deles estavam incompletos, mas não muitos. Esta consulta foi
realizada em dois acervos diferentes: o acervo pessoal de Maria Paula Costa, que fez sua pesquisa de doutorado
sobre a revista Claudia, e me cedeu acesso às revistas utilizando o espaço físico do Arquivo Histórico Municipal de
Guarapuava (PR), localizado na Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste); e o acervo da Biblioteca da
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). A Biblioteca Municipal Mário de
Andrade, em São Paulo, informou-me ter o acervo completo da revista. Entretanto, seu setor de periódicos estava
em reforma no período em que coletei as fontes, reforma esta que se estendeu por alguns meses. Dessa forma, o
acervo só reabriu no final de dezembro de 2012, quando eu tinha acabado de voltar de minha terceira viagem de
coleta de fontes.
72

Editora Abril, que publica Claudia, até hoje no mercado editorial brasileiro também é
importante ser citada, principalmente pelo fato de a revista estar presente em praticamente
todas as bancas e revistarias do país, além de espaços como as salas de espera de consultórios
médicos e dentistas. Provavelmente é a revista voltada às donas de casa mais lida,; se não, ao
menos a mais conhecida em território nacional.
A Claudia desponta como inauguradora, no Brasil, de uma espécie de magazine,
exportado de um modelo norte-americano – em especial a estadunidense Good Housekeeping,
fundada em 1885 e que em 1968 contava com uma tiragem de cerca de 5,5 milhões de cópias
mensais (NEHRING, 1981, p. 89) –, que inova por trazer grande número de textos, além das
usuais imagens das revistas femininas, e fala sobre o cotidiano e assuntos “femininos”,
voltada ao público brasileiro. Até então, os modelos de revistas femininas no Brasil eram
importados e traduzidos, o que não criava uma grande identificação das leitoras com as
revistas. A Claudia na década de 1970 já tinha deixado de usar gravuras em suas capas,
priorizando nestas e em seu interior as fotografias de modelos brasileiras, e a grande maioria
dos textos, talvez com exceção dos contos, eram de autoria de brasileiros/as.
A presença da feminista Carmem da Silva, escrevendo que escreveu na coluna “A
arte de ser Mulher”, entre desde 1963 eaté a 1985, data de seu falecimento, 1985, é um ponto
que também chama a atenção para Claudia. Apesar da profunda aversão de Carmem da Silva
por qualquer espécie de trabalho doméstico, como nos conta Ana Rita Fonteles Duarte (2005,
p. 101), o fato de as discussões feministas terem um espaço na revista precisa ser levado em
consideração. Claro que Carmem escrevia para o público-alvo da revista, geralmente
introduzindo as questões, tomando cuidado para não ir “longe demais” (DUARTE, 2005, p.
51), e seus artigos passandovam por edições, mas ainda assim ela representava uma voz
dissonante, com presença constante na revista, o que não se encontrava nas demais revistas
comerciais do período.
Entretanto, apesar de seu pioneirismo, um ponto que não pode ser ignorado ao
abordar a revista como fonte histórica é que Claudia é um produto, e não qualquer produto; é
um produto feito para vender produtos. Com a emergência da classe média urbana no Brasil
nas décadas de 1950 e 1960, os lares nas grandes cidades se estabeleceram como unidades
consumidoras. Nesse sentido, a publicidade encontra nas mulheres, as responsáveis por
grande parte do consumo dos lares, um desejável público-alvo. A Claudia, voltada àsa
mulheres dessa emergente classe média, além de oferecer grande espaço à publicidade, e
investir em reportagens e matérias casadas com a publicidade -– como muitas outras revistas
femininas faziam no período –, funciona também como um guia de compras. Ela às vezes
73

chega a parecer quase um catálogo, descrevendo minuciosamente os produtos, suas


vantagens, e os endereços – geralmente em São Paulo, com exceção clara ndas matérias sobre
viagens – onde os produtos podem ser encontrados.
Assim sendo, Claudia nos ajuda a focar em um aspecto do trabalho doméstico que se
fortaleceu muito a partir da década de 1970, e que a bibliografia, contemporânea aos
exemplares consultados da revista, nem sempre considerava trabalho: a compra e o consumo
de mercadorias do grupo familiar. Além disso, atividades domésticas consideradas não
essenciais, mais elaboradas, podem ser pensadas e discutidas através das páginas da revista,
como veremos a seguir. Antes de ser uma grande divulgadora dos debates feministas sobre o
trabalho doméstico, Claudia parece ter contribuído para ampliar nosso olhar feminista para o
que seria trabalho doméstico, e assim perceber como este trabalho alcança e afeta as mulheres
de maneira generalizada – com suas devidas peculiaridades –, não só nos aspectos culturais ou
regionais, mas também quando pensamos em marcadores sociais de classe.

QUAL É O TRABALHO DOMÉSTICO DE CLAUDIA?

Segundo Danda Prado (1979, p. 95), em pesquisa realizada na França na década de


1970, a característica central do papel de esposa, que poderia ser definido de certa forma
como uma profissão, consistia na adaptação da esposa ao seu marido, vinte e quatro horas por
dia. Esta característica estava presente na vida das esposas entrevistadas independente da
classe social à qual pertencessem seus grupos familiares. Ela cita a dificuldade das esposas em
equilibrar suas diferentes funções, de companheira e amante, de mãe e de dona de casa.
Baseando-se nos diversos textos de instrução doméstica endereçados às moças solteiras ou
casadas, na análise que faz do papel econômico desempenhado pela esposa, e nas entrevistas
realizadas e repetidas com esposas francesas pertencentes a diversas classes sociais, Prado
(1979) engloba os papéis de esposa em três grandes categorias:
serviços diretos prestados ao marido;
serviços ministrados aos filhos do marido;
encargos do lar de seu marido. Formatado: Português (Brasil)

A autora enfatiza como a presença do marido, mesmo em caso de divórcio, não


permite que a mulher decida livremente sobre como administrar os afazeres de casa,
precisando da provação dele em grande número de atividades, o que dificulta o trabalho e
aumenta seu peso psicológico. Tentando esmiuçar melhor quais são essas tarefas executadas
junto ao marido, Danda Prado elenca sete grandes blocos de tarefas, insistindo que se tratam-
74

se de diretrizes gerais, e não de uma lista completa das atividades desempenhadas pelas
esposas. São tarefas de tipo:

1. Psicológico: admiração; reforço de seu ego; status social; competição com


terceiros etc.
2. Sexual: disponibilidade tornada obrigatória por lei, pela religião e pelo
condicionamento psicológico da mulher através dos conceitos atuais do
casamento (romantismo, sensualidade, amor).
3. Reprodução biológica e social: garantia da paternidade.
4. Reprodução psicológica e afetiva: manutenção do laço entre pai e filhos.
5. Manutenção e reprodução de sua força de trabalho. Atendimento em caso de:
doenças, velhice, relações familiares, relações sociais, ajuda psicológica etc.
Tarefas específicas: trabalho caseiro, cozinha, pequenos consertos caseiros (em
francês - bricolage), secretariado, orçamentos, compras etc.
6. Cooperação no trabalho do marido: (seja no comércio, na profissão liberal, rural,
artesanal etc.), secretária, trabalhos no campo, criação, hospedagem, relações
públicas, caixa, substituta etc.
7. Educação dos filhos:
a) transmissão de valores: sociais, religiosos, morais, sexuais.
b) educação escolar: recuperação escolar, deveres, atividades artísticas, esportes,
divertimentos, feriados, férias.
c) cuidados físicos: aplicação de receitas médicas, descoberta de anomalias,
prevenção de acidentes, higiene, limpeza, alimentação etc.
d) cuidados psicológicos: equilíbrio mental, descoberta de anomalias.
e) vida sexual: informação, medidas preventivas para os problemas morais e sexuais.
(PRADO, 1979, p. 96-7).

Em minha pesquisa em exemplares da revista Claudia de 1970 a 1989, foram


listadas, excluindo a “Cozinha Experimental de Claudia” (que fazia e aprovava as receitas
antes de publicá-las), cerca de 1.100 diferentes atividades realizadas por donas de casa, numa
amostragem de 10.248 fotografias retiradas de 168 números da revista, que tratavam direta ou
indiretamente sobre de trabalho doméstico. Essas 1.100 atividades foram divididas em 12
categorias, as 7sete primeiras retiradas da sistematização de Danda Prado supracitada, e as
demais adicionadas conforme apareceram na revista: 1) tarefas de cunho psicológico; 2)
tarefas de cunho sexual; 3) reprodução biológica e social; 4) reprodução psicológica e afetiva;
5) manutenção e reprodução da força de trabalho; 6) cooperação no trabalho do marido; 7)
educação dos filhos; 8) decoração; 9) auto manutenção da mulher (para que ela sempre possa
estar disponível à família, seja para trabalhar para ela, seja para ser exibida em eventos
sociais); 10) escolher, ter e cuidar dos animais domésticos; 11) artesanato e trabalhos
manuais; 12) contratar prestação de serviço. Devido à extensão do quadro que lista estas
1.100 atividades (são 13 páginas A4 em editor de texto, com fonte reduzida) e os limites que
um capítulo como este apresenta, reproduzo aqui um resumo muito sucinto do quadro
produzido desenvolvido na pesquisa.
75

QUADRO 1 – Atividades de trabalho doméstico (ou prestado ao marido, casa, família ou filhos/as do
marido)
descritas por Claudia Formatado: Recuo: À esquerda: 2,25
cm

1.Tarefas de cunho psicológico: admiração; reforço de seu ego; status social; competição com terceiros, etc.
Manter seu casamento feliz e saudável; conciliar lar e trabalho; saber como agir durante a crise no casamento;
vencer os ciúmes; não perder o marido por comodismo; salvar o casamento; lidar com a insegurança masculina
quando você ganha mais (...).

2. Tarefas de cunho sexual: disponibilidade tornada obrigatória por lei, pela religião e pelo
condicionamento psicológico da mulher através dos conceitos atuais do casamento (romantismo,
sensualidade, amor).
Strip-tease doméstica; competir com outras mulheres pelo seu esposo; “como prender seu marido sem usar isca”
(nº 171); eliminar o fantasma da frigidez do seu casamento; “Eesposas confessam: sexo como obrigação” (nº
204); lidar com a noite de núpcias; tratar doenças venéreas; saber como manter a chama após a crise no
casamento (...).

3. Reprodução biológica e social: garantia da paternidade.


Tratar dela, do marido ou do casal, em caso de esterilidade; engravidar, parir e criar os filhos; lidar com a
criança prematura; não jogar fora o instinto materno; ser mãe por tempo integral; começar meses antes a se
preparar para o casamento; saber como adotar um bebê; evitar que o filho separe o casal; lidar com o divórcio
(frisam que é desvantagem para a mulher); ter ou não ter filhos no segundo casamento; encontrar a felicidade no
segundo casamento (...).

4. Reprodução psicológica e afetiva: manutenção do laço entre pai e filhos.


Inclui manutenção do próprio casamento: saber como resolver as crises no casamento; incentivar o diálogo entre
os pais e as crianças e entre o casal; garantir que o pai seja presente para os filhos; evitar desentendimentos
familiares; tirar e cuidar das fotografias; comprar brinquedos que simulem a profissão do pai; não ser a “sogra
megera”; não deixar o pai se sentir culpado por ser muito bom com as crianças (...). [A19] Comentário: Ser muito bom ou
não ser muito bom?
5. Manutenção e reprodução da força de trabalho. Atendimento em caso de: doenças, velhice, relações
familiares, relações sociais, ajuda psicológica etc.
Tarefas específicas: trabalho caseiro, cozinha, pequenos consertos caseiros (em francês - bricolage),
secretariado, orçamentos, compras etc.
a) Tirar migalhas da mesa; desodorizar e descongelar a geladeira; encerar o chão; passar roupa mais depressa;
amolecer flanelas de limpeza; proteger metal dourado; saber usar bem a enceradeira (...).
b) Limpar: pentes e escovas; cinzeiros; sapatos de camurça; carpetes; limpar e polir peças de latão; sapatos com
creme de beleza; fotografias com miolo de pão; as janelas mais depressa; as janelas de forma segura; vasos de
cristal com chá; mármore; brinquedos de pelúcia (...).
c) Tirar manchas: dos móveis; de queimado; de café; de roupas variadas; sal de cozinha para manchas de
nicotina; evitar manchas dos cabides nas roupas; de sapatos com batata crua; de ferrugem; da frigideira com
maçã; de chuva dos sapatos; de mofo do banheiro (...).
d) Cozinhar: desde a entrada à sobremesa; hoje para servir amanhã; diferentes aperitivos; variar o cardápio;
aprender novas receitas, desde econômicas e super- práticas até as muito sofisticadas; “alimentar os filhos
com amor”; doces para a páscoa; receitas fáceis para a recém-casada não se atrapalhar na cozinha; comprar e
instalar extensão do telefone para não deixar a comida queimar; fazer gelo com gosto especial; inventar
receitas; saber escolher um bom peixe; mudar os pratos conforme a estação do ano; saber preparar drinks (...).
e) Organização: saber a melhor maneira de guardar pregos; deixar a caixa de costura em ordem; “Organize seu
trabalho e tenha tempo para tudo”; organizar objetos espalhados; guardar linhas; guardar botões; manter os
remédios em ordem; manter as tesouras em ordem; organizar produtos de limpeza (...).
f) Viagens: organizar roteiros; reservar hotéis; pensar em passatempos para os dias de chuva; saber o que é
preciso levar para a família se a viagem for de trem, carro ou ônibus, e caso as crianças enjoem; saber qual
barraca escolher para o camping; manter a umidade das plantas quando viajar; evitar problemas de saúde na
família nas viagens; cuidar da casa mesmo estando fora; garantir a segurança da casa durante as férias (viajar
sem “"dar bandeira"”) (...).
g) Orçamento doméstico: controlar/gerenciar o orçamento doméstico; economizar de forma geral; reduzir as
despesas da casa; esticar o dinheiro do orçamento; economizar reaproveitando a comida do dia anterior em
76

novos pratos; usar sobras da cozinha para adubar plantas; decorar com móveis de estilo sem gastar muito;
conservar vassouras; aproveitar os pedaços de sabão; conciliar o orçamento doméstico com a necessidade de
estar sempre bonita; economizar energia ao usar o ferro de passar; dirigir melhor para economizar gasolina;
aproveitar suas roupas, fazer trabalhos manuais sem gastar nada e economizar em tudo (...).
h) Comprar: alimentos; eletrodomésticos; roupa de cama; material de limpeza; louça; tecidos; linhas; lã;
produtos de higiene pessoal para toda a família; utensílios domésticos; panelas; lâmpadas; pano de copa;
roupas para família, de inverno, de dormir, de banho, de verão, para prática esportiva, uniforme escolar,
eventos formais, sempre que possível na moda; diferentes tesouras para todo o tipo de utilidade doméstica;
cristais; extensões elétricas (...).
i) Manutenção da saúde familiar, bem como sua própria: Cuidar da nutrição e dietética familiar; saber como
evitar o câncer; saber a utilidade dos chás, ervas e plantas medicinais; conhecer a homeopatia; conhecer as
propriedades das verduras e legumes; entender o que é e lidar com a febre; conhecer e tratar as doenças do
calor; saber usar medicamentos (...).
j) Administração e manutenção doméstica: prever quando o bujão de gás ficará vazio; improvisar um varal com
um guarda-chuva virado para cima nos dias de chuva; conhecer novos produtos para a casa e alimentos;
lubrificar o moedor de carne; não deixar o açúcar empedrar; utilizar móveis práticos como mesas elásticas;
saber agir em emergências no lar (...).
k) Bricolage: restaurar, consertar e pintar móveis velhos; comprar colas e fitas para reparos em casa; pregar
peças na parede; transformar o berço do bebê que cresceu em um divã; deixar o fio do abajur mais curto;
arrumar seletor de canais da TV com lápis de cera; vedar torneiras com fita plástica; recuperar brinquedos de
plástico; remover verniz de um móvel (...).
l) Manutenção das roupas: saber tirar chiclete dos tecidos; lavar a seco em casa mesmo; aproveitar o verão para
renovar os cobertores; lavar as roupas conforme instrução do fabricante; conservar o sapatinho do bebê;
renovar tapete de pano; passar roupa branca; deixar roupas de veludo sem marcas; proteger os casacos de
pele (...).
m) Evitar infestações de: baratas; formigas; insetos em geral; se livrar das pragas das plantas; evitar picadas de
insetos em toda a família.
n) Dirigir; saber o que fazer quando o carro não pega; consertar o carro; cuidar dos pneus do carro; saber usar o
extintor do carro; saber como dirigir com crianças no carro; buscar as crianças na escola; pensar na família na
hora de escolher um carro (...).
o) Cuidar dos idosos e de seu bem estar. Formatado: Português (Brasil)

6. Cooperação no trabalho do marido: (seja no comércio, na profissão liberal, rural, artesanal etc.),
secretária, trabalhos no campo, criação, hospedagem, relações públicas, caixa, substituta etc.
Inclui eventos e socialização: organizar as festas variadas; comprar e escolher presentes: de Natal, ovos de
Páscoa; dia das mães (ao menos escolher) (...); embrulhar presentes; fazer e enviar cartões de Natal, aniversário,
bodas; etiqueta; realizar trabalhos de caridade; ler para ter assuntos para conversar; fazer cursos para distrair ou
para atualizar; conhecer histórias de Natal; lidar com as crianças em dias de visita; fazer sucesso em qualquer
reunião (não profissional, ao menos não da mulher) (...).

7. Educação dos filhos:


a) transmissão de valores: sociais, religiosos, morais, sexuais.
Ensinar o filho que é errado roubar; lidar com a filha que chega tarde em casa; lidar com as mentiras dos filhos;
evitar que os filhos sejam vítimas das drogas (...).
b) educação escolar: recuperação escolar, deveres, atividades artísticas, esportes, divertimentos, feriados,
férias.
Comprar brinquedos, educativos ou não; se exercitar com as crianças para incentivá-las; encontrar escolas
maternais e saber escolher creches; conhecer as diferentes linhas pedagógicas disponíveis nas escolas; ajudar
seu filho a ser criativo (...).
c) cuidados físicos: aplicação de receitas médicas, descoberta de anomalias, prevenção de acidentes,
higiene, limpeza, alimentação etc.
Preparar o enxoval inteiro antes do bebê nascer; saber quando os filhos devem parar de chupar dedo; identificar
os motivos que levam o bebê a chorar; saber alimentar o recém-nascido; comprar e saber usar kits de primeiros
socorros; evitar e tratar doenças; ensinar a criança a beber sozinha; fazer a criança dormir na hora certa; regular
os horários das refeições das crianças; salvar os filhos da poluição; conhecer e comprar repelentes de insetos
específicos para crianças (...).
d) cuidados psicológicos: equilíbrio mental, descoberta de anomalias.
Comprar gibis, livros e discos e contar historinhas para as crianças; consultar especialistas sobre a criação dos
filhos; não tratar as crianças como adultos; saber como julgar as crises dos adolescentes; garantir que seus filhos
não tenham medo de você (...).
77

e) vida sexual: informação, medidas preventivas para os problemas morais e sexuais.


Orientar o namoro das filhas “Até onde pode ir a intimidade?”; lidar com o filho homossexual; falar de sexo
com os filhos; não interferir no namoro dos filhos; saber como agir ao descobrir que a filha está tomando
anticoncepcionais (...).

Categorias acrescentadas àquelas de Danda Prado, com base nos diferentes tipos de trabalho doméstico que
aparecem em Claudia:
8. Decoração: fazer da casa um espaço funcional e sempre agradável, acolhedor e aconchegante para
toda a família, com especial atenção à volta para casa, das crianças da escola e do marido do trabalho.
Escolher o melhor piso; ocupar bem o espaço; escolher carpete; escolher móveis; escolher cortina; escolher
tinta; cuidar das plantas; perfumar a casa com flores; decorar o banheiro; fazer do quarto o refúgio das
crianças; montar a árvore de Natal; montar presépio; acompanhar a moda na decoração; decorar a casa para a
Páscoa; reformar a casa (...).

9. Auto manutenção da mulher, para que ela sempre possa estar disponível à família, seja para
trabalhar para ela, seja para ser exibida em eventos sociais.
Conservar a beleza e se manter na moda durante a gravidez e depois; “"viver bem a gravidez"”; saber o que
pode fazer ou não na gravidez e o que não comer durante a amamentação; tomar cuidado com a tensão para
estar sempre bem ou tratar dos nervos para não ficar doente; combater o stress com otimismo; livrar-se do mau
humor; emagrecer depois do Natal; superar a agorafobia; combater o alcoolismo feminino; ter um diploma para
superar complexo de burra (...).

10. Escolher, ter, cuidar dos animais domésticos.


Dar biscoitos especiais ao cachorro; afugentar o gato do sofá; encontrar hotel para cães; cuidar de porquinhos
da índia; cuidar das crias da cadelinha; considerar ter plano de saúde para cães (...).

11. Artesanato e trabalhos manuais: formas de economizar no orçamento doméstico, deixar o lar
aconchegante e demonstrar amor aos membros da família.
Fazer: mobílias; bordados; tapetes; almofadas de tricô; crochê (inclusive cortinas); brinquedos; esfregões com
toalhas de banho velhas; fazer portas-copos com os nomes dos convidados; mini-posters; banquetas; arranjos
florais; pacotes de presente personalizados; tricotar roupas da moda, para si e para a família (...).

12. Contratar prestação de serviço.


Saber onde comprar pronta a ceia de Natal; encomendar serviços para sua festa; conhecer “hospital de
bonecas”; saber o que é necessário para se ter uma boa empregada; ensinar a empregada a usar os
eletrodomésticos; conhecer restaurantes da moda; saber escolher entre berçário ou babá; saber onde encontrar
comida pronta de qualidade; conhecer grandes magazines; saber utilizar os serviços do banco; saber onde
restaurar porcelanas, cristais, roupas, guardas chuva, tapetes persas, carteiras e bolsas (...).
QUADRO 1 – Atividades de trabalho doméstico (ou prestado ao marido, casa, família ou filhos/as do marido) Formatado: Fonte: Não Negrito
descritas por Claudia
FONTE: MELLO, Soraia Carolina de (2013). Discussões feministas na imprensa para mulheres: revista Claudia [A20] Comentário: Data difere da
e o trabalho doméstico. Texto submetido ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal constante nas referências.
de Santa Catarina para o exame de qualificação. Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Fonte: 10 pt
Este quadro foi criado na tentativa de melhor visualizar qual era o trabalho doméstico Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Fonte: 10 pt
das mulheres de camadas médias no período analisado. Ou, ao menos, buscar atividades que a
literatura de referência hoje considera trabalho doméstico e que podem ser encontradas na
revista Claudia nestas décadas. Quer dizer, a própria revista, como a literatura sobre o tema
nas décadas de 1970 e 1980, tendiam a considerar trabalho doméstico apenas atividades como
limpar, lavar, passar, cozer e cuidar das crianças. Apoio psicológico, atividades sociais ou
trabalhos mais elaborados que não fossem indispensáveis, como bordar uma colcha, preparar
78

um prato especial, buscar diferentes atividades para as crianças ou receber colegas de trabalho
do marido em casa, surgem com frequência no dia a dia das donas de casa na revista, ocupam
seu tempo e são muitas vezes compromissos, mas aparecem muito mais como atividades de
lazer das mulheres, ou caprichos com a casa, do que como trabalho em si.
É importante deixar claro que muitas destas atividades listadas em novos itens no
Quadro 1, por mim acrescidos àqueles sugeridos por Danda Prado, poderiam ser distribuídas
nos itens já existentes, e que diferentes formas de organizar estas atividades seriam viáveis.
Ao mesmo tempo, diversas das atividades caberiam em mais de um item, sendo que o
artesanato muitas vezes está ligado ao orçamento doméstico e economia, que ficou no item 5,
e também ao apoio psicológico às crianças, que faz parte da educação, no item 7, ou ao
fortalecimento de laços entre o pai e os filhos, que está no item 4. Entretanto, este quadro, que
aqui é apresentando através de uma pequena amostra, é apenas um exercício na tentativa de
dar visibilidade às atividades que a revista sabia que as donas de casa realizavam, assim como
atividades que a revista propunha às donas de casa realizar, mas que nem todas realizavam.
Seria impossível uma dona de casa conseguir fazer tudo aquilo proposto mensalmente pela
revista, e ainda cumprir as obrigações básicas, de limpar, lavar, passar, cozinhar e atender aos
membros da família.

A REVISTA CLAUDIA NO TEMPO

Podemos observar, sem sombra de dúvida, mudanças na tendência da bibliografia


sobre o tema, no sentido de encarar uma gama maior de atividades como trabalho doméstico,
além do cozinhar/limpar/lavar/passar.83. De qualquer maneira, a figura da dona de casa de
camadas médias, que não trabalha fora, que mantém em o funcionamento do lar, e servindoe
às necessidades familiares, levando as crianças ao judô ou à natação, organizando jantares
para amigos, comprando no supermercado produtos que agradam a cada membro da família,
explicando à empregada ou à diarista exatamente que tipo de limpeza sua casa precisa,
persiste de certo modo em nossos dias,; nós podemos encontrá-la em representações
midiáticas como telenovelas e as revistas femininas, ou no dia- a- dia. Esta mulher, essa figura
de uma mulher específica, parece ser o público-alvo da revista Claudia na década de 1970.
Na década de 1980 a revista adota uma postura considerada mais moderna, e dialoga
com a inserção opcional destas mulheres no mercado de trabalho. Algumas dessas mulheres

83
Exemplo em Goidanich (2012). No resumo da tese, a autora afirma que “As compras de abastecimento
como parte do trabalho doméstico são, em geral, invisíveis e, como tal, raramente se tornam objetos de estudo.” Formatado: Português (Brasil)
79

saem dos lares para “expandir os horizontes”, “se sentirem produtivas” (o que evidencia a
desvalorização do trabalho doméstico), e muitas vezes a revista relaciona a crise econômica
do período com a ajuda que podem trazer aos seus lares com seus salários. Entretanto, apesar
da mencionada ajuda no orçamento da casa, a tendência da revista é de sugerir ocupações de
meio período, em atividades já relacionadas com os trabalhos tradicionalmente femininos
(como secretária, pedagoga, fonoaudióloga...), frisando a importância de não se “abandonar o
lar e a família em nome do trabalho”. O diálogo que a revista estabelece é com uma leitora
que não precisa trabalhar fora de casa para garantir a sua sobrevivência e a de sua família, e
que, diante de alguma baixa no padrão de vida (o que para a revista significava baixa no
padrão de consumo, basicamente), pode valer a pena, para as mulheres com filhos já maiores,
sair de casa para incrementar a renda familiar.
É complicado afirmarmos que as donas de casa de camadas médias, público -alvo da
revista Claudia, não tenham ingressado no mercado de trabalho por necessidade. Isto porque
camada média no Brasil abrange famílias com diferentes faixas de rendimento, e, apesar de a
Editora Abril expor aos anunciantes uma leitora abastada, a revista era consumida, direta ou
indiretamente, por mulheres em diferentes situações financeiras. Também seria complicado
fazer tal afirmação porque a necessidade das camadas médias pode ser muito diferente da
necessidade das famílias mais empobrecidas da população. Assim sendo, a dona de casa que
ingressa no mercado de trabalho para manter um ou dois automóveis da família, ou para
garantir as viagens de férias, entende que está ingressando por necessidade, que manter o
padrão de consumo de seu grupo familiar é necessidade. É uma situação diferente daquela das
famílias em que o dinheiro para os alimentos, por exemplo, sempre termina antes de entrar o
próximo salário e, diante disso, as donas de casa buscam trabalho remunerado, caso já não
trabalhassem desde solteiras.
De qualquer maneira, na revista Claudia o maior ingresso das mulheres no mercado
de trabalho na década de 1980 em comparação a 1970 fica evidente. O discurso muda, os
arranjos familiares necessários para a dupla jornada começam a ser amplamente comentados,
e colunas mensais sobre empregos indicados às donas de casa, e até classificados de emprego,
surgem na revista. Para pensarmos esta questão é preciso termos em vista as transformações
sociais do período, e as mudanças provocadas pela larga inserção das mulheres no mercado de
trabalho. Ou podemos pensar também no caminho inverso,: em quais transformações culturais
possibilitaram esse acesso de um maior número de mulheres ao trabalho remunerado. Para
ilustrar a amplitude dessas transformações, reproduzo abaixo um gráfico que traz a taxa de
80

participação de homens e mulheres no trabalho remunerado desde 1960 no Brasil


(GONÇALVES et. al., 2004).
Conforme exposto na Figura 1, de 1960 a 2009 a taxa de participação feminina no
mercado de trabalho subiu de 16,6% para 52,7%, o que representa um crescimento de
218,19%! De acordo com Cristina P. Vieceli, que produziu o gráfico, seria possível relacionar
a grande diferença de participação feminina entre 1980 e 1992 com as mudanças
metodológicas que ocorreram na pesquisa, uma vez que a partir de 1992 o gráfico utiliza
dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), e não do Censo. Entretanto,
ela avalia que, como os números da taxa de participação masculina não se alteram muito
nesses anos, acredita-se que esta mudança metodológica tenha sido de menor importância no
quadro geral, ainda que os efeitos da mesma não tenham sido estimados (por exemplo,
efetuando ambas as pesquisas no mesmo ano e comparando as amostragens e resultados).

FIGURA 1 – TAXA DE PARTICIPAÇÃO POR GÊNERO, BRASIL, 1960 - 2009 (%) Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado, Recuo:
Primeira linha: 0 cm, Adicionar espaço
entre parágrafos do mesmo estilo,
Espaçamento entre linhas: simples

FIGURA 1 – TAXA DE PARTICIPAÇÃO POR GÊNERO, BRASIL, 1960 - 2009 (%) Formatado: Fonte: Não Negrito
FONTE: VIECELI, 2011, p. 15. Gráfico elaborado pela autora citada, com dados do Censo Demográfico do
Formatado: Centralizado
IBGE (1960 a 1980) e PNAD (1992 a 2009).

Para os fins desta análise, é importante observar que entre 1970 e 1980 a taxa de
participação feminina aumentou 8,2%, e entre 1980 e 1992, 20,5%. Não obstante esses
números continuarem subindo até 2009, a partir de 1992 eles demonstram subiraumentam
em um ritmo mais parecido com aquele entre 1960 e 1970. Assim sendo, é justamente no
recorte temporal aqui proposto84 que ocorre a maior inserção das mulheres no mercado de
trabalho, contabilizando um aumento de 28,7% na taxa de participação feminina entre 1970 e
1992, o que significa que, em 1992, a taxa de participação feminina equivalia a 155,15%
84
Com exceção dos três anos em que a PNAD entra na década de 1990, 1990-1992.
81

daquela de 1970. As transformações nas configurações familiares que estes dados sugerem
podem ser observadas na revista Claudia. Como veremos mais adiante, novos arranjos são
necessários para que a dupla jornada das mulheres das camadas médias caiba no dia a dia de
suas famílias. Entretanto, esses novos arranjos não se traduziram, necessariamente, em uma
divisão mais equitativa das tarefas nos lares.

DEFINIÇÕES DE TRABALHO DOMÉSTICO E AS DISCUSSÕES EM CLAUDIA Formatado: Fonte: Itálico

Tendo em vista o modelo de mulher que é o público-alvo de Claudia, é aqui


indispensável levar em conta que marcadores como classe são muito importantes ao
considerarmos a qualidade, o tipo de trabalho doméstico que as mulheres desempenham, o
que é diferente de afirmar, como fez Maria Lygia Quartim de Moraes Nehring em 1981 (p.
32-33), que as mulheres das classes dominantes estão “(...)[...] desobrigadas do trabalho
doméstico propriamente dito (...)[...]”. Fugindo à tendência de parte da literatura feminista
contemporânea às fontes analisadas, o marcador de classe não estabelece, aqui, o que é ou o
que não é legítimo ser chamado de trabalho doméstico. Todavia, através dele podemos
observar variações significativas nas tarefas que são realizadas com o intuito de servir às
necessidades familiares. Ou seja, o trabalho doméstico que uma operária cumpridora de dupla
jornada realiza não é o mesmo que uma esposa de alto executivo realiza, não obstante os
aspectos culturais que fundamenta(ra)m as regras e costumes que fazem com que as mulheres
sejam responsáveis pelas tarefas domésticas sejam semelhantes nestes dois casos.
Dominique Fougeyrollas-Schwebel traz, em texto publicado em português em 1999,
o trabalho doméstico sendo geralmente definido como o conjunto de tarefas realizadas no
terreno familiar; trabalho gratuito, efetuado principalmente pelas mulheres. A PNAD
(Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), incluiu a partir de 1992 uma pergunta específica sobre afazeres domésticos 85, a
qual era aplicada a todas as pessoas consultadas, não apenas àquelas que entravam na
categoria de inativas. Já em 2001, além dessa pergunta específica, o IBGE incluiu outra
pergunta que considera o tempo gasto semanalmente nestas atividades. Para realizar tais
perguntas considera-se afazeres domésticos a realização, no domicílio de residência, de
tarefas de:

85
“A pergunta número 121 era: na semana de (período de referência anterior à pesquisa)... o/a sr./a
cuidava de afazeres domésticos?” (BRUSCHINI, 2011, p. 152).
82

a) Arrumar ou limpar toda ou parte da moradia; b) Cozinhar ou preparar alimentos,


passar roupa, lavar roupa ou louça, utilizando, ou não, aparelhos eletrodomésticos
para executar estas tarefas para si ou para outro(s) morador(es); c) Orientar ou dirigir
trabalhadores domésticos na execução das tarefas domésticas; d) Cuidar de filhos ou
menores moradores; ou e) Limpar o quintal ou terreno que circunda a residência
(SOARES; SABOIA, 2007, p. 10).

Podemos perceber que a definição do IBGE de trabalho doméstico exclui o cuidado


com pessoas idosas, adultos doentes ou dependentes, assim como atividades como as compras
dos alimentos, atenção psicológica prestada à família, e outras tantas atividades descritas em
Claudia. Como exemplos, podemos citar receber visitas, e mesmo sair de férias ou acampar.
Afinal de contas, fazer as malas, preparar, acondicionar e levar lanches para comer no campo
ou na praia, ou planejar o funcionamento da casa durante a ausência da família (como pedir a
uma vizinha para vir pegar as contas na caixa de correio ou regar as plantas), costumam ser
tarefas atribuídas às mulheres. Se não o são, no geral, são elas quem pensam sobre isso e
delegam as tarefas a outros membros do grupo familiar.
Bruschini (2008, p. 70-71) também conceitua o trabalho doméstico, observando-o
sob um panorama mais global quando define os afazeres domésticos em cinco blocos
distintos:

1. tarefas relativas ao cuidado com a casa ou moradia;


2. tarefas relacionadas à alimentação e higiene pessoal;
3. prestação de serviços físicos e psicológicos;
4. administração da unidade doméstica;
5. manutenção da rede de parentesco e de amizade.

