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John Keats
Na janela junto à ponte se debruça absorta. A correntinha reluz em seu
pescoço. Na trilha do parque por onde ereta voltou como se nada tivesse
acontecido, arde a devassidão das aparências. Havia nas árvores aves como
impulso no parapeito e num último relance deixa o sol filtrado entrar na sala
calor do ventre. Recordou-se menina. Seu primeiro amor foi uma coleguinha
de classe. Um dia saiu de casa e esteve diante da portaria de seu prédio por
quase uma hora. Um dia foi magra sem indício de atrativos em vestidinhos
razão e em casa ficava horas olhando o nada. No enterro do avô o tempo todo
chorava e dizia "Vou sentir tanto a sua falta! Vou sentir tanto a sua falta!" Mas
ama agora a integridade de um homem e tudo que lhe diz respeito incluindo a
indócil virilidade que ele está longe de imaginar tenha tal efeito apaziguador.
medida era culpada e como conviver com essa culpa? Como conviver com
esse ódio?
Apesar da longa ducha parece que ainda dorme mas já é dia. Sobre a
Dia dos Namorados. Veja no espelho o quanto você é bela, dama triste de
reflexão acerca da infância que chegou a ser tão boa durante algum tempo.
Uma colina ao longe cuja neblina jamais se dissipa. Com uma última ajeitada
Deu uma olhada ao sair percebeu que há orvalho nas folhas da árvore
que horas durará esse brilho? No rosto pálido a resposta: não mais que alguns
som do telefone. Não achava que ele fosse capaz de ligar. – Vamos terminar
costuma se atrasar.
Todas as cidades se parecem sob a chuva. Todas as festas ao ar livre se
parecem. Todo flerte tem olhares semelhantes e todo recato esconde alguma
coisa. Junte tudo isso e eis aquele dia depois da aula. Gisele e Davi saíram em
direções opostas mas não demorou e logo ele estava atrás dela. Atrás de uma
árvore na verdade, o olhar cravado nas costas da menina. Desde aquela hora a
casa. Por minutos. Ela escapou por menos que isso. O aguaceiro desabou
assim que entrou no prédio. Ele não teve tanta sorte. Até porque do prédio até
a sua casa ainda teve de caminhar mais de uma hora debaixo d'água.
Mas gostava assim curto, era mais ele mesmo; embora isso seja uma questao
de que nunca se livro e de resto acha que jamais se livrarah. Seus labios bem
desenhados Gisele achou de primeira que foram feitos para dizer as mais
;eragrandeegarbosoeproferiapequenasexclamaçõespetulantesquenãocom
binavamcomseutipo".Gassdiz:
também não costuma receber chamadas quem poderá ser agora? De quem é
esperanças de que ele pudesse despertar eram retiradas como bebês a fórceps
primeira vez. Ao menos não era mais uma criança. Então conheceu David e
Um dia ela acordou triste e sua tristeza parecia nascer da rua em que
morava. Andou pelo lado esquerdo de quem vai no sentido da praia e depois
mar. Desde sempre era arrastada por aquele caminho como se fosse a
maior que o seu e conseguirá afinal um óculos sem grau. Abaixou-se para ver
que nem ligou muito na hora mas depois que tornou a deitar ficou pensando e
pensando e não parou mais de pensar ateh que decidiu sair e continuar
andando e andando e até nadando de repente desde que tão cedo não parasse.
porte... Parado sob a chuva parecia familiar. Ela pensava nele sem perceber
que tambem tinha entrado ate ele lhe dirigir a palavra. O que é isso, Gisele?
Ainda dizem que isso lhe dá um charme especial. Uma mulher gorda passou
mais para poesia e o chefe arrumou para que ele lecionasse. O professor que o
foi melhor para todos. A saúde melhorou; não tinha mais tempo de sentir-se
sozinho.
muito; chorou tudo. De novo sozinha. Para sempre. Não. Antes sozinha. Mas
não: com o vizinho e o tio e o médico e o homem no metrô e os assaltantes.
Todos à solta a seu redor. E David uma falsa companhia - uma falsa
e tira mais uma peça. Com essa conseguiria de primeira. Os amigos de bar não
partilham suas fantasias. Sequer sao ligados nessa coisa de internet. A vida
palhaços!” Não escutam. Não estão em casa. Vejamos o que digo para que
Ela mostra que não e não deu para segurar. Depois do gozo não há nada.
Ela gosta de se exibir e agora se exibe para ninguém. No contato com a água
Ele se vira assustado para o lado do ruído. Não sabe se está vendo o que
não se poderia ver além da perna mas da perna se deduz uma jovem
magnífica. O menino no chão vê a mãe tão bonita e escuta o pai dizendo vou
embora e que não aguenta mais a mulher - Vou embora - diz - desse inferno.
Está se justificando?
refrigério. - Reconheço que não foi uma maneira bonita de demonstrar o meu
Não vai dar uma desculpa para a mulher na tela? A moça no banheiro
não se mexe e não fala. Nem poderia estar ali. Então do que se trata? Ela está
sorriso apavorante. Nao sao palavras inteligíveis as desses lábios mas ele as
entende com a mesma clareza com que sente o pé descalço que em seu peito
se apoia.
