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MODA DOCUMENTA: Museu, Memória e Design

Anais do III Congresso Internacional de Memória, Design e Moda – 2016


ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016

Data: 12, 13 e 14 de Maio de 2016.

Local: UFPR – Curitiba - PR


CORPO EDITORAL

ORGANIZAÇÃO
Márcia Merlo

PRODUÇÃO E EDIÇÃO DIGITAL


Márcia Merlo (Coordenadora Geral do MIMo e Direção Científica do Moda Documenta)
Gustavo Reis (Editor e Pesquisador do MIMo)
Yasmin Fabris (Produção Técnica)
Anna Vörös (Produção Técnica)

Revisão de Texto:
A responsabilidade pela aplicação normativa, conteúdo, correção ortográfica e gramatical dos
artigos, assim como a qualidade da em língua estrangeira (francês, espanhol ou inglês) é
exclusivamente dos autores.

Autorização para Publicação dos Artigos e Painéis Digitais: Todos(as) autores autorizam
a publicação dos artigos científicos (em português e em versão em língua estrangeira), bem
como os painéis digitais, responsabilizando-se quanto ao uso de imagens e conteúdo de seu
trabalho.

Autorização para Publicação dos Trabalhos Aprovados:


Todos (as) autores (as) autorizam a publicação dos resumos dos artigos científicos
apresentados e aprovados ao 6º. Congresso Internacional de Memória, Design e Moda em
português e em versão em língua estrangeira (inglês, espanhol ou francês).

Para referenciar um trabalho publicado nos ANAIS siga as normas da ABNT. Observe que os
dados entre também devem ser preenchidos.
SOBRENOME, Nome autor/a. Título do artigo. In: MODA DOCUMENTA: Museu, Memória e
Design 2016. Anais do 3º. Congresso Internacional de Memória, Design e Moda. São Paulo:
Estação das Letras e Cores Editora, Ano III. v. 01, 2016, p. [XX-XX]. [ISSN: 2358-5269]

REALIZAÇÃO
Museu da Indumentária e da Moda – MIMo
www.mimo.org.br www.modadocumenta.com.br
Estação das Letras e Cores Editora
www.estacaoletras.com.br
Universidade Federal do Paraná

PATROCÍNIO
Capes

SÃO PAULO | 2016


COORDENAÇÃO GERAL DO COMITÊ ORGANIZADOR 2016

Profa. Dra. Márcia Merlo (MIMo | IED SP | FASM)


Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Corrêa (UFPR)

DIREÇÃO CIENTÍFICA 2016

Profa. Dra. Márcia Merlo (MIMo | IED SP | FASM)


Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Corrêa (UFPR)
Profa. Dra. Anna Maria Rahme (MIMo | UAM)

COMITÊ CIENTÍFICO 2016

Profa. Dra. Alessandra Vaccari (Università IUAU di Venezia)


Prof.Dr. Bruno Pompeu (IED-SP)
Profa. Dra. Daniela Calanca (Università di Bologna)
Profa.Dra. Danielle Silva Simões Borgiani (UFPE | SENAC PE)
Profa. Dra. Ethel Leon (FACAMP)
Prof. Dr. Fabio Fernandes (PUC-SP)
Prof. Dr. Fausto Viana (USP)
Profa.Dra. Heloisa Dallari (FAAP)
Prof. Dr. Jofre Silva (UFRJ)
Prof. Dr. José Maria Paz Gago (Universidade da Coruña)
Profa. Dra. Kathia Castilho (Abepem| PUC-SP)
Profa. Dra. Laura Zambrini (Universidade de Buenos Aires | CONICET)
Profa. Dra. Mara Rubia Sant’Anna (UDESC)
Profa. Dra. Maria Alice Ximenes Cruz (FATEC-Americana)
Profa. Dra. Maria Carolina Garcia (Belas Artes)
Profa. Dra. Maria Claudia Bonadio (UFJF)
Profa. Dra. Maria Cristina Volpi (UFRJ)
Profa. Dra. Maria de Fátima da S.C.G. de Mattos (CUML)
Profa. Dra. Maria do Carmo Teixeira Rainho (Arquivo Nacional)
Profa. Dra. Marinês Ribeiro dos Santos (UTFPR)
Profa. Dra. Marizilda Menezes (UNESP)
Profa. Dra. Marly de Menezes (IED SP|UAM)
Prof.Dr. Paulo Monteiro de Araújo (Mackenzie)
Profa. Dra. Patrícia Sant’Anna (Tendere | IED SP)
Profa. Dra. Rafaela Norogrando (UBI| IPV| ID+ I)
Profa.Dra. Renata Pitombo Cidreira (UFRB)
Profa. Dra. Rita Andrade (UFG)
Profa. Dra. Suzana Avelar (USP)
Profa. Dra. Tula Fyskatoris (PUC-SP)
Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

APRESENTAÇÃO
Márcia Merlo

A presente coletânea é fruto do 3o Congresso Internacional de Memória, Design e Moda,


ocorrido juntamente com o 6º. Seminário Moda Documenta. OS Anais do Moda Documenta
2016 apresenta os trabalhos aprovados e comunicados presencialmente durante o Congresso.

Intitulamos a publicação de MODA DOCUMENTA: Museu, Memória e Design para reiterar a


vocação técnico-científica de um evento de moda que pensa a Moda em sua dimensão
histórica, antropológica, sociológica, filosófica, semiótica, artística, de produto, tecnológica e
museológica.

O tema central do ano 2016 abordou Moda e Memória em todos os sentidos. Isto porque a
ideia era intensificar o debate em torno da Memória, do Design e da Moda e, ao propor “em
todos os sentidos”, abranger os processos de produção e gestão de memórias. Enfocou os
modos como são pensadas as relações entre o tempo e a duração das coisas, os sentidos e
sentimentos que as perpassam. Além do tempo, propôs-se discutir o lugar (conceitual) da
memória. Ao frisarmos a presença/ausência de artefatos, pretendeu-se refletir sobre o que
(re)criamos, o que guardamos e porquê o fazemos? O que descartamos e por quê? O que
silenciamos e/ou esquecemos? Por quê?

Os resumos, artigos científicos e painéis digitais aqui apresentados darão uma ideia do que
vêm sendo produzido por diversos pesquisadores envolvidos com a Memória, o Design e a
Moda. Assim, os Anais possuem 52 artigos científicos e 07 Paineis Digitais, completando 59
trabalhos aprovados e apresentados em Sessões Temáticas e Técnica. Os critérios de
avaliação seguiram as diretrizes: a) clareza, pertinência e consecução dos objetivos; b)
qualidade da redação; c) organização do texto: ortografia, gramática, clareza, objetividade e
estrutura formal; d) originalidade do trabalho e relevância do tema; e) metodologia; f)
resultados; g) conclusões; h) contribuição do trabalho para o conhecimento dos temas de
referências.

A avaliação dos trabalhos, em suas diferentes modalidades, foi realizada por um comitê
científico formado por 28 professores doutores, de várias instituições nacionais e
internacionais. Após o recebimento dos pareceres, os autores puderam alterar seus artigos ou

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painéis, criar uma versão bilíngue e reenviá-los à direção científica do Congresso. Após a
comunicação oral dos trabalhos, esses foram organizados nos Anais do Congresso
Internacional de Memória, Design e Moda 2016, em formato digital e publicados em formato
completo no site do evento: www.modadocumenta.com.br, a partir do dia 30.06.2016.

Os Anais do Congresso contêm, portanto, o que foi comunicado da seguinte forma: a) sessão
temática ou técnica; b) coordenação da sessão; c) dia, hora e ordem da apresentação; d) local
em que ocorreu a Sessão; e) títulos, autores, instituições e resumos dos trabalhos aprovados
e apresentados por sessão.

A configuração das Sessões Temáticas da edição 2016 foram:

ST 01. Artefatos que contam histórias


Orienta o debate para a memória dos/nos artefatos, desde os processos de sua criação,
circulação e uso até as lembranças que eles “guardam” e passam a ser reconstruídas por
meio de pesquisas históricas, antropológicas, do design, da indumentária e da moda a partir
de experiências cotidianas. O foco desta Sessão Temática está, portanto, em objetos têxteis
ou não que permanecem em guarda familiar ou que passaram a contar histórias em outras
instâncias sociais e institucionais.

ST 02. Design, Moda e Cultura Digital


Orienta o debate das mediações tecnológicas em equipamentos culturais digitais/virtuais.
Refletindo sobre os acervos digitais, exposições on line, catálogos digitais e museus
digitais/virtuais, ademais do uso das plataformas online para a construção de espaços de
memória, pesquisa e reflexão sobre design, moda e cultura material. Esta Sessão Temática
propõe problematizar o uso de ferramentas digitais como mediações nos museus, com o
propósito de democratizar o acesso aos bens e conteúdos relacionados ao tema do design, da
moda e da cultura material.

ST 03. Fotografia, Cultura Visual e Moda


Orienta o debate por meio do estudo da fotografia e visualidades em geral, desde a análise de
álbuns de fotos que revelam modos e modas até a produção de imagens na atualidade. A
pesquisa com imagens apresenta-se como um relevante recurso metodológico para a crítica e

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reconstrução dos regimes de visualidade que estabelecem os significados a respeito das


práticas sociais, em especial, aquelas vinculadas ao tema da indumentária e de sociabilidades
em questão.

ST 04. História da Indumentária e da Moda


Orienta o debate dentro de uma teoria crítica da história da indumentária e da moda. Estuda o
conceito de indumentária. Discute a historiografia da moda e pensa nova abordagens que
possibilitem uma (re)escrita de processos de análise e sistematização da moda, pensadas
pelos historiadores sociais e culturais.

ST 05. Design, Moda e Cidade


Orienta o debate para o comportamento e consumo de moda e como isto pode ser analisado
pelo viés dos estudos semiológicos, historiográficos, antropológicos e do produto. Procura
entender as relações entre a Arquitetura e a Moda, trazendo um panorama das
transformações nas paisagens das cidades.

ST 06. Memória, Museu e Moda


Orienta o debate em torno da moda e patrimônio focado em experiências museológicas.
Propõe discutir acervos físicos, físico-digitais e digitais de moda, a partir das metodologias e
gestão museológica, para pensar particularidades das roupas e acessórios, assim como dos
têxteis em geral quando este entra no museu, ou seja, esta Sessão Temática também
discutirá guarda e manuseio, mais propriamente dito, a conservação, o restauro, a reserva
técnica e a exposição.

ST 07. Os trajes e suas diversas expressões.


Orienta as pesquisas em torno dos trajes e suas cenas. Propõe pensar os trajes
produzidos e usados em suas variadas possibilidades: teatro, novela, cinema e obras de arte.
Também analisa as narrativas dos trajes de acordo com o ator social que os constrói ou de
como este passa a ser constituído ao analisarmos suas vestes.

ST 08. Painel Digital


Esta Sessão Temática versará sobre a apresentação dos painéis digitais de pesquisadores e
profissionais que queiram apresentar experiências e metodologias de acervo, projetos de

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pesquisas de graduação e Iniciação Científica que abarquem um dos tópicos de referências do


Congresso.

A edição da publicação MODA DOCUMENTA: Museu, Memória e Design é um projeto do


MIMo (Museu da Indumentária e da Moda) em parceria com a Estação das Letras e Cores.

Neste momento, agradecemos a todos(as)e os(as) convidamos a ler e refletir conosco.

Márcia Merlo
Direção Científica do Seminário Moda Documenta
e do Congresso Internacional de Memória, Design e Moda.
Coordenadora Geral do MIMo | Museu da Indumentária e da Moda

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DIRETRIZES PARA SUBMISSÃO DE ARTIGOS CIENTÍFICOS

Modalidade de inscrição: comunicação oral

O artigo científico deve seguir a NBR 6022 da ABNT. A avaliação é cega, portanto, o(s)
autor(es) deverão enviar os trabalhos na versão pdf sem os nomes e instituições ou qualquer
outra menção que dê indicações do(s) autor(es). Também solicitamos a versão do arquivo
em Word (.doc) para ajustá-las às normas de publicação online do Congresso, incluindo a
padronização de cabeçalhos e rodapés com o número do ISSN.
O número de autores por artigo científico permitido é de 03 (três). E estes devem ser pós-
graduados ou estar na pós-graduação. Em caso de dúvida, entrar em contato com a Direção
Científica do Congresso, no email: modadocumenta@modadocumenta.com.br.

O(s) autor(es) que tiver(em) os seus trabalhos aprovados deverão enviar o texto revisado,
segundo as indicações dos avaliadores, Direção Científica do Congresso. O texto final do
artigo para a publicação nos Anais do Congresso é de responsabilidades do(s) autor(es). Isso
inclui a revisão ortográfica, a versão do texto em português e outra versão em língua
estrangeira, que deverá ser inglês ou espanhol ou francês.

* O prazo para a divulgação e devolução do artigo revisado é 18 de março de 2016.


* O prazo para o(s) autor(es) enviar(em) o texto completo para publicação nos anais do
evento encerra-se em10 de abril de 2016.
A publicação dos artigos científicos em formato digital será feita imediatamente após o término
do evento, aguardando, portanto, a comunicação oral do trabalho em fórum público (Sessões
Temáticas do Congresso).

Sobre a submissão do artigo científico


* A submissão deverá ser feita no link disponibilizado no fim dessa página.
– Cada autor poderá inscrever no máximo dois (2) trabalhos. A contagem do número de
trabalhos não distingue autoria de coautoria;
– Todos os autores, tanto do artigo científico quanto do painel digital, deverão estar inscritos
no Moda Documenta e deverão apresentar seus trabalhos nas Sessões Temáticas ou na
Sessão Técnica (Painel Digital). Somente receberão certificados sob esta condição;

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

– As inscrições e submissões dos artigos e painéis digitais serão realizadas pela plataforma
disponibilizada no site do Moda Documenta;
– Antes de enviar os trabalhos, certifique-se de que os arquivos não estejam infectados com
vírus, examinando-os cuidadosamente, com antivírus atualizado.
- Trabalhos que não atendam a essa exigência serão excluídos;
- o formato do artigo científico deve seguir a NBR 6022 da ABNT.

Sobre as avaliações

Os trabalhos serão avaliados de acordo com os seguintes critérios:


(a) Clareza, pertinência e consecução dos objetivos;
(b) Qualidade da redação;
(c) Organização do texto: ortografia, gramática, clareza, objetividade e estrutura formal;
(d) Originalidade do trabalho e relevância do tema;
(e) Metodologia;
(f) Resultados;
(g) Conclusões;
(h) Contribuição do trabalho para o conhecimento dos temas de referências, avaliado por um
comitê científico formado por doutores.

Sobre a autoria dos artigos científicos

Cada autor e/ou coautor poderá submeter até 02 (dois) artigos. Se o artigo for aprovado,
deverá reapresentá-lo em português e em uma versão em língua estrangeira (espanhol ou
francês ou inglês), já revisada em boa tradução, conforme mencionado nas normas para
submissão.
O pagamento será feito por inscrição de participante, ou seja, o artigo que tiver mais de um
autor terá de ter o pagamento da taxa de inscrição de cada um deles. Só será fornecido
certificado de comunicação oral e publicação ao autor que estiver presente ao Congresso e
que faça a sua apresentação.

Sobre a apresentação dos trabalhos

No caso de trabalhos em coautoria, a apresentação do mesmo deverá ser feita por um dos

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autores, mas a certificação se dará somente aos que estiverem presentes na apresentação,
mesmo que somente um apresente, conforme já apontado anteriormente. No caso de autor
principal (único), não será permitida a apresentação do trabalho por outra pessoa.

DIRETRIZES PARA SUBMISSÃO DE PAINEL DIGITAL

Modalidade de inscrição: painel digital

O Painel Digital é destinado para a apresentação de trabalhos de estudantes da graduação


que estejam com pesquisas recém-concluídas ou em andamento de autoria do(a) estudante
sem a co-autoria do(a) orientador(a)*. Enquadram-se também os trabalhos realizados por
profissionais que não estejam vinculados às instituições museológicas e/ou acadêmicas. O
trabalho deverá ser enviado em forma de painel digital (em formato de poster – vide modelo na
área Submissões, no site modadocumenta.com.br). Se submetido e aprovado, o painel digital
será apresentado na sessão técnica do congresso. Se houver mais do que um estudante na
elaboração e apresentação do painel, será fornecida a certificação àquele(s) que
apresentar(em) e/ou estiver(em) presente(s) à apresentação, somente.
*O nome do orientador poderá ser mencionado no trabalho, mas não deve constar como co-
autoria. O orientador, se requerer, receberá um certificado de orientação do trabalho
apresentado, mas não será como autor ou congressista.

REGRAS GERAIS PARA SUBMISSÃO DE TRABALHOS

– Todos os autores, tanto do artigo científico quanto do painel digital, deverão estar inscritos
no Moda Documenta e deverão apresentar seus trabalhos nas Sessões Temáticas ou na
Sessão Técnica (Painel Digital). Somente receberão certificados sob esta condição;
– As inscrições e submissões dos artigos e painéis digitais serão realizadas pela plataforma
disponibilizada no site do Moda Documenta;
– Antes de enviar os trabalhos, certifique-se de que os arquivos não estejam infectados com
vírus, examinando-os cuidadosamente, com antivírus atualizado.
- Trabalhos que não atendam a essa exigência serão excluídos;
- O formato do painel digital foi disponibilizado no site www.modadocumenta.com.br

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

A Comissão Organizadora se reserva o direito de alterar a forma dos painéis enviados para
que os mesmos se adequem às necessidades de configuração para a publicação, quando for
o caso, nos Anais do Evento.

IMPORTANTE

O(a) autor(a) é aquele que pesquisa e responde por sua produção. No caso de relato de
pesquisa que tiver auxílio de alunos graduandos ou pós-graduados, estes deverão ser
mencionados em nota de rodapé e não como coautores. Quando o trabalho for de um aluno
de graduação ou pós-graduando, o orientador e a instituição deverão ser mencionados: a) no
artigo deverão constar em nota de rodapé e b) no painel, abaixo das Referências.
As mesmas indicações para submissão (normas, avaliação e apresentação) recaem sobre a
submissão do painel digital, no entanto, o formato é outro (vide modelo) e esta categoria é
destinada aos graduandos com projetos de Iniciação Científica ou TCC em andamento ou
concluídos. No caso, o aluno fará menção ao orientador e instituição, mas o orientador não
aparecerá como autor ou coautor, conforme já mencionado anteriormente, já que a Direção
Científica deste evento entende que autor é quem pesquisa, que escreve e responde à
produção.

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Sessão Temática 01
Artefatos que contam histórias

Coordenação: Profa. Dra. Anna Maria Rahme | MIMo


Local: UFPR Edifício D. Pedro I / Sala 804

Dia 13/05

Bordado e resistência: a produção artesanal no nordeste brasileiro


Ana Julia Melo Almeida / Universidade de São Paulo / ajulia.melo@yahoo.com.br

O artigo pretende explorar os elementos envolvidos na produção artesanal do bordado manual,


os saberes e as competências presentes nesse ofício. Busca também entender como as artesãs
convivem e lidam com o próprio trabalho, uma tradição transmitida ao longo das gerações e que
revela condições daquele contexto social e o seu caráter de resistência. Para isso, parte-se da
produção das bordadeiras da cidade de Passira (PE), no nordeste brasileiro.
Palavras-chave: Produção artesanal, resistência. Nordeste brasileiro.

Entre terra e mar: a identidade cultural de Peniche trançada pelos bilros


Gabriela Poltronieri Lenzi / Universidad de Salamanca – Espanha / gabrielalenzi.design@gmail.com

Por meio da observação participante, buscou-se compreender a relação social,cultural, econômica


e simbólica, das rendas de bilros com os habitantes de Peniche, Portugal, especialmente com as
mulheres, detentoras e guardiãs dessa sabedoria. Atualmente a transferência da técnica se dá
através de escolas específicas de rendas de bilros, que pretendem manter, além do labor a
culturalidade identitária da cidade.
Palavras-chave: Renda de Bilros. Rendas de Peniche. Identidade.

A produção têxtil dentro da cultura Mapuche


Fabiana M. de Melo / Design de Moda do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) /
fabi.moda22@hotmail.com
Dr.ª Marilaine P. Amadori / Universidade Federal de Santa Maria / marilaine_a@yahoo.com.br

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O artigo aqui apresentado tem por finalidade demonstrar alguns aspectos interessantes da
produção têxtil elaborada pela etnia ameríndia Mapuche, destacando como pontos principais “o
fazer” a partir do tear e seus dois principais produtos: a faixa (chamallwe/trarüwe) e o poncho
(Makuñ). Desta maneira, propomos um melhor entendimento acerca deste rico aspecto cultural
Mapuche, demonstrando como estes distintos elementos se fazem importantes para a
compreensão sociocultural da etnia em questão.
Palavras-chave: Cultura Ameríndia, Mapuche, Produção Têxtil.

O transcender da ausência: um estudo sobre tecidos e memória a partir da obra “A Grande


Pegada” (1990)
Indyanelle Marçal Garcia, Mestranda /Universidade Federal de Goiás / indy.mgarcia@hotmail.com
Rita Morais de Andrade/ Universidade Federal de Goiás / ritaandrade@hotmail.com

Esta pesquisa discute os tecidos como forma de acessar percepções sobre memória e
esquecimento, partindo da análise visual da obra “A Grande Pegada” (1990) do artista plástico
Enauro de Castro (1963). Através dessa investigação, estabelecemos uma relação entre os
corpos ausentes e as marcas impressas em seu suporte de tecido. Quanto aos procedimentos, o
estudo alicerça-se na revisão bibliográfica, que envolve os campos de arte, estudos sobre
indumentária e têxteis, e memória, objetivando assim ampliar os dados para a pesquisa, numa
abordagem qualitativa e da cultura material.
Palavras-chave: tecidos, memória, arte.

Design têxtil: memória das subversões dos limites de gênero no início do século XXI
Maureen Schaefer França / Universidade Tecnológica Federal do Paraná /
maureen.schaefer@gmail.com

Busca-se analisar designs têxteis que subvertem padrões normativos de gênero no início do
século XXI. O design têxtil memoriza ideias numa forma tangível, funcionando como um agente
de transformação social. São apresentadas noções sobre Design Têxtil e a sua relação com a
construção das identidades pessoais e gênero. Depois, são analisados designs têxteis que
reforçam e subvertem padrões normativos de gênero segundo o método de análise pautado nos
estudos de Schiebinger.
Palavras-chave: design têxtil, gênero, subversão.

Dia 14/05

Joias: portadoras de memórias


Ana C. B. M. Passos / EAHC – Mackenzie / anacristina@anapassos.art.br

As joias existem desde a Idade da Pedra e sempre nos fascinaram. Ao longo do tempo,
ganharam funções as mais variadas, podendo enfeitar e simbolizar. Elas são capazes de
carregar consigo reminiscências de quem as faz, de quem as usa e de quem as observa. A partir

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

de alguns estudos de caso de peças que entraram para a história, de joias de família que
passam de geração em geração, de objetos que foram criados para portar reminiscências e da
relação muito peculiar que artistas joalheiros têm com suas criações, pretendemos apresentar as
joias como portadoras de histórias.
Palavras-chave: joia, memória, história.

O Design de Moda e a construção de uma modernidade brasileira


Patricia Reinheimer /UFRRJ / patriciareinheimer2007@gmail.com

Procuro nesse artigo compreender a partir da trajetória de Olly Reinheimer o papel do design de
moda como parte do projeto de modernidade instituído pelo MAM-RJ na década de 1950.
Sobressai também nesse estudo a importância da escolha estilística como parte fundamental do
processo de ingresso na rede de reciprocidade que se formava no incipiente campo artístico
brasileiro e as estratégias dos críticos de inserção tanto da artista como de sua produção de
tecidos e roupas nesse processo.
Palavras-chave: roupas, modernidade, design

Polissemia de um acervo: apontamentos sobre coleções de louça do Museu Paranaense


Martha Helena Becker Morales / INDEX / Museu Paranaense / mhlbecker@gmail.com

A discussão em torno do potencial interpretativo dos artefatos sob a guarda de museus abre um
leque interessante ao permitir a releitura de coleções antigas. Por meio desse exercício de
estranhamento, objetos doados ao Museu Paranaense ao longo do século XX podem ser
encarados sob diferentes olhares. Dessa forma, novas composições expográficas são
embasadas e orientam a reformulação de práticas institucionais cotidianas, tais como a política
de aquisição de acervo. Neste trabalho, o foco recai sobre a polissemia das coleções de louça.
Palavras-chave: acervo, museu, louça.

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Bordado e resistência: a produção artesanal no nordeste brasileiro


Embroidery and resistance: craft production in Northeast Brazil

Ana Julia Melo Almeida (Universidade de São Paulo)


ajulia.melo@yahoo.com.br

Resumo: O artigo pretende explorar os elementos envolvidos na produção artesanal do bordado


manual, os saberes e as competências presentes nesse ofício. Busca também entender como as
artesãs convivem e lidam com o próprio trabalho, uma tradição transmitida ao longo das
gerações e que revela condições daquele contexto social e o seu caráter de resistência. Para
isso, parte-se da produção das bordadeiras da cidade de Passira (PE), no nordeste brasileiro.
Palavras-chave: Bordado, Artesanato brasileiro, Resistência.

Abstract:   This article seeks to explore the elements involved in handicrafts production, the
knowledge and the skills that belong to this activity. Also aims to understand how the artisans live
and relate with their own work, a tradition transmitted by generations and that reveals values from
a specific social context and the resistance character. In order to understand it, we analyse the
production of embroiderers in the town of Passira (PE), in brazilian northeastern.  
Keywords: Embroider, Brazilian Handicraft, Resistance.

1. Introdução

O presente artigo parte de entrevistas realizadas por esta pesquisadora em uma


comunidade de bordadeiras para a realização de seu mestrado. O intuito era compreender a
relação entre o design de moda e o artesanato brasileiro e como parte da investigação teórica foi
fundamental conhecer de perto os processos e aqueles que estão envolvidos nessa produção.
Ao ter contato com o produto artesanal de Passira, percebeu-se a importância de
compreender a forma como os processos presentes na atividade estão relacionados com as
artesãs e com contextos sociais aos quais pertencem.
O bordado manual de Passira está inserido em um espaço de tradição e resistência: é
um ofício transmitido de geração a geração, amplamente presente na vida das mulheres e
fundamental para sua sobrevivência naquele contexto.
O artesanato não retrata apenas os objetos, mas também as práticas sociais, os
processos envolvidos e seus produtores. No que se refere ao contexto brasileiro, Bardi escreve
que o artesanato se assemelha mais a um estado de “pré-artesanato”. O entendimento da autora
(1994:16) acerca do conceito dessa atividade está atrelado à organização social das
corporações de ofício que caracterizava o modo de produção artesanal no passado.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

Segundo a autora (1994:28), as corporações de ofício não entram na formação histórica


do Brasil. “A organização social artesanal pertence ao passado, o que temos hoje são
sobrevivências naturais em pequena escala, como herança de ofício” (Ibidem:26). O estado de
“pré-artesanato”, a que Bardi se refere, é argumentado por conta de sua produção doméstica e
rudimentar.
A autora enfatiza ainda a vulnerabilidade social e econômica das atividades artesanais
no Brasil e ressalta a capacidade inventiva para driblar as condições mais adversas, as barreiras
de pobreza em favor de sua sobrevivência.
Magalhães (1997:180) escreve que a ideia de deixar o artesanato estagnado em um
determinado ponto, como uma atividade imutável, é inadequada. Segundo o autor, “o artesanato
é um monumento da trajetória, e não uma coisa estática”.
Por essa razão, não é uma atividade estática, um conjunto de repertórios fixos e
imutáveis; é fruto de uma experiência coletiva, da forma como as pessoas se ligam entre si, com
os artefatos e com o contexto social e cultural a que pertencem.
Por mais que o artesanato utilize técnicas tradicionais, o que confere a ele uma
impressão de prática do passado, essa atividade se modifica e se reconfigura ao longo do
tempo. Canclini (1983:51) afirma que os produtos artesanais se reestruturam nos dias de hoje
devido às “transformações de significado das culturas populares segundo três dimensões
correlacionadas entre si, isto é, enquanto processos sociais, culturais e econômicos
contemporâneos”.
Em outras palavras, é por meio dessas transformações que as tradições populares se
reconfiguram; e por mais que algumas formas de produção pareçam persistir, há outros fatores
que se redimensionam, refletindo a própria mudança histórica da sociedade. São questões que
vão além do objeto. Elas indagam sua permanência no tempo e no espaço, pensam sua
resistência e a forma de produção desses saberes. Nesse sentido, pensar esse artefato requer,
essencialmente, conhecer quem o faz, onde e como é feito.
Esta discussão será construída com base na produção artesanal de um grupo de
bordadeiras da cidade de Passira (PE), no nordeste brasileiro. As artesãs entrevistadas fazem
parte da Associação das Mulheres Artesãs de Passira (AMAP). Em 2008, as artesãs fundaram a
AMAP com o intuito de “estimular, congregar e encontrar soluções para problemas
socioeconômicos dos associados, promover o intercâmbio de experiências profissionais,
representar a classe junto aos órgãos governamentais e privados”, segundo consta em seu
estatuto, promulgado em 2010.

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Figura 1: Bordadeiras na atual sede da AMAP. Foto: Hélder Santana, maio de 2014.

O município de Passira fica localizado no agreste pernambucano, a cerca de 100


quilômetros da capital do Estado, Recife. Com uma população de pouco mais de 28 mil pessoas,
segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cidade é
conhecida como terra do bordado manual e do milho. A maioria de seus habitantes está situada
na zona rural (51,3%, segundo mesmo levantamento) e pouco mais de 65% é alfabetizada. A
distribuição de gênero em Passira é de 51,2% mulheres e 48,8% homens. O salário médio por
habitante era de R$ 246, em 2010. Mais de 80% da economia local é baseada em serviços.
Passira não é uma exceção no cenário nacional. Segundo o IBGE (2007:94), o bordado
é a atividade artesanal mais representativa nos municípios do Brasil; está presente em 75,4%
deles. Os bordados manuais de Passira passaram de geração a geração; são exemplos de um
trabalho minucioso das bordadeiras da região. Ao indagar as artesãs sobre a origem do bordado
na cidade, é comum ouvirmos que o “bordado surgiu com Passira”.
A atividade manual do bordado vem sendo transmitida ao longo das gerações em
Passira e acompanha a história do município, representando uma fonte de renda para as
famílias da localidade e um atrativo turístico, conforme conta a artesã Marcília: “Se você
perguntar a qualquer pessoa sobre Passira, vai dizer que é a terra do bordado manual. [...] Se
não existisse o bordado, como é que nós ficaríamos conhecidos? Nosso município é conhecido
pelo bordado”1.

                                                                                                                       
1 Entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em agosto de 2012.

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2. A produção artesanal no nordeste brasileiro

“A arte popular manifesta a sensibilidade geral dos que a praticam, por uma seleção
de motivos que são uma espécie de linguagem cifrada. Por detrás desses elementos
aparentemente simples, - aparentemente desconexos, muitas vezes, ao observador
estranho ou desavisado, - estão as infinitas e variadíssimas experiências realizadas
por muitas gerações”.

- Cecília Meireles, As artes plásticas no Brasil, (1968:18).

Quando nos aproximamos de uma técnica artesanal, como o bordado, é comum as


artesãs relatarem que essa atividade é passada de geração a geração. As bordadeiras contam
que aprenderam com a mãe, a avó ou alguém que seja uma referência para elas, geralmente
uma pessoa com mais idade.
O artesanato é transmitido de modo bastante espontâneo: as primeiras gerações,
detentoras das técnicas e dos processos de feitura, repassam seus conhecimentos para as
futuras gerações.

Eu comecei a bordar quando eu tinha 8 anos de idade. Ainda frequentei uma escola
de bordado. Na época a prefeitura dava. O nome da professora é Geni. Eu fui
frequentar a aula só que eu não consegui aprender com ela. Ela ensinava do modo
técnico, não consegui aprender com ela. Eu fui aprender com a minha mãe.

(Marilene Bernardo da Silva Melo, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo


em agosto de 2012)

Para Porto Alegre (1994:59), o aprendizado da produção artesanal não é obtido na


escola, mas no próprio convívio com esse universo de criação, da experimentação, da arte. A
naturalidade do aprender e a iniciação baseada na transmissão pela tradição oral estão
presentes nas falas das artesãs e corroboram o discurso de Porto Alegre.

Quando eu aprendi, eu era louca para aprender. Com 10, 11 anos, eu já bordava
com minha mãe. Muitas aprendiam escondido da mãe, porque a mãe achava que
estava jovem, a gente aprendia escondido. Quando ela achava que não, a gente já
tinha aprendido os primeiros pontos.

(Maria Lúcia Firmino, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em janeiro


de 2012)

O bordado vem sendo repassado ao longo das gerações de modo instintivo e cultural;
aprende-se a bordar observando o trabalho de outra pessoa em um processo repleto de
tentativas. Segundo Porto Alegre (Ibidem:59), “o aprendizado costuma se dar de maneira tão

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espontânea que a pessoa nem se dá conta de como aprendeu: “aprendi sozinho”, “aprendi
vendo o povo fazer”, dizem”.

Mais ou menos uns oito anos eu já estava aprendendo, com as minhas tias, irmãs da
minha mãe. Minha mãe bordava, mas nessa época ela não tinha tempo, cuidava dos
meninos e não dava tempo. Deixou para lá o bordado. Eu estava com uns oito anos,
minhas tias bordavam, eu ficava perto delas olhando, aperriando e quando deu de fé
eu estava com um pano e assim eu aprendi.

(Severina Maria de Oliveira Pessoa, entrevista à pesquisadora deste estudo


concedida em agosto de 2012)

As artesãs explicam que é comum as crianças iniciarem a prática a partir da feitura dos
pontos mais simples, como o ponto atrás, o haste e o nozinho. Começa-se com pontos menos
elaborados e, de acordo com a evolução do aprendizado, experimentam-se pontos mais
complexos. Cada etapa aprendida dará sustentação e apoio para a seguinte.

Figura 2: Imagem do processo de feitura do bordado, executado por uma artesã da AMAP. Foto: Hélder Santana,
maio de 2014.

Por não dominarem todos os processos de produção do bordado, elas começam a partir
do ato de bordar, preenchendo o desenho que já foi riscado por outra artesã mais experiente;
elas recebem o objeto iniciado por outra pessoa que irá retomar aquele trabalho posteriormente.

Eu ensinei minhas meninas. Elas faziam, quando grandinhas 8, 9 anos, elas iam
fazendo os pontos mais fáceis e eu fazia os outros pontos. No começo, geralmente a
gente aprende o ponto atrás e a fazer bolinhas, que são os poás, que são os pontos
mais fáceis. Depois a gente aprende os pontinhos mais abertos, os pontos de casear
que eram os matames, depois fui aprendendo o restante.

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(Maria Lúcia Firmino dos Santos, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo
em agosto de 2012)

O primeiro ponto que aprendi foi o atrás, depois as folhas e os poás . As rosas foi o
último, o ponto cheio, que já é mais difícil. A gente tem que fazer o desenho bem
desenhadinho. Eu aprendi com minha mãe e bordar com minha mãe tem que fazer
bem feito, tem que ter delicadeza.

(Marilene Bernardo da Silva Melo, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo


em agosto de 2012)

À medida que a pessoa aprende determinado ponto, desenvolve sua habilidade na


prática e ao adquirir o domínio desse conteúdo, muda-se para o seguinte. A bordadeira passa,
assim, para outro ponto ou processo até adquirir conhecimento de todos os pontos praticados
naquela comunidade e de todas as etapas da produção do bordado.
Porto Alegre (1994:104) elucida que a aprendizagem das atividades artesanais é
baseada no método de tentativa e erro; e pela aproximação constante com o objeto. Além dos
tipos de pontos e dos processos de produção, as bordadeiras mais experientes ensinam as
novatas sobre as especificidades do bordado: como utilizar os tecidos, as linhas e as cores;
como compor os desenhos de maneira harmônica; como conciliar o trabalho das mãos e da
mente; e como cada uma pode organizar e memorizar a atividade por meio das repetições.
Nesse sentido, as bordadeiras aprendem a atividade em um processo de
experimentação com o próprio trabalho; a capacitação ocorre por meio do treinamento e a
observação das artesãs mais experientes. O desenvolvimento das habilidades vem com o tempo
e a prática, e é preciso envolvimento para conquistar e dominar a técnica.
Sennett (2009:328) escreve que a habilidade das práticas artesanais amadurece com o
tempo; os artesãos, ao evoluírem em determinada etapa da atividade, sentem-se orgulhosos
com a conquista, e é esse sentimento que os impulsionam. Sobre essa dinâmica, o autor afirma:

Os artífices orgulham-se sobretudo das habilidades que evoluem. Por isso é que a
simples imitação não gera satisfação duradoura; a habilidade precisa amadurecer. A
lentidão do tempo artesanal é fonte de satisfação; a prática se consolida, permitindo
que o artesão se aposse da habilidade. A lentidão do tempo artesanal também
permite o trabalho da reflexão e imaginação – o que não é facultado pela busca de
resultados rápidos. Maduro quer dizer longo; o sujeito se apropria de maneira
duradoura da habilidade. (SENNETT, 2009:328).

A experiência é adquirida pela observação e treinamento da técnica. As artesãs, com o


passar do tempo, ganham habilidade e os seus sentidos são aguçados durante todo o processo.

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Mais do que a transmissão da técnica, passam-se concepções do que é ser artesã e do que é
um bom bordado. As técnicas, o ensino dos pontos, bem como os discursos sobre o que é ser
bordadeira e do significado do bordado em suas vidas perpassam gerações.
Cabe ressaltar também a importância de uma referência nesse processo de
aprendizado: a forma como os saberes se difundem por meio de uma pessoa que detém o
conhecimento integral desse saber-fazer. Mendes (2011:127) argumenta que é comum entre
grupos artesanais a presença dessa figura, responsável pela transmissão do conhecimento às
gerações futuras.
O artesão é tido como referência quando se destaca em seu trabalho, por sua habilidade
adquirida e por repassar os conhecimentos fundamentais da sua atividade para as outras
gerações; o que se pode associar à estrutura existente em séculos anteriores, nas oficinas de
mestres e aprendizes em corporações de ofício.
Na AMAP, a artesã Maria Lúcia, a associada mais velha, é a referência para as demais
por conta de seu envolvimento com a associação e de se comprometer com o repasse do
conhecimento. A bordadeira Severina conta que aprendeu a “riscar”, uma das etapas de
produção do bordado, com D. Lucia, quando entrou na associação; já Marilene afirma que a
artesã tem muito conhecimento nessa atividade:

Olha, bordar, eu comecei logo cedo, acho que com 10 anos eu já estava bordando,
agora riscar, eu vim riscar de um tempo desse para cá. Eu vim aprender a riscar
depois que eu entrei na Associação, eu me empolguei com as meninas riscando e fui
aprendendo. Dona Lúcia foi minha professora [...] Ela é a mais velha, a gente tem ela
como a mãe da associação.

(Severina Maria de Oliveira Pessoa, entrevista concedida à pesquisadora deste


estudo em janeiro de 2012)

Daqui da cidade, quando aparece um ponto novo, um bordado diferente, a gente


descobre como faz é com ela [referindo-se a bordadeira Maria Lúcia], ela borda
desde pequena, sabe de muita coisa.

(Marilene Bernardo da Silva Melo, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo


em agosto de 2012)

A bordadeira Maria Lúcia afirma que “quem aprende, ensina” , enfatizando a importância
de transmitir seus conhecimentos entre os membros da comunidade. O bordado acompanha a
história de Passira e é uma atividade muito importante para as mulheres dessa localidade.
Repassar essas habilidades práticas às outras gerações é uma tentativa de garantir a
sobrevivência da atividade e de seus produtores.

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Eu não queria nunca que acabasse essa tradição na minha cidade, eu não queria.
Porque se Passira hoje é reconhecida, é por conta do bordado manual. Não tem
outra atração aqui na cidade. Já veio muita, muita gente visitar a cidade por conta do
bordado. Se acabar esse bordado, as pessoas vão vir fazer o que aqui?

(Maria Lúcia Firmino dos Santos, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo
em agosto de 2012)

Para Porto Alegre (Ibidem:68), “é nessa continuidade que se estrutura e se reproduz a


tradição familiar” das atividades artesanais ensinadas de geração a geração. Ao falar sobre esse
processo de aprendizado de práticas artesanais, Sennett (2009:265) escreve que “quanto mais
a pessoa valer-se dessas técnicas, quanto mais a explorar, mais será capaz de conquistar a
recompensa emocional do artífice, o sentimento de competência”.
Para o autor (ibidem:269), esse sentimento de competência e o desejo em fazer um bom
trabalho são questões fundamentais da habilidade artesanal. Segundo ele, é essa aspiração,
essa motivação que conduz o artesão e confere qualidade ao seu trabalho.
Porto Alegre (1994) afirma que o fato mais importante para o artesão é a busca
constante pela perfeição de seu trabalho, acima até mesmo da originalidade.

A singularidade da condição artística que se procura afirmar pela intenção da


originalidade, a figura do criador solitário, carece de sentido, pois para o artista
popular, o fundamental não é ser diferente, único, mas sim atingir a perfeição, ser
capaz de expressar com as mãos aquilo que sua inteligência concebe. (1994:106-
107).

As artesãs buscam a perfeição; conseguirem executar uma atividade que nem todos são
capazes de fazer é motivo de orgulho entre elas. A respeito disso, a artesã Maria Lúcia afirma:
“Nem toda mulher consegue ser bordadeira, tem umas que não aprendem de jeito nenhum.
Muita gente diz que consegue fazer e não faz” . Ela completa essa ideia e comenta que para
bordar é preciso ter amor à profissão.

Você observa logo, quando pega na peça de uma pessoa que faz com carinho e a
pessoa que faz porque está precisando do dinheiro, que é diferente. Você chega a
ver, o acabamento perfeito, a pessoa trata aquelas linhas bem certinhas, tem as
entradinhas, faz bem direitinho. E tem pessoas que fazem uma rosinha que parece
um pneu de um caminhão, porque faz tudo redondo.

(Maria Lúcia Firmino dos Santos, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo
em janeiro de 2012)

Há também a recompensa financeira, que é retirar o sustento da família com a atividade


que aprenderam. A fala da artesã Marilene retrata a autonomia econômica que ela alcançou com
o bordado.

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Sempre estudei. Estudava e bordava. Sempre bordei. Aí depois continuei. Eu estava


até comentando, com 12 anos de idade eu já era financeiramente independente.
Roupa, material escolar, meus pais não tinham renda fixa, com muitos filhos. Roupa,
calçado, já era o dinheiro do meu bordado. Eu mesma vendia. Eu levava para
algumas pessoas.

(Marilene Bernardo da Silva Melo, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo


em agosto de 2012)

Cabe ressaltar que o artesanato brasileiro está intrinsicamente associado à situação de


fragilidade social e econômica. As comunidades produtoras encontram-se, na maioria das vezes,
em condições vulneráveis e dependem das práticas artesanais para sobreviver.
Quando as bordadeiras enfatizam que “tiram o sustento do bordado” e citam “as coisas
que conseguiram por meio do bordado”, demonstram sentir orgulho de manter financeiramente a
família com o seu trabalho, ainda mais por obterem essa conquista por meio de uma atividade
que faz parte de sua própria história.

O artesanato ajudou muita gente aqui, ajudou demais. Muita gente que não tinha
nem uma casinha mais humilde para morar e hoje tem graças ao seu bordado [...] Eu
mesma consegui muita coisa com o bordado, eu construí minha casa e ajudei os
meus filhos a construir a deles.

(Maria Lúcia Firmino dos Santos, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo
em agosto de 2012)

As bordadeiras que conseguem êxito nessa atividade, não conseguem mais parar e o
bordado passar a ser parte integrante de suas vidas, muito além de uma atividade econômica.

Eu nunca parei, não consigo parar, todo dia se você chegar lá em casa, eu tenho
bordado. Eu acho que eu nasci para isso.”

(Maria Lúcia Firmino, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo em janeiro


de 2012)

O bordado é muita coisa, é uma distração, é um trabalho, é tudo.

(Severina Maria de Oliveira Pessoa, entrevista concedida à pesquisadora deste


estudo em janeiro de 2012)

O bordado é crucial, sempre foi. É uma coisa que, vamos dizer assim, para viver sem
ele é difícil. Foi aquilo que eu aprendi, foi aquele exemplo que eu aprendi com a
minha mãe [...] O bordado é o que eu tenho pra contar.

(Marilene Bernardo da Silva Melo, entrevista concedida à pesquisadora deste estudo


em agosto de 2012)

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A partir dessas afirmações das bordadeiras, surgem outras concepções e noções que
nos ajudam a entender essa prática em uma dimensão mais ampla. As artesãs não
compreendem seu produto apenas do ponto de vista econômico; ao relatarem que não
conseguem parar de bordar e que nasceram para isso, o bordado adquire uma significação em
suas vidas, um aliado que as ajuda a seguir e a suportar as adversidades.
Segundo Porto Alegre (1994:109-110), o significado do artesanato para uns pode ser
apenas associado a um meio de sobrevivência. Porém, para outros, ganha uma dimensão maior:
“o trabalho torna-se o centro de toda a vida do indivíduo”.
Percebe-se, assim, que o ato de bordar e a vida cotidiana das artesãs se entrelaçam.
Para a mesma autora acima (Ibidem:136), “talvez seja essa forte relação entre trabalho e modo
de vida que atrai e fascina o observador, o fato de que os objetos produzidos revelam pedaços
da vida diária” de quem os produz.
Não há como compreender os processos artesanais sem apreender os significados
desta atividade para as próprias artesãs, bem como o contexto social em que esses produtos
estão inseridos.
O artesanato em sua inteireza envolve as tradições enraizadas, a condição de seus
produtores e os significados dessa atividade no presente, além de suas possibilidades de
continuar a existir. São esses fatores que conferem a sua trajetória o caráter dinâmico.

Referências bibliográficas

BARDI, Lina. Tempos de Grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M.
Bardi, 1994.
CANCLINI, Nestor García. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense,
1983.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2009.
MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo?: a questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira-Fundação Roberto Marinho, 1997.
MEIRELES, Cecília. As artes plásticas no Brasil: artes populares. Rio de janeiro: Edições de
Ouro, 1968.
MENDES, Francisca R. N. Modelando a vida no Córrego de Areia: tradição, saberes e itinerários
das louceiras. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011.
PORTO ALEGRE, Sylvia. Mãos de Mestre: itinerários de arte e tradição. São Paulo: Maltese,
1994.
SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.    
SIMIONI, Ana Paula. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e
Rosana Palazyan. Revista Proa, Campinas, n.2, vol.1, 2010. Disponível em:
http://www.ifch.unicamp.br/proa.

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ENTRE TERRA E MAR: A IDENTIDADE CULTURAL DE PENICHE TRANÇADA PELOS BILROS

BETWEEN LAND AND SEA: PENICHE'S BOBBIN-MADE CULTURAL IDENTITY

Gabriela Poltronieri Lenzi1


(Universidad de Salamanca - Espanha)
E-mail: <gabrielalenzi.design@gmail.com>

Resumo: Por meio da observação participante, buscou-se compreender a relação social, cultural,
econômica e simbólica, das rendas de bilros com os habitantes de Peniche, Portugal, especialmente
com as mulheres, detentoras e guardiãs dessa sabedoria. Atualmente a transferência da técnica se dá
através de escolas específicas de rendas de bilros, que pretendem manter, além do labor a
culturalidade identitária da cidade.
Palavras-chave: Renda de Bilros. Rendas de Peniche. Identidade.

Abstract: Through participant observation, this study aimed at understanding the social, cultural,
economic and symbolic relation of bobbin lace to the inhabitants of Peniche, Portugal, especially to
women, holders and keepers of this knowledge. Nowadays, the transfer of this knowledge happens by
means of specific bobbin lace schools, which aim at preserving, besides this type of work, the cultural
identity of the town.
Keywords: Bobbin lace. Lace from Peniche. Identity.

                                                                                                               
1 Doutoranda em Ciências Sociais - Programa de Antropologia da Universidad de Salamanca.

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1 INTRODUÇÃO

Durante dias ensolarados de outubro de 2014, na Escola de Rendas de Bilros da cidade de


Peniche, Portugal, os relatos das rendilheiras mesclavam-se com o som das ondas do mar. Não é por

acaso que o vai-e-vem dos bilros imita as ondas, assim como sua cor branca assemelha-se ao brancor
da espuma do mar, como menciona Ida Guilherme em alguns de seus versos. Sempre que os homens
da pequena cidade de Peniche iam para o mar em busca de sustento, as mulheres, que ficavam em
terra com os filhos, faziam rendas de bilros. Essa atividade, além de complementar a renda familiar,
permitia a essas mulheres interagir com outras mulheres, deixando o tempo de espera mais leve.
Quanto ao seu surgimento, ou seja, ao modo como essa técnica chegou a Peniche, diversas
são as teorias. Entretanto, por falta de documentos que comprovem a data com exatidão, não é
possível afirmar nem como essa técnica surgiu na localidade. (CALADO, 2003)
Não obstante, sua relevância nessa comunidade, tanto econômica quanto social e cultural,
tornou-se indiscutível e inquestionável. Além de um antigo labor, a renda não se limita a um artesanato,
mas se estende a todo um estilo de viver e de expressar-se. O poético conto de Machado (1981, p.
151-153), intitulado A vida alegre, descreve, com doçura e genuinidade, essa chegada à comunidade:

[...] Uma senhora muito sabida em contos, tradições, e lendas, disse-me, de uma
ocasião, que todo o segredo daqueles tecidos, quem o ensinara a uma rapariga da
terra fora a Virgem Maria em pessoa! [...].
A rapariga andava namoradíssima, e triste de ser pobre e o seu noivo ser rico.
Numa noite, estando ela a chorar, e a lastimar-se de sua sorte truz, truz à porta.
Entrou uma senhora de sobrenatural beleza; sem soltar uma só palavra, depôs
sobre os joelhos dela, bilros, e linha fina. Depois, e do mesmo modo, sem falar,
principiou a fazer trabalhar os bilros, ensinando por seu exemplo a maneira de se
servir de tudo aquilo e de conseguir os desenhos que pareciam estar a nascer-lhe
debaixo dos dedos, formando toda a quantidade de malhas e flores bordadas, como
jamais se havia visto.
Quando a discípula aprendeu, por arte que já fizesse tal qual, o que acabavam de
lhe ensinar, ia a romper a manhã... Então a divina figura desapareceu... Logo
agradaram tanto as rendas e principiaram a vender-se com tal procura, que a
pequena dentro em pouco tempo tinha, como o produto de venda delas, um dote tão
taful que a família do noivo, que era bem remediada, teve grande satisfação de
anunciar-lhe que consentia no casamento e aplaudia a união de tão formoso par.
Nunca houve felicidade maior nessa vida do que a daquela gentil noiva. Feliz como
esposa: dali ao tempo devido, feliz como mãe: e, sozinha no segredo de fabricar as
rendas, ganhando lindamente, ganhando um dinheirão, ganhando o que queria.

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Numa noite que ela estava no seu serão, dá-lhe que dá-lhe, bilros para cá, bilros
para lá, ao passo que o marido a contemplava com ternura e os filhinhos lhe
brincavam aos pés, de repente entra naquela casa a mesma desconhecida que lhe
revelara o segredo, causa de toda a felicidade em que viviam.
Vinha, porém, triste e serena.
Estão aqui a paz e a abundância, estão; - disse: - mas, a miséria e a fome andam
por essas casas e ruas de Peniche. Vim eu a ti, mas tu não foste aos outros. Com
isso, chorando, os anjos, de ti afastam a vista [...]
E desapareceu.
No dia imediato em diante, foi bater de porta em porta, e entrar de casa em casa, a
pobre mulher que assim fora admoestada; e levando torçal e bilros, oferecia-se para
ensinar a quem quisesse aprender a delicada arte de fazer rendas...
Queres que eu te ensine, Maria? Queres tu, Joana? E tu, e tu, e tu, Rosalia,
Gertrudes, Margarida?
Queremos, sim, se queremos!
As iniciadas quiseram também depois ter discípulas; e assim se estabeleceu em
Peniche a indústria das rendas, modo de vida de quase todas as mulheres daquela
terra encantadora e triste, cercada de rochedos fragosos que parecem estar dizendo
que a natureza a defende como a providência [...].

Por meio desse conto, constata-se que a renda de bilros é tida pela comunidade de Peniche
como um instrumento de fonte econômica que, por obrigatoriedade, deve ser repassado e ensinado.
Todavia, não como uma obrigatoriedade forçosa, mas, sim, porque, para ser completa, é necessária a
junção dessas mulheres, como menciona Calado (2003, p. 113):

[...] seriam milhares as mulheres penicheiras que, nas horas em que as lides
domésticas lhe permitiam, se dedicavam ao trabalho da almofada, num recanto
qualquer de suas casas ou ao ar livre, nos quintais ou à soleira das portas, em
pequenos grupos de vizinhas, trocando experiências [...].

Objetivando compreender a relação identitária cultural, social e econômica entre as mulheres


dessa localidade e as rendas de bilros produzidas por elas, o presente estudo apoiou-se na
observação participante, realizada na Escola de Rendas de Bilros, em Peniche.
Ao trançar os fios de algodão que formam os desenhos das rendas, a comunidade trança,
também, a sua história. Por meio da memória coletiva das rendeiras ainda presentes na cidade,
juntamente com a Escola de Rendas de Bilros da localidade, pôde-se compreender, de modo empírico,
a magnitude que esse artesanato teve e ainda tem para as pessoas que lá vivem.

2 METODOLOGIA

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Através da observação participante realizou-se o estudo de campo na Escola de Rendas de


Bilros, de Peniche - Portugal - em final de outubro de 2014. Teve-se contato direto com as
rendilheiras2, às quais se aplicaram entrevistas de modo dirigido indireto que, por sua vez, consistiram
no método qualitativo. Assim, buscaram-se evidenciar os detalhes que cada entrevistada expôs. Para
Taylor e Bogdan (1987), a metodologia qualitativa se refere ao mais amplo sentido da pesquisa que
produz dados descritivos e que relata as próprias palavras das pessoas, faladas e escritas, com a
conduta de observação.
Uma análise de estudo de campo não tem sentido sem que haja intermédios emocionais e de
pensamento do sujeito que realiza. Registrar as ações sem as interfaces mencionadas não responderia
às pretensões das Ciências Sociais que desejam não somente registros, mas também a compreensão
das ações do homem em sociedade. (FRAZER apud MALINOWSKI, 1973)
Com base na colocação feita anteriormente, se teve como apoio, para descrever e interpretar
a experiência vivida junto à comunidade de rendilheiras da Escola de Rendas de Peniche, a descrição
densa, processo comumente utilizado pelo antropólogo. (GEERTZ, 1992)
Assim sendo, se fez uso da descrição densa, tendo outro enfoque narrativo para que se
cumprisse o propósito dessa descrição na qual o observador se coloca plenamente participante e
incorporado à ação. (VELASCO; DE RADA, 1997, p. 45-47)
Além disso, fez-se uso da Memória Coletiva, apresentada por Halbwachs (2006) como fonte
de pesquisa.
Bosi (1994) afirma que Halbwachs, em sua obra, acredita que os fatos sociais consistem em
modos de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotados de um poder coercivo pelo qual se lhe
impõe. Portanto, Halbwachs (2006) não estuda a memória em si, mas o quadro social da memória.
Para o autor, o caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória, é excepcional, sendo que lembrar,
na maioria das vezes, tem o poder de reconstruir, repensar e refazer, com imagens e ideias de hoje, as
experiências obtidas no passado.
Bosi (1994, p. 55) assim se expressa quanto à memória:

A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência


do passado, ‘tal como foi’, e que se daria inconsciente de cada sujeito. A lembrança
é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição,
como conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.

