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Artigo

Espaço Escolar – Território de Construção de


Representações e Identidades (1 )

Ivanilde Apoluceno de Oliveira*

RESUMO
Este artigo trata de um estudo sobre o processo de construção de
representações e de identidades no espaço escolar. O foco de PALAVRAS-CHAVE: espaço escolar,
análise são as representações e as identidades construídas na
escola em relação aos alunos com necessidades educativas
representações, identidade, exclusão
especiais. Este estudo aponta para a necessidade de uma educação escolar e necessidades educativas especiais
inclusiva na escola.

INTRODUÇÃO espaço institucional escolar como território


coletivo de construção de representações e
Interessei-me pelo estudo sobre o espaço
identidades, utilizando como instrumental de
escolar como território de construção de
análise as categorias: «Representação Social» de
representações e identidades, após ter lido o
Moscovici, «Identidade Pressuposta» e
trabalho de Abrantes, « Aluno excluído do sistema
«Identidade Metamorfose» de Ciampa e
público de ensino: a identidade em construção»,
«Alteridade de Dentro», de Jodelet, explicitados
e ter encontrado representações discriminatórias
no desenvolvimento do trabalho. Do estudo de
sobre Marcos (personagem principal), pelo fato
ABRANTES (1997), focalizo algumas falas
de ele freqüentar a Associação de Pais e Amigos
contidas na história de Marcos.
dos Excepcionais – APAE, depois de ter sido
Este estudo permite-me articular os temas:
afastado da escola pública por problemas de
«representação» e «identidade», tendo como eixo
aprendizagem.
de análise a relação entre a escola e os alunos com
Essa representação discriminatória do
necessidades educativas especiais, especificamente
indivíduo por estar vinculado como aluno à
aos que apresentam «limitações» mentais.
Instituição que atende pessoas com necessidades
educativas especiais, eu encontrei, também, na
pesquisa que desenvolvo no Programa de A CONSTRUÇÃO DE REPRESENTAÇÕES
Doutorado em Educação-Currículo da Pontifícia NO ESPAÇO ESCOLAR
Universidade Católica de São Paulo, sobre a
construção do saber-fazer educativo de professores As representações sociais entendidas por
da educação especial. Assim, estes estudos MOSCOVICI (1986) como explicação psicosso-
colocaram-me diante do espaço escolar, como ciológica constituem-se no pronunciar coletivo
«locus» de diferença, de discriminação e de semelhante, que evidencia um pensar em conjunto
exclusão social, em função da representação de sobre os mesmos assuntos. As representações têm
sua clientela atendida e de construção de um caráter coletivo, constituídas por diferenças
identidades. entre grupos. Elas são misturas de conceitos,
Neste trabalho, objetivo refletir sobre o imagens e percepções compartilhadas e transmi-

1
Contém parte do referencial teórico utilizado na tese de doutorado que desenvolvo no Programa de Pós-Graduação em Educação- Currículo na PUC-SP
*
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação – Currículo da PUC-SP. Mestre em Educação pela UFPB. Professora Titular da UNAMA e UEPA.