Não há dúvida, é dela esse joelho. Como não seria? foi o que primeiro
lhe chamou a atenção. Mas não provém dela a dor desse estranho priapismo.
pensa. Mas eu não posso gritar. Enquanto ela descreve os detalhes ele
Quando descer será com garbo apesar das sombras na escada e ainda
cresceu e não tinha mais medo. Mas alguma coisa se perdera no caminho.
lado de Gisele. Deve ter a minha idade, pensou ela. No máximo uns treze
anos. A fila começou a andar bem devagar como se fosse uma coisa viva
foram chamados a salas distintas. Não veria seu rosto outra vez até ele fazer a
as mais belas. Menina linda e sensível. Todos tinham olhos para Gisele
Drabska.
vá admitir e diga que gosta dos dois irmãos por igual. A senhora Ewe Drabska
é mulher do lar, simples e feliz na medida em que a filha dava mostras claras
que em pouco tempo conseguirá o que a mãe sonhou a vida inteira sem
bonitas.
pouco com o corpete de rendas presenteado pela tia Natacha com um sorriso
maroto. Mas amou mesmo as sandálias de couro entrelaçado que recebeu dos
seria uma moça alta. Diante do espelho alguns anos depois a menina que
A mãe comenta durante o café o quanto o terninho creme lhe caiu bem. Era
Ela pede que a mãe lhe passe um pedaço de quindim. Como consegue
O primeiro dia de trabalho e seu pai e seu irmão não estão ali para se
precisava sair cedo e a casa da irmã era próxima do lugar aonde ia.
rosto do homem grisalho se volta para a mulher ao lado mas deixa de dizer o
que pensou. “ Sigamos nosso caminho. O que temos a ver com isso?” Difícil
imaginar porém que exista para o casal um caminho comum a seguir exceto
investigação.
Por que assassinado? Não há indício alguém tenha estado com ele. Não
Pertiert passou a noite com uma garota nesse bar onde costumam ser
essa construção ao lado. Ninguém pensa que existe no fundo um quarto com
alguma serventia.
de sua companhia. Não dá para ter certeza mas parece não ter mais de
quatorze anos, a idade da sobrinha quando descobriu que ele não era digno de
tanta admiração.
vida da região das sombras. Que eu não precise ver um terceiro desses.
Olhe.
vizinho de Gisele Drabska com clareza digital que não dá todavia verdadeira
noção da luminosidade real. Quem é, como foi, por quê? — com rapidez se
Onde fica esse prédio? As coisas ficarão complicadas para essa moça.
O vento lá fora geme e remexe coisas que deveriam ser apagadas para
sempre.
Gisele se sentia bem com elogios. Esse agora inesperado a entusiasmou
modo e qual sua utilidade? O brilho da noite lembra o brilho dos sonhos e seu
dom como uma dádiva e não um fardo e foi se deitar com nova perspectiva
para o dia seguinte. O Sr. Pertiert no quarto era mais um. Não há exceções.
A cruel decepção com o tio deixa de ser um choque. Revive num desejo
independente. Ainda que exista no mundo um homem bom não irá pôr em
de seu café?
evitará — desejará — o abrigo de uma casa e ele terá consumado seu plano.
original camada do desejo de ser feliz). Pintura digital da dor que ah sim pode
ser bela. Naquela noite escreveu seu primeiro poema relevante. A primeira vez
sem que pudesse dizer abuso. Se David não aparecesse, provável ela acordasse
está muito longe agora. A última parada antes do lugar em que deve descer. O
comercial e mais além uma fumaça que bem pode ser da empresa procurada,
empresas.
Ela olha sem ver. Pensa no pai. Ele dizia que a beleza e a inteligência não a
deixassem se enganar. É quase como perdê-las. Ela então sorria mas não lhe
repousava após uma crise o pai pergunta o que Gisele tem. Não é bom para a
Não é bom, claro que não, ela bem sabe e admite enfim falar. Pai, diz.
Começa, do princípio. Não terá coragem de falar do tio. Conta sobre o médico
sem os detalhes mais humilhantes. Bem que o senhor Drabska tinha reservas
deveria ter falado. Olha de soslaio para o pai. Podia matá-lo de desgosto. O
senhor não deve se torturar assim. Não vale a pena sofrer por causa dele.
O pai pensa que se não vale a pena sofrer com tal motivo então qualquer
sofrimento é escusado. Minha filha, um dia eu disse para sua mãe: o que não
O sol estava alto e o dia quente quando o carro do senhor Drabska saiu
janela e viu por uma fração de segundo o carro do pai fazendo a curva e
pegando a avenida.
Por que não se conheceram antes? Por que o acidente aconteceu? A
E a beleza dessa manhã para que serve? E pensar o quanto gostava de morar
– Não pode ser, meu bom homem - disse a mulher. Louva a sua
meneando a cabeça.
A mãe a abraça com desespero e seu beijo não entende que ela vai
apenas dar uma corridinha antes do trabalho. Alguma coisa aconteceu durante
pleno dia.
Fez-se silêncio e ele pressentiu contra toda a lógica que indicava Gisele a
chuva com novos olhos. Houve uma autêntica transformação exterior porque
ele mudara e amar é transformar o mundo. Depara com essa gente nervosa se
angustiando por nada e gostaria de dizer “ A vida é bonita; é para ser vivida
Caminham pela rua como se não houvesse ao redor tudo o que há.
vizinhança bucólica dessa rua central. Ainda duas pessoas distintas? Passam e
ninguém dá por eles. Serão apagadas as luzes acesas mal percebidas de fora.
determinada.
Contra a luz exterior vista de dentro o homem na mercearia os via. O ar
temperatura subiu e não havia previsão de chuva. Ele estava com o poema que
- Você não se lembra de mim naquela fila sob a chuva para entrar nas
salas de aula.