                                                                                                               
2 Termo utilizado para quem faz rendas. (CALADO, 2003)

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A mesma autora, baseada nos ensinamentos de Halbwachs, acredita que, por mais clara e
nítida que seja a lembrança que se tem de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que se
experimentou na infância, por exemplo, pois não se é o mesmo de então e porque a percepção mudou
e, com ela, mudaram as ideias, os juízos e a noção de valor. O simples fato de lembrar o passado no
momento presente extingue a identidade que existe entre as imagens do outro, propondo a sua
distinção em termos de ponto de vista.
Portanto, por meio desse estudo de campo, se coletaram relatos de sete senhoras
rendilheiras, presentes na Escola de Rendas de Bilros da Câmara Municipal de Peniche, fazendo uso
de câmera fotográfica e de gravadores de voz, bem como de um diário de campo.
Em meio às entrevistas dirigidas indiretas, pôde-se viver a experiência de cada vai-e-vem dos
bilros entre seus dedos, que foi acompanhado dessas histórias passadas de geração para geração.

3 AS RENDAS DE BILROS: HISTÓRIA E SURGIMENTO

A renda de bilros contribuiu culturalmente, socialmente, economicamente e identitariamente,


sobretudo para as mulheres de Peniche, com relatos comprovados, desde o século XVII, conforme
exposto no site:
Quanto às rendas de bilros, não é fácil localizar, com exatidão, a data do seu
aparecimento em Peniche, ainda que seja indiscutível que já no século XVII os bilros
saracoteiam nas almofadas cilíndricas das mulheres penichenses a dar vida às
formas mais ou menos ingénuas dos desenhos traçados sobre os piques3 cor de
açafrão, dado que, pelo menos num testemunho datado de 1625, se registra a
doação de uma renda (…). (ARTESANATO, 2015, s/p, grifo no original)

Porém, sabe-se pouco sobre o surgimento do artesanato na localidade, pois, devido à falta
de documentos, não é possível atestar com precisão a sua origem. Há os que defendem que a renda
veio do Oriente por meio dos árabes, que tiveram uma passagem pela região, durante sua
permanência na Península. (CALADO, 2003) Um fato que pode comprovar tal afirmação é a maneira
como as senhoras rendeiras sentam-se perante as almofadas, conforme menciona Calado (2003, p.
81): “É que, por costume, adquirido logo desde a infância, as antigas rendilheiras de Peniche
sentavam-se no chão, defronte da almofada (que era apoiada num cesto ou num banco de pequenas
dimensões), sobre as pernas cruzadas, exatamente à maneira turca ou árabe [...].” (Figura 1).

                                                                                                               
3 “O pique é o cartão depois de picado e com o desenho riscado.” (CALADO, 2003, p. 121)

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Figura 1 - Rendilheiras sentadas no chão enquanto fazem as rendas de bilros


– Peniche, Portugal, início do século XX

Fonte: Calado (2003, p. 112).

Outra hipótese é que as rendas de bilros chegaram a Portugal, mais precisamente em


Peniche, por meio das relações comerciais marítimas com Flandres, pois, em Bruges e Antuérpia, esse
artesanato já era explorado, podendo ter sido transmitido por uma pessoa que o dominava e que tenha
desembarcado em algum porto português. (CALADO, 2003)
Todavia, Calado (2003, p. 85) acredita que, independente da hipótese correta, todas elas
contribuíram fortemente para o desejo natural das mulheres por essa artesania, sendo que questões
identitárias dos povos “são sempre complexas e multifactoriais.” [...]: “A verdade é que, apesar de todas
as dúvidas quanto à sua origem, a renda de bilros se foi fazendo e desenvolvendo em Peniche.”
No entanto, há documentos que comprovam que esse ensinamento era repassado dentro da
própria família, ou seja, de mãe para filha, e que sua essência nasce do feminino, pelo menos na
cidade de Peniche. Posteriormente, devido à seriedade do labor, surgiram as escolas de rendas de
bilros, onde as meninas podiam aperfeiçoar seu talento no artesanato.
Figueira (1867, p. 6) mencionava que todas as mulheres de Peniche ocupavam-se com as
tais rendas de bilros e que as que não utilizavam da artesania como modo de ganhar a vida
exploravam a técnica como uma atividade para entreterem-se “[...] numa terra que lhes faltam os
divertimentos das cidades grandes e dos grandes centros de população [...]”.

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A renda circulou e evoluiu graças às mãos das penicheiras, de todas as idades e de várias
gerações, e ultrapassou tempos muito distintos, renascendo soberana a cada época. Todavia, as
mulheres da comunidade de Peniche mantêm-se com a reciprocidade, entre elas e as rendas de bilros:
uma não viveria sem a outra, ambas se complementam, agregam-se e renascem juntas. Essa relação
bilateral é tesouro dessa união entre dedos e os fios de algodão.
Nas rendas, são expressas, além da identidade cultural das mulheres de Peniche, suas
dores, suas amarguras, suas alegrias... como comenta Maria Magdalena (1917, p. 145-146):
“Rendilheiras das nossas praias, que se curvam sobre a almofada redonda, contando às rendas, na
canção dos bilros impacientes, todas as amarguras da sua vida, na ânsia de que o mar lhes trouxesse
as vidas dos que amavam. ”
O “tic tac” dos bilros é como terapia para essas mulheres. Suas lástimas são ouvidas quando,
sentadas à almofada, rendam e materializam suas dores de saudades. A pequena menina vê a mãe a
rendar seus anseios e recorre também aos bilros para contar suas aflições. Assim, quando uma mulher
repassa a técnica a outra, repassa também o hábito de confidência ao sentar-se em frente à almofada.
No entendimento de Calado (2003, p. 135), é “Um saber transmitido pelas rendilheiras mais
idosas [...] e uma prática continuada de amor-sacrifício transmitido por gerações de mulheres
penicheiras como se fora a emanação inevitável de uma exigência telúrica. ”
Por ser a renda de bilro um oficio de tamanha relevância cultural, social, identitária e econômica, a
seriedade em relação a esse artesanato ultrapassa as fronteiras das casas de família e torna-se uma
aprendizagem pedagógica e metodológica. Embora o gosto inicial pelas rendas de bilros fosse ensinado no
lar, havia outra alternativa para ser uma rendeira: as escolas de bilros. As “escolinhas populares” (Figura 2),
que eram também chamadas de escolas de “sujeição” - onde, por consentimento dos pais, as meninas
deviam obediência total às mestras, - eram de iniciativa privada e ensinavam às garotas de até dez anos de
idade não somente a técnica de rendar, mas também, ao mesmo tempo, o saber ler, escrever, realizar
cálculos, a doutrina católica, entre outros. (CALADO, 2003)

Figura 2 - Oficina de renda de bilros de José de Oliveira, início do século XX

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Fonte: Calado (2003, p. 132).

Por volta de 1865, Peniche contava com oito “escolinhas populares” que eram dirigidas por
rígidas senhoras – somente mulheres – as quais, além das rendas, ensinavam outras disciplinas
conforme mencionado anteriormente. Para frequentar a escola, era necessário pagar, e os preços
variavam de acordo com a quantidade de matérias que cada aluna selecionava. (FIGUEIRA, 1865)
Quanto às mestras, “ganham muito pouco: 80 réis ou quatro vinténs por mês é o mesquinho
salário, que cada discípula paga por aprender a fazer renda, mas se aprender outras prendas e a ler,
este preço varia até 200 réis. ” (FIGUEIRA, 1865, p. 8-9)
Atualmente, o ensino da renda de bilros ressurge após algumas gerações de mulheres que,
por trabalharem em indústrias locais, tiveram que abandonar esse estimado ofício tão característico do
local. Não se pode dizer que as rendas desapareceram em Peniche. Com toda certeza, não
desapareceram, mas a repassagem da técnica adormeceu dentro de algumas casas. Tampouco se
pode dizer que foi por desejo das mulheres, visto que as obrigações dos tempos atuais forçosamente
as fizeram esquecer os bilros, mas somente por um momento.
A rendeira e poetisa Guilherme (2010, p. 9) manifesta-se quanto ao aprendizado da renda por jovens
de hoje: “Actualmente sinto a falta de crianças e jovens a rendilhar-me”. Coloca-se ela no lugar dos
bilros. Assim como Ida Guilherme, outras “protetoras” da técnica lamentam a perda desse hábito na
vida e nas casas penicheiras. Todavia, por meio dos defensores do artesanato, bem como de órgãos
públicos da cidade de Peniche, que instituíram a Escola de Rendas de Bilros, jovens e crianças
interessados podem capacitar-se. Além dos jovens, as senhoras rendeiras, na maioria jubiladas,

frequentam a escola onde aperfeiçoam suas habilidades.

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Felizmente que, a par de outras iniciativas particulares, com o aparecimento dos


Artesãos de Santa Maria (da responsabilidade da paróquia e atualmente extinta),
da Escola de rendas de Peniche (da Câmara Municipal) e da constituição da
Peniche – Rendibilros (Associação para a defesa e promoção das rendas de bilros
de Peniche), esta arte foi sendo salvaguardada e dignificada, existindo um número
considerável de penicheiras que sabem tecer renda de bilros ou se dedicam à sua
confecção. (ARTESANTO, 2015, s/p, grifo no original)

Calado (2003) defende que a existência de escolas e oficinas garante a continuidade dessa
arte considerada Patrimônio Cultural de Peniche, fomentando assim a cultura local.
As rendas que nascem com a função de companhia e de pão sobre as mesas, hoje batalham
para se manterem vivas na cultura e no cotidiano dos penicheiros, especialmente no dos jovens,
garantia de um futuro para as rendas.

3.1 NAS ONDAS DOS BILROS: ONDE AS MULHERES VELEJAM

Durante algumas tardes ensolaradas de final de outubro do ano de 2014, na Escola de


Rendas de Bilros em Peniche, buscava-se mergulhar nessas ondas frenéticas causadas pelo vai-e-
vem dos bilros. Embaladas pelas conversas enquanto seus dedos sobem e descem velozmente, cada
ponto é tecido. Mas como é possível? Dez, quinze, vinte, trinta, cinquenta bilros ou quantos mais
couberem, cada um sabe qual é sua exata posição, sem erro, formando os desenhos do pique. Esses
dedos treinados, habituados, já não parecem pertencer ao corpo de cada uma dessas mulheres: eles
pertencem aos bilros. Bilros que se apropriam consentidamente dos dedos e do coração das
rendilheiras (Figura 3).

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Figura 3 - Senhora tecendo uma renda de bilros

Fonte: Gabriela Poltronieri Lenzi – Realizada dia 29 de outubro de 2014 na


Escola de Rendas de Bilros – Peniche.

O fato é que, já nas primeiras trocas de palavras com essas mulheres penicheiras, descobre-
se que as rendas de bilros ficam situadas nas entranhas de cada uma delas, como afirma Dona Laura,
ao ser indagada sobre a data em que os bilros entraram em sua vida: “- De garota!” declara
firmemente, apoiada por Dona Celeste que fazia gestos de concordância com a cabeça, pois também
Celeste aprendeu a trabalhar os bilros desde garota.
Era necessário aprender a rendar com os bilros, mas mais que isso, era obrigatório ensinar
essa técnica, repassá-la sem olhar a quem. Certamente, não era uma imposição, mas, sim, um hábito,
como levantar de manhã e fazer o desjejum: natural, além do costume, o corpo pede. Celeste também
gosta de comparar os bilros ao único prazer que tinha, conforme menciona: “- Nós não tínhamos
televisão, não tínhamos os jogos que têm hoje (...)”
As horas vão passando e, aos poucos, percebe-se a chegada de mais e mais senhoras
sentando-se, cada uma em sua almofada e naturalmente entrando também na conversa, como se

fizesse parte do ritual de rendilhar. Elas confirmavam suas histórias com os bilros, pois uma parecia

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derivar da outra. Mesmo que essas mulheres não tivessem convivido na infância e juventude, suas
histórias eram cruzadas e entrelaçadas pelas linhas finas de algodão branco.
Todas aprenderam o ofício desde crianças, com as mães, as vizinhas mais velhas, as tias, as
avós, as irmãs... Além disso, podiam frequentar escolas que eram destinadas exclusivamente para a
aprendizagem das rendas. O feminino, o materno, se faz muito presente nessa técnica. As mães e as
avós são sempre mencionadas ao mesmo tempo em que a renda é verbalizada nas histórias. Suas
mães faziam as rendas para contribuir para o sustento do lar. No entanto, em decorrência da
industrialização, foi necessário encontrar outros meios que garantissem o pão sobre a mesa, razão
pela qual ingressaram na indústria local. As rendas ainda são feitas, mas, de certa forma, esse foi o
início da perda do costume de repassar a técnica. Fica claro que essa técnica não chegou a extinguir-
se, mas, durante alguns anos, houve (e ainda há) uma queda no número de meninas que aprendem a
fazer o bilro.
Atualmente, a Escola de Bilros de Peniche recebe, durante o período de férias, crianças e
adolescentes que queiram aprender essa peculiar arte da localidade. Diferente dos tempos passados,
hoje a escola conta, também, com a presença não somente das meninas, mas também jovens rapazes
compõem as classes, conforme menciona Cristina, professora da Escola: “- A Escola recebe
geralmente de 2 a 3 rapazes no grupo que é composto por, aproximadamente, 70 crianças. ”  
Além das crianças e dos adolescentes, a Escola recebe, semanalmente, senhoras que hoje já se
encontram jubiladas e que são o sujeito de estudo desta pesquisa. Muitas, após anos distantes das
almofadas, retornam às aulas saudosas e entusiasmadas. O contato social gerado na escola é tão
prazeroso quanto recordar e exercer a técnica. Elas acreditam que essa socialização, assim como o vai-e-
vem dos bilros, possa contribuir positivamente para a saúde mental e psicológica, como menciona Laura: “-
(...) faz dois anos que estou aqui na escola e tem me ajudado muito, tem ajudado muito a cabeça. Quando a
gente senta aqui, não tem tempo de pensar em besteira. A gente pensa no desenho da renda... não se
pensa em mais nada, porque se está concentrada em fazer a renda e mais nada (...)”.
A essência do labor com os bilros é frequentemente lembrada pelas rendilheiras. O sustento
e a garantia deixados pelas rendas enquanto os maridos e pais estavam em mar, a saudade e as
incertezas sentidas por elas são mencionados enquanto rendam os desenhos do pique. O mar
reverenciado nas padronagens das rendas é o mesmo presente nos corações das mulheres que ficam
em terra: o tão suntuoso e gigante mar que leva seus maridos é o mesmo que gera o sustento da
família. “- Era uma ajuda pelo menos até que os homens retornassem. Não dava muito dinheiro, mas
pelo menos era alguma coisa”, menciona Natália enquanto cerze as rendas já acabadas. Uma ajuda
econômica certamente, mas mais que isso, uma ajuda psicológica, social e cultural.
A maioria das rendilheiras da Escola de Rendas de Peniche já sabe o ofício desde a infância,

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mas, no decorrer da vida, acabaram se dedicando a outros trabalhos, geralmente na indústria local,
pois rendiam mais economicamente, conforme já mencionado. A técnica não foi esquecida, muito
menos a renda. Por isso, hoje, contam com felicidade e entusiasmo com essa possibilidade de
aperfeiçoar o ofício. Exalta ainda mais o trabalho feito na Escola de Rendas de Bilros o desfile de moda
que essas mulheres realizam todos os anos no mês de julho com as rendas desenvolvidas (Figura 4).

Figura 4 - Cartaz da Mostra Internacional Rendas de Bilros de Peniche de 2015

Fonte: Mostra Internacional Renda de Bilros - Peniche 2015 (2015, s/p).

Além de dar uma nova utilidade às rendas que somente apareciam nos enxovais domésticos
ou em roupas litúrgicas, essas mulheres descobrem novos talentos dentro de si mesmas, sendo que,
muitas vezes, acreditavam que não desempenhariam mais nenhuma profissão e viveriam seus dias de
júbilo em casa. Agora, repaginam um artesanato, deixando-o com uma nova versão: as rendas que
eram originalmente feitas em cor branca, hoje podem ser coloridas e até mesmo em fios metálicos, e
sua usualidade vai desde acessórios, como pulseiras, brincos e colares, a calçados e bolsas.
Durante as conversas e o trançar dos fios, notou-se, no olhar, nas poucas vezes em que as
rendilheiras levantaram seus rostos da almofada, um brilho encantado, orgulhoso e apaixonado pelo
tema: rendas de bilros. Os mesmos olhos de menina que viam pela primeira vez a dança dos dedos de
suas mães, agora assistem ao seu renascimento e, quando se faz referência ao seu renascimento, não
se tem em conta somente o renascer do oficio, mas também o renascimento dessas mulheres

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penicheiras, as guardiãs das rendas, ao avistarem uma nova possibilidade de viver a vida e de
mergulhar nela, independente da idade. Os olhos continuam sendo os mesmos.

3.2 INTERPRETAÇÃO

O espírito maternal está diretamente ligado à renda de bilros. Cada entrevistada recorreu à
memória da mãe ou/e da avó para explicar sua própria história. Os bilros em si têm que recorrer às
histórias das mulheres penicheiras para sustentar sua própria existência, ou seja, a reciprocidade entre
os bilros e as mulheres comprova sua existência.
Certamente, essa não é uma história somente das mulheres de Peniche, mas também é uma
história de todo o povo penicheiro, cujas protagonistas são as mulheres e as rendas de bilros.
Os rapazes, embora até pouco tempo, não passassem de meros espectadores desse
artesanato, também recordam suas mães e avós em cada bilro ágil que lhe cruze os olhos, conforme
menciona o autor Calado (2003, p. 9), em um poema no início de seu livro Histórias da Renda de Bilros
de Peniche: “São as mãos de minha mãe – meu amor, minha alvorada – sulcando sonho e ternura nas
ondas de uma almofada.” Além disso, fica perceptível a ligação com o maternal já no conto de
Machado (1881), visto no decorrer deste texto, que a técnica é ensinada pela Virgem Maria, mãe
suprema da Igreja Católica, que, como boa mãe, pede somente para que a jovem repasse a todas as
moças da vila, suas irmãs, tal saber.
E como pediu Maria, assim fazem as mulheres de Peniche até hoje: ensinam o saber a toda
e qualquer pessoa que queira aprender! Quando colocadas à prova com perguntas, como “Vocês me
ensinariam a fazer a renda de bilros?”, todas prontamente se ofereceram sem pudor: “- Ensina sim!
Nós ensinamos aqui!”. “- É importante não perder a tradição”, mencionou Laura.
Ferreira (apud CALADO, 2003, p. 267) sustenta que “[...] deve transformar-se este saber que
estava a perder-se como atividade quotidiana, condenado a existir apenas no imaginário coletivo de
Peniche, de novo em saber vivo, em vivência real e identitária da nossa região.”
É relevante notar que, em Peniche, não somente o saber em si é uma tradição genuína, mas
também a maneira como desejam ensinar, como ensinam de fato, com o único intuito de dividir e
deixar voar, como gaivota, o conhecimento, para que, por estar em muitas mãos, não morra.

O caráter maternal remetido às rendas também ressalta o ser feminino que, embora ainda
muito aprisionado, especialmente nos primeiros tempos em que surgiu o bilro, desenvolve-se junto dele
com os novos tempos. Por estar sozinha em grande parte do tempo, a mulher rendeira de Peniche

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possuía a autonomia da casa: trazia o pão para a mesa, decidia a vida dos filhos e, aos poucos,
empodeirava-se de sua própria vida e independência, utilizando-se da criatividade feminina para tal.
Falar nas rendas de bilros sem mencionar o mar e seus elementos seria perder parte
considerável de sua história, desde o próprio tema das rendas, que giram em torno dos elementos
marinhos, como peixes, ondas e conchas, até seu tecer que materialmente é feito com fios de algodão
ou linho. Mas cada voltear dos bilros exprime a saudade guardada no coração das mulheres
penicheiras, saudade dos maridos, dos pais, dos filhos que se encontravam no mar. As rendas de
bilros são a meterialização dessa dor de saudades e de inseguranças sentidas pelas mulheres.
Simbolicamente, pode-se dizer que as rendas são as lágrimas que ligam as esposas aos seus maridos,
as filhas aos seus pais. Dessas lágrimas eclode algo esteticamente bonito, leve e forte, um distintivo
real e genuíno da cidade.
Tudo que vem dos bilros ressoa em beleza: não somente as rendas, primorosas obras de
arte, mas também suas histórias, sua forma de manter-se viva por meio do ensinamento espontâneo e
de boa vontade, as relações sociais entre as mulheres que se unem até os dias atuais, parceiras e
cúmplices das rendas e delas mesmas. A renda é um belo pretexto para reconhecer-se identitária e
socialmente como mulher empodeirada, independente e forte, diante de toda e qualquer dificuldade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As rendas de bilros materializam a vida das mulheres de Peniche. Nelas, encontram-se a


história da cidade, a ausência do marido, a nostalgia e a autonomia feminina. Portanto, além de uma
técnica de extremo valor estético e artístico, é também, ou se não mais (se é possível), um artefato de
valor simbólico inestimável. O feminino presente no artesanato reflete-se igualmente na figura materna,
nas mães que ficam em terra trançando as rendas, esperando incessantemente seus maridos
retornarem do mar. Não é à toa que a maioria dos penicheiros recorda suas mães ao ouvirem o “tic tac”
dos bilros.
As rendas são a ponte entre terra e mar. São também inspiração para poesias e músicas e
para continuar adiante. Nas referências bibliográficas pesquisadas, ficou difícil separar as rendas dos
versos. Em Peniche, renda é poesia por si só: a maneira de ser confeccionada, de aproximar as
pessoas e de ensinar a técnica; a beleza dos desenhos e de cada trançado.
Em Peniche, a renda nunca deixou de ser identidade cultural de estimado valor social.
Embora tenha sofrido uma considerável redução de rendilheiras nas últimas gerações, estima-se que,
devido à industrialização do último século, reinventa-se hoje e, assim, continua a viver sobre as
almofadas e piques. A Escola de Rendas de Bilros certamente tem responsabilidade na continuação

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desse artesanato, bem como em seu desenvolvimento contínuo. Além disso, a escola é uma
possibilidade de convívio social para as mulheres, hoje jubiladas.
Atualmente, esse patrimônio cultural segue seu caminho, protegido pelas novas gerações,
que se interessam pela sua continuidade e manutenção. Ao aprender essa habilidade, os jovens levam
adiante a história de sua cidade.

REFERÊNCIAS

Livros

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CALADO, M. História da renda de bilros de Peniche. Peniche: Edição do Autor, 2003.


FIGUEIRA, P. C. C. A indústria de Peniche. Lisboa: Associação Promotora da Indústria Fabril,
Biblioteca das Fabricas, 1865.
______. Apontamentos sobre rendas. 1867. (Documento inédito)
GEERTZ, C. La interpretación de las culturas. Barcelona: Gedisa, 1992.
GUILHERME, I. Amar Peniche. Peniche: Edição da autora, 2010.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
MACHADO, J. C. A vida alegre. Lisboa: Liv. e Tip. Editora de Mattos Moreira & Cia, 1881.
MALINOWSKI, B. Os argonautas do pacífico Sul. São Paulo: Abril, 1973.
MAGDALENA, M. Evocações de rendas. Porto: Of, da Empresa Litográfica e Tipográfica, 1917.
TAYLOR, S. J.; BOGDAN, R. Introducción a los métodos cualitativos de investigación. 2. ed. Tradução
de J. Piatigorsky. Barcelona: Ediciones Paidós, 1987.
VELASCO, H.; DE RADA, Á. D. La lógica de la investigación etnográfica. Madrid: Trotta, 1997.

Sites

ARTESANATO. Turismo – Artesaneto. Disponível em http://www.cm-


peniche.pt/custompages/showpage.aspx?pageid=92c0f8d5-6839-4339-9fe2-1c04e0cb0da5. Acesso
em 29 jan. 2015.

CÂMARA MUNICIPAL DE PENICHE. 2014. Sociedade: Rendas de Bilros em mostra Internacional de


24 a 27 de julho em Peniche. Disponível em http://penicheonline.blogspot.com.br/2014/07/sociedade-
rendas-de-bilros-em-mostra.html. Acesso em 29 jan. 2015.
MOSTRA INTERNACIONAL RENDA DE BILROS - PENICHE 2015. Uma homenagem à mulher

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rendilheira e à arte de tecer a renda de bilros, de 23 a 26 de julho 2015. 09 mar. 2015. Disponível em
http://www.cm-peniche.pt/News/newsdetail.aspx?news=2b3c9175-1fbc-49ae-883d-8364fbf1c30b.
Acesso em 29 jan. 2015.
Entrevistas concedidas

Celeste. Entrevista concedida. Peniche, Portugal, outubro de 2014.


Cristina. Entrevista concedida. Peniche, Portugal, outubro de 2014.
Laura. Entrevista concedida. Peniche, Portugal, outubro de 2014.
Natália. Entrevista concedida. Peniche, Portugal, outubro de 2014.

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A PRODUÇÃO TÊXTIL DENTRO DA CULTURA MAPUCHE

LA PRODUCCIÓN TEXTIL EN LA CULTURA MAPUCHE

Esp. MELO, Fabiana M. de1


fabi.moda22@hotmail.com

Dr.ª AMADORI, Marilaine P.2


marilaine_a@yahoo.com.br

Resumo: O artigo aqui apresentado tem por finalidade demonstrar alguns aspectos interessantes da
produção têxtil elaborada pela etnia ameríndia Mapuche, destacando como pontos principais “o fazer” a
partir do tear e seus dois principais produtos: a faixa (chamallwe/trarüwe) e o poncho (Makuñ). Desta
maneira, propomos um melhor entendimento acerca deste rico aspecto cultural Mapuche, demonstrando
como estes distintos elementos se fazem importantes para a compreensão sociocultural da etnia em
questão.
Palavras-Chave: Cultura Ameríndia – Mapuche – Produção Têxtil.

Resumen: El artículo que aquí se presenta pretende demostrar algunos aspectos interesantes de la
producción textil desarrollada por la etnia amerindia Mapuche, destacando cómo los puntos principales "el
hacer" del telar y sus dos productos principales: la banda (chamallwe/trarüwe) y el poncho (Makuñ). Por lo
tanto, proponemos un mejor compresión de este rico aspecto cultural Mapuche, lo que demuestra cómo
estos diferentes elementos son importantes para la comprensión socio-cultural de la etnia en cuestión.
Palavras-Clave: Cultura Amerindia – Mapuche – Producción Textil.

INTRODUÇÃO: ETNIA MAPUCHE

O povo Mapuche, etnia ameríndia que vive ao sul da América do Sul, divididos entre os
territórios do Chile e Argentina, desde muito tempo vem sendo motivo de uma grande quantidade
de trabalhos. Este interesse desenvolve-se especialmente em três linhas do conhecimento:
antropológico, histórico e sociológico; abrindo a partir destes, diferenciados vieses de pesquisa e
interpretação daquilo que é ocasionalmente colocado em pauta.
A mitologia Mapuche diz que eles são os sobreviventes de um grande dilúvio que só
resistiram porque subiram as montanhas, descendo só após as águas baixarem. Neste aspecto,
dizem que são os “filhos da terra”, o que significa literalmente a palavra Mapuche no idioma

1 Graduada em Design de Moda pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Especialista em Design de

Superfície pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e professora do curso de Design de Moda do Centro
Universitário Franciscano (UNIFRA).
2 Graduada e Licenciada em Desenho e Plástica pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Especialista

em Design para Estamparia Têxtil (UFSM), Mestra em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), Doutora em Tecnologia dell'Architettura e Design pela Università degli Studi di Firenze (UNIFI) e professora
do Departamento de Desenho Industrial e da Pós-Graduação em Design de Superfície (UFSM).

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mapudungun, Mapu = Terra e Che = filhos ou gente. Assim, os Mapuche são a “gente da terra”,
os nativos (BANGOA, 1996, p. 9) (Figura 1).

Figura 1 – Mapuche com seus ponchos. Fonte: Laskityytas, 2015.

Durante anos esta etnia sofreu um grandioso processo de transformação em seus


costumes e modo de vida, que vem desde seu primeiro contato com os povos andinos,
passando por sua aproximação com as chamadas etnias pampeanas, até a interferência dos
espanhois.
Em meio a estes processos algo que nunca deixou de fazer parte da culturalidade deste
povo foi à arte da tecelagem, pois, para os Mapuche, a relação com o seu tear possui uma
enorme ligação entre o saber fazer e sua significação, pois a partir dos símbolos representados
nas vestes produzidas pode-se saber qual a importância social de quem a está usando, seja este
um grande chefe, ou um simples artesão.
Desde tempos remotos, o artesanato Mapuche tem sido uma atividade produtiva muito
relevante e assim segue sendo a partir de que se mantém o modelo tradicional em sua
produção, elaborando frequentemente peças com expressões estéticas e religiosas, combinando
estas a sua utilidade prática (Figura 2).

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Figura 2 – Artesanato Mapuche. Fonte: Argentour, 2015.

Com este aspecto passa-se agora a aprofundar o conhecimento e a importância que


estas peças tem para os Mapuche, demonstrando como o tear e as faixas que nele são
produzidas possuem um enorme significado.

O TEAR, O PONCHO E A FAIXA

A partir dos estudos desenvolvidos pela historiadora Patricia Mendez (2009), sabe-se que
os tecidos tem grande importância para certas etnias andinas, entre elas os Mapuche. Estes
tecidos eram usados como vestimentas, abrigo e proteção, símbolo de status e também como
moeda de troca entre estes distintos grupos étnicos.
No mundo Mapuche a atividade têxtil é anterior ao contato com os espanhois. A
introdução da lã de ovelha por parte dos hispânicos aumentou a produção, mantendo assim, sua
autonomia, reproduzindo e desenvolvendo tecidos com características e símbolos próprios
(ALVARADO; GUAJARDO, 2011, p. 17).
Neste sentido, Margarita Alvarado (2002) diz que,

as tradições têxteis que praticaram os povos da cordilheira e dos pampas argentinos


e das zonas da Araucania, no Chile, constituem um dos âmbitos privilegiados onde
se reproduzem valores culturais e estéticos específicos. A prenda têxtil representa
um meio artístico imprescindível na representação de uma identidade cultural. Todo
artefato realizado por uma especialista tecedora passa a formar parte de uma
poderosa rede de relações sociais e simbólicas que fazem possíveis a vigência de
uma cultura. Busca-se fundamentalmente, cobrir um suporte em um gesto e uma
ação estética, convertendo o tecido em um diferenciador cultural. Assim, os têxteis
se transformam em artefatos para o adorno, criados e produzidos para a ostentação
e o luxo (ALVARADO, 2002, p. 50, tradução nossa).

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Os teares utilizados na produção têxtil são do tipo de 4 palos apoiados em uma parede. A
lã era desfiada a mão, e tingida em geral com ervas e elementos naturais do conhecimento das
tecedoras. Mantêm-se a tendência de usar ponchos de tecido grosso e simples para o trabalho,
e mais luxuosos para as festas e ocasiões especiais. (ALVARADO; GUAJARDO, 2011, p. 18)
(Figura 3).

Figura 3 – Tear Mapuche tradicional de 4 palos (1903). Fonte: sur.com, 2015.

Peças do vestuário são confeccionadas aos milhares desde o dia em que o indivíduo
fundamentou sua utilidade, seja por precisão ou por qualquer outra conveniência. Neste
processo de confecção, além da técnica de composição da vestimenta, o sujeito fez da peça de
vestuário uma expressão de sua própria culturalidade, agregando outros aspectos, que por meio
de simbolismos, tornaram-se tradicionais em meio às sociedades que vieram a seguir. Estas
situações citadas acima podem ser bem aplicadas ao tradicional poncho, peça típica do
vestuário em diversas regiões da América Latina (MELO, 2015, p. 29-30).
Dentro destes aspectos, o poncho vem sofrendo um largo processo de ressignificação a
partir de distintas releituras. Sem perder seu conceito usual, porém, ganhando outras formas e
maneiras de uso, não tão aproximadas do que em outro momento ele foi para as diversas etnias
que o utilizaram, seja ele como “moeda de troca” ou o seu uso ritualístico (MELO, 2015, p. 30).

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Figura 4 – Tradicional Poncho Mapuche. Fonte: Telar Mapuche, 2007.

Assim, vamos de encontro com o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu (2008) nos diz
quanto à “economia dos bens simbólicos”, pois estes, a partir de certo momento, vão ganhando
prestígio, ressignificando-se e apropriando-se de outras simbologias em um processo de
consagração da criação, ou seja, a transformação de um primeiro valor em algo a ser explorado
em outros vieses (p. 20-22).
O poncho Mapuche se difundiu de tal maneira que passou a ser símbolo das parcialidades
pampeanas que passaram a usá-lo. Feito pelas mulheres e usados pelos homens, estes
ponchos são carregados de representações, signos que denotam a importância de quem o
veste.
Assim relata Porfirio (2010):

a história do poncho pampa (makuñ) é rica e diversa, as etnias conhecidas como


pampas pelos europeus pertenciam a diversas culturas que habitavam a planura
pampeana e norte da Patagônia. Nestes povos o poncho era um elemento de uso
especificamente masculino, realizado pelas mulheres. Exibiam em seus desenhos
atributos hierárquicos do usuário, seja nobre ou guerreiro ou para uso cerimonial ou
cotidiano. É muito difícil diferenciar os ponchos dos distintos grupos, seja Mapuche,
Pampa ou Araucano (PORFIRIO, 2010, p. 5, tradução nossa).

Porém a arte têxtil Mapuche não se baseia apenas na produção de ponchos, ela esta
calcada também na confecção de faixas, sejam elas para a cabeça ou para a cintura.

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Esta é uma faixa de aproximadamente seis centímetros de altura por 1,70 cm de largura e
na cultura dos Mapuche ela é usada pelos homens para apertar a cintura, normalmente por cima
do chiripá3, da calça ou da bombacha e chama-se chamallwe. No caso da mulher ela é
conhecida como trarüwe e é usada para amarrar o küpam, uma espécie de vestido, e possuem
desenhos simbólicos e representativos, entre eles encontra-se o Lukutuwe (AUKANAW, 1995, p.
59).
Na figura abaixo vemos o exemplo de uma trarüwe com um símbolo que pode ser
traduzido como o ser antropomorfo chamado Lukutuwe (Figura 5).

Figura 5 – Faixa de cintura e cabeça. Fonte: Aborigenesdehoy, 2015.

Segundo o etnógrafo Aukanaw (1995), vários são os significados dados a esse símbolo,
porém o mais usado deles é de que seria um ser antropomorfo, e que é cercado de simbologia e
pode ser visto sob vários aspectos dependendo da cor e da maneira como é tecido nas faixas (p.
60) (Figura 6).

Figura 6 – Diferentes representações do Lukutuwe. Fonte: aprendiendovida, 2015.

3 Espécie de calça usada por diversas etnias indígenas e posteriormente por não indígenas. Seu nome vem do
Mapugundun Chiripa, que por sua vez é um préstimo da palavra Chiripak do idioma Quechua, que literalmente quer
dizer: “para o frio” (ARICÓ, p. 73, 2002).

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De acordo com Tim Podkul (2002), outro símbolo muito importante para os Mapuche e
encontrado em faixas e ponchos, que se tornou também uma forte referência encontrada na
vestimenta da cultura gaúcha é a cruz simétrica, que para os Mapuche é um símbolo completo e
representa o céu, a chuva e a vida. Também é vista como um símbolo cosmológico e é uma
representação do mundo (Figura 7).

Figura 7 – Poncho Mapuche. Fonte: Chileprecolombiano, 2015.

Assim, para compreender o significado e o sentido estético colocados na textilaria


Mapuche, é preciso levar em consideração a combinação das formas, desenhos e cores que
adornam as diferentes peças. Estas implicam a um modo de expressão particular e a existência
de uma linguagem própria, sendo através desta um modo de estabelecer um diálogo entre as
suas criadoras e os membros da sociedade (WILSON, 1992, p. 7).
Através dos desenhos empregados em uma determinada peça se pode contar uma
história, assim como saber a posição social de quem a usa, como já fora dito. Em relação às
histórias, algo que ainda vive na memória das tecedoras, estas nos falam de como um tecido
podia ser concebido para uma determinada pessoa ou para uso em uma situação específica. As
vestes podem representar uma marca familiar, um sinal da vida da própria pessoa e o
estabelecimento de um diálogo compartilhado no interior da sociedade, porém, parece
indecifrável ou sem significado nenhum para os que não pertencem a esta cultura (WILSON,
1992, p. 8).

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Considerações Finais

Além dos aspectos utilitários, o artesanato Mapuche, especialmente aquele ligado ao


tear, traz uma forte representação simbólica em seu contexto, seja para exprimir o estrato social
ou para traçar um perfil do misticismo cosmológico de quem o usa, o que por falta de espaço,
não nos foi possível tratar com maior profundidade neste artigo.
Segundo Figueroa Pozo (2012), as peças de tecidos produzidas pelos Mapuche dão
suporte para a transmissão de uma mensagem que está inserida nos distintos símbolos que
compõem a vestimenta. Estes signos dão conta de uma gama de valores que vão desde a ética
a religião, sempre correspondendo ao gênero de seu usuário.
Desta maneira, escreve Figueroa Pozo (2012):

as peças têxteis, suporte da mensagem que os Mapuche buscavam transmitir, eram


muito valiosas para a sociedade Mapuche. Na cultura Mapuche o primeiro que se
levava em conta para interpretar símbolos era o objeto sobre o qual se insere a
mensagem. Estes objetos (a definir o gênero correspondente, masculino ou feminino
de acordo ao usuário do adereço) constituem o primeiro passo para conceder a
símbolos que podem ser iguais em estrutura, sua correta valorização ética, prática,
mística e religiosa. A alteração do significado de um símbolo pelo objeto que o
contenha é uma característica na leitura da simbologia própria de toda região andina
(POZO, 2012, p. 32, tradução nossa).

A partir desses elementos, nota-se a importância e significação da tecelagem para a


cultura da etnia ameríndia Mapuche, que como já fora antes visto, se utilizava/utiliza do tear de
diversas formas, fazendo destas peças da indumentária um símbolo não apenas étnico, mas de
sua existência, criando desta forma uma cultura têxtil representativa e característica de sua
história.

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REFERÊNCIAS

Livro.

ALKANAW. La ciencia secreta de los Mapuche. Rosario: Nueva Era, 1995.

ALVARADO, Isabel; GUAJARDO, Verónica. Mantas y Mantos: cubrir para lucir. Santiago: Museo
Histórico Nacional, 2011.

ALVARADO, Margarita. El esplendor del adorno: el poncho y el chañüntuku. In: PAREDA,


Eduardo. Hijos del viento: arte de los pueblos del sur, siglo XIX. Buenos Aires: Fundación Proa,
2002.

ARICÓ, Héctor. Atuendo tradicional argentino. Buenos Aires: Editorial Escolar, 2002.

BENGOA, José. Historia del pueblo Mapuche. 5ª ed. Santiago: Ediciones del Sur, 1996.

BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens
simbólicos. Porto Alegre: Zouk, 2008.

WILSON, Angélica. Arte de Mujeres. Santiago: Ediciones CEDEM, 1992.

Teses, Dissertações ou Monografias.

MELO, Fabiana M. de. Cultura Mapuche: elementos têxteis e a joalheria como referência para o
design de estamparia. 2015. 120 f. Monografia (Especialização em Design de Superfície) –
Centro de Artes e Letras da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015.

Sites.

Artesanato Mapuche. Disponível em <http://www.argentour.com/es/mapuches/


arte_mapuche.php>. Acesso em 25 maio 2015.

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Diferentes representações do Lukutuwe. Disponível em <http://puri-aprendiendovida.


blogspot.com.br/2011/06/simbologia-de-textiles-mapuches.html>. Acesso em 24 maio 2015.

Faixas de cintura e cabeça. Disponível em <http://aborigenesdehoy.blogspot.com.br


/2010/03/arte-aborigen-textileria.html>. Acesso em 06 jul. 2015.

Mapuche com seus ponchos. Disponível em <http://laskityytas.blogspot.com.br/>. Acesso em 25


set. 2015.

MENDEZ, Patricia María. Los tejidos indígenas en la Patagonia Argentina: cuatro siglos de
comercio textil. Indiana, n. 26, 2009, p. 233-265. Disponível em <http://www.redalyc.org/
pdf/2470/247016492013.pdf>. Acesso em 24 maio 2015.

PODKUL, Tim. Símbolos textiles Mapuches. Temuco: Fundación Chol-Chol, 2002. Disponível em
<http://es.cholchol.org/significado-de-disentildeos.html>. Acesso em 24 maio 2015.

Poncho Mapuche. Disponível em <http://chileprecolombino.cl/exposicion-chile-15-mil-


anos/vestimenta-tradicional-mapuche>. Acesso em 24 maio 2015.

PORFIRIO, Stella. Textiles del sur: aproximación semiótica. Trabalho apresentado como
requisito parcial para a aprovação na disciplina Arte, Tecnologia e Antropologia, Curso de
Ciências Naturais e Museu, Universidad Nacional de La Plata, 2010. Disponível em
<http://www.centro-de-semiotica.com.ar/Porfirio-DC09.pdf>. Acesso em 20 set. 2015.

POZO, Candelaria Figueroa. Moda y Artesanía: textilería Mapuche en la provincia de Neuquén.


2012. 100f. Monografia (Graduação) – Universidad de Palermo, Curso de Desenho de Moda.
Disponível em <http://fido.palermo.edu/servicios_dyc/proyectograduacion/detalle_proyecto.
php?id_proyecto=1602>. Acesso em 24 maio 2015.

Tear Mapuche tradicional de 4 palos. Disponível em <http://www.educarchile.cl>.


Acesso em 15 maio. 2015.

Tradicional Poncho Mapuche. Telar Mapuche, 2007. Disponível em <http://www.am-sur.com/am-


sur/Mapuche/Esposito_historia-ESP/historia02-cultura.html>. Acesso em 24 maio 2015.

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O TRANSCENDER DA AUSÊNCIA:
Um estudo sobre tecidos e memória a partir da obra “A Grande Pegada” (1990)

TRANSCENDING ABSENCE :
A study about textiles and memory based on art work "The Big Footprint" (1990)

Indyanelle Marçal Garcia, Mestranda.


(Universidade Federal de Goiás)
indy.mgarcia@hotmail.com

Rita Morais de Andrade, Dra.


(Universidade Federal de Goiás)
ritaandrade@hotmail.com

Resumo: Esta pesquisa discute os tecidos como forma de acessar percepções sobre memória e
esquecimento, partindo da análise visual da obra “A Grande Pegada” (1990) do artista plástico Enauro
de Castro (1963). Através dessa investigação, estabelecemos uma relação entre os corpos ausentes e
as marcas impressas em seu suporte de tecido. Quanto aos procedimentos, o estudo alicerça-se na
revisão bibliográfica, que envolve os campos de arte, estudos sobre indumentária e têxteis, e memória,
objetivando assim ampliar os dados para a pesquisa, numa abordagem qualitativa e da cultura material.
Palavras-chaves: tecidos, memória, arte.

Abstract: This research discusses the textiles in order to access insights about memory and forget
fulness, starting from visual analysis of the art work "The Big Footprint" (1990) of the artist Enauro de
Castro (1963). Through the work of investigation, we established a relationship between the missing
bodies and the printed marks on your textile support. As for the procedures, the study founded on the
literature review, which involve the areas of art, studies about clothes and memory, with the purpose of
expand the data for research in the qualitative approach and material culture.
Keywords: textiles, memory, art.

INTRODUÇÃO

A finalidade dessa pesquisa é investigar as roupas e tecidos como suportes de memória. O


conhecimento acerca das funções e das formas nas quais as roupas e o indivíduo relacionam-se, é o
ponto de partida para compreendermos modos em que as roupas aderem à nossa história. Descobrir
as roupas e os tecidos como portadores de memória das vivências, nos permite valorizá-los para além
da sua função de cobrir o corpo.
Esta pesquisa inicia-se com a investigação da obra de arte do artista Enauro de Castro, datada
em 1990. Foi realizada a descrição do objeto e de sua trajetória até integrar o acervo permanente do
Museu de Arte Contemporânea de Goiás (MAC|Goiás). Em seguida,procedemos com a análise visual
de suas características físicas, o que contribuiu para destacar a ausência do corpo. E, por fim, discutiu-
se como o corpo e os tecidos influenciam o indivíduo de modo a aderir à sua memória.

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O trabalho tem uma abordagem qualitativa, pois responde a questões particulares, neste caso
a analogia entre: arte, marcas, tecidos e memória a partir, sobretudo, de observações dos aspectos
visuais do objeto. Segundo a pesquisadora Maria Cecília Minayo, pesquisa qualitativa é aquela que:

[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes,
o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 2004,
p.21).

Ou seja, a abordagem qualitativa tem um caráter exploratório que permite o pensamento livre
sobre algum tema específico, objeto ou conceito; um pensamento desenvolvido à partir dos dados
encontrados cujo objetivo não se restringe à busca por comprovar teorias e hipóteses preconcebidas.
Esta pesquisa relaciona-se também aos estudos de Cultura Material ao relacionar o sentido que os
objetos têm para as pessoas e sua influência na vida dos indivíduos.

1. "A GRANDE PEGADA"

A arte, como a entendo, não tem como objetivo apenas representar o mundo, espelhá-lo,
duplicá-lo. Ela está declaradamente em busca de inventar mundos possíveis, dar visibilidade
ao invisível, desembaçar nosso olhar tão acostumado, rendido às uniformidades. Acaba nos
dando pistas para pensar o mundo, nossa existência incluída nesse mundo. Fica
azucrinando nosso pensamento, nos forçando a exercitar nossa sensibilidade, a aguçá-la.
(PRECIOSA, 2005, p. 55)

Figura 01. “A Grande Pegada”, datada de 1990. Autor:


Enauro de Castro. Tecido e marcas com sujidades que
foram sendo incorporadas à obra em diferentes
momentos. Fotografia: Desconhecido. Formato: 460 x
158 cm. Acervo: Museu de Arte Contemporânea de
Goiás, Goiânia-GO.

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"A Grande Pegada" foi produzida no ano de 1990 e consiste em uma lona crua de 460
centímetros de comprimento por 158 centímetros de largura. Em suas extremidades há dois suportes
feitos de metal, que podem ser para delimitar o início e o fim da obra, impedir com que o tecido desfie
ou até mesmo como suporte para a sua montagem em exposições. Sobre o tecido encontramos
diversas manchas, sendo duas delas grandes e bem nítidas, além disso, marcas de pegadas, mãos,
ferrugens, entre outras de difícil identificação.

Figura 02. Artista plástico Enauro de Castro.


Fotografia:Desconhecido
.

A obra é do artista plástico Enauro de Castro, formado em Artes Visuais na Universidade


Federal de Goiás, nascido no ano de 1963 em Goiânia, aonde vive e trabalha. O artista usa uma
variedade de linguagens e materiais para construir seu trabalho. Esta obra foi realizada num momento
de transição de sua produção artística que inicia por uma fase puramente pictórica e posteriormente,
uma fase onde o artista passou a utilizar-se de novos suportes e formas para se expressar - formas nas
quais os objetos, as performances e o happening passaram a incorporar sua pesquisa.
Naquela época, segundo o artista, os jovens buscavam novas formas de produção artística que
os levassem a aproximar-se do mundo da arte contemporânea - mundo no qual muitos jovens artistas
almejavam fazer parte. Esta necessidade era fruto da busca de auto-afirmação como artistas e, o modo
que se atualizavam por meio a novas investigações, estabelecendo um diálogo com as novas
linguagens que os libertavam das questões regionais que, supostamente, restringiam as suas
produções artísticas.
Nesse contexto, "A Grande Pegada" foi uma ponte para desenvolver exatamente aqueles
anseios por aproximar o artista da vida cotidiana. Resultado da composição de lona, tela e superfície,
deixada num local público para que as pessoas pudessem caminhar deixando seus vestígios sobre o
suporte de tecido. O local escolhido para a realização deste trabalho foi o "Café Central", atualmente
localizado na rua 7, número 391 no Setor Central em Goiânia, um ponto de referência do Centro de
Goiânia ainda hoje (Figura 03).

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Figura 03. Fachada do comércio "Café


Central", atualmente em 2014.
Fotografia: Indyanelle Marçal, Goiânia-
GO. Nota-se na placa onde lê-se "Café
Central - desde 1945" um ar retrô que
testifica de certa forma a tradição do
lugar.

O "Café Central"1 foi bastante movimentado no passado e hoje é um importante ponto da


história da cidade de Goiânia. Segundo o jornalista Murillo Cintra em sua publicação chamada, "A Alma
do Café Central", disponível no portal do jornal "O HOJE"2, ele relata que em meados de 1940, no
governo de Pedro Ludovico Teixeira, a capital era um canteiro de obras e o entorno deste comércio
passava por grandes mudanças. O lugar era frequentado por intelectuais, jornalistas,
desembargadores, juízes, agiotas, prostitutas, malandros e aproveitadores. Na época, o principal ramo
de trabalho na região era a criação de gado, os negócios eram discutidos e fechados no balcão, entre o
consumo de xícaras de café e bebidas fortes. O lugar também era ponto para desafetos e "pistolagem".
E foi nesse contexto que na década de 90, ainda como um importante ponto de encontro dos senhores
de negócio, que o artista Enauro de Castro decidiu realizar a obra "A Grande Pegada" e expô-la em
logradouro público.

A rua ou cidade, melhor dizendo, vista como 'espaço ampliado' (Ricardo Basbum) por estar
em constante mutação, parecia ser o lugar mais apropriado para se fazer experimentações
de todo tipo. Além do mais, essa era uma forma de romper com os limites do quadro, visto
também como emblemático da nossa particular paralisia cultural e artística. O próprio fazer
pictórico (a química das tintas e o embate com a superfície branca da tela) deixado ao risco
do acaso, sob o movimento das pessoas e do fluxo urbano, deveria refletir em sua
materialidade o que talvez fosse a nossa maior preocupação teórica: a tensão dos limites
que separam arte e realidade (informação eletrônica).3

1 Foi realizada uma pesquisa na internet, um encontro com o João Bosco - o atual dono do Café Central, estivemos no

Centro de Documentação do jornal "O Popular" e também no Museu da Imagem e Som em Goiânia, além de entrar em
contato com o próprio artista Enauro de Castro no intuito de encontrar alguma imagem do Café Central na década de 90.
Porém não obtivemos sucesso em nenhuma destas cinco tentativas. Por isso, diante da falta da imagem da época,
escolhemos colocar a fachada do comércio nos dias atuais, em 2014.
2 CINTRA, Murillo. A Alma do Café Central. In: PORTAL JORNAL O HOJE, 2013. Disponível em:

<http://www.portalohoje.com.br/homologacao_20052013/essencia/a-alma-do-cafe-central/> Acesso em: 01 jun.2014.

3 Informação fornecida por Enauro de Castro em uma entrevista realizada por e-mail, em maio de 2014.

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Depois das marcas deixadas pelas pessoas que andavam pela rua em frente ao "Café
Central", o artista fixou todas as marcas por meio da goma laca - um verniz e fixador eficiente para
superfícies porosas, ideal para todos os tipos de tecido. Todo o processo relatado durou
aproximadamente três meses para ser concluído e ao final, o artista espargiu grafite em pó sobre a
superfície do tecido e imprimiu a sua própria pegada, segundo ele: "Identifiquei meu gesto ao gesto
anônimo".
Outro artista e também curador, Divino Sobral - um reconhecido profissional na área de artes
plásticas, tanto no estado de Goiás quanto no Brasil, realizou no segundo semestre do ano de 2000
uma exposição chamada "Trajetórias e Perfis: a arte goiana na coleção do MAC". Como curador do
Museu de Arte Contemporânea de Goiás na época, ele não apenas conhecia a obra, como inclusive
acompanhou parte do processo de sua criação. Divino Sobral foi o principal responsável pela
integração da obra ao acervo do MAC|Goiás.

Considero a pintura muito importante por ter rompido com a tradição isolacionista do ateliê,
pelo registro de vestígios do público, pela informalidade do gesto e pela inteligência pictórica
que abriu um espaço experimental na produção do Enauro, que o levou à outras obras ainda
mais complexas e ricas (informação eletrônica).4
Foi nesse contexto que o artista Enauro de Castro assinou o referido Termo de Doação
cedendo a obra "A Grande Pegada" para então, compor o acervo do MAC|Goiás, atualmente localizado
no Centro Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia.

Figura 04. Termo de


Doação da obra "A
Grande Pegada" no ano
de 2000. Fotografia:
Indyanelle Marçal, com
permissão do museu
(2014). Departamento
de Documentação do
MAC|Goiás.

4
Informação fornecida por Divino Sobral em uma entrevista realizada por e-mail, em junho de 2014.

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Vale ressaltar, que na época em que houve a doação, parte do setor administrativo do museu e
a Reserva Técnica funcionavam no edifício Pathernon Center, localizado na rua 4, no setor Central em
Goiânia; entretanto, o local não estava adequado ao funcionamento de um museu. A situação de
instabilidade desta instituição começou a mudar durante o planejamento da construção do Centro
Cultural Oscar Niemeyer (CCON), local para o qual se pretendia transferir o museu 5.
Com a transferência concluída, o conservador Stephan Schäfer iniciou o processo de
desinfestação atóxica6 (sem o uso de inseticidas ou outros produtos químicos), de parte do acervo,
incluindo a obra "A Grande Pegada", pois foi identificado o início de infestação por fungos e ferrugem
no tecido da obra, este último, devido aos suportes de metal localizados em suas extremidades - que
inclusive será necessário substituí-los.
A transferência do acervo para o novo edifício foi importante para a trajetória da obra do artista
Enauro de Castro porque interferiu diretamente sobre "A Grande Pegada", permitindo que esta
adquirisse novas marcas no tecido. As muitas marcas de diferentes períodos e contextos impregnadas
ao material têxtil reforça a nossa percepção sobre a relação muito próxima deste material com a
produção de sentidos expressos pela construção de memória.

2. DESCOBRINDO OS VESTÍGIOS
2.1 A análise de uma obra de arte

"(...) o diálogo com a obra de arte é um diálogo amoroso, demorado, paciente, exige doação
e entrega. Nem sempre o significado de uma obra de arte se dá no momento mesmo da
contemplação, mas muito tempo depois, em outro lugar, em meio a uma tarefa banal, num
momento de ócio ou mesmo de raiva ou cansaço. Muitas vezes, precisamos trazer a obra
conosco, deixá-la adormecer em nós à espera do insight."(Frederico Morais)7

“A Grande Pegada” de Enauro de Castro deixada em frente ao "Café Central" de Goiânia em


1990 para que as pessoas caminhassem e deixassem vestígios de sua passagem ali, chama bastante
atenção no conjunto das obras na Reserva Técnica do MAC|Goiás, por sua composição ser
majoritariamente o têxtil.