A autora observa que essas atividades têm diferentes significados e prestígios


diversos, sendo que cuidar dos filhos seria mais valorizado do que passar a roupa ou limpar a
casa, e cozinhar é considerado mais criativo. Dentre as atividades, algumas são manuais,
outras têm caráter afetivo e outras, caráter intelectual. Ela ressalta que “a essas atividades
corresponde uma assimetria sexual”, e que os homens, mesmo que dividam os afazeres
domésticos, “tendem a fazê-lo nas tarefas mais valorizadas”. Levando em conta esse aspecto,
em conjunto com o tímido aumento da contribuição dos homens casados nos afazeres
domésticos86, podemos pensar que a noção de contrato de gênero ou contrato sexual persiste,

86
Ainda que seja em termos quantitativos, em tempo; pesquisa voltada a aspectos qualitativos, realizada
com homens de escolaridade média e renda familiar menor que 5 salários mínimos, com esposas que trabalham
fora, mostram que, sob essas circunstâncias, a contribuição masculina aos afazeres domésticos aumenta muito,
83

apesar das transformações sociais que envolveram mulheres e trabalho produtivo nos últimos
anos.
A ideia de contrato sexual está ligada ao conceito de divisão sexual do trabalho, que
não seria simplesmente uma divisão de tarefas entre homens e mulheres, na qual os homens
ficariam com o trabalho produtivo e as mulheres com o trabalho doméstico ou reprodutivo,
mas sim uma divisão marcada pela assimetria, no sentido de que o trabalho masculino sempre
é mais valorizado, mesmo quando ambos, homens e mulheres, estão no trabalho produtivo, no
mercado de trabalho (HIRATA; e KERGOAT, 2003, p. 113). O contrato sexual seria aquele
no qual, mesmo que veladamente, fica posto que, nas famílias, as mulheres, e especificamente
a esposa, é responsável pelos cuidados com a casa e a família, e os homens são responsáveis
pelo trabalho produtivo e pelas provisões financeiras familiares.
Essas conceituações ganharam muita força nas décadas de 1970 e 1980, todavia, em
nossos dias, com todos os desdobramentos das teorias de gênero, deve ser mais interessante
propormos a noção de contrato de gênero, ou divisão do trabalho por gênero, não
simplesmente substituindo “sexo” por “gênero” com o intuito de propor a atualidade da
questão, mas considerando as propostas construcionistas, desconstrucionistas, relacionais e
em muitos sentidos contingentes da categoria de análise gênero. Levando isso em conta, é
imprescindível considerarmos que a história do trabalho doméstico não é apenas história das
mulheres, e sim, da humanidade, de homens e mulheres. Essa afirmação pode não se embasar
tanto na contribuição do grupo de homens aos afazeres domésticos nos últimos séculos, mas
principalmente na dependência dos homens, e da vida humana como um todo, destes afazeres.
A responsabilização das mulheres pelo trabalho doméstico também precisa ser pensada de um
ponto de vista relacional, nem simplesmente como uma invenção masculina que vitimizou e
vitimiza as mulheres, nem somente como um conjunto de tarefas que as mulheres, como
coletivo, se auto atribuíram e executam por livre escolha, porque querem.
Diante disso, e tendo em vista as observações de parte da bibliografia de referência
contemporânea às revistas Claudia analisadas, de que muitas mulheres de camadas médias
não executavam o trabalho doméstico em si (o que entendemos aqui como o básico e
indispensável para manter a saúde e o mínimo de bem estar do grupo familiar -– as pessoas se
alimentarem, não adoecerem por falta de higiene, terem onde descansar no fim do dia, etc.), o

apesar de podermos relacionar esse aumento com a necessidade, ou seja, a falta de outras opções para delegação
destas tarefas que não a “ajuda” masculina (BRUSCHINI; RICOLDI, 2010).
84

Quadro 1 foca em atividades específicas.87. Quando fazem parte das atividades básicas de
limpar/lavar/cozinhar, os afazeres costumam aparecer na revista de forma bem particular:
lavar cortinas, tirar manchas disso ou daquilo, limpar portas, plantas, encerar melhor o chão
ou preservar por mais tempo as roupas; preparar drinks ou tirar o gosto do arroz queimado.
Isso não quer dizer que essas mulheres não cozinhassem diariamente, não lavassem a roupa de
sua família, não limpassem banheiros, enão aspirassem o pó ou não varressem a casa.
Um exemplo, não muito comum na revista, de artigo falando especificamente de
faxina ou rotina de limpeza, pode ser encontrado no número 165, de junho de 1975, conforme
reproduzido abaixo, na Figura 2. A primeira página do artigo “Enfrente a rotina da limpeza
com um sorriso” traz: “Com bom humor é mais fácil fazer a limpeza de sua casa” e mais
abaixo discorre melhor:

Não pense nos panos de pó e na vassoura como se eles fossem seus inimigos, nem
fique aborrecida só em pensar que sua casa está precisando de uma boa faxina. Veja
como é fácil tornar a rotina da limpeza mais amena e conheça alguns truques que
podem facilitar seu trabalho.
Formatado: Espaçamento entre
linhas: 1,5 linhas

FIGURA 2 - ENFRENTE A ROTINA DA LIMPEZA COM UM SORRISO Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm

87
Como aqui é apresentado apenas um resumo do quadro original, a maior parte dessas atividades bem
específicas foram suprimidas. Entretanto, no quadro completo com as 1.100 atividades, tarefas domésticas muito
específicas e especializadas aparecem em grande número.
85

Figura 2 - Enfrente a rotina da limpeza com um sorriso Formatado: Fonte: Não Negrito
FONTE: Claudia. São Paulo, n. 165, Ano XIV, junho de 1975, p. 126.
Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm
Formatado: Fonte: Não Negrito
A própria existência dessa reportagem já denuncia o trabalho como cansativo e
pesado. É importante destacar que os truques para facilitar o trabalho, que estão dispostos por
toda a revista (em maior volume nos anos 1970 que nos anos 1980), estão também presentes
aqui. O tom geral da reportagem mostra que as donas de casa fazem mesmo essas tarefas,
portanto, melhor fazê-las com bom humor, assim o tempo passa mais rápido e elas se tornam
tarefas menos estafantes. Quer dizer, não se questiona que as donas de casa são as pessoas que
fazem essas tarefas, isso não é assunto de discussão, está posto. Mas, segundo a ilustração,
elas podem ser feitas cantarolando, por uma dona de casa bonita, produzida, feliz, radiante.
Por conseguinte, não seria razoável relacionarmos o fato de Claudia trazer muitas
dicas para tarefas específicas, como tirar manchas ou decorar o banheiro, com a ideia de que
essas mulheres, que bordam almofadas, não varrem o chão nem lavam a roupa. Lembrando-
86

nos das descrições de María Ángeles Durán (1983, p. 13-15 e 29-30), de como as meninas são [A21] Comentário: Os acentos deste
nome estão corretos?
88
socializadas para serem trabalhadoras domésticas desde a tenra infância , poderia ser
desnecessário a revista se propor a ensinar a essas meninas, depois de crescidas e casadas,
como se lava a louça ou limpar o banheiro. A revista precisa buscar algo novo, algo que
aprimore esta trabalhadora, que a torne cada vez mais especializada, como explica também
María Ángeles Durán (1983, p. 59-61), que, ao comparar uma dona de casa iniciante e uma
dona de casa superespecializada, com anos de experiência, faz um paralelo com um ajudante
de cozinha e um chef.
Observando o Quadro 1, fica evidente a variedade de tarefas que uma dona de casa
executa ou pode executar. Como posto anteriormente, não se espera-se que uma dona de casa
sozinha realize todas aquelas tarefas sempre, mas são tarefas as quais, quando precisam ser
feitas, via de regra, o são pelas donas de casa, ou ao menos o eram no período da pesquisa.
Em seu número 241, de outubro de 1981, a revista traz um artigo intitulado “Preocupações de
mãe”, e a primeira página dele, com o título e a chamada, nos é bastante ilustrativa, conforme
pode ser observado na Figura 3, abaixo.

Na imagem temos uma mulher, sem rosto, de unhas feitas, usando joias e uma
aliança, segurando um utensílio de cozinha de forma a demonstrar certa preocupação. Ela
veste um avental que traz, além do título do artigo, uma lista de 37 diferentes preocupações
que afligem as mães de família de camadas médias, e um indicativo para marcar abaixo a
preocupação do dia. Quer dizer, mesmo que as 37 preocupações listadas sejam apenas
exemplos, tem-se claro que ao menos alguma preocupação, todos os dias, a dona de casa tem.
A variedade de preocupações, que traduzem responsabilidades e trabalho, vai de encontro, em
menor escala, à variedade de tarefas desempenhadas pelas donas de casa que encontrei nas
páginas de Claudia: Feijão preto não há; A empregada vai embora; Hoje tem dentista; Ainda
sou atraente?; Dor de cabeça; Dor na coluna; O resfriado do garoto; A filha ficando mocinha;
Meu marido não coopera; O chefe dele é um carrasco; O dinheiro está curto; Esqueci da
pílula; A garota está namorando; Será que estão transando?; Crianças estão em provas; Não
tenho nada para vestir; Meu cabelo está uma droga; A comida do cachorro; Assaltaram os
vizinhos; Vale a pena caderneta de poupança?; Carro enguiçado; Filha casada mudando para
longe; O tempo está doido; O namorado da caçula faz o que?; A sopa não saiu boa; Meu
marido chegou alto; Vão reclamar do jantar; Estou enorme de gorda; Mancharam o meu sofá;

88
Sobre tal aspecto consultar também Torres (1988, p. 19).
87

Imposto predial e condomínio; Presente de aniversário; Minha filha vai dar a luz; Avó aos 43
é horrível; O baby vai ser lindo; Filho dirigindo sem carteira; Minha vida é ótima; Mas é dose
pra leão.

FIGURA 3 - PREOCUPAÇÕES DE MÃE Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm

[A22] Comentário: Sugestão: colocar a


figura antes deste parágrafo, logo depois
de: “[...]conforme pode ser observado na
Figura 3, abaixo” para que os comentários
façam mais sentido ao leitor.

Figura 3 - Preocupações de mãe Formatado: Fonte: Não Negrito


FONTE: Claudia. São Paulo, nº 241, Ano XXI, outubro de 1981, p. 396.

Os dois últimos itens trazem o tom de grande parte das reportagens da revista
voltadas às donas de casa: a rotina é cansativa, tensa e estafante, mas é a vida que você
sonhou ter, e que pode ser muito gratificante. Além disso, Claudia busca constantemente
amenizar (ou passar a sensação de que está amenizando) a rotina com dicas de como
organizar o dia, como cozinhar receitas rápidas e saborosas, assim como o exemplo
88

demonstrado anteriormente na Figura 2: já que você não pode fugir deste trabalho, esforce-se
para o tornartorná-lo o mais agradável possível.
Apesar de não questionar o fato das mulheres serem as responsáveis pelo trabalho
doméstico, Claudia discute seu bem-estar. A felicidade da dona de casa é um ponto
interessante se formos considerar a viabilidade da manutenção de sua função. Quer dizer, uma
das mais importantes funções das donas de casa, segundo Claudia, é cultivar a felicidade
familiar, o que inclui a própria dona de casa e a satisfação desta em fazer o seu trabalho, em
servir à família. Este tipo de satisfação foi frequentemente recomendado pela revista,
geralmente trazendo vozes de especialistas para comentar o assunto. O número 205, de junho
de 1979, traz um caderno especial “Para você viver melhor como dona-de-casa”, que é
apresentado da seguinte forma:

Este caderno foi idealizado com a intenção de tornar a sua vida de dona-de-casa
[(sic)] ainda mais simples, mais fácil, mais organizada e, acima de tudo, mais
criativa e gratificante. Você perguntará, mas como? Nós consultamos sociólogos,
psicólogos, economistas, advogados que mostram como nós donas-de-casa podemos
e devemos nos sentir valorizadas. E mais: que podemos viver bem com este papel
sem que ele nos roube um espaço físico e interior para podermos nos realizar como
pessoas inteiras. (p. 205).

Percebe-se nesta apresentação certa desqualificação do trabalho doméstico ou, como


posto pela revista, do papel de dona de casa. Tornar a vida das mulheres ainda mais simples e
fácil, pressupõe que o trabalho é tranquilo, que não oferece desafios, que não é estressante.
Apesar disso, de a mulher ser a encarregada por desse trabalho um tanto quanto infantilizado,
ela terá o suporte de especialistas para se sentir valorizada, o que quer dizer que normalmente
no dia a dia não se sente assim, nem percebe essa valorização por parte de sua família. A
apresentação termina quase que afirmando que dona de casa também é gente: que é um
indivíduo, que tem aspirações pessoais, mas que é difícil conciliar o trabalho doméstico com a
realização pessoal.
Esta apresentação parece ter um objetivo específico quando pensamos nas
considerações feministas acerca do colapso social que presenciaríamos (DURÁN, 1983, p. 15
e; CARRASCO, 2008, p. 96), caso as mulheres deixassem de prestar seus serviços gratuitos
que estruturam as sociedades através do trabalho doméstico. Fazer com que a dona de casa se
sinta valorizada, tentando tornar sua rotina mais gratificante para garantir que ela não deixe de
desempenhar o seu papel (que é algo negativo, mas alguém precisa fazer), é uma iniciativa,
dentro da lógica apresentada, marcadamente conservadora.
89

Os cursos de atualização que aparecem em diferentes momentos em Claudia também


podem ser relacionados com a ideia de que a função desempenhada pelas donas de casa tem
algo de infantil, desinteressante, alienante, e consequentemente quem desempenha este
trabalho e os assuntos a ele relacionados também o são. No número 180, de setembro de 1976,
a revista traz a reportagem intitulada “A conversa cri-cri... e o fim da conversa cri-cri (para
isso existem os cursos de atualização)”. Nela, há depoimentos de mulheres sobre como um
curso desses mudou suas vidas, é enfatizado o fato de que esses cursos não têm provas nem
notas, enfatiza-se também que a culpa de tantos desquites é da falta de diálogo, e são
fornecidos telefones e endereços de contato para poder se matricular em um curso de
atualização em quatro diferentes capitais brasileiras. Ou seja, através do consumo, comprando
um curso, as donas de casa têm a oportunidade de melhorar sua socialização e até mesmo
salvar seu casamento.
Os cursos de atualização, por sua vez, podem ser relacionados com uma atividade
descrita em todos os números de Claudia: função doméstica que surge como “a arte de
receber”, e inclui regras de etiqueta para eventos sociais na casa de outras pessoas ou em
espaços públicos. Preparar festas, jantares, eventos como brunchs ou reuniões de carteado,
refeições de datas comemorativas como ceias, bodas, aniversários. Geralmente receber em sua
casa está separado na revista das regras de etiqueta ou como se comportar nas festas dos
outros, mas em ambas as ocasiões os cursos de atualização parecem úteis para que não se
cometam gafes, e para que se tenha condições de ser uma boa anfitriã, simpática, com assunto
para conversar. Cada edição de Claudia traz pelo menos um exemplo diferente de festa a ser
preparada.
A preparação de festas, além de ser uma atividade social, é posta na revista como
uma demonstração de amor, e, assim sendo, cabe no grande guarda-chuva da felicidade
familiar. Descrições detalhadas de como preparar desde os convites, até a decoração e o que
será servido, inclusive bolos temáticos, saber quem convidar, como se portar e o que vestir
(não só a dona de casa, como a família inteira) em cada tipo específico de festa, e fazer
manualmente a maior quantidade possível de detalhes -– decoração, lembrancinhas, docinhos
–- é uma parte do trabalho de dona de casa muito explorada por Claudia, e que praticamente
não é citada pelos feminismos brasileiros -– muito menos pelos periódicos feministas –- na
mesma época.
É importante observar que grande número de vozes autorizadas, como psicólogos,
psicólogos infantis, pediatras, pedagogos, sexólogos e conselheiros de casais, são utilizadoas
pela revista em recomendações sobre como manter a felicidade familiar, desde a estabilidade
90

no casamento, lidar com a sexualidade madura, até se é recomendável ou não ter uma babá,
como lidar com o afeto da criança a esse tipo de profissional, ou qual o brinquedo mais
apropriado para dar à criança. A questão dos brinquedos, inclusive, rendeu algumas extensas
reportagens, como “Dê o brinquedo certo”, do número 123 de dezembro de 1971, ou “O
brinquedo certo é o que a criança inventa”, do número 193, de outubro de 1977. É comum que
esse tipo de produção editorial da revista venha com endereços e telefones de lojas, nesse
caso, de brinquedos não convencionais ou classificados por idade.
Além destes endereços e telefones de lojas no final de reportagens específicas,
geralmente perto das últimas páginas da revista ficavam as “Compras de Claudia”, ou
“Achados de Claudia”, uma seção com sugestões de produtos dos mais diversos, para a casa,
os animais de estimação, as crianças, o bebê, a esposa ou o esposo. Entretanto, as “Compras
de Claudia” são é focadas em produtos, que podem ser embrulhados para presente, levados
para casa. No fim de reportagens às vezes surgem os endereços e telefones de prestadores de
serviço, como ocorre na matéria supracitada a respeito dos cursos de atualização. Isso nos
leva a ponderar que ao trabalho de compradora89 das donas de casa se soma, quando as
famílias têm condições financeiras para tanto, aquele de contratante de prestações de serviço,
outra parte do trabalho doméstico que a bibliografia sobre o tema, sobretudo contemporânea
às fontes, não explora muito.

A FIGURA DA EMPREGADA DOMÉSTICA

Sobre as prestações de serviço, talvez a mais importante para as unidades domésticas


das camadas médias seja o emprego doméstico. As dificuldades enfrentadas com as
empregadas são citadas com certa constância por Claudia. As reclamações sobre as
empregadas estarem exigentes, não terem mais “Marias” como antigamente, do peso do
salário da empregada no orçamento, surgem em artigos específicos sobre o tema. Em março
de 1981, no número 234 da revista, temos, dentro da seção “Viva Melhor”, o artigo “Você
pode ter uma ótima empregada (duvida?)”. Trata-se de uma página de texto, com poucas
ilustrações de uma empregada uniformizada sem rosto, dando dicas de bom senso, como, por
exemplo, deixar comida para a empregada quando se está fazendo regime e tem pouca comida
89
Estou separando aqui o ato de comprar do ato de consumir, conforme propõe Maria Elisabeth
Goidanich (2012, p. 23). É comum ouvirmos e usarmos a figura da consumidora como sinônimo de compradora,
mas, se formos pensar em uma unidade doméstica, toda a família é consumidora do trabalho da esposa, assim
como toda a família é consumidora dos produtos que são comprados. Apesar disso, é trabalho geralmente da
dona de casa comprar o que a família precisa, desde alimentos até móveis, e também prestação de serviço, o que
quer dizer que, além de compradora, ela atua como contratante.
91

em casa, ensiná-la para que ela trabalhe conforme o esperado, não exigir perfeccionismo,
conversar antes de brigar e lembrar que empregada não é escrava. Bem no final do texto há o
aviso de que, tratando com dignidade a empregada, pode ser que ela não considere ir trabalhar
em uma fábrica.
No mesmo ano de 1981, a edição do mês de setembro, número 240, traz uma matéria
mais generosa sobre o tema, também na seção “Viva Melhor”, mas agora com 5 páginas, e o
tom da conversa é outro “Emergência: é hora de aprender a viver sem empregada”. Nela, uma
jornalista da revista explica que é dona de casa, cumpre dupla jornada, e a necessidade a
obrigou a romper a dependência da empregada doméstica, uma vez que estava cada vez mais
difícil manter uma. Ela explica que é necessária uma grande organização do trabalho e do
tempo, é preciso que a família não espere ter os mesmos tipos de serviço que tinha com
empregada em casa, e aponta as soluções através de alternativas de consumo.
A primeira destas alternativas são os eletrodomésticos. Quanto mais máquinas para
trabalhar pela dona de casa melhor, e mesmo que alguns deles signifiquem um investimento
dispendioso, é preciso pensar no dinheiro que se economiza a longo prazo e na tranquilidade
que fornecem. Entretanto, máquinas não fazem faxina, e, para isso, é possível contratar
diaristas em agências, por meio dia ou dia cheio, algumas especializadas em alguns tipos de
tarefa. Observa-se nesse fator que o comum, até então, era ter uma empregada mensalista, e as
diaristas surgem como algo mais versátil, com cara de novo. Dar instruções a uma diarista,
ainda mais uma desconhecida, era muito diferente de ir ensinando aos poucos uma
empregada, e há recomendações a esse respeito, ao lado de telefones e endereços de agências
para contratar faxineiras.
Para as roupas que poderiam estragar sendo lavadas na máquina, a sugestão são é
lavanderias, que também fornecem o serviço de passar roupas, tirar manchas, tinturaria, entre
outros. Como as lavanderias são caras, algumas adaptações são sugeridas, como simplificar o
enxoval, só ter lençóis de tecidos que não precisam ser passados, só comprar roupas coloridas
– nunca brancas ou muito claras – para as crianças, e saber aproveitar as promoções e
diferentes serviços. Há também uma lista de lavanderias em quatro capitais, onde esses
serviços podem ser contratados.
As duas últimas páginas falam da possibilidade de pedir comida e encomendar festas.
Aí se sugere-se comprar refeições inteiras em rotisserias, que muitas vezes entregam em casa
comida para toda a semana, que pode também ser pedida por telefone. Do mesmo modo
sugerem-se pensões, nas quais se poderia garantir o sabor da comida caseira, e mesmo
restaurantes, apesar de estes costumarem ser mais caros. Para as festas, aconselha-se
92

contratação de bufês, e listam-se estabelecimentos de cada um dos tipos citados como


sugestão para as donas de casa.
Se por um lado, o recorte de classe da revista fica claro nesse tipo de artigo, e aquilo
que foi dito pelos feminismos –, que as donas de casa de famílias mais abastadas contam com
ajuda no seu trabalho, – não pode ser negado,; por outro, fica ainda mais claro que garantir
que as redes de substituição do trabalho da dona de casa não falhem é função dela (COSTA,
2002). Os serviços de substituição precisam estar presentes regularmente, devem ser de
qualidade, e devem ser o mais econômicos o quanto possam possível cumprindo as duas
premissas anteriores, o que exige pesquisa constante, flexibilidade e conhecimento. Ou seja,
Claudia nos ajuda a enxergar que não executar as tarefas em si não significava, para estas
mulheres, não ser responsável, ou não ter obrigação para com as mesmaselas.
Em abril de 1989, uma espécie de seção chamada Novos Tempos, dentro de Claudia,
traz outra reportagem, essa um pouco mais fatalista, que ocupa cinco páginas discorrendo sobre
“Viver sem empregada -– o futuro inevitável de todos nós”. Como a Constituição de 1988
reconheceu a emprega doméstica como uma categoria profissional, e já estava mais difícil
encontrar empregadas do que era nas décadas anteriores (pelo menos aceitando as mesmas
condições de trabalho oferecidas anteriormente), a reportagem se dedica a pensar o futuro do
emprego doméstico no Brasil como o que já ocorria em países industrializados da Europa e
América do Norte.90. Nestes países, onde estes serviços custavam caro, opções como espécies
de creches em casa, simplificações do trabalho, menor quantidade de filhos e produtos
semipreparados (como legumes cortados e lavados, por exemplo), eram utilizados, e a revista
tenta procurar serviços parecidos no Brasil para indicar, apesar de ainda serem escassos.
As tensões presentes nas relações entre empregadas e patroas são, de forma geral,
amenizadas nas páginas de Claudia durante os anos de pesquisa, principalmente no que se
refere ao ponto de vista das empregadas. Diferente de outros problemas que podem ser vistos
como delicados, considerados tabu (como o desquite e divórcio, a sexualidade das/os filhas/os,
depressão, frigidez, e mesmo casos extraconjugais do esposo), questões decorrentes do emprego
doméstico aparecem esparsas na revista e nem sempre ganham grande atenção. Talvez o reforço
da ideia de que o trabalho doméstico é responsabilidade da dona de casa faça com que a revista
não foque tanto na figura da empregada, que representaria apenas uma “ajuda”. O grande

90
Em nenhum momento encontrei em Claudia uma discussão corrente na bibliografia feminista sobre
emprego doméstico, tanto no recorte da pesquisa quanto atual, que explica a viabilidade do emprego doméstico
através da dimensão da desigualdade de classe, afirmando que apenas em sociedades em que as diferenças
salariais e as desigualdades são muito profundas é que o serviço doméstico, em especial o mensalista, pode ser
acessível a grande número de famílias.
93

espaço que a revista oferece para a publicidade de eletrodomésticos e de produtos para facilitar
a limpeza também pode não casar tão bem com a figura da empregada, afinal, qual seria o
sentido em investir grandes valores do orçamento familiar para facilitar um serviço que já está
sendo pago (mesmo que irrisoriamente) para ser realizado? Por sua vez, a voz das empregadas
quase não aparece também, salvo na seção de cartas, na qual algumas vezes são publicadas
cartas de empregadas. Quase nunca são cartas de denúncia de sua condição de trabalho, porque
neste caso não estariam em consonância com a proposta editorial da revista, mas estão lá.
Independente das cartas serem realmente de empregadas ou não (considerando o costume
corrente em revistas do período de criar muitas das cartas de leitoras que são publicadas), ao
menos é um espaço no qual estas mulheres aparecem como sujeito em Claudia.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A doméstica, como substituta em algumas das funções da dona de casa, é uma


prestadora de “multis-serviços”, porque a dona de casa é, em última instância, uma prestadora
de uma lista enorme de serviços para a sua família. Muito do trabalho feito pelas donas de
casa ou ao menos sugerido por Claudia que assim o fosse não foi explorado em profundidade
aqui porque a lista é extensa. Ser uma boa mãe ou boa dona de casa contém em si um leque de
funções, físicas, psíquicas e psicológicas, que envolvem desde cuidar, em todos os aspectos,
dos idosos da família, até “criar os filhos sem erro”, resolver detalhes como manchas no sofá,
fazer as malas para a família toda para depois ser apontada como aquela que “gosta de
carregar muita coisa”, ou cuidar dos bens da família, que incluem o imóvel ou o automóvel,
mas também os eletrodomésticos e as roupas.
Parece ser importante pensar, tanto nos eletrodomésticos como nos serviços das
empregadas ou faxineiras, como algo que pode ser comprado para substituir a dona de casa
em certas atividades, como prestações de serviço que cumprem parte da função de esposa,
uma vez que sua crescente inserção no mercado de trabalho vinha prejudicando a qualidade e
a quantidade (em horas e volume) de seu trabalho prestado à família. Entretanto, apenas parte
deste trabalho podia e ainda pode ser assim substituído, em grande parte por questões
principalmente culturais. Comenta-se como as donas de casa que cumprem dupla jornada
otimizam seu tempo para conseguirem realizar o trabalho remunerado e o trabalho doméstico,
questão que é amplamente tratada pela bibliografia, desde Betty Friedan (1971) até periódicos
e textos feministas dos anos 1980 no Cone Sul (MELLO, 2011). Já no caso das mulheres que
94

são exclusivamente donas de casa91, o trabalho estende-se durante o dia. As atividades são
realizadas de forma mais detalhada e atividades diferentes são incorporadas ao trabalho, de
forma a preencherem o dia e muitas vezes também a noite.
É consenso na bibliografia que as donas de casa têm uma jornada inesgotável, uma
vez que uma xícara na pia às 23:h30 se traduz em trabalho, e uma criança chorando às 5h ou
3h da manhã também. E quando são substituídas em um tipo de trabalho, prestam outros
serviços, mais sofisticados ou elaborados, ou simplesmente diferentes, para suas famílias.
Sendo assim, esse rápido olhar sobre Claudia nos ajuda a inferir sobre quais atividades, que
tipo de trabalho estendia-se na jornada interminável das donas de casa de camadas médias.
Este era sem dúvida um trabalho diferente daquele das donas de casa das camadas populares,
mas a extensa lista encontrada em Claudia descrevendo as atividades propostas às donas de
casa nos ajuda a ponderar a questão. Parece razoável não considerar serviços prestados à
família como trabalho doméstico, apenas porque são diferentes de varrer, passar ou cozinhar?

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Itálico
323CFH/CCE/UFSC, 2002, 2002 p. 301-323.

91
Essa diferenciação é importante. Muitas das estatísticas realizadas na década de 1980 consideram donas
de casa apenas aquelas mulheres que são exclusivamente donas de casa, ignorando o fato de que as mulheres que
possuem ocupações remuneradas, em domicílio ou fora de casa, são também em sua esmagadora maioria donas
de casa, ainda mais no tempo do recorte da pesquisa do que nos dias atuais.
95

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foram modificadas com respaldo em
informações encontradas nestes dois sites:
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?
VIECELI, Cristina Pereira. Mulher e trabalho no Brasil: características, avanços e codigo=4397490 e
http://www.revistasociologica.com.mx/pdf
permanências (1960 - 2009). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Economia), – /1008.pdf. Caso as informações acrescidas
Porto Alegre: UFRGS, 2011. sejam incorretas, favor nos fornecer as
corretas (veículo de publicação, volume,
número, local, e paginação).
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
97

PARTE II – GÊNERO, CLASSE E NACIONALIDADE NA PROMOÇÃO DO


CONSUMO DE TECNOLOGIAS DOMÉSTICAS
98

CAPÍTULO 4 – A PROMESSA DO AMERICAN WAY OF LIFE PARA AMÉRICA


LATINA: DOMESTICIDADE, TECNOLOGIA E CONSUMO92 (1940-1945)

Mónica Sol Glik Formatado: Português (Brasil)

Olhe, Senhora, como será a sua casa depois da Vitória! Aqui está a cozinha do
amanhã. Olhe bem, que ela é o símbolo da elegância, da limpeza e da comodidade
que vão caracterizar a sua casa quando a guerra for ganha [...] Os mesmos aços que
hoje contribuem a vencer e exterminar ao inimigo se dedicarão, trás a vitória, a
vencer a escassez, a incomodidade, o tempo e a distância. Eles vão trazer para a sua
casa melhores cozinhas, geladeiras, máquinas de lavar, utensílios e mil coisas más,
[...] e contribuirão para que na nova era se somem liberdade, bem-estar e
abundâancia.93.

INTRODUÇÃO

Durante os primeiros anos da década de 1940, o modo de vida americano-


estadunidense chegou aos lares do sul do continente por meio de uma ofensiva publicitária
sem precedentes. Transformado em arma de guerra pela Office of Cordinator of
Interamerican Affaires, o poderoso arsenal de imagens triunfais elaborado pelo Departamento
de Estado norte-americano associava a tecnologia desenvolvida para o esforço de guerra com
as possibilidades de melhora para a vida doméstica. Esta campanha fez parte da ofensiva
cultural estadunidense para enfrentar o avanço ideológico do nazifascismo, por meio de
valores novos e atrativos para um público latino-americano, que passaria a integrar ao seu
repertório as incipientes noções do conforto, no marco do que Beatriz Colomina (2006)
denomina “uma nova forma de domesticidade”.
Com este propósito, o governo de Estados Unidos apoiou, subvencionou e produziu
uma grande gama de dispositivos culturais, como cinema, rádio e revistas de ampla
distribuição entre o público latino-americano. Uma estratégia que veríamos emergir com força
durante a Guerra Fria em toda a Europa Aliada e que tinha como público preferencial as

92
Este estudo é realizado com ajuda financeira do Instituto Franklin de Investigação da Universidade de
Alcalá de Henares, como parte do trabalho do grupo de investigação do projeto E Pluribus (Non) Unum: linajes
alternativos en la modernidad estadounidense. Formatado: Português (Brasil)
93
Anúncio publicitário da empresa estadunidense Republic Steel Corporation na edição em castelhano de
Selecciones del Reader's Digest para América Latina, outubro de 1943. Tradução do original: “¡Mire, señora, la
casa que tendrá tras la Victoria!/ He aquí la cocina de mañana. Mírela bien, que es el símbolo de la elegancia, la
limpieza y la comodidad que caracterizarán la casa de usted [sic] cuando se gane la guerra. […] Los mismos
aceros que contribuyen hoy a vencer y exterminar al enemigo se dedicarán, tras la victoria, a vencer la escasez,
la incomodidad, el tiempo y la distancia. Ellos traerán a la casa mejores cocinas, heladeras, máquinas de lavar,
utensilios y mil enseres más […] y contribuirán a que en la nueva era se aúnen libertad, el bienestar y la
abundancia”.
99

mulheres, para as quais apresentava um modelo de modernidade plausível de ser imitado e


plasmado na publicidade de eletrodomésticos de futura fabricação.
Este trabalho indaga, em perspectiva histórica e em suportes diversos –- como
revistas de circulação doméstica e documentos diplomáticos de Argentina, Brasil e Estados
Unidos –-, o impacto desta ofensiva cultural, na produção e no consumo, articulando [A24] Comentário: Como daqui dois
parágrafos esta ideia é retomada, uma
elementos políticos e econômicos com o cotidiano e a vida doméstica. sugestão é excluir esta explicação aqui.

As próximas páginas desenvolvem a ideia de que as auto-rrepresentações elaboradas


pelos estadunidenses, plasmadas no seu modo de vida – o American Way of Life –, tão úteis
para consolidar o seu êxito ao longo do século XX, acabaram conformando um complexo
enramado ideológico em que se imbricavam os assuntos de Estado e os negócios privados
com as questões de gênero. Tal abordagem opera em consonância com a recomendação da
historiadora norte-americana Joan Scott (1986, p. 22), de conceber os processos históricos de [A25] Comentário: Ano diferente
dos e constam nas referências.
tal modo interligados “que os seus nós não possam ser desfeitos”.
De acordo com o propósito deste estudo, foram consultados arquivos diplomáticos de
Argentina, Brasil e Estados Unidos, para investigar as possíveis conexões entre as esferas
governamentais e a doméstica, onde a publicidade e o consumo funcionam como pontes.
Numerosos documentos de órgãos dependentes do Departamento de Estado americano
comprovam as conexões entre o governo e um dos dispositivos culturais de maior sucesso na
segunda metade do século XX: as edições internacionais da revista estadunidense The
Reader’s Digest. Esta publicação, que já circulava com êxito desde 1922 entre o público
norte-americano, ganhou as suas primeiras versões em língua estrangeira às vésperas da
entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra. Como veremos na sequência, as
edições em castelhano e português foram encomendadas pela Office of Coordinator of
Interamerican Affaires (OCIAA), no marco da aproximação do governo de Franklin D.
Roosevelt à América Latina, na tentativa de angariar a simpatia do público entre os novos
aliados potenciais. Além dos valores mais conservadores, a revista tinha a missão de divulgar
os avanços da tecnologia norte-americana, para cristalizar, assim, a imagem de superioridade
dos Estados Unidos frente ao inimigo nazi-fascista.
E aqui se configura o tema deste estudo, que investiga as conexões entre as decisões
tomadas dentro da lógica formal do Estado e o seu impacto na esfera doméstica. Com o duplo
objetivo de cumprir com as diretrizes do governo, mostrando as vantagens do estilo de vida
americano e, ao mesmo tempo, assegurar o retorno econômico, as edições latino-americanas
da revista incluíam páginas de publicidade institucional das diversas empresas multinacionais
envolvidas no esforço de guerra. Desta maneira, os anunciantes associavam o
100

desenvolvimento de novos materiais – como o nylon, os alimentos desidratados, etc. –,


concebidos para uso bélico, com a promessa do aproveitamento das novas tecnologias para a
futura produção de eletrodomésticos, “depois da vitória”. Podemos tomar emprestada a
proposta de Beatriz Colomina (2006, p. 12) sobre a arquitetura moderna, “inseparável da
guerra”, para aplicar também aos artefatos domésticos. Esta autora analisa as
publicações do pós-guerra na Europa como parte de “uma campanha de propaganda
cuidadosamente orquestrada, que lançava ao mundo imagens de um paraíso doméstico”.
Mas os europeus não foram os primeiros a receber estas imagens, que tampouco eram uma
novidade do pós-guerra. A análise das edições em castelhano e português da
revista do Reader’s Digest nos permite perceber que tal campanha já estava presente
entre o público latino-americano antes da Guerra Fria; inclusive, antes que os Estados Unidos
entrassem formalmente na Segunda Guerra. [A26] Comentário: Embora seja
conhecimento comum que a Guerra Fria foi
Afirmar que existia uma campanha de propaganda implementada pelo governo um conflito extraeuropeu, a referência à
Segunda Guerra Mundial anterior está
estadunidense não significa que a revista The Reader’s Digest – assim como o conjunto muito distante desta frase. Assim sendo,
“conflito europeu” na última linha deste
de ações orquestradas pela OCIAA – houvesse encontrado na América Latina um público parágrafo parece ter mais peso ao se
remeter erroneamente à Guerra Fria que à
passivo, suscetível de ser “americanizado”. Tal afirmação implicaria, por um lado, em uma Segunda Guerra. Para consertar esta
referência, há duas possibilidades: ou
mudar “conflito europeu” para algum
improvável homogeneidade cultural nos Estados Unidos - – da Flórida ao Oregon, do Texas outro termo que remeta diretamente à 2º
Guerra ou então acrescentar datas ao
a Nova Iorque, de Santa Bárbara a Washington - – que pudesse ser imposta aos latino- longo de todo este parágrafo para situar o
leitor de que época se está falando.
americanos de uma maneira unificada. No outro extremo, tal imposição teria que encontrar
um público receptor passivo que fosse “assimilar” as mensagens, incapaz de se apropriar
dos conteúdos segundo suas próprias conveniências. Insistir nisto seria negar o papel
histórico destes leitores. De acordo com Michel de Certeau (1999), ainda que um texto
convide persuasivamente ao consenso, a leitura será a partir dos interesses
particulares do leitor ou leitora, e não de uma “massa” para a qual “somente restaria pastar a
porção de simulacros que o sistema distribui” (CERTEAU, 1999, p. 260).
Para pensar as formas de circulação da revista, parece mais conveniente ver o The
Reader’s Digest como um veículo de valores conservadores sustentados por certo setor da
sociedade estadunidense, que, por sua vez, foram apropriados e ressignificados por
componentes das classes médias em ascensão em América Latina, em um momento de
importante expansão industrial, particularmente na Argentina e no Brasil, onde já havia
começado a substituição das importações e pretendia-se sair de uma economia antes centrada
na agropecuária. Este processo, que se iniciou em graus diferentes em ambos os países na
década de 1930, se consolidava nos anos 40 com a dotação de leis trabalhistas e o aumento
do poder aquisitivo.
101

O êxito da revista The Reader’s Digest tem explicações muito diferentes nos Estados
Unidos do que na América Latina, onde o conservadorismo e os valores puritanos de certa
parte da sociedade norte-americana não faziam sentido. Talvez os pontos em comum
fossem os artigos de autoajuda, em que a revista foi pioneira,e que, segundo o trabalho de
Mary Junqueira (2000), foram de grande aceitação entre o público brasileiro. Este artigo
aponta, porém, para outra direção: o atrativo da novidade, a admiração pela “superioridade”
tecnológica, o encantamento pela modernidade. Algo que poderia se encaixar na feliz
expressão de Pedro Tota (2000), um “imperialismo sedutor”. Sedução a qual, segundo pode -
se ver em numerosos documentos da OCIAA, era mútua.94.
Cabe ainda ressaltar que o governo norte-americano se relacionava de forma
diferenciada com alguns países da América Latina, especialmente no Cone Sul. A mais
expressiva diferenciação era entre Brasil e Argentina; mantendo com o primeiro importantes
acordos comerciais, culturais, militares e financeiros, e com o segundo uma relação de
crescente hostilidade, cujas explicações e características excedem o marco deste trabalho. O
que aqui nos interessa é que, apesar destas diferenciações, a revista The Reader’s Digest
apresentava maijoritariamente conteúdos similares, traduzidos para o castelhano e para
o português, só que em meses diferentes (a edição apareceu em castelhano em dezembro
de 1940, e em português, em fevereiro de 1942). Em alguns números, porém, aparecem
na edição brasileira artigos que exaltam a “boa vizinhança” e o marco de amizade em que
transcorrem as negociações entre Brasil e Estados Unidos, artigos os quais são
exclusivos para a edição em português. Já a revista produzida em castelhano é a mesma para
toda América Latina.
O exame cruzado das edições em inglês, português e castelhano da revista
estadunidense The Reader’s Digest possibilita também uma aproximação às correntes
culturais veiculadas por meio desse periódico e que atravessaram as Américas nos
complicados tempos da Segunda Guerra.