Espanto e regozijo. Agora está estão ali. Uma moça alta como a
solitário e mais saudável. São muitos agora. Existe algo em Gisele que não
sentido à sua vida. Eterno herói se entregando. O mundo renasce porque ela é
anos em uma mesma gaveta. Ele a esperava desde sempre; ela não mais
palavras. Leva a mão ao ombro dele sem perceber. É aqui que devo entrar, diz,
mas está pensando o quanto seria bom se fosse também o lugar que ele
procurava.
Bem cedo os peritos começaram a procura de indícios. Os médicos
depois diriam se foi morte natural. Mesmo se nada indicasse um crime todos
tinham uma sensação estranha ao olhar o cadáver. Vultos para lá e para cá.
nada ajudaria na investigação; nada serviria para explicar o horror nas feições
dos mortos.
mais sórdida cada transgressão mais se aproxima de uma idéia que nos
aproxima dos deuses. Um dos homens se vira para a perita que falava. Você
parece ver em tudo aval para suas estranhas teorias. Mas no fundo ele pensava
acordou e ali estava ela a seu lado. A face morna avermelhada da manhã
dourada. Ela é tão bonita. Ele precisa ir, está atrasado. Foi tão difícil conseguir
trabalho, voltar a ter uma renda. Ela sabe. Ficou um tempão desempregada
também. Mas veja, estou aqui, viva, conversando com um homem de manhã
deitada em uma cama, querendo ficar mais. Então se vê que as pessoas podem
superar qualquer coisa. Mas para ele embora tão belo era um momento
seja saudavel. Porque ela levantou e mal olhou para ele. Foi ao banheiro e
demorou mais do que o normal é saiu dizendo que ia fazer o café sem olhar
para ele. Nao saberia dizer a cor de seus olhos aa luz da manhan, se ele
Talvez soubesse que a vizinha estava de jeans e camiseta e quem sabe tivesse
estala com as idas e vindas num estranho refrão. Se a prova pericial é ciência e
um crime. Nenhum vento que dobre árvores nem água das nuvens carregadas.
Rostos revestidos de pavor mais do que de pele. Nem autor nem material nem
sobrinha. E todavia não há nada. Por que não desiste? Ela morreu sim. No
mesmo dia em que foi atacada no parque. Morreu por causa do ataque, ao
tentar se defender. Morreu porque ele fugiu. Que sonhos são esses de que
Será o fecho de ouro de sua carreira. Não se deixará ludibriar por uma mulher,
longo período de dias chuvosos seja assim intenso antes que o crespusculo
embranqueça tudo e da isonomia noturna das cores. Naquela tarde não havia
nuvens e não era portanto possivel entender a logica do vento exceto talvez
pleno dia por causa do horario de verao e produzem uma melancolia imovel
ou antes tão lenta quanto o arco solar desde uma regiao específica além dos
montes. Era a fase da vida em que mais se sonha mas em Gisele havia uma
atividade cerebral máxima para uma atividade motora mínima nao oníricas
mas o céu efetivamente era de um azul intenso nas janelas dos condominios
em volta do parque e o fremito das folhas nas arvores que margeavam a pista
movimento do transito mas a mulher demora a acordar. Abre os olhos por fim
do som. É jovem e morena. Usa uma camiseta verde sobre o sutian vermelho
cujas alcas estao à mostra. É muito bonita mas nao muito vaidosa a julgar pela
para encontrar o telefone na bolsa marrom e logo apos atender tem de dizer
azul maravilhoso. Por um instante parou e se perguntou o que mesmo era céu.
dizer um pouco louca. Olha a rua. Orvalho nos cabos elétricos e nas folhas. O
uma mulher que vai apanhar o ônibus para o trabalho no ponto da esquina.
Ela até se mostrou acessível. Ele chegou uma ou duas vezes a insinuar seu
interesse. Pelo menos pensou que sim. Que havia sido claro o suficiente. Não
sei o que aconteceu contigo mas você não pode viver a vida toda nessa
concha.
E por que não poderia? É a concha que a protege de pessoas como ele:
Mas não. Esses não são os reais interesses dela mas cortina de fumaça.
oposto do que sou. Porque se aceitasse uma pessoa como ele, tão parecida
com ela mesma, deixaria de descobrir coisas. Um amante tem esse dom de
fazer com que ao amarmos o que está fora de nós se revele o que vai dentro.
Não se entregam. Foi o mais próximo que eles chegaram um do outro. Depois
respeito mas não amor. Sequer um desejo remoto. Não havia esperança e
delegado. Não há dúvida quanto a isso. Por que o senhor simplesmente não
terem abusado da moça. Se pensarmos bem, foi feita justiça. Justiça divina.
Vamos tomar um café e depois eu levo o senhor em casa. Têm sido dias
difíceis.
mulher para jantar. Abdul, abdul — ela insiste sem que ele ouça. É possível
verdade. Sua investigação terá sucesso. Será um marco. Abdul, Abdul. Você é
um gênio.
A luz permeia a água do mar em que ele na parte rasa descansa
vidraça. Lágrimas por não ter se aproximado mais da moça. Não irá
alguns anos para estar ali quando ele acordasse. Ele sonha. Ali está ela
direção. Num pensamento que não se deixou registrar, boiando nas marolas,
cogitou ter apenas feito uma troca – a repulsa à vida por uma idolatria. Parece
uma deusa vindo em sua direção. Esse sal não é do mar. Está chorando de
felicidade.
creme das paredes. Entra e senta na sala. O sofá não parece o mesmo. Repara
Está atrasada para o médico e não teve tempo de encontrar a mãe para irem
os amigos é por isso, responde. Porque vive sem tempo. Na verdade prefere
estudar. Logo terá um bom emprego e eles o que ganham com tanta
madrugada insone jogando conversa e libido fora? Quem dera quando lembrar
desse dia tivesse ido a um barzinho ou uma festa ridícula ou qualquer coisa
pensando que a mãe está na sala ao lado acertando detalhes com a secretária.