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existem fora de um sistema de representações.
tidas por um número significativo de pessoas e de
uma geração a outra. Está inerente a essa compre- Assim as diferenças são construídas num
ensão de representação social, uma concepção de sistema de representações, no qual encontramos
«sociedade pensante» na qual diferentes discursos, entre as quais a representação
da diferença de capacidade das pessoas que
os indivíduos não são apenas processadores de apresentam necessidades educativas especiais.
informações, nem meros “portadores” de
ideologias ou crenças coletivas, mas pensadores REPRESENTAÇÕES SOBRE A DIFE-
ativos que, mediante inumeráveis episódios RENÇA DE CAPACIDADE
cotidianos de interação social, “produzem e
comunicam incessantemente suas próprias
representações e soluções específicas para as O olhar para o aluno especial (os que
questões que se colocam a si mesmos”. apresentam necessidades especiais) na escola, é de
(PEREIRA DE SÁ, 1993: 28) discriminação e de estigmatização, pois está
presente um imaginário social sobre este aluno
Para SPINK, é o sujeito social que constrói especial como ser diferente das pessoas
a representação social, considerando que «as consideradas normais. Imaginário caracterizado
representações são sempre construções pela representação de um «estado de natureza»
contextualizadas, resultado das condições em que anormal em contraposição ao normal e que
surgem e circulam».(apud BARREIROS, apresenta, um caráter axiológico eminentemente
1997:35) maniqueista. A normalidade com uma significação
A Representação Social é apresentada por positiva: o correto, o bom e o belo, em contra-
DOISE (1986:83) como produto da ação e da posição à anormalidade, cujos valores são repre-
comunicação humanas. As relações sociais de sentados negativamente, o incorreto, o mal e o feio.
comunicação são enfatizadas por envolverem a Para AMARAL (1998: 04 e 05) o aluno
difusão, a propagação e a propaganda como formas especial tem a marca da «especialidade» na escola
de construção das representações sociais. Nas e fora dos muros escolares. O aluno da classe
famílias, nas escolas e em diversos grupos sociais especial é estigmatizado por ser considerado
se desenvolvem e proliferam as representações incapaz, por não pertencer ao grupo dos alunos
sociais, assim como, através da publicidade ditos normais. Assim, considera que:
veiculada pelos meios de comunicação de massa.
A representação é, portanto, construída através das ser especial na escola é deixar de pertencer à
diversas relações de comunicações sociais e dos “espécie” dos normais, a dos que,
seus diferentes discursos. pressupostamente, aprendem (...) Há um olhar
patologizante e individualizado para aquele que
Para SILVA (1995:200), a representação é
não se encaixa, que não é normal..
um processo de significação social de
conhecimento produzido nas relações sociais de JODELET (1998:62 e 63) ao referir-se à
poder e que opera através do estabelecimento de doença mental, fala da categorização social que é
diferenças. construída em torno do doente mental, existindo
procedimentos específicos em diferentes níveis de
É através da produção de sistemas de diferenças
e oposições que os grupos sociais são tornados
interação: «coletivo, na cena pública; social na
“diferentes”, é através do processo de distribuição de papéis; interpessoal, nos locais de
construção de diferenças que nós nos tornamos hospedagem», que se constituem em «barreiras
“nós” e eles «eles», é em oposição à categoria protetoras» diante da presença ameaçadora do
«negro» que a de “branco” é construída e é em doente mental.
contraste com a de “mulher” que a categoria
“homem” adquire sentido. As “diferenças” não
No seu modo de ver a representação em

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torno do doente mental está fundamentada numa A classe especial na escola é o lugar «onde
visão funcionalista, baseada numa «teoria ingênua cabe repetente, bagunceiro, burro, deficiente,
da organização funcional do corpo, ‘mundo de delinqüente, alienado (...) é um lugar para onde
carne e osso’ comum a todos os homens», sendo se encaminham os diferentes (MACHADO apud
considerada a doença mental uma disfunção na BARREIROS, 1997:11)
organização funcional do corpo, ao afetar o
cérebro ou os nervos. A classe especial é um espaço de desapare-
cimento. A criança é descaracterizada como alu-
O olhar e a prática da escola para o aluno
no, aprendiz e indivíduo! (AMARAL, 1998:14)
especial é de «não-pertencimento» ao grupo de
alunos ditos «normais» e às «classes comuns». O Assim, a exclusão escolar está associada a
aluno especial na escola é representado ainda como essas representações negativas das pessoas com
incapaz de aprender, implicando uma prática de necessidades educativas especiais. O olhar dos que
não aceitação do aluno com necessidade especial fazem a escola é para as «limitações» do indivíduo
na escola ou por sua segregação, separando-o em e não para a estrutura organizacional e pedagógica
classes especiais da escola. O aluno tem de se «integrar» ao contexto
As classes especiais na escola são escolar e essa integração depende de sua
apresentadas com a função pedagógica de possi- adaptação, enquanto indivíduo, ao modelo escolar
bilitar a integração da criança com necessidades estabelecido.
especiais, pressupondo uma aprendizagem A representação construída em torno do
diferenciada das crianças consideradas «normais» aluno e das classes especiais é de um trabalho
e direcionado às especificidades das «deficiências». pedagógico pouco produtivo para o sistema
Na visão de ODEH (1998) esse discurso é educacional e social, considerando a representação
oriundo do modelo médico centralizado nas de incapacidade do aluno especial para aprender.
deficiências biológicas, orgânicas e funcionais e Qual o futuro escolar da criança com necessidades
que exigem um «tratamento remedial». Modelo educativas especiais? Qual a função do professor
que considera viável a recuperação da condição no processo educativo dessa criança?
de deficiência. Neste sentido, justifica o As representações estereotipadas e
atendimento educacional especializado que vem estigmatizadas sobre o aluno da educação especial
sendo convencionalmente oferecido em meios na escola estão cristalizadas na imagem patolo-
segregadores como as escolas especiais, as salas gizante do indivíduo com necessidades especiais.
especiais e os centros especializados. Imagem centralizada na sua incapacidade,
A separação das classes especiais, na escola, secundarizando suas potencialidades. Represen-
torna-se um dos fatores que contribui para a tações expressas por práticas discriminatórias de
construção de representações discriminatórias não aceitação, de segregação, de exclusão e de
sobre as crianças com necessidades especiais. Por expulsão desse aluno especial da escola.
estarem em classes especiais as crianças são JODELET (1998:48) situa a diferença pela
definidas como «alunos especiais», isto é, além deficiência ou incapacidade no que denomina de
de serem consideradas «diferentes» e «incapazes», «alteridade de dentro», referindo-se aos que:
são vistas ainda com dificuldades de conviver com
os ditos «normais». Nestas classes especiais há marcados pelo selo da diferença, seja ela física
também um número significativo de crianças com (cor, raça, deficiência, etc.) ou ligada a uma
problemas de aprendizagem que não apresentam pertença de grupo (nacional, étnico, comu-
nenhum tipo de deficiência mental, auditiva ou nitário, religioso, etc.) se distinguem no seio do
conjunto social ou cultural e podem aí ser
física. Este fato é reflexo da avaliação psico-
considerados como fontes de mal-estar ou de
pedagógica do aluno existente na escola. ameaças.