ESTADOS UNIDOS E AMÉRICA LATINA

Às vésperas da sua entrada na Segunda Guerra Mundial, o governo dos Estados


Unidos realizou uma profunda mudança no modo de se relacionar com os países latino-

94
Por exemplo, os informes sobre o
carnaval nos países latino-americanos, encomendados pela OCIAA. Arquivos NARA, RG 229/350, Box 135:
Carnival/Tourist Travel. Formatado: Português (Brasil)
102

americanos. Impulsionado pela necessidade de abrir novos mercados para os seus produtos,
perante as dificuldades ocasionadas pelo conflito europeu e pelo seu interesse em se abastecer
de matérias -primas escassas durante a guerra – -mas abundantes no sul do continente –- o
presidente Franklin Delano Roosevelt investiu fortemente na denominada Política da Boa
Vizinhança (Good Neighbourg Policy). Deste modo, o presidente norte-americano
abandonava os tempos do Big-Stick, o qual caracterizou durante décadas um modo duro de se
relacionar com a América Latina.95.
Mas existiam, também, outras preocupações de caráter cultural, e não
econômico. Os serviços de espionagem estadunidenses alertavam sobre a divulgação de
ideologias nazi-fascistas no Cone Sul, especialmente no Brasil e na Argentina, onde a
população de origem ítalo-germana era numerosa. Com o objetivo de conquistar “os corações
e as mentes”96 do público latino-americano, o governo de Washington criou a Office of
Interamerican Affairs (OCIAA), cujas atividades tinham por objetivo a cristalização de
duas imagens centrais. Por um lado, a da superioridade norte-americana frente ao Eixo nazi-
fascista; por outro, a do modelo civilizatório dos Estados Unidos para a América Latina. Tal
modelo devia ser hegemônico, e somente poderia se legitimar por meio da difusão de uma
ideologia política de cooperação continental (MOURA, 1984).
Neste contexto é que se insere a revista norte-americana Seleções do Reader’s
Digest, cuja edição latino-americana começou a ser editada em espanhol em dezembro de
1940, e em português, em fevereiro de 1942. Muito embora a revista não conste entre os
veículos do Serviço de Publicações do Governo (USIA), segundo a historiadora brasileira
Mary Junqueira (2000, p. 40) – que estudou a trajetória da revista no Brasil –, alguns
executivos de Seleções na Europa estiveram ligados à CIA durante a Guerra Fria. Mesmo que
os tradutores e redatores fossem locais, o diretor geral da revista era sempre um americano, o
que facilitava a cooperação, tanto com o Departamento de Estado, como com a agência norte-
americana. Segundo o investigador John Heidenry (1993), importantes figuras do governo
norte-americano e influentes políticos e empresários da época visitavam a casa do casal
fundador do Reader's Digest, em Pleasantville, no estado de Nova Jersey. Entre eles – e Formatado: Fonte: Não Itálico

sempre entre os mais conservadores republicanos – Richard Nixon e Ronald Reagan.

95
Theodore Roosevelt, tio de Franklin Delano Roosevelt e vigésimo-sexto presidente de Estados Unidos
(1901-1909), afirmava que para se aproximar de América Latina, era necessário um grande sorriso nos lábios e
um grande garrote (Big Stick) escondido atrás das costas. Formatado: Fonte: Itálico
96
Esta expressão, “conquistar os corações e as mentes”, aparece reiteradamente em toda a
Formatado: Português (Brasil)
correspondência dos agentes secretos norte-americanos. Para este estudo, citamos as cartas do agente “Jack”,
interceptadas pela policia secreta de Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 01/06/ jun. 1941. Archivo: CPDOC-FGV.
Serie Confidencial- GV confid 1941.06.01. Microfilms: rollo 19, fot. 0579 a 0581. Formatado: Português (Brasil)
103

A dilatada dimensão mundial da circulação da revista Seleções do Reader’´s Digest


solicita e favorece um exame transnacional dos usos e apropriações locais dos dispositivos
culturais que contribuíram para cristalizar a imagem central da superioridade norte-americana
em imaginários diversos. Cabe destacar que as relações entre Estados Unidos e os países
latino-americanos não eram, em absoluto, homogêneas. Brasil foi, sob o governo Getúlio
Vargas, o grande aliado do governo Roosevelt, e as vantagens que o país sul-americano
obteve (investimentos em siderurgia, tecnologia, armamentos, entre muitos outros itens)
foram proporcionais ao grau de cooperação estabelecido pelo governo Vargas a partir da sua
ruptura com o Eixo nazi-fascista (Alemanha, Itália e Japão), em 1941. E s t a d o s [A27] Comentário: Estes países são
EUA e Brasil, certo? O problema é que
U n i d o s y B r a s i l firmaram importantes acordos comercias e militares, propiciando um desses termos estão muito próximos a
“Alemanha, Itália e Japão”, gerando, em
importante intercâmbio de dispositivos culturais gerenciados, como veremos, pela OCIAA, um primeiro momento, dúvida sobre quais
países se fala. Por favor, alterar esta
fundada, para estes fins, em 1940. expressão utilizada.

No outro vértice de um triângulo diplomático desenhado por conflitos diversos,


Argentina aparece numerosas vezes na documentação estadunidense apontada como
“suspeitosa” de filo-nazismo, despertando também a desconfiança dos seus vizinhos –
particularmente Brasil – acerca de uma suposta corrida armamentista.97. Na opinião de muitos
historiadores estadunidenses (MAC CANN, 1973; MAC DONALD, 1980; WOODS, 1979)
e argentinos (RAPOPORT, 1988; ESCUDÉ; CISNEROS, 2000), a aproximação do
governo Roosevelt ao Brasil de Getúlio Vargas tinha como objetivo principal o isolamento da
Argentina, a partir da negativa deste país em apoiar a proposta estadunidense de mútua
defesa continental apresentada na Conferencia Interamericana de 1936, em Buenos Aires. A
postura neutra do governo argentino durante a Segunda Guerra alimentou entre alguns setores
do governo estadunidense a suspeita de uma Argentina filo-nazista, já discutida pela
historiografia.
Como pode ser apreciado na vasta documentação norte-americana, a OCIAA
trabalhava com esta hipótese, sendo frequentes as comparações entre Argentina e Brasil, do
qual chegava-se a dizer que era “mais anti-Eixo do que Argentina”98.

SELEÇÕES, UM FENÔMENO EDITORIAL Formatado: Fonte: Itálico

97
Entre uma vasta documentação, citamos aqui uma carta do diplomata Lourival Fontes ao presidente
Getúlio Vargas. Washington, 20/11/ nov. 1944. Archivo: CPDOC/FGV. 1944.11.20/2. Microfilm: 0567 a 0572;
e outra de Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas em Rio de Janeiro, 14/08/ ago. 1937. Archivo: CPDOC c
1937.08.13 Microfilm: 5 – 0561/2 a 0570.
98
Memorandum de J.R.Josephs, director do Sub Commiteee Motion Pictures, para Jhon Hay Withnes, Formatado: Português (Brasil)
coordinador do Motion Pictures Commiteee. Whasington, 28/02/ fev. 1942. National Arquives and Records
Administration – RG 229-350753406, Box 222, Memo 34. Formatado: Inglês (Estados Unidos)
104

A revista The Reader’s Digest circulava desde 1922 nos Estados Unidos, com grande
êxito. Fundada e dirigida pelo casal formado por Lila Bell Ancheson e William De Witt
Wallace, ambos filhos de pregadores presbiterianos, a revista carregava os valores
conservadores norte-americanos. Eram páginas de cristianismo, de filantropia, da virtude
republicana. A partir de dezembro de 1940, a versão em castelhano, Selecciones
del Reader’s Digest, começou a circular na América hispânica. Editada inicialmente em Formatado: Fonte: Não Itálico

Cuba, engajava-se no esforço de guerra para combater uma ameaça que os experts de
Washington interpretavam como crescente: o avanço da ideologia nazifascista entre os
numerosos imigrantes de origem italiana e alemã que residiam no Cone Sul. Em sintonia com
este propósito, a edição em português chegou em fevereiro de 1942, sob o nome Seleções, Formatado: Fonte: Não Itálico

alcançando regiões tão distantes como o Acre (JUNQUEIRA, 2000, p. 44). Era o contexto da
Segunda Guerra, e a revista ganhava novos conteúdos. Como fenômeno editorial, atravessou as
Américas com sua carga de valores e representações dos diversos “inimigos” dos norte-
americanos, que, em um primeiro momento, eram os nazistas, mas que nos anos da Guerra Fria
passaram a ser os “comunistas”.
Ainda se tratando do condensado de artigos de autoria diversa, extraídos de outras
publicações, todos os materiais estavam claramente costurados em torno a um eixo ideológico
central, que outorgava unidade e consistência editorial ao conjunto. Os tópicos da liberdade,
paz e bem-estar repetiam-se incansavelmente. O discurso empregado nos relatos de
biografias triunfadoras, nas matérias sobre os avanços científicos, as descobertas
tecnológicas, a vida nas grandes cidades e até os artigos de autoajuda plasmavam uma
inabalável fé no progresso e na superioridade anglo-saxônica, e na fortaleza da nação
americana.
Uma das características mais notórias de Seleções é a sintonia entre os conteúdos e
os anúncios publicitários, a ponto de dificultar a distinção entre ambos. É difícil perceber
onde uns acabam e onde os outros começam. O curioso é que tais anúncios – pagos e
assinados pelas grandes indústrias cujas marcas usualmente associamos a eletrodomésticos –-
não visavam vender produtos para o lar, para o conforto ou para o uso pessoal, mas se
ocupam de divulgar os avanços da tecnologia de guerra e as grandes descobertas que
garantiriam a vitória aliada no fronte europeu. Exibem tanques, armamentos, lanchas,
helicópteros, aviões e todo tipo de componentes bélicos, como se fossem geladeiras ou
máquinas de lavar.
105

Os anúncios publicitários das edições latino-americanas – Selecciones e Seleções –


ocupavam um terço da revista, e, em alguns números, chegaram a ocupar quase a metade,
embora o editorial de apresentação da primeira edição em castelhano prometesse que a
participação dos anúncios em cada exemplar não passaria de “um quarto” da revista. As
páginas publicitárias estavam agrupadas sequencialmente, quase sempre aparecendo todas
juntas, como se constituíssem um capítulo da revista.

A PUBLICIDADE NAS EDIÇÕES LATINO-AMERICANAS

A inclusão de anúncios publicitários nas edições latino-americanas de The


Reader’s Digest – as versões em castelhano, Selecciones e em português, Seleções -– Formatado: Fonte: Não Itálico

constituía uma novidade na tradição da revista estadunidense, prática a qual seu criador,
Dewitt Wallace, sempre recusou. Nos Estados Unidos, a revista se sustentava
exclusivamente com base na venda por subscrições, um dado de grande importância
para os objetivos desta pesquisa. Mas as edições latino-americanas ficaram sob a direção de
Achey Ancheson, irmão de Lila Bell Ancheson (CANNING, 1996), quem aceitou a proposta
de Nelson Rockefeller, diretor da OCIAA. A ideia era transformar a revista em um veículo
portador dos valores americanos e, por tanto, capaz de afastar a propaganda
nazifascista no sul do continente. Dois meses antes do seu lançamento na América Latina, a
revista norte-americana pedia a colaboração dos seus leitores estadunidenses, animando-os a
comprar subscrições para possíveis leitores latino-americanos “por apenas um dólar”,
assegurando nas suas páginas centrais que o Reader’s Digest “é o mais efetivo
intérprete de Estados Unidos para aqueles que vivem em outros países [...] nenhuma outra
influência [...] consegue estimular nos países estrangeiros a compreensão dos nossos
alcances e aspirações”99.
Também se anunciava aqui a inclusão de anúncios publicitários nas edições latino-
americanas do Reader’s Digest, a qual tinha um duplo objetivo. Por um lado, tratava-se de Formatado: Fonte: Não Itálico

angariar recursos para que o lançamento da revista fosse um projeto lucrativo, antes
mesmo de que a venda das subscrições mostrasse a sua capacidade comercial. Por outro – e é
este o aspecto que mais nos interessa – a revista estadunidense levaria aos lares das
emergentes classes médias latino-americanas o “modelo” de um estilo de vida com amplo

99
Tradução livre do original: “The Reader’s Digest is a sot effective interpreter of the United States to
those living in other countries. No other single influence does so much to stimulate in foreign lands an
understanding of our achievements and our aspirations” The Reader's Digest. Pleasantville, New Jersey,
agosto de 1940, páginas centrais (s. p.). Formatado: Português (Brasil)
106

poder de sedução, capaz de afastar a suposta ameaça da propaganda nazifascista no sul do


continente. Cada um desses dois objetivos, se desdobrava, por sua vez, em vários outros. Aos
aspectos comerciais da revista se somaram outros interesses econômicos de maior alcance.
Como diretor da OCIAA, Nelson Rockefeller escreveu entre 1940 e 1942 para as maiores
empresas estadunidenses dedicadas à indústria de guerra para tentar convencer os seus
dirigentes a anunciar nas edições latino-americanas do Reader’s Digest.100. O objetivo era Formatado: Fonte: Não Itálico

divulgar entre o público latino-americano as conquistas científicas da potente indústria


bélica estadunidense, assim como as possibilidades destas descobertas e avanços para os
tempos de paz. A ideia motriz desta campanha impulsionou o projeto conhecido como
Advertising Project (MONTEIRO, 2006). Encontramos nos arquivos estadunidenses [A28] Comentário: Esta alteração foi
feita com base no Lattes da autora:
numerosos documentos que sugerem uma intensa correspondência entre Nelson <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual
/visualizacv.do?id=K4766290T4> e no
Rockefeller e dirigentes de grandes indústrias norte-americanas, como a General artigo publicado por ela: <http://e-
revista.unioeste.br/index.php/temposhisto
Electric, a Westinghouse, a Zenith, RCA, Philips e Parker, entre outras muitas de igual ricos/article/download/4863/3726>.

envergadura. Uma rápida leitura destes nomes nos permite associá-los à fabricação dos
eletrodomésticos, que mais tarde povoariam os lares dos tempos da Guerra Fria, embora
naqueles primeiros anos da década de 1940 estivessem com a produção voltada
exclusivamente à indústria de guerra.
As agências de publicidade multinacionais começavam a se instalar na América
Latina, e tinham grandes expectativas nas possibilidades de colaboração com o governo
estadunidense. Em uma carta para o seu superior em Washington, o diretor da regional Brasil
da OCIAA relata que a empresa Grand Advertising tinha estabelecido escritórios no Rio de Formatado: Fonte: Não Itálico

Janeiro e São Paulo, “com instalações de grande beleza, de longe muito mais do que o
habitualmente experimentado no país”, e que tal empresa desejava plantar bases permanentes
nestas duas cidades. Ainda segundo esta carta, o vice-diretor da Grand Advertising, David Formatado: Fonte: Não Itálico

Echols, tinha-lhe dito uma semana antes pelo telefone que planejava “como mínimo,
supervisionar os negócios em Argentina e Brasil”, manifestando assim “o seu desejo de
colaborar com o programa da OCIAA”.101.
As numerosas missivas estendiam o seu alcance a outras mídias, como o rádio. Uma
das cartas emitidas pelo Comitê do Brasil da OCIAA, em 1943, por exemplo,
encabeçada como “Cooperação com anunciantes americanos”, lembra que no fim do ano a
maioria dos anunciantes estariam planejando os seus orçamentos para 1944 e que certamente

100
NARA – RG 229- 350 75 34 06, Boxes 222, 170 e 193. Formatado: Português (Brasil)
101
Carta de E.C. Given, Chairman da OCIAA-Brasil, para John Akin, diretor do setor de publicidade da
em Washington. Rio de Janeiro, 16/9/1943. NARA-RG 229- 350 75 34 06, Box 170, Memo 1532.
107

considerariam “um bom negócio” promover “a simpatia e o entendimento entre Estados


Unidos e o Brasil”, pelo que “se perguntam se Nelson Rockefeller não gostaria de fazer uma
nova chamada para que as empresas mantivessem os seus espaços e horários na imprensa e
rádio sul-americanas”. Também creem que o mesmo Rockefeller deveria escrever para estas
empresas, “para agradecer a maravilhosa cooperação que têem oferecido durante 1943”. No
mesmo documento se recomenda o envio de cartas de agradecimento, “especialmente, para
Colgate-Palmolive, Scott & Browne e Sterling, pela generosa locação de horários de ráadio
para a contínua repetição dos slogans sugeridos pela OCIAA, tanto no Brasil como em nos Formatado: Fonte: Não Negrito

Estados Unidos”. O final da carta reforça o rol dessas companhias junto ao governo
americano, já que, segundo se afirma, “tiveram importante papel também na distribuição das
nossas publicações através do continente” (tradução própria)102. É interessante se deter na [A29] Comentário: Estes trechos da
carta são originais, traduções publicadas ou
autoria destas cartas, escritas pelos diretores ou outros cargos dos comitês da OCIAA em cada traduções livres da autora?

país sul-americano. O autor desta que citamos, por exemplo, é H. Valter Blumental, a
quem encontramos na página web do Archives Directory for the History of Collecting in Formatado: Fonte: Não Negrito
103
America como patrocinador e colecionista de arte, falecido em 1969. . As facilidades
proporcionadas atualmente pela internet nos ajudam a identificar outros autores, a maioria
procedente da sociedade civil estadunidense. Segundo parece, os cargos da OCIAA não
constituíam a ocupação principal destes personagens. O envolvimento de outras figuras do
cinema e da literatura (como o empresário Walt Disney e o ator e diretor Orson Wells)
com as atividades da OCIAA104, assim como nas edições do Reader’s Digest, nos autorizam
a pensar em uma espécie de “engajamento” nesta empreitada estadunidense contra o nazi-
fascismo. Durante os anos 1940-1945, assinaram editoriais e notas de contra-capa na
revista notórios nomes, como o humorista e ator Groucho Marx e o dramaturgo Arthur
Miller.
No primeiro número da edição em castelhano – Selecciones –o Reader’s Digest
explicava esta modalidade na forma de uma “Advertência”;
A editorial do Reader’s Digest tem o prazer de recomendar os artigos e serviços
das casas cujos anúncios aparecem nas páginas seguintes. A seção de

102
Carta de H.Valter Blumental, diretor do Committee Brazil, para a OCIAA central (Washington DC).
National Archives and Records Administration (NARA). RG 229 /350/ 75 /34- 06, Box 1596. Rio de Janeiro,
23/9/1943. Código de campo alterado
103
Disponível em: Formatado: Fonte parág. padrão,
http://research.frick.org/directoryweb/browserecord.php?-action=browse&-recid=6644>. Acesso Português (Brasil)
em: 11 dez. 2013.
104 Formatado: Fonte parág. padrão,
O historiador brasileiro Gerson Moura (1984) foi o primeiro a pesquisar as atividades da OCIAA no Português (Brasil)
Brasil. Para investigação que aqui se apresenta, foram consultados os arquivos do Centro de Pesquisa e
Documentação Contemporánea (CPDOC, Rio de Janeiro), dos National Archives and Records Administration Formatado: Português (Brasil)
(NARA, Whashington) e do Archivo Histórico da Cancillería Argentina (Buenos Aires). Formatado: Português (Brasil)
108

anúncios de Selecciones del Reader’s Digest não ocupará em nenhum número


mais de uma quarta parte do total de páginas da revista. Nos anúncios que aparecem
nela estarão representadas as principais casas importadoras e
exportadoras. [...] O produto dos anúncios servirá para melhorar e alargar a revista
Selecciones, a fim que resulte em todo momento de máximo interesse e utilidade
para o leitor. Ao contratar antecipadamente o espaço que desejavam ocupar na seção
de anúncios, as casas anunciantes nos capacitaram para oferecer Selecciones del
Reader’s Digest a preço extraordinariamente reduzido, o que assegura para a revista
uma muito extensa circulação a partir deste, o seu primeiro número105.

Este primeiro número da revista Selecciones del Reader’s Digest


apresentava, também, uma lista dos seus trinta e sete anunciantes, todas grandes empresas
como a General Motors, a Philco, entre outras. A inclusão de ambos os materiais nesta
primeira edição sul-americana reforça a ideia que anima este trabalho: a imbricação dos
diversos elementos que participam dos processos históricos. Assim, publicidade, propaganda,
política, economia e vida doméstica devem ser analisadas de forma articulada, como
componentes inseparáveis do processo histórico.
Tanto nos artigos como nas páginas publicitárias, a revista mantém a certeza de uma
vitória sustentada na superioridade norte-americana. Como afirma Miguel Rojas Mix (2006,
p. 36), a função da mensagem publicitária é fortemente centrada no imaginário do público
destinatário. Milhões de pessoas de regiões carentes vivem seduzidas pela função onírica do
anuúncio publicitário.

Eis o motivo porque estamos em guerra. É para contribuir a ganhar esta gigantesca
luta, que a United States Rubber Company, abrindo um parêntese na sua missão de
paz, pôs-se inteiramente ao serviço das Nações Unidas. Servimos hoje a causa da
Liberdade para continuar servindo ao Bem-estar da humanidade após a Vitória.106 [A30] Comentário: No original está
sem acento?

Desta maneira, a publicidade, os negócios, a guerra e as questões de Estado se


ficaram interligados pela insistente retórica da solidariedade continental. Mas este pan- [A31] Comentário: Estas palavras aqui
ecoam as que apareceram já na página 100
americanismo “integrador das diferenças” estará constantemente sinalizado pelas (“[...]acabaram conformando um complexo
enramado ideológico em que se
pretensões hegemônicas dos Estados Unidos. Em um brevíssimo espaço de tempo – não imbricavam os assuntos de Estado [...]”).
Devemos manter assim ou você prefere
mais do que cinco anos – a propaganda pan-americanista fazer alguma alteração?

105
Tradução livre do original: “La Editorial del Reader’s Digest se complace en recomendar los artículos
y servicios de las casas cuyos anuncios aparecen en las páginas siguientes. La sección de anuncios del Reader'’s
Digest no ocupará en ningún número más de una cuarta parte del total de la revista. En los anuncios que
aparecen en ella se hallarán representadas las principales casas exportadoras e importadoras. […] El producto de
los anuncios servirá para mejorar y ensanchar la revista Selecciones a fin de que haya de resultar en todo
momento de máximo interés y utilidad para el lector. Al contratar anticipadamente el espacio que deseaban
ocupar en la sección de anuncios, las casas anunciantes nos han capacitado para ofrecer Selecciones del Reader’s
Digest a precio extraordinariamente reducido, lo cual le asegura a la revista muy extensa circulación, desde éste,
su primer número”.Selecciones del Reader’'s Digest, número 1, agosto de 1940., p. 106.
106
Anúncio da United States Rubber Company Seleções, edição brasileira. Nº 21, Outubro de 1943. Formatado: Português (Brasil)
109

que marcou os primeiros números latino-americanos de Seleções deixará o lugar para a


propaganda de guerra. Em consonância com os câmbios de contexto – e por isso insistimos na
perspectiva histórica -– a retórica pan-americanista vai deixando o espaço para uma nova
necessidade, a configuração do “inimigo” externo. Um “inimigo” que é descrito, sem sutileza
alguma, como “bárbaro”, “impiedoso”, “bestial”, “débil”, “covarde”, “inferior”, tratando-se
de alemães ou japoneses. A mesma carga ideológica que se imprime nos artigos de interesse
geral está presente nas páginas de publicidade.
Seleções estabelecia um peculiar vínculo de aproximação entre o leitor e a leitora
local e o cotidiano da sociedade norte-americana, a moderna potência que para o público
latino-americano correspondia até então a uma dimensão alienígena, distante. Em tempos em
que se solicitava o sacrifício das mulheres norte-americanas e o seu comprometimento no
esforço de guerra – como na famosa imagem de Rosie The Riveter107–, as versões latino-
americanas de Seleções ressaltavam as vantagens do estilo de vida norte-americano, o
American Way of Life, algo que as imagens traduziam em facilidades no trabalho doméstico, Formatado: Fonte: Não Itálico

sempre para as mulheres. Segundo afirma Nara Widholzer (2005), foi precisamente durante a
Segunda Guerra que se delinearam os contornos da propaganda contemporânea. Ao mesmo
tempo, estimulava-se o desejo por tudo aquilo que não era possível fabricar enquanto durasse
a guerra, devido à escassez e concentração de materiais e de mão- de -obra no esforço “pela
liberdade”. Em maio de 1942, a companhia de produtos elétricos Westinghouse se mostrava
esperançosa: “Todos nós estamos trabalhando por aquele dia em que nossas mãos
possam voltar a criar artigos para um mundo sem guerra”108. O forte investimento
publicitário das indústrias apostava em colocar as novas invenções, decorrentes do esforço
de pesquisa em tecnologia de armamentos, no mercado mundial do pós-guerra. A Vitória
era, por tanto, um negócio a médio prazo. E os países da América Latina, enlaçados
pela “política de boa vizinhança” amarrada ao discurso pan-americanista de
solidariedade continental, conformavam o mais promissor dos mercados. Se o negócio
era bom para as indústrias, também dava lucros imediatos para o governo de Washington,
pois a conquista dos “corações e das mentes” dos vizinhos continentais asseguraria a
consolidação dos tratados de mútua defesa e a desarticulação dos planos que a Alemanha
de Hitler tinha para América Latina. Embora o projeto hegemônico dos Estados Unidos se
chocasse em múltiplas ocasiões com a
107
Um anúncio financiado pelo governo estadunidense mostrava a imagem de uma figura feminina com o
punho direito fechado, levantado, em sinal de força. A imagem era precedida pela frase “We can do it”, apelando
às mulheres que tinham os seus maridos lutando no fronte europeu, e deviam então se ocupar dos menores e
idosos, além de ocupar os postos de trabalho. Formatado: Português (Brasil)
108
Anúncio da Westinghouse Electric International Company. Seleções, edição em português, nº 4, maio
de 1942, páginas publicitárias (s. p.). Formatado: Português (Brasil)
110

resistência do governo de Buenos Aires, os norte-americanos contavam com grande simpatia


entre argentinos e argentinas.

TEMPO E AÇÃO

Com a paz, chegariam os tempos de facilidades e prazeres, e as mulheres dos países


envolvidos no conflito, que circunstancialmente estavam ocupando postos de trabalho,
voltariam, naturalmente, para casa. O American Way of Life se apresentava, assim, na forma
da promessa do retorno ao lar num tempo futuro, ideal. Como afirma Miguel Rojas Mix
(2006, p. 65), “a publicidade fala em futuro indicativo, mas a concretização desse futuro adia-
se indefinidamente, exclui o presente, de maneira tal que elimina qualquer mudança”.
AÀ medida que a guerra se desenrolava, as práticas discursivas se transformavam
nas páginas publicitárias do Reader’s Digest. Por volta de 1943, os textos
anunciavam já a vitória dos Aliados, mantendo a retórica de integração e colaboração pan-
americanista. Um anúncio de outubro de 1943 mostra o desenho de uma jovem mulher,
vestindo avental e toca com babados e rendas, abrindo uma geladeira de grandes dimensões.
O desenho permite visualizar as prateleiras de formas arredondadas no interior do
refrigerador, repletas de alimentos. Nas paredes, armários de lado a lado e do chão ao teto. O
texto do anúncio conecta este estilo de cozinha planejada com certos valores da modernidade
(beleza, conforto, higiene), os quais constituem a promessa do modo de vida americano.
Examinemos este trecho do anúncio publicitário da companhia Republic Steel Corporation, já
apresentado na introdução deste trabalho:

Para o seu lar da vitória, minha senhora. Veja aí “a cozinha de amanhã”. Observe
bem, pois é um símbolo da beleza, conforto e conveniência que devem caracterizar a
sua casa depois de ganha a guerra. Prevêem-se ai algumas inovações que tornarão o
Lar da Vitória de uma comodidade e encanto que nem se sonhava ser possível
(...)[...] esses são os produtos que ajudarão a tornar mais rica e abundante a liberdade
pela qual lutamos juntos. Mas esta vida melhor somente poderá se tornar realidade
depois de termos derrubado as forças da escravidão, com um golpe final e
vitorioso.109.

Este tipo de retórica vitoriosa é uma constante em todas as páginas publicitárias, que
seguem sempre o mesmo roteiro: Vitória → inimigos derrotados → liberdade vencedora →
tecnologia norte-americana→ maravilhas para o futuro → eletrodomésticos para mulheres.

109
Anúncio da Republic Steel Corporation. Seleções, edição brasileira. Nº 21, outubro de 1943, páginas
publicitárias (s. p.).
111

Como elementos de uma equação inequívoca, compõem promessas para o futuro, como se as
mulheres habitassem um tempo sem tempo. Possível, mas ainda intangível. [A32] Comentário: Aqui talvez fosse
mais interessante usar “→” ao invés de “–”
Para cristalizar a ideia do “amanhã”, é frequente a utilização de imagens de crianças. para denotar visualmente a ideia de
sequencialidade. Ex.:
É interessante perceber que a maioria destes anúncios se apresentam sob um título, como se Vitória → inimigos derrotados → liberdade
vencedora → tecnologia norte-americana
tratasse de estórias infantis. Um dos melhores exemplos aparece neste institucional da General → maravilhas para o futuro →
eletrodomésticos para mulheres
Electric, que, sob o título “era uma vez uma linda princesa”, narra o “futuro” de uma suposta
Podemos fazer a alteração ou mantemos o
menina chamada Maria Luiza. O texto aparece embaixo de uma figura desenhada mostrando traço?

uma menina pequena:

No lugar de uma carruagem de abóbora, terá um automóvel de conceito


completamente novo, e um aeroplano tão fácil de dirigir quanto um automóvel. Os
seus sapatinhos não serão de cristal, como os da Cinderela, mas de material plástico.
Mudos e obedientes criados elétricos irão realizar todas as tarefas da casa, pois aos
atuais aspiradores de pó, fogões, lavadoras, ferros e geladeiras elétricas se somarão
muitos outros artefatos domésticos. Sim, assim será o mundo de amanhã, no qual os
nossos filhos viverão melhor que os príncipes e princesas dos contos de fadas, e para
cuja realização os homens de ciência da General Electric e outras importantes
empresas estão já trabalhando em novos descobrimentos e novas aplicações, como
os materiais plásticos, novas ciências, como a eletrônica, e muitos outros inventos
que levarão o bem-estar e a felicidade a todos os lares, em um mundo novo, livre
para sempre das ameaças da tirania e do despotismo.110.

Porém, adverte outro anúncio que toda esta maravilha somente será possível para
quem apoiar a causa Aliada, como explica o texto de uma publicidade da Republic Steel
Corporation: “Mas essa nova era não virá senão depois da vitória, e para alcançá-la é [A33] Comentário: A ausência de
pontuação consta no original?
necessário que os países de América se unam em um esforço supremo para exterminar quanto
antes as forças da tirania e do vandalismo”111.
A maioria dos anúncios publicitários publicados entre 1940 e 1945 coincidem em
afirmar que os aparelhos prometidos (aspiradores, geladeiras, ferros, lavadoras) ainda não
existem, mas que a tecnologia necessária para a sua fabricação já é uma realidade, já está
disponível, e é consequência da pesquisa realizada pelas companhias multinacionais

110
Tradução livre do original: “En vez de una carroza de calabaza, tendrá un automóvil de concepción
completamente nueva, y un aeroplano tan fácil de manejar como un automóvil. Sus zapatitos no serán de cristal,
como los de la Cenicienta, sino de material plástico. Mudos y obedientes criados eléctricos realizarán todas las
tareas de la casa, pues a los actuales aspiradores de polvo, cocinas, lavadoras, planchadoras y refrigeradores
eléctricos se añadirán muchos otros enseres domésticos./ Sí, así será el mundo de mañana, en el cual nuestros
hijos vivirán mejor que los príncipes y princesas de los cuentos de hadas, y para cuya realización los hombres de
ciencia de la General Electric y otras importantes empresas están ya trabajando en nuevos descubrimientos y
nuevas aplicaciones, como los materiales plásticos, nuevas ciencias, como la electrónica, y muchos otros
inventos que llevarán la felicidad y el bienestar a todos los hogares, en un mundo nuevo, libre para siempre de
las acechanzas de la tiranía y el despotismo”. Anúncio da General Electric. Selecciones del Reader`s Digest,
novembro de 1943, páginas publicitárias (s. p.).
111
Publicidade da Republic Steel Corporation, Seleções do Reader's Digest, setembro de 1943, páginas
publicitárias (s. p.). Formatado: Português (Brasil)
112

envolvidas no esforço de guerra, sugerindo uma forma de engajamento. Desta forma, os


leitores e leitoras das edições latino-americanas do Reader’s Digest, potenciais Formatado: Fonte: Não Itálico

consumidores, são ao mesmo tempo partícipes desse esforço pela liberdade, aqui entendido
como “modernidade”. O conforto funciona como uma espécie de gratificação, um “prêmio”
por ter ficado do lado certo. Talvez por isso, os anúncios insistam no valor desse futuro.
Esta ideia de modernidade está aliada a algumas noções básicas, como elegância,
conforto, higiene e beleza. Estes valores também constam dos artigos publicados na revista,
apresentados como novidade inclusive para o público estadunidense. Na seção “Open
Culture”, vemos que estes novos atributos podem também ser funcionais:

Observe o uso da cor no equipamento de uma cozinha moderna. Inclusive as


fábricas e a sua maquinaria, ou o melhor da cristaleira Woolworths, estão-se
fabricando com a intenção de que sejam observados. A embalagem dos produtos foi
revolucionada. Pouco a pouco estamos aprendendo que os utensílios podem ser
belos, aprendendo que milhões de pessoas gostam de que sejam belos.112.