entre imprecações, ela ainda está desalinhada e seus olhos marejados e o ar lhe
falta.
faria, sobre a audição com o mestre italiano. E quanto à consulta, o que vai
dizer? Que foi tudo bem, naturalmente. Precisará ser convincente. A senhora
propaga melancólico pela casa e todos sabem que ela não gosta de ser
Que música tão triste. Melhor deixar a menina em paz. Amanhã a gente
prontuários. Uma menina também espera o elevador. Sorri e diz que vai
médico se prepara para sair. Não se sente bem. Apóia o queixo com a mão
que lamentava de coração o que aconteceu com David. Ela acreditou. Ele
disse que imagina o que ela está sentindo. Ela se pergunta se é possível mas
não duvidou. Saíram. Ele a acompanhou até o shopping onde ela precisava
numa lanchonete. Dão depois umas voltas até encontrarem o lugar que vendia
a peça mais barata. Em dado momento ela sorriu. Ele não chega a tanto para
molhadas são mais bonitas. Pode ser a umidade do ar. Os níveis andam baixos,
quanto a natureza dos homens, do que apenas David deveria ser a exceção.
anti-fumo, o cinzeiro ficou não se sabe bem a razão. Ela demorou a encontrar
ela está de salto. Foi uma noite muito agradável no meio de tantas em que ela
não sabia como seguir vivendo. Sua voz ressoa grave e nítida, doce e sinuosa.
Então pararam. Eduard sente inveja do rapaz feioso preso em uma cama de
hospital. A felicidade não é feita dessas coisas. E ela sente inveja da moça
com quem um dia Eduard casará. Passa a mão no rosto dele quando termina
elevador há uma luz ancestral. Eduard não viverá outro momento assim.
tempos não tocava num cigarro. Procurou pelas gavetas. Pegou-o e acendeu na
dito. Estudei música aqui. Por que a vergonha? Como se tivesse culpa. No
festa conversando com o pai dela. Todavia o silêncio é absoluto, sentença dum
quarto eterno.
tragédia. A dor de mãe dada à luz. Da qual a mulher chegou a achar que estava
livre. Uma nota longa e bela desafina no final. Estudei música aqui. Quase
diz. Mas teria sido apenas para trazer outras nuances da dor. Então se cala e
David respeita seu silêncio. Teria preferido que ela lhe confiasse a dor. Podia
ser até num aperto mais forte das mãos dadas sobre o banco do táxi.
rodeiam a árvore. Não há sinal de gente por ali. O sol de inverno concede
tonalidades inesperadas ao vermelho das flores. Não, ela não tem culpa sequer
de continuar mantendo o tio entre eles num lugar desses em plena paz com
David, a cada dia mais companheiro. Não tem culpa da dor no estômago ou
tão autêntico que ela praticamente riu junto à floração do ipê. Primavera!
restaurado. Um abraço acolhe tudo e então seguem. Meu Deus. Há tão pouco
tempo. E agora estou aqui, feliz. Uma gota desce em sua testa.
ergueu a mão direita regendo. O rapaz atendia uma senhora. Ela tinha ido
comprar um violão para o neto.– Queria um com braço de cedro, ele diz que
vibra menos – disse. Os cabelos de Gisele esvoaçam. Os dois estão refletidos
na vitrine da loja. Ela parou para ver o violino. Não conseguia se decidir.
O aniversário dela será na semana seguinte mas ele não sabe que ela
treinando. Afastou-se o que deu no vagão cheio. Não há como ensaiar para tal
oração e quase acreditou que ele atendia sempre o rogo dos justos seja por
prontos não a socorrer mas acusar. Por que essa roupa provocante? Por que
se-ia sim que ela estava para morrer e o homem também e aquele era o último
desejo de um condenado. Quis lembrar se sua mãe algum dia lhe advertira a
factício. Custou até mesmo o passo para a plataforma, como se a voz mind the
uma espécie de consolo, uma promessa que não pretendia cumprir. E como
encontrar o rosto visto num relance se tudo o que quer é jamais revê-lo?
rolante em fila indiana a detém. Ninguém a verá chorar. Ainda que seus
Havia criado um mundo para si mesmo mas é a mulher real a seu lado
quem soa como um fio de sonho. Namoram há tanto tempo e ela não o
conhece. – Por que você está assim? —insistiu. – Aconteceu alguma coisa?
seja um criminoso. Elas parecem aceitar. Parecem gostar até. Sobe no vagão.
Por que esta e não aquela nunca fica claro. Quem sabe um dia ao se
achegar entabule uma conversa. Que chuva! Ou: É um absurdo esses trens
gosta também do anterior. Ela responderá que não e ele dirá que é muito bom.
Não chegou a ser adaptado para o cinema. Dirá: Os filmes costumam ser
um assunto . Tão mais natural. Por que prefere essa aproximação fortuita e
sem depois?
Uma solidez altiva semelhante à da noite passada em casa lá pelas nove. Uma
atmosfera da qual sentiu um medo que pensara ser coisa do passado. Luz com
Tanto estudo. Não deveria a essa altura da vida morar num lugar decente e não
como veio sua culpa se dissipou. Agora de novo. Por que no banheiro de um
bar? Seu vício o repugna mas não tem tempo de se arrepender e pensar em
mudar.
vidro quando ele a cumprimenta efusivo e sem perder tempo fala que ela está
sumida e que sentiu saudades, parece enfim decidido e tão direto que ela pede.
ciumento.
espelhos se espalha.
ordem - diz o sorridente rapaz à namorada do outro. - Trarei então seu amado.