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Alteridade está distinta da «alteridade de humano. Os indivíduos são únicos e especiais, pois
fora», cujo referente é «o ‘longínquo’ e o ‘exótico’ são diferentes entre si. Possuem capacidades e
definidos com relação à cultura dada» habilidades para determinadas atividades e para
O outro, no caso o aluno com necessidades outras não. Pensar a diferença relativizada ao
educativas especiais, está representado pela contexto social, ao processo de interação com o
diferença, pela depreciação e pela exclusão, por outro significa mudar de perspectiva o olhar para
ser alguém que causa ameaça ou mal-estar ao seu homens e mulheres com necessidades especiais.
grupo de pertencimento. Deixar de olhá-los dicotomizados como
Na Instituição escola, então, está presente «anormais» e «incapazes», dirigindo um olhar
uma representação funcional e patológica do aluno dialético e contextualizado para a relação
com necessidade especial, cujo conceito está «capacidades e incapacidades» existente em todos
substantivado, estático, dado, numa perspectiva os indivíduos.
negativa discriminatória e segregadora. AMARAL (1998:13) faz referência à fala de
Crochik: «a diferença é a essência da humanidade
A DESCONSTRUÇÃO DE REPRESEN- e quando esta é entendida como exceção à regra,
TAÇÕES EXCLUDENTES abre-se espaço para o preconceito». Acrescenta,
ainda, que:
Entretanto, como nos diz BECKER (1977),
as rotulações não são universalmente aceitas. Em à medida que se reconhece e considera que a
contraposição ao discurso da polaridade (normal diferença, a complexidade, a dinâmica, a
ambigüidade presentes na instituição escola,
x anormal) e da homogeneidade, constrói-se o
abre-se uma outra possibilidade de
discurso da heterogeneidade e da diversidade. «A entendimento. O aluno, também, pode ser
ruptura com o homogêneo que se confronta com reconhecido dentro de sua individualidade, com
o múltiplo supõe inclusive a ruptura da reclusão, suas especificidades sociais, psicológicas,
o exercício da liberdade, o exercício do convívio biológicas e culturais, além do caráter
relacional complexo e permanente entre elas.
da diferença» (SPOSATI, 1998:69)
Discurso que aponta para a necessidade de
As representações estáticas e rotuladas
compreender-se a ação humana como ato
existentes em torno da diferença de capacidade do
significante e de construção plural, que envolve a
aluno com necessidades educativas especiais na
relação com o outro, numa «relação triádica entre
escola, centralizadas em fatores biológicos básicos:
sujeito-objeto-sujeito».
o corpo sadio e capacidade intelectual precisam,
Segundo JOVCHELOVITCH (1998:76):
então, ser desconstruídas, através de práticas
é necessário sair de uma concepção dualista das educacionais efetivas.
relações entre sujeito e objeto para um modelo Torna-se necessário desviar o olhar da
básico, que é permanentemente mediado por um deficiência do indivíduo para a coletividade, que
terceiro elemento constituinte e que multiplicado identifica o indivíduo como deficiente encaixando-
constitui a pluralidade da vida social. Esse o numa categoria de desviante com tratamento
modelo revela não apenas a produção mesma
do sujeito e do simbólico, mas também o distinto. (OMOTE apud CARNEIRO, 1998).
conjunto de implicações que definem as relações Transferir o foco de análise educacional da
entre o ato simbólico, seu sujeito, e o mundo de deficiência para as potencialidades individuais.
objetos e outros que rodeiam este último. Trabalhar, enfim, para uma educação inclusiva na
escola, ou seja, para uma educação que funda-
Vemos que as relações interpessoais são mentada no pressuposto da «educação para todos»,
complexas e nesta complexidade é preciso busca romper a exclusão escolar, com a inserção
considerar-se a diferença como parte do existir do aluno com necessidades educativas especiais
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nas classes comuns do ensino regular, demo- identificação do indivíduo com a personagem
cratizando o espaço escolar. atribuída, que no caso das Pessoas com
Necessidades Especiais, é uma identificação pela
A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NO negação, pelo não-pertencimento.
ESPAÇO ESCOLAR Para GOFFMAN (1982), existe uma
participação do social na construção de identidade,
A identidade é construída na relação social à medida que a sociedade estabelece os meios para
com o outro. A identidade se apresenta sob a forma categorizar tanto as pessoas, quanto os atributos
de personagens, através dos quais os indivíduos considerados comuns e naturais para os membros
desempenham papéis no contexto social de uma categoria.
(CIAMPA, 1998:199-201). A construção da A sociedade define uma identidade social
identidade é um fenômeno concreto, social, virtual ( imposta socialmente) que se diferencia da
histórico e político. identidade social real, caracterizada pelas
categorias e atributos que os indivíduos, na
A identidade é concreta; a identidade é o realidade possuem.
movimento de concretização de si, que se dá Nas relações sociais, através da linguagem,
necessariamente, porque é o desenvolvimento
são referidos atributos a indivíduos, de forma
do concreto e, contingencialmente, porque é a
síntese de múltiplas e distintas determinações. depreciativa, constituindo-se em estigmas.
O homem como ser temporal, é ser-no-mundo, GOFFMAN (1982:13) define o estigma como «um
é formação material. (..) Como ser histórico, tipo especial de relação entre atributo e
como ser social, o homem é um horizonte de estereótipo», sendo compreendido no contexto das
possibilidades (...) Na práxis, que é a unidade
relações humanas e não substantivado. «Um
da subjetividade e da objetividade, o homem se
produz a si mesmo. Concretiza sua identidade. atributo que estigmatiza alguém pode confirmar
a normalidade de outrem».
IDENTIDADE «PRESSUPOSTA» Os indivíduos com necessidades especiais
são estigmatizados no cotidiano social, através de
CIAMPA (1998) nos fala de uma termos específicos como «aleijado e «retardado»
«identidade pressuposta» socialmente que é que assumem representações discriminatórias e que
interiorizada pelo indivíduo e que essa contribuem para legitimar uma ideologia de
representação é incorporada na sua objetividade inferioridade, tendo como padrão de referência o
social. Para ele, quando essa pressuposição não ethos de um dado grupo social, definido como
existe ou é posta em dúvida, a constituição das normal.
identidades passa a ser problemática. Nesta O «deficiente» estigmatizado (considerado
perspectiva, a identificação do deficiente como «ser inferior e anormal) é visto fora do grupo social
anormal» ou «incapaz» tem como base a sua não «de iguais» dominante, cujo pertencimento natural
identificação na «normalidade» que é a «identidade está ligado aos organicamente normais. E esse
pressuposta» socialmente. estigma é construído no processo de socialização
Essa identidade é, também, construída, do indivíduo, através de representações simbólicas.
através de relações concretas de discriminação Assim, a cadeira de rodas, a bengala, as próteses
vivenciadas no contexto social. Chama atenção, auditivas tornam-se «símbolos de estigma», isto
ainda Ciampa, que esta «identidade pressuposta» é, «signos que são especialmente efetivos para
é considerada como dada e não como a «identidade despertar a atenção sobre uma discrepância
metamorfose» construída num processo social, degradante de identidade» (GOFFMAN,
histórico e contínuo de construção. 1982:53), e que são referências às pessoas com
Há, assim, uma interiorização e uma necessidades especiais. A escola por ser um espaço