A tecnologia criada durante a guerra pelas indústrias estadunidenses teria sua


aplicação nos tempos de paz. Às técnicas para desidratar os alimentos – como o leite e o
café,- para alimentar as tropas que combatiam do outro lado do oceano- – se somaria o
desenvolvimento de novos materiais, como o nylon, que permitiu agasalhar aos soldados
aliados vestindo uma “segunda pele” de alto poder de isolamento térmico. Enquanto
trabalhavam, as indústrias já desenhavam o seu aproveitamento para um mercado concebido
como feminino. O desenvolvimento de tecnologias para o tratamento de tecidos, como no
caso do impermeabilizante Koroseal, permitiria às indústrias a elaboração de materiais mais
resistentes e fáceis de limpar, e, por tanto, adequadas para a modernização da vida cotidiana:

Quando o atual conflito acabar (tal vez antes), o Koroseal* voltará a ocupar o seu
importante lugar na vida civil. Enquanto isso, será empregado em grandes quantidades
em cabos de encouraçados e outros equipamentos militares. Pouco ou nada falta,
pois, para cortinas de banho, capas de chuva, sombrinhas e muitos outros artigos
impermeáveis. Algum dia, não somente poderão as mulheres usar meias
revestidas com Koroseal, como também um novo tipo, feito de seda genuína
e fibras de Koroseal. Não se romperão mesmo que sejam furadas com tesouras
(…) e serão tão transparentes como a seda mais fina. (…) A produção de
Koroseal foi multiplicada

112
Tradução livre do original: “American Culture: Open to the Public” The Reader’s Digest, Pleasentville,
NY, agosto de 1940, p., 113-116. “Note the gay use of color in the equipment of a modern kitchen. Even
factories and their machinery –- or intended the best of Woolworths glasswere –- are being built as if intended
to be looked at. The packagging of goods has been revolutionized. Little by little we are relearning that useful
things can be beautiful, learning that millions of people like them to be beautiful”. Formatado: Inglês (Estados Unidos)
113

repetidas vezes para satisfazer as necessidades militares. Mas as investigações para o


futuro continuam, e algum dia os produtos Koroseal voltarão ao mercado.113.

Do outro lado do espelho, os homens são os protagonistas do tempo presente. Como


responsáveis por garantir o futuro prometido, fazem coisas relevantes como salvar a
humanidade, derrotar as forças do mal, garantir a liberdade. Sem o seu sacrifício não haverá
futuro. São eles os sujeitos da história, a eles cabe a ação, forjar a realidade. As mulheres, em
casa, esperam e tecem, como sugere um anúncio publicitário da ESSO na edição brasileira de Formatado: Fonte: Não Itálico

dezembro de 1944:

Esta é a imagem do carinho, da esperança e da fé. Enquanto os seus dedos tecem o


agasalho de lã que protegerá ao filho combatente, o seu pensamento o acompanha a
terras longínquas, onde ele foi contribuir com a sua parcela de esforço para a
construção de um mundo melhor. A lã que agasalha aos combatentes da Democracia
nos climas frios é resultado da nossa pesquisa.114 .

Os homens são, pois, dotados de ação. Nas páginas de publicidade de Seleções, os


veremos pilotando aviões, helicópteros e tanques. Saltam das lanchas, se introduzem na selva,
operam equipamentos de sofisticada tecnologia, planejam complicadas estratégias. As
imagens das páginas publicitárias de Seleções tecem uma linha contínua com as cenas dos
filmes de Hollywood produzidos na mesma época. Os soldados se mostram sujos, suados,
com a barba por fazer, e quase contrastam com os personagens masculinos responsáveis pela
tomada de decisões nos altos mandos das próprias forças armadas, retratados nos filmes de
forma pulcra e ordenada. Têm em comum, porém, o espírito da missão libertadora.
Através de representações sexuadas, as imagens estabelecem narrações assimétricas.
Num mesmo número da revista encontramos duas publicidades diferentes de um mesmo
anunciante, as canetas EverSharp. Seguindo um padrão comum, na primeira delas aparece
uma jovem sentada frente ao retrato de um -– igualmente jovem -– soldado. Tudo parece
indicar que se trata do marido ou namorado. O texto anuncia no seu título: “Palavras mágicas

113
Tradução livre do original: “Cuando termine el actual conflicto (tal vez antes), el Koroseal* volverá a
ocupar su importante puesto en la vida civil. Mientras tanto, será empleado en grandes cantidades en cables de
acorazados y otros equipos militares. Poco o nada queda, pues, para cortinas de baño, capas para la lluvia,
sombrillas y muchos otros artículos impermeables./ Algún día, no solamente podrán las mujeres usar medias
revestidas con Koroseal, sino una nueva clase hecha de seda genuina y fibras de Koroseal. No se romperán
aunque sean pinchadas con tijeras, como en el grabado, y serán tan transparentes como la seda más fina./ (…) La
producción de Koroseal ha sido multiplicada repetidas veces para satisfacer las necesidades militares. Pero las
indagaciones para el futuro continúan, y algún día los productos Koroseal volverán al mercado”. The
B.F.Goodrich Company, División Internacional, Akron, Ohio. Selecciones del Reader's Digest, edição em
castelhano, agosto de 1943, páginas publicitárias (sem numeração). Formatado: Português (Brasil)
114
Publicidade da Esso - Standard oil Company. Seleções do Reader's Digest, edição brasileira, nº 35,
dezembro de 1944, páginas publicitárias (sem numeração). Formatado: Português (Brasil)
114

de amor”.115. A linguagem empregada no anúncio desconsidera a participação da jovem no


ato da escritura e a situa num território irreal: “até as ideias vêm ao pensamento com mais
rapidez quando se escreve com uma EverSharp!”. E o que escrevem as jovens? Cartas de
amor para os soldados. A mulher-escritora desaparece como sujeito da ação de escrever,
assim como o seu propósito, transferido para uma figura masculina. O segundo anúncio
oferece a imagem de dois soldados acionando uma metralhadora, sob o título “Homens de
Ação”, que “utilizam os instrumentos que lhes brindam também funcionamento rápido, onde
quer que se utilizem... até a bordo de um avião a vários milhares de metros de altura!” O texto
que acompanha a imagem utiliza uma linguagem de guerra, compara as canetas Eversharp
com “armas de repetição automáticas” (Figura 3).116. Ao longo do período de que trata este
estudo (1940-1945) é frequente o uso desta linguagem, seja na forma de comparações (como
nos citados anúncios da Eversharp) ou de metáforas. Formatado: Fonte: Itálico
Formatado: Fonte: Itálico

FIGURAS 3 E 4 – ANÚNCIOS DA EVERSHARP INC. CHICAGO USA [A34] Comentário: Existe algum
motivo para que figuras sejam
denominadas 3 e 4, se são as primeiras a
aparecerem no capítulo? Antes delas
deveria haver alguma outra?
Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado
Formatado: Fonte: Não Negrito
[A35] Comentário: Talvez fosse mais
interessante inverter a ordem destas duas
imagens: colocar a da moça à esquerda e
dos soldados à direita, uma vez que o
anúncio com a moça é citado primeiro
acima. Podemos fazer a inversão ou
mantemos dessa forma?

Figuras 3 e 4: Anúncios da Ever Sharp Inc. Chicago USA

115
Anúncio da Eversharp Inc. Chicago USA. Seleções, versão brasileira, maio de 1942, páginas
publicitárias (sem numeração). Formatado: Português (Brasil)
116
Anúncio da Eversharp Inc. Chicago USA. Seleções, versão brasileira, agosto de 1942, páginas
publicitárias (sem numeração). Formatado: Português (Brasil)
115

FONTE: Seleções, versão brasileira, maio e agosto de 1942, respectivamente, páginas publicitárias (sem Formatado: Fonte: Não Negrito
numeração).
Formatado: Centralizado

À medida que os Aliados ganhavam e as chances de vitória ficavam mais


claramente definidas para os Estados Unidos, as páginas de publicidade das edições latino-
americanas do Reader’s Digest ficavam igualmente assertivas. Os eletrodomésticos
passavam a ser protagonistas do iminente mundo de pós-guerra, e as mulheres voltariam aos
seus postos de trabalho nos equipados e modernos lares estadunidenses. Por sua vez, as latino-
americanas contavam com a promessa de gozar do mesmo conforto nos seus lares de classe-
média. É importante lembrar que as fábricas de armamentos brasileiras – empenhadas também
no esforço de guerra a partir dos tratados de 1941 entre os presidentes Getúlio Vargas e
Franklin Delano Roosevelt – empregavam majioritariamente mulheres.
Como foi mencionado, é recorrente o uso de representações de crianças do sexo
feminino, torcendo por um “amanhã” que somente virá com a vitória dos Aliados. Esta
utilização aparece com maior frequência à medida que cresce a certeza da derrota do Eixo,
através de uma retórica que mescla noções de conforto, modernidade, superioridade militar e
democracia, como se se tratasse da mesma coisa. Anúncios longos, em que o texto disputa
espaço com a imagem, e onde o argumento é reforçado com valores universais, como a
felicidade. Por exemplo, o anúncio da General Electric da edição em castelhano de março de
1943, onde não se publicita nenhum aparelho em particular, mas a promessa de futuras
invenções. É interessante se deter na questão de classe, trabalhada neste anúncio como algo
ausente, mas cuidadosamente oculta por detrás de uma retórica igualitária (“dinheiro não é
tudo”; “todas as casas serão melhores”; os produtos serão “mais baratos e acessíveis”):

Quando eu for uma senhora.../Terei uma linda casa... Claro que sim, Carmencita.
Uma casa preciosa. Não sabemos como será, exatamente. Mas será uma casa
maravilhosa, porque todas as casas serão melhores que as de hoje, em muitos
sentidos. E haverá nelas muitas coisas com as que sequer sonhamos hoje.... /Terei
um estupendo automóvel... Ou um aeroplano. Ou, quem sabe, algo parecido com o
famoso tapete mágico... /Os nossos atuais telefones, e rádios, e refrigeradores
pareciam coisas de mágica quando os vimos pela primeira vez… /Terei muitíssimo
dinheiro... Dinheiro? Dinheiro não é tudo, Carmencita. Embora, então, cada centavo
e cada peso valerão mais que hoje. E o que mais?... /E serei muito feliz, como a
minha mãe! Mais feliz ainda, Carmencita. Porque neste preciso momento,
laboriosos cientistas trabalham para lograr novos descobrimentos que nos façam
mais felizes, e, nas fábricas, os engenheiros idealizam novos procedimentos para
baratear os produtos e fazê-los mais acessíveis e baratos que agora. Os teus sonhos
estão se cumprindo de verdade porque em muitas empresas como a General Electric
os homens trabalham para que o mundo do amanhã seja melhor do que o presente.
Os produtos da General Electric de E.U.A se vendem no mundo todo por
116

intermédio dos representantes da International General Electric Company./


[Logotipo do Pan-americanismo] As Américas Unidas, Unidas vencerão.117.

Também neste anúncio a felicidade se plasma como uma promessa: “o mundo do


amanhã será melhor que o do presente”, possibilitando assim a negociação da qual toda esta
felicidade depende: a vitória aliada e a derrota do Eixo, tal como aparece gravado no logotipo
do Pan-americanismo, usual nestes anúncios institucionais do período da guerra. É também
interessante o recurso à solidariedade à causa pan-americana em um artigo institucional, onde
se menciona o empenho de “outras empresas” (por tanto, concorrentes), o que reforça a noção
missionária da indústria de eletrodomésticos em geral, sugerindo que fabricar (e talvez
consumir) este tipo de produtos é uma forma de aderir ao esforço de guerra estadunidense. O
citado “amanhã” reforça os papéis de gênero: “em empresas como a General Electric os
homens trabalham para que o mundo do amanhã seja melhor que o do presente”; “serei muito
feliz, como a minha mãe”.
A associação entre tecnologia, ciência, e felicidade contribue para a consolidação
da imagem positiva de Estados Unidos, através de sua indústria e desenvolvimento: “essa
ciência fabulosa -– a eletricidade -– vai contribuir de mil formas para a nossa felicidade: vai
nos trazer a televisão, um cinema melhor, mais proteção à saúde, melhores alimentos e águas
mais puras” 118.
É também interessante perceber que as estratégias discursivas usadas pela revista,
tanto nos artigos como nos anúncios, parecem muito claras e diretas, evitando linguagens ou
termos ambíguos. Alguns destes anúncios explicitam a articulação dos seus objetivos
comerciais e ideológicos. Um bom exemplo pode ser a publicidade da Westinghouse, na
edição brasileira de maio de 1944, quando o desfecho favorável da causa aliada era já
previsível. Aqui se articulam vários dos componentes que interessam para este estudo, sob um
sugestivo título, “A Guerra tem o seu lado bom”:

[...] quando tivermos ganho esta guerra, o distribuidor da Westinghouse oferecerá a


V. S. uma infinidade de produtos que constituirão o melhor da vida moderna. No
ínterim, todos os nossos esforços estarão concentrados na tarefa dos homens livres:
alcançar a Vitória.119.

117
118
Selecciones del Reader's Digest, setembro de 1943, páginas publicitárias (s. p.). Formatado: Espanhol (Espanha-
Tradução libvre do original: “Esa ciencia fabulosa – la electricidad -– ha de contribuir de mil formas a internacional)
nuestra felicidad: nos traerá la televisión, mejor cie, mayor protección a la salud, mejores alimentos y aguas más
puras”. Anúncio da Westinghouse Selecciones del Reader’s Digest, setembro de 1943, páginas publicitárias ( s.
p.). Formatado: Português (Brasil)
119
Anúncio da Westinghouse. Seleções do Readers Diges't, versão brasileira, maio de 1944, páginas
publicitárias (s. p.). Formatado: Português (Brasil)
117

A maioria destes anúncios publicados a partir de 1943 correspondem à transição da


guerra para a paz, entendida pelos anunciantes como a realização da vitória aliada.
Novamente, os valores da modernidade se articulam em um discurso fluido, sem tropeços
semânticos, em que a guerra parece ser o preço necessário para usufruir dos avanços
tecnológicos, entendidos como significantes do bem-estar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas últimas décadas, variados estudos feministas destacam que o gênero não
compreende apenas a simples dicotomia masculino-feminino, mas que se cruza com uma rede
de elementos vinculados às estruturas de classe, poder e etnicidade, as quais, por sua vez,
estruturam as relações sociais (CECCHETTO, 2004). Sob esta mesma perspectiva, insiste-se
na necessidade de romper com as polarizações entre os gêneros a fim de desnaturalizar os
papéis socialmente sexuados. Na expressão de Joan Scott, tomando nota da recomendação de
Michel Foucault, desnaturalizar as categorias sobre as quais descansam as estruturas de poder
é desnaturalizar a sua aparente estabilidade, por isso, é necessário historicizá-las (SCOTT,
2006).
Desnaturalizar o aparente arraigo histórico daquilo que sugere continuidade no nosso
presente, implica em reconhecer uma diversidade de modelos para o que conhecemos como
“masculino” e “feminino”, a partir da compreensão de que tais estilos correspondem aos
diferentes modos com que homens e mulheres se implicam na política, na arte, na cultura e na
economia do seu tempo, para poder corresponder a valores cambiantes, que aparecem e
desaparecem ao longo dos anos.
Os anúncios publicitário de Seleções resultaram de uma estratégia do governo
estadunidense para financiar as edições latino-americanas da revista, ao mesmo tempo em que
difundiam os valores do American Way of Life como uma promessa para quem aderisse à
causa aliada. Para sua implantação, apresentavam para as mulheres latino-americanas um
modelo sedutor e complacente do conforto associado à modernidade. Ofereciam, assim, a
promessa de uma vida doméstica, sem sobressaltos, que para as latino-americanas se traduzia
em conforto e bem -estar. Mas é importante lembrar que esse modelo doméstico se
distanciava notoriamente dos movimentos feministas estadunidenses das primeiras décadas do
século XX. Da mesma forma, nada tinha a ver com o então papel desempenhado pelas
mulheres dos países envolvidos no conflito nas fábricas de armamento, onde
substituíam os homens, que se encontravam no fronte de batalha.
118

Assim também, o modelo de virilidade que vemos nos anúncios publicitários de


Seleções, mudará rapidamente depois da vitória aliada, para oferecer uma imagem pulcra,
asseada, perfumada, muito distante dos tempos da guerra. Esse modelo de masculinidade do
soldado heroico, destemido, forte e potente deixaria de ter utilidade econômica. Depois da
Vitória, o emergente mercado de cosmética masculina solicitará uma mudança radical de
imagem. Como lembra Diana Crane (2007), durante a Segunda Guerra Mundial irromperam
tumultos raciais, resultantes dos conflitos entre soldados e marinheiros brancos e pessoas de
outras “raças”, que vestiam terno zoot, que a autora descreve como “um modelo de paletó até
o joelho acompanhado de uma calça afunilada, larga na altura dos joelhos e justa na bainha”.
Ainda segundo Crane, usar o zoot representava a resistência a uma guerra que muitos afro-
americanos e hispanos se negavam a apoiar. Na França, para os jovens era um símbolo da
resistência frente à ocupação alemã.
É importante evitar uma imagem homogênea do passado, que possa resultar numa
visão unificada da cultura. A masculinidade apresentou diferentes imagens ao longo do
tempo, assumiu diferentes formas entre diferentes classes, mas sempre [A36] Comentário: Qual o sujeito de
“vinculam”? Nesta frase ele não fica tão
correspondendendo à expectativa social. Estas imagens, de alguma forma, se retroalimentam claro.

pela própria multiplicação. Como afirma Nara Widholzer, aos publicitários parece
natural associar invariavelmente à mulher os utensílios domésticos, de modo que os
consumidores “não vêem necessidade de questionar a convencional distribuição de atribuições
para homens e mulheres, uma vez que se apóia no senso comum” (WIDHOLZER, 2005, p.
23).
A perspectiva histórica permite observar a articulação entre o contexto político e a
vida cotidiana. Vemos como os anúncios do Reader’s Digest sofrem mudanças ao longo
do período 1940-1945, que corresponde à participação dos Estados Unidos naSegunda
Guerra. Tais mudanças poderiam ser pensadas em três etapas: a primeira de las desde o
lançamento da edição em castelhano (1940),; marcada pela linguagem de
solidariedade continental própria do pan-americanismo, que se corresponde aos interesses
econômicos de Estados Unidos na região sul.
Uma segunda etapa, a partir de 1942, e nquanto se travavam as batalhas decisivas no
fronte europeu, aparece caracterizada por uma linguagem mais agressiva com os inimigos,
configurando os dois lados de forma polarizada e carente de sutilezas. Aqui é frequente
a demarcação das noções de “modernidade”, associadas ao “lado certo”. Valores que
se repetem com insistência e reforçam o modelo: progresso, tecnologia, velocidade,
eficácia, higiene, praticidade, automatização, saúde, economia de energia e de trabalho;
todos igualmente conectados com a noção da modernização alcançada pelos Estados Unidos.
119

A partir de 1943, quando a certeza da vitória vai se consolidando, os anúncios falam


menos de artefatos ou materiais específicos, assumindo um formato mais institucional. Aqui
se perfila a promessa para o futuro. Os lares dos países aliados aos Estados Unidos poderão
gozar de toda aquela tecnologia desenvolvida para a guerra, agora adaptada para os tempos de
paz.
Embora em nenhum momento desapareça a retórica pan-americanista, ela se
apresenta com mais vigor entre 1940-1942 – quando o governo estadunidense se aproxima
mais estreitamente da América Latina, particularmente do Brasil de Getúlio Vargas –- e entre
1944-1945 –, com os momentos finais do conflito e o visível debilitamento do Eixo.
As páginas de Seleções mesclam categorias aparentemente tão distantes como
publicidade, economia, negócios, tecnologia, guerra, política, “raça” e gênero. Parece
oportuno evocar a recomendação de Joan Scott (1986, p. 156), de conceber os processos
históricos de tal modo interligados “que não poderiam estar separados”.

REFERÊNCIAS

Formatado: Fonte: Não Negrito

CANNING, Peter. American dreamers: the Wallaces and Reader’s Digest – a insider’s [A37] Comentário: Não consta no
story. New York: Simon & Schuster, 1996. texto, assim como outros títulos abaixo
indicados. Talvez fosse mais interessante
colocar como “fontes” ou “leituras
sugeridas” do que nas Referências.
Outros autores que não aparecem citados
CECCHETTO, Fátima Regina. Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: no texto: BETHELL, 2002; CUEVAS
FGV, 2004. CANCINO, 1989; MAY, 2008; MOURA,
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Project na propaganda comercial da revista Seleções do Reader’s Digest (1942-1945). [A38] Comentário: É preciso colocar
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Ayer, 2º semestre, n. 62, p. 89-110, 2006. [A39] Comentário: Faltou acrescentar
volume e número do periódico.
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122

CAPÍTULO 5 – CONFORT PARA EL PUEBLO Y LIBERACIÓN PARA EL AMA DE


CASA: GÉNERO, CONSUMO Y HELADERAS EN ARGENTINA (1930-1960)120

Inés Pérez Formatado: Espanhol (Espanha-


internacional)
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
FIGURA 1 – FOTOGRAFÍA DE PRIMERA COMUNIÓN
Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Espaçamento entre
linhas: simples
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Espanhol (Espanha- internacional)
Formatado: Fonte: Não Negrito

Figura 1 – Fotografía de primera comunión


FUENTE: Fotografía familiar, alrededor de 1963 – Cortesía de una entrevistada. Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm
INTRODUCCIÓN

Las imágenes presentadas arriba muestran la celebración de una primera comunión


que tuvo lugar en torno a 1963: una niña en un vestido típico, rodeada de sus tíos y su prima
pequeña. La escena tiene lugar en el comedor de la casa de los tíos de la niña (vendedor y ama
de casa, respectivamente). Detrás de ellos, la heladera se erige como un elemento más del
cuadro, y no uno menor. Las personas retratadas están dispuestas alrededor del aparato: la
heladera es prácticamente otro miembro de la familia. Su lugar, tanto físico como simbólico,
no es extraño. A diferencia de lo ocurrido en Estados Unidos o Europa (WAJCMAN, 1994;
JACKSON; Y MOORES, 1995; NICKLES, 2002), en la Argentina de mediados del siglo
veinte, la heladera se encontraba a menudo en el comedor y era adornada con distintos

120
Una versión de este artículo fue publicada en inglés en el Journal of Consumer Culture, v. 12, n. 2, Formatado: Espanhol (Espanha-
2012, p. 156-174. internacional)
123

objetos: flores, carpetas, fotos familiares e incluso pequeñas estatuillas. Si la heladera fue
diseñada para estar en la cocina, ¿cómo llegó al comedor y al centro de la vida familiar? ¿Qué
desplazamientos materiales y simbólicos explican el lugar que tiene en esta imagen? ¿Cuáles
fueron las consecuencias de estos viajes en relación con la visibilidad de las tareas
domésticas?
En Argentina, la promoción del consumo de electrodomésticos cobró impulso en la
prensa a partir de mediados de la década de 1930 (BONTEMPO, 2006). En 1936, las heladeras
de uso doméstico comenzaron a fabricarse de forma estándar en la Argentina, en el marco de un
proceso de industrialización que se desarrolló simultáneamente al crecimiento de la demanda
local (BELLINI, 2009). Sin embargo, las ventas, caracterizadas por profundas diferencias
regionales, se mantuvieron bajas hasta los años 1950 y 1960, cuando el nivel de la producción
nacional aumentó. La producción nacional alcanzaría cifras importantes a mediados de siglo,
pasando de 40.000 unidades anuales en 1950 a 130.000 en 1955, y a 206.000 en 1960
(DORFMAN, 1983). En 1947, sólo el 3% de los hogares argentinos tenía uno de estos aparatos,
una tasa comparable a la de otras latitudes: en 1948, sólo el 2% de los hogares británicos tenía
una heladera eléctrica (BELLINI, 2009, p. 117). En 1960, este porcentaje alcanzaba al 39,25%
de los hogares argentinos. De acuerdo con el Consejo Técnico de Inversiones, para 1969, el
80% de los hogares con electricidad tenía una heladera eléctrica. Sin embargo, en 1960 (sólo
tres años antes de que se tomaran las fotografías reproducidas arriba), sólo el 42% de los
hogares en la provincia de Buenos Aires tenía un artefacto de este tipo.
El aumento en el consumo de heladeras y otros artefactos domésticos en la Argentina
se asemeja al observado en otros países. Al igual que en la Europa de posguerra y en otros
países de América Latina, el american way of life se convirtió en un elemento importante en
la construcción de un ideal de domesticidad, donde el consumo centrado en el hogar y la
familia ocuparon un lugar preeminente (DE GRAZIA, 2005; SCRIVANO, 2005; MORENO,
2004). A pesar de que las imágenes utilizadas para promover el consumo de estos aparatos se [A40] Comentário: Não é a mesma
data que está na referência.
inspiraban en el modelo americano, la extensión de su uso dio lugar a lecturas locales. El
aumento en el consumo de heladeras y otros electrodomésticos se apoyó en diversas
imágenes, entre las que dos ganaron centralidad: en primer lugar, la promesa de confort en el
entorno doméstico y de una liberación de la ama de casa; en segundo lugar, una estética del
hogar “popular”, que trascendería los contextos temporales y políticos en los que nació, y
marcaría una diferencia respecto de los cánones del buen gusto de los sectores medios más
acomodados.
124

Si en la década de 1930, las “maravillas eléctricas” eran presentadas como parte de


un hogar lujoso, en las décadas que siguieron, estos artículos fueron incluidos en una retórica
de popularización del confort. Los años de la “democratización del bienestar” (TORRE;
PASTORIZA, 2002) se han caracterizado por un importante crecimiento de la clase media y
la búsqueda de nuevos signos de distinción, tanto por los que siempre se habían identificado
con la clase media como de los “recién llegados” (ADAMOVSKY, 2009). El proceso de
domesticación (SILVERSTONE, 1996) de los nuevos objetos se basó en la apelación a un
público femenino, lo que otorgó una nueva visibilidad pública a las amas de casa en tanto que
consumidoras (MILANESIO, 2006; ELENA, 2006). ¿De qué modo las promesas de bienestar
y de liberación del ama de casa cambiaron las expectativas de consumo y las representaciones
del trabajo doméstico? ¿Qué lugar ocuparon los electrodomésticos en la imagen del “confort
para el pueblo” y en las estrategias de diferenciación de la clase media en crecimiento?
¿Cómo se articularon género y clase en ellas?
En el estudio del consumo (que incluye los actos de compra, uso, mantenimiento y
descarte) (CAMPBELL, 1995), se han señalado las diferencias entre el diseño y el uso de
aparatos. Si tales diferencias pueden ser leídas en clave de género (MARTÍNEZ; Y AMES,
1997; HOROWITZ; Y MOHUN, 1998; COCKBURN; Y FÜRS-DILIC, 1994), el caso
analizado aquí también exige la consideración de la tensión entre los diseños y usos
desarrollados en diferentes contextos espaciales y temporales. Los primeros refrigeradores
eléctricos fueron diseñados décadas antes de que sus ventas se generalizaran en Argentina (y
en América Latina en general). ¿Qué significados se les atribuyeron a estos bienes en este
contexto? ¿Qué lugar tuvieron en la creación de distancias sociales?
En este artículo, me acerco a estas preguntas a través de las representaciones
presentes en 45 relatos de vida. Llevé a cabo 70 entrevistas a 45 sujetos (29 mujeres y 16
hombres). La selección de los entrevistados estuvo orientada a dar cuenta de la
heterogeneidad de experiencias de modernización del hogar dentro de un espacio limitado.
Todos los entrevistados residieron en Mar del Plata durante el período bajo análisis. Hacia
mediados del siglo XX, esta ciudad se convirtió en la meca estival de la clase media (TORRE;
PASTORIZA, 1999). Los chalets de verano equipados con las innovaciones tecnológicas más
modernas reproducían el confort cotidiano en el contexto de las vacaciones, acercando al
mismo tiempo los “modernos” modos de habitar a la población de Mar del Plata. Para la clase
media provinciana, la proximidad al estilo de vida porteño era un signo de estatus.
Busqué incluir sujetos de diferentes edades (el mayor nació en 1918 y la más joven,
en 1965) con el propósito de rastrear las diferencias generacionales en la experiencia de la
125

tecnificación del hogar. También incluí informantes de diferentes orígenes nacionales, como
italianos y belgas, y personas de otras regiones argentinas, por ejemplo, la provincia de
Santiago del Estero, y otras zonas de la provincia de Buenos Aires, así como nativos de Mar
del Plata (también, en la mayoría de los casos, los hijos de inmigrantes). Todos los
entrevistados se instalaron en Mar del Plata antes de la década de 1960. Sitúo las
representaciones rastreadas en los relatos construidos por los entrevistados en relación a otros
discursos de la época, buscando relaciones intertextuales entre ellos. He trabajado con un
corpus de varias revistas de amplia circulación de este período, centrándome en publicidades
de heladeras eléctricas. Incluí revistas dirigidas a un público general (Mundo Peronista, Rico
Tipo), a un público femenino (Para ti, El Hogar), y un público masculino (Hobby, Mecánica
Popular). En el corpus estudiado, también incluí Casas y Jardines, una de las revistas de
decoración más importantes en el país.
En las dos secciones que siguen, examinaré las condiciones en las que tuvo lugar la
expansión del consumo de heladeras eléctricas en Argentina, convirtiendo a este artefacto en
una “necesidad”. En la segunda sección del artículo, analizo los significados atribuidos a este
aparato por quienes podían permitirse comprarlo.

“DEMOCRATIZACIÓN” DEL CONFORT

Las familias argentinas van teniendo heladeras y lavarropas casi sin excepción. Las
amas de casa se van liberando de las pesadas tareas del hogar, ya que esos y otros
adminículos mecánicos las hacen más llevaderas y gratas. Los alimentos se
conservan mejor y la familia obrera argentina ahorra dinero y salud como
consecuencia. Quizá alguno todavía piense que esos adelantos están desvinculados
de la conducción político social del país por parte del gobierno y que son regalos
que la técnica hace al hombre a esta altura de los tiempos. A ese podemos
preguntarle cuántos pueblos del mundo, con excepción de los Estados Unidos y
algunas naciones europeas – no muchas – cuentan realmente con estos regalos de la
técnica. Las comodidades y ventajas que la técnica ofrece son allí gozadas por los
privilegiados de siempre, pues esos pueblos no tienen la suerte del nuestro, en lo que
a justicia en la distribución de la riqueza se refiere. Argentina ya es un pueblo
moderno que cuenta con todas las ventajas que la técnica ofrece, y esas ventajas han
llegado a las más humildes capas sociales del país gracias al genio de un Presidente
que es el ejemplo del mundo y el orgullo de los argentinos.121. Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)

Este texto fue publicado en 1955 en una revista popular de la época, en la que se
presentaba al gobierno peronista como el agente de la democratización del bienestar. En este
pasaje, heladeras y lavarropas formaban parte de una promesa de confort para el pueblo y
liberación para las amas de casa. Los artefactos para el hogar y la figura del ama de casa

121
Formatado: Espanhol (Espanha-
“Confort para el pueblo”, Mundo peronista, 1 de abril de 1955, p. 31. internacional)
126

ganaron un nuevo lugar en el centro de las consideraciones públicas, no sólo en Argentina sino
también en otros lugares del mundo en la segunda mitad del siglo XX. El modelo de la casa
moderna que surgió después de la Segunda Guerra Mundial respondía a los estándares de
consumo de la clase media norteamericana, cuyo centro era la cocina (LAWRENCE-ZÚÑIGA,
2004; DE GRAZIA, 2005). El lugar ocupado por los artefactos domésticos, junto con el modelo
del ama de casa como consumidora, adquirió algunas singularidades en el contexto local. En
Argentina, la oposición a partir de la que se introdujo la domesticidad en la disputa por modelos
de desarrollo contrastaba el país de los “privilegiados de siempre” con el de la nueva argentina
en la que todos eran (o podían ser, en la medida del propio esfuerzo) “pudientes”.

Antes nadie soñaba siquiera con tener su heladera, su aspiradora y otros implementos
que facilitan la vida hogareña: eran privilegios de los pudientes. Hoy todos somos
pudientes en la medida de nuestro propio esfuerzo, que se nos reconoce gracias a
Perón y todos queremos esas cosas, como queremos levantar nuestra vivienda.122.