Ela ainda treme. A polícia chegou e ninguém pode sair. Então depõe.
mais tarde quando Evandre postar aquele vídeo. Era uma gente acostumada
- Sei lá. As pessoas passam mal e morrem. Não tinham bebido demais
Mesmo em meio a tudo ele sorri. Estavam tão juntos e unidos pelo
acontecimento que logo se acariciavam e ali mesmo diante da tela negra que
desejo igual a qualquer um. Se sair desse quadro deixará que atrás de si ao
baixo perguntou se ele tem um pouco de açúcar. "Acho que sim". A mão abriu
Eis aqui, diz para si mesmo. O pote de açúcar. Um dia como qualquer
janela estava se abrindo e os duendes que geraram esse David Choi voam por
disse que me ama. Estamos juntos há quase um ano e só hoje ela disse que me
sentido ser fulminada assim como se tivesse recebido uma má notícia justo
– Você me ama?
– Você sabe.
- Eu também.
- Eu não.
manga da camisa. Algo está errado. Sentem no mesmo átimo. O gozo sobre
eles. Há tanto esperado. Eu devia ter dormido lá. Por que mesmo não dormiu?
Seus olhos estariam olhando para ela. Se o passado às vezes volta, o futuro
jamais chega. O que poderia ter sido não foi e agora é tarde. Na sirene da
prefere ficar. Quem era? Silêncio. A senhora Drabska sempre dizia para que
Alô? Desligou. Agora os temores são certeza. Mas ela sempre pede que
Sente que a filha está ali agora e portanto não está em qualquer outro
lugar. Ela estava bem. Sua vida se tornara um sofrimento insuportável mas
agora estava bem. Menina cheia de fibra terá levado isso consigo para o lugar
onde esteja.
– Eu até entendo, Gisele. Está ouvindo? Eu até entendo. Mas não sei se
é certo. Seu espírito não terá sossego, minha filha – gostaria de dizer e talvez
esteja dizendo agora quando o delegado está saindo. – Filha, deixe-os. Entre
na sua paz.
O senhor Drabska deixou para a mulher o belo apartamento na região da
estação central do metrô. Agora que também Gisele partiu, para que precisa
– Você não pode consolar nossa menina? Não estão no mesmo hades?
Um dia você disse que não valia a pena colocar uma criança neste mundo; mas
A sala é escura e fria mesmo de dia. Noite eterna como Gisele chamava.
fosse a coisa mais certa do mundo que ela estivesse morta. A notícia chegará a
qualquer momento. A mulher está preparada. Sentirá saudades. - Muitas
sala onde o corpo foi velado. Branco funéreo em que ela continua a vê-lo. Em
- De onde o comhece?
dourava seu perfil. Parecerá uma orla em seu vestido quando entrar no prédio
numa linha reta até o elevador. Falta o ar. Encosta no metal sob a câmera de
essa gente.
Calma. Você não vai conseguir viver sob tanta tensão. Ela sentou-se na
Mas como estavam cantando mais cedo por causa do insone caos urbano,
esquecimentos era extenuante. Estava pior que mamãe. Calma. Vai dar tudo
disse. Sua boca tinha ainda o gosto azedo do longo e morbido sono. Lembrava
de muitas nuvens correndo baixas como anjos caidos expulsos do ceu mas nao
prima Maria, contou que preferia os lugares escuros. A mãe os olha pela
janela. A tia. Pensativa. Crianças tão doces... Hadrien imaginou onde ela
- Hadrien!
Por quanto tempo estiveram ali no túnel não sabe dizer e tanto tempo
que mais lhe restava? Se não pode olhar nos olhos da irmã, melhor jamais
tornar a vê-la.
A própria mulher, Vanda, inutilmente insistiu para que fossem visita-la,
assim.
Maria e uma outra de todos juntos, os quatro. Seus primos também nunca mais
imaginou o que estará expressando seu olhar. que não expresse mais do que
ele pode permitir. Não pôde renunciar ao prazer da primeira noite e agora não
da última vez tentava um concurso público convicto de que uma vida estável
- E a tia?
físico. Sequer gritou, pensando na mãe no quarto. Calou nos dias seguintes.
Mas o olhar depois era implacável. O que poderia ele fazer senão fugir desses
olhos?
Alguns dias depois de ter ido à casa de Gisele e falado com a senhora
respeitava e perguntou o que ele achava de tudo aquilo. Tem suas opiniões e
- Você sabe, Artur, não sou um homem místico; mas estou começando a
crer que existe alguma conotação sobrenatural. O outro quis então saber
realmente atraente. Olhe - ao mostrar a foto disse a si mesmo que não fazia
assassinado em seu apartamento. Mas isso não pode ser porque ela morreu
Abdul chegou a pensar que ela simulara sua própria morte para se livrar
pois o porteiro de seu prédio disse que ela saíra à hora de sempre para
amigos e hábitos rigorosos. Aposentou-se tão logo pôde. Não suportava como
para que de algum modo fizesse a justiça. Se tivesse talento teria se dedicado
completamente.
perícia e de todos o que chegaram a ter contato visual com o cadáver foi a
os olhos sem ousar o esboço de uma tese. Quem sabe o enredo de seu
romance. Algo pelo que valha a pena viver os últimos anos de uma vida
- Não um só cadáver.
- Como assim?
chamada Gisele. Ah, e a mãe dela, cuja doença não a impediu de desafiar a
autoridade em sua casa. E falta falar de outras vítimas. Não sei — diz — o
quanto é válido usar esse termo. O médico que ela consultava. E um outro
mesmo horário.
uma tal sorte de fatos e espectros enquanto o garçom lhes traz mais duas
xícaras de café.