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de relações interpessoais desempenha, através de construção da identidade de não-pertencimento e
seu trabalho escolar, um papel decisivo na na identidade de incapaz em Marcos.
construção das identidades. A fala de Marcos, « aí a professora falou
A escola ao disseminar as práticas de que eu não ia aprender, que era para procurar a
segregação entre os capazes e os incapazes, APAE» (ABRANTES, 1997:66), retrata o caráter
justificadas ideologicamente pelas dificuldades excludente da escola aos alunos que apresentam
pessoais, culturais ou familiares do aluno e problemas de aprendizagem, sendo rotulados de
identificadas através de procedimentos científico- «burros» e «incapazes de aprender». Estas
pedagógicos, como os testes de QI, dissemina e representações são materializadas pela repetência.
legitima as representações polarizadas entre os A APAE apresenta-se referida como um
seres incapazes, inferiores, anormais e fracassados espaço institucional diferente, porque destinado
e os capazes, superiores, normais e com sucesso aos que não conseguem aprender na escola regular.
escolar. Esse «não aprender» pelo aluno é visto como
Os testes de inteligência – QI têm se causado pelo próprio aluno, por algum problema
constituído como referencial diagnóstico para físico ou mental. A escola tem um atendimento
classificação do «deficiente mental educável» e padronizado e universalizado para os considerados
para o encaminhamento das crianças para as classes «normais». Assim, se o aluno tem problema, o
especiais nas escolas. Mas vêm sofrendo críticas atendimento tem que ser especializado, então
por legitimar a discriminação e a segregação de transfere-se o discente para classes especiais ou
crianças, a pretexto de problemas que apresentam para Instituições Especializadas. Exclui-se o aluno
na escola ( SALAZAR, 1998) com problemas de aprendizagem sem questionar-
Segundo ABRANTES (1997) a repre- se a estrutura escolar.
sentação construída pelo grupo que participa do A APAE pela clientela atendida, crianças
espaço escolar pode: com deficiência mental, passa a ser representada
e associada a um espaço de loucos, não sendo
ganhar vida à medida que estes indivíduos vista como uma instituição escolar. É justamente
passem a agir em função das representações. a condição de aluno da APAE que faz com que a
Estes relacionamentos podem estar atuando
para determinar e pressupor identidades,
«identidade pressuposta» de anormal e de louco
difundindo a idéia de que elas são estáticas. seja atribuída a Marcos, causando-lhe conflito de
Agindo no sentido de dificultar a implementação identidade. Ele aceitava a sua representação de
de novas personagens que se diferenciem das incapacidade para aprender, mas reage a sua
que foram construídas no interior da escola, denominação de anormal ou de louco. Isto porque
criando ilusão de identidades paralisadas, com
um destino pré-estabelecido.
a incapacidade de aprender , caracterizada pela
repetência, na escola regular, é vista como
ABRANTES (1997), ao analisar a trajetória problema, mas a convivência são com iguais,
de Marcos, uma criança com problemas de enquanto que os deficientes estão em classes
aprendizagem escolar, sem diagnóstico de separadas. A transferência de Marcos para a APAE
deficiência, mas encaminhada da escola pública à significa que ele deixou de ser igual aos de sua
APAE, trata da identidade de não-pertencimento turma da classe regular, deixou de ser normal.
construída no espaço escolar. A sua situação de «não-pertencimento» foi
Chamou-nos atenção, no seu estudo, a deslocada de um grupo (os que aprendem) dentro
problematização da institucionalização da de um mesmo espaço institucional, a escola pública,
segregação. Como o significado da APAE, para outro (os deficientes mentais), em outro
instituição educacional destinada à educação de espaço institucional, a APAE .
pessoas com necessidades especiais, interferiu na A imagem de louco passa a ser incorporada