5A mudança integral do museu para o CCON somente ocorreu no primeiro semestre de 2014. O processo de preparação
para a mudança integral do museu, incluiu a compra de um mobiliário adequado para a Reserva Técnica, que custou R$
448.380,00; bem como a transferência do acervo para o CCON, com o importe de gasto de R$ 86.406,18, seguro da
operação de R$ 4 milhões e a desinfestação das obras no valor de R$ 80.000. Os processos de transferência e
desinfestação foram realizados pelo conservador e restaurador alemão Stephan Schäfer, sob a direção da museóloga Tânia
Mendonça.
6
A desinfestação atóxica realizada no MAC|Goiás consistiu em uma cápsula de nitrogênio controlada, que criou uma
atmosfera anôxica (sem oxigênio) que após um determinado tempo fez com que os insetos e pragas morressem asfixiados.
O conservador e restaurador Stephan Schäfer já havia aplicado essa técnica em importantes igrejas, museus e bibliotecas
em todo o Brasil, como por exemplo: Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida (2012), Biblioteca de Química da
USP (2011), Museu Paulista da USP - Ipiranga (2009), entre outros.
7 Palavras do crítico de arte Frederico Morais, citadas no livro de Cristina Costa, Questões de arte. São Paulo: Moderna,

2004, p.28 e no livro de Rosana Preciosa, Produção Estética: notas sobre roupas, sujeitos e modos de vida. São Paulo:
Anhemi Morumbi, 2005, p. 54.

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A obra aqui discutida, ao nosso ver, é de uma grande sensibilidade do artista em sua busca por
uma interface com o cotidiano da vida dos passantes na cidade. A escolha da lona crua como suporte
para receber as marcas e sujidades deixadas pelas pessoas que caminhavam por ali, não foi aleatória,
o material têxtil foi uma opção estratégica. A lona crua é composta por 100% de algodão, uma fibra
natural de origem vegetal, caracterizada por ter durabilidade, flexibilidade e conforto. Geralmente
roupas de algodão são conhecidas pela capacidade de permitir com que o corpo "respire", já que elas
não esquentam tanto, quanto outros tecidos de fibras manufaturadas e origens não naturais. Importa
ressaltar isto, pois na obra elencada, a lona crua exerceu um trabalho importante de receber e absorver
as impressões deixadas pelos sapatos das pessoas e as marcas coletivas de forma geral.
Enauro de Castro movido na década de 1990 pelas novas formas de produções artísticas e em
um momento de transição entre a fase puramente pictórica para uma fase que se aproximava mais da
arte contemporânea, escolheu a lona crua para realizar "A Grande Pegada". Como se sabe, a tela
composta pela lona crua e um chassi de madeira é bem popular entre os artistas plásticos, sendo uma
das formas mais tradicionais de se fazer arte no passado. No caso desta obra, o artista plástico
estendeu a lona em frente ao "Café Central", com dimensões bem grandes, provavelmente para
simular uma espécie de tapete em meio ao happening8 proposto pelo artista.
Nessa produção artística, percebemos quatro grandes fatores de interferência no tecido. O
primeiro fator são as marcas deixadas no momento em que a obra estava sendo realizada pelas
pessoas que andavam pelo local; com as sujidades de seus sapatos, com os chicletes grudados no
solado, com os cigarros jogados sobre o tecido, que o confundia com o caminho (figura 5).

Figura 05. Obra: "A Grande


Pegada", datada em 1990.
Fotografia: Indyanelle Marçal,
com permissão do museu
(2014), na Reserva Técnica
do Pathernon Center. Nota-se
a marca dos sapatos, podem
ser das pessoas que
caminhavam pelo local ou do
artista no momento em que
ele finalizava a obra no ateliê.

8O happening é uma manifestação artística ao vivo, seu precursor foi o artista Allan Kaprow, e envolve improvisações e a
participação do público.

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O segundo fator de interferência ocorreu no momento em que o artista levou o grande tecido
para o seu ateliê e fixou as marcas através da goma laca, uma espécie de verniz. Durante esse
processo de finalização da obra, o artista espargiu grafite em pó
Figura 06. Obra: "A Grande
sobre a superfície do tecido e imprimiu a sua própria pegada, Pegada", datada em 1990.
segundo ele para identificar o seu gesto ao gesto anônimo. Porém, Fotografia: Indyanelle Marçal, o
com permissão do museu
interessante é que durante o momento em que a obra foi (2014), na Reserva Técnica
do Pathernon Center. Nota-se
fotografada na Reserva Técnica para esta pesquisa, identificamos a marca das mãos sobre a
lona crua, provavelmente as
marcas de mãos, que provavelmente foram impressas mãos do artista plástico
Enauro de Castro, impressas
acidentalmente ou não na superfície do tecido durante o seu ao manusear a obra no
manuseio, no processo de finalização da obra realizado pelo processo de finalização em
seu ateliê.
artista. Importante destacar, portanto que as marcas sobre os
têxteis vão se acumulando em diferentes momentos (figura 06).

O terceiro fator de interferência sobre o tecido foi a transferência da Reserva Técnica do


MAC|Goiás localizado até junho de 2014 no Parthenon Center, para o Centro Cultural Oscar Niemeyer.
A transferência do acervo do museu, fez com que a obra provavelmente ao ser transportada, adquirisse
novas marcas pelo caminho, seja no manuseio ou na forma de acondicioná-la para que o processo
fosse realizado. Além disso, o procedimento de desinfestação realizada pelo conservador e restaurador

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Stephan Schäfer foi uma das circunstâncias importantes que interferiu de certa forma nas marcas da
obra, isso porque fora constatado o início da infestação de fungos que deixaram manchas amareladas
no avesso do tecido e que se multiplicavam em uma espécie de teia. A causa direta para o
aparecimento de fungos na obra de arte foi certamente a umidade, decorrência da falta de controle
eficiente quando a obra se encontrava na Reserva Técnica do Parthenon Center (figura 07).

O quarto fator de
interferência no tecido, foi a ação do tempo. A obra possui um suporte de metal em cada uma de suas
extremidades, que foram colocados para delimitar o início e o fim da obra, bem como para impedir com
que o tecido desfie, ou ainda para servir como suporte para a sua montagem em uma exposição.
A questão é que, com o passar dos anos, o contato do metal com o oxigênio do ar, resultou na
oxidação do ferro, o que comumente chamamos de ferrugem - processo que deteriora o material
original ao longo do tempo. Como a obra é um tecido de comprimento muito grande, ela geralmente é
enrolada para ser acondicionada no mobiliário adequado e isso fez com que a ferrugem dos suportes
de metal deixasse as suas marcas no tecido. O têxtil é um dos materiais mais sensíveis a ação do
tempo, sendo muito adequado para receber registros, marcas dos corpos que faz dos artefatos têxteis
sejam um importante componente da cultura material e deve ser estudado (ANDRADE, 2008, p.20).
(figura 08). Figura 07. Obra: "A Grande
Pegada", datada em 1990.
Fotografia: Indyanelle Marçal,
com permissão do museu
(2014), na Reserva Técnica do
Pathernon Center. Nota-se a
presença de fungos na parte
de trás da obra, caracterizados
por pequenas manchas
amarelas que se multiplicam
em uma espécie de teia.

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A constante agregação
das marcas na obra do artista
Enauro de Castro, sejam elas os
vestígios deixados pelas pessoas,
pelas circunstâncias ou pela ação do tempo, é o que a torna uma produção artística de base têxtil, algo
extraordinário. A obra torna-se aberta, imprevisível, ganhando novas marcas que vão se sobrepondo,
formando novos desenhos e produzindo novos sentidos. A obra carrega os vestígios de corpos
ausentes e dos que virão a marcá-la um dia; impressos no tecido, cada indivíduo deixou os seus
rastros que podem ser vistos ainda hoje.

Figura 08. Obra: "A Grande Pegada",


datada em 1990. Fotografia:
Indyanelle Marçal, com permissão do
3. O SIGNIFICADO MEMORIAL DOS TECIDOS: AS museu (2014), na Reserva Técnica
LEMBRANÇAS DO AUSENTE do Pathernon Center. Nota-se a
mancha de ferrugem impressa no
tecido, devido aos suportes de metal
A roupa, essa segunda pele, pertence ao das extremidades da obra.
mesmo tempo ao dentro e ao fora, tanto
protege o espaço íntimo quanto abre para o espaço social e relacional. A roupa ocupa uma
posição fronteiriça, de interface entre o sujeito e o mundo, podendo mascarar o sujeito ou, ao
contrário, revelá-lo. (JOUBERT; STERN, 2007, p. 8)

Na era pós-moderna o corpo assumiu uma posição central na configuração da subjetividade,


tornando-se um “objeto” de moda privilegiado, "talvez as roupas sejam tão importantes para nós, pois
são as coisas mais próximas ao nosso corpo" (SVENDSEN, 2010, p.86).
A relação entre a nossa constituição física e a indumentária é de longa data. Nos períodos em
que se usava com grande freqüência os espartilhos, quando eles eram retirados, era possível observar
um corpo nu de cintura fina e quadril amplo, moldado pela influência fisiológica que a peça exercia
sobre ele. Nesse sentido, as roupas reescreviam e continuam reescrevendo o corpo, fazendo com que
ele despido, continue a estar vestido. Ele estará vestido da roupa ausente, do seu próprio cheiro, das

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suas definições sociais e culturais, e também do conjunto de valores que o indivíduo atribuiu a ele ou
dos valores atribuídos pela sociedade. O corpo se tornou o suporte principal de significados, porém,
significados mutáveis. E a partir dessa via de mão dupla, o ser humano atribui valor às coisas e
também é moldado por elas.
Os corpos que foram protagonistas da obra de Enauro de Castro são anônimos, vestidos com
roupas que não sabemos ou conhecemos, mas que ainda assim, tentamos imaginar. Essas pessoas
estariam indo para um dia rotineiro de trabalho? Elas estariam indo visitar alguém ou comprar algo?
Elas eram vendedores, estudantes, professores, garis, comerciantes, empresários ou andarilhos? Com
seus diversos tipos de sapatos, que de maneiras distintas imprimiram as formas de seus solados no
tecido acolhedor; essas pessoas deixaram as sujidades dos locais que conheceram, habitaram e
passaram. Sapatos que ganharam de presente, que acharam em brechós, que herdaram do irmão
mais velho, que compraram com o seu primeiro salário - sapatos que marcaram suas vidas ou que
simplesmente foram só mais um item de consumo.
Seja qual for a procedência dos sapatos, eles eram parte da indumentária que as pessoas
estavam usando no dia em que a obra foi realizada em frente ao "Café Central", e que,
independentemente do material com que foram fabricados, do valor que custavam ou do poder
aquisitivo das pessoas que os usavam, todos os sapatos carregavam consigo os corpos, as histórias e
deixavam as suas marcas. E ainda que tenha passado alguém sem sapatos pelo tecido, ele deixou os
rastros de sua pele, o suor de seus dedos, uma parte de si. As pessoas que fizeram parte da realização
da obra "A Grande Pegada", não apenas deixavam os seus vestígios no suporte de tecido, como
imprimiam simultaneamente suas marcas e o seus vestígios nas roupas que eles estavam vestindo no
momento em que andavam pelo local.
Com o advento da modernidade, o vestuário se tornou o indicador menos claro da identidade
de um indivíduo, isso ocorreu porque a moda de massa absorveu elementos do vestuário que tinham
um significado, e, com isso, passaram a ser usadas por pessoas cuja a identidade não corresponde de
maneira alguma a origem delas. Segundo o filósofo Lars Svendsen (2010, p.71), "se vemos uma
pessoa com um traje completo de sado masoquista, nós iremos supor que ela tenha preferências
sexuais nesse aspecto, porém a moda de massa já absorveu elementos do vestuário fetichista, não
podemos fazer uma correlação fiel que necessariamente irá corresponder a identidade do consumidor
que adquirir alguma peça com esse traço." Ainda que as roupas não sejam uma forma de linguagem,
ou sejam uma forma de linguagem instável, ainda tiramos conclusões sobre os outros com base nelas.
Para Rosane Preciosa (2005, p. 34), "nós somos feitos de uma matéria fixa, imutável, somos
produto dos encontros, das conexões que nos permitimos fazer ao longo da nossa existência". As
pessoas que um dia vestiram as suas roupas e hoje são corpos ausentes, tiveram conexões e

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encontros que as transformaram durante as suas vidas. Hoje, as suas antigas roupas carregam as
suas marcas, as suas fases, formas, cheiros, rasgos e rupturas, que continuarão como reflexos de seus
donos originais ou como participantes das transformações dos outros que virão a adquiri-las um dia. E
isto também ocorreu com os corpos ausentes da obra "A Grande Pegada" do artista Enauro de Castro,
que tiveram as suas conexões e encontros e que deixaram espaço para o encontro de outros que
ainda virão a marcá-la.
Afinal, os corpos vêm e vão, as roupas no entanto, sobrevivem ao tempo e nos deparamos
constantemente com elas nas lojas de roupas usadas, nos brechós e bazares de caridade. As
vestimentas também podem ser passadas de pais para filhos, de amigo para amigo, de irmão para
irmão; porque o homem é capaz de usar, emprestar, doar e, muitas vezes, de descartar. Entender os
tecidos como participantes da formação do indivíduo e não apenas como uma produção humana ou
reflexo dele, é uma visão contemporânea sobre a relação entre objeto e sujeito.
Os têxteis tecem as nossas lembranças e memórias, além de participar da construção delas.
Mas a questão da memória vista como algo concreto, definido e estático é uma visão bem tradicional
se comparada com a visão contemporânea que se tem sobre o assunto. As pessoas tendem a pensar
que a memória é algo que aconteceu e se finalizou no passado, possuindo a necessidade de ser
resgatada, devido ao risco do desgaste e do esquecimento. Atualmente, a memória tem sido um
assunto em várias áreas do conhecimento, porque talvez essa necessidade de preservá-la e resgatá-la
vêm como resultado de um mundo globalizado e em constante transformação.
Segundo Marilena Chauí (2000, p. 158), "a memória é uma evocação do passado. É a
capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança
conserva aquilo que se foi e não retornará jamais". Há uma relação de mão dupla entre sujeitos e
objetos, como discutido antes. A memória sempre foi vista como um pacote de recordações, já previsto
e acabado no passado, porém "o esforço ingente com que costumam investir grupos e sociedades,
para fixá-la (memória) e assegurar-lhe estabilidade, é por si, indício de seu caráter fluido e mutável"
(MENEZES, 1992, p.10). Para o historiador Ulpiano (1992, p. 11), "a elaboração da memória se dá no
presente e para responder as solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe
incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar." Para ele é como se o presente fosse o fator
primordial capaz de inverter radicalmente o valor original de um objeto do passado e fosse desse
presente que o objeto tirasse a sua existência.
Porém, mesmo sendo o presente um elemento tão importante nessa relação entre um objeto
do passado e o indivíduo, é inevitável dizer que o presente só identifica a necessidade de valorizar ou
estudar um objeto, porque este possui uma trajetória - ainda que subordinado a novas transformações.
Nesta pesquisa, por exemplo, apesar de investigar as marcas e fazer uma espécie de biografia da obra

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"A Grande Pegada" do artista Enauro de Castro e trazer os corpos ausentes para o contexto dos
tecidos, ainda assim, ambos permanecem abertos para novas marcas, transformações e percepções
que serão produzidas pela sensibilidade de outros. Afinal, como dito por Rosane Preciosa (2005, p.22),
"existir é expandir-se".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na visão contemporânea sobre a memória, o presente não reconhece as coisas do passado


como algo que aconteceu e terminou, mas é através dos questionamentos do presente que se produz
novas interpretações do passado. Logo, a memória nunca se torna um registro, mas sempre uma
reformulação, já que o presente resignifica constantemente a memória.
Pensar nas vestimentas e tecidos e nos seus elos com a memória e as lembranças, se torna
uma percepção de muita sensibilidade e emoções. Através da pesquisa, foi possível perceber como os
tecidos podem nos ajudar a acessar a memória e o esquecimento dos corpos. A capacidade do tecido
de absorver marcas, vestígios, guardar o cheiro e a forma do corpo que o habitou, se tornam aspectos
primordiais para desencadear as lembranças de um corpo ausente. Não apenas dos corpos previstos
pelo artista que passaram pelo "Café Central" em 1990, mas também todos os outros que marcaram-no
em outras circunstâncias, as do museu em sua reserva técnica, nos procedimentos de conservação e
exposição, etc.
Se pudermos fazer uma analogia entre as roupas (de moda ou não) e o tecido de “A Grande
Pegada”, podemos dizer que o presente pode reformular algo do passado e permitir que artefatos
sejam resignificados e transformados pela percepção de novos agentes. Isto refere-se não apenas a
memória individual, mas poderá constituir até mesmo uma memória coletiva - que poderá fornecer uma
noção ideológica e cultural da sociedade que a criou e consumiu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Livros:
JOUBERT, Catherine e STERN, Sara. Dispa-me: O que nossa roupa diz sobre nós, 1ª ed, Rio de
Janeiro, Zahar, 2007, 157 p.

PRECIOSA, Rosane, Produção Estética: notas sobre roupas, sujeitos e modos de vida. São Paulo:
Anhemi Morumbi, 2005, 94 p.

SVENDSEN Lars. Moda: Uma Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, 223 p.

Teses ou dissertações:

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ANDRADE, Rita Morais de. Boué Soeurs RG 7091: a biografia cultural de um vestido, 2008, 224 f.
Tese (Doutorado em História) – Pontifica Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

Artigos:
CHAUÍ, Marilena, Convite à filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000, p. 525.

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A História, Cativa da Memória? Para um mapeamento da


memória no campo das Ciências Sociais. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1992, 23 p.

MINAYO, M. C. S. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Coleção Temas


Sociais. 24ª. Edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

Sites:
CINTRA, Murillo. A Alma do Café Central. In: PORTAL JORNAL O HOJE, 2013. Disponível em:
<http://www.portalohoje.com.br/homologacao_20052013/essencia/a-alma-do-cafe-central/> Acesso em:
01 jun.2014, 15:20:30.

Entrevistas concedidas:
Enauro de Castro. Entrevista concedida. Goiânia, GO, maio de 2014.

Divino Sobral. Entrevista concedida. Goiânia, GO, junho de 2014.

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Design Têxtil: memória das subversões dos limites de gênero no início do século XXI

Textile Design: memory of the subversion of gender boundaries in the early 21st century

Maureen Schaefer França (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)


maureen.schaefer@gmail.com

Resumo: Busca-se analisar designs têxteis que subvertem padrões normativos de gênero no
início do século XXI. O design têxtil memoriza ideias numa forma tangível, funcionando como
um agente de transformação social. São apresentadas noções sobre Design Têxtil e a sua
relação com a construção das identidades pessoais e gênero. Depois, são analisados designs
têxteis que reforçam e subvertem padrões normativos de gênero segundo o método de análise
pautado nos estudos de Schiebinger.
Palavras-chave: design têxtil, gênero, subversão.

Abstract: It seeks to analyze textile designs that subvert normative standards of gender in the
early 21st century. Textile designs memorize ideas in a tangible way, working as an agent of
social transformation. For this, are presented notions about Textile Design and its relations with
the construction of identity and gender. After, textile designs that reinforce and subvert
normative standards of gender are analyzed according to the analysis method based on
Schiebinger’s studies.
Keywords: textile design, gender, subversion.

1) Introdução: design têxtil como ferramenta para transformação social

Os têxteis fazem parte do dia a dia das pessoas há muitos séculos, protegendo-as do
frio ou do calor, identificando funções sociais, ornamentando corpos e espaços. Na moda, o
design têxtil, campo de atividade do Design de Superfície, atua de diversas maneiras na
criação de artefatos têxteis, seja através da tecelagem, malharia, tinturaria, estamparia e
bordados (RÜTHSCHILLING, 2008).
O design têxtil, geralmente associado à decoração e ao ornamento, é visto por alguns
designers e arquitetos como algo sem seriedade, frívolo e banal. De acordo com os estudos
de Schneider (2010), entende-se que esta visão é herdeira do pensamento funcionalista,
tendo sido construída historicamente a partir de alguns membros do Modernismo. O discurso
modernista, associado às tendências coletivistas e comunistas tão em voga no início do
século XX, afirmava valorizar as funções práticas dos produtos em detrimento das funções
estéticas1 dos mesmos, visto que aquelas eram imprescindíveis para a construção de uma

                                                                                                                         
1 As funções dos produtos são aspectos importantes nas relações dos usuários com os artefatos e podem ser
divididas em: função prática, estética e simbólica, de acordo com Löbach (2000). Dependendo do artigo de
consumo, uma função pode se destacar sobre a outra, contudo, elas encontram-se diretamente vinculadas e são
interdependentes entre si. A sua divisão é arbitrária e aqui se estabeleceu para fins de reflexão.

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sociedade mais justa e igualitária. Além disso, para muitos designers e arquitetos, a ênfase da
função estética através do uso de ornamentos acabava por reforçar as desigualdades sociais.
Segundo o arquiteto tcheco Adolf Loos (1870-1933), autor do ensaio “Ornamento e
Crime” (1908), o ornamento era força de trabalho e material desperdiçados, pessoas
modernas deveriam abominar o ornamento, pois era algo dispensável. Além disso, relacionou
o ornamento à tatuagem, adorno utilizado, em sua maioria, por criminosos no período
(SCHNEIDER, 2010). Para muitos membros do Movimento Moderno, as formas universais
ideais, que reduziriam as desigualdades e promoveriam uma sociedade mais justa, eram as
formas simplistas, minimalistas e geométricas, que poderiam ser mais facilmente produzidas
em massa e portanto mais acessíveis economicamente para os consumidores (CARDOSO,
2004). Em meados do século XX, Dieter Rams (1932- ), apelidado de Papa do Design Alemão,
formulou alguns princípios que deveriam nortear a criação do “Bom Design”, que para ele,
deveria ser discreto, fazer o produto ser útil, ser esteticamente agradável, honesto e “menos
design” (MÜLLER, 2015). Logo, o bom design deveria ser minimalista, pois ao se concentrar
nos aspectos essenciais (entende-se que para Rams, as funções práticas do artefato), o
produto tornar-se-ia mais eficiente, excluindo elementos supérfluos, aptos a confundir o
usuário. Além disso, nota-se que Rams não deu muita atenção às necessidades sociais dos
usuários.
Para Sparke (2004), diversos designers ligados ao Modernismo, usaram discursos de
cunho funcionalista para legitimar a estética modernista. Os designers utilizavam a linguagem
formal modernista não somente devido aos aspectos práticos possibilitados por ela (e que
muitas vezes não eram tão práticos assim)2, mas porque a consideravam bonita, identificando-
se com seus aspectos estéticos e simbólicos. Ou seja, também tratava-se de uma questão de
gosto. Logo, pode-se dizer, a partir dos pensamentos apresentados acima, que os ornamentos
e decorações, que abarcam alguns tipos de designs têxteis, são vistos por alguns designers e
arquitetos como algo dispensável, um desperdício que poderia, inclusive, ser prejudicial ao
confundir o usuário. Além disso, eles também são vistos como “Mau Design”, pois são
capazes de prejudicar a sociedade, reforçando desigualdades sociais e o poder e os valores
de grupos hegemônicos.
Este texto tem a intenção de refutar a ideia de que o design têxtil é algo dispensável
ou até mesmo um desperdício. Pois, entende-se que o design têxtil constrói significados,
sendo capaz de atender as necessidades subjetivas do grande público, as quais os

                                                                                                                         
2 Para mais detalhes, assistir o filme Arquitetura da Felicidade, Episódio 2 (Gosto se discute), de Alain de Botton.

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modernistas recusaram-se a perceber (SCHNEIDER, 2010). De acordo com Sparke (2004),


até o final do século XX, tornou-se claro que o principal imperativo do design, responsável pelo
projeto de grande parte dos objetos do dia a dia, era criar e refletir significado no contexto da
vida cotidiana.
Por muito tempo, o mercado reconhece que não se consegue vender produtos
aos mais importantes – e jovens - segmentos de consumidores do mercado, por si
mesmos. Não se trata mais do valor de uso e sim do valor de representação das
mercadorias. Buscam-se mundos temáticos, estilos de vida, figuras do mundo –
que podem ser cultivados ou representados (BOLZ, 1997 apud BÜRDEK, 2006, p.
325).

Por outro lado, a associação dos ornamentos e decorações a algo prejudicial capaz
de reforçar as desigualdades sociais parece minar a contribuição social do design têxtil.
Contudo esta mesma visão possibilita pensar justamente o contrário (ou seja, o design têxtil é
capaz de trazer benefícios para a sociedade), pois esta compreensão negativa acerca dos
ornamentos e das decorações acaba por tensionar a visão de neutralidade do design. O
design está longe de ser uma atividade neutra, pois o designer faz parte de uma cultura que
condiciona sua visão de mundo (LARAIA, 2007) e consequentemente suas práticas projetuais.
Logo, os produtos de design compõe parte da fisicidade da cultura (cultura material), sendo
esta apenas uma de suas dimensões de expressão (SLATER, 2002).
O design, portanto, não se situa fora do fenômeno social, mas o compõe,
materializando e compartilhando suas ideias e valores, sejam eles, maléficos ou benéficos
para a sociedade. O design medeia as relações sociais, transformando a sociedade e sendo
modificado por ela. Portanto, o design têxtil pode ser muito mais do que uma “armadilha
sensorial” que busca inebriar os sentidos. Ele pode fazer o produto ser útil, servindo como
ferramenta de transformação social. Neste sentido, o objetivo deste texto é analisar exemplos
de designs têxteis, do início do século XXI atrelados ao campo da moda, que subvertem os
padrões normativos de gênero, alargando os limites de gênero ao dar maior visibilidade às
minorias que não se encaixam em papéis sociais tradicionais e convencionais, sentindo-se
deslocadas socialmente.
O design têxtil, seguindo os pensamentos de Forty (2007), tem a capacidade de
moldar e memorizar ideias e valores numa forma tangível e duradoura, de tal modo que
parecem ser a própria realidade, influenciando os modos de agir e pensar da sociedade. O
design têxtil proporciona então uma herança cultural palpável à sociedade, funcionando como
índice das transformações de um determinado tempo e lugar. Deste modo, a repetição
prolongada de designs que buscam dar maior visibilidade às minorias é capaz de colaborar
para a maior aceitação social destes grupos sociais. De modo geral, esta pesquisa tem a

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intenção de tensionar visões naturalizadas sobre gênero, contribuindo para posturas de


autoaceitação, tolerância, empatia, inclusão e respeito em relação à diversidade das
subjetividades.
Para atingir o objetivo deste trabalho, ele foi estruturado da seguinte maneira:
primeiramente são apresentadas noções e classificações sobre Design Têxtil, de modo a
facilitar a sua análise posterior. Em seguida, discute-se a relação entre a construção das
identidades pessoais e o design têxtil e conceitos a respeito do marcador identitário gênero.
Depois, apresenta-se o método de análise dos artefatos têxteis pautado nas ideologias e
atribuições de gênero propostas por Schiebinger (2001). Por fim, são analisados e discutidos
exemplos de designs têxteis que reforçam e subvertem padrões normativos de gênero.

2) Design Têxtil
O design têxtil, uma área do design de superfície, abrange não-tecidos (pele, plástico,
couro e camurça) e tecidos (gerados a partir de diferentes métodos de entrelaçamento de fios
como tecelagem plana e malharia) e suas formas de acabamento (tingimento, processos de
acabamento, estamparia, bordados, aplicações, recortes, gravações e etc.). “É a maior área
de aplicação do design de superfície e com maior diversidade de técnicas” (RÜTHSCHILLING,
2008, p. 31). A seguir, exemplos de design têxtil são apresentados a partir dos estudos de
Udale (2009).
A tecelagem plana (fig. 01), muito utilizada na área da moda, consiste em entrelaçar
fios dipostos no sentido do comprimento do tecido (urdume) com os fios no sentido da largura
(trama). Os três principais tipos de entrelaçamento entre o fio de urdume e de trama são:
tecidos em ligamento tela (cambraia, chifom, guingão, musseline, organza, voal), ligamento
sarja (brim, espinha de peixe, tweed, pied de poule) e ligamento cetim (crepe de cetim, cetim).
Além deles, outros tecidos planos também podem ser construídos a partir de outros
entrelaçamentos (canelado, anarruga, piquê, brocado e etc.), gerando diversos efeitos táteis e
visuais a partir de suas estruturas. A malharia (fig. 01) consiste em fabricar tecidos a partir da
interligação de laçadas, que podem ser tricotadas ao longo da urdidura ou da trama,
proporcionando uma qualidade elástica. As malhas podem ser feitas a partir do tricô à mão e
do tricô feito à máquina resultando em produtos como camisetas, meias-calças, cardigãs e etc.
Além disso, há outras formas de fabricação de têxteis diferentes da malha e da tecelagem
como o crochê, o macramé e a renda, por exemplo (UDALE, 2009).
O tingimento (fig. 01) dá cor ao tecido a partir de corantes naturais ou sintéticos, que
podem ser aplicados em qualquer estágio de produção de uma roupa, desde a fibra, o fio e o

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tecido até a roupa pronta. O tingimento pode realçar uma peça de roupa a partir da coloração
homogênea da superfície ou de efeitos localizados, criando um aspecto ou manuseio único e
desejável. Neste caso, pode abranger efeitos como o tie-dye, batique e ikat (UDALE, 2009).
Os processos de acabamento (fig. 01), sejam eles mecânicos ou químicos, podem ser
realizados na etapa de desenvolvimento da fibra ou na própria superfície acabada do tecido. É
possível adicionar propriedades estéticas, práticas e simbólicas ao tecido, criando efeitos
táteis e visuais (UDALE, 2009, p. 65). Pode-se criar efeitos táteis e visuais a partir de
superfícies amarrotadas, plissadas, enrugadas, amassadas, lisas, brilhantes, macias, secas,
aveludadas, com isolamento térmico, com aparência moderna ou velha e etc.

Figura 01: Da esquerda para direita: exemplos de tecido (tweed), malha (meia-calça), tingimento (ikat) e
processo de acabamento (lavagem). Fonte: Pinterest (2016).

A estamparia (fig. 02) consiste na impressão de estampas sobre tecidos. Estas


podem ser obtidas a partir de diversos processos de impressão (pintura à mão, bloco de
madeira, serigrafia, sublimação e digital), tintas (opacas, fluorescentes, glitter, hidrocrômicas,
peroladas e etc.) e outros materiais (papel flocado e laminação metálica, conhecida como foil),
segundo Udale (2009). As estampas podem ser classificadas em diversos tipos: a)
localizadas, quando o motivo é impresso em um local específico da peça; b) corridas,
quando os padrões gráficos repetem-se na extensão dos tecidos a metro; c) engineered
print, quando os motivos e padrões gráficos são impressos de acordo com a modelagem das
peças e a anatomia do corpo, de modo a realçar ou suavizar detalhes do corpo (BOWLES e
ISAAC, 2012).

Figura 02: Da esquerda para direita: exemplos de estampa localizada (top), corrida (vestido com modelagem
solta) e engineered print (vestido acinturado). Fonte: Pinterest (2016) e Obsessiva Compulsiva (2016).

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Os bordados (fig. 03) podem ser adicionados às peças de moda para realçar a sua
aparência e para integrá-los à sua função. A técnicas de bordados são criadas a partir de
diversos pontos, que podem conferir maior ou menor textura aos tecidos. Há bordados
ornamentais que utilizam fios para criar padrões gráficos (Bordado de Assis, Bordado
Florentino, Crewel, Blackwork) e bordados abertos, que são criados a partir de formas
recortadas que então são caseadas (Bordado Inglês e Richelieu) ou fios retirados do tecido,
cujos os espaços deixados são decorados com costuras e bordados (Renda de Ruskin e
Renda de Agulha), gerando padrões gráficos vazados. As aplicações (fig. 03) abrangem
diversas técnicas capazes de conferir efeitos táteis e visuais diferenciados às peças de moda
como o patchwork, matelassé, aplicação de contas (canutilhos, vidrilhos, contas de vidro e
etc.), lantejoulas, emblemas, camadas de tecidos e de outros materiais. Os recortes (fig. 03)
são utilizados para gerar tecidos vazados. Com a introdução do corte a laser é possível obter
um bom acabamento, pois o laser possibilita recortes precisos, além de selar a borda do
tecido, o que o impede de desfiar. Contudo, vale lembrar que os exemplos citados acima
compõe apenas uma parte do amplo e diversificado universo do design têxtil.

Figura 03: Da esquerda para direita: exemplos de Bordado ornamental (Crewel), Bordado vazado (Richelieu),
Recorte a laser e Aplicações (Patchwork). Fonte: Pinterest (2016).

O design têxtil é construído, geralmente, através das linguagens tátil e visual, ou seja,
linguagens não-verbais, a partir das quais configura-se os aspectos práticos, estéticos e
simbólicos dos artefatos têxteis. Os aspectos práticos podem ser configurados para garantir
resistência, isolamento térmico e impermeabilidade ao tecido; os aspectos estéticos para
conferir um toque agradável e atrair a atenção do consumidor; os aspectos simbólicos para
comunicar ideias de caráter intangível como luxo e simplicidade, por exemplo.
Os aspectos dos produtos são imprescindíveis nas relações dos usuários com os
artefatos têxteis. Dependendo do artigo de consumo, da marca e do público-alvo, uma função
pode se destacar sobre a outra. Contudo, vale a pena comentar que os aspectos simbólicos,
práticos e estéticos encontram-se diretamente vinculados e são interdependentes entre si. A
sua divisão é arbitrária e aqui se estabeleceu para fins de análise. A seguir explora-se a

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capacidade comunicativa do design têxtil fundamental para tensionar/reforçar os limites de


gênero.

3) Design têxtil & a construção das identidades pessoais


A cultura do consumo trata especialmente das negociações de identidade e status. O
consumo de artigos funciona como prática e comunicação da diferenciação social. Os
artefatos, de acordo com Miller (2009), não representam o interior das pessoas, mas fazem
parte do processo pelo qual elas criam a si mesmas. Os produtos são adquiridos, por
exemplo, não para representar o caráter sedutor do consumidor, mas para ajudar a
desenvolvê-lo. O consumo das coisas faz parte da construção das pessoas e da percepção do
“eu”, estando apto a influenciar a identidade dos sujeitos, alterando seus pensamentos e
modos de agir. Muito do que faz das pessoas serem aquilo que são ou buscam ser existe na
materialidade externa a seu corpo (MILLER, 2009).
O sujeito constrói suas identidades e subjetividades através, mas não somente, de
produtos, ancorando-se nas imagens e nos significados simbólicos que os artefatos projetam,
incluindo-se aí os artefatos têxteis também. Segundo Medeiros e Queluz (2008), todo e
qualquer artefato produz e está associado culturalmente a uma identidade, para atingir os
consumidores que irão comprar e usar este produto, que supostamente os identificarão para
sociedade. A moda é um fenômeno social, que por meio da indumentária, dos calçados e dos
acessórios materializa convenções e identidades socioculturais tais como classe social,
gênero, raça/etnia, geração, profissão, religião, estilo de vida e etc., constituindo um dos
principais meios de externar uma narrativa particular do “eu”.
Assim como os artefatos de moda, os designs têxteis que compõem parte de sua
estrutura, representam ideias que, segundo Hall (1997), interpelam os sujeitos sociais a
assumirem esses significados, investindo suas emoções neles para construírem a si mesmos.
Pois, as identidades são “pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas
discursivas constroem para nós” (HALL, 2007, p. 112). Deste modo, os designs têxteis não
refletem identidades previamente existentes, mas mediando as relações sociais, servem como
pontos de apoio para que as pessoas (re)construam constantemente suas subjetividades e
identidades. Pois, as identidades são vistas, segundo Hall (2007), como flexíveis, dinâmicas e
complexas e não fixas, estáveis e singulares, sendo representadas ao longo de discursos e
práticas culturais no interior das relações sociais. Na sociedade contemporânea,
a identidade social tem de ser construída pelos indivíduos – pois não é mais dada
ou atribuída -, e nas circunstâncias mais desnorteantes possíveis: não só a
posição da pessoa deixou de ser fixa na ordem do status, como a própria ordem é

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instável e cambiante e é representada por produtos e imagens igualmente


cambiantes (SLATER, 2002, p. 38).

Os designs têxteis são representações, ou seja, construções de significados. Essas


representações são interpretações de algum referente materializadas através da linguagem
não-verbal, segundo Hall (1997), um sistema sociocultural de codificação das ideias sobre o
mundo, habilitado a comunicar mensagens, compartilhando significados. Como mencionado
anteriormente, o design têxtil explora especialmente as linguagens tátil e visual para
comunicar mensagens. Por exemplo, tecidos de fibras naturais como algodão e linho podem
evocar ideias de discrição e simplicidade; tecidos com tingimento Ikat, exotismo; tecidos com
estampas coloridas, jovialidade; tecidos com aplicações de pedrarias, sofisticação; tecidos
com recorte a laser, avanço tecnológico; tecidos transparentes, sedução e etc. Contudo, os
significados não são inerentes aos artefatos têxteis se modificando no tempo e no espaço, de
acordo com as transformações socioculturais, tecnológicas, políticas, econômicas e religiosas
(fig. 04).

Figura 04: Transformação sociocultural a respeito do consumo de artefatos têxteis estampados no início do
século 19 na Inglaterra. Fonte: FORTY (2007).

3.1) Gênero
De acordo com Ono (2006), a partir de meados dos anos 1970, verificou-se a busca
de uma maior diversificação de produtos. “As organizações produtivas passaram a se
preocupar mais com os diferentes perfis de consumidores, com a diversidade cultural e
hábitos de consumo” (p. 76). A diversificação e a segmentação do mercado dos artefatos
têxteis fazem parte da estratégia de identificação entre os consumidores e os produtos, sendo
atravessada por questões de classe, gênero, geração, raça/etnia, religião e etc. que reforçam
as distinções dentro da sociedade, acompanhando suas transformações. Esse mapeamento
de várias distinções sociais (especialmente de gênero) através do estudo dos bens como um

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sistema cultural se tornou uma indústria própria. (...) a análise semiótica tem sido altamente
influente no comércio, por exemplo, como parte de uma busca constante por uma brecha em
tais mapas sociais que possa ser preenchida com algum produto bem-direcionado (MILLER,
2007).
Logo, o gênero costuma balizar os processos de criação, circulação, compra, venda e
uso dos design têxteis. Neste texto, o gênero é compreendido como um conjunto de discursos
e práticas que constroem e reformulam limites para os sexos (SANTOS, 2010). O gênero
regula e estrutura a percepção e os pensamentos dos indivíduos, influenciando seu modo de
se ser e suas atividades.
De acordo com Butler (2008), o gênero pode ser visto como os significados culturais
assumidos pelo corpo sexuado. Entretanto, não se pode dizer que ele decorra de um sexo
desta ou daquela maneira, pois é extrínseco a ele: “Levada a seu limite lógico, a distinção
sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros
culturalmente construídos” (p. 24). Para Butler, as noções de “homens” e “mulheres” são
fabricadas. Pois, por mais que se considere por um momento a estabilidade do sexo binário,
isto não garante que a construção de “homens” se aplique exclusivamente a corpos
masculinos como também o termo “mulheres” não interprete somente corpos femininos,
porque os indivíduos aprendem a ser homens ou mulheres.
O gênero não se trata de uma estrutura fixa, mas de um processo cultural que se
renova continuamente. Logo, os termos “mulher” e “homem” não denotam uma identidade
comum e duradoura, pois o conceito de “mulheres” e “homens” abarcam possibilidades de
significados múltiplos e dinâmicos tecidos no contexto cultural, político, econômico, religioso e
científico de um tempo e lugar.

4) Método de Análise
A análise dos artefatos têxteis a ser realizada neste texto será pautada nos estudos
de gênero de Schiebinger (2001). Para análise, foram escolhidas imagens de peças de moda
femininas e masculinas, do início do século XXI, coletadas a partir do site Pinterest3. Tratam-
se de imagens de peças de moda de uso cotidiano e das passarelas. A análise será
comparativa de modo a enfatizar o aspecto de construção de ideias e práticas de gênero, que
foram naturalizadas com o passar dos séculos. Para isso, a análise será composta por duas
etapas: na primeira, serão analisados exemplos de artefatos têxteis que reforçam padrões
                                                                                                                         
3Rede social de compartilhamento de fotos. Assemelha-se a um quadro de inspirações, onde os usuários podem

compartilhar e gerenciar imagens temáticas como peças de moda, viagens, gastronomia e etc.

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normativos de gênero e na segunda, exemplos que os subvertem.


Para isso, as imagens serão analisadas e discutidas segundo as ideologias e as
atribuições de gênero propostas por Schiebinger, aspectos através dos quais o gênero atua.
As ideologias de gênero, por exemplo, prescrevem características e comportamentos
aceitáveis para homens e mulheres e são específicas à região, religião, classe, etnia e assim
por diante. As atribuições de gênero referem-se às ações esperadas de um indivíduo em
virtude dele ser homem ou mulher. Vale lembrar, que as ideologias e atribuições de gênero
mudam de acordo com o tempo e lugar.

5) Análise de designs têxteis que reforçam padrões normativos de gênero


Ideologias e atribuições de gênero vivenciadas pelos indivíduos são materializadas no
design têxtil reforçando, geralmente, padrões normativos de gênero para os consumidores. As
ideologias de gênero referentes às mulheres ocidentais (meninas, jovens e senhoras), por
exemplo, costumam abranger ideias como doçura, beleza, fertilidade, subjetividade
sentimental e delicadeza. Estes conceitos podem ser traduzidos para os têxteis a partir de
cores pastéis, de referências da natureza como pássaros, borboletas e flores e de outros
elementos simbólicos como laços e corações (fig. 05).

Figura 05: Designs têxteis com representações de feminilidades convencionais (delicadeza, doçura, beleza,
subjetividade sentimental). Fonte: PINTEREST (2016).

Segundo Knibiehler (1991), o corpo curvilíneo, a cintura fina, os seios grandes e o


quadril avantajado prescrevem ideias normativas de características físicas idealizadas para as
mulheres, traduzindo sua função reprodutora, capaz de incitar o parceiro ao desejo sexual.
Estas proporções são incorporadas no design têxtil, como pode-se notar no uso de estampas
engineered print, que buscam realçar ou suavizar detalhes do corpo (fig. 06). Este tipo de
tratamento superficial costuma ser mais empregado em peças de moda femininas.
Outra questão referente às ideologias normativas de gênero abarcam a ideia da
sensualidade feminina, materializada nas mídias através da nudez, posturas corporais, roupas

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que marcam as formas do corpo, cabelos longos e maquiagens na tentativa de criar efeitos
eróticos. Estas construções acabam por objetificar as mulheres, percebidas então como
objetos de consumo do prazer masculino, além de reforçar o estereótipo da femme fatale -
mulher capaz de obter o que deseja através do seu corpo e das suas estratégias de sedução.
Tecidos transparentes, formas vazadas e meias-calças, pouco comuns no guarda
roupa masculino, podem ser vistas como representações dessas ideias no design têxtil,
ligando-se à sedução e ao conceito de voyeurismo. Este consiste na curiosidade com relação
ao que é íntimo, como por exemplo, a observação de uma pessoa no ato de se despir sem
que esta saiba que está sendo observada. As meias-calças, as peças de roupas com tecidos
transparentes e formas vazadas (fig. 06) parecem funcionar como vitrines que permitem o
olhar alheio, mas não o toque, fazendo um jogo entre aproximação e distanciamento. Tratam-
se de artefatos têxteis que não deixam o corpo totalmente à mostra, incitando o transeunte a
completar a imagem na sua mente, transitando entre o lúdico e o erótico.

Figura 06: Da esquerda para direita: Na primeira imagem, o vestido traz aplicações de contas que direcionam o
olhar para região dos seios. Esta região é realçada ainda pelo uso de um tecido de cor homogênea e aspecto
brilhante. A estampa dos babados da saia é posicionada para ampliar a região do quadril. Na segunda e terceira
imagens, tratam-se de peças com tecidos transparentes e com recortes vazados, brincando de mostrar e
esconder partes do corpo feminino. A quarta imagem mostra o uso, tão comum em peças de roupas femininas,
de aplicações de pedrarias. As últimas imagens ilustram um vestido de crochê e um vestido com bordado,
técnicas pouco presentes no guarda roupa masculino. Fonte: PINTEREST (2016).

Já os termos força, virilidade, poder, coragem e razão são ideologias de gênero


comumente atribuídos aos homens. Essas ideias ganham materialidade no design têxtil
através de tecidos: opacos, foscos, mais pesados, desgastados, com estampas geométricas
(listras, xadrezes), com estampas miúdas, monocromáticos, com cores “discretas” e com
menos vivacidade como castanhos, acromáticos, verdes, azuis, bordôs e etc. (fig. 07). A
cromofobia, ou seja, o receio do uso das cores, está associado historicamente a ideia da cor
ser interpretada como algo feminino, primitivo e vulgar e de ser relegada ao âmbito do
superficial, do supérfluo ou do cosmético. Neste sentido, a cor é vista como indigna das

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preocupações mais superiores da mente e como aquela que corrompe a cultura.


(BATCHELOR, 2007 apud BUENO, 2014). De modo geral, nota-se que a grande maioria dos
artefatos têxteis do guarda-roupa masculino apresenta uma aparência mais objetiva se
comparada ao feminino.

Figura 07: Amostra de artefatos têxteis de peças de moda masculina que reforçam padrões normativos de
gênero. Fonte: PINTEREST (2016).

A aptidão para os detalhes é muitas vezes vista como uma atribuição de gênero
designada às mulheres. Segundo Carvalho (2008, p. 89), no século XIX, a suposta aptidão
feminina para os detalhes seria cultivada desde a infância pelo exercício comparativo entre
objetos usados como elementos de decoração. As mulheres colecionavam miudezas, bibelôs,
com os quais formavam o “gosto artístico”, comparando formas, cores, texturas e materiais. A
partir desta ideia, nota-se que pequenos elementos como fitas, pedrarias, lantejoulas,
costumam aparecer com maior frequência em peças de moda destinadas ao público feminino
(fig. 06), sendo praticamente inexistentes no guarda-roupa masculino. A aplicação destes
elementos dá visibilidade à associação da valorização dos aspectos estéticos das superfícies
às mulheres, vistas durante séculos, como a vitrine da riqueza da família. Algumas matérias-
primas também manifestam atribuições de gênero. Para Carvalho (2008), o trabalho manual
doméstico acaba por resgatar a criação artística e artesanal - entendida por alguns como um
dom intrínseco ao ser feminino - que serve de contrapeso às experiências urbana e industrial
masculinizadas. A recorrência de técnicas artesanais, bem menos presentes no universo
masculino, como crochês, bordados, rendas e estampas pintadas a mão no vestuário feminino
reforça materialmente estas ideias.
Os exemplos anteriores, de ideologias e atribuições de gênero, propagam relações de
poder comuns às sociedades patriarcais, onde muitas vezes a mulher é vista como um ser
ingênuo, frágil, um objeto de prazer e com menor capacidade intelectual do que a do homem.

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Além disso, materializam conceitos de feminilidades e masculinidades convencionais que


reforçam noções construídas de oposição e também a hierarquia de valores: sentimento
versus razão, força versus fragilidade e etc. Segundo Partington (1996), designs que agrupam
em sua aparência traços femininos e masculinos podem ser classificadas como “andróginas”.
Contudo, esta visão acaba por reforçar a visão naturalizada de que certas noções são
femininas e outras são masculinas e que, portanto, não podem ser compartilhadas por ambos
os grupos. Logo, os designs percebidos como andróginos por Partington são compreendidos
aqui como exemplos de artefatos que alargam os limites referentes aos modelos normativos
do feminino e do masculino.

6) Análise de designs têxteis que subvertem padrões normativos de gênero


Homens de baixa estatura, muito magros, com pouca barba, gentis, sensíveis,
delicados e/ou que choram são questionados quanto à sua força, maturidade, sexualidade e
masculinidade. Homens que não gostam de beber cerveja, de brigar, de ser autoritários, de
fazer sexo casual ou aqueles que ganham menos do que a esposa e que gostam de limpar a
casa são vistos comumente como homens fracos e “efeminados”. Não raro, ouvem: “Você
parece uma mulher”. Mulher, neste caso, é um termo pejorativo de cunho machista, um
sinônimo para inferioridade, fraqueza e incapacidade. Mulheres grandes, com trejeitos mais
bruscos, com voz mais grossa, seguras de si e/ou menos sentimentais também são
questionadas quanto à sua delicadeza e feminilidade. Mulheres que têm posições elevadas no
mundo corporativo, que gostam de realizar trabalhos de força braçal e de maior domínio
sobre os animais ou sobre o uso de equipamentos eletrônicos complexos muitas vezes
ouvem: “Você faz isso como um homem”. Diferentemente do “parecer mulher”, o “parecer
homem” traz significados que podem depreciar (ser frio, estúpido e grosseiro) mas também
enaltecer os homens (ser competente, forte e inteligente) - neste caso soando como um
elogio. Essas percepção negativa acerca das mulheres e positiva sobre os homens encontra-
se materializada no design têxtil: é muito mais comum encontrar tecidos “masculinos”
apropriados pela moda feminina do que o inverso.
Além disso, o “parecer mulher” e o “parecer homem” acabam por naturalizar a ideia de
que existe uma maneira de ser mulher e um modo de ser homem, o que acaba por oprimir
pessoas que não se encontram dentro deste padrão. Contudo, como mencionado
anteriormente as identidades pessoais são dinâmicas, múltiplas e flexíveis, logo existem
feminilidades e masculinidades no plural, ou seja, diversos modos de ser mulher e homem.
As estampas florais são bastante incomuns na moda masculina, exceto aquelas com

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hibiscos, associadas ao Havaí e ao surfe – praticado majoritariamente por homens. Apesar de


não ser algo tão presente, alguns homens têm usado estampas florais e artefatos têxteis como
rendas, bordados, patchwork, tecidos com aplicação de pedrarias, estampas figurativas e
cores vívidas (fig. 08). A utilização de tais artefatos têxteis pelos homens pode ter diversos
significados culturais, pois tratam-se de objetos de uso pessoal, sendo este atravessado por
experiências únicas de vida. No entanto, nota-se a relação de uso de tais artefatos têxteis com
valores como elegância, beleza, sensualidade, jovialidade, diversão, conforto e modernidade.

Figura 08: Amostra de artefatos têxteis de peças de moda masculina que subvertem padrões normativos de
gênero. Da esquerda para direita: estampa floral; patchwork; bordado ornamental; estampas com pássaros
miúdos; transparência e pedrarias; cor fluorescente; estampa colorida com ícones comuns à moda feminina;
tecido colante transparente; renda; estampa com coração; recortes à laser e tecido brilhante. Fonte: PINTEREST
(2016).

5) CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação e o consumo de artefatos têxteis que subvertem padrões normativos de


gênero no início do século XXI pode estar relacionada a diversos eventos: avanços
tecnológicos, movimentos gay e feminista, moda street wear, cultura das celebridades e
aumento da competitividade comercial. Pois, “nas sociedades capitalistas, o principal objetivo
da produção de artefatos, um processo do qual o design faz parte, é dar lucro para o
fabricante” (FORTY, 2007, p. 13). Contudo, não se sugere que tais identidades não existissem
anteriormente, mas que se tornaram mais visíveis através destas e outras transformações. O
estudo dos artefatos em sua materialidade e em seus significados culturais móveis e
cambiantes é de grande importância e necessidade. Ele permite compreender melhor as
diferenças e a diversidade cultural, os processos de construção e desconstrução de
estereótipos e as relações de poder na sociedade de consumo.
REFERÊNCIAS

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Design, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2014.
SANTOS, Marinês Ribeiro dos. O design Pop no Brasil dos anos 1970: Domesticidade e
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HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
In: Educação & Realidade, nº 2, v. 22, p. 15-46, Porto Alegre,1997.
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http://www.revistacliche.com.br/2013/05/dieter-rams-e-os-10-principios-do-bom-design. Acesso
em 20 fev 2016.

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JOIAS: PORTADORAS DE MEMÓRIAS


JEWELRY: CARRIERS OF MEMORIES
Ana C. B. M. Passos (EAHC – Mackenzie)
anacristina@anapassos.art.br

Resumo: As joias existem desde a Idade da Pedra e sempre nos fascinaram. Ao longo do tempo,
ganharam funções as mais variadas, podendo enfeitar e simbolizar. Elas são capazes de carregar
consigo reminiscências de quem as faz, de quem as usa e de quem as observa. A partir de alguns
exemplos de uma peça histórica, de joias de família que passam de geração em geração, de objetos
que foram criados para portar lembranças e da relação muito peculiar que dois artistas joalheiros têm
com suas criações, pretendemos apresentar as joias como portadoras de memórias.
Palavras-chave: joia, memória, história.

Abstract: Jewelry has been around since the Stone Age and they have always fascinated us. Through
the centuries, they have developed the most varied functions, being able to adorn and symbolize. They
are capable of carrying reminiscences from the makers, the owners and those who appreciate them.
Observing examples of historical pieces, family jewels passed down from one generation to the next,
pieces of jewelry that were effectively created to hold tokens of memory and even the peculiar relation
that two jewelry artists have with their creations, we intend to discuss the evocative role of jewelry.
Key-words: jewelry, memory, history.

A joia como objeto cultural

Em 2007, na Gruta dos Pombos em Taforalt no Marrocos, pesquisadores encontraram um


conjunto de conchas perfuradas e cobertas de pigmentos, similares a outros conjuntos encontrados ao
redor de pescoços em escavações anteriores. Sua datação, 82.000 a.C. Este achado parece revelar
que o adorno já existia como objeto simbólico antes mesmo de desenvolvermos sistemas de linguagem
e sistemas religiosos. Outro achado mais recente, na Caverna de Skhul em Nahal Mearot em Israel,
aponta para datação ainda mais antiga: 130.000 a.C. Desde sempre nos apropriamos de objetos que
são dispostos sobre o corpo, para dar a conhecer valores, desejos, medos e histórias. Talvez por esta
familiaridade ancestral, não tenhamos a preocupação de buscar uma explicação para sua importância
em nossas vidas.

Há poucos estudos acadêmicos que apresentam como as joias são criadas, dispostas sobre
nossos corpos e entendidas por quem as vê. Ainda está por se construir uma Teoria da Joalheria, mas
já contamos com uma História da Joalheria que começou a ganhar corpo em meados do século XX e
nos ajuda a reconhecer e apreciar os contornos da produção de cada época, localizando-a em termos
estéticos e culturais. Entretanto, ela não parece ser capaz de dar conta de uma discussão sobre o

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objeto cultural joia, em suas dimensões material e simbólica, considerando seus significados, produção,
circulação e efeitos. Como já foi dito, as joias existem há muito tempo e ainda hoje somos
completamente fascinados por elas, como sublinha Roland Barthes no ensaio Das joias às bijuterias
(BARTHES, 2001. p.90). Por que gostamos tanto de adornos? Por que desejamos dar e receber joias
de presente? Por que muitas vezes a joia marca momentos de transição, ritos de passagem em nossas
vidas? Por que é tão importante saber quem fez o colar da novela ou de que é feito o anel de noivado
da princesa?