Como se não bastasse tudo isso, há uma história trágica que não envolve
diretamente a moça, mas seu namorado, o que quase a envolve, tal a ligação
a lâmpada de seu quarto e teve uma tontura. Não morreu mas é quase como se
faltasse. Não pode dizer isso ao amigo. Não é o que ele espera ou pediu.
Beberam juntos um gole de café e Abdul apanhou o cigarro a que voltara após
- Pode ser que existam mais pontos em comum entre esses mortos e a
partir deles tenhamos um caso, mesmo que, como tudo indica, a moça
duas ou tres horas de sono por noite. Deu outro passo e tocou o sofá com os
existido. Enfim. Já não faz diferença. A vida e a imaginação tão próximas não
raro se misturam.
Esse caderno agora aberto ela usou para seu primeiro diário; nessa mesa
medo? Pode escutar aqui a voz de Joaquim; ali Maria por causa de uma piada
boba gargalhou. Venham jantar, diz tia Francisca. Cheiros fortes açodam a
fome limpa e nítida de adolescência nas cores do verão que passava depressa
preparada com alguns anos de lar e escola mas não é assim, ela lembra e
pensa, não é assim. Todos felizes e ela chora. Compreende que não pode ficar
ali por muito tempo. Desvia. Entra no quarto. Você precisa dormir, minha
filha.
O suor esfria todo o corpo. Olha ao redor e assustada percebe de fato ter
Sem dar por si está de novo na sala junto ao aquário onde antes ficava a
pode ficar fugindo todo o tempo do passado. Ou talvez possa caso venda o
que tenha realmente acontecido. Uma intuição. À mesa, Hadrien diz que há
verbos que admitem várias regências. Hoje eu sei, pensa Gisele. E como sei.
passa pelo andar, levando seu coração. O sino está tocando como se
tristeza conformada.
Por volta do meio-dia, com o cunhado adormecido no banco do carona,
Chega a esbarrar e Pertiert resmunga alguma coisa que o pai de Gisele não
teria gostado nem um pouco de ouvir. Ele pensa no quanto um homem precisa
se adaptar à família da esposa e no que pode acontecer caso não o faça e não
lhe pareceu que isso fosse ou sequer aparentasse uma virtude. Um baque
displicência de quem conhece bem a estrada e também por isso mal a olha,
inverno. Grandes pastos passam ao lado. No instante assim fugidio não parece
Valeu a pena, é claro. Ele nem acreditou a princípio que Ewe pudesse
mesmo gostar dele. Mas é verdade, ela sente saudades, como disse na primeira
vez que se separaram por mais tempo. Como era linda. Não parece irmã desse
traste. O tempo não retirou dela a beleza nobre que Gisele herdou. Como a
amava, o que será que ela tem, essas dores, esses esquecimentos. Apenas senil
ou será mais? Precisa faze-la aceitar se consultar com um médico, ele até
compreende a ojeriza que ela tem de médico, mas simplesmente precisa.
Pierce lembra com detalhes da primeira vez que ela usou esse broche. Essa
voz maviosa vem do corredor do prédio em que ela morava, quando saíram
pela vez. Quando a beijou naquele dia, a testa dela estava úmida.
coisas apenas contribuíram para piorar o seu humor, porém assim que ela
abriu a porta soube que jamais na vida seria de novo sozinho e para sempre
teria com quem partilhar alegrias e tristezas. Entrou mas não se demorou. Em
seguida estavam se despedindo dos pais dela. Prometeu trazê-la antes da meia-
noite como convinha a uma moça de família e por muito pouco não quebra a
palavra porque quinze minutos antes disso estavam ainda se vestindo no hotel.
também com ele se parecia. Como a amava! Não seria capaz de colocar esse
sentimento em palavras. Flui dentro dele como um rio. O sol ilumina mais que
aquece e o cavalo está calmo agora embora já não seja possível discerni-lo na
paisagem que voa. O carro devora a estrada mas seu condutor está realmente
longe dali — como pode pensar esse tipo de coisas após a confissão da filha na
noite anterior? — e só retorna quando do estrondo. Pertiert acorda assustado
que não pode desconfiar, mas Gisele agora acha que não suportará o silêncio e
assim, talvez não tenha sido prudente. Uma colega comentou alguma coisa
sobre um homem chegando com atitude suspeita, mas Gisele não costumava
teme a faca ou a morte. Misericórdia não espera nem quer. Hienas em torno de
vomitar? Como não envelhecer mais mil vidas em outros poucos minutos? A
em casa, é tudo que precisa. Que caminho a deixou nessa relva não saberá. Se
papéis. Como poderia ela imaginar? Não poderia. A mãe internada há dois
dias. Correntes estranhas e portas que seguidamente batem sem que haja
vento.
levantar o fardo da cama, pois era isso que seu corpo se havia tornado.
contempla calado. Parece meditar sobre os horrores que ela contou: assim ela
jeito estranho, olhar típico de quem bebeu. O que vê? É esse o seu irmão? Ele
amor fraterno. Uma realidade inesperada. O que você está fazendo, Hadrien?