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pelos grupos sociais de sua convivência, a família ao explicitar a necessidade de se conhecer a APAE
e os colegas . «por dentro», ou seja, seu trabalho educativo. Essa
identificação implica reconhecer também o
Tinha bastante (amigos), nossa! Agora depois processo de discriminação e exclusão que sofrem
que eu entrei na APAE todo mundo aí.../(...) os que estão na APAE pelos que estão fora dela.
então até quando eu subia para a APAE, os meus
ex-colegas via eu entrando, eles falavam: Oh,
eu tô aqui na escola, subia em cima do muro IDENTIDADE «METAMORFOSE»
deles e falava: eu tô aqui e você tá aí seu louco,
falavam assim entendeu? Sempre que eu passava ABRANTES (1997) através de Marcos
perto deles falavam: Ô louco da APAE chama atenção para a força do coletivo na
(ABRANTES, 1997: 77). imputação de imagens e de definições de perfis
psicológicos e sociais aos indivíduos. Apresenta,
Assim como Marcos, as pessoas com através dos diversos «eus» revelados («eu calmo»,
necessidades especiais são rotuladas de «eu ferido», «eu incapaz»,«eu burro», «eu louco»
«anormais». Elas sofrem discriminação ao serem e «eu sobrevivente) em sua trajetória de vida, a
transferidas das classes comuns para as especiais identidade com o caráter de metamorfose.
e com isso recebem os rótulos de incapazes, de Identidade construída num processo social e
inúteis, de anormais, que vai se consolidando numa histórico de transição, de transformação.
identidade substantivada de incapacidade, de A identidade como metamorfose se
inutilidade e de anormalidade. contrapõe à identidade substantivada por
Essa identidade de «anormal» e «incapaz» predicações que desqualificam o indivíduo e que
atribuída a Marcos por freqüentar a APAE, ao serem interiorizadas, interferem em suas
entretanto é negada por ele, resistindo através do atividades sociais. Uma identidade que assume a
afastamento dos grupos que reforçam essa forma de personagem atribuída e substantivada.
identidade. Mas ele não se afasta da APAE, não A identidade como transformação,
só por seu acolhimento na instituição, mas, metamorfose compreende o homem como projeto,
sobretudo, pela identificação da APAE como uma como indivíduo que se faz contextualizado
instituição escolar, uma instituição educativa que histórica e socialmente em suas relações com os
lhe possibilitou a aprender, e que de certa forma, outros homens. A identidade assume a forma de
desconstruiu a imagem de incapacidade assimilada personagem ativa.
na escola regular. « Eu não sabia nem escrever o Como nos diz CIAMPA (1995: 111, 154 e
meu nome. Aí eu entrei lá, comecei desde o pré de 186):
novo, em um mês eu passei. Em um mês eu fui Metamorfose: a gente ir se transformando
passando, passando, passando... aí eu aprendi» permanentemente!
(ABRANTES, 1997:109) Somos seres humanos, somos matéria; através
da prática, a gente vai se transformando!»
Vemos que a capacidade de aprender está
«Personagens vão se constituindo umas às
associada à aprovação e a incapacidade à outras, ao mesmo tempo que constituem um
reprovação e à repetência, mecanismos universo de significados que as constitui. (...)
institucionais que contribuem para a consolidação À medida que vão ocorrendo transformações
das representações das capacidades e na identidade, concomitantemente ocorrem
transformações na consciência (tanto quanto
incapacidades humanas.
na atividade).
Essa consciência da APAE como um
território educacional, e não um espaço de
Assim, Marcos ao negar a identidade de
«anormais», cuja imagem é trabalhada pelos grupos
«anormal», que lhe é atribuída, reconhecer a APAE
sociais de sua convivência, é expressa por Marcos