A joia é reserva de valor, adorno, tradição, arte, insígnia, indicação de pertencimento,


lembrança, prova de amor, amuleto, talismã e até bling-bling. Seus múltiplos significados podem ser de
natureza econômica, social, antropológica, simbólica, religiosa, mágica, ornamental, sentimental e
amorosa. Em meio a todas essas possibilidades, há um grande potencial afetivo nas joias. Elas podem
trazer atreladas a si histórias as mais diversas, narrativas presentes na fala de quem as produz, assim
como na de quem as porta ou possui e também na daqueles que as observam.

A autoria de uma joia potencialmente contém uma narrativa de sua criação, seja ela a história
de sua gênese, de sua conceituação, ou até mesmo da obtenção de seus materiais constituintes. A
propriedade também produz narrativa. Peças são herdadas, recebidas em datas comemorativas,
compradas para celebrar um momento importante. As ocasiões em que são usadas também adicionam
camadas de sentido. A forma como são apresentadas, exibidas, fotografadas, divulgadas e reunidas
em coleções as cobrem de significados. Os materiais preciosos com que boa parte das joias é
realizada são imunes à passagem do tempo e, por este motivo, elas aparecem na construção de
memórias de indivíduos, grupos e até mesmo países. De que são feitas as alianças de casamento, os
broches de lapela e as grandes insígnias? Apesar deste vasto potencial evocativo, por que tantas joias
são derretidas e penhoradas com facilidade por proprietários e comerciantes, enquanto outras são
entesouradas por gerações? Por que há tão poucas coleções de joia conhecidas – públicas ou
particulares?

As perguntas podem se desdobrar infinitamente, mas a questão central é quais são os


significados de uma joia? Para além das práticas e representações em torno dela, quais são os desejos
e valores envolvidos nas relações com as joias das mais diferentes espécies. Hoje, por exemplo, o
mercado nacional lida com parcelas cada vez maiores da população comprando sua primeira joia. O
que eles querem? Especialistas do ramo não cansam de afirmar que é uma peça de ouro amarelo em

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tipologia e design o mais tradicional1 possível. Como a geladeira, a televisão de tela plana, o celular e o
carro, a joia é mais um elemento de inserção social e de prestígio. Há a crença de que esta peça pode
ser passada de geração em geração, carregando a narrativa desse momento e construindo uma
identidade. Como se constituiu este significado?

Outro exemplo diametralmente oposto é o do anel de noivado. Uma ideia de marketing para
alavancar vendas de diamantes no período entreguerras e, principalmente, no pós-guerra nos Estados
Unidos, tornou-se febre de vendas recentemente no Brasil. O motivo? Provavelmente o culto às
celebridades que faz com que saibamos quantos quilates há no dedo de cada uma delas, criando uma
tradição de outra forma inexistente.

Frente a esta grande variedade de perguntas e possíveis percursos, o estudo da joia como
objeto simbólico requer uma abordagem que torne possível reconhecer nas narrativas de quem usa,
quem cria e quem aprecia joias – categorias tomadas de empréstimo da autora Marjan Unger (UNGER,
2010) –, a construção de seu significado para as memórias individuais e coletivas. Até o momento, os
estudos sobre o tema o vinculam à indumentária, à moda e ao luxo, não refletindo sobre as
circunstâncias específicas de sua criação, uso e observação. Neste contexto não são levados em
consideração os significados em torno do objeto cultural joia, seu valor simbólico, embora o autor
Georg Simmel em texto publicado originalmente em 1908 nos garanta que:

O adorno aumenta ou amplia a impressão da personalidade, porquanto actua, por assim


dizer, como uma emanação sua. Por isso, os metais reluzentes e as pedras preciosas foram,
desde sempre, a sua substância; são “adorno” num sentido mais estrito do que a
indumentária ou o penteado, os quais todavia também “adornam”. Pode falar-se de uma
radioactividade do homem no sentido de que, à volta de cada um, se encontra, por assim
dizer, uma esfera mais ou menos ampla de significado irradiante, na qual mergulham todos
os que com ele tenham de lidar – uma esfera constituída por uma textura inextricável de
elementos corpóreos e anímicos. (SIMMEL, 2014. p.67-8)

Entre o universo da joia tradicional, constituída de materiais preciosos e tipologias clássicas, o


universo da joia autoral, que amplia o espectro de materiais e tipologias em nome da expressão
artística de seu autor, e a joia-arte, que flerta com outras artes ampliando ainda mais as fronteiras de
materiais e tipologias, algumas vezes para além da relação com o corpo, há um vasto campo a
explorar. Trafegando pelo universo da Memória Social, da História Cultural e da Cultura Material é
possível avançar na compreensão de como são desenhadas, criadas, vendidas, escolhidas, usadas,
cuidadas, colecionadas e descartadas as joias. Estas e outras questões compreendidas a partir de um
enfoque histórico e cultural podem nortear o entendimento da joia como portadora de afetos, narrativas
e memórias.
                                                                                                                       
1
 Sempre que o substantivo tradição e o adjetivo tradicional aparecerem associados à joia, estarão se referindo a tipologias,
materiais ou design clássicos, termo evitado neste artigo por sua vinculação a período histórico e valoração estética.  

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Tomo aqui o termo joia conforme definido por Marjan Unger (UNGER, 2012), um objeto vestido
por pessoas como acréscimo decorativo ou simbólico a sua aparência externa. Esta simples definição é
o mais adequado ponto de partida para explorar os diversos significados deste objeto cultural. A
definição canônica de joia é muito clara, porém limitadora: é o ornamento feito de metais nobres e
eventualmente de gemas preciosas, utilizando técnicas de ourivesaria, para ser usado sobre o corpo.
Isto é o que normalmente se espera de uma joia. E da joalheria, que ela seja uma arte decorativa, uma
arte aplicada, feita para adornar as pessoas com objetos de importante valor intrínseco. A história
revela que desde sempre nos apropriamos de objetos que são dispostos sobre o corpo e na
contemporaneidade isto é ainda mais verdadeiro, mesmo quando abrimos mão de quaisquer desses
aspectos presentes em sua definição, sejam os materiais nobres, a técnica ou as tipologias
tradicionais.

Joias são fascinantes e despertam curiosidade. Esforços inter e transdisciplinares têm sido
feitos em anos recentes para entender seu papel em nossas vidas. Artísticas ou não, chamadas de
contemporâneas ou não, as joias continuarão sendo uma forma de nos tornar mais atraentes e
inteligíveis para nós mesmos e para o outro. Liesbeth den Besten destaca o papel da joia como
portadoras de significado:

Jewellery is often conceived as a sign, as an object that gives meaning. People are used to
reading jewellery, whether it is a conventional gold heart, a medallion or a name on a chain, a
wedding ring, a pearl necklace, a piercing, a glittering fake bijou, a medal, an ethnological or
antique piece of jewellery or a unique handmade piece of art jewellery. Having said that, I
should add that it is also the wearer that makes the meaning of a piece, attributing stories,
memories and their personality to it, charging a piece of jewellery with meaning. (BESTEN,
2011. p.24)2

Sobre memória, tradição e objetos

Outra definição muito simples e suficientemente abrangente para abordar o tema é a


apresentada por Jacques Le Goff. Segundo ele, a memória nada mais é do que “a propriedade de
conservar informações, atualizar impressões ou informações passadas ou entendidas como passadas”
(LE GOFF, 2014. p.387). Ela seria um fenômeno individual ou vinculado a grupos sociais capaz de
produzir imagens e textos que contribuiriam para a estruturação e a auto-organização a partir da
compreensão da relação tempo-espaço-indivíduo. Assim, a memória é entendida como um processo
                                                                                                                       
2 A joia é muitas vezes concebida como um símbolo, como um objeto que dá sentido. As pessoas estão acostumadas a ler
joias, quer se trate de um coração de ouro, uma medalha ou um nome numa corrente, uma aliança, um colar de pérolas, um
piercing, um bijuteria cintilante, uma medalha, uma peça etnológica, uma antiguidade ou uma peça artística feita à mão. Dito
isto, devo acrescentar que também é quem usa que constrói o significado de uma peça, atribuindo histórias, memórias e
sua personalidade a ela, impregnando uma peça de joalharia com significado. (tradução da autora).

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de criação deflagrado por tudo aquilo que nos afeta e que acontece na tentativa de nos situarmos no
tempo – entre o passado trazido a tempo presente com as demandas desse presente e o projeto de
futuro que almejamos – e no espaço, construindo narrativas e significados sempre renovados no jogo
lembrar-esquecer. Em Cinco proposições sobre memória social, Jô Gondar reflete sobre a importância
de se manter o conceito assim abrangente:

(...) um conceito costuma nos dizer o que alguma coisa é, no presente, no passado e no
futuro, a despeito de qualquer mudança. A memória, contudo, nunca é: na variedade de seus
processos de conservação e transformação, ela não se deixa aprisionar numa forma fixa ou
estável. A memória é, simultaneamente, acúmulo e perda, arquivo e restos, lembrança e
esquecimento. Sua única fixidez é a reconstrução permanente, o que faz com que as noções
capazes de fornecer inteligibilidade a esse campo devam ser plásticas e móveis. (GONDAR,
2016. p.19)

Conservação e transformação parecem ser palavras-chave em torno da memória. Enquanto


monumento, a joia é ou pode vir a ser herança que carrega recordações através das gerações. Como
documento/monumento, de forma privada ou compartilhada, ela pode nos auxiliar a elaborar
lembranças e criar uma narrativa atualizada de quem somos. Ulpiano T. Bezerra de Meneses sublinha
que a memória pode ser entendida como uma modalidade de representação social, mas também como
um suporte de processos de identidade (MENESES, 1999. p.12).

A contemporaneidade com sua desenfreada rapidez nos submete a acontecimentos e


informações de forma acelerada. A supervalorização da memória pode ter em sua raiz nossa urgente
necessidade identitária, pois “a memória é um elemento constituinte dos sentimentos de identidades
individuais e coletivas, na medida em que ela também é um fator extremamente importante na
consolidação do sentimento de continuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução e representação de si, para si e para os outros” (OLIVEIRA, 2012. p.27). Essa
necessidade identitária nos remete ao conceito de tradição inventada.

Eric Hobsbawn e Terence Ranger (2012) discutem a existência de tradições inventadas,


criadas para, dentre outras funções, compor discursos de poder, Anthony Giddens (2011) vai mais
longe e nos sugere que toda tradição é inventada. E também reinventada. Numa reação à
modernidade, e mais ainda à contemporaneidade, ideias românticas de pertencimento nos impelem a
criar rituais e repetições carregados de valor simbólico e emocional, numa tentativa de estabelecer
algumas continuidades na vida social. Giddens ainda explica que a tradição inventada pressupõe uma
sabedoria latente que nos daria as condições necessárias para uma ação desprovida de
questionamentos. A herança, que seria então tradição convertida em espetáculo, deve ter um caráter
apaziguador frente às constantes escolhas exigidas no cotidiano. Podemos até mesmo imaginar que a
necessidade de tradição inventada revela certa nostalgia de uma compreensão de mundo baseada em

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mitos de origem e genealogias. Não seria exatamente por esse motivo que há tamanho investimento
individual e coletivo na manutenção de arquivos pessoais e públicos, de objetos ou documentos? As
narrativas de si hoje estão facilitadas pelas redes sociais e são prontamente convertidas em registros
pessoais e testemunhos que podem ser incorporados a uma narrativa de nós (MCKEMMISH, 2013.
p.31). O desejo de contar detalhadamente a origem de uma joia de família que volta à circulação,
marcar momentos importantes com uma nova peça ou registrar a criação de uma obra não estaria
vinculado à narrativa de si em termos foucaultianos (FOUCAULT, 2008)?

A biografia cultural (KOPYTOFF, 2008) de uma joia baseada em sua origem ou posse não
atenderia, por sua vez, ao desejo de singularização almejado nas sociedades complexas? Sua
narrativa não a retiraria do âmbito da mercadoria e a lançaria no campo da memória por uma avaliação
privada de seu valor e significado? Não seria a posse e a exposição com esse objeto cultural
ressignificado um indício da identidade singular do próprio indivíduo?

Daniel Miller cita o personagem Peer Gynt de Ibsen para afirmar a respeito das roupas que
“elas são o que fazem de nós o que pensamos ser” (MILLER, 2013. p.22). Talvez o mesmo possa ser
dito das joias, senão todas elas, ao menos aquelas que nos afetam e que estão investidas de
narrativas, visto que “grande parte do que nos torna o que somos existe não por meio de nossa
consciência ou do nosso corpo, mas como um ambiente exterior que nos habitua e nos incita”
(MILLER, 2013. p.79), numa capacidade algo inesperada de determinar nosso comportamento e nossa
identidade.

Este artigo não se pretende mais do que um relato provisório, não exaustivo nem conclusivo,
sobre primeiras inter-relações identificadas entre joia e memória. Seu intuito é apenas estabelecer o
potencial do objeto cultural joia como portador de memória e desenhar algumas possibilidades de
aproximação a partir de exemplos, sendo que alguns aspectos ficam aqui apenas assinalados, para
exploração futura. Vamos a quatro dessas possibilidades.

Joia histórica

A atriz Elizabeth Taylor costumava dizer que as gemas são um presente de Deus retirado da
terra e as joias não nos pertencem, apenas estão sob nossa custódia temporária (TAYLOR, 2002.
p.11). Sua custódia se encerrou no dia 13 de dezembro de 2011, ocasião que ficou conhecida como a
mais valiosa venda de joias na história dos leilões. Normalmente, as joias mais importantes são
apresentadas no final de uma sessão, mas para dar o tom do que estava por vir, o décimo segundo lote

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foi a pérola La Peregrina, que atingiu o valor de 11.842.500,00 dólares, por conta de sua longa lista de
proprietários. Vincent Meylan (CHRISTIE’S, 2011. p.73) resume o fascínio dessa joia, dizendo que ela
simboliza tudo que o homem mais almeja: a imortalidade.

A lenda em torno desta pérola a coloca sendo descoberta por escravos no golfo do Panamá ou
no litoral da Venezuela, nos primeiros ou nos últimos anos do século XVI, conforme a fonte. Sua fama
vem do fato de que foi considerada a maior e mais perfeita pérola encontrada até então. A partir daí
sua história se bifurca em duas diferentes versões mais aceitas pelos pesquisadores.

Na primeira delas (NEWMAN, 2000. p.234), Isabel de Espanha recebe-a de um comerciante e


deixa para que seu filho, futuro Felipe II de Espanha, entregue em 1554 como presente de casamento
a Maria Tudor da Inglaterra, que aparece usando uma pérola semelhante num quadro de Antonis Mors,
realizado nesse mesmo ano. Maria morre em 1558. A Coroa Espanhola retoma a propriedade da joia e
ela é usada por reis e rainhas espanhóis até 1808. Há dois quadros de Diego Velázquez, ambos de
1634-35, que retratam Margarida, esposa de Felipe III e Isabel, esposa de Felipe IV, com a pérola.
Quando José Napoleão se torna rei da Espanha em 1808, ele toma para si a pérola e a leva para a
França em 1813, ao deixar o país. Presenteada a Hortência de Beauharnais, esposa de seu irmão Luis
Bonaparte, este último a vende em 1837 para James Hamilton, Marquês de Abercorn. Até então a
pérola não era perfurada e há relatos de que foi perdida e encontrada diversas vezes. Nessa época, ela
é perfurada e mais tarde recebe a montagem com diamantes em platina que permanece até hoje. Em
1969, ela reaparece na casa de leilões Parke-Bernet Galleries de Nova York e chega a ser reivindicada
por integrantes da família real espanhola, mas é arrematada pelo ator Richard Burton como presente
para Elizabeth Taylor. Logo em seguida, em 1972, ela solicita à joalheria Cartier que crie um novo colar
para receber a pérola. É esta montagem desenhada por Alfred Morante com a colaboração da atriz que
foi adquirida por um comprador anônimo em 2011.

Na segunda versão (CHRISTIE’S, 2011. p.66), La Peregrina é encontrada no Golfo do


Panamá em 1579 e comprada por Felipe II para presentear uma de suas filhas, mas decide ficar com a
pérola, motivado por sua extraordinária beleza. Em testamento, ela é entregue à Coroa Real da
Espanha e as duas histórias se encontram.

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Fig. 1: Pérola La Peregrina em sua montagem do século XIX e na de 1972. Fonte: CHRISTIE’S, 2011.p.65 e 79.

A biografia desta pérola revela um pouco da história da circulação de mercadorias no período


de construção dos grandes impérios ocidentais. Ela nos lembra de que as pérolas até essa época eram
as coisas mais valiosas sobre o planeta. Ela nos apresenta como os tesouros reais são amealhados.
Ela testemunha como os arranjos matrimoniais eram feitos entre os países. Ela mostra como joias reais
são passadas de geração em geração e como países as disputam como símbolos nacionais. Ela dá
indicações de como circulam as peças de alta joalheria. Ela está presente em qualquer explicação de
como as joias se tornaram provas de amor ou como Hollywood determina nossos gostos. Sim, ela, La
Peregrina.

Joias de família

Nem todas as joias tem a mesma sorte. Frequentemente joalherias, antiquários, brechós,
casas de leilão e penhores são procurados para venda, troca ou para criação de novas peças a partir
de antigas. O valor intrínseco das joias faz com que elas sejam percebidas como reserva de valor,
como mercadoria. Ao tentar entender seu real significado para o dono, algumas vezes surgem
narrativas intrigantes. Não é incomum que a pessoa se dê conta de um valor afetivo da peça e desista
de negociá-la. Outras vezes, a peça tem importância cultural e artística por seu desenho e pela
qualidade de sua realização e a recomendação é de entregá-la a um especialista em comercialização
de joias antigas, para que ela não saia de circulação.

Nos ateliês de joias costumam chegar peças de família de valor sentimental e das quais seu
proprietário não quer se desfazer, talvez pela compreensão do paradoxo ressaltado por Daniel Miller,
de que o “imaterial só pode se expressar pelo material” (MILLER, 2013. p.111). Algumas vezes o
proprietário busca sua ressignificação, outras quer mantê-la intacta e fazer uma manutenção para
coloca-lá em uso. Nem sempre de grande valor econômico, elas portam reminiscências, memórias
narradas por diferentes pessoas, toda uma série de lembranças. A seguir, apresento quatro objetos e

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as respectivas narrativas de seus proprietários, dos mais de 120 projetos de renovação de joias de
família, registrados através de fotos e entrevistas, no meu trabalho como joalheira nos últimos 5 anos.

Ao anunciar que ficaria noivo à família, um rapaz ganhou dos tios as alianças que haviam sido
de seus avós. Ele decidiu usar aquelas alianças para confeccionar peças inteiramente novas. O ouro
das alianças era de boa qualidade, mas com uma liga não identificada, o que foi bastante comum no
período entreguerras. Por isso, o material era muito quebradiço. Depois de inúmeras fundições,
laminações, forjas e consultas, optou-se por deixar o metal determinar a forma possível e foram feitas
microfusões nas rachaduras que insistiam em aparecer. Ao término do trabalho, o noivo emocionado
por considerar que todo esse processo com o metal retratava claramente os desafios de um
relacionamento, incorporou essa narrativa em seu pedido de casamento, materializando o vínculo entre
três gerações e duas famílias através daqueles objetos.

Uma mulher recebeu de sua mãe uma bijuteria antiga e deixou-a de lado por bastante tempo.
Depois que se tornou mãe, decidiu usá-la. As pérolas de vidro estavam maltratadas, num claro sinal de
muitos anos de vida. Entretanto, havia ali uma reminiscência. Ela fora comprada num cruzeiro de navio,
durante a lua de mel dos pais. O colar havia feito parte de toda sua infância, adolescência e habitava
muitas de suas melhores lembranças, por isso não merecia ficar abandonado. Ela queria muito usar a
peça que, depois do restauro, ganhou nova vida e poderá até atravessar mais gerações.

Um broche foi levado por uma cliente para avaliação com o intuito de desmanchá-lo, para
realização de novas peças. Ele era uma herança da avó e a neta achava impossível usá-lo nos dias de
hoje. Tratava-se de um bom exemplo da joalheria tradicional dos anos 50. Ao analisá-lo, foi constatado
que faltavam diamantes, quatro ao todo. Ela então se deu conta de que a avó já havia retirado essas
gemas para fazer pares de brincos para as bisnetas. Tal informação disparou uma série de lembranças
e a fez rever o valor afetivo do conteúdo do porta-joias herdado. Todas as peças foram distribuídas
entre ela, a filha e a sobrinha e colocadas em uso novamente.

Uma jovem queria usar um anelzinho de sua avó, mas ele estava apertado. Ela buscou o
atelier para colocá-lo no tamanho correto. Informada de que a gema era sintética, que o ouro era de
muito baixo teor e que a operação poderia danificar a peça irremediavelmente, ela insistiu que era
muito importante porque sua avó havia dado seu anel preferido para a neta mais velha e em alguns
dias seria o aniversário da senhora. Com muito cuidado e com o acompanhamento de um ourives
especialista em restauro, a peça foi colocada no tamanho, limpa, polida e apresentada numa nova
caixa. O gesto de ter restaurado o presente e usá-lo também todos os dias tal qual a avó estreitou
ainda mais os laços entre as duas, criando novos significados.

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Fig. 2: Alianças de casamento em ouro amarelo. Fig. 3: Colar com pérolas de vidro, resina e metal com banho de
ouro. Fig. 4: Broche com água-marinha e diamantes em ouro amarelo. Fig. 5: Anel com rubi sintético em ouro
amarelo. Fonte: Arquivo da autora.

As joias de família, passadas de geração em geração, são claramente evocadoras de


memórias individuais e coletivas. Elas revelam crenças compartilhadas e identidades construídas
coletivamente. Mesmo na ausência, laços podem ser recuperados e fortalecidos. Objetos legados,
presenteados, encontrados e até mesmo roubados parecem portar e atualizar esses vínculos. No
entanto, é preciso levar em conta que há também uma espetacularização de um passado inventado,
tão ao gosto das identidades ficcionais criadas para as redes sociais.

Joias confeccionadas para portar afetos

Participando de um grupo de estudos com outros joalheiros também nos últimos cinco anos,
tive a oportunidade de observar joias sendo criadas especificamente para marcar datas especiais e, em
alguns casos, incorporar lembranças ao cotidiano.

Talvez o caso mais carregado de afeto, tanto no sentido de afetar as pessoas que conhecem
sua história quanto nos sentimentos envolvidos para a família, seja o de uma árvore da vida inspirada
em obra de Gustav Klimt que foi realizada para ser fixada na lápide de uma jovem. Impedidos por
restrições de ordem religiosa de fazê-lo, os familiares pediram que a placa fosse transformada num
pendente que é usado em raras ocasiões. Ele hoje é considerado a joia mais importante do acervo da
família.

O que mais costumeiramente é solicitado a um joalheiro são anéis de noivado e alianças de


casamento com características especiais que revelem algo do relacionamento ou ao menos da
intencionalidade de criar uma peça exclusiva. Algumas vezes, uma peça igualmente marcante vem
para incorporar a lembrança das circunstâncias de sua aquisição, como uma grande conquista, por
exemplo. Este é o caso do anel realizado a pedido de uma cliente, para marcar um momento especial

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em sua vida. Também é o caso do colar encomendado como presente para uma senhora que
completava 80 anos e que tinha uma predileção por pérolas e corais.

Em alguns casos, temos a situação em que um objeto da memória familiar é incorporado a


uma joia para que possa estar mais próximo do cotidiano e do corpo de uma pessoa do que guardado
numa gaveta. Um fragmento de uma porcelana de família, que esteve sobre a mesa da infância de uma
cliente foi transformado num pingente, ganhando nova vida. Um seixo dos jardins de um local muito
significativo na vida de outra se tornou um anel para ser usado todos os dias. Ou ainda, um colar com
contas de mapas que refletem o amor pelas viagens. Em todos os casos, as joias tornam-se registro de
circunstâncias excepcionais.

Fig. 6: Pendente com diamantes em prata, de Claudia Kopelman. Fig. 7: Anel com diamante rosa em ouro branco,
de Eliane Roemer. Fig. 8: Colar com pérolas e corais em prata, de José Terra. Fonte: Arquivos dos joalheiros.

Fig. 9: Pendente com porcelana e gemas em prata, de Elka Freller. Fig. 10: Anel com seixo, turmalinas rosa e
Paraíba em prata, de Ana Passos. Fig. 11: Colar com fragmentos de mapas em papier mâché em prata, de Yone
Pañella. Fonte: Arquivo dos joalheiros.

Estes são apenas alguns exemplos de como as pessoas deliberadamente se apropriam do


suporte joia para conservar suas lembranças atualizadas e narrar suas vidas. A oralidade dos
testemunhos e a materialidade dos objetos se combinam para a construção de narrativas que
contribuem para o fortalecimento das identidades individuais, o que nos remete ao entendimento de si
através da escrita de si, como nos revela Michel Foucault (FOUCAULT, 2008).

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Joias e afetos de dois artistas plásticos joalheiros

Reny Golcman é uma das pioneiras da joalheria artística brasileira. Premiada, com sessenta e
cinco exposições em seu currículo, ela sempre exercitou a experimentação e a capacidade de se
apropriar de tudo que lhe cai nas mãos, sejam materiais, ferramentas, obras ou ideias. Há um caráter
de acumulação em seu ateliê. Tudo pode se tornar um novo trabalho e muitas das joias realizadas para
ela mesma estão compostas de souvenirs. Há o desejo de criar uma narrativa de suas experiências,
para poder saboreá-las com mais vagar. Vão-se construindo marcos, memórias a serem
compartilhadas com seus filhos, netos e bisnetos.

Da mesma forma, todas as datas especiais da família são marcadas com joias feitas por ela.
Trata-se de uma artista afetivamente ligada a sua obra. Cada peça fala de suas circunstâncias de
produção e de uso. Um exemplo disso é a carga emocional presente na série produzida com pedras
que haviam pertencido ao pai da artista e que, ao contrário de quase todo seu trabalho, receberam
nome: “Aconchego Enrolador”. Elas demonstram como uma peça é concebida e realizada pelas mãos
da artista, mostram uma face de seu fazer-pensar, desvendando a subjetividade presente em todas as
suas eleições.

Fig. 12: Peça da série “Aconchego Enrolador”, de Reny Golcman. Fonte: PASSOS, 2015. p.35

Seu ateliê, enquanto espaço da materialidade, revela muito das dimensões materiais da
memória. Nele, onde a memória organiza o passado e os projetos organizam o futuro, convivem lado a
lado desenhos de peças realizadas e peças apenas esboçadas, uma acumulação de objetos recolhidos
nas mais variadas situações, peças das mais diferentes épocas, pequenas coleções de conchas,
madeiras, caixinhas, colares étnicos. Um caos aparente acaba revelando uma grande ordem interior.
Não existe nenhuma hierarquia em torno de valor intrínseco ou valor afetivo. Tudo é valioso, tudo faz
parte de sua identidade artística. Os objetos não apresentam qualquer ordenação visível, porém cada
um deles guarda uma lembrança raras vezes nostálgica, frequentemente vivaz. É através deles que
podemos entender mais claramente a trajetória de vida da artista e sua carreira.

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Seu colega, Salvador Francisco Neto, também faz parte da geração de pioneiros da joalheria
artística brasileira e vem de uma família de ourives. Ele costuma narrar que, de tanto ver as joias
retornarem à oficina de seu pai para serem “modernizadas” por seu próprio autor, decidiu trabalhar com
materiais sem grande valor intrínseco, o que não as tornaria sujeitas à destruição. Este é
constantemente um dos problemas com a joalheria. Ela tem sua durabilidade garantida pelos metais
nobres, mas sua existência muitas vezes abreviada pelo alto valor. Suas experiências com aço, titânio,
plástico mesclados com metais nobres e gemas rendem peças esculturais. Nos últimos tempos, o
joalheiro tem inclusive produzido suportes para que as peças estejam disponíveis ao olhar mesmo
quando não estão postas sobre o corpo.

Fig. 13: Anel “Prisoner”, Salvador Francisco Neto, 2010. Fonte: LE VAN, 2012. p.39.

Seu ateliê é um exemplo de organização. Tudo está meticulosamente ordenado, disposto para
facilitar o trabalho. Equipamentos e ferramentas são limpos e polidos. O amor e respeito pelo ofício
herdado do pai estão presentes na coleção de ferramentas antigas, que contam a evolução do trabalho
na bancada de ourivesaria. Aqui e ali há pequenos objetos que fazem parte de sua carreira e ajudam a
narrá-la para os visitantes. Neste quase cenário, ele narra suas histórias para os interessados e forma
novas gerações de artistas e ourives.

Com expressões artísticas e espaços de trabalho diametralmente opostos, ambos têm com a
joia uma relação intensa e entendem que suas criações são impregnadas das circunstâncias e das
intencionalidades de sua realização. Para cada um deles, a materialidade de seu trabalho carrega
significados mais ou menos explícitos para aqueles que vão portar suas obras. Ambos são artífices-
narradores.

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Conclusão: a joalheria contemporânea e a questão da memória

Otto Künsli, joalheiro suíço baseado em Munique, criou em 1985-86, uma peça chamada Kette
(Corrente). Ela é composta de 48 alianças usadas, coletadas a partir de um anúncio de jornal. Ele não
só reuniu os anéis como também suas respectivas histórias. A carga emocional e simbólica nessa peça
é de tal ordem, que há pessoas que sentem repulsa ao vê-la, mesmo que numa fotografia. Para além
das memórias individuais e coletivas, ele criou uma nova joia que porta os afetos contidos em cada
uma das narrativas, como também nossas próprias crenças, valores e memórias sobre casamento,
união, amor e todas as suas possibilidades. Vestígios de relacionamentos passados podem ser
intuídos ao observá-la. Esta joia é acima de tudo um deflagrador de reflexões. Trata-se de uma obra
essencialmente conceitual. O que está em jogo é a compreensão da mortalidade, mas também da
imortalidade pela matéria de que são feitas as joias. A experimentação, a criatividade e a reflexão estão
na base de seu trabalho.

Fig. 14: Colar Kette, de Otto Künzli. Fonte: HUFNAGL, 2013. p.262.

Em 2013, uma grande retrospectiva de sua carreira no Die Neue Sammling (The International
Design Museum Munich) chamou atenção para sua trajetória exemplar como o joalheiro que ousou
romper com todos os cânones e embarcar numa viagem conceitual sem precedentes. De acordo com
Barbara Mass, “to be art, jewellery must have visual strength, an artistic concept and meaningful
semantics” (MASS, 2010. p.169)3. Künsli faz arte. Ele é conhecido como um joalheiro contemporâneo.

A joia, que anteriormente tinha valor histórico, social, econômico e/ou emocional, passa a ter
valor artístico, porém este valor não se oferece mais ao conhecimento pelas vias da estética e do
consumo, mas pelas vias do conteúdo e da comunicação, tal qual a arte contemporânea. Abrem-se,
com isso, dois caminhos para a joalheria. Conceitual ou formal, a joia passa a ser engajada, pelo
menos em sua modalidade nomeada como contemporânea. Ela se caracteriza pela discussão sobre
processos e narrativas, intensa experimentação com materiais, desenvolvimento de habilidades
técnicas tradicionais ou não, resistência cultural, presença no mercado global via internacionalização
                                                                                                                       
3
 Para  ser  arte,  a  joia  precisa  ter  força  visual,  um  conceito  artístico  e  uma  semântica  significativa  (tradução  da  
autora).  

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do circuito de comunicação, tudo isso sem um marco estilístico ou teórico definido, ainda tal qual a arte
contemporânea. Esta joia se apresenta como arte em diálogo com o corpo, ficando num lugar entre a
escultura, a instalação e a performance, sem abandonar totalmente seu caráter decorativo. Estão mais
dispostos a se apropriar dela aqueles que sejam capazes de se conectar com seu conteúdo, com seu
significado.

O presente texto fala do papel da joia na construção de narrativas organizadoras da memória,


da nossa identidade. Ele trata de algumas possibilidades de aproximação ao tema, com exemplos de
uma aproximação preliminar ao objeto de estudo. Sejam elas históricas, familiares ou realizadas na
contemporaneidade, as joias podem nos ajudar a dar ordem e sentido a nossas reminiscências. Como
Manuel Castro Caldas explica, citado por Cristina Filipe:

Num novo sentido alargado, a joia retém a sua eficácia e economia específicas enquanto
registro de leitura dos corpos e do modo como neles se inscrevem feitos, ambições, sonhos
e afectos colectivos e individuais, ao mesmo tempo em que sinaliza um dos lugares
disciplinares onde se criam e alteram, em sociedade, as regras do plano negocial, o próprio
xadrez da comunicação. (FILIPE, 2012. p.123)

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O design de moda e a construção de uma modernidade brasileira


Wardrobe design and the construction of a Brazilian modernity

Patricia Reinheimer (UFRRJ)


patriciareinheimer2007@gmail.com

Resumo: Procuro nesse artigo compreender a partir da trajetória de Olly Reinheimer o papel do
design de moda como parte do projeto de modernidade instituído pelo MAM-RJ na década de
1950. Sobressai também nesse estudo a importância da escolha estilística como parte
fundamental do processo de ingresso na rede de reciprocidade que se formava no incipiente
campo artístico brasileiro e as estratégias dos críticos de inserção tanto da artista como de sua
produção de tecidos e roupas nesse processo.

Palavras-chave: roupas, modernidade, design

Objetos e pessoas: o sistema de reciprocidade nas artes

Na década de 1950, houve modificações profundas no cotidiano das cidades grandes


brasileiras com a entrada dos eletrodomésticos nos lares das camadas médias e os automóveis
brasileiros nas ruas. A urbanização e a industrialização foram acompanhadas da ampliação dos
empregos urbanos nas áreas de serviços, administração, supervisão, planejamento, obras
públicas, construção civil, saúde, produção artística e cultural, entre outras. Era necessária uma
nova camada média, formada não mais por bacharéis, mas por engenheiros, arquitetos,
economistas, médicos, administradores, advogados e outras profissões que exigiram a elevação
do nível de escolaridade no país e a expansão do ensino superior.

A partir da década de 1950, a ascensão social coincidiu com mudanças socioespaciais


na cidade do Rio de Janeiro, orientadas por investimentos públicos em infraestrutura,
principalmente transporte. Copacabana foi o primeiro bairro a se verticalizar, na década de 1930.
Foi após a segunda guerra que o Estilo Internacional de arquitetura modernista transformou o
cenário urbano, embora Walter Gropius, Le Corbusier, Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright,
alguns de seus principais propagandistas e praticantes, já estivessem em atividade há muito
tempo (Hobsbawm, 1995).

A imigração do pré e do pós-Segunda Guerra teve papel relevante da estruturação do


mercado de arte moderna da segunda metade do século XX. Entre 1947 e o final da década de
1960, grande parte dos galeristas e colecionadores de arte moderna no Brasil, eram estrangeiros
que chegaram fugindo da guerra e/ou de suas consequências e tiveram papel fundamental na

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construção dos fundamentos da modernidade nas artes plásticas, teatro, cinema e televisão
(BUENO, 2005).

Uma parte da burguesia nacional que estava à frente das instituições modernas, museus
e bienais, era ligada aos meios de comunicação. A década de 1950 no Brasil representou uma
ampliação da rede de consagração de arte, com agentes especializados e locais fixos de
exposição, como salões, museus e galerias de arte. Entre 1947 e 1952 foram inaugurados o
MASP – Museu de Arte de São Paulo (1947); MAM-SP – Museu de Arte Moderna de São Paulo
(1948); o MAM-RJ – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1949); a Bienal de São Paulo
(1951); o Salão Paulista de Arte Moderna (1951) e o Salão Nacional de Arte Moderna, no Rio de
Janeiro (1952).

Os museus de arte moderna tornaram-se no principal espaço de formação, exposição,


legitimação e consagração dos produtores e produtos artísticos da época, e as bienais pólos de
informação e formação de correntes modernas (Bueno, 2005). No entanto, no Rio de Janeiro e
São Paulo, até 1959, os espaços de exposições da produção moderna eram principalmente as
lojas de móveis modernos que apresentavam a produção artística, fazendo as vezes de galerias.
A arquitetura teve um papel importante na consolidação do campo, pois uma parte do mercado
de arte moderna surgiu dessa iniciativa de alguns arquitetos e designers em expor em suas lojas
de móveis a produção dos artistas.

O interesse renovado na arte popular fez com que na década de 1950 se organizassem
viagens ao interior do País em busca de móveis antigos, estatuária barroca e objetos de arte
popular. “Muitos futuros marchands de arte contemporânea – como Fernando Millan e Jean
Boghicci – estiveram envolvidos nesta coleta, conduzida tanto por interesses públicos, quanto
privados”. Segundo Boghicci, Jânio Quadros indicou Mário Pedrosa para chefe de cultura e
Ferreira Gullar trabalhava na Fundação Cultural de Brasília. Ambos convidaram Boghicci e José
Carlos de Oliveira para coletar objetos da “cultura popular”1 pelo interior do Brasil. Durante três
meses os dois se dedicaram a essa tarefa (BUENO, 2005:390).

Segundo Bueno, “o núcleo de colecionadores responsável por um comércio regular era quase
todo de estrangeiros de origem judaica. O quadro só se modificou na virada dos anos 70, com a
                                                                                                                       
1 Dias e Lima, mostraram como a identificação do nacional supõe processos de coleta de objetos da cultura material
a partir de sistemas arbitrários de valoração e significação historicamente determinados que podem ser vistos como
processos mais amplos de estatização da vida social. Assim, parafraseando os autores, o sertanejo, o regional, o
folclórico, o popular, foram remetidos cada um a regimes distintos de concepção e enunciação que deram ensejo a
ações de colecionamento estatizado e de encenação nacional por meio dos dispositivos que são as exposições
(Dias & Lima, 2012: 203). De alguma forma, a constituição da arte “moderna” passou pelo mesmo processo, visto
aqui a partir de uma trajetória individual.

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consolidação do capitalismo no País, quando surgiu a figura do comprador de arte brasileiro”


(BUENO, 2005:390). Os nomes dos artistas da década de 1930 e 1940 ganharam valor
econômico através de marchands como Pietro Maria Bardi e Giuseppe Baccaro que buscaram
artistas consagrados, vivos, mas esquecidos pelos colecionadores brasileiros. Ismael Nery,
Tarsila do Amaral, Antônio Gomide e Anita Malfatti, foram colocados novamente em circulação
principalmente em leilões. Nesse contexto, a produção contemporânea encontrava um “circuito
comercial precário e altamente competitivo, onde a oferta era sempre superior à demanda”. As
galerias especializadas subsistiram economicamente recorrendo à estratégia que vigorou
também nos anos 60: as vitrines e os eventos promoviam os artistas da atualidade, mas as
vendas promoviam os nomes consagrados do modernismo das décadas de 1910 a 1940 (Bueno,
2005:398).

Foi nesse contexto que Niomar Muniz Sodré redefiniu a atuação do MAM-RJ2. Enquanto
de 1948 a 1952, quando Raimundo Otoni de Castro Maya o dirigiu, o projeto consistia
principalmente na construção de um passado como forma de almejar o futuro; de 1952, quando
Niomar Muniz Sodré assumiu a direção, a 1958, o museu ganhava como projeto a constituição
de um devir, estabelecendo uma mediação entre o futuro desejado e aquele que estava por vir.
Esse futuro desejado tinha grande influência dos fundamentos da Bauhaus e nomes como
Gropius, Mies van der Rohe, Paul Klee, Wassily Kandinsky, Malevich, El Lissitzky, Moholy-Nager
e outros. No entanto, o passado nunca saiu completamente do horizonte desse museu. Em
parte, a modernidade no Brasil foi construída, como na Europa, em comparação com o passado
de culturas ancestrais, só que não mais africanas. Não se tratava mais tanto de garantir a
legitimidade de uma nova forma de pensar e produzir arte, mas de produzir uma distinção entre
a modernidade europeia e a brasileira/latino-americana.

O surgimento na Europa, entre o fim dos anos 1940 e início dos 1950, de uma nova
concepção de museu teve importante papel nesse processo. Os ideais de popularização dos
museus deram início a um processo de espetacularização, abrindo essas instituições a um
público maior. Conferências, bibliotecas, exposições temporárias e exibição de filmes se
tornariam técnicas comuns a esses espaços de memória. No Brasil, Juscelino Kubitschek fora
eleito em 1950 prometendo 50 anos em cinco.

A construção do MAM foi também o estabelecimento de um sistema de dom e


contradom, onde colecionadores, mecenas e empresários convertiam capital social em
                                                                                                                       
2 De agora em diante, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro será sempre referido por sua sigla simples MAM
e o de São Paulo, MAM-SP

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econômico e capital econômico em social. Sendo um investimento de alto risco, com grande
probabilidade de insucesso, o fechamento do sistema de reciprocidade, ou seja, a retribuição,
era uma possibilidade, esperada na posteridade, nesse futuro que se pretendia construir
(Sant’Anna, 2011).

O objetivo da instituição passou a ser o conhecimento, produção e disseminação da arte


moderna. Nesse processo de identificação da arte moderna, a instituição, de fato, instaurou esse
objeto no mundo social. Inaugurado em 1949, no último andar da sede do banco Boavista, na
avenida presidente Vargas, a primeira exposição se intitulou Pintura europeia contemporânea.
Sant’Anna mostra que, ao contrário do que ocorreria na gestão de Niomar Muniz Sodré, essa
primeira fase do MAM foi voltada para uma tentativa frustrada de equiparação das realizações
brasileiras com aquelas da Europa. A arte social fora consagrada nos anos 1930 e 1940, tendo
Portinari e Di Cavalcanti como seus principais representantes. As temáticas
e formas nacionais estavam em continuidade com uma modernidade que
encontrava na brasilidade e na alteridade exótica certa relação com o
primitivismo das vanguardas europeias, sendo a alteridade enfatizada por
esses dois artistas mais relacionadas a classes sociais que a grupos
étnicos3.

A exposição de cerâmica do Nordeste, organizada em


1950, tinha relação com esse modernismo através, também, de
um pedido de David Rockefeller, irmão de Nelson Rockefeller,
fundador do MoMA para reunir peças para uma exposição de arte
folclórica e pré-colombiana das Américas. Esse mesmo ideal
estava por trás da proposta de promoção de “pesquisas
folclóricas” presente no estatuto do MAM. As discussões sobre o
folclore estiveram em voga na década de 1940 e Rodrigo Melo Figura  1:  Vestido  com  estampa  usando  
xilogravuras  de  literatura  de  cordel.  
Franco de Andrade, dirigente do SPHAN, era, além de membro Desenho  Olly.  Peça  da  “Coleção  Olly  e  
Werner  Reinheimer”
fundador da instituição, parte da rede de relações do presidente do
museu. A exposição de cerâmica no Nordeste era, assim, ao mesmo tempo, uma forma de
apresentação da alteridade para a civilização e de produção interna desse outro a ser
apresentado.

                                                                                                                       
3 Os principais temas de Portinari eram os retirantes e a vida nas pequenas cidades rurais, enquanto Di Cavalcanti
tinha como um de seus principais temas as mulheres pobres, dos cortiços.

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A entrada de Niomar Muniz Sodré, em 1952, como diretora executiva da instituição


estava fundada em uma concepção distinta de museu. O novo estatuto, instituído em 1951,
retirou a menção às “pesquisas folclóricas” e a substituiu por “estudos e realizações de artes
plásticas, inclusive populares”. Em lugar da busca de um folclórico distante como forma de
produção de uma simbologia nacional, condizente com os debates da década de 1940, o museu
procurava então se identificar com uma sociedade em transformação, tempo e espaço
compartilhados por grupos distintos, “inclusive populares”. O país, que por vezes surgia sob o
rótulo América Latina, procurava se ver não mais como um ambiente de atraso, mas com o
otimismo de uma modernidade para a qual assumia papel ativo. Esse “popular” viria a instituir
um novo “estilo de vida” específico de uma camada média intelectualizada, formada em grande
medida pelos imigrantes do imediato pré ou pós-Segunda Guerra.

Na administração Niomar Muniz Sodré, o MAM passou a ter seus próprios cursos de
formação artística, a divulgar as exposições nos periódicos da cidade4, a organizar conferências,
a publicar seus próprios boletins e a buscar uma sede própria. Tanto o museu, como os artistas
ali formados passaram a ocupar as páginas do Correio da Manhã, entre outros periódicos,
entrando na vida cotidiana de seus leitores. Yvonne Jean, repórter de arte do Correio da Manhã
– jornal de propriedade de Paulo Bittencourt, marido de Niomar Muniz Sodré –, junto com Mário
Pedrosa, Jayme Maurício e Flexa Ribeiro produziram inúmeras críticas positivas sobre o museu,
suas atividades e os artistas que com ele tinham relação direta.

À percepção de que o Brasil precisava de um lugar onde exibir a arte moderna se


substituiu a ideia de que era preciso criar uma demanda por arte moderna. Como parte desse
projeto, uma nova sede foi elaborada e desenhada por um reconhecido arquiteto modernista,
Eduardo Reidy. O prédio foi erguido no mais novo signo de modernidade brasileira, o Parque do
Flamengo, onde a “natureza”, através do paisagismo de Burle Max, foi acomodada às
necessidades da tecnologia, através de um urbanismo que privilegiava com suas vias expressas
o principal representante daquele momento, a velocidade.

Sant’Anna (2011) chama atenção para o fato da obra da sede definitiva ter começado
pelo bloco escola, o que denotava a “vocação didática” do museu e também seu projeto de
construir uma arte moderna brasileira. Os cursos de formação começaram em 1952, com o
atelier livre, de Ivan Serpa, aulas de pintura por Milton Goldring e modelagem por Margareth
Spencer. Nos cursos, alunos e professores construíam novos sentidos para a prática artística.
                                                                                                                       
4 Vale lembrar que nessa época, não existia outra fonte de informação que a impressa. As pessoas muitas vezes
liam mais de um jornal e alguns periódicos tinham uma versão matutina e outra vespertina.

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Professor rigoroso, a didática de Ivan Serpa conjugava uma liberdade de criação, que excluía
outras possibilidades técnicas e expressivas – como o ensino da perspectiva, por exemplo – e
severas críticas como forma de construir sentidos de modernidade. Como ele, outros professores
enfatizavam técnicas de expressão e excluíam outras como forma de construção dessa nova
linguagem. Os cursos de arte do MAM procuravam formar aqueles que poderiam ser, mais tarde,
ali exibidos, mas também eram frequentados por um público de donas de casa entediadas5 e
provavelmente pessoas com outros objetivos. Todos esses constituíam parte de um público em
formação para a arte moderna que ali se produzia.

A importância dos cursos de arte no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

Olly começou sua formação em arte com aulas de cerâmica ministradas por Margareth
Spencer em sua casa, em Del Castilho. A transferência das aulas para o MAM, aproximou Olly
de outros cursos. Assim tornou-se aluna de Renina Katz (Cor e forma6), Fayga Osgtrower
(Composição), Milton Ribeiro (História e teoria das artes gráficas), Kazuko Abe (Tintura-pintura
em tecido a base e cera), René Leblanc (Desenho), Ivan Serpa (Pintura), Milton Golbring
(Pintura), Zélia Salgado (Pintura), Santa Rosa (Pintura), Frank Schaefer (Pintura), Hilda
Schulenberg (Pintura), Roberto Delamonica (Gravura), Johnny Friedlander (Gravura).

A importância que o MAM-RJ teve na trajetória de Olly pode ser a razão para o
desaparecimento em seu currículo e discurso de outras atividades de formação. Assim, na
década de 1940, Olly já tinha feito cerâmica na Galeria Exclusividade7, onde conheceu Mark
Berkowitz. No entanto, no que tange à cerâmica, só as aulas com Spencer são citadas em seus
currículos e nos periódicos que mencionam seu trabalho8.

                                                                                                                       
5 Frederico Morais comenta isso em relação aos cursos de formação da década de 1960 (entrevista à autora, julho
de 2014). É muito provável que também tenha sido o caso na década de 1950. Simioni argumenta que uma das
formas de manutenção das mulheres fora das esferas artísticas hierarquicamente mais conceituadas ao longo do
século XIX foram as técnicas de representação do corpo humano que exigiam aulas com modelos vivos (Simioni,
2010). Na modernidade e, principalmente, com o advento da abstração e das novas formas de expressão houve
uma abertura maior para a participação das mulheres, não mais apenas em sua dimensão artesanal, mas da prática
artística consagrada. Talvez por isso, Friedan (1971) sugeriu em 1963 que as artes, à primeira vista, pareciam ser a
“solução ideal” para as mulheres. Contanto, mesmo com o advento da modernidade, tenha aumentado a
possibilidade de ingresso de mulheres no campo artístico, estas ainda tinham menos chances de alcançarem
reconhecimento que os homens.
6 Parte do curso consta na coleção Olly e Werner Reinheimer.
7 De acordo com o depoimento de Edith Weitzfelder, Olly já dava aulas de cerâmica em sua casa no Bar 20, na

década de 1940.
8 Olly fez também aulas de fotografia no ArtCenter, em 1974, mas isso também não é inserido nos currículos que

deixou organizados. Na carta CO-97, ela fala em Photosessions. Ela poderia estar se referindo a sessões de
fotografias de seu trabalho, mas parece menos provável e há ainda anotações sobre fotografias em um bloco, como
se fossem anotações de aula.

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Se o horizonte político brasileiro da década de 1950 era o desenvolvimentismo, com o


progresso como lema, os museus modernos se impunham como símbolos dessa modernidade,
tendo sido ao longo das duas décadas seguintes uma das principais formas de representar esse
futuro planejado. Mas mais do que o sentido simbólico do próprio museu, a rede de relações que
Olly cultivou a partir dos contatos que a instituição possibilitava inseria a artista em circuitos de
trocas, direta ou indiretamente relacionados à instituição. Burle Max, Niomar Muniz Sodré, Pietro
Maria Bardi, Lina Bo Bardi, Jean Boghicci, Mário Pedrosa,
Yvonne Jean, Jayme Maurício, Ivan Serpa, Norman
Westwater, Karl Heinz Bergmiller são alguns dos atores
sociais que contribuíram, cada um a seu modo, para a
constituição de um campo artístico relativamente autônomo
no Brasil, assim como estimularam as discussões sobre
design e criaram as condições para o surgimento da
primeira associação de design, assim como a primeira
escola de design no Rio de Janeiro – ABDI e ESDI9 – nas
três décadas após a segunda guerra mundial e que
constituíam parte importante da rede de relações de Olly.

A participação de Olly nos ateliês do MAM foi


Figura  2:  vestido  da  coleção  Carajá,  exposta  
decisiva para a construção de uma carreira de artista e para no  MAM  em  1969,  com  ambientação  de  
Bergiller.  Na  foto,  Olly  ajeita  o  vestido  no  
a produção de uma obra no sentido da reiteração de corpo  da  modelo

confirmações que a apresentação de uma carreira de artista


sugere10. Nesses ateliês forjava-se muito mais do que o aprendizado técnico, criava-se um
sentido de pertencimento relacionado a esse um grupo de intelectuais cujas profissões
vinculavam, de formas variadas, a indústria e a estética. Dentro do MAM, os grupos eram mais

                                                                                                                       
9 Associação Brasileira de Desenho Industrial e Escola Superior de Desenho Industrial, respectivamente.
10 Uso a noção de carreira derivada daquela produzida por Dabul para pensar a pintura contemporânea, isto é, um
“repertório de eventos relacionados à produção [artística] distribuído num tempo de modo a demonstrar ascensão, e
construído e acionado para atestar a capacidade de um ator social criar significado por meio da [produção]. Flexível
e altamente vinculada às circunstancias de sua apresentação, uma carreira pode incluir desde iniciativas que
comprovam aquela capacidade de modo consensual junto às pessoas com quem um [artista] se relaciona (como um
prêmio em determinado salão, uma exposição em certo local e com temática valorizada), até a apresentação de
suas relações com um conjunto de especialistas, perceptíveis e valorizadas apenas pelos que o mapeiam (como ter
trabalho no atelier de um pintor conhecido pelo professor e por alguns colegas)” (2001:194). A carreira então é a
afirmação de percursos de criação ao longo do tempo, afirmada por eventos que confirmam a capacidade de um
ator social de criar significados com sua produção artística, indicando também a rede de relações que operam essa
confirmação.

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ou menos definidos e implicavam a constante inclusão e exclusão de membros. Alguns como o


Grupo Frente11, por exemplo, ganharam destaque.

Diversos foram então os sistemas de reciprocidade que se formaram a partir do MAM


constituídos pelos membros fundadores da instituição (SANT’ANNA, 2011), os críticos de arte
que contribuíam para a visibilização das atividades e propostas do museu e, com os ateliês,
acrescentou-se os artistas e suas produções. Olly, por exemplo, constituiu uma coleção de arte
com diversas obras que foram resultado de trocas comentadas ao longo de sua vida, ou
enumeradas nos manuscritos deixados. É em um desses que ela comenta como estudar com
Serpa era difícil, pois ele parecia esperar sempre mais, até ver seus lenços pintados e sugerir
uma trocai. Desse sistema de trocas generalizadas (MAUSS, 2003), em que todos estão
reciprocamente implicados, a sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 1995) produz seus
valores, ao mesmo tempo, que os produtos trocados constituem as subjetividades de seus
consumidores (MILLER, 2009).

Esses atores sociais e instituições construíam dialeticamente uma nova hermenêutica da


modernidade através da circulação dos objetos, valores e informações que atravessavam as
dimensões institucionais – bienais, museus, jornais –, mas que podiam também ser encontradas
nas casas particulares de grande parte dos atores envolvidos na produção e reprodução desse
novo repertório. A doação de obras ao museu12 e as trocas de obras entre si estimulavam o
ingresso de outras instituições e atores sociais nesse sistema, expandindo-o e abrindo espaço
para outras participações no processo de construção dessa modernidade.

É assim que Marília Rodrigues lembra de Olly justamente a partir das trocas:

O que eu acho que é um traço muito importante da Olly é a generosidade


dela como artista e como pessoa. De trocar informações, de abrir, de
incentivar. A diferença de idade minha para ela era enorme. É claro que eu
comecei a trabalhar e ter ajuda logo, mas é claro que na etapa que eu estava
e na etapa que ela estava eu recebia muito mais do que poderia dar. Então
essa generosidade é um traço importantíssimo. Não foi só eu que recebeu
não. Ela era generosa, aberta. Quando ela organizava aquelas nuit de
parfum, com aquelas roupas fantásticas, inclusive na Petite Galerie do
Franco Terranova, era uma festa deslumbrante, aquelas modelos todas com
as roupas da Olly. Roupas lindíssimas13.

                                                                                                                       
11 Formado por alunos do curso de Ivan Serpa, mais o próprio professor.
12 Quando indagado em 1998, o MAM tinha três obras de Olly. Ainda não investigueis em que circunstâncias foram
adquiridas pela instituição.
13 Depoimento concedido à autora, em 1998.