Não assim.
pela sala, alguém cujos passos uma pessoa não teria ouvido, e todavia
aumentam mais e mais. Muito frio. Que tipo de primavera é essa? As bolinhas
de vidro pelo chão caem e correm pelas frestas do assoalho, como quando
Gisele brincava com ele. Ninguém irá arrolar um gato como testemunha. Ali
está ela, sua dona e amiga, debruçada na janela. Por que tão triste? E por que
terá de habitar noutra parte dali para frente. Nem mesmo o gato escuta o mar:
até para uma audição privilegiada como a dele, estava longe demais. Quando o
Balaão. Saul angustiado faz com que Samuel se inquiete e apareça. O que
exatamente sou nesse sonho? O que sabia ainda sei, pensa ela, e nem todas as
pessoas haviam desaparecido, não ainda, não antes que se permitisse
gato, tornou a olhar e ela não estava mais ali. Um túnel. Um longo túnel e uma
queda lenta. Ou é uma subida? O filme da vida de Gisele não estava passando.
Não consegue ver nada ou porque está muito escuro ou porque a demasiada
luz a tudo ofuscou? Esse olhar infantil não se impressiona com a própria
perplexidade. Vê que algo está soando, como um sino, no lugar que acabara de
essa que saiu para trabalhar? Sweet mia. Se espreguiça e desloca. A senhora
Drabska entra e atende o celular. Passa-lhe pela mente, com detalhes, toda a
conforme sua ordem. O menor diz que sim, entre risos, contando que tivera de
a história enquanto acende o baseado. Diz que, olha, acho que a gente deve
velho concorda mas considera que moças como aquela Gisele é como um
Gisela” ? Como ele sabia o nome dela? O mais velho meneia a cabeça. Gisele,
acusar o impacto da visão. Lidava assim com tudo. Esperava até que pudesse
ter reação adequada, que não comprometesse sua fama. Mas quando Kitaro, o
mais novo, perguntou baixinho quem era aquela mulher, já não era possível
fingir que não havia ali nada estranho. Começaram então a falar uns com os
assecla.
bom que os outros também estejam vendo o rosto pálido de fulgurante beleza,
uma benção essa sensação? Ela quer que degustem isso até a última gota. Não
deslize. Coisa da carne por que todos os homens uma vez ou outra passam.
hipótese alguma. Apenas a contempla, como a uma flor. Como a uma deusa.
Talvez revele o verdadeiro motivo de estar ali. Quem sabe seja ele. Ele que
O que essa visão enfim pretende, se uma visão possa algo pretender,
na fresta entre os prédios na janela. Está em tudo, é tudo, fora e dentro deles —
e nada permite além dela mesma. Dentro de cada um, por quê? Por isso e por
aquilo e também por essa outra razão. Agora podem morrer em paz. A paz
de saber — se faz algum sentido invejar alguém que esteve morto por tanto
tempo mas enfim, contra toda expectativa, reviveu. Todavia, Gisele está
morta. A encantadora namorada não existe quando ele acorda. Sabe que um
ano foi o tempo durante o qual dormiu. Não tem mais vinte e cinco anos e fez
Então David fala com a espreita da lágrima anexada ao sinal. As noites são
que seja ligando-o ainda à morte. Tosse. Respira com dificuldade. O sinal leva
tudo à tela que tudo devolve em gráficos móveis junto a estatísticas azuis. Não
trazido pela dor e pela ausência diluído. Com isso, Eduard quer dizer o quanto
está arrependido e o que pudesse faria pelo novo amigo. Obrigado, diz David.
Mas o que ele poderia? Talvez estivesse viva se ele soubesse. Tomariam
alguns cuidados.
meio à repetição agora calmante do sinal. Seu coração está mais calmo ao que
parece. Nesse outro ser vê a jovem mulher pálida não mais como um
alegria próxima da loucura —e o que não seria loucura num despertar após um
Diga-me em que está pensando, dissera uma vez David. Pensa nele. Sua
lágrimas se multiplicam quanto mais são reprimidas. Está correndo agora pela
rua vazia. Os olhos borrados. Relembra. Amor, fica tranqüila. Você tem o
direito de guardar o segredo que quiser. Intimidade permite vida própria. Ela
olhou David com ternura agradecida mas sabia que não poderia mais guardar
para si aquelas coisas. Isso foi no dia anterior ao acidente. Agora não tem mais
com quem falar. A manhã brilhante concede a seu corpo um frescor que ela
não sente. Não quer mais viver embora não seja capaz de tentar contra a vida.
coisas se ajeitem. Parou defronte à praia. Um dia assim não pode conviver
fundos, a contemplam. O pior horário do trânsito já passou. Ela pede a ele que
se sente. Pede que ele se sente. O movimento das folhas das árvores à janela é
vestido, luz que se derrama pelo quarto. Um leve tremor nas mãos dele.
levanta e se aproxima.
desconhecida natureza que nele dormia entre biliosa e irascível sem contudo
abraçou-a de modo inequívoco. Sua ternura não deveria ser confundida com
momentos íntimos. Por que se tornava tão arredia no melhor momento. Como
e passivo. Uma réstia brilhante e ela soube que era outono porque embora
Então, se devia estar decepcionada com David, que se impusera como todos,
seu sorriso todavia denuncia que está feliz e que não, ele não era como todos.
suavemente.
Uma sombra na parede. A luz amarela em torno se agitou como a aura
mas agora, zurzido, parece que vai se levantar. Quem sabe precise sofrer
O que foi? Hadrien não consegue falar. Olham um ao outro enquanto a sombra
Os rins estão matando. Pontadas dolorosas. Por que tem medo? Precisa
desce pelo corpo. Ela o está tocando. Está me tocando e dizendo que me ama.