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como instituição educacional, negando também a e as que apresentam necessidades especiais, em
sua denominação de espaço de loucos e reconhecer função de sua deficiência seja mental, física,
que no trabalho ele é capaz, está construindo sua auditiva ou visual, são afastadas das classes comuns
identidade como sujeito social. O afastamento da para classes especiais ou instituições especia-
família e dos amigos torna-se uma estratégia de lizadas. Esse deslocamento de espaço institucional
ação, que reflete a consciência da discriminação, acaba adquirindo uma representação precon-
na luta por sua superação. ceituosa, estigmatizada e segregativa, pois junto
A narrativa de Marcos por ABRANTES ao deslocamento transporta-se a imagem de
(1997) nos coloca, assim, diante da construção da incapacidade, de inutilidade e de anormalidade pelo
identidade das Pessoas com Necessidades fato de não pertencerem mais ao grupo dos
Especiais neste contexto escolar discriminatório e «normais» nem à instituição escola, território do
excludente. Marcos não era deficiente para estar acesso e socialização universal do saber escolar.
numa instituição para deficientes. Ele foi As instituições especializadas como a APAE
«marcado» socialmente por um estereótipo tornam-se, assim, representadas como espaços
construído para as pessoas com deficiências. Esta «não-educacionais», mas local de atendimento
questão, trás subjacente a situação de exclusão clínico a pessoas anormais, associando-se
vivida pelas pessoas com necessidades especiais, deficiência à doença mental, à loucura
através do atendimento especializado em «classes O modelo educacional instituído na escola
especiais» e em «instituições especializadas» como também contribui para a construção dessa
a APAE. representação excludente do aluno com
Coloca também em questão o próprio papel necessidades especiais, pois é uma estrutura
social da escola: « o que seria um espaço para inquestionável, a escola é o espaço de transmissão-
expressão do humano, vem sendo um espaço de aquisição do saber racionalmente construído.
negação dele» (ABRANTES, 1997:32). A escola Assim, se o aluno não aprende, a causa do fracasso
ao selecionar, estipular rótulos, culpar indivíduos escolar centra-se no próprio aluno, na sua
pelos fracassos e justificar a sua organização social debilidade física, emocional ou racional.
injusta, nega seu espaço de educadora para a A escola vem construindo uma «identidade
formação crítica, criativa e autônoma do ser de não-pertencimento» nas crianças com
humano. problemas de aprendizagem ou com necessidades
Essa discriminação institucionalizada, especiais. Mas há um processo de negação, de
apresentada no estudo de ABRANTES, às pessoas rejeição a esses estereótipos por parte das crianças
com necessidades especiais, reforça os argumentos e dos professores, que buscam romper com a
de luta por uma educação inclusiva, cujo espaço representação negativa consolidada por conceitos
escolar não seja ele próprio fator de discriminação substantivados e estáticos de incapacidade e
e exclusão social, como ocorre hoje com as anormalidade, para representações positivas
Instituições Especializadas e as classes especiais centralizadas nas potencialidade pessoais e
no ensino regular. humanas do aluno com necessidades especiais
Assim, no processo de negação de sua
CONSIDERAÇÕES FINAIS discriminação e exclusão, vão construindo
metamorfosicamente novas identidades.
O espaço escolar constitui-se num território A superação da exclusão escolar passa pela
de construção de representações e de identidades eliminação dos mecanismos institucionais seletivos
que consolidam práticas educacionais excludentes. que possibilitam o isolamento dos que apresentam
As crianças com problemas de aprendi- problemas de aprendizagem em classes especiais.
zagem, como o Marcos, personagem de Abrantes, Nesta perspectiva da inclusão escolar é vista pelos