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Diversos entrevistados ressaltaram o que chamaram de generosidade. Ainda que essa


possa ser uma atribuição individual, uma de suas consequências é social, ou seja, a troca.

A “generosidade” é uma das formas através da qual se oblitera ao mesmo tempo o


caráter interessado da dádiva no campo artístico e cultural e uma forma de contrato através da
qual aquele que tem a oferecer converte sua riqueza em relações sociais fundadas em dívidas
com a obrigatoriedade tácita de retribuir ainda que muitas vezes impagáveis. Os valores
ofertados nos atos de generosidade, como os cobres do potlatch, são “signos de riqueza e meios
de troca” (Mauss, 2003) que circulam em esferas específicas. A generosidade é uma forma de
dar muito específica porque em geral evita a retribuição. O caráter voluntário encobre a
dimensão econômica, no sentido amplo, e obrigatória da retribuição. As prestações são
espontâneas e desinteressadas, mas ao mesmo tempo impostas e interessadas e é nesse
processo de receber e retribuir que as estruturas sociais e as hierarquias se constroem e
destroem.

Um exemplo de uma relação interrompida ou desestabilizada devido ao entendimento


equivocado quanto ao que era devido a quem está num rascunho de carta que Olly deixou entre
seus documentosii. Marina, a destinatária, tinha, em algum momento, conseguido trabalho para o
marido de Olly, Werner. Marina parecia estar adoentada, ou assim se apresentar na tentativa de
justificar a encomenda feita à Olly de dois trabalhos e o cancelamento dos mesmos depois que
os serviços já estavam em andamento.

A carta lista as várias trocas desenvolvidas entre as duas partes, ao longo do tempo,
questionando o cancelamento das encomendas como desrespeito à pessoa e ao trabalho de
Olly, ainda que reconhecendo as diversas coisas que a Marina teria feito para ela e seu marido.
A variedade de formas que essa troca assumiu ao longo do tempo, além do caráter
desinteressado usado como modelo formal de comportamento no campo artístico e a
continuidade da troca ao longo de períodos extensos que implicam em mudanças no estatuto
dos participantes no circuito parece ter aberto espaço para desentendimentos quanto aos
critérios de avaliação das diversas moedas de troca possíveis de serem usadas.

É indicativa da importância que tinham esses sistemas de objetos (BAUDRILLARD,


2004), dos quais os artistas eram parte, os manuscritos em que Olly detalhou, sobre alguns
objetos de sua coleção, a quem pertenciam, em que situação foram trocados e/ou a quem
deveriam ser devolvidos. A partir dos objetos, ela contou também um pouco de sua relação com
as pessoas: o quanto gostava, o que um dia lhe entristeceu, que momento da relação a deixou

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feliz. São objetos carregados de afetos que persistem e mantém tanto a lembrança de Olly,
como a presença sutil de toda essa rede de relações que participou de sua trajetória de vida: “O
crítico francês que tenho emprestado de Sérgio Campos Mello. As revistas, devolvi. O livro que
ganhei de Carmo ele queria ter emprestado e não levou. Também deixou o papel grosso que eu
dei para ele14”iii. O livro sobre a coleção Roberto Marinho foi presente do Marc Berkowtiz, de
quem diz ter ganho ainda outros.

Participar de exposições, coletivas ou individuais,


era também parte desse sistema. A primeira
exposição individual de Olly foi realizada, em 1958,
na Galeria Contemporânea, a convite de Norman
Westwater, designer e proprietário da loja de móveis
Mobília Contemporânea, onde ficava a galeria. Sua
formação em design foi o que inseriu Norman
Westwater nessa rede de relações. Veio para o
Brasil no início da década de 1950, fugindo de uma

Figura  3:  reunião  na  casa  de  N orman  e  Nedra  Westwater.  Vê-­‐se  
Europa devastada pela guerra. Em meados dos
a  cabeça  de  Olly  atrás  de  Norman,  que  está  em  pé  ao  lado  de  
Nedra,  à  esquerda.
anos 1950, o MAM começou a anunciar a
construção da Escola Técnica de Criação. Baseada
nos princípios da Escola de Ulm, o objetivo era formar profissionais técnicos para intervir no
mundo e estava centrada no desenho industrial. No entanto, a Escola ganhou independência e
tornou-se uma instituição autônoma, a Escola Superior de Desenho Industrial - ESDI
(SANT’ANNA, 2011), onde Norman Westwater foi professor no início da década de 196015.

                                                                                                                       
14 Usei a fonte Adobe Hebrew na expressão “que tenho emprestado” para chamar atenção à “licença poética” de
quem não tem o português como primeira língua e que, como Olly e Werner, muitas vezes usam estruturas
gramaticais ou sotaques que se mantêm depois de muitas décadas falando o idioma novo. Esse recurso tem por
objetivo indicar que a compreensão do que está escrito tem um “colorido” distinto da fala de um brasileiro nato,
lembrando a condição de imigrantes dos atores sociais. “Que tenho emprestado” aqui tem o mesmo sentido de “que
emprestei” ou “peguei emprestado”.
15 Na década de 1960, Norman Westwater foi também um dos primeiros membros da recém instituída ABDI

(Associação Brasileira de Desenho Industrial). O arquivo pessoal de Westwater encontra-se na Inglaterra, com sua
viúva, Nedra Westwater. Trata-se de um acervo riquíssimo sobre a década de 1950 e início de 1960, quando
Norman participou do contexto de formação do design brasileiro, através do desenho de móveis decorativos,
mobiliário para banheiros e design de cenários para teatro. Em 1968, ficou responsável, junto com Karl Heinz
Bergmiller, pela representação inglesa da primeira Bienal de Design do Rio de Janeiro, a Desenho Industrial 68,
realizada no MAM.

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Segundo Ollyiv (s.d.16), Mario Pedrosa passou horas vendo a exposição na Galeria
Contemporânea, qualificando seu trabalho como musical. Foi então que Niomar Muniz Sodré a
convidou para expor no MAM. Ao lado de grandes exposições, o MAM organizava exposições de
seus alunos, “apesar de ter exposições solicitadas constantemente e de recusá-las com a
mesma frequência e rapidez com que eram feitas” (SANT’ANNA, 2011:117). Nos boletins
internos, as turmas infantis de Ivan Serpa ganhavam destaque e todo os anos, durante a década
de 1950, os trabalhos desenvolvidos pelas crianças eram expostos. Em 1953 as obras dos
alunos de cerâmica foram apresentadas ao lado das peças de mestre Vitalino. “Popular” e
“erudito” constituindo essa modernidade planejada. Em 1955, o Grupo Frente, movimento
formado nas aulas de Ivan Serpa, realizou sua segunda mostra, no MAM.

Estratégias didáticas para atribuição de sentido à nova hermenêutica

Se os textos dos críticos de arte são importantes ferramentas de legitimação de novas


propostas artísticas, outros dispositivos também devem ser levados em consideração ao se
pensar o surgimento de qualquer estilo artístico. Olly deixou algumas anotaçõesv que são
indícios de algumas das estratégias didáticas para atribuição de sentido à abstração. Trata-se de
um resumo de como se pensa a questão do movimento e do equilíbrio na arte moderna, a partir
do uso da linha. Diversos comprimentos, espessuras e formas que a linha pode assumir para dar
movimento ao quadro. Essas formas de representação gráfica e os espaços que elas criam são
associados à fala e à música.

Linhas que podem ser finas ou grossas; interrompidas, como a frase falada; com a voz
aumentando ou diminuindo, como se canta; podem ser onduladas, como no barroco. São
convenções que se constroem sobre as formas de apreciação de uma representação visual que
não tem um tema, é abstrata17. Os cursos do MAM foram assim tão importantes para a
construção da hegemonia da abstração, como as defesas públicas de Pedrosa em seus textos.
As convenções criadas e aprendidas nas aulas construíam uma linguagem própria sobre arte e
criação artística cujos significados eram partilhados entre alunos, artistas e intelectuais e
disseminados entre um público mais amplo nas colunas de arte dos periódicos.

                                                                                                                       
16 Suponho que todos os manuscritos que constam na coleção Olly e Werner Reinheimer sejam dos anos de 1985 e

1986, intervalo entre o segundo AVC e o terceiro que causou a morte de Olly. O segundo AVC tirou sua mobilidade
do lado direito e, em um desses escritos ela diz estar escrevendo com a mão esquerda. Essa datação também é
deduzida do conteúdo dos escritos. Ali ela declara sua vontade de ter um dia escrito um livro sobre seu trabalho e
apresenta detalhes de sua trajetória pessoal e familiar, enumera parte de sua rede de relações, entre outras coisas.
17 Esse cânone é usado hoje na leitura de qualquer representação, mesmo figurativa. Um desenho de nu a lápis, por

exemplo, é considerado mais ou menos estático de acordo com a estabilidade da espessura das linhas que o
constituem.

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Olly expôs em 1960 sua produção em tecidos no MAM do Rio. A


exibição foi intitulada Tecidos Olly. A exposição consistia em
tecidos pendurados, com pinturas sem figuração. Tratava-se de
combinações de cores, linhas e formas abstratas. Os tecidos
pareciam telas, sem chassis. Infelizmente não encontramos
nenhuma foto colorida dessas primeiras exposições, mas os
comentários de críticos de arte e outros atores sociais atestam
para a recepção que as combinações de cores que Olly usava
causavam. João Cabral de Melo Neto, em 1960, escrevia em uma
dedicatória à Olly dizendo que ela fazia “poesia com as cores”18vi
e Frederico Morais, em 1975, chamava atenção para “uma das
qualidades maiores de Olly [que era] sua sabedoria cromática”.

Quase todos os entrevistados comentaram sobre o colorido dos Figura  4:  Roberto  Burle  M ax  abraça  Olly  em  
sua  exposição,  MAM-­‐RJ,  1960.
trabalhos de Olly.

A exposição do MAM foi no ano seguinte para o Museu


de Arte Moderna da Bahia, a convite de Lina Bo Bardi e
Odorico Tavares, e para o II Salão anual de Curitiba, no
Museu de Arte Moderna de Curitiba. A arquiteta Lina Bo
Bardi, segunda esposa de Pietro Maria Bardi,
contribuíra, em 1951, para a implantação do Instituto de
Arte Contemporânea (IAC), e a criação de uma coleção
de indumentária (ou Seção de Costumes, como Bardi
preferia) e a realização de dois desfiles de moda no
MASP. Odorico Tavares hospedou Olly em sua casa
durante o período de montagem, até a abertura da
exposição e a apresentou a artistas locais.

Figura  5:  Exemplo  do  colorido  de  Olly,  circa   Odorico Tavares (1912-1980) apoiou a criação do
1974
Museu de Arte Moderna da Bahia, projetado e dirigido
pela arquiteta Lina Bo Bardi, Pietro Maria Bardi e Assis
Chateaubriand. Portanto, assim como no Rio de Janeiro, a
participação da mídia escrita foi fundamental para a divulgação

                                                                                                                       
18 João Cabral de Melo Neto. Antologia poética. Editora do autor. 1960.

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Figura  6:  Detalhe  de  página  da  revista  DN,  


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do MAM e sua proposta, toda a estrutura dos Diários Associados estava por trás da construção
do MAM-BA. Em uma das divulgações da exposição de Olly em Salvador que saiu na revista
DN19vii, vemos a foto do trabalho de Olly ao lado de uma coluna sobre "A pintura alemã através
do século". O artigo fala da semelhança entre pintores alemães dispersos por outros países e
sua relação como expressionismo (Der Blaue Reiter, Die Brücke etc.) e nomes como Kokoschka,
Emil Nolde, Pechstein, entre outros.

O artigo é ilustrado com dois tecidos de Olly, pendurados em uma parede, na parte superior da
fotografia, expostos à maneira de telas de pintura. À frente dos tecidos um casal observa de
costas para o leitor. Olly não é mencionada no texto, e nem precisa. Uma semana antes, um
artigo na mesma revista falava da trajetória de imigração da artista, assim como de seu trabalho
e da divisão do mesmo com as ocupações domésticas (Revista DN, 1961)viii. Durante a
exposição em Salvador, Jayme Maurícioix e Clarival do Prado Valadaresx escreveram sobre ela
no Correio do Manhã, fazendo elogios a suas roupas e exaltando seu sucesso em Salvador.

Não se trata de coincidência a foto do trabalho de Olly ilustrar o artigo sobre os


expressionistas alemães. Heinich (1991) chamou atenção para as formas de inserção de artistas
modernos no contexto da história da arte. É necessário a criação de um sistema de
interpretações no qual o nome do artista seja relevante para diversas áreas distintas. Uma vez
identificado esse sistema, o artista é diferenciado de seus pares e em seguida críticos
especializados estabelecem sua grandeza.

Os discursos autorizados, de professores, críticos de arte e galeristas com suas


avaliações públicas, seja em aula, seja em textos para exposições ou colunas de jornal,
estabelecem relações do trabalho com a história da arte, criando espaços onde o artista pode ou
não vir a ser inserido seja pelos historiadores da arte, seja por historiadores, psicólogos,
sociólogos e antropólogos. Dispor de um discurso autorizado no período em que está produzindo
é uma das formas de um artista confirmar sua capacidade de produzir significado para uma rede
de atores. Expor seu trabalho em mostras, receber prêmios e ser adquirido por uma clientela são
outras formas de afirmação dessa capacidade, conduzindo ao que poderia ser denominado uma
carreira artística.

O expressionismo era o espaço na história da arte, a diferenciação ficou a cargo de


Jayme Maurício, ele mesmo crítico especializado contribuindo, junto com Pedrosa, Berkowitz e
outros para o estabelecimento de sua grandeza. A diferença entre Olly e outros artistas estaria
                                                                                                                       
19 Não consegui informações sobre essa revista.

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no fato de fazer uma “moda brasileira” que, Maurício associava ao interior design, o industrial
design e a tipografia20. Defendia o fenômeno como tipicamente psicológico, assim como
econômico e ainda descrevia suas criações como colocando problemas artísticos: “Olly será
talvez a mais qualificada contribuição ao que se pode chamar a “moda brasileira”, resolvendo
com suas finas criações em algodão e seda, o problema de cor e forma” (Maurício, 1961). No dia
seguinte, Clarival do Prado Valadares (1961) complementou: “Se, Olly usa o pano de costurar
para sua pintura, ela o faz com a mesma dignidade do poeta que escreve seus poemas sobre
qualquer papel”. Psicologia, literatura, história e a indústria estavam contribuindo para a
construção do sentido e do valor do trabalho de Olly.

Nas exposições e mostras podemos perceber algumas das relações sociais mobilizadas
pela artista. Assim, fica claro como as carreiras estão relacionadas a pertencimentos sociais. A
análise que Heredia e Palmeira (2006) fazem do voto pode ser pensada como referência para
refletir sobre a questão dos estilos artísticos, não como escolhas individuais, mas “adesões”. Os
autores questionam a intencionalidade e a individualidade na escolha de candidatos políticos: a
“percepção social que as pop[4ulações têm dos processos e atividades em que estão
envolvidas, bem como os significados sociais que investem em suas ações, têm consequências
objetivas para os resultados dessas ações, sugere-nos que o voto não é necessariamente uma
empresa individual, que a questão da intencionalidade pode não ser pertinente, e que não está
necessariamente em jogo uma escolha; que a importância das eleições pode não se resumir à
indicação de representantes ou governantes e que sequências aparentemente naturais (...)
podem não ser matéria de lógica, mas de "sócio-lógica" (2006: 38).

Da mesma forma, os significados investidos nas ações de produzir e consumir


determinados livros, objetos, roupas têm consequências objetivas para os resultados dessas
ações. Assim, a escolha de determinados “partidos estéticos” não é uma empresa individual,
mas de uma sócio-lógica. A analogia com a ideia de uma “política” específica da arte, ainda que
não com o sistema de adesão descrito por Heredia e Palmeira, está presente no discurso de
Mário Pedrosa ao assumir a direção do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1960, quando
declarou que sua “militância estética” tinha chegado ao
                                                                                                                       
20 Só no final da década de 2010 a moda foi integrada ao campo do design, passando os cursos voltados à

indumentária a usarem estruturas acadêmicas semelhantes aos usados nos cursos de design (Santos, 2014). A
tipografia, por sua vez, ganhou contornos de modernidade com Jan Tischichold (1902-1974) e a possibilidade que o
livro em brochura abriu na década de 1930 (Hobsbawn, 2005). Influenciado por sua visita a Bauhaus de Weimar,
Tischichold escreveu um livro-manifesto sobre a tipografia moderna, onde condenava todas as fontes, menos as
“sem serifa” (chamadas de Grotesk em alemão). Também defendia a não centralização dos títulos e outras regras
do design modernista. O design feito por Bea Feitler (1938-1982) para a revista Senhor foi em grande medida
influenciado por essas regras.
Figura  7:  Slide  produzido  para  apresentação  em  exposição  
de  roupas  de  Olly,  em  1974.  Interessante  usar  a  foto  como  
metáfora  para  pensar  a  teia  de  significados  que  Olly  estava  
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ajudando  a  tecer,  construindo,  junto  com  outros  atores,  
novos  sentidos  para  a  ideia  de  modernidade  no  Brasil
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fim. Pedrosa falava de um sistema no qual defender ou adotar certas ideias significava participar
em diferentes arenas. Essa ideia fundamentou a noção de “partido estético” aqui utilizada,
tomando os movimentos que se sucederam no modernismo das décadas de 1950 a 1980, no
Brasil, como sistemas ideológicos mais ou menos formalizados com porta vozes, defensores,
seguidores e muitas vezes, instituições específicas de formação ou apoio.

Como no sistema de “adesão” ao voto (HEREDIA E PALMEIRA, 2006) associar-se a


determinado discurso ou partido estético, em termos verbais ou visuais, é então associar-se a
um conjunto de atores que detém postos de mais ou menos influência, contribuindo para a
ampliação ou redução do poder de nominar novos artistas, novos estilos, produzir novas
exposições, emitir pareceres etc. Pesa também a declaração pública sobre o “lado” escolhido na
disputa. No campo, a interação entre os atores acontece a partir da definição de “estilos”, ou
linhas de trabalhos que autorizam nomes (convertem pessoas comuns em artistas).

Ter em casa quadros abstratos e objetos que se relacionam a um determinado estilo


artístico, é também associar-se a um estilo de vida, o que equivale a uma declaração de
afiliação, de adesão. Enquanto o voto é a expressão de uma ligação com um candidato em
particular, independentemente de plataforma e partido, envolvendo lealdades pessoais, a adesão
a um “partido estético” é a adesão a uma rede de atores e instituições através de um conjunto de
objetos e valores. Os vértices dessas relações são os objetos artísticos, no sentido mais amplo
possível incluindo as manifestações contemporâneas, como performances, por exemplo.

Se os cursos no MAM criavam um sentido de pertencimento institucional, a escolha de um


“partido estético” criava uma espécie de conivência assimétrica com aqueles com quem esse
artista estabeleceu compromissos de reciprocidade, seja com seu público, galeristas, críticos de
arte e outros artistas. Esse “partido estético” torna-se uma referência para as ações cotidianas e
uma instância legítima (fundada na reciprocidade) a quem recorrer em determinadas situações
como a indicação para trabalhos, empréstimos de obras para decorações e/ou exposições e
indicações de compradores. A escolha de determinado “partido estético” não se dá
exclusivamente em relação aos interesses na participação em um grupo de atores específico,
mas a participação em determinado grupo é decisiva para a escolha do “partido estético”.

Como no “tempo da política” entre os


camponeses, a “política estética” entre os atores
do campo artístico, em determinados períodos
está em maior evidência – como na época de

Figura  8:  Bonecas  em  tecido  Paraca  da  coleção  Olly  e  Werner  
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Reinheimer.  Essas  bonecas  foram  usadas  em  um  cartaz  de  
exposição  de  Olly,  na  década  de  1960
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bienais, por exemplo –, é uma atividade permanente. No entanto, ela não se circunscreve
apenas a um período determinado. As facções são somente tentativa e temporariamente
delimitadas e definidas e é só em situações específicas de conflito que as facções são
identificadas. Como no voto, ainda que essa adesão seja expressa através da noção de uma
decisão individual, os sinais objetivos dessa escolha extrapolam o indivíduo. Os sinais se
espalham pela casa, na participação da família – em geral de cônjuges e de amigos.

Da mesma forma como a adesão a determinado “partido estético” pode ser pensada a
partir das disputas entre “estilos” artísticos – figurativo, abstrato, concreto, neoconcreto –, as
influências também podem ser declaradas, ou não. No trabalho de Olly, a declaração de
influência dos tecidos Paraca é reforçada pela arrecadação de dinheiro para os refugiados de um
terremoto em Lima. A forte influência oriental (japonesa, chinesa, tailandesa) não aparece em
nenhuma forma de discurso. Não fossem os livros de referência e os modelos de roupas, essa
influência não poderia ser mencionada.

Considerações finais

Os atores sociais e as instituições museais modernas da década de 1950 construíam


então uma nova hermenêutica da modernidade através da circulação dos objetos, valores e
informações em esferas distintas. Nas salas de aulas dos cursos do MAM usava-se como uma
de suas ferramentas didáticas a valorização da abstração construindo a ideia da expressividade
de formas e cores através da associação entre cores, texturas e formas com a fala e a música.
As galerias de arte moderna, os museus de arte moderna e as bienais de São Paulo, circulavam
as exposições dos artistas formados no MAM tendo a mídia impressa como vitrine e difusão dos
valores em questão usando artifícios como o da associação de artistas locais com movimentos
internacionais reconhecidos.

A adoção da abstração foi na década de 1950 uma forma de aderir a esse projeto de
modernidade que procurava, por um lado, retirar a moda de uma dimensão de futilidade e, por
outro, construir a ideia de uma moda brasileira como forma de questionar a legitimidade
exclusiva da moda europeia. Nesse processo, o sistema de reciprocidade era fundamental para
a constituição de valores que passavam pela construção de coleções privadas cujos objetos
representavam a modernidade industrial sem perder a autenticidade brasileira, traduzidas em
termos do popular e do rústico.

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Assim, tanto quanto a filiação ao abstracionismo, importava o fato das produções


artísticas de Olly estarem relacionadas ao mundo do design, o que condizia com o projeto
político do MAM de estimular a associação entre arte e indústria como forma de produção de
uma modernidade nacional. Pensar a moda como
design era retirá-la da condição de marginalidade,
inserindo-a na modernidade ao aproximá-la ao
mesmo tempo da indústria e da arte.

Entre as décadas de 1950 e final de 1970, o MAM foi


a principal instituição formadora de artistas
modernos. Independente da avaliação do tempo,
havia uma predisposição em qualificar positivamente
o trabalho de quem tivesse sido formado nessa
instituição e, preferencialmente, ali tivesse exposto.
Isso provavelmente explica em parte por
Figura  9:  Mandala  de  blindex,  1981
que os cursos mencionados por Olly em
seu currículo são exclusivamente os realizados naquele museu. Nesse sentido, ganha novos
contornos um dos quadros exposto em sua última exposição, exposta pela primeira vez em
1981, denominada “Origens: cores, formas, texturas. Trata-se de uma colagem de estilhaços de
vidro que intitulada “Mandala de blindex (MAM após o incêndio)”.

Essa mandala era a tradução do impacto que a destruição do museu teve para Olly, muito além
das cinzas, ferros retorcidos e restos irreconhecíveis. Talvez sua mandala fosse a representação
de sua vontade de concentrar energia para reconstrução daquele que foi o templo da
modernidade carioca, período que chegava ao fim com o incêndio, em 1978.

Referências bibliográficas

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Perspectiva, 2004.
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i IN-04
ii MA-10
iii IN-04
iv MA-33
v MA-41 e MA-10
vi MR-Oli 529.
vii MROW-G 02
viii MROW-G-01
ix MROW-G 28
x MROW-G 29

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Polissemia de um acervo: apontamentos sobre coleções de louça do Museu Paranaense


A collection’s polysemy: notes on Paranaense Museum’s pottery collections
Dra. Martha H. L. Becker Morales
(INDEX / Museu Paranaense)
mhlbecker@gmail.com

Resumo: A discussão em torno do potencial interpretativo dos artefatos sob a guarda de


museus abre um leque interessante ao permitir a releitura de coleções antigas. Por meio desse
exercício de estranhamento, objetos doados ao Museu Paranaense ao longo do século XX
podem ser encarados sob diferentes olhares. Dessa forma, novas composições expográficas são
embasadas e orientam a reformulação de práticas institucionais cotidianas, tais como a política
de aquisição de acervo. Neste trabalho, o foco recai sobre a polissemia das coleções de louça.
Palavras-chave: acervo; museu; louça

Abstract: There is an interesting opportunity surrounding the debate about the interpretive
potential of museum artifacts, allowing new perspectives on old collections. This exercise enables
a critical view on objects donated to the Paranaense Museum over the course of the 20th Century,
which serves as basis for new exhibit compositions and provides orientation for improved
guidelines concerning everyday institutional practices, such as the policy of acquisition for new
collections. The main purpose of this paper is to explore the polysemy of collections, especially
pottery.
Keywords: collection; museum; pottery

Introdução: ressignificar o acervo


O Museu Paranaense (doravante, MP) foi fundado em 1876 na cidade de Curitiba,
capital do estado do Paraná, a princípio como instituição particular, mas sete anos mais tarde foi
incorporado aos serviços públicos do governo provincial de Carlos Augusto de Carvalho. Seu
acervo teve início com as doações da população curitibana e com os produtos oriundos de
exposições nacionais e internacionais e, conforme Fernandes e Nunes (1956), no começo do
século XX exibia características de museu de etnografia e de ciências naturais. Atualmente, o
museu é publicizado como “a entidade que promove a valorização e a guarda da História do
Paraná” (DINIZ e MEDRONI, 2006, p. 65), e conta com um universo aproximado de 400 mil
peças sob sua guarda.
Com um acervo vasto e eclético, de procedência etnográfica, arqueológica ou obtido por
meio de doações, o MP está prestes a comemorar seus 140 anos de fundação, em setembro de
2016, e vive um momento crucial com a informatização dos dados de suas coleções por meio do
software Pergamum (SEEC-PR, 2013). Trata-se de uma oportunidade interessante para refletir
acerca da potencialidade desta instituição centenária em se reinventar e permanecer relevante

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no cenário contemporâneo de “reconfiguração do papel político das instituições museológicas e


de mudanças nas novas formas de organização políticas e sociais” (MENDONÇA, 2012, p. 147).
A representatividade de grupos historicamente hegemônicos no conteúdo do acervo do
MP é flagrante e algo que não pode, nem deve, ser negado. Esta não é, de maneira nenhuma,
uma característica exclusiva deste museu, uma vez que autores como Piñon e Funari (2004, p.
26) frequentemente apontam para a “representação desigual dos resquícios materiais dos
diferentes grupos étnicos que compõem a realidade histórica brasileira”, seja nas instituições de
guarda do patrimônio tangível ou nos conteúdos dos livros didáticos. A questão, como Le Goff
(2003) argumenta, é que o interesse no estudo do passado já não recai mais apenas sobre os
grandes homens, a história militar e a diplomática, mas sobre uma memória de contornos mais
coletivos e criticamente informados, algo que ultrapassa as fronteiras da Academia e atinge, por
exemplo, os consumidores do turismo cultural.
Assim, se na virada do século XIX para o XX cultuavam-se objetos dos grandes heróis e
seus grandes feitos (MACHADO, 2005), a atualidade impõe ao museu aquilo que Dominique
Poulot denomina retorno sobre si, ou seja, o desafio de “manter sempre viva uma contribuição
para a fisionomia cultural da região” (POULOT, 2013, p. 34). Partindo do princípio de que os
museus não podem salvar o mundo, mas proporcionam inspiração e estímulo à mudança
(MORALES, 2014), cabe ao MP se posicionar como instrumento para reflexão crítica acerca dos
usos sociais da cultura material que protege e preserva. Para tanto, não é preciso fazer tábula
rasa de suas 400 mil peças, mas submetê-las à consideração de outros olhares, ao
questionamento em torno de seus vários usos e significados ao longo do tempo, de suas
atribuições simbólicas, das releituras e biografias culturais que se constroem em torno da
materialidade.
Se tomada como ponto de partida a afirmação de Lowenthal (1985) sobre as relíquias
serem mudas, cabe aos profissionais dos museus darem voz a suas interpretações e, mais do
que isso, construírem os sentidos dos objetos em reciprocidade com o público, este protagonista
pouco apreciado que, em última instância, é o verdadeiro tutor do patrimônio cultural. Enfim, a
ressignificação dos acervos, não só do Museu Paranaense como de todos os grandes museus
criados no auge do conhecimento enciclopédico do período oitocentista, é imprescindível para
conhecer o potencial contido nos vestígios do passado e reorientar políticas de aquisição e
descarte institucionais.
O objetivo deste artigo é explorar a polissemia de um conjunto de louças que compõe o
acervo do MP, desta maneira demonstrando a importância no exercício da ressignificação de
coleções antigas. O recorte incide sobre 604 peças, relativas a oito coleções, cujos dados se

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encontram já catalogados e disponíveis ao público por meio da Rede Pergamum1. Os


argumentos têm a finalidade de deslocar o ponto de vista tradicional que acomete este tipo de
peça, amplamente valorizada por uma estética elitista, procurando evitar também a descrição
técnica de atributos decorativos. Sendo assim, a estrutura do texto apresenta algumas
considerações sobre o que se está chamando de ‘louça’ no MP para, então, encaminhar uma
reflexão acerca do potencial interpretativo dos artefatos tomando por base suas origens
produtivas. Estes apontamentos, embora breves, deverão servir como estímulo a
desdobramentos futuros, discutidos nas considerações finais.

A(s) louça(s) como objeto de estudo


O estudo de coleções de museus passa pela biografia cultural dos objetos, avaliando
como estes foram transformados em “ícones legitimadores de ideias, valores e identidades”
(GONÇALVES, 2005, p. 11), mas não pode perder de vista o histórico de formação da coleção,
“de como elas foram formadas e por quem, em que sucessivas épocas” (HORTA, 1987, p. 160).
Portanto, um objeto incorporado ao acervo do MP seguiu uma trajetória prévia, tendo sido
produzido e consumido de alguma forma, culminando em sua remoção do cotidiano – elevado a
item preservado no seio familiar, ou descartado, perdendo um dos sentidos de utilidade.
Finalmente, encontra-se doado ao museu, num desejo de perpetuação pública de uma memória,
ou recuperado em estado fragmentado na escavação arqueológica e cercado de interpretações
próprias da disciplina. No contexto museal, objetos são associados uns aos outros por questões
de similaridade física, material, funcional, por procedência, por terem pertencido a determinado
personagem ou grupo, por terem sido agrupados por colecionadores ilustres, por receberem a
alcunha dos interesses daqueles que os estudam – são etnológicos, arqueológicos, históricos.
Seja qual for o parâmetro que determina a abrangência e os limites de uma coleção, este critério
guarda uma significância profunda, embasada no conhecimento e nos valores do responsável
por sua atribuição. Sendo assim, a afirmação de Horta (1987, p. 160) de que “a falta diz às vezes
mais do que a presença” merece um apreço cuidadoso, sensível aos processos de escolha.
Ao longo das décadas, a preferência por uma ou outra categoria material e documental
foi se alterando, conforme mudavam a direção institucional, os profissionais do corpo técnico, os
parâmetros museológicos e as teorias e métodos das disciplinas ali praticadas. Trata-se de um
desdobramento próprio dos debates acerca da função do museu como centro de educação,
ciência, cultura e saber/poder. Com isso, determinadas porções da cultura material receberam
destaque enquanto outras foram preteridas como representantes ou testemunho da experiência
1
O acesso se dá pelo link http://www.memoria.pr.gov.br/biblioteca/index.php

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humana, o que decerto afetou a composição dos acervos disponíveis para a montagem de
exposições e estudos especializados.
No caso específico do MP, Furtado (2006) acredita que a tônica inicial formadora das
coleções fora marcada pela preferência por objetos exóticos do território paranaense. Entretanto,
a louça é um tipo de objeto que desde o princípio esteve presente no acervo, em especial a
correspondente a uma valoração estética da delicada cerâmica branca que trazia em sua
decoração elementos que remetiam a personagens e eventos históricos nacionais ou
paranaenses. Além disso, é uma cultura material de forte associação ao período de
florescimento e desenvolvimento das indústrias, sendo muito utilizado na arqueologia histórica
para pesquisas de tônica socioeconômica, de comportamento de consumo e status individual ou
familiar.
O termo louça é muito difundido pelo senso comum, mas problemático no que diz
respeito ao estudo da cultura material. Referência clássica, Pileggi (1958, p. 194) afirma que esta
nomenclatura compreende “todos os produtos manufaturados de cerâmica, compostos de
substâncias minerais, sujeitas a uma ou mais queimas”, sendo uma expressão quase exclusiva
do idioma português (loiça) e do espanhol (loza). Embora esteja ciente das inúmeras variedades
inclusas sob esta denominação generalizante2, insisto no uso do termo por dois motivos
principais: sua larga utilização pela bibliografia de estudos de cultura material, sempre
acompanhada dos devidos esclarecimentos terminológicos; e, sobretudo, seu emprego
disseminado nas classificações de acervo e etiquetas de vitrines do contexto institucional do MP.
A identificação da pasta para diferenciar os tipos de louça existentes é um exercício
complexo que, muitas vezes, requer processos laboratoriais, destrutivos ou não. Mais
complicados são os casos em que se lida com coleções tombadas pelo patrimônio histórico e
artístico, nas quais qualquer intervenção que resulte no comprometimento da integridade física
e/ou estética da peça é proibida pela legislação. Entretanto, o trabalho analítico conduzido a olho
nu foi favorecido pelo conjunto de técnicas e métodos difundidos na bibliografia especializada,
enriquecido pelo compartilhamento de experiências práticas. Por outro lado, a proliferação
bibliográfica e o acesso facilitado pelo meio digital a publicações de outras nacionalidades

2
O alcance do termo é, de fato, surpreendente se pensarmos na expressão ‘lavar a louça’ no nosso
cotidiano – não se trata de lavar unicamente cerâmicas brancas, mas também copos de vidro, vasilhas
plásticas, talheres, panelas de inox, colheres de pau... Mesmo na bibliografia é possível encontrar
exemplos pontuais, como o trecho em que Carvalho (2003, p. 77, grifo meu) afirma que “os habitantes da
região [paulista do século XVIII] também produziam louças para seu uso cotidiano, com os materiais
disponíveis no ambiente. Eram copos, travessas e tigelas de madeira ou pratos, panelas e tigelas de
cerâmica da terra”.

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podem gerar confusão dada a grande multiplicidade de nomes, categorias, tipos e variedades
mencionadas.
A faiança é uma louça muito porosa e pouco resistente, de fácil identificação em
contextos arqueológicos devido ao seu esmalte que se destaca da base “como se fosse uma
pele” (ZANETTINI, 1986, p. 120). O termo deriva da cidade italiana de Faenza e é considerado
anacrônico, segundo Brancante (1981), uma vez que a fabricação deste tipo cerâmico vinha
sendo executada muito antes pelos persas. Recebe ainda denominações como louça de Delft
(delftware), maiólica (ou majólica, derivada da ilha de Maiorca) e meia faiança (quando de
qualidade inferior).
A porcelana, por sua vez, é uma louça branca, vitrificada e translúcida criada na China
durante a Dinastia Tang [618-906 d.C.]. Esta cerâmica antiga é referenciada pela bibliografia
como porcelana dura, introduzida cada vez mais no Ocidente conforme cresce o contato no
século XVI, quando “parte de sua produção continuaria destinada ao seu uso doméstico, parte
para fornecimento dos palácios imperiais, ambas tipicamente chinesas, e parte ao gosto da nova
clientela” (BRANCANTE, 1981, p. 155). A qualidade e o fascínio exercido pela porcelana de
pasta dura chinesa levaram os produtores europeus à tentativa de reproduzi-la, dado seu alto
valor mercadológico, criando o que os autores chamam de porcelana mole europeia, muito
semelhante à original, mas suscetível ao riscar da faca, denunciando sua inferioridade.
No processo de reprodução de fórmulas para atingir a qualidade da porcelana chinesa,
inventou-se a faiança fina, um reflexo da revolução industrial inglesa por oferecer produtos
“baratos e fáceis de serem reproduzidos em grande escala” (ZANETTINI, 1986, p. 122).
Conforme Brancante:
A vantagem obtida [em relação à faiança] é que as novas pastas conferiam
ao produto uma massa mais clara, mais uniforme e mais resistente e sobre a
qual a decoração pintada ou estampada passava a ser aplicada diretamente
e ainda a menor custo, o que abarcava uma faixa mais ampla de
consumidores (BRANCANTE, 1981, p. 129)
Como uma louça de produção altamente irradiada, a faiança fina recebe inúmeras
denominações, tais como louça inglesa, louça pó de pedra, louça de granito, meia porcelana,
cailloutage, refined earthenware e muitas outras. A formulação da pasta também surge com
muitas variações, algumas de diferença quase imperceptível no produto final. Além disso, há
subdivisões que, em geral, referem-se a mudanças no esmalte aplicado sobre a peça, como
louça creme (creamware), louça perolada (pearlware) e louça branca (whiteware), ou à variação
na consistência e aparência da pasta, como o ironstone, ponto em que a bibliografia diverge
entre um subtipo da faiança fina e uma categoria nova em si.

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Para os fins deste artigo, serão consideradas peças com estas classificações, pois estas
costumam ser identificadas como ‘louça branca’ ou ‘louça fina’ pelo público geral. Por outro lado,
em determinadas ocasiões era comum no MP referir-se como porcelana a todos estes objetos,
como na exposição temporária Porcelana utilitária: a beleza sempre presente, realizada em
2011. Havia na sala etiqueta sobre ‘faiança’, ‘faiança portuguesa’ e ‘pó de pedra’, mas era a
‘porcelana’ o centro da proposta – mesmo que nem todas as peças assim identificadas o fossem.
Isso ocorre porque há certa conotação de refinamento e luxo associada ao termo, como explica
Kistmann (2001, p. 131):
Porcelana, no Brasil, é uma designação utilizada genericamente de forma
bastante imprecisa para peças produzidas em cerâmica branca.
Popularmente, porcelana é a louça fina, que apresenta características
formais que nos remetem à porcelana do século XVIII e XIX. Muitas das
peças que popularmente são chamadas de porcelana, na verdade são
variações da porcelana, grês ou faianças.
A explicação da autora acrescenta ainda a tendência ao recuo nas datações, devido ao
peso atribuído ao ‘antigo’ em coleções museológicas. Conforme será discutido no próximo
tópico, o século XIX está bem representado em peças fabricadas no estrangeiro, assim como a
presença de fabricantes paranaenses e paulistas do século XX demonstra que a indústria
nacional crescia em termos de qualidade e mercado consumidor.

A(s) louça(s) no Museu Paranaense: potencial e problematização


A inserção dos dados na plataforma Pergamum pela equipe do Museu Paranaense tem
permitido não apenas a releitura das possibilidades inerentes ao acervo disponível para
montagens de exposição e pesquisa, como também a reavaliação de classificações
desenvolvidas por diferentes pessoas ao longo da trajetória centenária da instituição. É
importante ressaltar que esta atitude não visa o desmerecimento do trabalho realizado no
passado, mas a compreensão de que os quadros teóricos e metodológicos sob os quais os
profissionais trabalham são muito flexíveis. Compete ao técnico ou pesquisador fazer bom uso
de todas as informações atreladas ao objeto de maneira a enriquecer a compreensão do artefato
como parte de uma sociedade dinâmica que o ressignifica constantemente.
As 604 peças em questão neste artigo passaram por um cruzamento de dados, incluindo
descrições encontradas em fichas preenchidas, sobretudo, na década de 1980; informações de
doação listadas nos livros tombo, abarcando boa parte do século XX; instrumentos jurídicos
como termos de doação nos quais é possível verificar datas e o nome do doador; e uma análise
recente das características físicas e do estado de conservação do material. Esta amostragem do
acervo não abrange a totalidade de peças enquadradas na tipologia ‘cerâmica’ no MP, uma vez

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que o processo de catalogação se encontra em andamento. Contudo, tendo em vista que se


trata de um volume considerável de artefatos, foi possível obter alguns elementos que sugerem
caminhos interpretativos interessantes.
As coleções das quais as louças examinadas fazem parte têm procedências diversas. A
maioria integra o fundo aberto do MP, remontando aos primeiros anos de funcionamento da
instituição, com doadores nem sempre identificados e situações de compra e permuta, em
especial com o Museu Histórico Nacional na década de 1930. Há ainda peças com padrão de
registro diferenciado que compõem o acervo tridimensional associado ao setor de Antropologia,
resquício da antiga divisão dos livros tombo por setores técnicos e tipologias documentais. A
herança jacente do naturalista tcheco Vladimir Kozák, sob responsabilidade do MP desde 1990,
e o acervo do antigo Museu Banestado, transferido em 2004, estão representados na amostra de
maneira tímida, ao contrário do acervo do extinto Museu Cel. David Carneiro, recebido em 2005
após compra pelo Governo do Paraná, com maior volume de louças. Ademais, as coleções
Maurício de Souza e Leão Junior, ambas doadas em 2013, e Didonet Thomaz, doada em 2015,
também compõem a amostragem.
O primeiro aspecto que gostaria de problematizar em termos do potencial deste conjunto
de louças é a variabilidade de formas. São 48 nomenclaturas de objetos que denotam formatos e
finalidades diferenciadas, embora a função presumida e denominada sob termos atuais ou do
fabricante não implicam, necessariamente, na maneira como foram utilizadas pelo seu
consumidor primário ou posterior. Majewski e O’Brien (1987) atentam que a partir da segunda
metade do século XIX as formas tornam-se mais que um atributo funcional, adquirindo também
caráter decorativo, e itens côncavos como xícaras com alças quebradas poderiam ser
reutilizadas como molheiras, por exemplo. A indicação da presença de uma alça, aliás, foi um
dado aplicado neste levantamento para diferenciar canecas e xícaras de tigelas ou malgas,
tomando por base referências encontradas em Beaudry et al (1983) e Souza (2012b). Além
disso, cabe acrescentar:
Se o único propósito de uma xícara fosse servir de suporte para líquidos,
poderia muito bem haver um único design, mas as xícaras têm outros usos:
como artigos de comércio, servem para criar riqueza e satisfazer o desejo
dos consumidores de expressar seu sentimento de individualidade, e é da
conjunção desses objetivos que resulta a variedade de designs (FORTY,
2007, p. 22)
A diversidade encontrada no design dos objetos foi condensada a fim de compactar o
Gráfico 01, cuja visualização ainda assim é comprometida pela quantidade de exemplares

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únicos, tais como o samovar3 e o porta-sachê de chá. Entretanto, a representação gráfica das
nomenclaturas atribuídas pela catalogação do MP é um atestado visual da profusão de pratos
[192], xícaras [107] e pires [116] no acervo. A princípio, peças de uso cotidiano tendem a não
sobreviver ao manuseio frequente, sendo facilmente quebradas, descartadas e substituídas,
porém, a alta incidência destas formas no caso do MP se deve à sua conotação comemorativa,
ou seja, está subordinada às opções decorativas.

Prato Pires Xícara Travessa


Cremeira Bule Escarradeira Tigela
Açucareiro Leiteira Vaso Miniatura
Garrafa Cinzeiro Sopeira Bacia
Bandeja Caixa de toucador Caneca Cesta
Jarra Manteigueira Molheira Paliteiro
Castiçal Concha Cuia Ebulidor
Gomil Paleta Tampa Acessório de luminária
Colher asiática Corote Donburi Maçaneta
Moringa Pia Placa Porta-cremeiras
Porta-escova Porta-joias Porta-sachê de chá Saboneteira
Samovar Talha Telha Urinol

Gráfico 01 - Variabilidade de formas

A inserção desses artefatos no MP é contemporânea das práticas do conservadorismo


histórico, logo, foram privilegiados aqueles que poderiam ser atrelados a personagens ou
eventos específicos, seja pela posse prévia do objeto, o que conferia uma aura de continuidade
do sujeito, ou pela representação nos elementos decorativos. Estas particularidades influem
diretamente na preservação de pratos associados à comemoração de datas-chave, como vitórias
militares, cinquentenários e centenários, por exemplo, e na probabilidade de terminarem seu
percurso biográfico como parte de acervos museológicos.

3
O samovar é um utensílio de origem russa, formado por bule e pequena caldeira utilizada para ferver e
manter aquecidos líquidos como o chá.

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Outro aspecto interessante está na identificação dos fabricantes, pois a produção de


louça tem uma importância singular para a história da indústria paranaense – basta evocar a
Fábrica de Louças Colombo, pioneira da louça branca no país (MORALES, 2010), e aludir à
alcunha do município de Campo Largo, capital nacional da louça. Do volume total, 444 peças
estão identificadas, sendo 133 de fabricação estrangeira e 311 brasileiras.
Das peças estrangeiras, a maioria provém da companhia inglesa J.&G. Meakin, mas
entre os 36 fabricantes diferentes identificados predominam os franceses, como Lahoche et
Pannier (Gráfico 02). É um testemunho da cultura de consumo disseminada pela revolução
industrial, alcançando diversos pontos do globo, mas é igualmente fruto de um ideal de
preservação perpetrado pela crença de que o produto estrangeiro é superior, ou mais valioso
que o nacional. Na experiência que opõe a xícara sem identificação utilizada para tomar café
todos os dias àquela com a base carimbada com um selo no qual só ficam claras as palavras
“Porcelaine de Limoges”, o item escolhido para passar de geração em geração (e depois
conduzir ao museu) será, na maioria das vezes, o último.

1 1 França
2
2 Inglaterra
2 13
Alemanha
1 Polônia
Holanda
Portugal
4 EUA
Japão
10 Itália

Gráfico 02 – Nacionalidade das fábricas estrangeiras identificadas

No entanto, as peças estrangeiras identificadas remetem mais ao século XIX, momento


em que o cenário nacional não dispunha de louças de produção local. A datação de artefatos
pelo selo do fabricante admite que se chegue a um intervalo no qual a peça foi produzida e/ou
comercializada, exigindo cautela quanto aos períodos de consumo e descarte. O Gráfico 03
apresenta as datas iniciais de fabricação dos exemplares estrangeiros do acervo, com maior
concentração na década de 1870, mas demonstra fragilidade por trabalhar com variáveis
imprecisas como ‘final do século XIX’ e ‘início do século XX’. Ainda que pareçam dados frágeis, a
possibilidade de identificação e datação aproximada por meio do selo é fundamental.

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Década 1790
Década 1820
Década 1830
Década 1840
Década 1850
9% 2% 2% 2% 6%
2% 4% Década 1860
9% 9% Década 1870
4% 2% Década 1880
Década 1890

2% Final séc. XIX


9% 15% Início séc. XX

9% Década 1900
6% 9%
Década 1910
Década 1920
Década 1930
Década 1940
Década 1950

Gráfico 03 - Datas iniciais de fabricação das peças estrangeiras identificadas

As nacionais, por sua vez, apresentam menor incidência de fabricantes em relação às


estrangeiras, são apenas 22, porém aparecem em mais que o dobro de peças, conforme
mencionado acima. O Gráfico 04 exemplifica a presença maior de fabricantes paranaenses,
como a Fábrica de Louças Evaristo Baggio, e paulistas, como a Indústria de Louças Zappi. A
propósito, no caso desta última, a quantidade significativa de peças [97] se deve à doação
recente ao MP de um serviço de mesa de jantar, chá e café praticamente completo. Convém
mencionar que, apesar dos poucos representantes, o estado de Santa Catarina tem uma
participação importante na amostra, afinal, a conhecida marca da Porcelana Schmidt ocorre em
35 peças.

1 1

3
Paraná
9
São Paulo
Santa Catarina
Rio de Janeiro
Rio Grande do Sul
8

Gráfico 04 – Fabricantes nacionais identificados, por estado

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Todavia, não é apenas uma questão numeral que instiga à consideração das peças
Schmidt no acervo, mas sua frequência entre aqueles objetos de cunho comemorativo
mencionados anteriormente. O Centenário da Emancipação Política do Paraná e o IV Centenário
de São Paulo, ambos celebrados na década de 1950, são exemplos do tipo de peça entregue à
guarda do museu que exibem o selo catarinense. Aliás, o intervalo de 1940 a 1960 é o mais bem
representado na observação das datas iniciais de fabricação das peças nacionais identificadas
na amostra, conforme evidencia o Gráfico 05.

9% 3% 6% 3% 3% Década 1900
6% Década 1910
Década 1930
Década 1940
Década 1950
Década 1960
18% 31%
Década 1970
Década 1980
21% Década 1990

Gráfico 05 - Datas iniciais de fabricação das peças nacionais identificadas

É expressiva a concentração dos artefatos de produção nacional em meados do século


XX, período em que se vêem poucos exemplares estrangeiros, pelo menos nesta amostragem.
Nesse sentido, é oportuno ressaltar a popularização do plástico e da borracha que, conforme
Souza (2012a), vão se tornar mais comuns em produtos para consumo doméstico a partir da
década de 1960. O impacto desta substituição no cotidiano pode ter refletido em uma maior
preocupação em preservar objetos de cerâmica, mais delicados e caros em comparação,
afetando o total de peças disponíveis em contextos museais nos anos 2000 e 2010, quando
indivíduos adultos que viveram a infância em meados do século XX entregam ao museu seus
afetos e memórias materiais.

Considerações finais
As observações deste artigo estiveram muito vinculadas à identificação de fabricantes e
à periodização aproximada, fazendo uso dos dados obtidos por meio do processo descritivo de
elementos presentes nas peças de louça. Passo inicial, essa quantificação, bem como os
apontamentos acerca da forma de entrada das coleções no museu, devem ser aprofundados a
fim de construir um cenário mais completo (e complexo) da relação entre a produção da peça,
seu consumo e sua musealização – concebendo, enfim, a mencionada biografia cultural dos

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artefatos enquanto materialidades que são ao mesmo tempo definidas pela e definidoras da
experiência humana contemporânea.
Para tanto, é necessário finalizar a identificação dos conjuntos cerâmicos presentes no
acervo e, então, considerar não apenas os objetos íntegros destacados neste artigo como
também os fragmentos de arqueologia, igualmente disponíveis no Pergamum. A relação entre
essas culturas materiais similares em termos de composição mineral, mas muito divergentes no
aspecto físico atual deve ser encarada com atenção especial, pois suas condições criaram uma
dicotomia singular nas dependências do MP – a oposição ‘louça histórica’ e ‘louça arqueológica’,
polarizando a localização destas coleções no espaço do museu e estabelecendo procedimentos
de pesquisa diferenciados4. É um caminho fértil para investigações futuras.
Outro cruzamento que deve afetar os argumentos em torno da potencialidade da louça
no Museu Paranaense é a inclusão de dois conjuntos de artefatos doados nos últimos dois anos
caracterizados como brinquedos5, compostos pela cultura material do ‘brincar de casinha’, ou
seja, miniaturas de utensílios domésticos em louça, alumínio, vidro e plástico. Ali também se
identificam fabricantes estrangeiros e nacionais, com um esmero análogo a peças de dimensões
normais, embora a proposta por trás do consumo e da preservação destes pequenos objetos
seja muito diferente – fato que abre outros pontos transversais de reflexão.
Finalmente, em vários momentos do texto fiz menção à prática de preservação
condicionada pelas formas, decorações ou aspectos intangíveis inerentes às peças, como as
memórias afetivas e a simbologia da comemoração. A despeito da brevidade destes
comentários, saliento a importância da nuance das mentalidades que cercam os artefatos no
processo decisório da preservação. Ou seja, refiro-me àqueles fatores subjetivos e impalpáveis
que determinam o que é tornado lixo e o que é patrimonializado, tanto na esfera privada quanto
no ambiente público institucional. Uma vez finalizado o levantamento do conjunto cerâmico que
compõe o acervo do Museu Paranaense e feitas as articulações supracitadas, acredito que será
viabilizado um panorama sensível dos diversos usos políticos, sociais e culturais desta
materialidade ontem e hoje.

4
A este respeito, sugiro a leitura de Morales (2015b).
5
Algumas observações iniciais acerca destas coleções podem ser encontradas em Morales (2015a).

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Sessão Temática 02
Design, Moda e Cultura Digital

Coordenação: Prof. Dr. Ronaldo Corrêa | UFPR


Local: UFPR Edifício D. Pedro I // Sala 806

Dia 14/05

Snapchat e a relação homem-imagem nos espaços híbridos


Mariana Leonhardt Hallage / Centro Universitário Belas Artes / mari_hallage@hotmail.com

O presente artigo visa analisar o Snapchat, rede social de troca de mensagens online, em sua
essência e popularidade, como indicativo das novas relações que o homem estabelece com a
imagem e com a tecnologia. Ambas, mediadoras de expressões humanas, são parte integrante
da contemporaneidade líquida na qual vivemos. Por fim, foram analisados dois cases de marcas
de moda que fazem uso do aplicativo para construir seus discursos de marketing.
Palavras-chave: imagem, moda, Snapchat.

A (re)construção da criação de uma coleção digital de fotografias: motivações e diálogos


Anna Lucia da Silva Araujo Vörös / UFPR / annavoros@gmail.com;
Ronaldo de Oliveira Corrêa / UFPR / rcorrea@ufpr.br

Nesse artigo apresentamos considerações sobre o processo de reconstrução da coleção de


fotografias Vintage Photos, veiculada no blogue The Sartorialist. Os procedimentos
metodológicos adotados baseiam-se nos pressupostos teórico-metodológicos provenientes de
estudos da Cultura Material, da História e da Memória. Dos resultados encontrados, observou-se
que há nessa coleção uma narrativa predominante, a qual associa questões de identidade e
estilo de vida das pessoas retratadas com uma determinada noção de moda.
Palavras-chave: fotografia, coleção digital, moda.

 
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Design de Moda e identificação cultural: uma análise de estratégias discursivas em


blogues de design brasileiros
Ana Paula França / Universidade Positivo; Universidade Federal do Paraná

A consolidação do uso do termo design de moda no Brasil constitui um novo campo discursivo.
Reflexões teóricas acerca das relações entre design e moda transcendem os limites
acadêmicos, sendo a web também um espaço para a criação de estratégias discursivas
pertinentes ao processo de identificação cultural em curso. Este artigo apresenta uma análise do
modo como o design de moda é enunciado em blogues de design brasileiros, considerando-se o
que é dito como uma forma de ação, e não como mera representação de ideias prévias.
Palavras-chave: design de moda, identificação cultural, análise de discurso.