La “democratización” de los artefactos para el hogar, y en particular de las heladeras,


implicó mayores facilidades para acceder a bienes asociados previamente al confort de los
“pudientes”, impulsadas en buena medida por el crecimiento de los salarios reales y la
disminución de rubros como la vivienda, la alimentación y el vestido en el gasto de los
hogares de sectores medios y trabajadores (RAPOPORT, 2003; AROSKIND, 2003; BELINI,
2009). La producción local de estos productos comenzó a desarrollarse en la década de 1930,
en el contexto de una crisis económica en la que el Estado Nacional tomó un lugar más
destacado en la economía mediante la protección de la industria local. Según Claudio Belini
(2009), la sustitución de electrodomésticos importados por otros de fabricación local sólo
duró un corto período de tiempo. Una mejor explicación para el crecimiento de la industria
local se encuentra en el aumento de la demanda interna que caracterizó las décadas siguientes.
El aumento de la demanda de éstos y otros bienes duraderos se incrementaría a finales de
1940, cuando el poder adquisitivo de la clase media y trabajadora aumentó, lo que permitió
una diversificación del consumo que caracterizó al gobierno peronista y los siguientes
gobiernos “desarrollistas” (RAPOPORT, 2003; MARSHALL, 1981).
Sin embargo, en este tiempo, la “necesidad” de las heladeras era aún cuestionable.
De hecho, durante los primeros años del gobierno peronista, las políticas industriales no
otorgaron facilidades especiales a la producción de heladeras. Entre 1946 y 1949, los
préstamos a la industria de la refrigeración fueron poco relevantes, y la competencia con los
122
“Capítulo XV del Segundo Plan Quinquenal: Energía Eléctrica”, Mundo Peronista, 13 de Septiembre Formatado: Espanhol (Espanha-
de 1953, p. 41. internacional)
127

productos importados era fuerte. En julio de 1951, por ejemplo, el Banco Central calificó la
producción de heladeras como “prescindible”, lo que dio lugar a una serie de gestiones por
parte de los empresarios para eliminar las restricciones que dicha calificación suponía
(BELINI, 2009, p. 126).
No obstante, y a pesar de no haber sido beneficiaria preferente de los créditos del
Banco Industrial hasta 1954, la producción local de heladeras fue favorecida gracias a las
restricciones al comercio del gobierno peronista, a la concesión de permisos para importar
partes, y a los tipos de cambio preferenciales para la compra de maquinaria. La presión ejercida
por los empresarios del sector con el tiempo llevaría a que esta industria fuera declarada “de
interés nacional”, en 1954. Dicha industria fue finalmente calificada como esencial, cuando se
consideró necesario reducir los costes de producción de las heladeras para hacer “posible su
adquisición por parte de un sector más amplio de la población” (BELINI, 2009, p. 130).
La prioridad otorgada al confort doméstico y a la tecnificación del hogar puede
también rastrearse en la importante obra pública del período destinada al abastecimiento de
agua, electricidad y gas a una proporción sustancialmente mayor de las viviendas del país.
Así, entre 1946 y 1953, el consumo eléctrico creció un 45%. El consumo residencial de
energía eléctrica continuó creciendo de manera sostenida entre 1950 y 1980, duplicándose
cada 10 años.123. La intensificación del uso de energía eléctrica es explicada, al menos en
parte, por la disminución relativa de su precio en relación al índice general de costo de vida.
En este sentido, tomando como base 1943, se observa que, para 1957, mientras el costo de la
energía eléctrica había aumentado un 247%, el nivel general del costo de vida había alcanzado
un 956,1% respecto de la fecha de base.124. Para 1960, casi el 78% de las viviendas de la
provincia de Buenos Aires contaba con energía eléctrica, una proporción superior a la del total
del país (que para esa fecha era del 69%).125. Mar del Plata, por su parte, muestra un acceso Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
más temprano a este servicio. Para esa fecha, el 93% de las viviendas contaban con él. 126 Las
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
décadas de 1960 y 1970 mostraron un importante crecimiento del consumo de electricidad en
Formatado: Fonte: Não Negrito,
esta ciudad: entre 1965 y 1980, el consumo residencial de energía eléctrica se triplicó.127 Itálico
Formatado: Espanhol (Espanha-
internacional)
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
123
Anuario Estadístico de la República Argentina 1980. Buenos Aires: Instituto Nacional de Estadísticas y Formatado: Espanhol (Espanha-
Censos, 1981-1982. internacional)
124
Anuario Estadístico de la República Argentina 1957. Buenos Aires: Dirección Nacional de Estadística Formatado: Espanhol (Espanha-
y Censos, 1957. internacional)
125
Censo Nacional de Vivienda de 1960, Tomo III, Instituto Nacional de Estadística y Censos. Formatado: Fonte: Não Negrito,
126
Ídem. Itálico
127
Consultar los Anuarios Estadísticos de la Municipalidad de General Pueyrredón correspondientes a Formatado: Espanhol (Espanha-
1974, 1974-1978, 1976-1980. internacional)
128

Es interesante observar que los argumentos desarrollados por los industriales para
pedir la protección del Estado para la producción de heladeras fueron los mismos después
utilizados por el gobierno para construir una imagen de la democratización del bienestar, en la
que las heladeras y las amas de casa ocuparon un lugar destacado. En el memorial dirigido al
ministro Gómez Morales en septiembre de 1951, por ejemplo, nos encontramos con los mismos
argumentos que más tarde serían retomados en los artículos publicados en Mundo Peronista:

No se considera[ba] completo el equipamiento de la casa, modesta o suntuosa, si


faltan en ella la heladera eléctrica y el lavarropas familiar, (…) que las heladeras
permitían conservar los alimentos “ahorrando el importante costo de los que se
arrojan al canasto de los desperdicios (…) [y que] su uso permitía economizar el
tiempo de las amas de casa que podían adquirir los alimentos para varios días, lo que
además trae aparejado la ventaja económica no despreciable de evitar
fraccionamientos onerosos (BELINI, 2009, p. 126-127).

La coincidencia en las razones esgrimidas en uno y otro caso resulta especialmente


relevante por el peso que la figura del ama de casa adquiriera en el discurso gubernamental en
las crisis inflacionarias de 1949 y 1952. En este sentido, se ha señalado que, en escenarios de
dificultad económica, desde el gobierno se apeló a las amas de casa para que actuaran como
agentes de control de precios, comprando sólo a los comerciantes honestos que vendían los
productos a precios justos (ELENA, 2006; MILANESIO, 2006). La incitación al ahorro en
una clave moral, que había servido como piedra de toque del modelo de mujer doméstica
desde principios de siglo (LIERNUR, 1997; NARI, 2004; CEPEDA, 2007; AGUILAR, en
este volumen) sería de este modo actualizada en el discurso peronista, en el marco de un [A41] Comentário: Acrescentar uma
data aqui e adicionar a referência.
impulso al consumo de los productos de la industria nacional.
Las amas de casa fueron llamadas a hacer un uso más prudente de su dinero mediante
un gasto racional. La producción y el consumo de las heladeras se promovieron en los mismos
términos. Una heladera eléctrica permitiría a las amas de casa ahorrar no sólo tiempo, sino
sobre todo el dinero, “ya que [podían] comprar alimentos con varios días de antelación, lo que
también provoca[ba] la ventaja económica de evitar la compra más cara de los alimentos en
pequeñas cantidades” (BELINI, 2009, p. 127). La “liberación del ama de casa” debe ser leída
aquí en relación con la necesidad de ahorrar dinero y el gastar racionalmente lo que implicaba
más trabajo para ella (COWAN, 1983): el trabajo de encontrar los mejores precios, comprar
más barato, y hacer comidas más saludables. Estas imágenes perduraron incluso después de
que el gobierno peronista llegara a su fin, en las publicidades que promovían su consumo, así
como en los relatos de aquellos que adquirieron un refrigerador durante la “democratización
del bienestar”. ¿Cómo fueron leídas estas imágenes por los consumidores de heladeras?
129

¿Cómo condicionaron las formas en que dichos artefactos fueron usados? ¿Cómo se
inscribieron en la emergencia de nuevas distancias sociales?

HELADERAS PARA EL PUEBLO

Los artefactos eléctricos para el hogar habían comenzado a ser presentados en el


medio local como parte de las novedades técnicas que simplificaban el trabajo del hogar a
mediados de los años treinta. Entre 1934 y 1936, las publicidades de dichos artefactos aún
eran escasas. A partir de entonces, sin embargo, adquirirían un lugar creciente en distintas
revistas de amplia circulación hasta alcanzar un punto cúlmine en los años cincuenta y
sesenta. Las primeras imágenes a de dichos bienes los situaban como parte de unos modos de
habitar lujosos y distendidos. Según indica el texto que acompaña la siguiente imagen (Figura
2), las dos parejas aquí retratadas disfrutan de un refrigerio después del teatro (o el baile).
Pueden hacerlo en la cocina y vistiendo aún la ropa de etiqueta gracias a los modernos
artefactos que funcionan a electricidad y, entonces, permiten conservar el ambiente limpio y
confortable. La empleada doméstica, en un segundo plano, prepara dicho refrigerio: su figura
juega un papel clave en la presentación de estos bienes como signos de prestigio, al igual que
la vestimenta de los actores de la escena.

FIGURA 2 – EQUIPOS MECÁNICO - ELÉCTRICOS Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado, Recuo:
Primeira linha: 0 cm

Figura 2 – Equipos mecánico - eléctricos


130

FOUENTE: Casas y Jardines, enero-febrero de 1934, contratapa. Formatado: Fonte: Não Negrito
Legenda: Los equipos mecánico-eléctricos en la arquitectura de hoy han simplificado el
Formatado: Fonte: Não Negrito
trabajo del ama de casa. La cocina eléctrica que aquí vemos equipada con elementos
modernos muestra cómo, en traje de etiqueta, después del baile o el teatro puede
prepararse y tomarse el refrigerio en un ambiente limpio y confortable.128.

Si bien no se trata de una publicidad en sentido estricto, esta ilustración fue publicada
de modo recurrente en Casas y Jardines durante 1934 y es una de las imágenes tempranas de
la heladera eléctrica de uso doméstico en los medios gráficos del país (LIERNUR; Y
SILVESTRI, 1993; ROCCHI, 2003). La heladera eléctrica formaba parte de la cocina
moderna, que en su estética y equipamiento recuperaba la de las cocinas de los suburbios
norteamericanos. En efecto, la referencia a los Estados Unidos era sumamente frecuente tanto
en relación a los modelos arquitectónicos, como a los nuevos objetos y tecnologías
incorporados al hogar. En el tiempo en que se iniciaba la industria de artefactos eléctricos en
el país, los “pudientes” comenzaron a considerar la casa mecanizada como un ideal.
Para los años sesenta, la heladera eléctrica seguía siendo utilizada como un símbolo
de distinción, pero no por las mismas personas ni en el mismo sentido. Para quienes habían
podido comprarla recientemente, en un contexto en el que se había transformado en un bien
más accesible (recordemos que en tan sólo 13 años, de 1947 a 1960, los hogares argentinos
con uno de estos artefactos pasaron de un 3% a un 40%), era utilizada para enfatizar la
distancia con quienes aún utilizaban una heladera a hielo. El dinero (una cantidad menor que
en la década de 1930, pero aún considerable), sin embargo, no era el único requisito para
adquirir uno de estos artefactos. Las diferencias sociales y regionales también desempeñaban
un papel clave. A mediados del siglo XX, en muchas áreas urbanas del país aún no había
electricidad. Al igual que en el caso de Segunda, una tucumana que migró a Mar del Plata en
los años cincuenta, cuyo testimonio se reproduce abajo, la migración a menudo implicaba la
búsqueda de esas comodidades.

Entrevistadora: ¿Y en términos de la casa, cómo cambió con la migración?


Segunda: Y, totalmente, porque allá [en Tucumán] no tenía nada, no tenía
comodidades. No había agua corriente, no había gas, no teníamos luz… Estábamos
en un lugar lindo, cerca del la estación, en Tucumán, pero no teníamos comodidades
así, no teníamos nada. Una vez que conocimos esto [Mar del Plata] y vimos lo que
era, nos vinimos directamente.129.

Los desfasajes en el acceso de los hogares a la electricidad y a las heladeras (así


como a otros bienes y servicios) dieron lugar a diferencias regionales profundas. Mientras que
Formatado: Fonte: Não Negrito,
Itálico
128
Casas y Jardines, mayo-junio de 1934. Formatado: Espanhol (Espanha-
129
Entrevista a Segunda, Mar del Plata, Enero de 2007. internacional)
131

en 1960, alrededor del 42% de los hogares en la provincia de Buenos Aires tenía una cocina a
gas, sólo el 13% de los hogares en la provincia de Catamarca tenía una. Estas diferencias
ponen de manifiesto intensas desigualdades en el trabajo doméstico realizado en diferentes
regiones y en hogares de distintas clases sociales, anclada en la desigual provisión de
servicios urbanos. La casa cómoda y el ama de casa liberada no sólo fueron figuras clave en la
imagen de la democratización del bienestar, sino también en la construcción de nuevas
desigualdades, regionales, de clase y de género.
Los nuevos bienes y servicios también ofrecieron nuevos símbolos de distinción en
las viviendas de la nueva clase media y entre los trabajadores.

Victoria: Y justamente con la disposición de la casa [que había cambiado en la


nueva vivienda que adquirieron] vienen también los artefactos. Porque en esta otra
casa que alquilábamos teníamos heladera a hielo. Heladera a hielo donde todos los
días tenías que traer el hielo envuelto en una bolsa de arpillera. En la nueva casa ya
nos traen una heladera eléctrica. […]. Mi papá compró esa casa en un remate. Y a mí
algo que me llamó la atención, porque nosotros vivíamos muy humildemente, no
teníamos nada más que la radio en esa casa que alquilábamos, y a mí me llamó la
atención, porque yo fui con mi papá a ver la casa y la gente nos hizo pasar, y me
llamó la atención los artefactos que tenían. Yo tenía 8 o 9 años y nunca había visto
tantas cosas. […] una de las cosas que me llamó la atención fue la licuadora. Porque
tenían licuadora, tocadiscos, muchos artefactos. Ellos que perdían la casa, nosotros
que no teníamos nada comprábamos la casa.130.

Victoria, que nació en Mar del Plata en 1951, hija de un trabajador ferroviario,
recuerda el impacto que le produjo el ver por primera vez los artefactos que otros tenían y su
familia no, otros calificados como “muy humildes”. Ese no tener es enmarcado, sin embargo,
en el relato del acceso de su familia a la casa propia, la casa que perdía la familia humilde que
tenía licuadora, tocadiscos y otros “tantos artefactos” que le habían llamado la atención. Entre
fines de los cincuenta y principios de los sesenta, los artefactos podían ser un signo de
bienestar, pero también podían ser vistos como un signo de ligereza en el manejo de los
recursos económicos, de una suntuosidad innecesaria, falta de criterio y capacidad de ahorro.
Los artefactos destacados en ese marco son la licuadora y el tocadiscos. La vivienda seguía
apareciendo como el bien central en el patrimonio familiar.
En los relatos de los migrantes de más edad, hombres y mujeres provenientes de
zonas rurales, la heladera es un símbolo de bienestar que trascendía sus funciones potenciales.
Esta es la perspectiva de Antonio, que nació en 1925 en un pequeño pueblo italiano y se
trasladó a la Argentina en 1950 para trabajar en una serie de puestos de trabajo un tanto

130
Entrevista a Victoria, Mar del Plata, septiembre de 2009. El padre de Victoria más tarde trabajó como Formatado: Espanhol (Espanha-
vendedor por cuenta propia. Su madre, en ese tiempo, abrió una panadería. internacional)
132

inestables. Antonio habla de la heladera como un símbolo de los logros alcanzados a través
del trabajo duro. Siguiendo una asociación recurrente en los anuncios de la época y en el
discurso peronista analizado arriba, la heladera es presentada en su discurso como sinónimo
de alimentos y, por lo tanto, de las necesidades esenciales. Este artefacto representó un salto
cualitativo en la vida cotidiana de los hombres y mujeres de la misma edad y procedencia
social de Antonio: comida abundante, en buen estado, de mayor complejidad en su
preparación, era impensable sin una heladera donde mantenerla eficazmente (la heladera a
hielo tenía resultados muy inferiores a la eléctrica). Por el contrario, otros artefactos se
presentan como “bienes de confort” para el ama de casa y no como herramientas de trabajo.
“Era cosa de ella” es la expresión que Antonio utiliza cuando se le pregunta acerca de otros
electrodomésticos (la batidora, la licuadora).

Antonio: Y sacrificio, sacrificio. Uno dice, ustedes que son jóvenes, algunos dicen
que era más fácil, pero había que romperse. Había que romperse. Y yo [de lo] único
que no me privé es la heladera. Como la ves ahora siempre la tuve. Eso era sagrado.
Pero otros gustos, otros, nada. La verdad es que uno se privaba casi de todo. Vestirse
y comer sí, pero todo lo demás se privaba, divertimento, excursiones, nada, nada.
[…]
Entrevistadora: ¿y después otras cosas como batidora, licuadora…?
Antonio: Sí, eso sí, siempre. Cuando empezaron a salir, mi señora siempre, era cosa
de ella, sí, todo tiene, todo tuvimos. Esta cosa cuando ella la quiso siempre la
tuvimos. Yo no tuve problema. Esas comodidades así, esas cosas, nunca nos faltó,
no lujo, pero esas cosas nunca nos faltó nada.131.

Esta asociación entre la heladera y la abundancia de alimentos era también


recuperada en distintas publicidades de la época, como la reproducida aquí (Figura 3). A lo
largo de todo el período aquí analizado, en el discurso publicitario los artefactos domésticos
eran presentados como bienes de confort más que como bienes de trabajo. Se ha sugerido, en
este sentido, que el estilo de los artefactos domésticos induce la imagen de que el trabajo
doméstico no es realmente “trabajo” a partir de las referencias a la total automatización de las
tareas de la casa, que ya no requerirían que se les dedicara tiempo (FORTY, 1986). La imagen
de los “domésticos servidores” se repite incansablemente en los avisos que promocionan su
consumo. Los artefactos se presentan como sustitutos del trabajo humano, como “empleados
domésticos” más eficientes y constantes para el ama de casa que, “liberada” de los
quehaceres, podía entonces destinar más tiempo a los suyos (PÉREZ, 2013). Sin embargo, y a
pesar de que otros dispositivos de “ahorro de trabajo” se presentaban en las publicidades

131
Formatado: Espanhol (Espanha-
Entrevista a Antonio, Mar del Plata, Julio de 2009. internacional)
133

haciendo hincapié en sus cualidades estéticas, sólo la heladera logró un lugar en los
comedores y fotografías de la familia, como las reproducidas arriba.

FIGURA 3 – PUBLICIDAD DE SIGMA Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm

FIGURA 3 – PUBLICIDAD DE SIGMA


FUENTE: Para ti, 4 de diciembre de 1951, p. 57. Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm
En distintas entrevistas, la heladera aparece como una conquista de la que se
destacan sus cualidades estéticas, más que funcionales. En el fragmento que se transcribe
abajo, esto resulta especialmente significativo por el contexto en el que aparece esta
descripción: se ofrece como respuesta pertinente para una pregunta sobre los cambios en el
trabajo de la casa.
134

Blanca: Y era grande, linda, moderna la heladera que me compró.132


Elena: al principio comprarse un lavarropas era como decir ‘ésta está en la casa todo
el día y se compra un lavarropas…’ [risas] porque aparte era una cuestión de sacar el
cuero, viste, que no sé si era envidia o decir, bueno, ‘si está todo el día en la casa,
qué necesita lavarropas si no tiene nada que hacer… [risas].133

Ahora bien, la mirada de los artefactos como elementos para liberar al ama de casa
era leída con ambivalencia. Como podemos ver en el fragmento citado de la entrevista a
Elena, nacida en 1953, a finales de 1950 y comienzos de 1960, los lavarropas eran vistos por
muchas mujeres como artilugios de amas de casa perezosas. Como se ha señalado antes en
relación a licuadoras y batidoras, muchos artefactos domésticos tenían un estatus ambiguo
dentro de la casa: eran identificados como lujos innecesarios, como formas frívolas de gastar
dinero, o simplemente como “cosa de mujeres”. La idea de que ahorraran trabajo (más allá de
si realmente lo hicieron o no) era probablemente muy problemática para muchas amas de
casa. En contraste con otros electrodomésticos, la heladera ofrecía otras representaciones
posibles. Por un lado, permitía a los maridos representar el papel de sostén de la familia. Por
otro, permitía que las amas de casa representar el papel de cuidadoras familiares, que sabían
gastar el dinero responsablemente, lo que contribuía a la promoción y el bienestar social de
sus familias. Mostrar la heladera a los visitantes, colocándola en un sitio visible, haciendo
hincapié en sus cualidades estéticas como un objeto decorativo, o incluso al tomarse fotos con
ella como si se tratara de un miembro de la familia, son prácticas que cobraban sentido en este
contexto.
La compra de los nuevos artefactos provocaba numerosas visitas (en palabras de
Victoria, “todo el mundo venía a ver lo que te habías comprado”). Sin embargo, ésta no era la
única oportunidad que los visitantes tenían para ver los productos recién comprados. Las
heladeras eran situadas y decoradas de una manera especial, a menudo ubicadas en el
comedor. Mientras que la cocina era también un lugar para socializar, el comedor, cuando el
dinero lo permitía, era la habitación más elegante en la casa, la destinada a recibir. El lugar de
la heladera en el comedor subrayó su condición de objeto que se muestra de acuerdo a
estrictas normas estéticas. De hecho, en viviendas de la nueva clase media y entre sectores
trabajadores, la heladera estaba generalmente decorada con diferentes objetos,
independientemente de que hubiera sido situada en el comedor o en la cocina. Esto recuerda
lo que Baudrillard (1999, p. 21) identificara como una estrategia de redundancia es decir “la

Formatado: Espanhol (Espanha-


internacional)
132
Entrevista a Blanca, Mar del Plata, Agosto de 2008. Formatado: Espanhol (Espanha-
133
Entrevista a Elena, Mar del Plata, Agosto de 2008. internacional)
135

envoltura teatral y barroca de la propiedad doméstica (…), no sólo poseer, sino subrayar dos
veces, tres veces, lo que se posee”.
Esta práctica no era del todo original, sino que fue influenciada por imágenes
disponibles, desarrolladas en el marco del discurso de la democratización del bienestar. La
heladera en el comedor, decorada en este caso con un pequeño busto de Eva Perón (Figura 4),
fue la representación visual del confort para el pueblo y la liberación para el ama de casa,
utilizada, por ejemplo, en el artículo de Mundo Peronista de abril de 1955 citado arriba. Esta
imagen era tan fuerte que, décadas más tarde, fue recuperada como un ícono de la
democratización del bienestar identificada con el peronismo.

FIGURA 4 – CONFORT PARA EL PUEBLO Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm

Figura 4 – Confort para el pueblo


FUENTE: Mundo Peronista, 1 de abril de 1955, p. 31. Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm
Quienes tuvieron acceso a las heladeras más tempranamente (al mismo tiempo que
“los privilegiados de siempre”) no tenían necesidad de alardear de esta adquisición. Ellos
también podían buscar la respetabilidad familiar en los modernos modos de habitar, pero los
criterios estéticos que tomaban para sus hogares eran más cercanos a los visibles en Casas y
Jardines o Claudia, revistas dirigidas a (aunque no exclusivamente leídas por) un público de
mayor poder adquisitivo. En los años 1950 y 1960, las páginas de estas revistas mostraron una
tendencia creciente hacia una estética de líneas simples y limpias, en las que las carpetas y
estatuillas sobre la heladera habrían resultado incongruentes. Por el contrario, buena parte de
136

los artículos que hacían referencia a estos artefactos giraban en torno a recomendaciones
sobre cómo ocultar, o al menos disimular, su presencia en el hogar. Si el modelo de la vida
doméstica era el mismo, los criterios estéticos que lo inspiraban no eran idénticos. En ambos
casos, sin embargo, la respetabilidad familiar dependía de la capacidad de la ama de casa para
presentar una casa limpia y ordenada a cualquier visitante potencial.

Victoria: Y vos fijáte hasta qué punto esta gente no supo apreciar lo que tenía que en
el dormitorio el piso era de parquet, tenía parquet, que hoy es una reliquia que está,
todavía está, pero había una parte del parquet que estaba quemado, con las botellas
de vino marcadas… O sea, vos fijáte… fijáte a qué nivel daban poco valor a lo que
para nosotros fue un mundo, esa casa […] El piso de parquet se pasaba primero una
viruta gruesa, todo a mano, yo recuerdo que te ponías una viruta en un pie y con un
pie ibas rasqueteando en el sentido de las maderas. Las maderas estaban puestas
como espigas, primero en un sentido y después en el otro. Después de eso, salía
cualquier cantidad de… de polvillo. Eso se barría, se limpiaba y después se le
pasaba cera. Al otro día se le pasaba cera, se le volvía a pasar, y después cuando ya
estaba seco se le pasaba un trapo seco, porque después vino la lustradora. Que ya fue
también otro adelanto […]. El encuentro de ellas (las mujeres de la generación de su
madre) era la visita. A las tres, tres y media de la tarde, la visita. Hasta las cinco y
media, seis. La visita no se anunciaba porque no había teléfonos, o había pocos. O
sea que la visita te caía de sorpresa, cosa que ahora eso no se estila. “Vas a estar, te
llamo”. Antes vos ibas a una casa porque sabías que el ama de casa estaba. Quién
iba a salir, salvo que tuvieras que ir al médico […]. Yo de atrás me acuerdo un día
que vino una tía que era re charlatana, entonces mi mamá me hizo una seña y yo de
atrás ordené el baño, puse toallas, qué sé yo… porque era eso, el qué dirán. “Te
imaginás que si llega a venir la tía Carmen y nos ve que…” […] Se cuidaba mucho
ese detalle porque era como un fracaso de la mujer, ¿no? 134

Elena: Como que la casa tenía que estar siempre… porque si venían visitas, si venía
alguien, por favor…135

La visita era un momento clave para lucir una casa bien cuidada, adecuadamente
equipada, decorada y limpia. No poder hacerlo era, como dice Victoria, un “fracaso” para el
ama de casa. Aunque la exposición de aparatos domésticos, y en particular de la heladera, era
una manera de alcanzar la respetabilidad familiar, las formas en que la casa era usada y
cuidada también eran centrales en la confirmación de la condición de clase y de la
respetabilidad social. Las tareas de la casa y los electrodomésticos, adquirieron, en este
contexto, una nueva relevancia. Saber cómo cuidar de un piso de parquet era también una
manera de mostrarse diferente quienes lo quemaban o machaban con botellas de vino. Si los
nuevos productos eran un signo de estatus (el piso de parquet, en primer lugar, la lustradora,
después), su correcto cuidado era parte esencial del prestigio que otorgaban. La distinción no

134
Entrevista a Victoria, Mar del Plata, Septiembre de 2009. Formatado: Espanhol (Espanha-
135 internacional)
Entrevista a Elena, Mar del Plata, Agosto de 2008.
137

sólo devenía de los bienes que se poseían, sino también de la forma en que se realizaban las
tareas del hogar.
A pesar de que no resulta claro que los aparatos redujeran el tiempo dedicado a las
tareas del hogar (COWAN, 1983), el ama de casa, con la ayuda de sus “eléctricos servidores”
(PÉREZ, 2012; 2013), podía ahora aparecer siempre descansada, bella y elegante. En este
sentido, el ama de casa “liberada” encarnaba la imagen del éxito social de su marido,
garantizando un mayor bienestar para su familia. Tener electrodomésticos, y, sobre todo,
saber cómo hacer el trabajo doméstico, representaba la respetabilidad familiar identificada
con el modelo de domesticidad de clase media. La heladera ganó un lugar especial entre
dichos artefactos. Por un lado, su significado era menos ambivalente que el de otros
dispositivos de “ahorro de trabajo”. Por otro lado, condensaba las imágenes de la abundancia,
así como de la presencia de un marido proveedor y una buena ama de casa, escrupulosa en el
gasto. De esta manera, una transformación que se inició durante el peronismo tuvo un efecto
duradero en la vida cotidiana y en la formación de una identidad de clase media que
trascendería las divisiones políticas y económicas de los tiempos que siguieron.

CONSIDERACIONES FINALES

En las décadas centrales del siglo XX, la heladera eléctrica se convirtió en un bien
“necesario” para los hogares argentinos. Siendo inicialmente un producto de lujo al que sólo
los sectores con mayor poder adquisitivo podían acceder, se convirtió en un artículo
ampliamente deseado por una creciente clase media. Esta trayectoria, sin embargo, no estuvo
exenta de obstáculos. Por un lado, la expansión de la industria de la refrigeración recibió sólo
un apoyo indirecto de parte del Estado hasta los últimos años del gobierno peronista. Por otro
lado, a pesar de las políticas públicas significativas en cuanto a la extensión de las redes de
energía eléctrica, un alto porcentaje de viviendas en el país aún carecía de este servicio hacia
el final del período aquí analizado. El acceso a uno de estos artefactos fue marcado por
profundas desigualdades sociales y regionales.
Entre los que podrían adquirir este bien, sus usos fueron diversos. El uso de la
heladera como objeto decorativo se puede interpretar como indicador de la distancia social
respecto de aquellos que, aunque económicamente cerca, eran aún incapaces de comprar una.
A diferencia de otros aparatos domésticos que podrían ser considerados símbolos de gastos
frívolos, la heladera era un artículo “necesario”, sinónimo de bienestar familiar. Este uso
también puede ser interpretado como parte de una estética “popular”, con cierta distancia
138

respecto de los criterios de decoración exhibidos en revistas dirigidas a un público de mayor


poder adquisitivo y gustos más refinados.
Las heladeras eléctricas cambiaron la textura de lo cotidiano. Con ellas, las
condiciones materiales para la conservación de alimentos mejoraron sustancialmente,
posibilitando nuevas formas de comprarlos y prepararlos. Sin embargo, los cambios no sólo
fueron de orden material, sino también simbólico. El confort doméstico y la liberación del
ama de casa fueron elementos centrales tanto en la imagen de la democratización del bienestar
(promovida desde “arriba”) como en las apropiaciones del modelo (desde “abajo”). Los
estereotipos de género también desempeñaron un papel de relevancia: aunque las mujeres
eran las principales beneficiarias del confort promovido, su “liberación” de las tareas del
hogar era la manifestación del éxito de su marido y de un modelo económico basado en la
expansión del consumo.
La visibilidad del trabajo doméstico cambió, en este sentido, de una manera
paradójica: al tiempo que se convirtió en un tema frecuente en varios espacios discursivos en
donde se promovía la adquisición de los nuevos artefactos, se sugería que dicho trabajo había
sido o sería sustituido por ellos. Para muchos de los entrevistados, sin embargo, el saber-hacer
que este tipo de trabajo implicaba era irremplazable: en él residía la respetabilidad del ama de
casa y su familia. El trabajo doméstico y los electrodomésticos se convirtieron en elementos
clave en la construcción de una identidad de clase media y en la búsqueda de nuevas
distancias sociales.

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CAPÍTULO 6 – TECNOLOGIAS DOMÉSTICAS E REPRESENTAÇÕES DE Formatado: Português (Brasil)


FEMINILIDADES: Formatado: Normal (Web), À
A “DONA DE CASA MODERNA” NA REVISTA CASA & JARDIM esquerda, Espaçamento entre linhas:
simples, Padrão: Transparente (Branco)
(DÉCADA DE 1960)
Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Fonte: Itálico, Português
Ana Caroline de Bassi Padilha (Brasil)
Marinês Ribeiro dos Santos Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Espaçamento entre
linhas: simples
INTRODUÇÃO

As reflexões apresentadas neste capítulo fazem parte de uma pesquisa maior, que tem
como objetivo discutir as representações de feminilidades atreladas ao consumo doméstico no
Brasil dos anos 1960. Para este texto, o recorte de estudo foi delimitado à análise dos
discursos textuais e imagéticos que circulavam na revista Casa & Jardim durante aquela
década, com destaque para os anúncios publicitários sobre tecnologias do lar. Adotando a
linguagem publicitária como fonte de pesquisa, pretendemos identificar algumas das
estratégias discursivas empregadas na construção da figura da “dona de casa moderna”,
observando suas imbricações com marcadores identitários de gênero e classe social.
Na década de 1960, a sociedade brasileira vivia um processo de modernização,
caracterizado por mudanças econômicas, sociais e culturais que promoveram novos tipos de
valores e comportamentos. O projeto desenvolvimentista implementado pelo Estado tinha
como premissa o investimento na industrialização, entendida como sinônimo de progresso.
Nesse contexto, a realidade cotidiana se transformou radicalmente com a incorporação dos
chamados “padrões de consumo moderno”. As mídias de grande circulação, como as revistas
ilustradas, oportunizavam a visibilidade de novos estilos de vida, endereçados às classes
médias (MIRA, 2003, p. 10). Em Casa & Jardim, os discursos publicitários apresentavam as
tecnologias domésticas como recursos que facilitavam as atividades das donas de casa,
garantindo conforto e bem-estar às famílias, além de mais tempo livre para gozar a vida.
Contudo, Ruth Cowan (1983) argumenta que a introdução de novas tecnologias
domésticas nas rotinas da casa nem sempre ocasionou a diminuição da quantidade de serviço
para as mulheres. De acordo com a autora, o que a modernização do universo doméstico
promoveu foi a reorganização dos processos de trabalho, visto que alguns afazeres no lar
foram suprimidos – sobretudo os que eram considerados de responsabilidade dos homens – e
outros sofreram modificações na maneira como eram realizados. Na opinião de Cowan,
embora a introdução do fogão a gás e da máquina de lavar roupas, para citar alguns exemplos,
144

tenha contribuído para poupar tempo e esforço físico, as novas tecnologias domésticas
também vieram acompanhadas do incremento nas expectativas sociais acerca do empenho das
mulheres nas atividades culinárias, nos cuidados com a nutrição e nas exigências quanto aos
padrões de limpeza, entre outras questões. Ou seja, o tempo e o esforço poupados em uma
tarefa mediada por artefatos tecnológicos eram utilizados na realização de outros serviços
domésticos.
Vale esclarecer que entendemos por tecnologias domésticas tanto as práticas sociais
quanto os artefatos envolvidos no trabalho doméstico, com os quais as pessoas interagem
individual ou coletivamente. Fazem parte deste universo: 1) as práticas, os saberes, os valores
e as formas de divisão do trabalho; 2) os eletrodomésticos e demais tipos de artefatos
utilizados na realização das atividades; 3) os móveis, os aparatos e os espaços que integram a
casa; 4) os sistemas tecnológicos de infraestrutura, como as redes de abastecimento de água,
energia e esgoto; 5) os insumos necessários para o desempenho de determinadas funções e os
serviços de assistência técnica. Todo este universo é interligado na moradia e faz parte das
práticas cotidianas de seus membros. Neste estudo, enfatizamos as práticas de consumo
relacionadas aos eletrodomésticos, dando relevo aos discursos que enfocavam sua aquisição,
apropriação e organização no espaço da casa.
Ao longo da década de 1960, a revista Casa & Jardim não poupava esforços em
anunciar os eletrodomésticos como meios de proporcionar, entre outras características, maior
“praticidade”, “eficiência”, “elegância”, “conforto” e “tempo livre” às donas de casa.
Mediante o envolvimento na mecanização do trabalho doméstico, as donas de casaelas
participavam da integração dos eletrodomésticos nas rotinas cotidianas, num processo que
também as constituía como mulheres “modernas”. Neste sentido, queremos argumentar que a
revista Casa & Jardim funcionava como uma mídia de pedagogias de gênero, colocando em
circulação representações de feminilidades que conciliavam valores e condutas tradicionais
com a modernização das práticas de consumo doméstico.

A MODERNIZAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA E A INDÚSTRIA DE


ELETRODOMÉSTICOS NOS ANOS 1960

Foram muitos os acontecimentos que marcaram as transformações na realidade


brasileira a partir dos anos 1950, entre eles, os planos de governo guiados pela ideologia do
desenvolvimentismo. Nesse contexto, os processos de urbanização e de industrialização
ganharam um ritmo acelerado, desencadeando mudanças na vida e nos hábitos da população.
145

O tema da modernidade estava, na maioria das vezes, aliado à ideia de progresso.136. De


acordo com Anna Cristina Figueiredo (2003, p. 31): [A43] Comentário: Não condiz com a
data constante nas Referências.

não havia nos anos 50 e 60 bem de consumo que não se pretendesse “moderno”,
“novo” ou “inédito”. Estes bens eram oferecidos a homens e mulheres igualmente
“modernos”, afinados com os “novos tempos” e vivendo em perfeita consonância
com o progresso.