Quer mais. Mas por Deus, Hadrien, do que você está falando? Ela quem? Uma
mulher tocando assim, como se fosse um homem? A esposa pensava que ele
assustando. Pare com isso. E pensar que era o homem mais bonito que ela
acorde. Eu sei que não fui o que você esperava num tempo em que esperava
tanto e tanto precisava. Tão gostoso? Hadrien nada tem em comum com as
Hadrien chegou perto dela, tremia toda sobre um majestoso calafrio e quase
via o que, acorrentado pelo medo, ele via. Ele não tem medo de morrer. Seria
constatassem que foi mesmo outro sonho, outro pesadelo e apenas isso. Tudo
imediato. Seu coração contrito suplica. Saber o sortilégio com que afastará as
dores. Tomam um e outro lado e o alto da cabeça. Ele a ama, Gisele. Jura que
sim. Nas trevas que o envolveram e tudo ao redor. Mil vezes repetirá que a
ama. Não o fizesse sofrer assim. Não se nivele comigo. Você sempre foi um
anjo. Então pensou que deveria procurá-la e pedir-lhe perdão. Pessoalmente.
Embora não tenha certeza de ser capaz de olhar nos olhos da irmã outra vez.
Vanda percebe que ele está nu. Pensando bem, nem tão acabado assim.
Passaram momentos inesquecíveis. Então ela tem certeza de que ele precisa
mesmo entrar em contato com a irmã e acabar com isso. Acontece nas
melhores famílias. Quem não tem um esqueleto no armário? Amor, por favor,
volte pra mim. Ele quer. Palavra de honra. Então pede que ela o ajude. A
quem está pedindo? Esse não é o olhar de Vanda. Você pode ler meus
pensamentos. Vanda meneia a cabeça e pensa que não, ele está louco. Nada
mais há a fazer.
Um homem renascido. No rosto perplexo de infância a customização
das últimas luzes do dia. Ahn? Customização, repete ele para a enfermeira. A
forma como algo passa a existir segundo determinada forma de cada pessoa.
Quando ela se afasta, pergunta a si mesmo se sua idéia não é loucura e não, é
mocinha, com os olhos marejados, sorri para ele. Adeus, David, venha nos
visitar de vez em quando. Pensa que ele bem poderia pedir o endereço e ela
passaria a criar essa expectativa, de que um dia ele apareça lá em casa. Seu
rosto pálido lembra o de Gisele, mas —imagina David —a partir de hoje todos
habituar, estaria longe, junto dela nesses lugares além. O coração bate pesado.
guia, preciso ir. Está bem, talvez não precise, talvez seja mesmo loucura, mas
Ainda que não entenda para que David quer saber aonde o cunhado foi e uma
passagem para esse lugar, há de lhe conceder esse favor. Todos estão
tornam privilégio. Farei isso apenas por você mesmo, lembre-se, porque
amigo, David espera que não seja loucura. Quem pode afirmar que os mortos
caminhem por aí? Ninguém tampouco afirmaria que não. Ah Gisele. Se pode
me ver e escutar, também pode me guiar. Não foi quando acordou: agora sim
subitamente arrastados pelo som do sino. Para Hadrien, o som é uma outra
concepção de sua irmã. Ela está aqui, pensa. Sei que está. Sim. Ela está ali.
corpo? Estará preparado? O desejo mais terrível se realiza. Seja como for, é
tarde para recuar. É tarde também para Hadrien. Nem arrependimento é mais
inspirando pelo nariz. Vê de longe a figura de ombros largos a quem uma vez
Gisele se referiu como único amigo “ antes de você” . Com essa mesma voz.
Com essas mesmas feições agora etéreas. Como conhaque que flamba a carne
tempos. Certeza do que se não vê. Gisele? Hadrien está gritando. Gisele!
Gisele... Não...
respira fundo mas não é daí que a vê. Em que difere esse arrabalde da
Está num sonho esse corpo que acaricia? Por que precisaria da morte ou da
que dissolve a dor. E passa. E passa. Voltando. Ele é o arrepio que o percorre.
retirado, justamente por isso, porque a vida que vivera nos últimos meses era
morte, era Gisele, lembra-se de Vanda e volta para dentro de casa. Abre a
ela está ali. Na grama a seus pés. No raio em seu peito. No silêncio de
êxtase. Ela está ali, ainda está ali, solícita. Ele ouve a história da jovem morta
Ela promete partir mas habitará ali para sempre — não na morte, na solidão ou
relógio. Ali está estava, absorta, junto à mãe sozinha e preocupada. Não a
pode consolar? Pode tudo nessa repentina dimensão. Como esse infame tem
coragem de ligar e sugerir que ela aquiesceu? deixar a senhora Drabska ainda
mais atormentada? Se pode se ver refletida nos olhos de David agora depois
de tanto tempo, se nesse olhar sua eternidade se manifesta enfim, não há lugar
querido. Procura um lugar para deslocar dali o terror. O medo é por causa
dela, não por si mesmo. Acreditou-os integrados pela morte mas o leito desse
rio serve apenas àqueles a quem é inexorável. Afluentes incertos ali não
assombradas. Não quer mais isso. Se tem de habitar aqui por todo o sempre,
que seja descanso. Visão com o fim único de apaziguar, depois o sono. Depois
contrário, curioso ou compassivo, recebe dela a certeza de que está tudo bem,
não se preocupe, obrigado. Tem certeza? É que o homem também sabia tudo
Drabska atender o celular. Pobre mãe. Mas acredite, ela está bem, diz David
torna a viver. Ela imagina que esse é o segredo de David. E o convida. Se meu
filho não vai mesmo voltar. Seria maravilhoso, uma honra. Decerto uma forma
O avião está descendo. David fecha o livro e olha pela janela. O alto da
Por contraste será feliz. Verei o sol sobre as águas da baía. Mede o futuro em
A casa é sua.
FIM