Moda, raça e cultura material: a construção de corpos por quimonos e turbantes no


cinema norte americano
Ana Paula Medeiros Teixeira dos Santos / UTFPR / anapaulamtsantos@gmail.com
Erika Yamamoto Lee / UFPR / erikalee@gmail.com
Marinês Ribeiros dos Santos / UTFPR / ribeiro@utfpr.edu.br

Este artigo pretende discutir a participação da cultura material na construção de estereótipos de


gênero e de raça no cinema norte americano. Buscamos entender a construção desses
estereótipos através dos usos dos artefatos de moda, sendo observado os usos dos turbantes no
filme “Um príncipe em Nova York” (Coming to America) e dos quimonos no filme “Memórias de
uma Gueixa” (Memoirs of a Geisha).
Palavras-chave: Cultura material; Turbantes; Quimonos

 
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Snapchat e a relação homem-imagem nos espaços híbridos1


Snapchat and the connection between man and image in hybrid spaces
Mariana Leonhardt Hallage2
mari_hallage@hotmail.com

Resumo
O presente artigo visa analisar o Snapchat, rede social de troca de mensagens online, em sua essência
e popularidade, como indicativo das novas relações que o homem estabelece com a imagem e com a
tecnologia. Ambas, mediadoras de expressões humanas, são parte integrante da contemporaneidade
líquida na qual vivemos. Por fim, foram analisados dois cases de marcas de moda que fazem uso do
aplicativo para construir seus discursos de marketing.
Palavras-chave: imagem, moda, Snapchat.
Abstract
This article intends to analyze Snapchat, social media based on online instant messaging, on its
essence and popularity, as an indication of new relations that men establish between image and
technology. Both mediators of human expressions, they are inherent of our liquid contemporary society
that we are into. At last, it was analyzed two cases of fashion brands that used this program to create
their marketing convictions.
Key-words: image, fashion, Snapchat
INTRODUÇÃO

A comunicação digital é uma modalidade de extrema importância para a relação interpessoal


contemporânea. Quando um novo aplicativo tecnológico é criado, novas formas de interação e uso são
configuradas, para atender à demanda. Se um aplicativo é algo novo e experimental, ele deve ser, em
mesma potência, um resultado de anseios que o sujeito social espera que sejam supridos pelo
mercado justificando, assim, investimentos milionários para que ele seja ofertado oportunamente e
colocado em prática.

Desta forma, as mídias sociais são ferramentas de convívio através do ciberespaço, em que o
mundo virtual substitui a vivência física pela conexão online instantânea. Entre os programas mais
usados na atualidade, está o Snapchat, objeto desta pesquisa.
                                                                                                                       
1
 Artigo  elaborado  como  resultado  do  trabalho  em  conjunto  com  a  orientadora  Profa.  Ma.  Josenilde  Souza,  
para  a  conclusão  do  curso  da  Pós-­‐Graduação  em  Comunicação  e  Cultura  de  Moda,  pelo  Centro  Universitário  
Belas  Artes  São  Paulo.  
2
 Pós  graduada  em  Comunicação  e  Cultura  de  Moda,  pelo  Centro  Universitário  Belas  Artes  São  Paulo,  é  Analista  
de  Comunicação  na  Ricardo  Almeida.  

1  

 
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Em que medida o aplicativo Snapchat amplia a mediação tecnológica entre homem e imagem
nas relações contemporâneas? Esta é a pergunta motivadora da pesquisa elaborada para produção
deste trabalho, que abordará conceitos como modernidade líquida, identidade, tempo e espaço,
existência em tempo real, visibilidade midiática e imagens voláteis, entre outros, sempre considerando
as áreas de moda e comunicação.

O artigo inicia com uma contextualização sobre o aplicativo, apresenta breves dados de
mercado e crescimento, analisa seu logotipo e explica seu sistema de funcionamento. Isto abre
caminhos para uma segunda parte da pesquisa: observar as subjetividades do aplicativo e seu uso
como reflexo de características fundamentais da sociedade contemporânea, em termos de
comunicação e relação interpessoal. Por fim, foram selecionados dois cases de marcas de moda que
utilizam o Snapchat como estratégia de marketing no mercado, a fim de discutir sobre suas ações e
resultados.

1. SNAPCHAT – SINGULAR E PLURAL

O Snapchat é um aplicativo de troca de mensagens (texto, imagens ou vídeos) entre pessoas


conhecidas. Sua premissa é vivenciar o tempo presente; as mensagens são instantâneas e ficam
disponíveis para visualização por tempo determinado. O objetivo de usar o programa é ter contato
direto e rápido com pessoas, a qualquer momento, sem compromisso. Seu conteúdo é informal e
cíclico, pautado em fatos do cotidiano, imagens comuns e falas sobre o dia-a-dia dos usuários. O ponto
chave do Snapchat é a volatilidade de sua produção. As mensagens são efêmeras; no fluxo automático
do aplicativo, uma nova mensagem apaga a anterior.

Criado em 2011 nos Estados Unidos, por dois universitários da Stanford University, Evan
Spiegel e Bobby Murphy, o Snapchat é atualmente a terceira rede social de maior potência e uso,
ficando atrás somente do Facebook e do Instagram, conforme pesquisas do Business Insider, de 2015.
Estimativas pontuaram que 700 milhões de mensagens são enviadas por dia e uma média de 8,79
fotos são compartilhadas por segundo. As companhias Google e Facebook tentaram comprá-lo em
2013, mas não obtiveram sucesso. A empresa, que foi avaliada em 20 bilhões de dólares no ano
passado, está em contínuo crescimento, com registro de 100 milhões de usuários, via dados da
Expanded Ramblings, que também traz a informação de que 63% dos snapchatters tem menos de 24
anos. Através de um celular com acesso à internet, é possível usar o aplicativo. Diferentemente de

2  

 
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outras mídias sociais, o Snapchat não pode ser acessado por computadores ou outros aparelhos
tecnológicos; somente via celular.

1.1. ANÁLISE DO LOGO

Para pensar sobre o Snapchat e suas manifestações imagéticas, buscou-se, de início,


perceber elementos importantes em sua comunicação visual, principalmente em seu logotipo.

Figura 1 – Logotipo do Snapchat

Fonte: screenshot do perfil @marihallage

O logotipo do Snapchat, além de representar a marca do aplicativo, também é uma marca de


cada participante. Na tela de perfil, cada usuário tem o seu logotipo personalizado, que o identifica com
exclusividade.

Em termos gerais, possui uma realidade matérica eletrônica, digital, composta por bits3. Trata-
se de uma imagem plana, expressa em vetores, ou sejam, cálculos numéricos computadorizados que
estendem e reduzem o logo sem perder qualidade ou fidelidade de formas e proporção.

Sobre a formante cromática, é possível perceber que ela é composta em alto contraste, por
três cores: amarelo, branco e preto. O amarelo é a base, o fundo que domina a imagem, o branco é a
cor central e o preto foi usado para contornos e detalhes pontuais. Amarelo é a cor mais chamativa
para a retina humana. Na psicologia das cores, de acordo com Eva Heller (2013), toma a
representação de elementos joviais, espontâneos e instáveis. Ao contrário da maioria das redes sociais
atuais – Facebook, Twitter, LinkedIn – não apresenta a cor azul em sua identidade visual.

                                                                                                                       
3
Dígito binário composto por pelos números zero e um. É a menor parcela de informação processada por um computador.

3  

 
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Enquanto dimensão eidética, são percebidas formas orgânicas, arredondadas, tanto no limite
entre externo e interno do logo, seu contorno, quanto em seus desenhos internos. O ícone possui uma
silhueta caricata de um fantasma, que pode ser associado ao conteúdo efêmero produzido no
programa. Uma mensagem morre para que a outra prevaleça.

O fantasma pode ficar branco ou pode ser personalizado. Na verdade, o branco é um espaço
para que o usuário insira um gif 4 com 5 selfies5 próprias. Foto por foto passam enquanto um usuário
visualiza sua tela de perfil. Esta característica é identificada como um tipo de crossmedia, uma
simbiose da marca pessoal de um sujeito usuário do Snapchat com a marca do próprio aplicativo.
Ambas se relacionam imageticamente, fundidas, presentes em um mesmo espaço. Além disso, trata-se
de uma pós-produção, um sistema de co-autoria. A pós-produção pode ser brevemente definida como
o “conjunto de tratamentos dados a um material registrado: a montagem, o acréscimo de outras fontes
visuais ou sonoras, as legendas, as vozes off, os efeitos especiais” (BORRIAUD, 2009, p.07). Trata-se
de trabalhar com algo já produzido, ressignificando-o, inserindo-o em novos contextos e mudando suas
relações com outros itens. É saber tomar posse de uma imagem. A pós-produção é um artifício
contemporâneo, pois não é um ponto final, é um caminho para novos começos.

Por fim, analisando a dimensão topológica do logotipo, observa-se que os elementos estão
centralizados no espaço principal da imagem; o fantasma, equilibrado horizontalmente e verticalmente,
a harmoniza. Existem pontos ao redor do elemento central, dispostos aleatoriamente, mas não
destoantes. A comunicação em termos gerais é clara, aberta, plana e plural.

O aspecto principal do logo, em termos de função, é codificar um perfil de usuário que seja
capaz de ser identificado pelo aplicativo e adicionado por outro usuário a sua rede de amigos, no
esforço mínimo de tirar uma foto desse ícone. Os pontos ao redor do fantasma são códigos de mesma
tecnologia QR Code. O enunciador deixa disponível seu código eletrônico para que o enunciatário o
identifique no mundo virtual; ou seja, combinados e dispostos de determinada maneira, os pontos
detêm a identificação de um perfil de usuário. Ao passar a câmera fotográfica de outro celular sobre
essa imagem, o aplicativo decodifica a foto e reconhece o perfil, dando a possibilidade de adicionar o
usuário identificado a seu grupo de amigos do aplicativo.

                                                                                                                       
4
Graphics Intervhange Format (formato para intercâmibio de gráficos). Trata-se de um arquivo que exibe mais de uma imagem
como conteúdo unitário.

Neologismo com origem no termo em inglês self-portrait. Selfie é um autorretrato, uma foto tirada e compartilhada na Internet.  
5

4  

 
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Mais uma forma de adicionar pessoas está em identificar o número telefônico de celular ou de
encontrar usuários via sinal wireless6, por proximidade. Os pontos poderiam ser uma analogia ao
desenho de uma cidade e de suas localidades peculiares, seu mapeamento. Ao pensar que as mídias
sociais são interativas e buscam a aproximação de amigos via conteúdo informal, uma última
simbologia observada para esses elementos é a que relaciona essa imagem ao universo dos games. A
composição formal lembra o clássico jogo japonês de 1980, Pacman.

2. SUBJETIVIDADES DO APP

Evan Spiegel deixa claro que existem dois pontos básicos evidenciados no Snapchat, que
remetem a concepções contemporâneas da relação do homem com a tecnologia e aos
desdobramentos em imagens: a ressignificação da função da imagem e a exaltação da mobilidade no
tempo-espaço. Estas considerações institucionais do aplicativo serviram de base para que fossem
analisados aspectos teóricos referentes ao seu plano de expressão e de conteúdo.

2.1. RESSIGNIFICAÇÃO DA IMAGEM E SUA FUNÇÃO

A primeira característica marcante do Snapchat é a de que a imagem produzida no programa


não se refere a lembranças, a conservar uma memória ou momento marcante. De acordo com a
missão do Snapchat: “Snapchat isn’t about capturing the traditional Kodak moment. It’s about
communicating with the full range of human emotion – not just what appears to be pretty or perfect” 7.

Trata-se de se comunicar de forma mais espontânea, esquecendo-se um pouco das grandes


produções para o registro de um momento. A imagem como memória cede espaço para a imagem
como fala – produzimos imagens voláteis. Segundo Lucia Santaella (2007, p.387):

(...) para as imagens voláteis qualquer momento é fotografável, por mais insignificante que
seja. Enquanto os tradicionais instantâneos fotográficos eram fruto de escolhas até certo
ponto refletidas sobre o enquadramento (...) as imagens voláteis são instantâneos
capturados ao sabor de circunstâncias imponderáveis, sem premedição, sem preocupações
com a relevância do instante ou com a qualidade do resultado. (...) O ato de fotografar
trivializou-se no limite.

                                                                                                                       
6
Rede sem fio, conexão realizada por ondas radioeletrônicas.

7
Snapchat não se trata de capturar aquele tradicional momento Kodak. É sobre comunicar com toda a intensidade de
expressões humanas – não só com o que parece ser bonito ou perfeito (livre tradução).

5  

 
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A efemeridade presente nas imagens voláteis surge como oportunidade para nosso ser
multifacetado ter liberdade de expressão e viver intensamente na realidade virtual. Zigmunt Bauman,
sociólogo pensador da modernidade e de suas conseqüências, reitera esta afirmação na medida em
que reflete que “a indiferença em relação à duração transforma a imortalidade de uma ideia numa
experiência e faz dela um objeto de consumo imediato: é o modo como se vive o momento que faz
desse momento uma ‘experiência imortal’” (Bauman, 2001, p.158)

A comunicação estabelecida no aplicativo Snapchat situa-se no ciberespaço. É uma


comunicação digital, online, em tempo real. Por ser exclusiva em telefones celulares, a mobilidade da
comunicação é explorada a nível máximo, pois o usuário do aplicativo conversa e interage com outros
usuários, enquanto se movimenta para outros lugares, em suas atividades habituais, registrando
momentos do cotidiano.

Os celulares são de tecnologia móvel e traçam caminhos imprevisíveis, pois são constituídos
de acordo com o movimento que os usuários fazem ao longo de seu uso. Por ser uma comunicação em
rede, o espaço físico onde o enunciador de uma comunicação se situa já não é relevante. A tela e a
mediação que ela promove entre enunciador e enunciatário, frente às novas formas de comunicação e
troca de mensagens, gera uma sensação de ubiqüidade. Ainda de acordo com Santaella, (2007, p.178)
“o ciberespaço é o espaço informacional das conexões de computadores ao redor do globo, portanto
um espaço que representa o conceito de rede e no qual a geografia física não importa, pois qualquer
lugar do mundo fica à distância de um clique.”.

2.2. EXALTAÇÃO DA MOBILIDADE NO TEMPO E ESPAÇO

Outro ponto a levantar, ainda segundo os criadores do Snapchat, é a da mobilidade que o


usuário tem em relação a sua identidade. A identidade de um sujeito é o conjunto de escolhas que ele
faz em detrimento de outras – envolve gosto pessoal, afirmação de um papel social, aparência física,
atividades que executa e dá-lhe significado. É uma interação com variados contextos. Embora a
identidade seja algo relacionado à visão de si mesmo, “mudar de identidade pode ser uma questão
privada, mas sempre inclui a ruptura de certos vínculos e o cancelamento de certas obrigações”, como
pontua Zigmunt Bauman (2001, p.115).

A ausência de registro de conteúdo postado por uma pessoa permite que vivamos o tempo do
agora na plenitude. Não é preciso se comprometer com o que já foi algum dia postado, nem se
preocupar em fazer sentido. Diferentemente de outros aplicativos, no Snapchat não existe uma linha do
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tempo que compile todas as postagens de um usuário. O intuito é se expressar e dizer o que faz
sentido no momento. Passa-se a acreditar que a identidade de uma pessoa é a mistura reinterpretada
de tudo o que ela vive e é expressa em insights, não sendo mais o acúmulo de informações
congruentes que ela possa absorver e transmitir linearmente. A transmissão de informações no
ciberespaço é dada através de hipertextos.

Para além desta subjetivação, o aplicativo incentiva a comunicação digital mais próxima entre
as pessoas, a produção de um conteúdo efêmero e descompromissado. A oportunidade de produzir tal
conteúdo, fluido e em constante fluxo, advém do novo tipo de modernidade que estamos construindo
diariamente, a modernidade líquida, dando o tom das nossas relações em sociedade. Para pensarmos
nessa dinâmica, ainda segundo Bauman (2001), vivenciamos atualmente a modernidade líquida, ou
seja, uma realidade contemporânea que, em resposta ao anseio de quebrar tradições e paradigmas da
Era Moderna, derreteu todos os sólidos que antes ancoravam procedimentos e normas-guia para o
comportamento humano em sociedade. O líquido é metáfora de algo fluido, que não mantém sua forma
facilmente, não se fixa em algo rígido; é inconstante e instável. Essa passagem de modernidades, da
pesada para a leve, trata-se de uma transição que se fundamenta principalmente em novas definições
para o tempo e para o espaço. Para melhor compreensão do significado destes conceitos ao longo do
período histórico ocidental, instituiu-se identificar que o ser humano passou por três diferentes
períodos: o wetware, o hardware e o software.

A era do wetware relacionava intrinsecamente o tempo ao espaço. Havia uma total


dependência do corpo físico. Do início dos tempos até a criação e uso de máquinas e demais artifícios
desenvolvidos para aprimorar a locomoção, o tempo era medida de espaço e o espaço era medida de
tempo. A partir da Revolução Industrial, entre os séculos XVIII e XIX na Europa, um arsenal de
máquinas e dispositivos mecânicos entraram para o mundo físico. Chama-se esse momento e seus
desdobramentos de era do hardware: a dominação do espaço territorial que era símbolo de poder,
começava a distinguir os homens, pois aliava criações humanas a potenciais naturais, promovendo
melhores conquistas a quem tivesse o melhor maquinário.

A era do software, por fim, é a superação da necessidade de conquista territorial, presente na


era hardware. O que tem valor é a informação e não mais as estruturas materiais que a comportam. Os
corpos humanos são ubíquos, ou seja, estão onipresentes no tempo e no espaço. As palavras de
ordem são inteligência artificial, tecnologia e rapidez. As noções de perto e longe são cada vez mais
subjetivas, pois existem aparelhos tecnológicos e comunicação digital em tempo real que levam uma
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conversa a um nível virtual. O espaço não gera mais resistência à disseminação de informação e
poder. É a total dominação do espaço e a aceleração do tempo nas relações de comunicação. Assim,
atualmente, presenciamos a era do software.

Além das qualidades naturais do ser humano, o sujeito contemporâneo é mediado por
tecnologia em tempo constante, percebendo que a aliança entre a biologia e a tecnologia pode trazer
resultados que aprimorem a criação divina em prol de melhor adaptabilidade e desempenho na
realidade atual. O sujeito precisa se adaptar às condições socio-comportamentais a que é submetido,
uma vez que as constrói sem qualquer parcimônia. Para protagonizar essa sociedade, o sujeito da
modernidade líquida foi definido como pós-humano – termo que começou a ser pensado a partir da
década de 1960, com a cultura pop -, interpretando o humano como resultado da simbiose
tecnocientífica. Segundo Paula Sibilia (2014, p.17):

Assim, em gradativo afastamento da dura lógica mecânica que comandou o industrialismo,


cada vez mais investidos pelo novo regime digital, os corpos contemporâneos se apresentam
como perfis cifrados nas bases moleculares de sua constituição bioquímica. Nos âmbitos
mais diversos, agora eles são pensados e tratados como sistemas de processamento de
dados e feixes de informação; e, graças às potências do novo arsenal tecnocientífico, esta
última é manipulável, quase sempre visando a otimizar seu desempenho e seu bem-estar.

Na medida em que o contexto social do sujeito tornou-se híbrido, caracterizado por espaços
intersticiais – composição unitária da realidade natural com a artificial – o corpo humano, para absorver
tudo o que criou e para sobreviver nas novas condições espaço-temporais, é atingido por uma série de
modificações e influências tecnológicas que associam, a sua natureza orgânica, uma matéria de silício,
informatizada. Ao tomarmos o controle do tempo e do espaço, manipulando esses dois referenciais de
acordo com nosso objetivo, pode-se presumir que poderemos assumir o controle da programação
humana também. Digitalizando informação, temos um copilado de bits, zeros e uns que, combinados,
podem codificar qualquer informação e deixá-la disponível para que outros suportes dela se apropriem
e a transfiram para outro contexto, produzindo novas significações. O limiar entre artifício e orgânico é
amalgamado. A tecnologia é naturalizada pelo homem.

Os seres pós-humanos, por fim, são sujeitos híbridos – mix do carbono com o silício –
compostos por apêndices, próteses e extensões do corpo. Os corpos passam a ser vistos como
permeáveis, projetáveis e, principalmente, reprogramáveis. Exemplos não distantes de próteses e

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aplicações sobre o corpo humano são os gadgets8 e outros objetos tecnológicos, que circundam o
homem e resolvem problemas cotidianos, facilitando sua comunicação e as expressões do novo ser.
Tem-se a necessidade de adaptar o corpo humano à realidade atual; torná-lo mais compatível com
suas máquinas.

A hibridação acontece de duas formas: ao mesmo tempo em que é a nova combinação de


produtos da tecnologia e processos sociais modernos, também pode ser a combinação de elementos
étnicos ou religiosos desterritorializados. Em meio à facilidade de troca de informações e da
exacerbada produção de novas mensagens instantâneas e efêmeras – novo universo cultural
programado pelo homem – o que é local mistura-se a tendências globais. O que é global assume novas
facetas em âmbitos locais para se instalar e permanecer na cultura. A cultura é desenvolvida de forma
híbrida. A hibridação, neste caso, é composta por “processos socioculturais nos quais estruturas ou
práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos
e práticas” (CANCLINI, 1989, p.19). É o que Eugênio Trivinho interpreta como um fenômeno glocal.

Para explorar a condição glocal de nossa existência, em última possibilidade, o corpo material
é virtualizado e apresentado a outros sujeitos como imagem, via telepresença. As telas dos aparelhos
tecnológicos transmitem nosso espectro virtual, que representa nossa personalidade. A tela media
encontros, incentiva e elabora experiências sociais, não sendo preciso estar fisicamente presente em
um lugar determinado. Por meio da mediação tecnológica, os corpos tornam-se ubíquos. Através da
telepresença, conquistamos o artifício do sistema tecnológico contemporâneo que desloca nossa
existência, em tempo real, para qualquer lugar no espaço, na medida em que despreza a materialidade
humana e concentra-se em informatizar plataformas digitais tendo em vista nossa similaridade.

O sistema da moda é amalgamado de diversas formas, por muitas áreas confluentes, como a
arte, o design – gráfico, digital, industrial – a arquitetura, a literatura, o cinema, entre outros. Além
disso, representa, via seus produtos de mercado e sua comunicação, os anseios contemporâneos
culturais de uma determinada sociedade. Assim pensando, foram escolhidas duas marcas de moda
para que fossem analisadas suas estratégias de comunicação no aplicativo.

3. INFORMAÇÃO DE MODA NO APP – CASES DE MARCAS

                                                                                                                       
8
Dispositivos eletrônicos portáteis, como celulares, smartphones, tablets, leitores de MP3, PDAs.

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Uma marca é a dialética entre aspectos tangíveis (materiais) e intangíveis (imateriais) de uma
empresa. Nela, constrói-se um sistema simbólico, que visa a dinâmica de identificação de seus
consumidores por ideais marcários de estilo de vida, que a empresa em questão deseja representar. O
consumidor, ao receber imagens de uma marca, envolve-se em cadeias associativas que interligam o
que anseia ter imaterialmente em sua vida e o que a marca oferece em termos de produtos de
mercado. O conjunto de produtos e discursos de uma marca precisa ter unidade visual e coerência. A
coerência de mensagens gera solidez e credibilidade à imagem construída.

Os produtos de mercado atuais são transnacionais, pois seguem a lógica da comunicação sem
fronteiras, mobilizando uma rede econômica de expressão mundial. Esta é uma característica que
impõe cada vez mais que os produtos tenham identidade própria bem definida, indo totalmente contra a
tendência de hibridação contemporânea, a fim de não se dissolverem no mercado e garantirem uma
posição de destaque, mesmo que seja por pouco tempo, relativamente, pensando na efemeridade da
informação de moda contemporânea. Conforme defende Suzane Avelar, “a desmaterialização da vida
real é o grande espetáculo de hoje, proporcionado pela ‘liberdade’ do capitalismo, que se mostra num
controle multifacetado e se confirma no esvaziamento do produto, na busca por uma atribuição de
novos pesos simbólicos” (2011, p.85).

As mídias sociais são um efetivo canal de comunicação de marcas com seus consumidores.
São plataformas que comportam atualizações constantes, desenvolvimento de conteúdo personalizado,
metrificação do alcance das mensagens, detecção de interesse e melhor assertividade na próxima
mensagem. Considerando o sucesso do Snapchat, comparativamente às outras redes sociais de maior
relevância por popularidade (Facebook e Instagram), o aplicativo começou a ser explorado por algumas
marcas de moda, ainda experimentando suas formas de uso. Para analisarmos brevemente a atuação
dessas marcas no aplicativo, foram escolhidas a Colcci e a Dior.

3.1. COLCCI – REFERENCIAL DE MARCA JOVEM E BRASILEIRA

Colcci é uma marca de moda brasileira, fundada em 1976, em Brusque – Santa Catarina, mas
reformulada em 1997, tomando o posicionamento que adota até hoje: atingir um público jovem,
moderno e urbano. Pertence ao grupo AMC Têxtil e, desde 2004, vem participando das semanas de
moda brasileiras, apresentando desfiles até então abrilhantados pela über model Gisele Bündchen. O
último desfile da modelo foi na apresentação da coleção de verão 2016 da Colcci, no São Paulo
Fashion Week.

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A marca possui um perfil próprio no Snapchat, @colccioficial. Sua presença no aplicativo


objetiva a divulgação de novidades que vem sendo desenvolvidas em novas coleções, bem como
eventos que a equipe elabora e participações da marca em outros trabalhos. A Colcci não posta snaps
todos os dias, mas somente quando participa de algum acontecimento relevante. Foram selecionadas
recentes imagens que a marca postou no Snapchat, no início de novembro de 2015 (Figura 2).

Ao observar essas imagens, percebe-se que o conteúdo das mensagens é baseado no


cotidiano, em imagens de backstage de produções fotográficas, formando um conteúdo-cápsula
exclusivo para Snapchat – uma vez que não teria espaço em outra mídia social atual, pela
informalidade e precariedade de sua produção.

Figura 2 – Snaps da Colcci em 05 de novembro de 2015

Fonte: screenshots de snaps do perfil @colccioficial

De acordo com a sequência de snaps da Figura 3, foram produzidas as imagens: foto de


welcome coffee do shooting, foto dos equipamentos utilizados na sessão, breve vídeo do staff da
produção trabalhando, foto da locação do shooting, foto da arara com as peças de roupa da marca a
serem fotografadas nesta produção e, por fim, o depoimento em vídeo de Gisele, convidando os
espectadores a acompanharem as novidades da marca no Snapchat. São cenas do universo privado
da marca, do dia-a-dia de trabalho de sua equipe, com imagens reais para gerarem a sensação de
pertencimento.

3.2. DIOR – REFERENCIAL DE MARCA DE LUXO INTERNACIONAL

A Dior é uma marca parisiense fundada em 1946, na França, por Christian Dior. É referência
em luxo e elegância, tem presença em 150 países, atua no segmento de moda de luxo e é marca
integrante da holding LVMH. Seu destaque histórico foi a criação do New Look, uma proposta ousada
desenvolvida por Dior em 1947, que serviu para modernizar a silhueta feminina européia da época.

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Como elementos da essência da Dior, sempre sobressaíram em suas coleções peças de alfaiataria,
silhuetas acinturadas e feminilidade.

A marca em si não possui um perfil ativo no Snapchat. Mas sua ação de marketing no
aplicativo na coleção Cruise 2016, em maio de 2015, foi extremamente impactante. A Dior criou um
perfil temporário e apropriou-se das ferramentas do aplicativo para divulgar o universo criativo da
coleção que iria lançar, mostrando bastidores do desfile, transmitindo um rápido depoimento de seu
diretor criativo na época, Ralf Simons, divulgando, finalmente, alguns looks do desfile e momentos
curiosos da festa após a apresentação.

Se considerarmos que marcas de luxo vivem em um terreno dúbio, entre serem exclusivas e
inacessíveis a todos, mas ao mesmo tempo, terem sua informação de moda disseminada em grande
escala para provocar desejo e relevância mercadológica, o Snapchat mostrou-se como importante
aliado na reiteração dos discursos da marca, ao evidenciar o glamour das imagens que foram
captadas, enquanto coletavam o material de forma precária, usando uma câmera de celular
descompromissadamente, transmitindo detalhes de backstage que, por exemplo, costumam ser
descartados ou usados internamente, por serem considerados materiais informais, sem colocação
possível em outras mídias da marca. O conteúdo registrou luxo, mas a transmissão foi acessível e
propositalmente precária, como estratégia de marketing.

Figura 3 – Snaps da Dior na apresentação da coleção Cruise 2016

Fonte: The Impression

A Dior aproxima seus espectadores de seu universo criativo sem se tornar popular, apenas
renovando seu fluxo de mensagens provocador de desejo. Conforme exposto, foram captadas imagens
no Snapchat, via screenshot que mostram o pré-desfile da coleção Cruise 2016, com depoimento de
Ralf Simons e imagens de famosos que marcaram presença no evento (existe o hipertexto marcado
por interferências em cima de cada foto tirada – legendas, carimbos, emojis). Estas cenas promovem
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distanciamento e exacerbação do desfile espetáculo, remetendo ao mercado de luxo e à magia que


segue direcionadora dos discursos da marca.

3.3. APLICABILIDADE DO SNAPCHAT PARA O MERCADO DE MODA

As mídias sociais permitem metrificação (computação de dados relativos à popularidade de um


conteúdo postado, relevância e número de acessos) e, principalmente, permitem também a
interatividade entre enunciador e enunciatário, entre marca e consumidor.

Em termos gerais, algumas ações de marketing possibilitadas pelo espaço do Snapchat são:
lançamentos e promoções de novos produtos (como ocorreu em agosto de 2015, quando a cantora
Madonna lançou seu single Living For Love via seu perfil oficial no aplicativo), descontos especiais e
cupons para os usuários que virem naquele dia o snap da marca (como a Tacobell faz, desde 2013),
depoimentos de celebridades que usam a marca, a fim de endossar imagens e associá-las em prol de
um life style em comum, cobertura de eventos que a marca estiver presente, como se fosse um
conteúdo instantâneo de blog ou Instagram, entre outros.

As vantagens de se investir no aplicativo contam com o baixo custo na produção do conteúdo


de informação e no espaço de experimentação que se vê cabível no universo dos snaps. Por sua
informalidade, o material postado pode ser elaborado sem a excessiva preocupação com edição e
tratamento, observando cada vez mais a importância do momento presente e da função da imagem
como ferramenta para a comunicação imediata, não gerando arquivos ou registros posteriormente.
Para a moda, o não-registro do aplicativo está intrinsecamente ligado ao seu movimento antropofágico
e de sacrifício. Como Bauman ressalta, vivemos na sociedade do desejo, associada à alegria de um
cassino:

Na cultura do cassino, a espera é tirada do querer, mas a satisfação do querer também deve
ser breve; deve durar apenas até que a bolinha da roleta corra de novo, ter tão pouca
duração quanto a espera, para não sufocar o desejo, que deveria preencher e reinventar –
desejo que é a recompensa mais ambicionada no mundo dominado pela estética do
consumo (2001, p.199).

Portanto, o desejo é gerado por imagens voláteis que, para estenderem sua vida útil na
visibilidade midiática, precisam desaparecer visualmente, a fim de perpetuar virtualmente sua essência
na memória. Uma imagem muito vista perde seu poder de sedução.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O Snapchat declara um comportamento compulsivo de consumo de imagens que o sujeito


social contemporâneo apresenta. Se não buscamos mais o conteúdo subjetivo das imagens atuais –
sintéticas e voláteis – até pelo fato delas durarem pouco e não se deixarem abrir para a decifração de
seus segredos, talvez o significado de sua produção e comunicação esteja no sistema hiperbólico que
as envolve. O sistema é mais importante que o produto. E a atividade de escolha de um produto em
detrimento a outro é mais importante que o conteúdo ou o significado do produto adquirido em si.

A dinâmica da moda estabelece-se com maestria; o novo tem valor por seu ineditismo e, o
quando visto, já deixa de ser interessante, sendo em seguida substituído por um outro novo. Este
sistema gera uma inflação produtiva de imagens desestabilizante, que reflete em nossa existência
enquanto sujeito social. Produzem-se tantas imagens que nem arquivá-las ou registrá-las queremos
mais, haja vista o sistema de funcionamento do Snapchat, com essa premissa.

O Snapchat amplia a mediação tecnológica entre homem e imagem contemporâneos na


medida em que serve como um palimpsesto, ou seja, é um suporte reaproveitado que recebeu a escrita
por mais de uma vez, sustentando novas imagens a cada interação com o usuário. Enquanto o
marcapasso prolonga a mecânica de um coração, por exemplo, e enquanto uma prótese de braço
estende o membro superior de um corpo, o aparelho mobile, informatizado e com livre acesso às redes,
amplia a existência da persona do usuário, para além de limites temporais e espaciais.

O aplicativo é um meio que possibilita a comunicação digital em tempo real. Isto evidencia as
urgências humanas contemporâneas de experimentar novos caminhos, de viver em rede globalizada,
de acreditar que sua existência é ubíqua e onipresente, uma vez que o sujeito social transfere
informações pessoais de um corpo físico orgânico desatualizado para imagens sintéticas frescas, as
quais poderão circular por lugares incomensuráveis. O aplicativo amplia a presença humana em
lugares virtuais.

Portanto, o desejo é gerado por imagens voláteis que, para estenderem sua vida útil na
visibilidade midiática, precisam desaparecer visualmente, a fim de perpetuar virtualmente sua essência
na memória. Uma imagem muito vista perde seu poder de sedução. Isso é a mecanização do sistema
de moda e suas imagens. Cada imagem deve ter um prazo de validade pré estabelecido, para que
nunca se torne fixa e dê abertura para a chegada de uma nova, ciclicamente.

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Para futuras pesquisas, em continuidade a esta, vale pensar sobre a produção de imagens de
moda em aplicativos e redes sociais, considerando sua fugacidade e consciência do tempo presente,
sendo um complicado reflexo da realidade da comunicação contemporânea.

REFERÊNCIAS
Livros:
AVELAR, Suzana. Moda, globalização e novas tecnologias. São Paulo: Estação das Letras e Cores,
2011.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BORRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São
Paulo: Martins, 2009.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. São Paulo: Editora da Universidades de São Paulo,
1989.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FELINTO, Erick e SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o pós-
humanismo. São Paulo: Paulus, 2012.
HELLER, Eva. A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. São Paulo:
Gustavo Gili, 2013.
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Edições
Loyola, 2015.
OLIVEIRA, Ana Claudia de (Org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004.
OLIVEIRA, Sandra Ramalho e. Moda também é texto. São Paulo: Edições Rosari, 2007.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: a alquimia dos corpos e das almas à luz das tecnologias
digitais. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
TRIVINHO, Eugênio. Glocal: visibilidade mediática, imaginário bunker e existência em tempo real.
São Paulo: Annablume, 2012.
Links:
BUSINESS INSIDER. Disponível em: http://www.businessinsider.com/how-to-use-snapchat-2015-2.
Acesso em: 03 nov. 2015.
COLCCI. Disponível em: http://www.colcci.com.br/. Acesso em: 08 nov. 2015.
15  

 
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COMSCORE. Disponível em: https://www.comscore.com/Insights/Blog/Does-Snapchats-Strength-


Among-Millennials-Predict-Eventual-Mainstream-Success. Acesso em 03 nov. 2015.
DIOR. Disponível em: http://www.dior.com/home/pt_br. Acesso em: 08 nov. 2015.
EXAME. Disponível em: http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/snapchat-e-procurado-por-marcas-
como-meio-de-publicidade. Acesso em: 03 nov 2015.
THE IMPRESSION. Disponível em: http://theimpression.com/christian-dior-cruise-show-snapchat/.
Acesso em: 08 nov. 2015.

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Maio 2016

A (RE)CONSTRUÇÃO DA CRIAÇÃO DE UMA COLEÇÃO DIGITAL DE


FOTOGRAFIAS: MOTIVAÇÕES E DIÁLOGOS1

THE CREATION OF A PHOTOGRAPHIC COLLECTION: MOTIVATION AND DIALOGUES – A


(RE)CONSTRUCTION

Anna Lucia da Silva Araujo Vörös (UFPR)2


Ronaldo de Oliveira Corrêa (UFPR)3
annavoros@gmail.com; rcorrea@ufpr.br
Resumo
Nesse artigo apresentamos considerações sobre o processo de reconstrução da coleção de fotografias
Vintage Photos, veiculada no blogue The Sartorialist. Os procedimentos metodológicos adotados
baseiam-se nos pressupostos teórico-metodológicos provenientes de estudos da Cultura Material, da
História e da Memória. Dos resultados encontrados, observou-se que há nessa coleção uma narrativa
predominante, a qual associa questões de identidade e estilo de vida das pessoas retratadas com uma
determinada noção de moda.

Palavras-chave: fotografia; coleção digital; moda.

Abstract
This paper presents some considerations regarding the reconstruction process of a collection of
photographs in a blog called “The Sartoralist”. The methodological approach was established by the
Material and Visual Culture as well as the History and Memory studies point of view. From this analysis,
we can assume that the predominant narrative on this collection is an idea of a style of dress, which is
associated to fashion sense related by the identity and lifestyle of the portrayed people.

Keywords: photography; digital collection; fashion.

O uso de imagens fotográficas na difusão da informação sobre estilos de vestir


relacionados às tendências de moda e ao uso cotidiano da indumentária é bastante recorrente
em plataformas digitais, tais como se pode observar em websites e blogues dedicados ao tema.
Observamos que os temas divulgados nessas plataformas digitais estão relacionado à origem de

1 Essa investigação trata-se de um estudo exploratório realizado dentro do contexto da pesquisa de doutoramento
de um dos autores, a qual se encontra em andamento.
2 Graduada em Design de Produto pela UFPR (2008). Mestre em Design pela UAM (2012); doutoranda no Programa

de Pós-Graduação em Design da UFPR - Curitiba, PR.


3 Mestre pelo PPGTE - UTFPR (2003), Doutor pelo PPGICH/UFSC (2008) e Pós-doutorado no PPGAS/UFRGS

(2012-2013). É professor do Departamento de Design da UFPR, do Programa de Pós-Graduação em Design na


mesma instituição e professor convidado do Programa de Pós-graduação em Tecnologia da UTFPR.
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quem promove tais iniciativas. As informações que circulam nessas plataformas podem, por
exemplo, ter sido idealizada por empresas, profissionais, estudantes ou curiosos ligados aos
temas da Moda. No caso da pesquisa relatada, enfocamos uma iniciativa de cunho pessoal, o
blogue The Sartorialist 4.
Criado e editado pelo fotógrafo de moda Scott Schumann, os assuntos apresentados
nesse blogue são orientados pela temática da moda e suas relações com a vida cotidiana (THE
SARTORIALIST). Ele é composto por fotografias e textos de Schumann provenientes de suas
observações sobre pessoas que circulam em ruas de diferentes cidades e países. Esse
conteúdo é publicado no blogue sob o formato de postagens diárias5, ordenadas segundo a data
da publicação.
Para realizar essa investigação, selecionamos um conjunto específico do conteúdo do
blogue, denominado de coleção Vintage Photos. Diferente de outras postagens do blogue, essa
coleção não é composta por fotografias de autoria de Scott Schumann, mas por fotografias
enviadas por leitores e leitoras do blogue. Nosso interesse, portanto, foi identificar como
Schumann criou essa coleção e estabeleceu articulações entre seus conteúdos e os temas de
seu interesse, especialmente o conceito vintage relacionado à moda.
Nesse artigo, narramos os procedimentos teórico-metodológicos adotados na
reconstrução dos processos de criação, edição e divulgação da coleção, bem como no
mapeamento das narrativas presentes nas postagens da coleção. Tais procedimentos foram
baseados nos estudos sobre a fotografia como fonte documental, em especial de Carvalho et al
(1994), Kossoy (2012) e Mauad (2001; 2005) articulados com as contribuições de Pomian (1984)
sobre as coleções e Miller (2013), sobre as mídias de comunicação, pautado pelos estudos da
cultura material.
A síntese dos resultados obtidos baseia-se na análise quantitativa dos dados coletados e
nas questões por eles suscitadas. Um dos pontos que ressaltamos é a constatação da forma
como Schumann articula sua temática: a noção de moda aparece associada às relações entre as
questões de identidade e estilo de vida das pessoas retratadas. Além disso, o método de análise
estabelecido, orientado pelo princípio da intertextualidade, fez ampliar a coleta de dados em
outras postagens do blogue, o que nos propiciou reconhecer, por exemplo, os motivos que
originaram a criação da coleção. Por fim, as questões suscitadas na análise quantitativa

4 O blogue existe desde 2005. Cabe observar que o termo sartorialist, que compõe o título do blogue, seja uma
criação de Scott Schumann a partir da palavra inglesa sartorial, que significa alfaiate. Entendemos que o uso desse
termo reforça a ideia de elegância, qualidade e estilo, visto que são as temáticas presentes no blogue.
5 A palavra postagem é uma adaptação do verbo em inglês post, cujo significado, para o contexto da internet, refere-

se à divulgação pública de textos e imagens em mensagens, blogues ou websites (CAMBRIDGE DICTIONARIES


ONLINE; DICTIONARY.COM). Disponível em <http://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/english/post> e em
<http://dictionary.reference.com/browse/post?s=t>. Acesso em 23/02/2016.

2
ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 147
Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

demonstram a necessidade da realização de análise das postagens, tomadas individualmente e


no conjunto.

A Coleção Vintage Photos

A coleção Vintage Photos é um conjunto específico de postagens do blogue The


Sartorialist. Diferente das outras postagens, que são formadas por fotografias e textos de autoria
de Schumann, essa coleção apresenta fotografias e textos provenientes de leitores do blogue.
Ela é composta por 100 postagens publicadas entre janeiro de 2010 e fevereiro de 2015,
reunidas no blogue pela categoria temática vintage photos, criada por Schumann e usada por
nós para nomear a referida coleção. As postagens seguem o mesmo padrão formal das outras
postagens do blogue: são compostas por fotografias e textos.
Por meio da análise da coleção, pudemos identificar que as fotografias são provenientes
de diferentes acervos pessoais e foram enviadas para Scott Schumann por correio eletrônico.
Assim como as fotografias, os textos que acompanham as fotografias são ora depoimentos dos
cedentes das fotografias, ora comentários de Schumann, ou ambos, justapostos. Tais
características podem ser observadas na figura 01, que apresenta uma captura digital da última
postagem da coleção, com data de 07 de fevereiro de 2015. Nela há uma (01) fotografia e um
texto, assinado por Moritz. A fotografia apresenta um casal, fotografado em um ambiente com
neve, trajado com roupas próprias para o clima de inverno. O texto apresenta uma breve
descrição do filho do casal sobre o evento fotografado.

Figura 1: Captura digital da imagem da última postagem da coleção, datada de 7 de fevereiro de 2015.
Fonte: <http://www.thesartorialist.com/vintage-photos/vintage-photo-27/>. Acesso em 09/dez/2015.
Autoria da captação: os autores, 2015. Observação: a captura não contém a postagem inteira

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

Voltando a atenção para o conjunto das postagens, cabe comentar sobre o significado
da categoria vintage photos, adotada por Schumann. O termo vintage pode ser compreendido,
segundo as definições para o termo na língua inglesa6, como um adjetivo que denota a elevada
qualidade de um artefato produzido no passado. Além desse significado, o vintage pode ainda
qualificar algo como obsoleto ou "fora" de moda - ou seja, algo que não segue as prescrições de
estilo de determinada época e contexto. Para analisarmos as postagens, adotamos o significado
assumido por Schumann, que se relaciona à primeira definição, a saber, qualificar as roupas e
acessórios antigos como artefatos de alta qualidade.
Seguindo essa definição, um valor que remete ao significado do vintage é a ideia de
tempo passado. Portanto, observamos que as fotografias da coleção apresentam certa variação
da época, do lugar e da cena em que se deram os registros. A maior parte delas abarca as
décadas de 1930, 1940 e 1950, explicitando no marcador temporal a definição de antigo para
Schumann. Os valores que formam o conceito de vintage recaem nas ideias de qualidade e
estilo, as quais podem ser verificadas, por exemplo, nos textos e comentários presentes nas
postagens. Neles, observamos palavras e frases que informam sobre ideias de senso de estilo
pessoal, charme e elegância.
Ampliando a leitura dessas postagens, obtemos outros dados que nos informam, por
exemplo, sobre as marcas das roupas e dos acessórios, sobre a identidade das pessoas e as
situações onde foram registradas.
No caso específico da postagem da figura 01, podemos obter dados sobre o ano
aproximado em que foi feita a fotografia, o local onde foi tomada e a relação afetiva entre as
duas pessoas fotografadas. Além disso, também apresenta uma breve descrição sobre uma das
roupas nela registrada, a jaqueta azul escura da marca Bogner, como se lê na transcrição do
texto de Mortiz:
Meus pais em uma excursão de inverno. Segundo minha mãe, a fotografia foi
tirada em 1955 ou 1956 em Feldberg, uma montanha perto de
Frankfurt/Alemanha, onde moravam naquela época e haviam se conhecido
pouco tempo antes. Minha mãe lembra-se de sua jaqueta da Bogner,
confeccionada em popelina de cor azul escura, com costuras em vermelho e
branco no capuz. Ela disse que se orgulha muito e dessa jaqueta e eu posso
entender porquê.
- Moritz (THE SARTORIALIST, Vintage Photo, 7 de fevereiro de 2015.
Tradução dos autores).

6 Consulta realizada em: CAMBRIDGE DICTIONARIES ONLINE. Disponível em


<http://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/english/vintage>. Acesso em 23/02/2016. DICTIONARY.COM.
Disponível em <http://dictionary.reference.com/browse/vintage?s=t>. Acesso em 23/02/2016.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

A partir da leitura do conjunto das fotografias, pudemos verificar que elas retratam
homens e mulheres jovens, ora sozinhos, ora como casais, como famílias e/ou como amigos.
Essas pessoas aparecem caminhando na rua, em viagens, em atividades esportivas, ora em
cidades, ora em praias, para citar alguns dos cenários observados.
Sendo assim, todos esses indicios reunidos e analisados segundo o princípio da
intertextualidade, compõem o conjunto de dados que tornaram possível reconstruirmos o
processo de criação da coleção, tais como as motivações de Schumann e sua visão sobre o que
é pode ser categorizado como vintage.
O conceito da intertextualidade é abordado por Mauad (2001; 2005) e está relacionado à
possibilidade de se interpretar um texto a partir de sua relação com outros textos, tanto os que o
precedem quanto os que o referenciam. Para desenvolver essa ideia, a pesquisadora articula
uma noção ampliada para o conceito de texto, entendendo-o enquanto suporte de relações
comunicacionais, social e culturalmente definidas. Sendo assim, Mauad (2001) apresenta a
palavra como um texto verbal e a imagem como um texto não-verbal.
De forma a complementar esse raciocínio, a pesquisadora traz as reflexões de Rossi-
Landi a fim de corroborar com a ideia de que as imagens e as palavras são suportes e meios de
expressão nos processos da comunicação. Para ele, ambas
[...] constituem as duas maneiras fundamentais de objetivação e da
comunicação humanas. Abaixo dessas maneiras não se pode descer sem
que o discurso cesse de ter o homem como seu objeto. (Rossi-Landi, 1985,
p. 127, apud Mauad, 2001, p.61)

Mauad (2001) considera que a imagem e a palavra são, ao mesmo tempo, sistemas de
significação que resultam de processos de comunicação anteriores e geradores de novos
conteúdos. Desse modo, a intertextualidade é articulada como uma estratégia para a
interpretação de narrativas. Por meio dela, deve-se estabelecer um diálogo entre os diferentes
textos que as compõem, procurando obter, por meio das inter-relações, informações sobre os
significados das narrativas construídas.
No caso da coleção Vintage Photos, consideramos que sua narrativa é formada pelo
conjunto das postagens e por cada postagem, as quais estão inter-relacionadas na coleção e
comunicam a ideia do que vem a ser vintage, qualidade e memória. Isso significa que cada
postagem tem uma narrativa própria, formada pelas fotografias, pelos textos e pelos comentários
que as compõem. E, seu conjunto irá compor a narrativa geral da coleção. Desse modo, por
meio do estabelecimento de diálogos entre esses textos procuramos obter os dados, ora
explícitos, ora implícitos, que tornariam revelar os sentidos e os significados da coleção.
Nesse ponto, cabe comentar que o próprio blogue The Sartorialist também deve ser
considerado como um texto polissêmico, pois guarda uma série de narrativas. Elas se
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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

apresentam na forma das postagens e, assim como a coleção, também foram organizadas e
editadas para comunicar determinadas mensagens.
Vale ressaltar também a necessidade de se investigar o próprio sistema de códigos que
estruturam as imagens e os textos. Para a análise dos códigos que estruturam as fotografias,
pautamo-nos pela ideia de que as fotografias são imagens que materializam tecnologias,
percepções e escolhas. Tais componentes são também construídos e partilhados cultural e
socialmente. Dito de outro modo, a fotografia pode ser entendida como a materialização de
eventos de natureza social ou individual (CARVALHO et al, 1994).
Segundo Kossoy (2012), para se estabelecer um procedimento metodológico para o
exame de fotografias deve-se considerar que elas constituem "objetos-imagens", pois elas serão
percebidas "(...) pelo conjunto de materiais e técnicas que lhe configuram externamente
enquanto objeto físico e, pela imagem que o individualiza (...) (KOSSOY, 2012,p.48). Sendo
assim, para se estabelecer os procedimentos de análise de fotografias, deverão ser analisados
dois momentos diferentes: o processo de criação da fotografia e a própria fotografia. Para efeito
de análise, o pesquisador nomeia-os como a primeira realidade e segunda realidade da
fotografia (KOSSOY, 2012).
A "primeira realidade" da fotografia constitui-se pelo processo de materialização da
fotografia. Esse processo conta com três elementos constitutivos, nomeados por Kossoy (2012,
p.39) de assunto, fotógrafo e tecnologia. Cabe lembrar que, durante o ato fotográfico, esses três
elementos estão sujeitos ao contexto e ao tempo em que ocorre o processo. Portanto, nele
influenciam os aspectos socioculturais, geográficos, a época, data e momento do ato fotográfico.
O processo culmina com um registro visual, a fotografia. Ela se constitui, por sua vez,
por um artefato material que contém uma imagem, resultante do que foi observado e capturado.
A imagem torna-se a segunda realidade da fotografia, a realidade do documento.
Tratando as orientações de Kossoy (2012) de maneira resumida, deve-se considerar o
exame da procedência e trajetória da fotografia, bem como uma análise técnica e uma análise
iconográfica. O conjunto desses procedimentos abarca a pesquisa sobre a trajetória fotógrafo,
sua atividade e repertório, as tecnologias empregadas e o exame dos temas retratados (Kossoy,
2012). Essa é uma atividade complexa e exige a pesquisa interdisciplinar, visto que demanda a
investigação dos elementos que compõem o objeto e a imagem.

Sobre as estratégias delineadas

O estudo sobre a coleção Vintage Photos foi delimitado, primeiramente, pelo interesse
de se investigar coleções de fotografias disponibilizadas em plataformas digitais e relacionadas

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

com a história da Moda. Outros aspectos levados em consideração foram: a) o uso público de
fotografias de álbuns de família, por meio de sua digitalização; b) o uso das fotografias de álbuns
de família como fonte de informação para narrar sobre tipos de indumentária, sua relação com a
vida das pessoas e com a história da Moda; c) o uso de depoimentos dos cedentes das
fotografias e, em alguns momentos, textos de Schumann que traçam considerações sobre o
vestuário e a história da moda.
Optou-se por denominar esse conjunto de postagens por coleção pela observação de
seu conteúdo. Para Pomian (1984), uma coleção é, em síntese:

qualquer conjunto de objectos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou


definitivamente fora do circuito das actividades económicas, sujeitos a uma
proteção especial num local fechado preparado para esse fim, e expostos ao
olhar do público (POMIAN, 1984, p.53).

Pautando-nos pela ideia central de Pomian (1984), observamos que todas as postagens
retratam pessoas em diferentes situações e datas e foram agrupadas por Schumann sob a
categoria vintage photos. Ou seja, elas formam um conjunto de dados reunidos sob um tema,
exibidas em um determinado local e mantidas em um circuito de circulação específico, o blogue.
Para efetuar a reconstrução da criação da coleção, fizemos a coleta das postagens de
modo digital. Nessa coleta, copiamos digitalmente os elementos que a compõem: as fotografias
enviadas pelos leitores do blogue e seus textos sobre elas. O registro das fotografias e dos
textos foi feito por meio de cópias para arquivos digitais, seguindo um protocolo de registro. A
coleta iniciou-se em março de 2015 e terminou em julho do mesmo ano. Ao todo, foram
recolhidas 100 postagens, conforme observado anteriormente.
Do conjunto total das postagens, 98 delas apresentam texto e 02 não. A maioria delas
contêm imagens, sendo que duas não têm, uma tem 01 fotografia de Schumann, 01 contém
fotografias compradas por ele e as outras 96 contêm fotografias enviadas por seus leitores.
Das postagens que contêm fotografias, verificamos que elas variam em quantidade de
fotografias: 82 contêm 01 fotografia, 09 contêm 02 fotografias, 04 têm 03 fotografias, 01 tem 6
fotografias e 01 contém 09 fotografias. Analisando esses dados, observamos que a maior parte
da coleção é composta de postagens com 01 fotografia.
Para delinearmos o método de coleta, registro e análise das fotografias, bem como seu
protocolo, pautamo-nos nas premissas apresentadas pelas pesquisas de Carvalho et al (1994),
Kossoy (2012) e Mauad (2005). As orientações de Mauad (2005) sobre a análise das fotografias
sintetizam as ideias também apresentadas por Kossoy (2012).
A pesquisadora apresenta três aspectos principais que devem ser levados em
consideração (MAUAD, 2005, p.135): o dispositivo de produção da imagem (o dispositivo
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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

técnico), a recepção (o valor atribuído à imagem) e o produto (e que resulta da relação entre
sujeitos). Nosso foco esteve no aspecto da recepção e do produto, uma vez que não tivemos
acesso às informações dos dispositivos de produção das imagens. Para analisar a recepção,
contabilizamos e lemos os comentários de leitores do blogue, registrados em cada postagem.
Enquanto produto, traçamos uma análise da relação das postagens com esse espaço virtual,
intertextual, que vai atribuindo sentidos ao produto - fotografias e textos em forma de postagens.
Fez-se necessário também levar em consideração que "entre o objeto e a sua
representação fotográfica interpõe-se uma série de ações convencionalizadas, tanto cultural
como historicamente" (MAUAD, 2005, p.136) e que a fotografia materializa uma escolha daquele
que a produziu. O que quer dizer que coexistem na fotografia elementos do repertório individual
e coletivo desse sujeito, ou seja, traz em si sua visão de mundo e sua cultura - aspectos também
enfatizados por Kossoy (2012).
O protocolo de coleta e registro das postagens abrangeu uma ficha de registro e um
procedimento padrão para arquivamento das fichas e das imagens, as duas em formato digital.
Essa ferramenta foi adaptada de Corrêa (2008) e Tessari (2014). Na sua elaboração, foram
delineados os seguintes indexadores para registrar os dados coletados nas postagens: a) data
da postagem; b) título da postagem; c) número de comentários dos visitantes do blogue; d)
autoria do registro; e) data do registro; f) hora do registro; g) nome(s) do(s) arquivo da(s)
imagem(ns) na postagem coletada; h) referência da página do blogue; i) observações.
Além dos indexadores, foram estabelecidos os campos para inserir a(s) imagem(ns) e
o(s) texto(s) da postagem, seguindo a ordem em que aparecem. Após o estabelecimento do
Protocolo de Registro de Imagem (PRI), realizamos dois registros de postagens, a fim de testá-
lo. A partir deles, executamos alguns ajustes para atingir a configuração final. As modificações
foram: a) inserção das tags, utilizadas no blogue como palavras-chave para identificar o tema
das postagens; b) inserção do título da postagem e inserção do título dos arquivos das imagens
utilizados no blogue. Os PRIs formaram um inventário de arquivos digitais, os quais foram
separados em pastas digitais pela data da postagem, contendo o PRI e os arquivos digitais das
imagens, copiados do blogue.