Houve investimento em vários setores industriais, cujo desenvolvimento ocasionou


uma ampla gama de oportunidades de trabalho e de acesso a novos estilos de vida. O governo
de Juscelino Kubitschek (1956-1960) foi exemplar neste sentido, com a criação do Plano de
Metas, que tinha como lema “50 anos em 5”. As possibilidades de acesso à informação, ao
lazer e ao consumo foram aumentadas e o Brasil passou por um período de ascensão das
classes médias. O sistema de crédito popular foi implementado, facilitando a aquisição de
produtos e serviços para parte da população brasileira (MELLO; NOVAIS, 1998).
Conforme Fraiha et al. (2006) salientam, uma das características da modernização
está relacionada à ampliação do acesso ao consumo de eletrodomésticos. No período anterior
ao desenvolvimento industrial brasileiro, os eletrodomésticos eram importados e chegavam ao
Brasil em navios comerciais por meio de encomendas feitas por representantes. As novidades
vindas de países industrializados, nesse período, eram acessíveis somente às pessoas
privilegiadas financeiramente. Sendo assim, os comerciantes, percebendo que o mercado
interno crescia, incluíam cada vez mais eletrodomésticos entre os artigos que importavam.
A Segunda Guerra Mundial teve um papel fundamental no desenvolvimento do
design de produtos e, consequentemente, no desenvolvimento de artefatos domésticos Formatado: Fonte: Itálico

produzidos no Brasil. Rafael Cardoso (1998) esclarece que os Estados Unidos eram os
principais fornecedores de quase todos os tipos de equipamentos e insumos consumidos em
boa parte do mundo, conquistando um considerável crescimento do seu parque industrial.
Porém, no período da guerra, grande parte da produção industrial dos Estados Unidos e
também da Europa foi orientada para a fabricação de armas ou componentes da indústria
bélica. Isso desencadeou uma queda considerável no ritmo das importações de produtos e,
inclusive, na fabricação de eletrodomésticos. Segundo Cardoso (1998, p. 146), o Brasil
necessitou “substituir artigos normalmente importados da Europa ou dos Estados Unidos, o
que contribuiu de modo decisivo para a expansão do parque industrial nacional”.
136
Em meados da década de 1950, havia uma sensação de prosperidade e progresso vivenciada por parte da
população brasileira, que desfrutava um momento de aparente estabilidade econômica. Incorporando padrões de
produção e consumo espelhados nos países economicamente mais avançados, a sociedade vivia um otimismo geral,
acreditando que logo o Brasil se tornaria uma nação moderna (MELLO; NOVAIS, 1998).
146

No período do pós-guerra, predominava no país uma grande admiração pelo estilo de


vida norte-americano. Mello e Novais (1998, p. 604) explicam que “o grande fascínio, o
modelo a ser copiado passa a ser cada vez mais o American way of life”. Isso porque a “via de
transmissão do progresso” passava pela referência aos padrões de consumo reinantes nos
países economicamente mais desenvolvidos. A elevação do padrão de vida de muitas famílias
brasileiras significava possuir uma casa equipada e desfrutar do conforto doméstico. Para
tanto, havia uma grande quantidade de aparelhos eletrodomésticos disponíveis no mercado
nacional e que aos poucos iam sendo incorporados nos lares das famílias das camadas médias
brasileiras:

O ferro elétrico, que substituiu o ferro a carvão; o fogão a gás de botijão, que veio
tomar o lugar do fogão elétrico, na casa dos ricos, ou do fogão a carvão, do fogão a
lenha, do fogareiro e da espiriteira, na dos remediados ou pobres: em cima dos
fogões, estavam, agora, panelas – inclusive a de pressão – ou frigideiras de alumínio
e não de barro ou de ferro; o chuveiro elétrico; o liquidificador e a batedeira de bolo;
a geladeira; o secador de cabelos; a máquina de barbear, concorrendo com a gilete; o
aspirador de pó, substituindo as vassouras e o espanador; a enceradeira, no lugar do
escovão; depois veio a moda do carpete e do sinteco; a torradeira de pão; a máquina
de lavar roupa [...] (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 563).

Esse quadro de transformações teve também repercussão na vida em família. A partir


dos anos 1950, a modernização da sociedade colaborou para a diminuição de algumas
diferenças existentes entre mulheres e homens. De acordo com Mello e Novais (1998, p. 596),
“a mulher de classe média vai chegando com muito esforço à universidade, vencendo a
oposição dos pais, às vezes até do noivo ou do ‘namorado firme’”. Para muitas mulheres das
camadas médias, o desejo de trabalhar e de independência financeira convivia com o ideal de
“rainha do lar”. Isso porque, no contexto do casamento tradicional – aspiração para as moças
da época – a figura do marido continuava ocupando o status de “chefe da casa”. O trabalho
remunerado das esposas, se existisse, era considerado como complemento da renda do casal
(MELLO; NOVAIS, 1998). Assim, os valores atribuídos à feminilidade estavam
prioritariamente ligados às atividades no lar.137.
No final dos anos 1950, associado ao processo de modernização, havia certo
consenso entre diversos setores da sociedade quanto à necessidade da construção de um novo
modelo de nação, capaz de impulsionar o desenvolvimento do país. Sendo assim, ideais
nacionalistas congregaram interesses de trabalhadores, funcionários públicos, profissionais

137
Vale enfatizar que priorizamos, neste trabalho, o estudo relacionado às mulheres das camadas médias,
por ser o público privilegiado pela revista Casa & Jardim. Dessa forma, vale ressalta-ser que as mulheres
brasileiras pertencentes às camadas mais baixas exerciam trabalho remunerado fora de casa desde cedo e por
uma questão de necessidade. Além disso, muitas delas não tinham oportunidade de acesso à educação.
147

liberais e de parcela do pequeno empresariado, que visavam fortalecer e consolidar a


democracia brasileira. Isso incluía, entre outros fatores, a reforma agrária, a criação de escolas
públicas e republicanas138, a subida de salários de base, a ampliação dos direitos sociais, o
controle do poder econômico privado e o controle público dos meios de comunicação de
massa.
No entanto, esse projeto encontrou forte resistência nos representantes de setores
dominantes, como banqueiros, grandes empresários e latifundiários, além de parte expressiva
da classe média, “ciosa de sua superioridade em relação à massa, apegada tradicionalmente ao
elitismo, sempre sensível ao impacto da elevação dos salários de base e da multiplicação dos
empregos formais sobre o seu padrão de vida” (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 617). O golpe
militar deflagrado em 1964 estabeleceu, pela força, um regime de governo ditatorial que
garantia, precisamente, os interesses deste segundo grupo. No final da década, junto ao
recrudescimento do regime, o país vivenciou o chamado “milagre econômico”. O surto de
expansão da economia promovido pelo governo, com vistas a cooptar o apoio da população,
multiplicou as oportunidades de trabalho e possibilitou a consolidação de uma sociedade do
consumo moderna e diversificada. Contudo, esse processo agravou a desigualdade social, uma
vez que a distribuição de renda foi direcionada para os setores médios e para as elites
(ALMEIDA; WEIS, 1998).
Os meios de comunicação também foram favorecidos pela modernização capitalista.
Segundo Mira (2003), a partir dos anos 1950, a imprensa brasileira passou por um processo
de especialização. No caso das revistas, as publicações que marcaram a primeira metade do
século XX, chamadas “revistas de variedades” e capazes de atender diversos gostos, cederam
lugar para publicações mais especializadas, dentre as quais a primeira a ganhar destaque foi a
imprensa voltada para públicos femininos.
Conforme Luca (2012) argumenta, a imprensa direcionada para públicos femininos
tradicionalmente aborda assuntos como moda, beleza, casa, culinária ou cuidado com os
filhos, caracterizando o que essa autora denomina de “abordagem circular”. Os mesmos
conteúdos podiam ser retomados continuamente, “desde que revestidos de ar de atualidade e
apresentados como a última palavra no assunto” (LUCA, 2012, p. 448). Sedutoras e
diversificadas, as revistas para públicos femininos geravam simpatia por propiciarem
momentos de entretenimento e prazer, bem apreciados por quem folheava uma publicação

138
As escolas republicanas deveriam preparar os cidadãos para a democracia (MELLO; NOVAIS, 1998,
p. 616).
148

com imagens bem cuidadas e que abordava assuntos do cotidiano de modo leve e interessante
(LUCA, 2012). É neste segmento da imprensa que se insere a revista Casa & Jardim.

CASA & JARDIM COMO MÍDIA DE PEDAGOGIAS DE GÊNERO

Casa & Jardim foi lançada em 1952, como uma publicação de circulação nacional
especializada em decoração de interiores domésticos, cujo sub-título era “decoração, móveis,
arquitetura e culinária”.139. Junto ao conteúdo especializado, a revista apresentava conselhos
sobre condutas e práticas no lar, que tanto refletiam quanto afirmavam o consenso social
sobre a moral e os bons costumes vigentes. Sua missão era “apresentar soluções capazes de
conciliar a preservação dos valores tradicionais da família com a modernização do espaço
doméstico” (SANTOS, 2010, p. 63). Sendo assim, num contexto de grandes mudanças sociais
e culturais, as donas de casa dispunham da opinião de especialistas, publicadas no periódico,
para orientar suas escolhas e práticas cotidianas.
Por meio do seu conteúdo, apoiado na intertextualidade entre reportagens e anúncios
publicitários, compreendemos que a revista Casa & Jardim operava como uma mídia de
pedagogias de gênero. Para tanto, a revista divulgava e afirmava certos padrões de
comportamento e formas de viver tipos de feminilidades fortemente associados ao uso das
tecnologias domésticas. Assim, ao ensinar, aconselhar ou sugerir às donas de casa
determinadas condutas tidas como “ideais”, o periódico visava influenciar a maneira como
essas mulheres se autopercebiam e se relacionavam com os membros de suas famílias, bem
como com a sociedade. Conforme Luca (2012) argumenta, ao valorizarem determinadas
abordagens e atitudes em detrimento de outras, as revistas cumprem funções pedagógicas que
geralmente afirmam padrões de gênero hegemônicos. Nas palavras da autora: “a revista,
amiga que acompanha a mulher [...] oferece modelos de conduta, maneiras de viver a
feminilidade e a masculinidade, tidas como ‘'normais’'” (LUCA, 2012, p. 463-464). Logo,
Casa & Jardim, na medida em que informava, também operava como produtora de
conhecimentos e saberes, visto que por meio do conteúdo veiculado as donas de casa
poderiam ser “educadas” sobre os modos “ideais” de ser e estar na sociedade em que viviam.
Visando a aproximação com as leitoras, Casa & Jardim, investia no uso da
linguagem em tom coloquial. Segundo Luca (2012, p. 448), as revistas direcionadas para
mulheres costumam assumir o tom “de alguém próximo e que aconselha, ampara, aplaca

139
A revista privilegiava igualmente os quatro assuntos. Neste trabalho, focamos nossos estudos,
principalmente, na “culinária”, por ser um assunto especialmente dedicado às donas de casa das camadas médias.
149

angústias, resolve dúvidas, sugere, fazendo as vezes de uma amiga e companheira à qual
sempre se pode recorrer”. Além disso, a autora ressalta que, a partir dos anos 1940, a maioria
das revistas substituiu o tom cerimonioso das reportagens pelo intimista “você”, como se o
periódico fosse destinado somente àquela leitora que o tinha nas mãos. Dessa forma, essa
proximidade carregada de afetividade podia operar como um “importante elo no processo de
transmissão da informação, mas também de convencimento e mesmo imposição, apoiados em
anúncios prescritivos e normativos, que ordenam o que fazer e como fazer” (LUCA, 2012, p.
448).
Contudo, é bom lembrar que a assimilação dos conteúdos de Casa & Jardim ocorria
mediante as diversas práticas de leitura das donas de casa, implicando no que Roger Chartier
(1999, p. 152) denominou de “apropriação, invenção e produção de significados”. De acordo
com Chartier (1999, p. 152), o texto desencadeia “significações que cada leitor constrói a
partir de seus próprios códigos de leitura, quando ele recebe ou se apropria desse texto de
forma determinada”. Para esse autor, isso acontece porque todo/a o/a leitor/a, diante de uma
obra, a percebe em um momento, uma circunstância e de uma forma específica. Sendo assim,
o investimento afetivo ou intelectual depositado na obra está diretamente ligado ao contexto
no qual ela foi lida. Nas leituras da revista Casa & Jardim, podemos inferir que as donas de
casa não eram meras receptoras passivas, uma vez que elas ativamente se envolviam e eram
envolvidas pelas mensagens veiculadas no periódico, reagindo, respondendo, assumindo ou
até mesmo recusando o conteúdo do periódico parcial ou inteiramente.
Uma vez considerada como mídia de pedagogias de gênero, podemos afirmar que a
revista Casa & Jardim ocupava uma função importante na divulgação e construção de
posições de sujeito. No caso específico das identidades de gênero, assumimos a abordagem
apresentada por Guacira Lopes Louro (1999), que percebe o gênero como constituinte da [A44] Comentário: Não condiz com as
datas constantes nas Referências.
subjetividade das pessoas. De acordo com a autora, as identidades de gênero são processuais e
contingentes, logo, estão continuamente em formação. Nas relações sociais, que são sempre
atravessadas por diferentes representações, práticas e discursos, “os sujeitos vão se
construindo como masculinos e femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais,
suas disposições, suas formas de ser e estar no mundo” (LOURO, 1999, p. 28). Essas [A45] Comentário: Mesmo que
anterior.
construções e arranjos são continuamente reconfigurados, transformando-se não apenas ao
longo do tempo, mas modificando-se também “na articulação com as histórias pessoais, as
identidades sexuais, étnicas, de raça, de classe [...]” (LOURO, 1999, p. 28). [A46] Comentário: M. q. anterior.

Para Kathryn Woodward (2004), as instituições sociais podem ser entendidas como
“campos sociais”, nos quais exercemos diferentes graus de escolha e autonomia. Cada campo
150

social “tem um contexto material, um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos
simbólicos” (WOODWARD, 2004, p. 30). Instituições como o Estado, a igreja, a escola, os
grupos de trabalho e a família, estão ligadas às relações e espaços de pertencimento dos
indivíduos. Louro (1998, p. 26), todavia, ressalta que por intermédio dessas instituições a
sociedade procura intencionalmente, através “de múltiplas estratégias e táticas, ‘fixar’ uma
identidade masculina ou feminina ‘normal’ e duradoura”. Para Silva (2004, p. 83),
“normalizar significa atribuir a essa identidade [normal] todas as características positivas
possíveis, em relação à quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma
negativa”. Essa identidade passa a ser hegemônica, percebida como “natural”, desejável e
única. Uma vez posicionada desta forma, deixa de ser interpretada como uma possibilidade
entre tantas outras, passando a ser percebida como “a identidade”.
Na revista Casa & Jardim dos anos 1960, os discursos textuais e imagéticos
empregados sugeriam que os afazeres domésticos não significavam apenas tarefas a serem
cumpridas, pois traduziam o engajamento e a dedicação das mulheres no lar. Logo, deveriam
ser percebidos com formas de expressão do amor e do cuidado da dona de casa para com sua
família. Conforme afirma Hollows (2008), valores associados às moradias, como conforto e
intimidade, são materializados no cotidiano por meio do trabalho doméstico. A autora enfatiza
que esse trabalho é realizado por pessoas que precisam estar predispostas a investir em
práticas de cuidados. Ela também lembra que as práticas de cuidado podem ser
desempenhadas tanto por homens como por mulheres. Porém, a predisposição ao trabalho
doméstico é frequentemente associada às experiências e habilidades femininas (HOLLOWS,
2008). No periódico, prescrições acerca do desempenho das mulheres no trabalho e no
consumo doméstico, indispensáveis para sustentar as práticas de cuidados, contribuíam na
construção da imagem da “dona de casa ideal”.
Na década de 1960, os artefatos domésticos divulgados em Casa & Jardim estavam
associados ao processo de modernização da casa, numa tentativa de vincular discursos sobre o
prazer e a realização pessoal de cuidar da família ao bom funcionamento e à organização do
lar. Santos (2005, p. 16) explica que “ao apropriar-nos de um artefato, também estamos nos
apropriando dos modos de prática e dos significados a ele associados”. Mediando o
relacionamento entre as pessoas, os artefatos carregavam na sua materialidade valores e
comportamentos construídos socialmente. Daniel Miller (2013) considera que as pessoas
fazem as coisas assim como, na mesma medida, as coisas fazem as pessoas. Para o autor, as
coisas “não chegam a representar pessoas, mas a constituí-las” (MILLER, 2013, p. 37).
Assim, as práticas de consumo doméstico sugeridas em Casa & Jardim dialogavam com as
151

expectativas e desejos das leitoras que, uma vez optando pela apropriação das tecnologias
domésticas, poderiam investir na figura “ideal” da “dona de casa moderna”. Formatado: Português (Brasil)

REPRESENTAÇÕES DE FEMINILIDADES NOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS

Ao longo dos anos 1950 e 1960, as revistas brasileiras passaram a ser sustentadas
pela divulgação de anúncios publicitários. A publicidade influenciava as revistas tanto no seu
conteúdo quanto no seu formato, “especialmente na padronização da página e no uso da cor,
vantagem que a revista terá sobre seus concorrentes até o advento da televisão em cores nos
anos 60” (MIRA, 2003, p. 10).
Conforme argumenta Nara Widholzer (2005, p. 22), a publicidade se configura como
uma “forma de pedagogia cultural, distinguindo-se do modelo escolar por seu apelo à emoção
e aos desejos”. Essa autora considera que, no Brasil dos anos 1960, imagens de
“domesticidade” ou “de sustentáculo interno da estrutura familiar” eram frequentemente
construídas e associadas com as mulheres, sendo elas apresentadas não apenas como
consumidoras de artigos para o uso pessoal, mas também como as responsáveis pela compra
de produtos para a casa e para os demais membros da família. Sob esse enfoque, Widholzer
(2005, p. 23) explica que, no caso particular dos artefatos domésticos, “nada pode parecer
mais natural aos publicitários que associar tais bens de consumo invariavelmente à mulher”.
A partir da observação dos anúncios publicitários veiculados em Casa & Jardim ao
longo daquela década, podemos afirmar que as observações de Widholzer procedem, pelo
menos no que diz respeito ao universo deste periódico. Além disso, o estudo dos anúncios de
eletrodomésticos possibilitou a identificação de alguns tipos de feminilidades frequentemente
evocados na construção da imagem da “dona de casa moderna” nos anos 1960. Classificamos
essas feminilidades em três categorias, a saber, a “rainha do lar”, a “cozinheira prendada” e a
“dona de casa eficiente”, que serão discutidas na sequência. Formatado: Português (Brasil)

A “RAINHA DO LAR”: MÃE, ESPOSA E DONA DE CASA Formatado: Fonte: Não Negrito

De acordo com as convenções sociais vigentes no Brasil na década de 1960, a


conduta feminina ideal – referente às mulheres das camadas médias – correspondia à
consolidação do casamento tradicional, permeado pelos cuidados do lar e da família. Este
seria o desejo ansiado pela maioria das moças e por suas famílias e correspondia à “condição
feminina” legitimada por instituições sociais como a escola, a igreja, o Estado e a grande
152

mídia. O comportamento adequado e esperado das moças solteiras era visto como garantia do
respeito social e do acesso ao casamento tradicional e à vida de “rainha do lar”. De acordo
com a moral dominante e os padrões dos “bons costumes”, as moças de família apresentavam
“gestos contidos, respeitavam os pais, preparavam-se adequadamente para o casamento,
conservavam sua inocência sexual e não se deixavam levar por intimidades físicas com os
rapazes” (PINSKY, 1997, p. 610).
O namoro era visto como uma etapa preparatória para o noivado e,
consequentemente, para o casamento. Durante o período de namoro, a moça deveria procurar
mostrar que era prendada, afetuosa e recatada, revelando ao pretendente que seria uma boa
futura esposa. Já o namorado interessado deveria mostrar-se “sério”, responsável e capaz de
sustentar uma família. Os parentes do rapaz procuravam impedir que ele se casasse com
“qualquer uma” que pudesse afetar sua imagem e estabilidade doméstica, enquanto os
parentes da moça faziam questão de deixar claro que ela estava protegida e que tomariam
qualquer providência para defender a sua honra (PINSKY, 1997).
As revistas para públicos femininos eram enfáticas nos discursos que pregavam a
repressão às condutas consideradas desviantes ou promíscuas. As moças com quem os rapazes
namoravam, mas não se casavam, eram chamadas de “levianas”.140. Já as garotas que se
comportassem como “moças de família” seriam respeitadas pelos rapazes e teriam muito mais
chances de arranjar um bom casamento. Isso porque, segundo a regra, em última instância,
“eram os homens quem as escolhiam e, com certeza, procuravam para esposa uma pessoa
recatada, dócil, que não lhes trouxesse problemas – especialmente contestando o poder
masculino – e que se enquadrasse perfeitamente aos padrões da boa moral” (PINSKY, 1997,
p. 613). Segundo Pinsky (2012), o modelo de família ideal divulgado desde o início do século
XIX era o da família nuclear, com uma divisão marcada entre atribuições entendidas como
femininas e masculinas:

aos homens, a responsabilidade de prover o lar; às mulheres, as funções exclusivas


de esposa, mãe e dona de casa; e baseada na dupla moral, que permite aos homens se
esbaldar em aventuras sexuais ao mesmo tempo que cobra a monogamia das esposas
e a “pureza sexual” das solteiras. Esses valores chegavam aos jovens como se
fossem naturais, desqualificando quem não quisesse ou pudesse segui-los (PINSKY,
2012, p. 480).

140
Eram consideradas levianas as moças que usavam roupas muito ousadas e sensuais, saíam com muitos
rapazes diferentes ou eram vistas em lugares escuros ou em situação que sugerisse intimidades com um homem
(PINSKY, 1997).
153

O modelo ideal de mulher casada era sintetizado na imagem da “rainha do lar”,


figura que congregava as atribuições de esposa, mãe e dona de casa, responsável pela
felicidade doméstica. Considerá-la a “rainha do lar” significava atribuir-lhe não somente

um poder intransferível e significativo sobre a família – com toda a carga que essa
tarefa, nem sempre viável, pudesse trazer – mas também reforçava o papel central da
família na vida da mulher e, parece claro, sua dependência em relação aos laços
conjugais (PINSKY, 1997, p. 627).

Um anúncio publicitário veiculado em Casa & Jardim na edição de abril de 1968


serve para ilustrar como o periódico legitimava a importância do casamento tradicional.
Também serve como mote para a discussão das estratégias usadas na construção de
representações da dona de casa exemplar associada ao uso dos eletrodomésticos. Conforme
podemos observar na Figura 1, o anúncio da geladeira Frigidaire estampa uma mulher jovem,
vestida de noiva. De pé, ao lado do artefato, ela apoia uma das mãos na geladeira, enquanto a
outra mão joga um buquê de flores para trás. A mão apoiada na geladeira exibe uma aliança,
prova concreta do enlace realizado. Podemos inferir que um duplo compromisso foi selado: a
concretização do casamento e o compromisso do cumprimento dos futuros afazeres
domésticos. Na imagem, metade do espaço é ocupado pela jovem e a outra metade é ocupada
pela geladeira, conotando certo equilíbrio na importância atribuída à noiva e ao produto na
composição do anúncio. Por detrás da geladeira, uma iluminação branca serve como elemento
de ligação entre a noiva e o artefato, pois ambos encontram-se iluminados como se fossem os
grandes protagonistas da festa.
As cores que compõem o anúncio variam predominantemente do rosa ao branco. O
vestido da noiva, o buquê arremessado, e a pergunta “Quem será a próxima?” encontram-se
na cor branca, que remete culturalmente às noções de pureza, limpeza, paz e conforto. A
geladeira e o plano de fundo da imagem estão em cor de rosa. A palavra “Frigidaire”
corresponde ao único elemento do anúncio representado na cor azul e em caixa alta. O
emprego do par cor de rosa e azul remete à codificação cromática usada nas sociedades
ocidentais para a diferenciação dos sexos. Enquanto a cor rosa, associada à feminilidade, à
doçura, à ingenuidade e ao romantismo, é utilizada para representar a atmosfera da noiva e o
produto (consumo), a cor azul foi escolhida para representar o nome da empresa (produção).

FIGURA 1 – ANÚNCIO PUBLICITÁRIO DA FRIGIDAIRE Formatado: Fonte: Não Negrito


154

Formatado: Fonte: Não Negrito

Figura 1 – Anúncio publicitário da Frigidaire Formatado: Centralizado, Recuo:


FONTE: Casa & Jardim, n. 159, abr. 1968, p. 31. Acervo da Biblioteca Primeira linha: 0 cm
Formatado: Fonte: Não Negrito
Pública do Paraná.
Formatado: Fonte: Não Negrito
[A47] Comentário: Sugestão: colocar
Pelas dimensões e disposição centralizada, a moça e a geladeira ganham visibilidade antes do parágrafo anterior, para que o
leitor já tenha uma imagem para associar a
privilegiada na organização da imagem. A jovem mulher, agora também esposa e dona de descrição dada no parágrafo anterior.

casa parece ser uma pessoa ao mesmo tempo “tradicional” e “moderna”. Ela valoriza a
instituição do casamento, mas também se mostra desejosa das novidades tecnológicas
oferecidas pelo mercado. Sua expressão é de felicidade, que pode ser resultante tanto da
concretização do casamento como da aquisição da geladeira, sonho de consumo de muitas
mulheres da época. Ao jogar para trás o buquê e agarrar-se à geladeira, a moça parece
transferir a chance do casamento e a oportunidade da aquisição de artefatos domésticos –
como a geladeira Frigidaire – para outras moças, leitoras do periódico, que compartilham do
mesmo desejo de casar e constituir-se como “rainha do lar”. Segundo o texto do anúncio: Formatado: Português (Brasil)
155

Diz a tradição que, aquela que conseguir apanhar o buquê, será a próxima a casar-se.
E nos sonhos que tôdas elas têm para o futuro lar, FRIGIDAIRE está presente, por
ser incontestavelmente um refrigerador de alta qualidade, aliando o mais belo estilo
de linhas modernas e côres harmoniosas, combinando com a decoração da cozinha
sonhada por tôdas elas. Por isso, quando você jogar o buquê, “"capriche"”, dê
também à sua melhor amiga a felicidade de possuir um FRIGIDAIRE.141.

Novamente, o ritual do casamento protagonizado pela noiva está associado ao


produto qualificado como moderno. Dessa forma, tanto no texto quanto na imagem, a figura
da dona de casa moderna é construída a partir da sua ligação com a geladeira Frigidaire.
Contudo, o anúncio também sustenta e conserva as identidades sociais da esposa e da dona de
casa subordinadas aos valores tradicionais. Sendo assim, os discursos veiculados em Casa &
Jardim operavam na construção de imagens acerca do que significava ser uma mulher
atualizada quanto aos padrões de gosto e aos comportamentos de consumo vigentes, sem que
isso ameaçasse a identificação das feminilidades com o universo doméstico (SANTOS, 2010).

A “COZINHEIRA PRENDADA”: O CASAMENTO TAMBÉM SE GARANTE PELO


ESTÔMAGO Formatado: Português (Brasil)

Um dos principais ingredientes da felicidade conjugal nos anos 1960 eram as prendas
femininas. As revistas afirmavam que o bom desempenho nas atividades domésticas,
especialmente na cozinha, garantia a conquista do marido e a manutenção do casamento, uma
vez que “a mulher conquista o homem pelo coração, mas poderá conservá-lo pelo estômago”
(PINSKY, 1997, p. 627).
Esses conhecimentos eram geralmente transmitidos de geração em geração. Isso
porque, desde criança, a menina deveria ser educada para ser uma boa mãe e uma dona de
casa exemplar. As mães, por sua vez, não abriam mão da participação das meninas na
execução das tarefas domésticas, especialmente na cozinha. Independente da classe social, as
meninas precisavam aprender com suas mães a desempenharem com afinco e dedicação as
atribuições de uma dona de casa (PINSKY, 2012).
O anúncio publicitário veiculado em Casa & Jardim na edição de maio de 1962,
sugere que a posição das esposas como responsáveis pelos cuidados com a alimentação da
família poderia proporcionar às donas de casa determinados poderes sobre seus maridos
(FIGURA 2). Dividido horizontalmente em duas partes, o anúncio concentra na área superior
– equivalente a 2/3 do seu tamanho total – a imagem de perfil de uma figura feminina e de
141
QUEM será a próxima? Anúncio publicitário da Frigidaire. Casa & Jardim. São Paulo: Efecê Editora
S. A., n. 159, abril, 1968, p. 31.
156

uma figura masculina, representando um jovem casal. Em primeiro plano, aparecem dois
eletrodomésticos: a “frigideira automática G-E” e o “tostador automático de pão G-E”. O que
pretendemos destacar neste anúncio é a infantilização masculina sugerida por meio da
imagem. O marido é retratado com a boca aberta, na iminência de experimentar um prato
supostamente produzido pela esposa mediante o emprego dos eletrodomésticos.
À sua direita, a esposa sorridente segura uma colher, como se estivesse fazendo o
movimento de “aviãozinho” para alimentá-lo. Essa parte do anúncio apresenta-se na cor rosa.
Podemos observar que a esposa ocupa uma posição de destaque em relação ao marido, que
espera e, provavelmente, aceita satisfeito o prato preparado pela esposa. Dessa forma, o
anúncio sobrepõe à figura da esposa a atribuição de mãe, que alimenta, protege e cuida. A
parte inferior do anúncio conta com mais seis imagens de eletrodomésticos da General
Electric, a saber: um aspirador de pó, uma enceradeira, um ferro anatômico, um ferro
automático, um ferro automático a vapor e um grill automático.

FIGURA 2 – ANÚNCIO DA G-E: “OS QUE ELEGEM PARA SEMPRE” Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado

Figura 2 – Anúncio da G-E: “Os que elegem para sempre”


FONTE: Casa e Jardim, n. 88, maio 1962, p. 6-7. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná. Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado
157

A chamada do anúncio traz a seguinte mensagem: “Os que elegem para sempre...
preferem G-E – um patrimônio para tôda a vida”. A primeira parte desta chamada – “Os que
elegem para sempre...” – encontra-se posicionada entre a figura feminina e a figura masculina.
Podemos inferir que o “patrimônio” citado diz respeito tanto à aquisição dos eletrodomésticos
da marca G-E, quanto ao casamento consolidado. O anúncio também apresenta uma caixa de
texto em fonte menor contendo a seguinte informação:

Os que procuram envolver seus entes queridos numa atmosfera de afeto, carinho,
proteção, exigem para seu lar artigos de absoluta confiança. Sua escolha natural é G-
E – garantia firmada em 83 anos de prestígio internacional.142.

Outra questão que podemos perceber aqui é a inter-relação entre a dona de casa, os
eletrodomésticos e os sentimentos envolvidos na realização das atividades domésticas, em
especial na atividade de cozinhar para a família. Conforme Miller (2013, p. 107) afirma, a
materialidade vai além do físico, do que é perceptível. Dessa forma, de acordo com o anúncio,
ao optar por utilizar os eletrodomésticos da marca General Electric, a dona de casa estaria
produzindo refeições apetitosas, mas também estaria proporcionando “afeto, carinho e
proteção” aos seus familiares.
Conforme os discursos veiculados em Casa & Jardim nos anos 1960, a tarefa diária
de preparar as refeições da família era considerada como uma das responsabilidades mais
importantes das donas de casa. Isso porque a atividade de cozinharela envolvia tanto a
questão de proporcionar a satisfação de comer alimentos gostosos, quanto a garantia da saúde,
mediante a nutrição adequada. Segundo Hollows (2008), a prática de cozinhar envolve mais
do que o ato de produzir refeições. Ela também envolve a produção e a reprodução de uma
série de qualidades culturais e emocionais que agregam a casa e a família, como a experiência
de “cuidar”. Com a sobreposição das representações de esposa feliz e de mãe que alimenta, o
anúncio contribui para a naturalização das experiências de cuidado como características das
mulheres, enaltecendo a autoridade feminina nesses assuntos. Além disso, o aspecto asséptico
da imagem apaga o trabalho envolvido na preparação dos alimentos. Em princípio, parece que
os eletrodomésticos fizeram tudo sozinhos. Hollows (2008) comenta que os significados
atribuídos ao doméstico frequentemente são criados por meio da oposição entre as esferas
privada e pública, sendo que nesta última estaria localizado o mundo do trabalho. Dessa

142
OS QUE ELEGEM para sempre... preferem G-E – um patrimônio para tôda a vida. Anúncio publicitário Formatado: Subscrito
da G-E. Casa e Jardim. São Paulo: Monumento S. A., n. 88, maio, 1962, p. 6-7.
158

forma, a ideologia das esferas separadas “camufla” o trabalho extensivo realizado no lar,
qualificando o espaço doméstico como lugar de descanso e refúgio.

A “DONA DE CASA EFICIENTE”: RACIONALIDADE E ECONOMIA NAS TAREFAS


DOMÉSTICAS

Em meados dos anos 1950, a prosperidade no lar refletia-se também a partir do bom
controle do orçamento doméstico. Nesse período, parte das donas de casa das camadas médias
não exercia trabalho remunerado e dependia do auxílio financeiro do marido para arcar com
as despesas do lar. De acordo com Pinsky (2012), uma das funções mais antigas da dona de
casa é administrar as despesas cotidianas, adequando-as ao orçamento doméstico. Se o
dinheiro não fosse o suficiente para suprir as necessidades da família, esperava-se que a dona
de casa fizesse sacrifícios ou encontrasse fontes de renda alternativas como a lavagem de
roupas para fora, por exemplo.
Para ser uma dona de casa eficiente, além de controlar os gastos da casa e da família,
as mulheres também deveriam saber aproveitar melhor o tempo, simplificando as tarefas
domésticas e os movimentos realizados. Embora o investimento na racionalização do tempo
no lar não fosse necessariamente motivado pela diminuição da oferta de mão de obra para o
trabalho doméstico – conforme ocorria na Europa e nos Estados Unidos desde o final do
século XIX – o imperativo de adequar as atividades da casa às transformações ocorridas nos
ritmos da vida urbana já era uma realidade consolidada no país. Modificações provocadas
pelas novas formas de cálculo e definição do tempo, necessárias para uma melhor organização
da produção capitalista, podiam ser percebidas em todos os aspectos da vida cotidiana
(SILVA, 2008). No espaço doméstico, a determinação de uma rotina diária servia como forma
de ordenar as tarefas, adaptando as atividades às exigências de cumprimento de horários
padronizados.
Nas páginas de Casa & Jardim podemos perceber a influência dos discursos sobre
eficiência na construção de imagens acerca do que significava ser uma mulher moderna. O
anúncio publicitário veiculado na edição de junho de 1961 serve para ilustrar essa questão.
Conforme pode ser observado na Figura 3, na parte superior do anúncio, temos a
representação de uma jovem dona de casa sentada em uma cadeira feita de vime. Ela possui
os cabelos alinhados, veste uma blusa quadriculada, uma saia azul na altura dos joelhos e
calça sapatos brancos de salto alto. Abaixo da cadeira encontram-se três livros, provavelmente
de culinária, já que o texto afirma que a dona de casa acompanha “o que há de mais avançado
159

na arte culinária”.143. Ela parece estar refletindo sobre algo, visto que apresenta o corpo
levemente inclinado, as pernas cruzadas, uma das mãos segurando o queixo enquanto a outra
descansa sobre as pernas. Ao lado da figura feminina, aparece uma caixa de texto no formato
circular, contendo o pensamento da dona de casa. De acordo como texto:

Sou uma dona de casa moderna. Quero aparelhos eletro-domésticos que não tomem
o tempo de meus deveres familiares e sociais. Acompanho o que há de mais
avançado na arte culinária. Quero alimentos fritos, cozidos e assados
adequadamente. Pensando nisso é que prefiro o fogão Brastemp. Claro: o fogão a
gás Brastemp Imperador tem detalhes de funcionamento ideais para a cozinha
moderna e a satisfação da família.144.

FIGURA 3 – ANÚNCIO PUBLICITÁRIO DO FOGÃO BRASTEMP Formatado: Centralizado, Recuo:


Primeira linha: 0 cm
Formatado: Fonte: Não Negrito

143
PENSAR em satisfação – é comprar Brastemp! Anúncio publicitário da Brastemp. Casa e Jardim. São
Paulo: Monumento S. A., n. 77, junho, 1961, p. 79.
144
PENSAR em satisfação – é comprar Brastemp! Anúncio publicitário da Brastemp. Casa e Jardim. São
Paulo: Monumento S. A., n. 77, junho, 1961, p. 79.
160

Figura 3 – Anúncio publicitário do fogão Brastemp Formatado: Centralizado


FONTE: Casa e Jardim, n. 77, jun. 1961, p. 79. Acervo da Biblioteca
Formatado: Fonte: Não Negrito
Pública do Paraná.

Abaixo da caixa de texto, aparece a chamada do anúncio: “Pensar em satisfação – é


comprar Brastemp!”.145. Torna-se pertinente salientar que a expressão “em satisfação”
encontra-se na cor vermelha, enquanto a palavra “Brastemp!” encontra-se na cor azul,
marcando uma divisão de gênero entre consumo e produção. Podemos pensar, neste caso, que
a expressão “em satisfação” faz menção ao consumo do eletrodoméstico pela dona de casa. Já
a palavra “Brastemp!” refere-se à marca da empresa, à produção, ao masculino. De acordo
com Lubar (1998), masculinidades e feminilidades são socialmente e historicamente [A49] Comentário: Não consta nas
referências.