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professores da educação especial como um JODELET, Denise. A alteridade como produto e
caminho viável para a superação da exclusão social. processo psicossocial. In Representando a
A educação inclusiva pressupõe a construção alteridade. Petrópolis: Vozes, 1998.
de uma «identidade de pertencimento» e a JOVCHELOVITCH, Sandra. Re(des)cobrindo o
construção de novas representações sobre a outro – Para um entendimento da alteridade
questão da diferença por incapacidade e isso na Teoria das Representações Sociais. In
significa romper não só com a estrutura escolar Representando a alteridade. Petrópolis:
vigente, bem como com as representações e Vozes, 1998.
identidades substantivadas historicamente de «não- MOSCOVICI, Serge. Prefácio. L’ ére des
pertencimento» construídas. Entretanto, como Répresentations Sociales. In L´étude des
Représentations Sociales. Neuchâtel – Paris:
política educacional a proposta inclusiva está sendo
Delachaux & Niestlé, 1986.
problematizada pelos educadores mediante as ODEH, Muna. «O atendimento educacional
incertezas quanto aos procedimentos concretos de para crianças com deficiências no hemis-
implementação da inclusão escolar. Mas esta é uma fério sul e a integração não-planejada,
outra história... implicações para as propostas de inte-
gração escolar». Caxambu: ANPED, 1998.
PEREIRA DE SÁ, Celso. Representações Sociais:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS o conceito e o estado atual da teoria. In O
conhecimento no Cotidiano. São Paulo:
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