O que podemos ler na coleção Vintage Photos?

Até 10/julho/2015 foram coletadas 100 (cem) postagens, sendo a primeira datada de
03/janeiro/2010 e a última publicada em 07/fevereiro/2015. A primeira postagem, de 03 de
janeiro de 2010, foi intitulada de "Uma Família de Estilo Desconhecida (An Unknown Family of
Style). No texto dessa postagem, Schumann declara que as 06 fotografias, ali apresentadas,
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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

foram compradas por ele em um mercado de usados (flea market) e têm a origem desconhecida
(figura 2).
Segundo sua declaração, sua motivação em comprá-las e disponibilizá-las no blogue foi
o fato das pessoas retratadas estarem, sob seu ponto de vista, "impecáveis". Suas posturas e as
composições entre as peças do vestuário revelam certo cuidado com a imagem representada.
Suas roupas são, para Schumann, de extrema qualidade; modelos de alfaiataria feitos com bons
tecidos.

Figura 2: Fotografias da postagem intitulada "Uma Família de Estilo Desconhecida" (An Unknown Family of Style),
de 03 de janeiro de 2010. Fonte: THE SARTORISLIST. Disponível em <http://www.thesartorialist.com/photos/an-
unknown-family-of-style/>. Último acesso 10/dez/2015.

Embora Schumann declare que não gostava de ver as caixas de fotografias antigas,
muito comuns nesses mercados de usados, nesse dia sua atenção foi diferente. A partir da
primeira fotografia encontrada (na figura 2, primeira foto no topo, da esquerda para a direita),
passou a pesquisar na caixa se haviam outras fotografias da mesma família. Foi então que
encontrou as demais imagens postadas. Sua motivação foi ainda além da busca de pessoas
com um estilo elegante de vestir (foco do blogue) e ele sentiu-se motivado a se perguntar: "quem
são essas pessoas? Elas estão vivas? O estilo dessa geração influenciou a próxima? Onde
compravam?"
Para Schumann, o fato de não ter informações sobre essas pessoas lhe motivava ainda
mais. Por fim, termina o texto da postagem dizendo que ama fotografias antigas e avisa seus
leitores para não se surpreenderem se esse tipo de postagem se torne mais frequente no
blogue. Seu alerta se deve ao fato de que, até então, as fotografias das postagens eram de
autoria de Schumann.

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Após a leitura da primeira postagem, demos sequência à leitura das seguintes


postagens da coleção: datadas por 24/3/2010, 26/03/2010, 27/03/2010, 28/03/2010. Elas tinham
o título "atualização do concurso (contest update) ou "concurso de fotos antigas" (vintage photo
contest). A partir delas, foi necessário fazer uma busca nos arquivos do blogue para saber se as
fotografias eram provenientes de mercados de usados, confirmando assim a informação dada na
primeira postagem. E, ainda, para entender de que concurso se tratava. A busca também se fez
necessária porque nessas primeiras postagens não havia assinatura ou outra informação sobre
a autoria das fotografias e textos.
Verificamos os dados das postagens do ano de 2010, quando foi feita a primeira
postagem da coleção Vintage Photos 7. Nesse mapeamento, procuramos as motivações para a
continuidade das postagens, bem como seus temas e a origem das fotografias.
Três postagens revelavam informações sobre a criação dessa coleção: 17 de março, 24
de março e 29 de março de 2010. Por meio da leitura das três, foi possível identificar que as
fotografias foram cedidas para Schumann por leitores de seu blogue, motivados pelo concurso
criado por ele, no qual os vencedores receberiam uma publicação da marca francesa Cèline8,
chamada Cèline Inspiration Book.
Na postagem de 29 de março de 2010, mais especificamente, Schumann apresenta uma
lista das regras desse concurso, dentre as quais cita que 2 livros serão leiloados - e o dinheiro
obtido doado para caridade - e que 1 livro será dado para o vencedor(a) do concurso de fotos
antigas (vintage photos). Outra regra que foi relevante para a nossa análise foi a listada por
último: " - escrever algo sobre a imagem enviada torna a postagem muito mais interessante para
todos" (THE SARTORIALIST, 29/mar/2010). Esse dado nos ajudou a supor que haveria
diferentes autores nos textos da coleção.
Embora houvesse essa regra, nem todos os textos das postagens tinham identificação
de quem o escreveu. Então, para as identificarmos, buscamos relacionar outros dados das
postagens. A partir dessa nova leitura - orientada por essa questão - verificamos que havia mais
de uma fotografia que apresentava o registro de uma avó ou um avô (dados escritos no texto).
Tendo em vista que Schumann não poderia ter mais de 4 avós, chegamos à conclusão de que
nem todos textos eram, portanto, de sua autoria. Além disso, também observamos que os textos
tinham erros de pontuação, tipos e tamanhos de fontes diferentes das outras postagens de
Schumann, e que também variavam ao longo do texto dentro da própria postagem. Tal fato
reforçou a nossa percepção de que alguns textos eram de autoria de terceiros.

7 Esta seção está na barra do menu e chama-se "archives".


8 Para mais informações, acesse: <https://www.celine.com>.
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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

Na postagem de 31 de março de 2010, intitulada Contest Update, Schumann agradece o


envio das fotos e comenta que esperava receber apenas algumas centenas. Porém, até aquele
momento, já havia recebido mais de 2.200 submissões. Nessa postagem, diz também para seus
leitores continuarem a mandar as fotos para o correio eletrônico do blogue, mas que devido à
grande responsabilidade do concurso, levará mais uma semana para ler os e-mails e então
anunciar seu vencedor. Vale ressaltar que ele continuou postando as fotografias com o título
Vintage Photos Contest até 2 de maio de 2010, sem mencionar quem ganhou o concurso. Até o
presente momento da pesquisa, não foi possível assegurar quais os critérios utilizados por
Schumann para a escolha das fotografias que foram postadas.
As postagens prosseguiram e seus títulos passaram a conter a expressão Vintage
Photos. Na postagem de 06/05/2011, Schumann agradece novamente o envio das fotografias e
orienta seus leitores a continuarem o envio das fotografias para o correio eletrônico - esse
também intitulado de Vintage Photos - com arquivos de tamanho pequeno e uma breve
descrição do conteúdo das imagens, tornando-as mais interessantes para todos.
Outro dado importante detectado trata da participação de outra pessoa na seleção das
fotografias, na postagem de 29 de março de 2010. Nela, Scott Schumann cita a participação de
uma pessoa chamada Garance. A partir disso, fizemos uma busca desse nome em outras
postagens no blogue, na qual encontramos um registro em 13/ago/2014 (com o título Garance &
I). Cruzando esses dados com uma rápida pesquisa na internet sobre esse nome, descobrimos
que Garance Doré era namorada de Schumann naquela época9.
Seguindo esse mesmo intuito, qual seja, encontrar dados sobre a seleção das
fotografias, fizemos a leitura dos comentários dos leitores do blogue nas 100 postagens. Nessa
leitura, notamos que a maioria das pessoas elogiava a postagem em questão, por meio de
comentários tais como bonito (beautiful) e "amei isso" (love it). Também percebemos que muitas
pessoas inseriram endereços de seus websites e blogues, solicitando para que Scott Schumann
os lesse.
Para mapear a temática da coleção - vintage photos - fizemos uma leitura do conjunto
das postagens. Seguindo o tratamento seriado do conjunto de fotografias (CARVALHO et al,
1994, p.264-265), foi possível estabelecer semelhanças formais e/ou temáticas entre as
postagens e, ainda, identificar exceções. Ao fazê-lo procuramos verificar se havia recorrência
nas cenas, situações, perfil dos retratados, por meio de algumas perguntas, como, por exemplo:
quem são as pessoas retratadas: homens, mulheres, crianças? Eles estão sozinhos ou

9Seu sobrenome aparece no título de algumas postagens. Por meio do site dela (www.garancedore.fr), descobrimos
que também mantém um blogue de moda e estilo de vida, desde junho de 2006.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

acompanhados? Como é o lugar onde foram retratados: uma cidade, praia, campo, um ambiente
fechado? Eles aparecem em quais situações? Há alguma predominância de modelos de roupas?
Quais?
Em relação às pessoas que foram fotografadas, a maior parte das postagens apresenta
retratos de homens ou de mulheres, totalizando 23 postagens com homens (sendo 1 de um
menino) e 21 com mulheres. Em seguida, aparece em maior número o registro de casais ou
duplas de homens com mulheres (16 postagens). O restante (40) é a soma das postagens em
que aparecem grupos de homens ou grupos de mulheres e arranjos que se assemelham à
imagens de famílias. Nessa contagem, não foram consideradas: a) a primeira postagem da
coleção; b) 02 postagens sem imagem; c) 01 postagem com fotografias do livro da fotógrafa
Marianne Breslauer; d) 09 postagens que misturam fotografias duas dessas categorias listadas.
Outro dado que se mostrou relevante para delinear o recorte temático da coleção foi a
identificação do local onde as pessoas retratadas estavam. A indicação do local de onde foi feito
o registro pode nos servir como um dado que indica o estabelecimento de uma narrativa que dá
preferência a determinados estereótipos de padrão de beleza e de modelo de indumentária,
associados às classes sociais e etnias, identificadas nos países representados.
O país que mais se destaca na contagem total foram os Estados Unidos, contabilizando
19 postagens. Em seguida, aparecem Itália (6 postagens), França (5 postagens), Austrália e
Inglaterra (cada um em 4 postagens) e Espanha (3 postagens). Alemanha, Brasil e Japão
aparecem, cada um, em 02 postagens. Os demais países que foram citados apenas uma vez
foram: África do Sul, Bélgica, Canadá, Colômbia, Cuba, Dinamarca (incerto), Eslováquia
(incerto), Ilhas Canárias, Marrocos, Norte da África, Polônia, Rússia e Vietnã. Das 100 postagens
coletadas, 41 não apresentam identificação do local onde se deu o registro.
De modo complementar, estabelecemos indexadores para fazer uma análise quantitativa
dos dados obtidos: nome do país, mulher, homem, casal, dupla, grupo. Do que resultou um
indicador de perfil dos retratados: homens e mulheres fotografados ora sozinhos, ora em casal
ou grupos, sendo a maioria de origem ocidental.
Outro forma de obtermos dados para complementar as informações sobre o tema da
coleção foi a leitura das palavras-chave (tags), as quais foram associadas aos conteúdos das
postagens por Schumann. Do conjunto das 100 postagens, Schumann as utilizou apenas em 16
postagens. Deste subconjunto, 15 postagens foram associadas à palavra-chave vintage, sendo
que 10 postagens foram associadas a mais de 01 palavra-chave. As outras palavras-chave que
aparecem foram: backless, beach, books, denim, dresses, grooming, hats, jewellery, Morocco,
New York, photographers, portraits, summer, tailored, texture, women's accessories.

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Vale ressaltar que o uso de título, tag e os comentários de Schumann nas postagens
funcionam como um direcionamento para a leitura das fotografias, e, por conseguinte, para o
estabelecimento de um significado planejado por ele. O fato dele usar as tags serve, ainda, como
uma estratégia de circulação dos seus leitores em outras categorias temáticas do blogue,
acionada por meio de buscas ou consultas.
Ao fim, esse tratamento seriado nos possibilitou identificar a predominância de uma
narrativa nessa coleção, qual seja, a relação entre a noção de estilo e de moda com a identidade
e o estilo de vida das pessoas retratadas. Ela pode ser observada, por exemplo, na quantidade
de fotografias que exibem casais e famílias e o modo como foram retratados. Além disso, as
situações em que as pessoas foram retratadas podem ser agrupadas em situações de lazer ou
trabalho, tais como pode ser observado nas fotografias feitas de pessoas caminhando na rua,
nas praias, em poses de descanso, vestidas com trajes de caça, entre outras. Essas
recorrências nos informam sobre o universo social dos retratados e sobre seus estilos de vida.
Por meio delas, portanto, podemos identificar quais são os significados atribuídos às postagens
da coleção, tais como o que significa ser um casal ou uma família, ou o que forma a
masculinidade e feminilidade, o que é ter lazer e o que é o trabalho. Também podemos verificar
estratégias utilizadas para criar esses significados, como as relações que foram estabelecidas
entre o significado de estilo e senso estético pessoal com características das pessoas retratadas:
ora aparecem relações de estilo com a ideia de juventude, ora com a herança familiar, ou com a
classe social, ao comportamento, à etnia e ao país.
Ao examinarmos as datas de publicação foi possível estabelecer sua periodicidade,
definidas por ano e por dia da semana. Embora o caráter da periodicidade de publicações em
blogues seja bastante variável, pudemos identificar que os anos de 2010 e 2011 foram os
períodos em que foram realizadas mais postagens, diminuindo 1/3 em 2012, 3/4 em 2013,
zerando em 2014 e tendo apenas 01 postagem em 2015. Além disso, foi possível também traçar
a periodicidade por dia de semana, uma vez que Schumann adotou o formato "dia da semana +
mês + dia + ano" para anotar a data da publicação das postagens. Do conjunto total, 81% das
postagens foram feitas no sábado e no domingo.
Os dados sobre a periodicidade das publicações geraram perguntas sobre o que
motivava Schumann a dar continuidade às postagens, mesmo após ter encerrado o concurso
que deu origem a essa categoria de postagens. Buscamos relacionar os dados de periodicidade
com o número de comentários, o conteúdo das postagens e a parada de postagens, em
fevereiro de 2015. Algumas das hipóteses delineadas foram: Schumann teria parado de publicar
fotografias porque perdeu o interesse no tema? Por que seus leitores deixaram de se interessar?
Por que as postagens tornaram-se repetitivas? Enfadonhas?
13
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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

Observamos que o blogue apresenta uma ênfase pessoal na produção do conteúdo.


Contudo, embora o blogue não seja para divulgar o trabalho do profissional, seu repertório e sua
visão são influenciados por sua especialidade na área da Moda. Porém, vale examinar: será que
essa especialidade permite a seu autor, Scott Schumann, realizar suas postagens de forma mais
livre, sem um compromisso com um padrão? Isso pode ser mais facilmente notado, por exemplo,
no perfil de plataformas digitais de instituições, tais como museus, as quais estruturam um
projeto e depois divulgam seus resultados.
Essas e muitas outras perguntas poderão ainda ser feitas para esse material coletado.
Tal como mencionam Kossoy (2012) e Mauad (2005), o uso de textos junto às fotografias podem
servir para induzir a intepretação do conteúdo que elas apresentam. Seja por situá-las em
determinados contextos sociais e temporais, seja por identificar as pessoas e situações em que
foram retratadas, ou ambas. No caso do blogue The Sartorialist, os textos induzem a leitura das
fotografias mediante algumas chaves temáticas, apresentadas sob a forma do título das
postagens, na legenda, no texto que segue após a fotografia e no uso de tags, que representam
categorias temáticas. Além disso, os comentários das leitoras e leitores do blogue também
compõem outros textos que informam tanto suas intepretações e opiniões quanto novas
informações sobre as postagens.

Vintage Photos: uma coleção de fotografias, memórias e ideias de estilo e moda

Esse artigo apresenta a descrição dos procedimentos teórico-metodológicos na


reconstrução dos processos de criação da coleção digital de fotografias, denominada Vintage
Photos, bem como a síntese dos resultados obtidos. Diferente de uma análise que enfoca o
exame da fotografia separando-a do texto que a acompanha, e vice-versa, o método empregado
proporcionou o estabelecimento de diversas relações entre as fotografias e os textos presentes
na coleção. Ao fim, os diálogos entre essas fontes possibilitaram uma interpretação mais
completa dos dados obtidos e nos forneceram elementos para mapearmos as motivações e
escolhas que conduziram a criação, edição e divulgação da coleção.
Outra reflexão que pudemos estabelecer sobre as motivações da criação da coleção
Vintage Photos, parte do entendimento que o blogue The Sartorialist é uma mídia de
comunicação (MILLER, 2013). Nesse sentido, observamos que no blogue circulam ideias e
valores social e culturalmente construídos. E, portanto, nos conduz para uma exame sobre o
modo como as pessoas usam esse blogue, apropriando-se de seus conteúdos, compartilhando
ideias e estabelecendo conexões.

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É interessante observar que a coleção Vintage Photos , diferente das demais postagens
do blogue, foi criada por fotografias antigas e textos enviados por leitores do blogue. Nessa
coleção, portanto, as pessoas que tiveram suas fotografias publicadas se tornaram os autores
das postagens. Mesmo que as postagens tenham sido publicadas por Schumann e reflitam suas
escolhas no universo das 2.200 cartas que recebeu, elas se constituíram a partir dos fragmentos
de memórias, visuais, afetivas, sociais, dessas pessoas. Sendo assim, elas passaram do status
de leitores do blogue para autores de postagens e suas ideias passaram a circular de outro
modo no blogue.
Uma das formas de circulação se estabelece a partir do envio das fotografias para o
editor das postagens - que é o próprio Schumann -, o qual também irá criar outra forma de
circulação dessas histórias específicas a partir de suas publicações no blogue. Outra forma, mais
explícita, se constrói por meio dos comentários dos leitores do blogue. Vale ainda comentar que
essa circulação de ideias e valores também foi mediada por Schumann, visto que ele
estabeleceu algumas estratégias que resultaram em um enquadramento temático. Por fim, as
questões suscitadas nessa fase da pesquisa demonstram a necessidade da realização de
análise das postagens, tomadas individualmente e no conjunto.

Referências

CARVALHO, V.C ; FERRAZ, S. F.; CARVALHO, M.C.R.; RODRIGUES, T. F. "Fotografia e


História: ensaio bibliográfico". In: Anais do Museu Paulista. São Paulo, 1994, N. Ser. v.2 p.
253-300 jan./dez.

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012. 4a edição.

MAUAD, A. M. "Passado composto: palavras e imagens, a intertextualidade em história oral". In.


MONTENEGRO, A.T.; FERNANDES, T. M. (orgs.). História Oral: um espaço plural. Recife:
Universitária/UFPE, 2001, p59-69.

______. "Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas,
na primeira metade do século XX". In: Anais do Museu Paulista. São Paulo: 2005, n. Sér. v.13.
n.1.p. 133-174. jan. - jun.

MILLER, D. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de
Janeiro: Zahar, 2013.

POMIAN, K. Colecção. Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984,


p.51-86.

TESSARI, V. F. S. Fazer é pensar, pensar é fazer: O trabalho e os artefatos na Fábrica


Zeferino, Novo Hamburgo, RS. Dissertação (Mestrado) – Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, Curitiba, 2014.

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Design de moda e identificação cultural: uma análise de estratégias discursivas


em blogues de design brasileiros.

Fashion design and cultural identification: an analysis of discourse strategies


in brazilian design blogs.

Ana Paula França


(Universidade Positivo; Universidade Federal do Paraná)
anap.fcs@gmail.com

RESUMO

A consolidação do uso do termo design de moda no Brasil constitui um novo campo discursivo. Re-
flexões teóricas acerca das relações entre design e moda transcendem os limites acadêmicos, sendo a
web também um espaço para a criação de estratégias discursivas pertinentes ao processo de identifi-
cação cultural em curso. Este artigo apresenta uma análise do modo como o design de moda é enunci-
ado em blogues de design brasileiros, considerando-se o que é dito como uma forma de ação, e não
como mera representação de ideias prévias.

Palavras-chave: design de moda, identificação cultural, análise de discurso

ABSTRACT

The consisten use of the term fashion design in Brazil establishes a new discourse field. Theoretical
considerations regarding the relations between fashion and design transcends academic limits, being
the web also a space to create discourse strategies relevant to the cultural identification process in
course. This paper presentes an analysis on the way how fashion design is enunciated in Brazilian de-
sign blogs, considering what is said as a form of action rather than a mere representation of previous
ideas.

Key-words: fashion design, cultural identification, discourse analysis

1 INTRODUÇÃO

A partir de 2004, o uso do termo design de moda, no Brasil, tornou-se mais frequente. Por ex-
igência do Ministério da Educação, muitos cursos de formação profissional relacionados à moda adota-
ram a nomenclatura, adequando-se às Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em
design. Estudiosos apontam que tal adequação evidenciou e explicitou conflitos na aproximação entre
dois campos sociais. Não há acordos quanto ao papel do designer e do estilista, assim como quanto às

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semelhanças e diferenças entre design de moda e design de produto. Mas como esses embates são
constituídos e manifestos, considerando-se o dia-a-dia de estudantes e profissionais envolvidos?
Este trabalho parte da premissa de que práticas discursivas em blogues de design são partícipes
do processo de identificação cultural do design de moda. Salas de aula, congressos, revistas
acadêmicas não são os únicos espaços para discussões teóricas. A internet também favorece a
definição de locais para a produção e difusão de perspectivas críticas.
De maneira geral, um blogue é composto por posts periódicos, classificados por meio de catego-
rias e marcadores. Os conteúdos dos posts oferecem textos curtos, imagens ou links para outros sites.
A autoria pode ser individual ou coletiva e, em grande parte, há a possibilidade de manifestação de
leitores por meio de comentários. Um blogue, portanto, apresenta uma estrutura complexa e dinâmica,
que oferece uma grande possibilidade de articulações simbólicas.
A abordagem desenvolvida aqui deve especialmente às noções de cultura e identidade cultural,
sob os Estudos Culturais, e às noções de enunciado como acontecimento discursivo e formação dis-
cursiva, definidas pela Análise de Discurso de linha francesa. Portanto, os blogues de design são con-
siderados como ações sociais que favorecem a construção de estratégias de identificação cultural por
meio de práticas discursivas compostas por séries de enunciados singulares, irredutíveis à inter-
pretações.

2 TEORIA DO DESIGN, ESTUDOS CULTURAIS E ANÁLISE DE DISCURSO

Há a tendência de estudiosos e teóricos do design renegarem a moda, assim como acadêmicos


da área da moda remarcarem o papel subalterno do design (MOURA; CASTILHO, 2013). Apesar disso,
a interação entre design e moda localiza-se na inserção de disciplinas do universo da moda em cursos
de design e na presença de pesquisadores desenvolvendo trabalhos acadêmicos sobre moda dentro
de mestrados em design (CHRISTO, 2013). Mas esse quadro restringe-se ao âmbito acadêmico? Co-
mo a tensão entre a aceitação, rejeição e interação entre moda e design delineia-se em espaços não
legitimados pela academia?
Cada vez mais os indivíduos aprendem fora do sistema acadêmico, cabendo aos sistemas de
educação reconhecer os saberes adquiridos na vida social e profissional. (LÉVY, 1999). Estudiosos
reconhecem que há uma aprendizagem informal potencializada por trocas informacionais relacionadas
a interesses e objetivos pessoais (SOARES, 2010) e que, nesse caso, as possibilidades da internet
transcendem a lousa em sala de aula (KENSI, 2008). Os sites de redes sociais são cada vez mais
acessados para a produção, difusão e intercâmbio de conhecimento. Portanto, a aprendizagem ocorre
inclusive por meio de participação e interação online (SOARES, 2010).

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Como sites de redes sociais, os blogues de design apresentam-se aos seus leitores como pro-
motores de formação, atualização e integração profissional:

Esse é o blog 100% Design, criado em março de 2009 para quem se interessa por
design e suas diversas vertentes. Somos fonte de inspiração criativa e informação
com mais de 780 posts e 12 mil imagens. (100% DESIGN, 2016)

O design está inserido em tudo, aqui você encontra artigos sobre fotografia, design
gráfico, produção gráfica, design de produto e marketing. Também conta com dicas
e aulas que vão te ajudar a ser um profissional completo. (CLUBE DO DESIGN,
2016)

Hoje trabalhamos com conteúdo que ajuda desde estudantes de design até agên-
cias de publicidade e design. Passamos a maior parte do nosso tempo coletando in-
formações e compilando nosso conhecimento e experiência e levamos para os leito-
res do blog entenderem um pouco mais como lidar com clientes, como funciona um
processo de impressão, qual tipografia usar em seus trabalhos, fotografia, campa-
nhas publicitárias, enfim, tudo que rodeia nosso universo criativo. E claro, sempre
trazendo esse conteúdo de uma forma mais gostosa. (CHOCO LA DESIGN, 2016)

Uma característica fundamental do espaço aberto pelos blogues é a potencialidade de con-


vergências e confrontos de pontos de vista. Nesse sentido, pode-se considerar os blogues de design
como modalidades enunciativas de produção de identidades culturais. As identidades são “pontos de
apego temporários” que as práticas discursivas constroem com o objetivo de estabelecer posições de
sujeitos autorizados a “falar”. (HALL, 1995).
Ao conjunto de blogues interligados na rede deu-se o apelido de blogosfera. “O weblog surgiu
como uma ferramenta simples de criar conteúdo dinâmico em um website.” (RECUERO, 2002, p. 3).
Apresenta dois aspectos fundamentais: o microconteúdo denominado post (pequenas porções de texto
colocadas de cada vez), e a atualização frequente (diária, semanal, mensal).
A natureza dos posts pode variar, definindo duas grandes categorias: os diários eletrônicos e as
publicações eletrônicas. (RECUERO, 2002). Os primeiros são os aqueles que apresentam ênfase indi-
vidualista. Os posts referem-se a fatos pessoais de seus autores e funcionam como um diário. A se-
gunda categoria de blogues dedica-se à informação, aproximando-se da linguagem de jornais e revis-
tas, com notícias, dicas, comentários e críticas sobre um tema específico, como tecnologia, arte ou
música.
Os blogues de design brasileiros encaixam-se nesta última categoria e proliferam-se de modo
contundente. Na web existem redes de ranqueamento que estabelecem classificações e premiações
para os sites mais votados. Utilizando-se do sistema de busca “Google” é possível também acessar
uma lista de blogues mais bem cotados intitulados como “27 blogs que todo designer deve conhecer”,
“15 melhores blogs de design”, “10 blogs de design brasileiros que você precisa conhecer”. (GOOGLE,

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2016). Esse tipo de site pode ser inclusive um empreendimento comercial, sendo a ostentação de sua
audiência elemento importante para a captação de recursos junto a empresas anunciantes. A indicação
dos “melhores”, portanto, não demonstra qualquer imparcialidade, mas cria a oportunidade para que
alguns sejam mais facilmente localizados e acessados. A popularidade foi aqui assumida como o prin-
cipal critério para a definição de objetos de estudo para a investigação do modo como o design de mo-
da é enunciado em blogues de design.
A investigação proposta é conduzida por uma perspectiva cultural, atentando-se para o fato de
que toda prática social tem o seu caráter discursivo. Segundo Stuart Hall (1997), toda ação social é
cultural, pois constitui e é constituída por sistemas de significado variados que os indivíduos produzem
e utilizam para definir o que significam as coisas, codificando, organizando e regulando condutas
recíprocas. Os significados não surgem a partir de uma realidade em si, e sim de jogos de linguagem e
de sistemas de classificação compreendidos como fenômenos discursivos.
Para Dominique Maingueneau (2015), dizer que aquele panfleto ou aquele jornal são um discur-
so implica em assimilar que tais publicações são mobilizadores ativos de certas ideias-força. Aposta-se
que “Falar é uma forma de ação sobre o outro e não apenas uma representação do mundo.”
(MAINGUENEAU, 2013, p. 59). Os fenômenos discursivos, portanto, não serão encarados como do-
cumentos ou simples testemunhas de ideias exteriores. Os enunciados que compõem um discurso não
são reflexos de uma realidade anterior, são, ao contrário, acontecimentos. Não são matéria inerte atra-
vés da qual a história “tenta reconstruir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o
que deixa apenas rastros.” (FOUCAULT, 2014, p. 8).
Segundo Michel Foucault (2014), os fenômenos discursivos não se reduzem ao linguístico, mas
também não são absorvidos pelas realidades sociais ou psicológicas. A análise de discurso deve com-
preender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação, descrevendo suas condições de
existência, correlações com outros enunciados a que pode estar ligado, assim como mostrar formas de
enunciação excluídas. Não corresponde à uma interpretação em busca de elementos subentendidos,
mas à análise de elementos que vem à tona no que é dito e em nenhuma outra parte. (FOUCAULT,
2014) Trata-se de uma descrição dedicada à remarcar formas específicas de acúmulo de um conjunto
de performances verbais, sem forçar uma coesão, uma totalidade fechada. Ao manter-se no nível dos
enunciados, a análise de discurso evidencia a dispersão, destacando lacunas e contradições.
Diante de tal complexidade, deve-se, contudo, aceitar um recorte provisório e uma área de
domínio “em que as relações corram o risco de ser numerosas, densas e relativamente fáceis de des-
crever.” (FOUCAULT, 2014, p. 36).
A análise de discurso aqui desenvolvida tem como recorte provisório, como ponto de partida,
apontamentos teóricos largamente difundidos acerca de tensões entre design, design de moda e es-

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tilismo. Segundo a pesquisadora Déborah Chagas Christo (2013, p. 16), “os profissionais tradicional-
mente legitimados como pertencentes ao campo do design parecem ter dificuldade de compreender,
aceitar e mesmo não julgar como fúteis e desnecessários os projetos de objetos do vestuário vincula-
dos à moda”. Por outro lado, a pesquisadora indica também a tensão entre os profissionais denomina-
dos como designers de moda e estilistas, sendo os primeiros associados à noção de roupas populares,
enquanto os segundos à noção de alta-costura. Dependendo das relações e posições dos atores so-
ciais no campo do design, a disputa pelo status fundamenta-se na ideia de que a produção de estilistas
seria superior por estar vinculada à arte e à criação autônoma. Já a produção oriunda do design de
moda seria considerada vulgar, assim como a produção do tradicional design de produto, pois seria
submissa à indústria e às suas restrições técnicas e econômicas. (CHRISTO, 2008).
No campo discursivo, constituído pelos blogues de design, a dificuldade e julgamento indicados
pela autora são efetivamente gerados? A tensão entre designers e estilistas forma-se nas séries de
enunciados que compõem a área de domínio em questão?
A proposta, entretanto, não é analisar os blogues de design com a intenção de comprovação ou
revogação das propostas teóricas eleitas como ponto de partida. Busca-se, contrariamente, interpelar o
caráter abstrato das mesmas, enaltecendo a possibilidade de uma teoria do design voltada para práti-
cas sociais concretas em detrimento da restrita articulação de consolidadas ideias de autores
consagrados.

3 O DESIGN DE MODA EM BLOGUES DE DESIGN BRASILEIROS

3.1 CATEGORIAS, MARCADORES E FORMAÇÃO DISCURSIVA

Como sites da web, os blogues apresentam uma regularidade estrutural, uma “arquitetura da in-
formação” (AGNER, 2009), aqui considerada como relevante para a constituição de uma formação dis-
cursiva. Os blogues apresentam “mecanismos de navegação” (KALBACH, 2009) recorrentes e funda-
mentais para a construção de um sistema de apresentação, busca, classificação, hierarquização e di-
recionamento externo. Sob a perspectiva da análise de discurso, os conjuntos de usuais links com as
funções de “categorias” e “marcadores” formam modalidades enunciativas, ou seja, viabilizam a consti-
tuição de critérios e lugares de fala.
Em geral, blogues apresentam categorias principais já na página inicial, sendo, em alguns casos,
oferecidos também subcategorias ao usuário do site. Não obstante, nota-se uma variação considerável
na definição de assuntos pertinentes, de enunciados válidos, de blogue para blogue. No Designers
brasileiros (2016) as categorias principais são “Web Design, Design de Interiores, Design Automotivo”

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(fig. 1). Enquanto no blogue Choco la Design (2016) são “Arte, Branding, Business, Coding, Geral,
Startups”. No blogue Design on the rocks (2016) são enunciados como categorias “Design Gráfico, De-
sign de Produto, Arte, Inspiração, Vídeos, Dicas e Tutoriais, Contato.” Já no 100% Design (2016) as
categorias não enunciam áreas do Design, destacando como links primordiais, “Facebook, Twitter, In-
stagram, Newsletter, Contato, Feed, ‘RSS’”.

Figura 1 - Categorias na página inicial do blog Designers brasileiros. Fonte:


http://www.designersbrasileiros.com.br/

Nenhum dos blogues examinados enuncia “Design de moda” como categoria logo na página ini-
cial, mas alguns apresentam a subcategoria “Moda”. No caso do Design Culture (2016), “Moda” é uma
subcategoria de Design, ao lado de “Teoria do Design, Design Gráfico, Impressos, Brand, Digital, De-
sign Thinking, Web, Motion, Produtos, Interiores”. Já no blogue Cutedrop (2016), “Moda” é uma catego-
ria de destaque, porém separada da categoria “Design” (intimamente ligada à arte pelo sinal “+”). (fig.
2)
As categorias direcionam o usuário a um conjunto de posts classificados por meio de marca-
dores. Os marcadores (ou tags) são como rótulos de áreas bem específicas, funcionando também co-
mo um recurso de formação de subgrupos de publicações dentro do site. Assim como as categorias, os
marcadores são links que permitem encontrar os demais posts que ostentam a mesma marcação. No
blogue Design Culture, por exemplo, os posts apresentam somente o marcador “Design”. Nenhum de-
les está rotulado como “Design de Moda”, mas também não há marcadores específicos como “Design
gráfico” ou “Design de produto.” Em contrapartida, no blogue Designfera (2016) identifica-se os marca-
dores “Produto”, “Arquitetura e interiores”, “Gráfico”, “Logotipos”, “Ilustração”, “Tipografia” entre outros.

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Figura 2 - Categorias na página inicial do blogue Cutedrop. Fonte: http://www.cutedrop.com.br/

Figura 3 - Página com os resultados oferecidos pelo sistema de busca no blogue Choco la design. Fonte:
http://chocoladesign.com/?s=moda

Uma outra maneira de acessar posts em um blogue é por meio do sistema de busca. Ao digitar
“Moda” obtém-se uma listagem com todas as publicações do site que contém a palavra em seu título
e/ou corpo de texto. Por meio desse procedimento identificou-se o uso do marcador “Moda” mesmo
sem a indicação de uma categoria principal ou subcategoria na página inicial dos blogues Designers
brasileiros, Assuntos Criativos e Choco la Design. Este último, é o único, entre os estudados, que de-
fine o marcador “Design de Moda” (e não somente “Moda”) para um número considerável de posts,
publicados a partir de fevereiro de 2012. (fig. 3)

3.2 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E IDENTIFICAÇÃO CULTURAL

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Design Culture e Choco la Design são os dois blogues que apresentam o maior número de posts
enunciando o design de moda. Os textos que compõem as publicações indicadas pelo sistema de bus-
ca, nos dois casos, formam um tecido complexo. Seus conteúdos são classificados por uma diver-
sidade de marcadores concomitantes, sendo a moda ou o design de moda tópicos mais ou menos de-
cisivos.
Alguns posts favorecem mais o recorte provisório aqui assumido, ou seja, a construção discursi-
va de tensões e disputas entre moda e design. Considerando o espaço limitado deste artigo, decidiu-se
por descrever somente dois acontecimentos que articulam uma série de enunciados como estratégia
de identificação e diferenciação cultural. Os trechos de textos citados são integralmente respeitados,
sendo inconsistências linguísticas reproduzidas.
No blog Design Culture (2016), destaca-se o fato de que no conjunto de posts intitulados
“Profissões na área da moda” o design de moda não é uma possibilidade. A postagem inicial da série
defende que “estudantes de Moda” são normalmente indagados: “Ah então você quer ser estilista?”.
Isso gera frustração “pois o mercado do vestuário é um dos que mais empregam pessoas no mundo e
que obviamente nem todas essas pessoas são estilistas.” O texto segue indicando que
São diversas as áreas que um profissional da área de moda pode atuar, desde de-
sign têxtil, responsável por projetar tecidos até o tão falado estilista que acaba le-
vando todos os aplausos nas passarelas das semanas de moda. Para esclarecer
um pouco mais o que cada profissional desta área faz e qual sua importância no
segmento, dou início aqui a uma série de postagens que com certeza abrirá a mente
de quem já tem um gosto pela área além de levar um pouco de conhecimento para
os leigos no assunto. No próximo post começarei explicando como surgiu a moda
como conhecemos hoje e explicar como funcionam as tendências do ponto de vista
de quem comercializa.
Fiquem ligados. [grifo meu]

Os posts subsequentes, numerados de 2 a 8, são respectivamente intitulados como “História da


Moda”, “Cool Hunter”, “Estilista de Moda”, “Modelista”, “Produtor/a de Moda”, “Vitrinista e visual mer-
chandising” e “Consultora de imagem (Personal Stylist)”.
O termo design de moda não é indicado em nenhum dos posts; já a referência ao design e ao
designer aparece somente em uma situação discursiva de duas das publicações que compõem a série.
No post de número 3, o designer é enunciado em uma construção comparativa. Sobre o Cool Hunter
diz-se que
Após pesquisar em centenas de lugares, festivais e até em blogs (como o design
culture), ele vai relacionar cada microtendência que captou durante suas viagens e
dividirá tudo em grupos e subgrupos, assim como nós designers e publicitários
organizamos público-alvo primário e secundário, que identificará se o uso de tal rou-
pa ou tal acessório é algo que pode se tornar uma tendência mundial ou somente de
áreas isoladas.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

No post de número 4, sobre a atividade do “Estilista de Moda”, o design é enunciado com a in-
tenção de "desmistificar a função do estilista”, pois “ele não é só um bom desenhista de moda, e sim
um projetista de roupas”.
(…)
Assim como no design, cada coleção deve ter uma inspiração, uma paleta de co-
res e uma tabela de referência de tecidos que devem ser seguidos rigorosamente,
pois em uma confecção não se compra de 1 em 1 metro de tecido e sim em larga
escala, ou seja, não se pode sair muito do roteiro. [grifo meu]

Em Choco la Design (2016), o lado racionalista do design e seu vínculo com a indústria aparece
também como ponto de partida para o post “Design de Moda? Como assim? - O que é Design de Mo-
da, no que ele atua de verdade no mercado de trabalho e o que ele tem de diferente do estilista”. Na
parte inicial do texto as diferenças são exaltadas:
(…)
Trocando em miúdos, Design significa conceber, produzir algo. Moda possui um
significado mais amplo: costume, maneira e o uso passageiro de ícones e tendên-
cias momentâneas culturais e mundiais.
Misturando e somando, Design de Moda é a criação de algo que deve ser produzido
em grande escala na indústria, respeitando as tendências do momento, sejam elas
nas cores, estampas, tecidos e modelagens.
(…)
Atenção! Designer de Moda e Estilista não são a mesma coisa. Os dois podem
exercer a mesma função, mas possuem visões diferentes. Ambos criam as peças e
imprimem o seu estilo, porém o estilista preocupa-se com o mercado, o valor que a
marca agregará às peças desenvolvidas e muitas vezes, demonstrando profunda-
mente os conceitos e a inspiração de cada coleção. Nem todas as peças de desfile
dos estilistas servem para o uso diário. Aqui entre nós, quem usaria peças conceitu-
ais cheias de cores, rebites, tachas, brilhos e muitos frufrus para trabalhar num es-
critório? Só a Anna Dello Russo!
Já um designer de moda atua desde o desenvolvimento da decoração do desfile até
a criação de jóias, acessórios e roupas. Seu foco também é voltado as peças usu-
ais, agregando o conceito e a aceitação do público. Para um desfile de passarela,
um designer responsável pela coleção pode criar algumas peças totalmente concei-
to que apenas servirão para encher os olhos dos espectadores. Estas podem ser
conservadas até mesmo como acervo histórico.

A ponte entre design e moda é promovida pela indústria e o abismo entre o designer de moda e
o estilista (as “visões diferentes” em questão) é delimitado pela “aceitação do público”. O problema
concentra-se na diferença entre “peças conceituais” e o “uso diário”. Contudo, nota-se que as demar-
cações de território iniciais são revistas a medida que o discurso avança. O designer de moda pode
também “criar algumas peças totalmente conceito” e as peças “para encher os olhos dos espectadores”
que um designer de moda está autorizado a criar tem valor “histórico”.
No último parágrafo o alarde inicial “Atenção!” é bastante relativizado. O termo “Realmente”
enuncia o redimensionamento do mapa restritivo inicial, incluindo outros cenários além do “desfile de
passarela”.

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Em alguns lugares e até mesmo algumas pessoas consideram Design de Moda e


Estilista a mesma profissão. Realmente muitos estilistas criam linhas de design, co-
mo design de jóias, de sapatos e bolsas e alguns designers de moda atuam como
estilistas natos para suas respectivas marcas. Afinal o importante é criar e andar nas
tendências sabendo fazer bem o seu papel, seja ele com a nomenclatura de de-
sign de moda ou estilista. [grifo meu]

O discurso parte de uma sentença taxativa de caráter objetivo: “Misturando e somando”. Mas à
medida que se busca a ilustração com exemplos concretos a unicidade do resultado para a equação
inicial sustentada como verdade é desintegrada. As frases constituídas, na maior parte do texto, são
enunciados que borram as supostas fronteiras entre os lugares do design de moda e do estilismo. De
tal modo que o texto termina no momento em que a importância da nomenclatura é revogada em nome
da “criação” e do “fazer bem o seu papel”.
O post, assinado por Maiara Sant’anna, estudante de design gráfico que está “pensando em co-
meçar a fazer moda” provocou dez comentários. Dois deles são curtos e conciliam a intenção de para-
benizar a autora e criticar o material publicado por ela: 1) “Parabéns pelo texto! Mas sinceramente o
post podia ter parado no texto pois essa explicação do conceito/usável foi um pouco óbvia…”. 2)
“Parabéns pelo post, Mai! Bem explicativo, bom pro pessoal começar a entender alguns conceitos rela-
cionados à moda que ainda são meio turvos na concepção geral. Issaê!”
O mais longo dos comentários inicia-se com a frase “Discordo sobre a descrição sobre Designer
de Moda.” A conclusão ambígua da autora do post é atacada e os enunciados subsequentes do texto
escrito por Lucas Oliva dedicam-se a remarcar a superioridade do designer de moda com relação ao
estilista.
(…) Para ser mais direto o estilista é o conceito puro, não se preocupa com preços
de aviamentos, tecidos, no geral, não se preocupa com custos. O designer de moda
nem sempre cria peças, mas ele possui uma noção geral de todos os aspectos da
criação: estamparia, planejamento de coleção, visagismo, corte e costura, modela-
gem e afins, pois, o designer independente da área que ele foca, ele tem que co-
nhecer pra identificar os erros de todas as áreas desde a criação teórica, prática tan-
to quão de produção. O designer de moda é preocupado com o mercado, público al-
vo (na nossa língua: target), custos e benefícios, processos de compra das matérias
primas. Pode-se dizer que o designer de moda é um profissional completo en-
quanto o estilista não tem essa visão, praticamente sempre, há um estilista e um
designer de moda trabalhando juntos, o estilista cria por si só o conceito (e todas
aquelas peças lúdicas!) enquanto o designer transforma esse conceito para ser
vendível ao mercado. [grifo meu]

O depoimento de Lucas obteve 3 “votos positivos” de outros leitores do post, mas nenhum dos
apoiadores teceu novos comentários. Além disso, a autora do texto “Design de moda? Como assim?”
não dedicou-se à réplica.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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No campo discursivo, constituído pelos blogues de design, nota-se que as disputas ou tensões
entre design de moda e demais áreas são dispersas e descontínuas. Constata-se que o desenho dos
limites entre design e design de moda, design de moda e estilismo é bastante irregular. Não há pre-
dominância de uma suposta aceitação ou rejeição. Há muitas outras conexões sendo traçadas, en-
fraquecendo a definição de pólos simbólicos.
Ao examinar a formação discursiva de blogues de design foi possível perceber que não há una-
nimidade sobre a consideração de que áreas são definitivamente pertinentes. Cada blogue apresenta
categorias e marcadores próprios, incluindo ou excluindo design de moda, mas também design gráfico,
design de produto, design de interiores etc. Além disso, as estratégias discursivas podem reforçar uma
identificação do design com a publicidade, com o marketing, com a arte, a arquitetura entre outras di-
versas áreas profissionais.
Ao considerar os enunciados relacionados em sua singularidade, buscou-se escapar do caráter
abstrato de abordagens teóricas tomadas como ponto de partida. Os conflitos no campo do design tem
uma existência discursiva que pode ser efetivamente descrita e articulada para a compreensão de um
processo de identificação cultural do design de moda no Brasil.

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Moda, raça e cultura material: a construção de corpos por quimonos e turbantes no cinema
norte americano
Fashion, race and material culture: the body construction by kimonos and turbans in North American
movies

Ana Paula Medeiros Teixeira dos Santos (UTFPR)


anapaulamtsantos@gmail.com
Erika Yamamoto Lee (UFPR)
erikalee@gmail.com
Marinês Ribeiros dos Santos (UTFPR)
ribeiro@utfpr.edu.br

Resumo: Este artigo pretende discutir a participação da cultura material na construção de estereótipos
de gênero e de raça no cinema norte americano. Buscamos entender a construção desses estereótipos
através dos usos dos artefatos de moda, sendo observado os usos dos turbantes no filme "Um príncipe
em Nova York" (Coming to America) e dos quimonos no filme "Memórias de uma Gueixa" (Memoirs of a
Geisha).

Palavras-chave: Cultura material; Turbantes; Quimonos

Abstract: This paper seeks to discuss the participation of material culture in the construction of gender
and race stereotypes in the North American cinema. We try to understand the construction of these
stereotypes through the use of fashion artifacts, focus on the turbans uses in “Coming to America”
movie and kimonos uses in the “Memoirs of a Geisha” movie.

Key-words: Material culture; turbans, kimonos

1. Introdução
Este artigo pretende discutir a participação da cultura material na construção de estereótipos
de gênero e de raça no cinema norte americano. Buscamos entender a construção de estereótipos de
gênero, raça e etnia por uma visão eurocêntrica em dois filmes: "Um príncipe em Nova York" (Coming
to America) dirigido por John Landis em 1988 e "Memórias de uma Gueixa" (Memoirs of a Geisha)
dirigido Rob Marshall em 2005.
Utilizamos uma abordagem pautada na teoria da cultura material de Daniel Miller (2013) para
entender como a moda participa da construção dos corpos das personagens. Em diálogo com Miller
(2013) e com os estudos culturais, pensamos moda como parte construtora de corpos. Os artefatos são
feitos por pessoas, mas, segundo Miller, quando integrados às práticas cotidianas, os artefatos também
as constituem. Isto é, participam da construção de determinados tipos de sujeito. As coisas, tais como
as roupas, acessórios e adereços, não chegam a representar pessoas, mas constituí-las. Assim,
buscamos entender como o materialidade participa da construção de um estereótipo de mulher

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japonesa no filme "Memórias de uma Gueixa", focando no uso dos quimonos, e de um estereótipo de
mulher negra no filme "Um príncipe em Nova York", focando no uso dos turbantes.
Em ambos os filmes são apresentados estereótipos de feminilidade dentro de uma marcação
de raça/ etnia. Guacira Lopes Louro (2007) afirma que as identidades sexuais e de gênero não são
intrínsecas ao corpo, mas construídas e reconstruídas ao longo da vida, de maneira a enquadrar o
indivíduo em uma determinada classificação social. Para a autora, o corpo é significado pela cultura e
sofre alterações com a passagem do tempo. Portanto, o corpo pode ser visto como instrumento que,
sob investimento, pode ser moldado para reforçar e questionar identidades impostas. Deste modo,
entendemos que nos filmes em discussão, os artefatos reforçam e constroem identidades impostas
pela indústria cinematográfica hegemônica estadunidense para mulheres negras e asiáticas, ou seja,
visões eurocentradas de como e quem seriam mulheres negras e asiáticas, não correspondendo à
realidade.
Stuart Hall (2006, p. 63) afirma que raça não é uma categoria biológica, mas sim, discursiva,
que organiza formas de falar, sistemas de representação e práticas sociais que utilizam um conjunto
frequentemente pouco especifico de diferenças acerca das características físicas como marcas
simbólicas, para diferenciar socialmente um grupo de outro. O fato de o termo não ter um caráter
científico, para Hall, não afeta a lógica racial e não anula as consequências de como os quadros de
referências raciais são articulados e acionados para justificar desigualdades.
Ella Shohat e Robert Stam (2006, p. 45) também afirmam que o racismo é resultado de
opressões concretas e que os personagens negros, asiáticos, latinos são construídos nos filmes a
partir de uma visão colonialista. Para os autores os filmes são representações, mas isso não os impede
de terem efeitos sobre a vida quotidiana. Shohat e Stam atentam para o fato de não existirem verdades
absolutas e que não é possível exigir realismo e acuidade de um filme, mas que o problema não está
localizado na fidelidade do filme à realidade, mas na reprodução de um discurso colonialista e
eurocêntrico sobre as identidades sociais.
Apesar de não ter sido colonizado, o Japão sofreu influência europeia no Período Nanban1,
no século XVI. Neste período portugueses chegaram ao Japão para comercializar armas de fogo e
difundir o cristianismo. Segundo Daniela de Carvalho (2000, p.7) ainda que os Jesuítas tivessem
geralmente a preocupação em respeitar as diferenças culturais e adotar os costumes nativos, nem
todos os missionários partilhavam essa preocupação. A autora afirma que alguns missionários
defendiam posições eurocêntricas e censuravam os costumes japoneses. Ainda que o Japão tenha se
fechado aos portugueses no fim deste período, a visão europeia preconceituosa sobre os japoneses foi
                                                                                                           
1 Período que vai da chegada dos primeiros europeus no Japão, oriundos de Portugal, em 1543, até sua
exclusão quase total do arquipélago entre 1637 e 1641, com a promulgação do "Sakoku" - o Édito de Exclusão.

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ali construída, assim como dos japoneses sobre os europeus. O Japão ainda sofreu influência
estadunidense tanto nos fins do século XIX, com a abertura forçada ao comércio por uma frota militar
norte-americana, quanto após a Segunda Guerra Mundial.
A partir das imbricações dos estudos de cultura material e construção de estereótipos no
cinema torna-se possível entender como artefatos de moda e corporeidade fazem parte da construção
desses estereótipos a partir de uma visão colonialista.

2. Artefatos de moda na construção de corpos racializados


Turbantes e quimonos são artefatos de moda que remetem a culturas e costumes fora do
registro eurocêntrico. No cinema, muitas vezes fazem parte da construção do exótico e do outro não
europeu, em uma visão que, segundo Shohat e Stam (2006), generaliza os povos colonizados como
todos iguais. Os turbantes, assim como estampas coloridas e peles, estão presentes na construção da
ideia de mulher negra, generalizando a África como um todo, assim como o quimono, os chinelos de
madeira e a maquiagem estão presentes na construção da ideia de mulher japonesa, generalizando a
mulher asiática.
O método de Miller, como antropólogo, compõe-se em problematizar as relações entre as
coisas e seus usos pelos sujeitos. Essa visão vai além do ponto de vista semiótico de que as roupas, a
moda no caso deste trabalho, podem ser tratadas apenas como signos e símbolos de um povo,
optando por entender que as roupas não são superficiais, mas fazem de nós o que pensamos ser.
Miller (2010, p. 63) afirma que “ o conceito de pessoa, a percepção do eu e a experiência de ser um
indivíduo são radicalmente diferentes em tempos diferentes e em lugares diversos, e parcialmente em
relação às disparidades de indumentária” e essa diversidade que constitui corpos, hierarquias e
sujeitos não é superficial. Compreender os usos de roupas e adornos típicos de diferentes grupos
raciais no cinema nos auxilia a problematizar a reafirmação de estereótipos na indústria
cinematográfica hollywoodiana e a reprodução do discurso colonialista.
Para o autor, as roupas fazem parte dos pertences mais pessoais de alguém e mediam a
percepção de nossos corpos e do mundo exterior. Miller (2013) faz uma análise do vestuário em países
diferentes, o que nos auxilia a entender como a indumentária e seu uso constroem posições de sujeito,
marcando gênero e raça. Ao discorrer sobre o sári indiano, Miller (2013, p. 38) afirma que o sári veste a
mulher indiana fazendo dela o que ela é, tanto mulher quanto indiana. Concordamos com Miller que o
sári participa da construção de um corpo fazendo marcação de raça, etnia e gênero, mas assim como
Louro (2007), citada acima, acreditamos que as identidades de gênero estão sempre em construção,
que as possibilidades de feminino são muitas. Descrevendo as formas de arranjar e o uso do sári,

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Miller destaca como a roupa e o corpo as vezes se confundem na mulher indiana, podendo construir
tanto noções de maternidade e cuidado quanto de sedução, dependendo das estratégias do sujeito.
O filme "Memórias de uma gueixa" foi inspirado no romance de mesmo título escrito, de Arthur
Golden. O filme conta sua história de Chiyo Sakamoto e sua trajetória para se tornar gueixa. A gueixa é
educada desde sua infância pelas casas especializadas em que as adotam para tal formação. No filme,
já na visão colonialista, essas casas são mostradas como compradoras de crianças e a gueixa é
comparada a prostituta/mercadoria, visando o investimento financeiro. O quimono é um dos artefatos
que está presente e faz parte da transformação gradativa de maturidade e refinamento, além de fazer
parte da construção do estereótipo exótico erótico da mulher japonesa.
A indumentária quimono etimologicamente significa "coisa para vestir" (LEE, 2008), pois o
ideograma japonês revela este significado. Nesta perspectiva daremos foco para o quimono social,
simbólico, a indumentária que remete à cultura japonesa. O quimono social aqui abordado trata do
quimono no qual veste todas as cores e formas simbólicas do país que são representadas na
percepção do olhar estrangeiro. Assim, o quimono japonês ganhou a representação de símbolo
comportamental da mulher submissa, delicada, exótica, erótica na visão colonialista ocidental desde o
período Meiji (1868 e 1912). Em meados do século XIX, na Europa e na América do Norte os
elementos orientais forma apropriados como fonte de “escapismo” na arte e na indumentária. Neste
período em que o poder colonialista estava em evidência, o japonismo2 (OKAMOTO, 2010) trazia uma
nostálgica e sensual popularização do quimono no Ocidente. O historiador social norte-americano
Bernard Rudofsky (1973) destaca alguns pontos sobre os quimonos pela visão norte americana, ele
afirma que os norte-americanos e europeus não querem apenas possuir os quimonos, mas também
almejam adquirir e agir segundo os valores japoneses, absorvendo a beleza, a nação a ser estudada,
dominada e ocupada pelos norte-americanos.
Este interesse aos costumes japoneses têm a estratégia de dominar o povo e o território
japonês, obtendo o domínio cultural, das crenças e valores nipônicos, pelos quais os europeus e norte-
americanos acreditavam que poderiam articular estratégias e táticas de invasão e domínio absoluto
sobre o povo e seus recursos tecnológicos do país.
Na comédia "O príncipe em Nova York" (1988) o protagonista Akeem Joffer, herdeiro do trono
de Zamunda (país africano fictício), vai para Nova York à procura de uma noiva, já que está prometido
à outra mulher que não ama e que havia sido criada para servi-lo. Ao ir para os Estados Unidos e
mantendo segredo sobre sua identidade, o protagonista busca a liberdade que não havia tido como
                                                                                                           
2 O termo japonismo, cunhado na segunda metade do século XIX, designa o intenso intercâmbio cultural e
econômico entre o continente europeu. Esse fenômeno atingiu de maneira multiforme e de forma decisiva na
estética de todo século e foi determinante para o direcionamento do design moderno. Enquanto muitos estudam
a influência do japonismo, ou sua assimilação nas belas artes e nas artes decorativas.