145
PENSAR em satisfação – é comprar Brastemp! Anúncio publicitário da Brastemp. Casa e Jardim. São
Paulo: Monumento S. A., n. 77, junho, 1961, p. 79.
161

construídas; . Eelas refletem e reforçam as relações de poder na sociedade. Conforme já


abordado na seção anterior, nesse período vigorava a associação dos homens com a produção
e o trabalho remunerado. No entanto, queremos reiterar que as donas de casa de classe média,
mesmo que não realizassem trabalho remunerado fora de casa, produziam diariamente no
trabalho doméstico. E esse trabalho envolve também as práticas de consumo. Para Lubar
(1998), os limites entre produção e consumo não são bem definidos e relacionam-se
mutuamente. Ao consumir as tecnologias domésticas, as donas de casa também estavam
produzindo trabalho doméstico.
A outra metade do anúncio é composta por um fundo vermelho e por uma ilustração
centralizada do fogão. Ao lado da ilustração estão elencadas algumas características
diferenciadoras do fogão Brastemp Imperador como: mesa porcelanizada, queimador central,
quatro bocas, termostato, painel decorativo com tomada elétrica e forno com visor de vidro
duplo e iluminação interna.
Segundo o anúncio, ao adquirir o fogão Brastemp Imperador, as donas de casa
estavam se constituindo como modernas. Isso porque o fogão realizava diferentes funções
“ideais para a cozinha moderna”. No anúncio, percebemos que a dona de casa retratada não
quer perder tempo na cozinha. Ela prefere utilizar seu tempo em outros tipos de “deveres
familiares e sociais”. Figueiredo (1998, p. 96) afirma que na fala publicitária não há “sucesso
cabível sem consumo”. Dessa forma, o indivíduo alcançaria seus objetivos menos em virtude
de seu desempenho ou de suas qualificações e mais em razão “do que ele aparenta ser, com
base nos bens que adquire e por meio dos quais se afirma” (FIGUEIREDO, 1998, p. 97). A
“mulher moderna” e “eficiente” dependia da incorporação dos eletrodomésticos na sua rotina
de trabalho. Conforme problematizado anteriormente, ao apropriar-se de um artefato, no caso,
do fogão Brastemp, as donas de casa estavam também se apropriando dos modos de prática e
dos significados a ele associados (SANTOS, 2005).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da vida investimos em diferentes identificações que vão nos constituindo e


nos transformando continuamente. Dessa forma, os significados atribuídos aos artefatos
também se encontram em constante construção e transformação de acordo com as nossas
experiências sociais e vivências pessoais. Na década de 1960, a revista Casa & Jardim
influenciava e reforçava, por meio de seus discursos, a identificação com representações de
feminilidades hegemônicas a partir da veiculação de determinadas normas de conduta,
162

comportamentos e valores. Percebemos que as representações de práticas de consumo


divulgadas no periódico criavam expectativas sociais acerca da figura “ideal” da “dona de
casa moderna”. Essa figura “ideal” era construída com imagens de mulheres brancas, jovens,
de classe média e heterossexuais. Também envolvia a associação com o casamento tradicional
e com a dedicação ao lar mediada pela incorporação das tecnologias domésticas na rotina
cotidiana. A sugestão de consumo dos eletrodomésticos vinha acompanhada de promessas
que garantiam maior “conforto”, “praticidade” e “eficiência”, além de proporcionar maior
“tempo livre” às donas de casa.
Por meio dos anúncios apresentados, destacamos três tipos de feminilidades
valorizados pelo periódico e frequentemente associados às estratégias de divulgação dos
eletrodomésticos. O primeiro, referente à geladeira Frigidaire, ilustra a tipologia de “rainha
do lar”. Este anúncio ressalta o matrimônio como porta de entrada para uma vida cor de rosa
de esposa, mãe e dona de casa. A identidade social da “rainha do lar” era posicionada como
ideal por diversas instituições sociais e almejada por muitas moças solteiras, bem como por
suas famílias. O tradicional e o moderno estão imbricados na imagem, sendo o último
representado pela posse da geladeira. Já o segundo anúncio, correspondente aos
eletrodomésticos da marca G-E, foi escolhido para exemplificar a tipologia da “cozinheira
prendada”. Ele aborda a valorização das práticas culinárias e a autoridade atribuída às
mulheres nessa função. Assim, ao produzir refeições saborosas e nutritivas com a ajuda dos
eletrodomésticos, a dona de casa também estaria proporcionando afeto, carinho e proteção aos
seus familiares. Contudo, o anúncio reifica as práticas de cuidado como atribuições femininas
e, visando associar as noções de eficiência e praticidade aos produtos, contribui para a
invisibilização do trabalho doméstico. Por fim, o terceiro anúncio publicitário, do fogão
Brastemp, está associado à tipologia de “dona de casa eficiente”. Ele estampa uma figura
feminina que se assume como uma “dona de casa moderna” ao admitir seu desejo por um
fogão Brastemp, cujos “detalhes de funcionamento” poupavam o tempo na realização do
serviço.
Vale ressaltar que as categorias “rainha do lar”, “cozinheira prendada” e “dona de
casa eficiente” não são tipos de feminilidades claramente delimitados. As três tipologias se
sobrepõem e se articulam na construção dos discursos de Casa & Jardim acerca da “dona de
casa moderna”. Essa observação é válida para os três anúncios discutidos neste texto, pois em
todos eles é possível identificar mais de uma das tipologias apresentadas. Sendo assim,
optamos por classificá-los de acordo com o tipo de feminilidade que nos pareceu mais
evidente em cada um. Os anúncios também manifestam o interesse que a mídia impressa
163

brasileira tinha na afirmação de estereótipos. Por meio da articulação entre texto e imagem,
esses anúncios engendravam estratégias discursivas que combinavam noções associadas às
feminilidades tradicionais com novos tipos de práticas de consumo características dos anos
1960.

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166

EPÍLOGO – O REVÉS DA TRAMA: EMPREGADAS DOMÉSTICAS, CONSUMO E


RECONHECIMENTO Formatado: Português (Brasil)
167

DE EMPREGADA A “EMPREGUETE”:
DAS LUTAS SIMBÓLICAS NA TELENOVELA BRASILEIRA

Iara Gomes de Moura

A NOVA CLASSE C ASCENDE À TV

A construção das imagens que os sujeitos fazem de si, na contemporaneidade, é uma


tarefa que inclui, inevitavelmente, a reflexão acerca do consumo como ação humana dotada
de sentido social. Neste trabalho, nos propomos a analisar a representação das classes
populares na televisão brasileira, lançando olhar sobre a novela Cheias de Charme e o
concurso A empregada mais Cheia de Charme do Brasil, promovido pelo Fantástico.146. A Formatado: Fonte: Não Itálico

presente reflexão decorre do nosso percurso de pesquisa em torno do protagonismo das


empregadas domésticas na telenovela exibida pela Rede Globo no horário das sete durante o
ano de 2012. Compreendemos que este objeto está atrelado à conjuntura político-econômica
brasileira de suposta ascensão da “nova classe C” e a uma estratégia de mercado que confere
legitimidade aos hábitos de consumo e estilo de vida atribuídos às mulheres desse estrato
social.
Encaramos a novela, no contexto brasileiro, a partir de dois eixos, seguindo a
perspectiva defendida por Lopes (2009): como narrativa de nação e como recurso
comunicativo. O primeiro eixo, já recorrentemente explorado em discussões em torno da
temática deste trabalho, diz respeito à inserção da telenovela no processo moderno de
construção de uma identidade da nação brasileira. O segundo, que nos interessa aprofundar,
ressalta que a telenovela se torna elemento de compartilhamento simbólico comum que
atravessa as classes sociais.

Tão importante quanto o ritual diário de assistir os capítulos das novelas é a


informação e os comentários que atingem a todos, mesmo àqueles que só de vez em
quando ou raramente as assistem. As pessoas, independentemente de classe, sexo,
idade ou região acabam participando do território de circulação dos sentidos das
novelas, formado por inúmeros circuitos onde são reelaborados e ressemantizados.
Esse fenômeno leva-me a afirmar que “«a novela é tão vista quanto falada»”, pois
seus significados resultam tanto da narrativa audiovisual produzida pela televisão
quanto da interminável conversação produzida pelas pessoas (LOPES, 2009, p. 29).

146
Revista eletrônica exibida pela Rede Globo aos domingos. Formatado: Português (Brasil)
168

Tal perspectiva adota, como pressuposto, o papel central da telenovela na


conformação das imagens que as pessoas têm de si e do mundo, e na incidência desta no
agendamento, e na própria organização social de maneira mais ampla. Neste sentido, nos
permite pensar, por exemplo, a concomitância do processo econômico de ascensão do poder
de consumo das classes populares no Brasil e a proliferação de tramas ambientadas em
comunidades pobres com jogadores de futebol e empregadas domésticas nos papéeis
principais, como ocorre em Cheias de Charme e Avenida Brasil, respectivamente exibidas nos
horários das sete e das nove no ano de 2012. Reiterando a tese de Heloísa Buarque de
Almeida (2001), a telenovela atuaria, neste ínterim, como instrumento de pedagogia do
consumo, incutindo hábitos de compra e estilos de vida condizentes com o aumento de renda
das classes trabalhadoras.
Lançamo-nos, nesta ocasião, a dois objetivos fundamentais, a saber: 1) Estabelecer
como a telenovela se insere no contexto de disputa simbólica entre a tradicional classe média
e a ascendente “nova classe C”, evidenciando o papel do consumo nesta diferenciação e 2)
Analisar a representação das empregadas domésticas no folhetim, assim como os sentidos
emergentes da relação das telespectadoras com o produto midiático em questão. Atemos-nos a
alguns elementos de destaque na trama, como a trilha sonora e episódios selecionados por
portarem significações importantes para a problematização colocada.
Enfocamos ainda o concurso “A empregada mais cheia de charme do Brasil”, como
um primeiro momento de nossa investigação sobre a relação entre as telespectadoras e a
telenovela em questão. Buscaremos apoio teórico no entrecruzamento entre as pesquisas de
Formatado: Fonte parág. padrão,
comunicação que se debruçam sobre os processos de recepção e a tradição teórica que vem se Português (Brasil)

consolidando no Brasil em torno da antropologia do consumo. Código de campo alterado


Formatado: Fonte parág. padrão,
Cheias de Charme foi exibida de 16 de abril a 28 de setembro de 2012 pela Rede Português (Brasil)
Código de campo alterado
Globo de Televisão, empresa líder de audiência no território nacional, e alcançou uma média
Formatado: Fonte parág. padrão,
de 37 pontos de audiência, sendo a novela das 19 horas mais assistida em cinco anos. Na Português (Brasil)
Formatado: Fonte parág. padrão,
trama, dirigida por Filipe Miguez e Izabel de Oliveira 147, três empregadas domésticas viram Português (Brasil)

famosas cantoras após um clipe caseiro delas “estourar” na internet. Maria Aparecida Formatado: Fonte parág. padrão,
Português (Brasil)
(Isabelle Drummond), Maria do Rosário (Leandra Leal) e Maria da Penha (Taís Araújo), em Formatado: Fonte parág. padrão,
Português (Brasil)
confronto com as respectivas patroas Sônia Sarmento (Alexandra Richter), Chayenne
Código de campo alterado
(Cláudia Abreu) e Lygia Marinz (Malu Galli), vivenciam uma ascensão individual através, Código de campo alterado
Formatado: Fonte parág. padrão,
Português (Brasil)
147
Os dois diretores dividem a autoria da novela com Daisy ChavesDaisy Chaves, Isabel Muniz, João Formatado: Fonte parág. padrão,
Brandão, Lais Mendes Pimentel, Paula AmaralPaula Amaral e Sérgio MarquesSérgio Marques, com a Português (Brasil)
supervisão de texto de Ricardo LinharesRicardo Linhares. Formatado: Português (Brasil)
169

sobretudo, do poder de consumo e – à semelhança da fábula da gata borralheira – abandonam,


de forma muito rápida, o passado de pobreza e trabalho doméstico, se tornando mulheres
célebres e ricas.
Cida é a mais jovem do trio e trabalha como arrumadeira na casa da família
Sarmento desde que os pais faleceram. Rosário é cozinheira, filha adotiva de um micro-
empresário que vende refeições e sonha em se tornar cantora desde cedo. Penha é empregada
doméstica e sustenta com seu salário a família formada pelo marido desempregado, pelo filho
e pelos dois irmãos; Éé a única negra do trio.
Com uma estratégia de aproximar-se das audiências utilizando-se de ferramentas
transmídia a Rede Globo levou ao ar uma novela que, para além do acompanhamento [A50] Comentário: Na próxima página
consta “ferramentas transmidiáticas”. Já
costumeiro feito pela tela da TV, propiciava aos telespectadores uma interação com a trama que se trata da mesma coisa, seria melhor
manter apenas uma forma. Qual deve ser
que se desenrolava através de outros veículos de comunicação, com destaque para a internet. mantida: “Ferramentas transmídia” ou
“Ferramentas transmidiáticas”?
Na rede, os/as telespectadores/as podiam, por exemplo, ter acesso – antes do lançamento no
universo ficcional – ao clipe que as empregadas da trama produziram para a música Vida de
Empreguete. Além disso, podiam acompanhar “O diário de Cida” (blog com relatos pessoais
de uma das protagonistas), baixar a música como toque do celular, receber conselhos sobre
limpeza e organização da casa, além de também poderem comprar variados itens – de
vassoura ou pá a peças do figurino – customizados e disponibilizados pela Globo Marcas.
No episódio em que o clipe da música Vida de Empreguete148 “"cai"” na rede, as
personagens assistem pela tela do computador, enquanto, na tela da TV, aparece um letreiro
com o endereço do site onde os espectadores podem ter acesso ao mesmo. Num jogo de
narrativa e marketing, a emissora lança o vídeo no site comercial antes de levá-lo ao ar na TV
aberta. O vídeo acumulou mais de um milhão de visualizações nas 24 horas que antecederam
sua exibição na televisão e foi compartilhado nas redes sociais, enquanto a música foi
disponibilizada como toque de celular e passou a compor a grade de programação de
emissoras de rádio populares. Em um outro episódio, diante da prisão do trio das
Empreguetes, uma campanha virtual pela liberação das três mobiliza os personagens da
telenovela e extrapola também a fronteira do ficcional, ganhando adeptos nas redes sociais,
principalmente através do Twitter, onde a hashtag “#empregueteslivre” alcança os trending-
topics149 no Brasil.
Formatado: Fonte parág. padrão,
Português (Brasil)
Código de campo alterado
148
Disponível em: Formatado: Fonte parág. padrão,
Português (Brasil)
<http://www.youtube.com/watch?v=Q_xM0IKDaqQhttp://www.youtube.com/watch?v=Q_xM0IKDaqQ>.
Acesso em: 10/11/ nov. 2013. Formatado: Português (Brasil)
149
Ranqueamento das postagens mais publicadas e republicadas no microblog Twitter. Formatado: Português (Brasil)
170

Apesar de não ser objetivo deste trabalho explorar as ferramentas transmidiáticas e


os modos de interação com o objeto em questão, as situações citadas nos são úteis, no
momento, para ilustrar a importância de se compreender a televisão no cenário comunicativo
emergente. O advento tecnológico de novas plataformas e a emergência de formatos, gêneros
e maneiras de interação com os telespectadores vêm modificando o entendimento já
consolidado que tínhamos no nível de senso comum e da própria Ciência da Comunicação do
ato de assistir TV. Se antes a definição do meio esteve circunscrita, sobretudo, ao campo da
técnica, ou seja, assistir TV significava estar diante de um aparelho receptor ligado a uma
antena por onde eram captadas as ondas eletromagnéticas, em uma perspectiva unidirecional,
hoje, a profusão de novas telas possibilita a mobilidade espacial, temporal e marca, de
maneira contundente, a experiência do assistir.
Concomitante a esta mudança de ordem tecnológica e cultural, pesquisadores que se
dedicam aos estudos de recepção têm se voltado à reflexão e à construção de modelos
possíveis de pesquisa com vistas a dar conta dos fenômenos contemporâneos, dentre eles,
notadamente, o espraiamento de uma cultura participativa nas redes virtuais, da audiência
ativa das comunidades de fãs e da exploração de plataformas transmídia pelas emissoras de [A51] Comentário: Mesmo caso de
“ferramentas tramídia/áticas”. Qual das
150
televisão. . duas formas devemos usar aqui?
[A52] Comentário: Scolari não condiz
Assim, parece-nos mister superar a dicotomia que baseou, durante tanto tempo, as com a data que há nas referências.

pesquisas sobre a mídia que opunham meios massivos -– verticais, unidirecionais, dirigidos a
grandes audiências, de meios interativos –- horizontais, multidirecionais, dirigidos a gostos
pessoais. Compreender os processos de recepção da TV atual é, neste sentido, permitir-se
imbricar-se neste fluxo de informação entre os diversos meios e entre a lógica massiva e a
experiência pessoal. São essas as premissas que guiam nossa análise na sequência.

DAS LUTAS POR DISTINÇÃO SIMBÓLICA: ASCENSÃO DE UMA NOVA CLASSE


MÉDIA NO BRASIL?

Ainda que haja discordâncias quanto à nomenclatura adequada e aà solidez do


fenômeno de ascensão da chamada nova classe C no Brasil, observamos, atualmente, a
centralidade do tema nos debates acadêmicos, midiáticos e cotidianos de uma maneira geral.151.

150
Sobre isso ver: Jenkins (2009); Scolari (2008); Lopes (2011). Formatado: Português (Brasil)
151
Por exemplo em: Carta Capital, 2012. Disponível em:
<http://www.cartacapital.com.br/economia/muito-alem-da- Formatado: Fonte parág. padrão
caricaturahttp://www.cartacapital.com.br/economia/muito-alem-da-caricatura>. Acesso em: 17/07/ Formatado: Fonte parág. padrão
jul. 2013. Vaguinaldo Marinheiro, Folha de São Paulo, 2012. Disponível em:
171

Com relação à televisão, destaca-se o protagonismo de personagens, trilhas sonoras e cenários


pertencentes ao campo cultural deste estrato social, além de um interesse manifesto dos
produtores e diretores em atrair essas audiências. A reportagem da Revista Mídia Dados Brasil,
veículo voltado aos grupos de anunciantes e profissionais de marketing e propaganda, trata da
preocupação do mercado de mídia em atrair esse público consumidor: “([...]) a ascensão da
classe C continua sendo fato relevante, bem como o crescimento de sua renda, pela
oportunidade de abertura de novos mercados para uma série de produtos e serviços” (2013, p.
100).152. [A53] Comentário: Falta a autoria; o
link está quebrado.
A questão que norteia a maior parte do debate sobre o fenômeno gira em torno dos
critérios adotados para o estabelecimento da ascensão social. Enquanto os números
propagandeados pelo Estado e noticiados pelos meios de comunicação baseiam-se,
fundamentalmente, na renda e/ou no poder de consumo para o estabelecimento da
classificação, alguns pesquisadores apontam a falência deste modelo. Marcio Porchmann
(2012) defende que a mudança pela qual passa a estrutura social brasileira prescinde de
interpretações mais profundas, que se situem além de uma “retórica de classe de rendimento”
e do tratamento tendencioso de dados estatísticos (PORCHMANN, 2012, p. 7). A principal
hipótese do autor é a de que a publicização do aparecimento de uma nova classe média,
inclusive através dos meios de comunicação, não é um equívoco conceitual, mas a

([...]) expressão de disputa que se instala em torno da concepção e condução das


políticas públicas atuais. A interpretação de (nova) classe média resulta, em
consequência, no apelo à reorientação das políticas públicas para a perspectiva
fundamentalmente mercantil. Ou seja,o fortalecimento dos planos privados de saúde,
educação, assistência e previdência (PORCHMANN, 2012, p. 11).

Aprofundando a crítica, Jessé Souza (2012) aponta a necessidade de se levar em


conta diversos outros fatores para localizar este ou aquele grupo na pirâmide social. A partir
de uma interpretação bourdiesiana, o autor critica as análises eminentemente economicistas e
destaca que há um conjunto de pressupostos e condições estruturados previamente por um Formatado: Fonte parág. padrão
Formatado: Fonte parág. padrão
pertencimento de classe (SOUZA, 2012, p. 305).
Formatado: Fonte parág. padrão
Formatado: Fonte parág. padrão
Formatado: Fonte parág. padrão
Formatado: Fonte parág. padrão
Código de campo alterado
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1119929-todos-querem-tirar-a-nova-classe-media- Formatado: Fonte parág. padrão,
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1119929-todos-querem-tirar-a-nova-classe-media-para Português (Brasil)

dancarpara dancar.shtmlshtml>. Acesso em: 07/07/ jul. 2013. Formatado: Fonte parág. padrão,
152
Mídia dados, 2013. Disponível em: <http://www.gm.org.br/page/midia- Português (Brasil)
dadoshttp://www.gm.org.br/page/midia-dados>. Acesso em: 07/07/ jul. 2013. Formatado: Português (Brasil)
172

O lançamento de produtos televisivos que objetivam encaixar-se em formato e


conteúdo ao habitus153 (BOURDIEU, 2007) das classes populares – a exemplo do programa
Esquenta! – revela, de maneira contundente, posicionamentos e discursos que refletem as
disputas simbólicas em jogo. Em artigo publicado em sua coluna semanal, no Jornal O Globo,
em 15 de abril de 2012 (período de estreia das telenovelas Cheias de Charme e Avenida Brasil),
o jornalista Artur Xexeo critica a tentativa dos produtores de atrair a nova classe média.

Sejam bem-vindos ao paraíso os que ganham entre R$ 1.200 e R$ 5.174 por ano.
Mas tem que ter lugar para todo o mundo. Eu quero de volta o meu filme legendado
na TV e torço pela possibilidade de passar um intervalo comercial inteirinho sem
assistir a um anúncio do Supermarket. Onde foi parar a televisão da velha classe
média? Sempre fui noveleiro, nunca tive vergonha disso. Assisti às novelas de Ivany
Ribeiro em versão original. Mas não aguento mais tramas ambientadas na
comunidade, sambão na trilha sonora, mocinha cozinheira e galã jogador de futebol.
Eu quero de volta a minha novela de Gilberto Braga (XEXEO, 2012).

No trecho exposto, explicita-se o sentido do gosto e dos hábitos de consumo


enquanto instrumentos de distinção social. É neste conflito que o objeto deste artigo se coloca.
Buscamos afastar-nos das análises que tendem a circunscrever a posição de classe a partir do
que se convencionou chamar de “economicismo” – que contém desde a visão marxista vulgar
para a qual o critério fundamental é a posição na cadeia produtiva até a perspectiva liberal-
conservadora, segundo a qual o poder de consumo ou a renda são capazes de definir, em
última instância, a posição de classe. Segundo a perspectiva que adotamos, existem valores
imateriais em disputa no processo de reprodução das classes sociais e que determinam as
possibilidades reais de ascensão ou permanência dos indivíduos em determinados estratos.
Neste sentido, o consumo emerge como elemento de construção simbólica do
mundo. Néstor García Canclini propõe conceitualizar o consumo, não como simples cenário
de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas como espaço que serve para pensar, e no qual se
organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades
(CANCLINI, 2010, p.14). Nessa mesma linha, Douglas e Isherwood (1990) e outra gama de
autores de referência para a Antropologia do Consumo, como Daniel Miller (1987), Grant
McCracken (1988) e Colin Campbell (2001) defendem que este deve ser entendido como base
do processo social e não simplesmente como resultado ou objetivo do trabalho assalariado dos
responsáveis pela produção.

153
“[...] o habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo
tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas. Na relação entre as duas capacidades que
definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar
e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social representado, ou seja, o
espaço dos estilos de vida” (BOURDIEU, 2007, 162).
173

Problematizamos o movimento de transformação da representação das classes


populares na televisão, dando ênfase, aos novos sentidos emergentes em torno das mulheres
trabalhadoras domésticas, ou, como se costuma chamar no Brasil, empregadas. Carla Barros
(2012), ao empreender uma análise sobre as representações do serviço doméstico na televisão,
chama atenção para a mudança de abordagem que marca, neste período, as telenovelas:

O imaginário referente à empregada doméstica, muitas vezes articulado à


“acomodação das diferenças” vividas no país por conta da dominação personalista
que apaziguava os confrontos de classe, parece ter agora novas representações, mais
nuançadas – por um lado, evidencia-se a vontade de ocupar o lugar do dominador,
através do caminho da vingança pessoal e social (Avenida Brasil) ou do exercício de
talentos artísticos singulares (Cheias de Charme); por outro, a própria trajetória das
ex-empregadas nas referidas tramas e os efeitos da “mudança de lugar” comunicam
alguma possibilidade de questionamento da “ordem estável” do antigo mundo
(BARROS, 2012, p. 81).

Depreende-se que a legitimidade e a visibilidade conferidas às personagens


populares, nas telenovelas, refletem, em alguma medida, a mobilidade social vivenciada
no Brasil sob a égide dos governos dos presidentes Luís Inácio Lula da Silva (2003 -2010)
e Dilma Rousseff (2010-2014), ambos do Partido dos Trabalhadores (PT). Desta forma, a
construção de tramas localizadas no território cultural destas classes atende a uma
demanda por atrair a audiência desse estrato que, de acordo com dados do Governo
Federal, através da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República,
corresponde, a mais da metade dos cidadãos brasileiros (cerca de 53%). O dado é
referente a levantamento iniciado em 2012 e integra o estudo Vozes da Classe Média,
levado a cabo pela citada Secretaria.
A telenovela confere ênfase à disputa simbólica entre as patroas, representantes da
classe média “tradicional” ou “velha classe média” e as empregadas, ou empreguetes,
representantes da classe média em ascensão, “nova classe média” ou “nova classe C”. O hit
Vida de Empreguete, composto especialmente para a novela, apresenta o mote da história,
focando o dia a dia de empregadas domésticas que sonham em se tornar ricas e trocar de lugar
com as patroas:

Todo dia acordo cedo / moro longe do emprego / quando volto do serviço, quero
meu sofá / tá sempre cheia a condução / eu lavo pano, esfrego o chão /a outra vê
defeito até no que não há/ queria verê a patroinha aqui no meu lugar, eu ia rir de me
acabar (...)[...]. Minha colega quis botar aplique no cabelo dela, gastou um extra que
era da parcela (...)[...] Eu levo vida de empreguete eu pego às sete / fim de semana
salto alto e verê no que vai dá / um dia compro apartamento, viro socialite / toda boa Formatado: Fonte: Itálico
vou com meu ficante viajar (Compositor: Quito Ribeiro).
174

O paradoxo entre uma vida de trabalho estafante, os problemas de mobilidade


urbana, a relação conflituosa com as patroas e o desejo de lazer no fim de semana
acompanhado do sonho em morar em apartamento, virar socialite e viajar é demonstrativo do
habitus almejado pelas personagens e dos elementos de distinção entre uma vida de pobreza e
a chegada à condição de patroa. Além disso, a presença do crédito como elemento
largamente utilizado por este estrato também aparece no trecho: “minha colega quis botar
aplique no cabelo dela, gastou um extra que era da parcela”.
Na história, a luta de classes desenrola-se a partir de uma matriz cultural há muito
arraigada no ocidente: a fábula da gata borralheira na qual a princesa fadada a uma vida de
privações e trabalho doméstico sofre humilhações diárias de suas patroas, madrastas, bruxas até
o dia em que conquista o amor do príncipe e, finalmente, muda de vida. Os nomes utilizados
para designar, respectivamente, o bairro popular (onde vivem as empregadas) e o condomínio
de classe média alta (onde moram as patroas) – respectivamente, Borralho e Casa Grande –
fazem analogia, respectivamente, ao conto de fadas e à moradia dos senhores de engenho do
Brasil colonial escravocrata, descrita na obra seminal Casa -Grande e Senzala, do antropólogo
Gilberto Freyre.
O primeiro pressuposto do qual partimos aponta para uma representação das
personagens pertencentes à chamada nova classe média dirigida à exaltação do poder de
consumo adquirido por meio de situações inusitadas e/ou esforço individual. Maria do
Rosário, Maria da Penha e Maria Aparecida, as protagonistas de Cheia de Charme, passam a
ser valorizadas e aceitas socialmente a partir do momento em que adquirem, com a fama e o
enriquecimento, status de vida próximos aos das classes A e B.
Quando retornam de turnê pelo Brasil e estão com a carreira consolidada, as
empreguetes adotam novo visual condizente com a condição de pop-stars e abandonam o
passado de pobreza. Rosário compra joias e Cida investe em roupas novas para si e para a
madrinha. As três abrem conta no banco (num episódio em que há merchandising da Caixa
Econômica Federal).154. Se, por um lado, Rosário realiza o sonho de comprar um apartamento
de luxo no condomínio da antiga patroa (num movimento de igualar-se), Penha opta por
reformar sua casa localizada na Comunidade do Borralho e Cida adquire um apartamento
modesto no mesmo bairro, onde passa a morar com a madrinha, também empregada (num
movimento de afirmar as diferenças e manter uma espécie de fidelidade à sua classe de origem).

154
Banco estatal responsável pela destinação dos programas sociais de distribuição de renda, como o
“Bolsa Família” e das demais políticas de assistência do Estado. Formatado: Português (Brasil)
175

FIGURA 1 – EMPREGADAS ANTES DA FAMA Formatado: Fonte: Não Negrito


Formatado: Centralizado, Recuo:
Primeira linha: 0 cm

Figura 1 – Empregadas antes da fama Formatado: Centralizado


FONTE: Disponível em: <http://tvg.globo.com/novelas/
Formatado: Fonte: Não Negrito
cheias-de-charme/Fotos>. Acesso em: 11/12/ dez. 2013.
Formatado: Centralizado, Recuo:
Primeira linha: 0 cm
FIGURA 2 – EMPREGUETES MUDAM VISUAL APÓS TURNÊ PELO BRASIL Formatado: Recuo: Primeira linha: 0
cm
Formatado: Fonte: Não Negrito

FIGURA 2 – EMPREGUETES MUDAM VISUAL APÓS TURNÊ PELO BRASIL Formatado: Fonte: Não Negrito
FONTE: Disponível em: <http://tvg.globo.com/novelas/
Formatado: Centralizado, Recuo:
cheias-de-charme/Fotos>. Acesso em: 11/12/ dez. 2013. Primeira linha: 0 cm
Formatado: Fonte: Não Negrito
Penha compra geladeira duplex e fogão de cinco bocas (num episódio em que há
merchandising da empresa Esmaltec), banheira de hidromassagem, reforma a laje (espaço das
moradias populares aproveitado para banho de sol, lavanderia e momentos de lazer – Figura
3), a quadra da comunidade onde o filho joga bola e o “puxadinho” (nome popular para [A54] Comentário: Não consta no
capítulo.
apartamento normalmente de um cômodo construído sobre edificação anterior de familiar ou
amigo como forma de aproveitar o terreno) da vizinha. O diálogo transcrito abaixo do
episódio que foi ao ar no dia 20/ de julho 07/de 2012 é revelador do paradoxo entre
conquistar itens de consumo, adequar-se ao estilo de vida das patroas ou manter-se fiel ao
habitus das classes populares.
176

Penha: Parece que eu tô sonhando, sabe? Minha casa toda bonitona... Máquina de
lavar, fogão, geladeira. Tudo zero bala, tô nem acreditando nisso... (Penha na
lavanderia encostada na máquina de lavar conversando com o ex-marido)
Alana (Irmã de Penha): Aí minha irmã, ficou lindona a nossa casa, né? Eu ainda
acho que tu devia ter comprado um apartamento num condomínio da Barra né?
Mas...
Penha: (Interrompe) Tá doida, menina?! Que eu não me mudo pra condomínio de
madame metida a besta nem morta. Tu sabe por quê? Porque não tem lugar mais
animado no mundo, meu amor, que o meu Borralho.
Cida: Eu morei a minha vida inteira lá no Casa Grande mas é muita frescura, uma
falsidade danada.
Rosário: Você não morou (ênfase) no Casa Grande, você trabalhava lá, é diferente.
A casa não era sua.
Cida: Bom, neste momento, eu acho o Borralho mais a minha cara.
Rosário: Ah, pois eu já falei com meu corretor. Amanhã mesmo ele vai me mostrar
uns apartamentos pra gente, papito (Palmas e risos).

FIGURA 4 – DETALHE DA COZINHA DA CASA DA PENHA APÓS REFORMA Formatado: Fonte: Não Negrito
Formatado: Centralizado, Recuo: À
esquerda: 0 cm

Figura 4 – Detalhe da cozinha da casa da Penha após reforma Formatado: Fonte: Não Negrito
FONTE: Disponível em: <http://tvg.globo.com/novelas/cheias-de-
Formatado: Fonte: Não Negrito
charme/Fotos>. Acesso em: 11 /12/dez. 2013).
Formatado: Recuo: À esquerda: 0 cm
Formatado: Fonte: Não Negrito
Após a reforma na casa e a compra dos eletrodomésticos, a próxima aquisição de Formatado: Fonte: Não Negrito
Penha, que também ganha destaque na trama, é a de um carro. No capítulo exibido em 16/07/
de julho de 2012, a personagem chega buzinando no Borralho e é recebida pela vizinhança
eufórica. “Caraca, dona Penha, tá uma verdadeira estrela pilotando essa máquina, hein?” -–
diz um dos vizinhos. “Subiu de vida, hein, paixão?” – completa outra vizinha. A câmera
oferece ao espectador uma visão do interior do carro com close na insígnia da marca
Volkswagen no volante, caracterizando mais uma ação de merchandising.
Tanto no caso das que optam por um estilo de vida semelhante ao da patroa como no
das que se mantêm próximas às características das empregadas, a construção dos modos
177

distintos de se relacionar e viver em sociedade está atrelada ao consumo, caracterizando uma


alegoria de uma sociedade onde

[...] pequenos hábitos de compra ao alcance da maioria dos consumidores vão moldar
as identidades individuais e colaboram para a sensação de liberdade de escolha que se
amplia para outras esferas da vida, como se atos de volição fossem suficientes para
definir nossas posições sociais porque afinal somos feitos daquilo que possuímos
(BAUMAN, 2010, p. 247). [A55] Comentário: Não consta nas
referências.

Por outro lado, a ascensão das empreguetes causa raiva e insegurança às patroas, que
se unem e entendem a necessidade de reafirmar e circunscrever seus hábitos de consumo,
territórios e estilos de vida como exclusivos. NEm um dos episódios, a patroa Sônia escuta,
atônita, ao diálogo de uma das babás do condomínio Casa Grande, que conta para alguém
sobre as férias que irá passar em Paris, as quais pagou em dez parcelas. Indignada, Sônia
confronta a empregada e pensa em rever seu roteiro de férias programado para o mesmo
destino.
A música Vida de Patroete, lançada por uma das vilãs da trama, a cantora de tecno-
forró, Chayenne, em resposta ao sucesso do hit das empreguetes, ressalta alguns elementos de
distinção, como a busca pelo controle do corpo através de dietas, frequência em academias e a
ingestão de alimentos lights. Vida de patroete destaca ainda os gastos investidos no aumento
salarial, o conflito na relação patroa e empregada em relação ao uso de uniforme e a
dificuldade de encontrar profissionais do ramo.

Vivo na dieta, comidinha light, vou pra academia, malho meu pilates, chamo minha Formatado: Fonte: Itálico
turma pra tomar um chá, só que a empreguete foi embora, a roupa tá um lixo, a
comida é o ó, a casa ta que é de dar dó, ela ganhou aumento, eu ganho ingratidão,
essa curica é sem noção, minha vizinha quer alguém que dê um jeito nas crianças,
use uniforme ea faça as compras. Só que as empreguetes não tão nem aí e ficam no
mercado só de ti ti ti (Composição: Quito Ribeiro).

Tornou-se lugar -comum no Brasil, nos últimos anos, a afirmação de que “ninguém
quer mais trabalhar em casa de família”, em decorrência, principalmente, do aumento da
oferta de empregos informais. É ainda elemento complicador desta relação, a recente
aprovação da Proposta de Emenda à Constituição nº 478/10 – conhecida sob a alcunha de
PEC das domésticas –, que estende à categoria os direitos já previstos aos/às demais
trabalhadores/as em regime CLT155, como, por exemplo, salário mínimo, regulamentação das Formatado: Fonte: (Padrão) Times
New Roman, Sobrescrito

Formatado: Fonte: Times New Roman


155
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é a principal norma legislativa brasileira referente aos Formatado: Fonte: Times New
direitos trabalhistas. Roman, Português (Brasil)
178

horas extras, FGTS156, auxílio -creche e pré-escola para filhos e dependentes, jornada de Formatado: Fonte: (Padrão) Times
New Roman, Sobrescrito
trabalho de oito horas diárias ou 44 horas semanais, dentre outros. A lei entrou em vigor no
dia 3 de abril de 2013 e vigorou como tema permanente nos noticiários, que se preocuparam
com a orientação dos patrões sobre como proceder para adequar-se à nova legislação e com o
impacto desta nas finanças das famílias empregadoras.157. [A56] Comentário: Não consta nas
referências.
Como visto, o processo de crescimento da renda média da população das classes
baixas no Brasil ecoa nas representações midiáticas deste estrato. Isso ocorreu com mais
frequência a partir de dois eixos: a exaltação do poder de consumo adquirido e a demarcação
simbólica do que viria a ser o estilo de vida da chamada nova classe média. Além disso, as
disparidades estruturais imbricadas nas relações de gênero, nas posições de classe e nas
identidades étnico-raciais, dentre outras, são diminuídas diante da exaltação da “força da
mulher brasileira” personificada, notadamente, nas três Marias do folhetim das sete. Formatado: Português (Brasil)

EMPREGUETE, PATROETE E PERIGUETE: IMAGENS DO FEMININO EM


CHEIAS DE CHARME

A segunda música lançada pelas empreguetes, intitulada Marias brasileiras, exalta a


ética do trabalho, o empreendedorismo e o protagonismo individual como características das
mulheres pertencentes à nova classe média:

Maria brasileira / De tudo, sou capaz! / Maria verdadeira / Tudo que você fizer, eu
faço mais (...)[...] / Somos as Marias que sonhamos/ Que arrumamos e limpamos/A
bagunça que eles fazem (...)[...] / Maria cantando / Maria dançando / Maria
esperando o amor que não vem / Maria lutando / Maria querendo ser rica também
(Composição: Quito Ribeiro).

156
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Formatado: Fonte: Times New Roman
157
O tema foi capa, por exemplo, da edição nº 2.315 da Revista Veja, disponível em: Formatado: Português (Brasil)
<http://veja.abril.com.br/
Formatado: Fonte: 10 pt
acervodigital/home.aspxhttp://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx>. Acesso em: 07/11/ nov. 2013. A
reportagem de capa intitulada “Nada será como antes” traz o seguinte abre: “Como as famílias estão se Formatado: Fonte parág. padrão,
organizando para se adaptar à lei que melhora a vida das empregadas domésticas mas torna mais caros os seus Fonte: 10 pt, Português (Brasil)
serviços”. A reportagem apresenta o contraponto da situação europeia onde o serviço doméstico apresenta
apenas 0,3% da força de trabalho em contraste com o Brasil que tem o índice de 6,9%. Na página vizinha, numa
foto em destaque, a modelo Yasmim Brunet (filha do dono de uma das maiores fortunas brasileiras, Eike Batista, Formatado: Cor da fonte: Vermelho,
diz que opta pelo serviço de uma diarista uma vez por semana, uma vez que, ela mesma, após morar fora do país, Realce
optou por manter a limpeza e organização da casa (Veja, 2013, p. 71-72). Formatado: Português (Brasil)
179

Segundo Filipe Miguez, “a novela é uma grande homenagem a essa mulher


[guerreira] que existe em todas as classes”.158. O mito da super-mulher aparece como mais
uma maneira de encobrir as disparidades entre os gêneros, reforçando a imagem de que é
possível, sem nenhuma mudança estrutural e sem questionamento das relações de gênero tal
como estas se colocam atualmente, a união dos predicados de beleza dentro dos padrões
estabelecidos, sucesso profissional, independência financeira sem, porém, esquecer do
cuidado com o lar e com a manutenção da família. A socióloga Nina Madsen argumenta que o
discurso em torno da ascensão social da mulher pobre encobre as desigualdades estruturais,
étnico-raciais, de gênero, presentes, por exemplo, nas disparidades salariais entre homens e
mulheres e no acúmulo de três jornadas de trabalho para as mulheres.

Além da renda, do crédito e do endividamento, há que se destacar que tal ascensão


também se sustenta no trabalho não remunerado, realizado pelas mulheres no seio de
suas famílias e comunidades. Injustamente, são elas que assumem quase que
solitariamente as tarefas de cuidados (com as crianças, com as idosas e os idosos) e
que muitas vezes trabalham gratuita- mente para manter os pequenos
empreendimentos familiares, que ampliam a renda familiar. Para ascender a esse
padrão de “nova classe média”, nem as políticas públicas, nem o mercado de
trabalho, muito menos do trabalho doméstico, têm oferecido suporte para as
trabalhadoras desse estrato social aliviarem a sobrecarga dos afazeres domésticos e
familiares que suportam. Para emergir, a “nova classe média” se escora na velha e
injusta divisão sexual e racial do trabalho, reproduzindo condições de
vulnerabilidade na vida das mulheres. A compreensão de que esse grupo passa a
compor a classe média brasileira, e de que já não se trata de uma população
“vulnerável”, ou mesmo empobrecida, é, sem dúvida, uma escolha discursiva e
política para se referir a um grupo populacional que cresce no país (MADSEN,
2013, p. 138).

Além de ser característica das empreguetes, essa força superior também é acentuada
na personagem Lygia, advogada, patroa de Penha, que luta para conciliar os cuidados com o
filho, o casamento e a atividade profissional. O dilema entre o privado e o público é
apresentado na polarização entre o sucesso na vida profissional e os problemas com o filho
adolescente e com o marido infiel. A relação entre Penha e Lygia é marcada por um
sentimento de amizade e gratidão, diferenciando-se das demais. Neste caso, a disparidade
entre as classes é resolvida pela construção de uma relação afetiva, enquanto o trabalho
doméstico é ressaltado ao mesmo tempo como atividade oposta -– do ponto de vista

158
Entrevista disponível em: <http://tvg.globo.com/novelas/cheias-de-charme/Fique-por Formatado: Fonte parág. padrão
dentro/noticia/2012/04/
cheias-de-charme-uma-homenagem-mulher-guerreira-de-todas-
classes.htmlhttp://tvg.globo.com/novelas/cheias-de-charme/Fique-por Formatado: Fonte parág. padrão
dentro/noticia/2012/04/cheias-de-charme-uma-homenagem-mulher-guerreira-de-todas-
classes.html>. Acesso em: 07/11/ nov. 2013.
180

qualitativo – do trabalho fora de casa e como complemento necessário deste. Excetuando-se


este caso, as demais patroas são arquétipos de madrastas e bruxas, e nestas, o tom satírico e
bizarro se destaca.
Chayenne é uma rica cantora de tecnoforró, originária do Piauí. A personagem
confere comicidade à trama pelo seu figurino composto por cores, estampas e plumas que
remetem ao universo das cantoras do tecno-brega e de forró eletrônico, ritmos populares
oriundos das regiões norte e nordeste do País e responsáveis pela invenção de novos modelos
de venda e distribuição no mercado fonográfico. Além disso, ganhou apelo popular pelo texto
carregado de sotaque, regionalismos e neologismos. “Curica”, “rejuvelhecer”, “perebíase”,
“ariranha”, são alguns vocábulos comuns nas falas da personagem e fazem menção aos
sotaques e modos de falar dos nortistas e nordestinos.
Observa-se que, ainda que tenha adquirido capital econômico e passado a pertencer à
classe rica, Chayenne conserva o habitus das classes populares, como, por exemplo, o gosto
por roupas exageradas, por comidas gordurosas e a fala marcada pela coloquialidade. A
própria casa que a cantora adquire no Casa Grande tem mobília carregada em tons dourados,
espelhos e tapetes com estampa de animal, além de ter a fachada toda pintada de rosa choque.
Sônia, a patroa de Cida, encarna a madrasta da história. Faz questão de se distinguir a
partir das roupas e joias que consome mesmo quando a situação financeira da família se torna
complicada. Como nos contos infantis, as filhas Isadora e Ariela são fúteis e invejam e temem
a beleza da empregada Cida. A história desta última é marcada pela orfandade e pelo
envolvimento amoroso com um rapaz rico que estaria “prometido” a Isadora. Neste núcleo, a
vingança da empregada se completa com a inversão dos papeéis entre ela e a filha da antiga
patroa.
O eixo trabalho/renda é um dos principais norteadores a partir do qual podemos
entrever a construção que se faz das imagens do feminino na telenovela. Um olhar sobre as
relações afetivas e sexuais também nos oferece revelações importantes nesse sentido. O amor
como pressuposto para o sexo, a postura recatada, a busca pelo amor romântico e a
manutenção de valores e condutas condizentes com a família tradicional e heteronormativa
caracterizam, de uma maneira geral, as empreguetes.
Seguindo esta construção de gênero, observa-se que, no desenrolar da trama, ainda
que as empreguetes tenham atingido o status de celebridade e alcançado assim a vida pública, Formatado: Fonte: Não Itálico

não ocorre um deslocamento do âmbito privado. No último capítulo da novela, Penha


reconcilia-se com o ex-marido, Rosário e Cida se casam numa cerimônia única enquanto a
primeira anuncia para o noivo que está grávida. A felicidade, assim, é completada, quando,
181

além da emancipação no campo do trabalho, na conquista do espaço público, elas conquistam


o que seria o ápice na vida de qualquer mulher: casamento e filhos. Analisando as trajetórias
de vida de duas celebridades brasileiras, Gisele Bündchen e Luciana Gimenez, a pesquisadora
Lígia Lana observa o reforço desta condição:

De maneira sintetizada, pode-se dizer que nas trajetórias analisadas a mulher possui
renda própria, trabalhando fora do âmbito doméstico. Entretanto, não há
desobrigação das tarefas privadas ou a divulgação da maneira como as personagens
conciliam os dois tipos de atividade. Trata-se, em ambos os casos, de mulheres com
condições econômicas para contratar empregados domésticos. A relação entre as
atividades públicas e privadas não é tematizada como um campo problemático, o
que sugere a manutenção das desigualdades (LANA, 2012, p. 256). [A57] Comentário: 2012a ou 2012b?

Por outro lado, destaca-se o papel da “periguete” Brunessa na trama. Com uma moral
sexual liberada dos tabus da monogamia e do amor romântico e ligada, na maior parte das
vezes, ao interesse econômico, Brunessa exibe um corpo exuberante e curvilíneo e vive à
procura de “bons partidos” com quem possa se divertir e usufruir, ainda que de maneira
efêmera, do “bom e do melhor”. A etimologia do termo, advinda de “perigo”, já expressa,
em si, o machismo que aponta a liberalização sexual da mulher como uma ameaça à moral e
áà organização social. Neste caso, o comportamento sexual da personagem é percebido de
maneira dúbia:, a um só tempo, exalta-se a liberalização do corpo, a suposta independência
conquistada e a separação entre sexo e amor, e, por outro lado, demarca-se, profundamente, a
linha entre ela e as garotas que “são pra namorar”.
Berg, Torres e Silva (2011), a partir de um estudo com três meninas da periferia, [A58] Comentário: Não consta nas
referências.
frequentadoras de bailes funks, apresentam um contraponto à visão apressada que conduz à
celebração do comportamento sexual “descolado” de algumas garotas das classes populares,
como fora uma imagem de insubmissão ou emancipação. Eles apontam que a erotização
precoce e exacerbada pode refletir um sentimento introjetado de “disputa” pelo homem
provedor que lhes tiraria o sentimento de insegurança acumulado numa vida marcada desde a
infância pela escassez de recursos financeiros e afetivos e pela ameaça constante de violência
sexual. Além disso, a celebração do corpo pode, neste sentido, reforçar uma coisificação do
objeto de prazer e dominação masculina.

Confirmando a perspicaz intuição de Freud, a exibição ritualizada de um prazer ou


realização é tanto mais necessária quanto mais esse prazer e ritualização são negados
a quem os exibe. O desprazer vem de que, na intimidade precária dessas meninas e
rapazes, a “entrega de si” não suspende os estigmas da dominação do homem sobre
a mulher, agravada pela dominação de classe (BERG; TORRES; SILVA, 2011, p.
162).
182

O fim da história para Brunessa também é marcado pela maternidade e pelo


casamento. Num dos episódios finais, a moça exibe para a tia o “anel de compromisso’” que
ganhou do novo namorado. Observa-se que a novela apoia-se em dicotomias há muito
difundidas na cultura ocidental: bela/feia, boa/má, corpo/intelecto, amor/sexo,
público/privado, rico/pobre. Em resposta às disparidades de classe e de gênero, apresenta-se
uma tele-rrealidade159 assentada numa exaltação do poder de consumo e na resolução de
conflitos sociais por meio da superação individual, do personalismo e das relações afetivas.
Tal representação insere-se numa trama mais ampla de estruturas econômicas, psíquicas e
afetivas que viriam a caracterizar a chamada sociedade do consumo e que guardam relação
com a busca irrefreada por visibilidade e fama, observáveis, por exemplo, nos enormes
sucessos dos programas do tipo reality-shows. No tópico a seguir, analisamos o concurso
lançado pela emissora produtora de Cheias de Charme enquanto estratégia de promoção da
telenovela, mas também enquanto recurso narrativo que endossa a tese de ascensão social por
meio do esforço individual.

A EMPREGADA DOMÉSTICA MAIS CHEIA DE CHARME DO BRASIL – JOGOS DE Formatado: Fonte: Itálico

VISIBILIDADE EM BUSCA DE RECONHECIMENTO

Marilene Jesus, baiana de 33 anos, acorda às cinco da manhã, todos os dias, e sai
para cumprir a rotina de varrer, lavar roupa, fazer comida e espanar a poeira dos móveis da
casa da patroa. Desde quando, ainda menina, a mãe a encaminhou para trabalhar “em casa de
família” a rotina se repete. Em 22 de julho de 2012, algo novo aconteceu na vida de
Marilene.160. Nesse domingo, ela deixou de ser uma anônima espectadora, como as tantas
brasileiras “fãs de carteirinha” das telenovelas, para se tornar a empregada mais cheia de
charme do Brasil. A vencedora do concurso via transmutar-se, em realidade, a fictícia
ascensão social das “empreguetes” que acompanhava diariamente, às 19h, em Cheias de
Charme, telenovela em exibição pela mesma emissora.

159
A TR ée claramente uma área vital de pesquisa, se considerarmos que ela é cada vez mais
importante na programação da televisão popular, e, se acreditarmos que uma das coisas que ela faz é
melodramatizar todos os destinos, como uma questão de responsabilidade individual, ao mes mo tempo
obscurecendo os fatores estruturais que ainda os determinam fortemente (MORLEY, 2010, p. 14).
160
Dados retirados de reportagem publicada em 22/07/ jul. 2012 no site do Correio 24 Horas. Disponível Formatado: Fonte: Itálico
em: <http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/baiana-e-escolhida-a-empregada-mais-
cheia-de-charme-em-concurso-do-fantastico/>. Acesso em: 25/03/ mar. 2013. Formatado: Inglês (Estados Unidos)
183

Observa-se a criação de uma estratégia de marketing da rede de TV de aumentar a Formatado: Fonte: Itálico

audiência da telenovela a partir da utilização da intertextualidade com outro programa da


mesma grade. Além disso, o concurso pode ser entendido como um pseudo-evento na acepção
de Daniel Boorstin (1992), que assim caracteriza os eventos criados especialmente para
aparecer na mídia. Crítico das mudanças impulsionadas na cultura norte-americana pela
disseminação da mídia, preocupavam-no as consequências de tais transformações na vida
(experiência) real dos indivíduos.
Segundo o autor, a indústria do entretenimento e sua oferta inacabada de prazer
artificial acabariam por criar, nas pessoas, uma avidez por vivenciar um mundo mais
interessante, a exemplo do que assistiam nas telas do cinema. O pseudo-evento aparece como
a maior prova desta busca irrefreada dos espectadores. Boorstin avança na análise daquilo que
ele irá chamar de pseudo-evento humano, a celebridade. O conceito permite aos estudos que
se debruçavam sobre este fato da cultura midiática o estabelecimento de diferenças entre o
que se classificava como herói até então e este novo fenômeno nascido a partir da revolução
gráfica. “O herói foi reconhecido pela sua realização, a celebridade pela sua imagem ou marca
registrada. O herói cria a si mesmo, a celebridade é criada pela mídia. O herói era um homem
grande, a celebridade, um nome grande” (BOORSTIN, 1992, p. 21).161.
Tal procedimento, empreendido por Boorstin, nos ajuda a pensar, atualmente, a
questão que, aà primeira vista, parece de difícil de respondersta: o que leva pessoas anônimas
(como no caso de Marilene, ou das próprias personagens da novela) a alcançar o status de Formatado: Fonte: Itálico

celebridade? O autor nos responde: a celebridade é uma pessoa reconhecida por ser bem
conhecida. O que nos lança a uma segunda questão: não há nada além do que um mecanismo
de visibilidade ativado pela mídia para o nascimento da celebridade? Então, nesse caso, o que
leva o público a reconhecer essas pessoas enquanto tal? Analisemos mais de perto o caso de
Marilene.
“Rárárárá, mas eu tô rindo à toa, não que a vida seja assim tão boa, mas o sorriso
ajuda a melhorar ([...])”. Embalada pelo forró do grupo Falamansa, Marilene cantarola
enquanto espana os móveis da casa da patroa e sorri para a câmara repetidas vezes. Foi com
esse vídeo162, assistido e compartilhado por milhares de brasileiros/ (as) na internet, que a
baiana ganhou o concurso A Empregada mais Cheia de Charme do Brasil. Além da fama
161
Tradução livre do original: “The hero was distinguished by his achievement; the celebrity by his image
or trademark. The hero created himself; the celebrity is created by the media. The hero was a big man; the Formatado: Fonte: Não Itálico
celebrity a big name”.
162 Formatado: Inglês (Estados Unidos)
Vídeo disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=UDMXvv3I53chttp://www.youtube.com/watch?v=UDMXvv3I Formatado: Fonte parág. padrão
53c>. Acesso em: 17-06- jun. 2013. Formatado: Fonte parág. padrão
184

repentina conquistada nas redes sociais, Marilene de Jesus recebeu como prêmio a
participação num dos capítulos da telenovela que costumava assistir ao voltar do trabalho.
O concurso teve mais de 1.400 participantes de todo o Brasil, dentre as quais, foram
eleitas por júri popular cinco finalistas, que passaram pelo crivo das atrizes protagonistas de
Cheias de Charme. Durante a escolha da vencedora, levada ao ar no Fantástico em 22/07/ de
julho de 2012, o carisma e a “verdade” de Marilene foram os elementos destacados pelo júri
para o resultado. Características reforçadas pelas entrevistas dadas pela patroa, Vitória Régia,
após o anúncio: “Se ela já ria à toa, agora então...”.163.
Os sentimentos de alegria e espontaneidade que emanam do vídeo inserem-se numa
rede ampla e difusa de discursos e ações que reproduzem valores como a autor-realização, o
empreendedorismo, o individualismo, a ideologia meritocrática e, em última instância, a
busca pela autenticidade – base moral por trás de todos os anteriores.
A partir de narrativas centradas nos indivíduos e de uma interpelação constante ao
“eu verdadeiro” de cada um de nós, os discursos midiáticos, notadamente, através da
publicidade, estimulam as pessoas a buscar conhecer e controlar a si mesmo com vistas a uma
melhor performance corporal, um melhor desempenho afetivo e social e, claro, ao sucesso Formatado: Fonte: Itálico

financeiro.

[(...)] até aqueles que ignoram as minúcias do conceito de capital humano sentem-se
estimulados, hoje em dia, a agir programaticamente para acumular conhecimentos,
habilidades técnicas, redes de contatos e disposições motivacionais que o deixarão
em posição de vantagem nas relações de concorrência que se disseminam – sem
exagero – por todas as esferas da vida (FREIRE FILHO; CASTELLANO, 2011, p.
29).

No caso de Marilene, o ser ela mesma, traduziu-se numa performance diante do Formatado: Fonte: Itálico

vídeo que reproduzia as atividades do cotidiano sem nenhum efeito sonoro, imagético ou
figurino especial e maquiagem. Ser ela mesma significava ocupar um espaço de resignação
frente ao trabalho redentor, transmutado no sorriso constante. Charles Taylor sintetiza a ideia
por trás do ideal moral de autenticidade:

Ser verdadeiro comigo mesmo significa ser fiel à minha própria originalidade e isso
é algo que só eu posso explicitar e descobrir. Ao fazê-lo, estou também a definir-me

163
Notícia publicada em 22/07/ jul. 2012, disponível em:
<http://www.correio24horas.com.br/noticias/ Formatado: Fonte parág. padrão
detalhes/detalhes-1/artigo/baiana-e-escolhida-a-empregada-mais-cheia-de-charme-em-concurso-do-
fantastico/http://www.correio24horas.com.br/noticias/ Formatado: Fonte parág. padrão
detalhes/detalhes-1/artigo/baiana-e-escolhida-a-empregada-mais-cheia-de-charme-em-concurso-
do-fantastico/>. Acesso em: 24/06/ jun. 2013.
185

a mim mesmo. Apercebo-me de uma potencialidade que é propriamente minha. É


este o pano de fundo que explica o ideal moral da autenticidade e os objetivos de
desenvolvimento próprio ou de auto-realização como normalmente se formulam
(TAYLOR, 2009, p. 43).

A representação da empregada traduz-se em estranheza quando assistimos à


participação de Marilene num dos capítulos da novela. Embora reconheçamos os limites
claros que se interpõem entre a performance das atrizes (ainda que reivindique uma estética Formatado: Fonte: Itálico

realista) e a atuação da empregada real, chama atenção a disparidade daquele corpo roliço,
negro e nos gestos tímidos não moldados pela técnica da teledramaturgia. Queremos chamar
atenção para a construção narrativa da telenovela que a um só tempo promove a crença no
acaso fortuito que dá acesso ao status de celebridade enquanto demarca fortemente os limites
deste espaço.

As personagens descobertas pelos caçadores de talentos e depois lançadas em grande


escala pelos estúdios são tipos ideais da nova classe média dependente. A starlet
deve simbolizar a empregada de escritório, mas de tal sorte que, diferentemente da
verdadeira, o grande vestido de noite já aparece talhado para ela. Assim, ela fixa
para a espectadora não apenas a possibilidade de também vir a se mostrar na tela,
mas ainda mais enfaticamente, a distância entre elas. Só uma pode tirar a sorte
grande, só um pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma probabilidade,
esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e regozijar-se com a
felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto, jamais é
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.136).

A publicização da trajetória de realização de Marilene, não se esgota neste episódio.


Semanas após Marilene ser escolhida como uma das cinco finalistas do concurso, um outro
vídeo seu – como os anteriores, filmado, editado e disponibilizado no yYoutTube164 pela Formatado: Fonte: Não Itálico

patroa e por amigas desta da turma de Bacharelado Interdisciplinar de Artes/Cinema da


Universidade Federal da Bahia – ganha repercussão na rede. Desta vez, a estética e a
linguagem são de um flagra de uma situação corriqueira. Marilene está trabalhando quando
atende o celular. Do outro lado da linha, a vendedora de uma loja de departamento confirma
alguns dados e oferece-lhe um cartão de crédito. “Não acredito”, chora após desligar o
telefone enquanto relata à patroa.
As duas relembram o dia em que Marilene desejou um cartão e a patroa disse:
“Deixa vir sua fama que você vai ver que o cartão vai vir atrás de você”. O comentário da
patroa reverbera a crença generalizada de que o acesso à visibilidade pública é, em si, um

164
Vídeo disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=lBEgXakHW9Ihttp://www.youtube.com/watch?v=lBEgXakH Formatado: Fonte parág. padrão
W9I>. Acesso em: 17/06/ jun. 2013. Formatado: Fonte parág. padrão
186

valor capaz de agregar outros tantos capitais. Ser famoso, nesse sentido, implica ser
reconhecido por outrem, a partir de um movimento que não mais vai da história pessoal ou do
mérito ao reconhecimento, mas, antes, o contrário;. Cconforme Nathalie Heinich (2012 p.
34), implica em “colocar um nome numa face e não mais a face sobre um nome” (ibidem,
p.34).
A emoção da empregada pela conquista do cartão é tornada pública e ecoa como uma
voz uníssona de tantas outras mulheres das classes populares que veem no crédito a
possibilidade de finalmente conquistar simbolicamente através do consumo o que lhes falta
estruturalmente. A patroa Vitória Régia confirma o exposto através de comentário ao vídeo
postado no yYoutTube: “no caso dela isso significa reinserção social... ela tinha que usar o Formatado: Fonte: Não Itálico

cartão da vizinha...”.
Com relação às mulheres, o alcance do status de celebridade, a partir,
principalmente, das trajetórias das atrizes de Hollywood, contribuiu de alguma maneira para a
chegada destas à vida pública. Por outro lado, Michele Perrot questiona, inclusive, o raro uso
do termo “mulheres públicas”, demarcando as diferenças entre ser famosa, célebre e ter, em
alguma medida, atuação e interferência equânime na esfera pública. Além disso, a
celebrização das mulheres está calcada na exaltação do poder de consumo e no esforço para a
construção da beleza (LANA, 2012, p. 2), ainda que no caso das mulheres das classes [A59] Comentário: 2012a ou 2012b?

populares isso seja feito a partir de critérios outros, como na trajetória da cantora de funk Tati Formatado: Fonte: Itálico
165
Quebra-Barraco, famosa pelo bordão “sou feia, mas tô na moda”. .
Marilene de Jesus conquistou a posição de celebridade por um dia e conviveu com a
fama pelo período necessário a ter acesso algumas coisas que ansiava conquistar, dentre elas,
o cartão de crédito da loja de departamentos e a oportunidade de conhecer, pessoalmente, seu
ídolo, o ator Marcos Palmeira. Como canta a “música chiclete” da novela, a empregada não
chegou ainda a “comprar apartamento” ou “virar socialite” e nem viu “a patroinha botando a Formatado: Fonte: Itálico

roupa pra quarar”. A condição de celebridade não a transformou em “empreguete”, mas, ainda
assim, a crença generalizada parece a de que poderia ter sido. Tal crença, cunhada por David
Morley (2010) de “cultura da loteria” foi bem definida em editorial do The Guardian, citado
pelo mesmo autor:

a esperança (agora) reside na possibilidade de nós também sermos apanhados nesse


tipo de exaltações imprevisíveis – acreditar que o bilhete premiado pode ser o nosso,
ou o número da sorte, o grande prêmio, ou que o talento excepcional (das nossas

165
Sobre isso ver LANA (2012).
187

crianças) as levará flutuando ao estrelato, trazendo muito mais riquezas do que


alguma vez sonharam (MORLEY, 2010, p. 30)

Na trama, entretanto, as ex-empregadas conquistaram o que almejavam. Observa-se,


a partir do exposto, que, com relação ao retrato que faz das mulheres das classes populares em
ascendência financeira, a telenovela não inclui questionamento das estruturas soócio-
econômicas e de gênero que incidem sobre a vida desse grupo. Há uma “celebrização” das
mulheres das classes populares que, apesar de quebrar a invisibilidade destas e conferir-lhes
uma representação “elogiosa”, não questiona os limites e possibilidades do cenário de
ascensão pelo consumo que a chegada das brasileiras à chamada nova classe C representa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da análise de um produto midiático de largo alcance como a telenovela é


possível estabelecer leituras que apontam para a imbricada relação entre as mudanças que se
processam na ordem econômica, material e as disputas e negociações decorrentes na ordem
cultural e simbólica. Neste sentido, Cheias de Charme insere-se num movimento em voga no
Brasil que a um só tempo festeja a ascensão financeira das classes populares enquanto difunde
pedagogicamente modos de ser, de consumir e de pensar.
Com relação às mulheres das classes populares, a representação televisiva acentua o
personalismo, o individualismo e a autenticidade como maneiras de alcançar o sucesso
profissional, pessoal e econômico. As mulheres-celebridades da trama são vencedoras porque
acumulam capital de visibilidade e respondem, satisfatoriamente, aos critérios de beleza,
“atitude” e vida pessoal equilibrada, o que implica na realização do ideal da maternidade e/ou
do matrimônio. Tal construção das personagens encaixa satisfatoriamente na descrição
construída na Cartilha Vozes da Classe Média (2012), publicação da Secretaria de Assuntos
Estratégicos da presidência da república que assim descreve as mulheres da chamada nova
classe C:

Pense em uma mulher, na faixa dos trinta anos, com curso superior, usuária habitual
da internet. Essa mulher, que assumiu o posto de chefe de família, divide seu tempo
entre emprego e lar, responde por boa parte da renda familiar e determina a
distribuição de quase todo o orçamento doméstico. Com mais escolaridade que o
homem, contribui cada vez mais para a renda, ganha dia após dia mais poder social.
Conquistando espaço no mercado de trabalho, antes inimaginável, ela rompe novas
fronteiras em seus hábitos de consumo. Roupas e produtos de maquiagem, antes
tidos como compras supérfluas, hoje são considerados investimento para essa jovem
mulher que, na classe média, passa a ter profissões mais vinculadas ao atendimento
ao público. Almejando novos empregos e estabilidade na carreira, ela se preocupa
188

cada vez mais com sua aparência e não se importa em gastar com isso, pois os
benefícios vão além da valorização da sua autoestima e garantem o sustento da
família e sua evolução profissional. Na outra ponta, ao observarmos as mulheres
mais velhas, enxergamos que profissões como a de empregada doméstica
alcançaram ganhos reais de salários, uma vez que suas filhas procuram outras
perspectivas profissionais (BARROS; GROSNER, 2012, p. 47).

Desse modo, o destaque às capacidades pessoais, ao espírito empreendedor, à ética


do trabalho acaba por encobrir o peso das estruturas culturais, sociais e econômicas que se
interpõem à livre-realização das mulheres das classes populares, e mais especificamente das
empregadas domésticas, nos âmbitos privado e público. A desigualdade entre os gêneros e
entre as classes é encoberta em torno do mito da “super mulher” que, no contexto analisado,
têem seu trabalho fortemente ligado à esfera do lar, mas teêm acesso diferenciado à esfera
pública através do consumo.
Adquire relevância, neste processo, o papel da telenovela como instrumento de
demarcação simbólica dos estilos de vida da nova classe média em contraste com os da
tradicional classe C. O consumo emerge como importante fator de significação na acepção de
Douglas e Isherwood (1980) e a telenovela cumpre o papel pedagógico de apresentar os [A60] Comentário: Não condiz com a
data constante nas referências.
produtos (como nos casos citados de merchandising) e modos de ser do que viria a ser essa Formatado: Fonte: Itálico

nova classe média. Procuramos nesse trabalho aproximarmo-nos dos modos como se constrói
a imagem dessa nova classe média e como os sujeitos se relacionam com essa representação
através dos produtos midiáticos.
Cheias de Charme aparece, assim, como mais um elemento a compor a grande
narrativa nacional que vem se construindo através da Mídia, da Ciência, do Estado e dos
próprios sujeitos em sua cotidianidade e que busca conferir sentido e ordenar a ascensão
socioeconômica das classes populares em andamento no Brasil.

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em [adicionar a área]) .– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade “2012a" à referência correspondente.
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Realce
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[A62] Comentário: Assinalar no texto
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Fonte: 12 pt
192

SOBRE AS AUTORAS

Ana Caroline de Bassi Padilha


Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Paraná (2005) e em
Tecnologia em Artes Gráficas pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2006),
Especialização em Marketing pela FAE – Centro Universitário (2009) – e Mestrado em
Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2014). Seus interesses de
pesquisa estão focados nos Estudos em Design, com ênfase em questões relacionadas à
imprensa feminina dos anos 1950 e 1960, tecnologias do lar, pedagogias de gênero e cultura
material.

Iara Gomes de Moura


Possui graduação em Comunicação Social - – Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará
(2010). Atualmente desenvolve a pesquisa de mestrado “A representação / invenção da nova
classe média nas telenovelas brasileiras,” vinculada ao Programa de Pós -Graduação em
Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e subsidiada por bolsa Capes. Seus
interesses de pesquisa estão focados nos fenômenos de recepção, telenovela, gênero e nova
classe C.

Inés Péerez
Profesora y Licenciada en Historia por la Universidad Nacional de Mar del Plata (2004 y
2006), Doctora en Ciencias Sociales por la Universidad Nacional de Quilmes (2011).
Actualmente se desempeña como Investigadora del Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Técnicas y como docente en el Departamento de Sociología de la Universidad
Nacional de Mar del Plata. Es miembro del Grupo de Estudios sobre Familias, Género y
Subjetividades del Centro de Estudios Históricos de la Universidad Nacional de Mar del
Plata. Su investigación se centra en la historia del trabajo doméstico (remunerado y no
remunerado), así como en el consumo y el espacio doméstico en la Argentina del siglo XX.

Marinês Ribeiro dos Santos


Possui graduação em Desenho Industrial pela Universidade Federal do Paraná (1994),
Mestrado em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2000) e
Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2010). É
professora do Departamento Acadêmico de Desenho Industrial e do Programa de Pós-
193

Graduação em Tecnologia na Universidade Tecnológica Federal do Paraná. É membro do


Grupo de Estudos Design e Cultura da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Seus
interesses de pesquisa estão focados nos Estudos em Design, com ênfase nas articulações
entre cultura material, espaço doméstico e relações de gênero.

Mónica Sol Glik


Possui graduação em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2006) e
Mestrado em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Atualmente,
está cursando o Doutorado em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina.
É professora do Departamento de História da Universidade Federal Santa Catarina. Seus
interesses de pesquisa estão focados na História Cultural, com ênfase nas imbricações entre
cultura material, espaço doméstico e relações de gênero.

Paula Aguilar
Licenciada y Profesora en Sociología y Doctora en Ciencias Sociales por la Universidad de
Buenos Aires (2006, 2008 y 2013). Actualmente se desempeña como Investigadora del
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas y como docente en la
Universidad de Buenos Aires. Es miembro del equipo de Investigación “Grupo de Estudios
sobre Polìtica Social y Condiciones de Trabajo” en el Instituto de Investigaciones Gino
Germani (FSOC, UBA) y del “Grupo de Estudios sobre Historia y Discurso” en el Centro
Cultural de la Cooperación Floreal Gorini. Su investigación actual aborda la problematización
de la relación entre domesticidad y cuestión social en la construcción histórica del “cuidado”
como problema social en la Argentina.

Paula Caldo
Paula Caldo es Profesora (1999), Licenciada (2002) y Doctora (2011) en Historia por la
Universidad Nacional de Rosario y Licenciada (2006) y Profesora (2003) en Ciencias de la
Educación de la misma Universidad. En la actualidad se desempeña como docente de grado y
de posgrado en la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario y
como Investigadora del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas. Su
línea de investigación es la historia de la alimentación desde una perspectiva sociocultural y
en un cruce con la historia de mujeres.
194

Soraia Carolina de Mello


Bacharel e licenciada em História (2007), Mestre em História Cultural (2010), atualmente
matriculada como doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), onde estuda desde 2003. Seus interesses de pesquisa estão
focados na história da imprensa feminista e feminina, com ênfase na temática do trabalho
doméstico e na abordagem teórica das relações de gênero, principalmente nas décadas de
1970 e 1980. Também tem trabalhado com questões relativas a gênero e diversidade na
educação.

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