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príncipe em seu país. No filme as roupas, adornos como turbantes e o arranjo dos cabelos têm um
importante papel de marcar diferenças estereotipadas entre homens e mulheres africanos e
estadunidenses
O uso dos turbantes é comum nos povos africanos, indianos e árabes, mas aqui nos
interessam seus usos por povos africanos, especificamente pelo grupo étnico Iorubá3. Segundo João
Ferreira Dias (2014), para cultura Iorubá a cabeça é a vasilha da personalidade e do destino (ìpin) e é
composta pelo orí odè (cabeça exterior) e orí inú (cabeça interior ou mística). O ori (cabeça) guarda
não só a razão, mas os sentimentos e a espiritualidade da pessoa e, por isso, precisa ser protegido. Os
cabelos e as formas como são utilizados os adornos são elementos de poder e, deste modo, turbantes
e adornos de cabeça são utilizados tanto como protetores do ori, quanto para diferenciações de classe
e gênero.
Segundo Jorge Crespo (1990) o corpo é uma construção histórica e social. Para o autor o
corpo não é um dado imutável, pois possui historicidade e, sendo assim, é um resultado de um longo
processo de elaboração social. Tanto o corpo negro quanto o corpo asiático não se encaixam nos
padrões eurocêntricos, o que foi construído por processos de estigmatização4 e racismo. Assim, vários
estereótipos foram historicamente construídos sobre os corpos e culturas em questão. A partir da
análise dos usos dos artefatos pelas personagens nos filmes escolhidos, buscamos entender a
construção e reafirmação desses estereótipos na representação de negros e asiáticos no cinema.

3. Quimonos e turbantes na construção de estereótipos raciais no cinema


Ao falar sobre seus estudos quanto ao uso da indumentária em Trinidad, Índia e Londres5
Miller (2013) evidencia como os sentidos das relações entre a roupa e o sujeito que a veste são
construídos de maneiras diversas em tempos e espaços diferentes. Para Miller, o estudo etnográfico de
grupos culturais distintos passa pelo contato com as sensibilidades das texturas, cores e da circulação
dos artefatos.
A materialidade faz parte da construção dos estereótipos de gênero e de raça/ etnia
representados nos em filmes “Memórias de uma Gueixa” e “Um príncipe em Nova York”, a partir de

                                                                                                           
3 Os povos Iorubá constituem um dos maiores grupos étnico-linguísticos da África Ocidental, com mais de 30
milhões de pessoas em toda a região. O filme tem inspirações nas indumentárias do Congo, onde a cultura
Iorubá está muito presenta
4 Segundo Goffman (1988), o estigma estabelece uma relação impessoal com o outro; o sujeito não surge como

uma individualidade empírica, mas como representação circunstancial de certas características típicas da classe
do estigma, com determinações e marcas internas que aspodem sinalizar um desvio, mas também uma
diferença de identidade social. O estigma atribui características consideradas desvantagens e/ou falhas em
relação ao outro.
5 O autor apresenta sua pesquisa dessa forma, citando dois países e uma cidade.

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uma visão colonialista. A língua empregada em ambos os filmes é o inglês, o que já demonstram os
jogos de poder e hierarquias na escolha do inglês ao invés das línguas dos povos representador.
Segundo Shohat e Stam (2006) mesmo na construção de imagens positivadas de grupos
raciais, a visão colonialista pode estar presente, inclusive reproduzidas pelos próprios grupos. O
realismo ficcional objetiva produzir "efeitos de realidades" ilusionistas, representando linguagens,
discursos e disputas de poder. Deste modo, mesmo um filme apresentando negros de classe média e
da realeza, e o outro as lutas de uma mulher japonesa em várias fases da vida, prevalecem a visão
colonialista na construção das identidades destes personagens. Tanto os usos do quimono pelas
gueixas quanto dos turbantes pelas mulheres africanas são representados a partir de uma visão
Hollywoodiana, principalmente no que diz respeito aos usos como formas de sedução. Para Shohat e
Stam, essa visão é não somente classista, mas também eurocêntrica, trazendo à tona visões da vida
real sobre tempo, espaço relações sociais e culturais.
As atrizes escolhidas para o filme "Memórias de uma gueixa", foram três atrizes
hollywoodianas chinesas, com a alegação da direção que nenhuma atriz japonesa teria sido boa o
suficiente e como se mulheres chinesas e japonesas fossem idênticas em sua aparência e costumes.
Houveram reclamações de ambos os lados, chineses e japoneses, que consideravam que o rosto com
os olhos orientais não garantiriam a representação de uma comunidade, evidenciando as diferenças na
gestualidade. Aqui podemos pensar na afirmação de Shohat e Stam (2006, p. 263) de que existe uma
"fusão de diversidades", ou seja, um compósito estratégico da visão estereotipada nos filmes
hollywoodianos. Para os autores, o problema desta visão de outras culturas como um todo homogêneo
começa já na escolha do elenco, quando o “cinema dominante” transforma o “outro” em unidades
intercambiáveis que podem ser substituídas, estes descompassos têm gerado intenso ressentimento e
revolta entre as comunidades.
Em “Memórias de uma gueixa”, as mulheres japonesas são representadas dentro dos
estereótipos de mulher submissa ou de mulher aproveitadora. A personagem da gueixa utiliza da
sexualidade dela própria, ou de suas alunas ou das funcionárias como estratégia para ascensão
hierárquica tanto na casa onde vivem quanto na sociedade da qual fazem parte. Em uma visão
machista e eurocêntrica, são apresentadas como exóticas e erotizadas, para o "consumo" do homem, o
que é evidenciado na requisição da presença de gueixas para estimular o fechamento de contratos
nipo-americanos durante a guerra.
No filme, percebe-se a importância dos artefatos na constituição da mulher japonesa como a
gueixa, para que a personagem se constitua numa gueixa. São evidenciadas as construções desta
personagem nas cores, formas, texturas da maquiagem, da indumentária, do arranjo dos cabelos, da
gestualidade ritualística, do "como" servir o chá e o de como dançar, visando a construção de uma

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feminilidade ideal. O papel fundamental do quimono na construção deste corpo se torna claro quando,
na segunda parte do filme, após a devastação da guerra, uma das personagens tem ressalvas para
atuar novamente como gueixa por não possuir mais os quimonos e pentes luxuosos que vestia antes e
que faziam dela uma gueixa. Em outro momento do filme, a personagem principal, ainda criança, é
levada por outra personagem a estragar o melhor quimono da dona da casa como forma de vingança.
A criança é punida pelo estrago e são vários os momentos em que o valor do quimono é comparado ao
valor pago pela criança, sendo o quimono o objeto de maior valor. Desta maneira, corpos e artefatos se
confundem na construção da gueixa.

Figura 016 – Protagonista trajando o quimono antes da guerra, no dia de seu debute. Fonte: Filme “Memórias de
Uma Gueixa” (2005).

                                                                                                           
6 Todas as imagens aqui apresentadas foram retiradas dos filmes através de print screen

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Figura 02 - Protagonista durante a guerra, trajando quimonos servis. Fonte: Filme “Memórias de Uma Gueixa”
(2005).

Figura 03 - Protagonista trajando um quimono de seda emprestado no pós guerra. Fonte: Filme “Memórias de
Uma Gueixa” (2005)

O filme “Um príncipe em Nova York” também apresenta representações que constroem
estereótipos raciais. Apesar de sair do clichê de trazer pessoas negras como pobres e não inteligentes,
o filme constrói estereótipos principalmente na comparação entre o que são considerados costumes
africanos e costumes estadunidenses. A própria ida do protagonista para Nova York reafirma a ideia
dos Estados Unidos como o país da liberdade e da igualdade enquanto o país africano tem costumes
antigos e hierarquias que prejudicam a liberdade, mesmo da nobreza.
No início do filme acontece a festa de apresentação dos noivos. É interessante perceber que
tanto homens quanto mulheres tem as cabeças cobertas por turbantes e chapéus. Nesse momento do
filme os turbantes e roupas femininos são muito coloridos e estampados, com amarrações e tamanhos
diferentes. Uma hierarquização social é criada na representação dessas mulheres no uso de turbantes:
as empregadas usam um turbante menor e todos com a mesma estampa; as mulheres convidadas
(provavelmente ricas e/ou da nobreza) utilizam turbantes com estampas diferentes umas das outras e

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com tamanhos variados, bem maiores em relação aos das empregadas; já a rainha utiliza turbantes no
lugar de uma coroa, mas com a cor dourada sempre presente.
Podemos perceber as diferenças nas roupas e nas posturas nas figuras 04, 05 e 06. A figura
04 faz parte da cena em que uma mulher, provavelmente nobre pelo tamanho e estampa de seu
turbante, apresenta a noiva prometida ao príncipe Akeem Joffer. A figura 05 integra a cena de quando
os pais do protagonista chegam na casa da mulher estadunidense por quem o príncipe se apaixonou e
a figura 06 mostra o casamento real. O pai da mulher estadunidense (figura 05) tem a cabeça
descoberta e somente os óculos como acessórios, enquanto todos os africanos trajam turbantes ou
chapéus, peles e outros acessórios. No casamento real (figura 06), é possível perceber a diferença das
cores utilizadas para roupas e turbantes, agora mais neutras, que se repetem várias vezes, construindo
a impressão de um evento mais formal e mais próximo do seria considerado “elegante” na visão
eurocentrada. A noiva usa vestido rosa e um véu com bastante volume, além de uma coroa na cabeça,
o que a diferencia das outras mulheres. Novamente, o único homem com a cabeça descoberta é o pai
da noiva estadunidense, único homem "não africano" no local.

Figura 04 - Mulher apresenta a noiva à família real. Fonte: Filme “Um príncipe em Nova York” (1988)

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Figura 05 - Família real chega a uma casa estadunidense. Fonte: Filme "Um príncipe m Nova York" (1988)

Figura 06 - Casamento real. Fonte: Filme "Um Príncipe em Nova York" (1988)

As mulheres negras africanas são apresentadas no filme, em sua maioria, como mulheres
nervosas, intimidadoras e hipersexualizadas. A noiva prometida ao príncipe, assim como as servas
pessoais da família real e as bailarinas do noivado, tem o corpo evidenciado por vários recortes e
transparências nas roupas. Quando elas estão presentes nas cenas, são frequentes as falas sobre
sexo e sobre seus corpos, apresentados como disponíveis sexualmente para o consumo masculino.
As duas mulheres estadunidenses no filme, Lisa McDowell por quem o príncipe se apaixona e
sua irmã Patrice McDowell, também são representadas de forma estereotipada. Lisa tem os cabelos
alisados e a pele mais clara, veste roupas de cores neutras, sem acessórios e está sempre lendo um
livro, ajudando o pai com os negócios da família ou falando sobre arte e caridade. Sua irmã Patrice tem
a pele mais escura, usa diversos acessórios coloridos e usa da sua sexualidade para tentar conquistar
os homens que a rejeitaram ou que foram rejeitados por sua irmã. Ainda que ambas sejam negras, a

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que tem a pele mais clara é mais “desejada” pelos homens. Assim, são criadas hierarquias entre os
tons da cor da pele, o que alguns autores pós-colonialistas tem chamado de “pigmentocracia”.
Shohat e Stam (2006) destacam que a representação estereotipada de uma comunidade no
cinema provoca efeitos na realidade concreta. Logo, é esperado que as comunidades protestem contra
essa representação em nome de um sentido de verdade baseado em suas experiências. Para os
autores, no entanto, o problema não consiste tanto no fato do filme ser fiel ou não à realidade, mas sim
na reprodução e afirmação do discurso colonialista como oficial. Como dito anteriormente, o fato e
noção de raça não ter base científica não significa que esse conceito não tenha consequências sociais
concretas. Do mesmo modo, podemos afirmar que mesmo que os estereótipos apresentados no filme
façam parte de uma narrativa fictícia, a reprodução da abordagem colonialista e suas consequências
são reais para as comunidades representadas.

4. Conclusão

O objetivo deste trabalho não é mostrar os significados reais de artefatos de moda étnicos ou
fazer uma crítica ao realismo no cinema, mas sim mostrar como artefatos de moda participam da
construção de estereótipos nas representações gênero e de grupos étnico-raciais. Sujeitos de
comunidades não eurocentradas são apresentados como um todo generalizado, exótico e muitas vezes
hipersexualizados, e essas representações de raça e gênero acabam muitas vezes sendo socialmente
naturalizadas e o discurso que as construiu sendo reproduzido. Corpos constroem e são construídos
pela materialidade. Artefatos podem marcar gênero, raça, etnia e, dependendo das estratégias dos
sujeitos, participam também da construção dos estereótipos dessas categorias no cinema, sejam eles
positivados ou negativados.

5. Referências

Livros
BARTHES, Roland. Imagem e moda. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2005.

CRESPO, Jorge. A História do Corpo. Rio de Janeiro: Editora Difel, 1990.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
Zahar, 1988.

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de
Janeiro: Zahar, 2013.

RUDOFSKY, B. Kimono Mind. Segunda edição. Japão: Charles Tuttle Company. 1973.

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SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006

Teses ou dissertações
LEE, Erika Yamamoto. Quimonismo. 145 f. Trabalho de Conclusão de Curso – Faculdade Exatas e
Tecnologia, Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba,2008.

OKAMOTO, Mônica Setuyo. O discurso brasileiro sobre o Japão via França. Imigração, identidade
e preconceito racial (1860-1945). 2010. 243 f. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos, Literários e
Tradutológicos em Francês) - Departamento de Letras Modernas, da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010.

Sites
CARVALHO, Daniela de. Nambanjin: sobre os portugueses no Japão. Antropológicas, Fernando
Pessoa, n. 4, 2000. Disponível em: revistas.rcaap.pt/antropologicas/article/download/924/726. Acesso
em: 20 fev. 2016

DIAS, João Ferreira. À cabeça carrego a identidade*: o orí como um problema de pluralidade teológica.
Afro-Ásia, Salvador, n. 49, p. 11-39, junho 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php.
Acesso em: 28 jun 2015.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, nº2, p. 15-46, jul./dez. 1997. Disponível em:
www.ufrgs.br/neccso/word/texto_stuart_centralidadecultura.doc. Acesso em: 15 jan. 2016

Filmes
MEMÓRIAS de uma Gueixa. Direção: Rob Marshall. Produção: Lucy Fisher
Douglas Wick, Steven Spielberg. EUA, China: 2005. 1 DVD (145 min), color.

UM PRÍNCIPE em Nova York. Direção: John Landis. Produção: George Folsey Jr. Robert D. Wachs.
EUA, 1988. 1 DVD (116 min), color.

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Sessão Temática 03
Fotografia, Cultura Visual e Moda

Coordenação: Profa. Dra. Kathia Castilho (Abepem I MinC)


Local: Auditório 800 - UFPR Edifício D. Pedro I

Dia 13/05

A coerção histórica do corpo feminino e suas implicações sociais


Amanda Prado Silva / amanda.odarp@yahoo.com.br

O presente artigo expõe o histórico que permeia a construção do corpo feminino analisando-o
em diferentes recortes temporais visando revelar a constante coerção social e idealização
corpórea baseada nos costumes vigentes e na moda. Assim, se almeja promover
questionamentos em relação à sujeição da mulher ao corpo ideal em diferentes épocas, inclusive
na contemporaneidade, em contradição as aspirações por liberdade e comunicação de suas
identidades, alternativas também oferecidas pela moda.
Palavras-chave: corpo feminino, moda, coerção.

Lygia Clark: os limites do gênero do corpo na série Roupa-corpo-roupa


Flavia Jakemiu Araujo Bortolon / Universidade Federal do Paraná / flaviabortolon@gmail.com

O artigo pretende debater as questões dos limites do corpo, conforme proposto pela artista
plástica brasileira Lygia Clark, por meio de suas obras sensoriais (1965/1969). Para tal, foi
realizada uma pesquisa documental em textos de críticos de arte, jornais e cartas da artista,
durante o período de sua produção até exposições mais recentes. O corpo passou a fazer parte
da obra, possibilitando o questionamento das sensações que são impostas por instrumentos
(objetos sensoriais) e por espaços onde se inserem. A obra desses artistas passou a questionar
não somente o que é arte, mas também o local onde essas peças podiam ser apresentadas.
Leitora do filósofo Merleau-Ponty, Clark propunha experiências fenomenológicas, participativas,
que não deixavam o espectador passivo perante os movimentos do objeto e do corpo. Assim,
Lygia Clark posicionou-se diante dos limites, sensoriais e éticos do corpo, a interação entre
corpo e obra por meio da problematização ou mesmo da inversão de performances generificadas

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Palavras-chave: Lygia Clark, obras sensoriais, gênero.

Feminilidades ideais no tempo e no espaço: “a mulher” em “O Espírito das Roupas”


Valéria Faria dos Santos Tessari / Universidade Federal do Paraná / tessari.valeria@gmail.com
Pamela Bostelmann /Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ pam.bostelmann@yahoo.com.br

Esse texto tem como objetivo evidenciar o tipo de feminilidade apresentado no livro “O Espírito
das Roupas”, de Gilda de Mello e Souza, publicado em 1987. Para isso, problematizamos tal
noção de feminilidade a partir de fragmentos textuais e de imagens, confrontando-a com autoras
que realizaram outras descrições a respeito de mulheres daquele período. Buscamos evidenciar
que a mulher descrita por Gilda de Mello e Souza deve ser compreendida como um tipo ideal de
feminilidade do século XIX, apresentado pela autora como a mulher daquele século.
Palavras-chave: “O Espírito das Roupas”, gênero, indumentária.

A figura “ideal” de dona de casa nas páginas de Casa & Jardim (anos 1950 e 1960)
Ana Caroline de Bassi Padilha / Universidade Tecnológica Federal do Paraná –
UTFPR)/carol_padi@yahoo.com.br
Marinês Ribeiro dos Santos /Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR /
ribeiro@utfpr.edu.br

O presente artigo objetiva refletir sobre a construção da figura de dona de casa “ideal” a partir de
sua associação com a indumentária. O recorte de estudo tem como foco as reportagens e
anúncios publicitários veiculados na revista Casa & Jardim durante as décadas de 1950 e 1960.
Os discursos textuais e imagéticos veiculados no periódico operavam na construção de imagens
acerca do que significava ser uma mulher moderna, atualizada quanto aos padrões de gosto e
comportamento vigentes.
Palavras-chave: revista Casa & Jardim, indumentária, dona de casa “ideal”.

Charlotte Perriand e Louis Vuitton: relações entre indumentária e mobiliário


Letícia Rodrigues / Universidade Tecnologia Federal do Paraná/ let.designer@gmail.com
Yasmin Fabris / Universidade Tecnologia Federal do Paraná./ yasfabriss@gmail.com

Em 2014 a marca Louis Vuitton lançou uma coleção de roupas e bolsas inspirada nos móveis da
designer francesa Charlotte Perriand. Neste artigo pretendemos discutir, por meio da análise do
vídeo promocional de divulgação da coleção, que a escolha que a grife faz pela figura de
Perriand ultrapassa o interesse pela inspiração formal dos móveis e busca também atrelar às
roupas imaginários de feminilidade e modernidade supostamente representados por Perriand.
Palavras-chave: Charlotte Perriand, Louis Vuitton, feminilidades.

Ela nasceu Gabrielle, e tornou-se Chanel


Karoline Testoni Gonçalces / Universidade Federal de Góias / karoltestoni@gmail.com

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O estudo propõe uma breve análise de quatro imagens fotográficas da jovem órfã Gabrielle
Bonheur Chanel e a evolução para se tornar Coco Chanel. A reflexão se dá através da relação
da construção da identidade de mademoiselle Chanel com a suposta revelação de uma nova
categoria de gênero que re-vestiu as mulheres ao longo do século XX mudando os modos de ser
de uma geração. Finalmente o artigo propõe cogitar se a modista realmente é responsável pelo
surgimento de uma categoria de gênero e qual seria ela.
Palavras-chave: Coco Chanel, gênero, fotografia

Dia 14/05

A juventude na revista ilustrada “O Cruzeiro” no período de 1928 a 1946


Ana Paula Dessupoio Chaves / Universidade Federal de Juiz de Fora /anadessupoio@gmail.com

Neste estudo aborda-se de que forma a juventude era retratada na revista ilustrada O Cruzeiro,
com foco principalmente no conteúdo que envolvia o ambiente da praia. O impresso circulou no
Rio de Janeiro, período em que a ideia de modernidade nacional estava em voga e o ser jovem
era considerado algo positivo, o recorte utilizado será de 1928 a 1946. O periódico trouxe
inovações e ajudou a retratar o contexto da cidade carioca. Os jovens apareciam nas páginas da
revista principalmente quando se tratava de moda e beleza, aspectos que ajudaram a desenhar
o momento e as transformações que esse público sofreu ao longo do tempo mencionado.
Palavras-chave: O Cruzeiro, juventude, moda

Uma mulher de fraque no Jornal das Moças: uma leitura da imagem na moda feminina
Celso Sánchez / Professor Adjunto GEAsur, UniRio / celso.sanchez@hotmail.com
Léa Maria Schmitt Leal / GEAsur, UniRio / lea.schmittleal@yahoo.com.br

Este trabalho tem como objetivo analisar a capa do Jornal das Moças em 1917 em que aparece
uma mulher de fraque, para tanto foi efetuado o levantamento histórico e de imagens junto a
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Pontuando como a política de gênero pôde refletir na
cultura das aparências a moda feminina e como a prática do vestir influenciou a emancipação da
mulher no período referido.
Palavras-chave: Jornal das Moças, gênero, moda.

A relação histórica entre a marca de luxo Dior e a atriz Marlene Dietrich no cinema
Isaac Matheus Santos Batista / Universidade Federal de Pernambuco / isaacmsbatista@gmail.com
Amilcar Almeida Bezerra / Universidade Federal de Pernambuco / amilcar.bezerra@gmail.com

Instância de criação e disseminação de valores que conformam o imaginário e práticas sociais, o


cinema têm sido veículo para divulgação massiva de marcas e produtos. Aqui, abordamos a
relação entre a estrela europeia Marlene Dietrich e a marca de luxo Dior em narrativas fílmicas,
por meio de uma metodologia semiótica de matriz barthesiana. Entendemos que a marca
continuamente explorou uma imagem de glamour e poder associada a atriz, reiterando sua

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própria identidade de marca e ajudando a moldar a persona da estrela.


Palavras-chave: Cinema, Figurino, Marlene Dietrich, Dior

Produção de moda como identidade visual para uma marca


Nathali R. de Lima Freitas /Faculdade de Tecnologia SENAI Curitiba / nathalirenata@hotmail.com
Daniele M. Lugli / Faculdade de Tecnologia SENAI Curitiba / daniele.lugli@pr.senai.br

O artigo apresenta ferramentas da produção e da fotografia de moda e investiga seu papel na


construção da imagem de uma nova marca. Para isso, foi realizada uma pesquisa-ação que
resultou na produção de um editorial para uma marca curitibana de lingerie. Dessa forma,
constatou-se que a produção fotográfica foi uma ferramenta de comunicação relevante para
evidenciar os valores e os diferenciais dessa marca de moda.
Palavras-chave: produção de moda, imagem de moda, fotografia de moda.

O calçado feminino e o design moderno: um olhar para a indústria e a fotografia


Natalie R. A. Ferreira de Andrade / UNIFRAN e FATEC Franca / nativolpe@yahoo.com.br

Este artigo pretende contextualizar os calçados femininos modernos e o design por meio de uma
análise sobre a urbanização e a industrialização do setor no século XIX e início do século XX. A
pesquisa foi desenvolvida por meio de uma e reflexão de conceitos relacionados ao design,
moda e da história da indústria e dos calçados femininos brasileiros a partir de referências
bibliográficas e pesquisas iconográficas como fotos da sociedade de Franca, cidade do interior
do Estado de São Paulo.
Palavras-chave: calçados femininos, design de moda, urbanização, industrialização.

Enfeitada de pesar: luto, moda e etiqueta no segundo reinado brasileiro


Maria Cristina Volpi / Universidade Federal do Rio de Janeiro / mcvolpi@ufrj.br
Márcia Carnaval de Oliveira / Universidade Federal do Rio de Janeiro/ ciacarnaval@gmail.com

A indumentária de luto feminina mesclou, em meados do século XIX, elementos da tradição


portuguesa e elementos modernos que o sistema de moda oferecia para a elite e a nobreza
instalada na capital do Império, primeiramente. Seu significado é analisado pelas referências na
imprensa, pelos manuais de etiqueta e pelo retrato fotográfico. Busca-se compreender sua
função no contexto do discurso de “civilidade” e suas implicações culturais a partir de um evento
fúnebre aristocrático.
Palavras-chave: luto, manuais de etiqueta, retrato fotográfico.

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A coerção histórica dos corpos femininos e suas implicações sociais

The historical coercion of the women's bodies and their social implications

Amanda Prado Silva (Unicesumar)


amanda.odarp@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo expõe o histórico que permeia a construção dos corpos femininos
ocidentais analisando-o em diferentes recortes temporais, visando revelar a constante coerção
social e idealização corpórea baseada nos costumes vigentes e na moda, buscando delinear os
tipos de corpos evidenciados por ela. Assim, se almeja promover questionamentos em relação à
sujeição da mulher ao corpo ideal em diferentes épocas, inclusive na contemporaneidade, em
contradição as aspirações por liberdade e comunicação de suas identidades, alternativas
também oferecidas pela moda.
Palavras-chave: Corpo feminino, Moda, Coerção.

Abstract: This article presents the history that permeates the construction of Western female
bodies, analyzing it at different temporal cuts aimed at revealing the constant idealization and the
social coercion based on existing customs, seeking to outline the types of bodies evidenced by
fashion standards. Thus, it aims to promote questions regarding the subjection of women to an
ideal body at different times, even in contemporary times, contradicting the aspirations for
freedom and communication of their identities, also an alternative offered by fashion.
Keywords: Female body, Fashion, Coercion.

1 INTRODUÇÃO

Além de representar materialidade, aspectos fisiológicos, permanência e identidade, o


corpo humano é socialmente construído, pois se adequa a diferentes épocas e sociedades
(RODRIGUES, 1983). Dessa forma, a corporeidade possibilita relações históricas e culturais,
delimitando diferentes espaços, tempos e reações no meio social (COSTA, 2011).
Tendo em vista os estudos de Rotânia (2000), pode-se dizer que a construção do corpo
se dá no sentido simbólico-cultural humano, visto que assume distintos significados em
diferentes contextos históricos.
Portanto, visando compreender os sentidos atribuídos pela moda aos corpos femininos
contemporâneos, se faz necessário entender e elucidar questões acerca das peculiaridades e
dos padrões incorporados em diferentes sociedades e épocas, localizando tal discussão no
âmbito das sociedades ditas "ocidentais" e em visões específicas de classe social e raça/etnia,
verificando os tipos de corpos femininos que a moda evidencia ao longo dos tempos.

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2 DESENVOLVIMENTO

2.1 O HISTÓRICO DA IDEALIZAÇÃO DOS CORPOS FEMININOS

Tendo em vista o período pré-histórico, onde as imagens pertencem ao universo dos


vestígios mais antigos da vida humana que chegaram até nossos dias, e por isso devem ser
mencionadas (MOURA, 2008), podemos averiguar fatos arqueológicos como pinturas rupestres
e esculturas sugerem uma série de apontamentos sobre as representações corpóreas do
homem primitivo (COSTA, 2011). Em tais obras se observa a corporeidade como ferramenta de
sobrevivência, uma forma de interação entre o homem e o mundo circundante ainda inexplorado.
Por isso, a pré-história compreende “a aurora do papel do corpo como mediador entre o homem
primitivo e as superações das dificuldades ambientais” (COSTA, 2011 p. 248).
Assim, quanto aos corpos femininos, Fleck (2011) aponta as estatuetas de Vênus1 como
as principais formas de representações que datam desse período, as quais compartilham
características em comum, como a obesidade, valorização dos quadris ou a gravidez, indicando
o culto ritualístico à fertilidade, correspondendo ao ideal de belo que se relaciona ao instinto e a
sobrevivência. Dentre estas obras, a Vênus de Lespugue (Figura 1) é uma das mais célebres do
período paleolítico (2,5 milhões a.C. até 10.000 a.C.).

Figura 1 – Vênus de Lespugue

Fonte: Fleck (2011)


                                                                                                                       
1
Na Teogonia de Hesíodo (TORRANO, 1995), obra que narra o surgimento do mundo por meio dos
primeiros deuses, Vênus nasce dos testículos de Urano (o firmamento) castrado por seu filho Chronos (o
tempo), caindo ao mar e originando uma espuma que concebe a deusa da beleza e do amor. Para Clark
(1956), a Vênus é o próprio paradigma simbólico de uma idealização de beleza pura.

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Assim, ao considerar as afirmações de Henriques (2013), que aponta a cultura grega


contextualizada na Antiguidade Clássica como elemento balizador de muitas características da
civilização ocidental, por exemplo, ao nos legar a busca racional do saber, a observação da
natureza e da experiência, e principalmente em relação a este estudo, sendo o período onde se
registra pela primeira vez a ambição pela beleza em si, nos objetos e sujeitos, comportamento
que ainda possui grande influência histórica sobre os indivíduos pós-modernos. Por isso,
retomamos este recorte temporal a partir da Antiguidade (VIII a.C até V d.C.), onde os corpos
ocidentais se moldava segundo os padrões clássicos gregos, sendo tratado como objeto de
glorificação e valorizado por sua capacidade atlética, saúde e fertilidade (SIEBERT, 1995;
ROSÁRIO 2004). Porém, “uma importante convenção grega antiga havia apresentado as figuras
masculinas nuas e coberto completamente os corpos femininos” (HOLLANDER, 1996, p.133),
sendo que a beleza da mulher era exposta entre véus e drapeados, como se percebe ao verificar
uma das mais conhecidas obras desse período, a Vênus de Milo (Figura 2), imagem que se
contrasta com a escultura O Dorífero (Figura 3), representação do herói que não veste nada
além de sua nudez perfeita.

Figura 2 – Vênus de Milo

Fonte: Fleck (2011)

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Figura 3 – Cópia de O Dorífero

Fonte: Museo Archeologico Nazionale di Napoli (2014)

Em contrapartida, na Idade Média (entre os séculos V e XV), qualquer preocupação com


o corpo era proibida, se evidenciando o controle da igreja católica e sua ideologia que afastava o
corpo profano da alma pura, onde a segunda deveria prevalecer. Assim, os dados deste período
quanto à matéria corpórea são de desvalorização (SIEBERT, 1995).
Durante a retomada dos valores clássicos greco-romanos em pleno período
renascentista, entre o século XIV e meados do século XVI, houve a redescoberta do corpo,
porém em contraste com o padrão de beleza das figuras colunares gregas, as formas mais
roliças da nobreza que esbanjavam fartura eram o padrão corpóreo vigente (LEITE; LIMA, 2007),
assim, “o corpo feminino em particular recebe então uma espessura e uma carnação que não
tinha. A aparência se torna mais polpuda, o contorno mais consistente” (VIGARELLO, 2006,
p.16).
Em reação aos ideais Iluministas de liberdade, nos séculos XVIII e XIX, emerge
paradoxalmente um novo modelo de diferenciação sexual, culminando na incorporação de certas
subjetividades, como destaca Rosário (2004), onde o corpo feminino deveria seguir um ideal de
beleza e reprodução em contraste com o corpo masculino dominador e detentor da razão.
Nesse sentido, Bourdieu (1999) aborda a questão da dominação social masculina
salientando que esse fato acaba por caracterizar as mulheres como objetos simbólicos,
colocando-as em permanente estado de insegurança corporal, ou mesmo gerando uma

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dependência simbólica, pois elas existem primeiramente pelo, e para o olhar dos outros.
Tal visão das mulheres como objetos necessariamente receptivos, atraentes, e
disponíveis gera, portanto, a expectativa de que elas sejam “femininas”, ou seja, simpáticas,
atenciosas, contidas, belas e até mesmo submissas (GOLDENBERG, 2007).
Dessa forma, o ideal oitocentista redefiniu o corpo feminino como algo “entre anjos e
crianças, totalmente dependente da figura masculina; sua estrutura frágil e impotente lhe
conferia a aparência apreciada” (XIMENES, 2011, p.37).
Assim, a mentalidade que prevaleceu durante o período romântico (1830-1850)
vislumbrava a fuga da realidade humanística, revelando novas formas de sujeição dos corpos
feminino.
De acordo com Ximenes (2011), no princípio da década de 1850, surgiram as primeiras
crinolinas2, sendo que qualquer atividade realizada ao vesti-las levava as mulheres a fadiga.
Desse modo, somado ao uso do espartilho, eram comuns os desmaios e falta de ar.
Tal feição adoentada se tornou padrão de beleza, levando inclusive a utilização de
açafrão e pigmentos para a obtenção de olheiras. Desse modo, a palidez da pele exaltava um
aspecto mórbido. Assim, “a bela mulher devia ter a tez alva, que possibilitava até ver suas veias
azuladas” (XIMENES, 2011, p. 62). Tal palidez idealizada como bela durante este período se
observa na Figura 4, obra que retrata Effie Gray, personalidade protagonista de um triângulo
amoroso da época, o qual inspirou romances literários e obras dramáticas (COOPER, 2010).
Segundo a fonte, ao retrata-la, o artista a fez parecer "uma boneca graciosa" salientando a
valorização da pele excessivamente alva como o ideal que caracterizava a feminilidade das
damas da alta sociedade durante esse período.

                                                                                                                       
2Nome dado às anáguas no século XIX capazes de conferir volume às saias devido a sua armação. Eram
assim chamadas por serem feitas da própria crina de cavalo, além disso, também eram conhecidas como
cage (gaiola em inglês e francês), fazendo referência à sua aparência (XIMENES, 2011).

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Figura 4 – Euphemia ('Effie') Chalmers (nee Gray), Lady Millais

Fonte: National Portrait Gallery (2014)

No final do século XIX, no período da Belle Époque (1890-1914) o corpo feminino ideal
foi caracterizado pela silhueta em S conforme ilustrado na Figura 5, exibindo ombros mais
volumosos, cintura muito fina e quadris avantajados. Dessa forma, a beleza feminina do período
era expressa pelos estreitos e inatingíveis quarenta centímetros de cintura. Para alcançar tal
objetivo, algumas mulheres chegavam a remover suas costelas flutuantes visando conseguir
afinar ainda mais a cintura com o auxílio do espartilho (SILVA, 2009).

Figura 5 – Espartilho e silhueta S

Fonte: Callan (2007)

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Portanto, ser bela e de acordo com tais padrões contribui para esta concepção de “ser mulher”.
Assim, constantemente subjugadas aos olhares alheios, o gênero feminino se vê obrigado a
experimentar certa distância entre o corpo real e o corpo ideal, sendo o último incessantemente
almejado (GOLDENBERG, 2007).
Dessa forma, no século XX, com a sociedade cada vez mais atrelada com a
industrialização e a tecnologia, a reprodução do corpo se massifica por meio da fotografia, do
cinema, revistas e televisão, fatores que segundo Rosário (2004), fazem do corpo um novo tipo
de mídia, capaz de despertar desejos, comunicando ideais a serem atingidos pela massa.
Assim, “a moda se oferece, como arquivo e vitrine do ser/parecer, sugerindo
comportamentos e atitudes, fabricando selfs performáticos por meio de sutis recriações dos
conceitos de verdade, de bem e de belo” (VILLAÇA, 1999, p.57). Dessa forma, o século passado
e suas modas foram decisivos para as definições do modelo do corpo belo idealizado na
contemporaneidade.
Na década de 1920, por exemplo, com o espírito libertador pós-guerra, a imagem
andrógina3 era a mais desejada pelas mulheres que mantinham cabelos curtos e silhuetas
esguias (SILVA, 2009).
Nos anos que compreenderam a década de 1930, caracterizado como um período de
crise após a quebra da Bolsa de Valores nova-iorquina (1929), a distração das dificuldades se
dava por meio do entretenimento. Assim, com a difusão das imagens cinematográficas de
atrizes, surgem novos modelos de beleza corpóreos que se desviam da androginia da década
passada e dão lugar às curvas. Além disso, o estímulo de atividades ao ar livre assegura o corpo
bronzeado como belo (SILVA, 2009).
Em tempos de conflitos bélicos, na década de 1940 Mendes e Haye (2003), destacam
que as mulheres viram-se sob a pressão de manter a boa aparência, especialmente para os
homens que retornavam da frente de batalha, e ao mesmo tempo, de cuidar da família e realizar
trabalhos de guerra. Entretanto, “como havia escassez de roupas e acessórios, a ênfase recaía
sobre penteados e maquiagem” (MENDES; HAYE, 2003, p. 112).
Nesse sentido, a indústria dos cosméticos permanecia em evidência, pois, seus
ingredientes básicos também eram requisitados para fins de guerra, assim como os materiais
para embalagem, por isso a beleza em destaque durante esse período era copiada das

                                                                                                                       
3
O mito do andrógino – que surge no diálogo O Banquete, escrito por Platão no século IV a.C. – caracteriza
o andrógino como um ser duplo, masculino e feminino ao mesmo tempo, dando origem ao termo que
contemporaneamente trata de imagens que apresentam em sua estética essa característica (ALCÂNTARA,
2012).

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personalidades de Hollywood, como Rita Hayworth (Figura 6), as quais projetavam os padrões
vigentes enfatizando faces recobertas por pó facial em tom mais claro que o natural, lábios
vermelhos, sobrancelhas curvilíneas e arredondadas (MENDES; HAYE, 2003).

Figura 6 – Rita Hayworth em cena do filme Gilda (1946)

Fonte: Vogue (2014)

Posteriormente, em contraste com os tempos de restrições no período da Segunda


Guerra Mundial, Silva (2009) aponta que nos anos da década de 1950 o desejo pela feminilidade
aflorada se faz presente. Dessa forma, a estética das pin-ups4 se torna o modelo da mulher ideal
e sensual.
De acordo com a autora, com o espírito revolucionário impulsionado a partir da década
de 1960, novamente há mudanças sociais paradigmáticas, o que se reflete no ideal corpóreo da
mulher, que neste momento retoma a estética andrógina, sendo que a revolução da moda jovem
acompanhada da invenção da pílula anticoncepcional são fatores que se combinam como uma
forma de busca feminina pela autonomia. Assim, a modelo Twiggy5 (Figura 7), de silhueta esguia
e cabelos curtos foi um grande ícone de beleza da década.
                                                                                                                       
4 Conforme Martignette e Meisel (2008), tal estética foi veiculada em retratos de mulheres jovens,
apresentando temas ou evocando implicitamente alguma história. Geralmente estão vestidas de forma a
revelar as formas voluptuosas de seu corpo, em trajes como roupas de banho, camisolas e lingeries. Podem
também aparecer nuas, mas sem um ar de vulgaridade. Eram vistas em calendários, cartões postais,
ilustrações de histórias, revistas, entre outros.

5Leslie Hornby Armstrong, apelidada de “Twiggy” (graveto), surgiu no cenário da moda americana na década
de 1960. Apresentada pelas páginas de revistas como Seventeen e Vogue, onde exibiu sua forma corporal
magérrima, geralmente vestida com modelitos de silhueta tubular (ARAÚJO; SANFELICE, 2005).

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Figura 7 – Twiggy

Fonte: Mendes; Haye, (2003)

Entretanto, durante a difusão da moda pluralizada entre as décadas de 1970 e 1980,


marcando tênues diferenças entre grupos, a moda disco coexistia entre hippies e punks, sendo
que novamente um modelo padronizado ideal de corpo feminino se destaca a partir da década
de 1980. Por meio da proliferação das academias de ginástica, o corpo bem torneado cultivado
segundo rígidos exercícios físicos era almejado (SILVA, 2009).
Na década de 1990, Silva (2009) afirma que a era das supermodelos (ou top models)
influenciou o ideal de beleza feminino, sendo ícones desse momento Naomi Campbell, Linda
Evangelista, Tatjana Patitz, Christy Turlington e Cindy Crawford (Figura 8). Portanto, o padrão
corpóreo vigente era a silhueta longilínea e esbelta característica das modelos, as quais se
tornaram símbolo de sucesso, glamour e beleza.

Figura 8 – Supermodels

Fonte: IDEALISTSTYLE, 2014.

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Assim, desde o início do século XXI, o corpo passou a ser glorificado de forma gradativa,
pois “sua exibição pública é cada vez maior, deixando transparecer o que antes era escondido e,
aparentemente, mais controlado” (PAIM; STREY, 2004 p.1).
Cabe ressaltar que se o consumo contemporâneo se baseia na busca pela felicidade,
cada vez mais efêmera e interligada à individualização do sujeito e sua representação, este fato
também caracteriza a era da construção dos corpos, em busca de sua metamorfose e
exposição, combinando as necessidades atribuídas à matéria corpórea contemporânea, como
comunicação, construção identitária e controle (LIPOVETSY, 2007). Dessa forma,

Abre-se espaço para uma indústria do corpo; a matéria física precisa entrar
numa linha de produção que inclui ginástica, musculação, regimes
alimentares, tratamentos estéticos, tratamentos de saúde, consumo da moda
e de bens. A indústria da beleza, da saúde e do status tem no corpo seu
maior consumidor. (PAIM; STRAY, 2004, p. 1).

Na sociedade contemporânea, portanto, sendo o corpo venerado até mesmo como objeto de
consumo, o culto corpóreo é uma das características mais marcantes, onde substanciosos
investimentos salietam a busca pela manutenção da identidade do indivíduo e sua ânsia por
controlar esse corpo ao manipula-lo.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentre os principais fenômenos socioculturais percebidos na contemporaneidade


destaca-se o culto ao corpo como estilo de vida (GOLDENBERG, 2007). Assim, tendo em vista
que tal comportamento é influenciado pela moda enquanto estímulo para a imitação de padrões
socialmente desejáveis, principalmente no âmbito feminino (SIMMEL, 1988), cabe ressaltar que
se as mulheres buscam incessantemente um corpo idealizado, este é cercado por coerções
sociais (WOLF, 1992), e dessa forma, a procura por um modelo ideal (por vezes tão distante da
realidade) tolhe a busca feminina pela autonomia que é característica da mulher contemporânea
(LIPOVETSKY, 2000).
Entretanto, dado o exposto, a idealização corpórea imposta à mulher permeia diferentes
épocas, e ao explorar tal histórico podemos considerar que se a moda é caracterizada como um
estímulo à imitação e simultaneidade, como percebido no caso da busca pelo corpo ideal, a sua
face de distinção e individualização também pode se fazer presente (SIMMEL, 1988), oferecendo
assim, a possibilidade de compreender tais mecanismos para libertar-se da coerção social ao
não se sujeitar cegamente.

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Lygia Clark : Os limites do gênero do corpo na série Roupa-corpo-roupa

Lygia Clark: The body of the genre boundaries in Roupa-corpo-roupa series

Flavia Jakemiu Araujo Bortolon


UFPR – Universidade Federal do Paraná
Departamento de pós-graduação em História
flaviabortolon@gmail.com

Resumo. O artigo pretende debater as questões dos limites do corpo, conforme proposto pela artista plástica
brasileira Lygia Clark, por meio de suas obras sensoriais (1965/1969). Para tal, foi realizada uma pesquisa
documental em textos de críticos de arte, jornais e cartas da artista, durante o período de sua produção até
exposições mais recentes. O corpo passou a fazer parte da obra, possibilitando o questionamento das sensações
que são impostas por instrumentos (objetos sensoriais) e por espaços onde se inserem. A obra desses artistas
passou a questionar não somente o que é arte, mas também o local onde essas peças podiam ser apresentadas.
Leitora do filósofo Merleau-Ponty, Clark propunha experiências fenomenológicas, participativas, que não
deixavam o espectador passivo perante os movimentos do objeto e do corpo. Assim, Lygia Clark posicionou-se
diante dos limites, sensoriais e éticos do corpo, a interação entre corpo e obra por meio da problematização ou
mesmo da inversão de performances generificadas

Palavras-chave: Lygia Clark, obras sensoriais, gênero.

Abstract. The article aims to discuss the body's limits of issues as proposed by the Brazilian artist Lygia Clark,
through its sensory works (1965/1969). To this end, a documentary research on art critics texts was held,
newspapers and letters of the artist during the period of its production to more recent exhibitions. The body
became part of the work, allowing the questioning of sensations that are imposed by instruments (sense objects)
and areas where they operate. The work of these artists began to question not only what art is, but also where
these pieces could be displayed. Reader of Merleau-Ponty philosopher, Clark proposed phenomenological,
participatory experiences, which did not allow the passive spectator before the subject's movements and body.
Thus, Lygia Clark stood before the limits, sensory and ethical body, the interaction between body and work
through questioning or even reversal of gendered performances

Keywords: Lygia Clark, sensory works, gender.

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1- Lygia Clark : Os limites do gênero do corpo na série Roupa-corpo-roupa

Lygia Clark nasceu em 23 de outubro de 1920, em Belo Horizonte, como Lygia


Pimentel Lins, pertencente a uma família de juristas e donos de imobiliárias da capital
mineira, que não tinham convívio com as artes. Ao concluir seus estudos, aos 18 anos, casou-
se com o engenheiro, igualmente rico, Aluísio Clark, com o qual viveu 10 anos em Belo
Horizonte e teve três filhos. Lygia Clark mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em
1947 para estudar com Roberto Burle Marx e Zélia Salgado, que eram paisagistas e
professores de arte. Em 1953, de acordo com Ferreira Gullar, entre os artistas presentes no
movimento concreto brasileiro, havia destaque para Lygia Clark e sua obra, que começava a
apresentar características estilísticas e propensões filosóficas.

Podia-se ver que, àquela altura a arte brasileira padecia de dois exageros
contraditórios: da parte carioca – um Serpa, Um Carvão – certo desinteresse pela
indagação de alguns problemas básicos da estética concretista; da parte dos
paulistas, a exacerbada intenção de tudo formular e de trabalhar segundo essa
formulação prévia. Já aí, dois artistas, pelo menos, mantinham-se a salvo desses
exageros: Lygia Clark e Franz Weismann. A primeira apresentava superfícies
moduladas, onde já afirmava a sua posição nova, revolucionária em face dos
problemas colocados pela estética bilina. Weissmann, menos impetuoso, impunha a
suas obras uma coerência e uma economia de estrutura que não partiram de um a
priori estético, mas de um sentido profundo da forma espacial. A posição desses
dois artistas – e principalmente a experiência radical e continuada de Lygia Clark –
já definiam o caminho que iria tomar a arte concreta no Brasil com a formação, em
1959, do Grupo Neoconcreto (Gullar, 1985. p. 229).

Gullar pretende, com essa afirmação, diferenciar os trabalhos de dois artistas: Franz
Weismann e Lygia Clark dos demais participantes, que tendiam a discutir questões
unicamente artísticas/estéticas da forma ou ignoravam — apenas seguindo uma fórmula pré-
existente — a vinda de artistas internacionais. O poeta e crítico afirma ainda que Lygia Clark
abriu novas expectativas para a arte concreta, quando enfocou o quadro como um todo
orgânico, significativo, no qual a moldura não era o limite onde terminaria a obra (Gullar,
1985).
O grupo passa a denominar-se Neoconcretista, um neologismo aceito por todos
integrantes, e se reafirmam com o Manifesto Neoconcreto. Segundo Gullar (2007), nessa fase
os artistas nacionais, encabeçados por Lygia Clark, dão passos que artistas da vanguarda
europeia não realizaram quando discutem o quadro, a tela, não somente o agir sobre a tela.
Continuando seus estudos em Superfícies Modulares e Contra-relevos (1956 a 1958) (figura
7), as placas pretas e brancas parecem saltar do quadro dando uma nova percepção. conforme
quem as visualiza. Dentro das questões artísticas postas nas questões modulares, Lygia Clark

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decreta “que a pintura chegara ao fim de sua trajetória, enquanto representação, afirma a
morte do plano como suporte da expressão (Clark apud Milliet, 1992. p. 52)”.

Figura 1 – Superfícies modulares, Lygia Clark (1959)

Fonte: Exposição Lygia Clark no Itaú Cultural, São Paulo, 2011.

Em 1959, a obra Casulo marca a passagem definitiva da artista da pintura para a


escultura, porém esta ainda está presa à parede, ao plano, alcançando mais liberdade plástica
com a famosa série posterior ao neoconcretismo Os Bichos.
A obra Bichos (1960) é composta por duas placas sobrepostas subdivididas e
articuladas por dobradiças. A obra rompeu o com a “tradição escultórica em vigor no século
XIX porque: livres de pedestal, abandonam a monumentalidade e a fixação a um local, não
constituem massas e sim estruturas estereométricas construídas com material industrializado
(Milliet, 1992. p. 67)”.

Bicho é uma designação metafórica, como o nome casulo, que de fato designam a
busca de soluções para o problema da contradição figura-fundo, pintar ou não
pintar. Os casulos, como os Bichos, nascem da opção compulsiva de Lygia Clark ao
trocar o gesto simbólico do pintor pela ação real sobre o suporte da pintura. Desse
modo, assim os Casulos são modificação que tornaria tridimensional a tela
bidimensional, os Bichos são desdobramento deste processo de transmutação
(destruição) do suporte da pintura. Noutras palavras: como não era mais possível
pintar, como não podia mais dar à tela seu uso tradicional, ela a destrói para
continuar a fazer arte (Gullar, 2007. p. 58).

Os Bichos passam, portanto, a proporcionar experiências motoras ao público.


“Contemplamo-la agora, não mais como uma coisa exterior a nós, mas como um produto
também de nosso esforço, de nossa ação: a obra torna-se, até certo ponto, também obra nossa
(Gullar, 1985. p. 253)". Os Bichos permitiam a apropriação da obra pelo público através da
experiência tátil. Lygia Clark escreve sobre essa relação do público com a obra: “O que se

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produz é uma espécie de corpo a corpo entre duas entidades vivas (Clark, 1980. p. 17)". Em
outra declaração, complementa: “Quando me perguntam quantos movimentos o bicho pode
efetuar, eu respondo ‘Não sei nada disso, você não sabe nada disso; mas ele, ele sabe (Clark,
1980. p. 17)'". Para Clark, os bichos atingiam o participante, que movimentava as dobradiças
e criava e recriava novas formas por meio do caráter simbólico do objeto, como do seu
manusear e interagir, fazendo com que este se sinta participante e construtor da arte.

Figura 2 – Bichos, Lygia Clark (1960)

Fonte: Exposição Lygia Clark no Itaú Cultural, São Paulo, 2011.

Por volta de 1964, Lygia Clark se volta para a ampliação sensorial do participante
com a obra Caminhando, na qual o papel do artista é mesclado com o seu público, que
interage na construção do objeto, da obra em si. A partir de então, ela se classifica como não
artista graças ao privilégio dado à atuação do participante, que construirá uma nova obra de
arte (uma faixa de papel, denominada Moebius, que é cortada pelo participante) por meio de
suas sensações.
Clark também tem a intenção de que, ao cortá-la, o sujeito percorra um espaço
contínuo que não apresenta frente, verso, avesso ou direito; não há, ali, um ponto de partida e
outro de chegada; não existe um fim previamente determinado para o qual devamos seguir
(Milliet, 2009). “Caminhando’ é uma instrução gráfica composta por várias imagens: as de
um corpo sentado cujas mãos cortam e recortam a fita de papel que se alonga, afina-se e
embaraça-se no colo da mulher da tesoura: ‘espaço-tempo novo, concreto (Clark, 1980. p.
25)”.
Nas obras anteriores a Caminhando, o artista e a obra ainda precisavam existir para
que a experiência ocorresse. Nessa nova proposta, qualquer pessoa pode vivenciar uma obra,

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basta um pedaço de papel e uma tesoura comum. Clark brinca com ser não artista, querendo
induzir à conclusão de que não é necessária nem mais a presença dela ou de uma artista para
construção de Caminhando. Anteriormente, Clark desmaterializava a obra; agora,
desmaterializa a existência do artista para construir e explorar o sujeito não artista.

Figura 3 – Caminhando, Lygia Clark, 1963

Repórter de Istoé reencena Caminhando, retirada da lista da Bienal.

Em 1964, o governo francês concede a Lygia Clark uma bolsa de estudos de seis
meses. Na França, a artista teve a oportunidade conhecer obras e movimentos que ocorriam
na Europa, além de fazer contatos com outros artistas e galerias. Por intermédio do artista
brasileiro Sérgio Camargo, Clark expôs em Sttutgart e fez contatos para realizar uma
exposição individual em Londres, na Galeria Signals (Carneiro, 2004. p. 196). Em 1965, a
exposição londrina foi amplamente divulgada. A partir de 1966, aproximadamente, Clark dá
origem a uma nova fase em sua trajetória artística, marcada pela busca de uma nova
percepção do corpo e da própria corporalidade do ato criativo, por meio de objetos e
exercícios de sensibilização – a denominada “nostalgia do corpo”.
A proposta de sensibilização do corpo e do sujeito surge depois de Lygia Clark ter
dissolvido o objeto de arte em favor do ato. De acordo com Rivera, “Caminhando radicaliza
ainda mais a proposta de participação do outro na obra. Clark chega a abandonar os termos
‘obra’ e ‘objeto’ de arte em prol do termo ‘proposição’, acentuando o seu caráter de apelo ao
sujeito (Rivera, 2013. p. 144)".
A primeira “proposição” a esse respeito, realizada em 1966, ocorre quando Lygia
Clark percebe o tato da mão dentro de uma luva plástica com objetos externos. Denominada
Pedra e ar, essa proposta marca o início da série sensorial Nostalgia do Corpo. Lygia Clark
descreve a experiência:

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Arranquei o saco plástico, o enchi de ar e o fechei com o elástico, e sobre ele


coloquei uma pequena pedra... comecei a apalpar o saco sem me preocupar... com a
pressão a pedra subia e descia por cima da bolsa de ar.... mimetizando assim um
parto muito inquietante... então de repente percebi que aquilo era uma coisa viva.
Parecia um corpo. Era uma corpo... isso me transformou e ao mesmo tempo
significou o fim de minha crise (Carneiro, 2010. p.103).

Uma das possíveis crises que estava sendo resolvida para Lygia Clark era a mesma
compartilhada por outros artistas, como Hélio Oiticica, isto é: a urgência de uma nova forma
de arte experimental, que respondesse às expectativas da vanguarda brasileira e às propostas
divulgadas em manifestos e exposições.
A série sensorial corporal segue com as obras: Roupa-corpo-roupa (1967), O eu e o
tu (1967), Cesariana (1967) e a instalação A casa é o corpo (1968), junto a As máscaras
sensoriais. Cada uma dessas obras possui formas diferentes de estimulação corporal: a
primeira consiste de um macacão de plástico que propõe trocar as dualidades do corpo
masculino/feminino, com sacos plásticos e pelos dentro de cada vestimenta que
proporcionam a troca de sensibilidade para o participante. Também permite ver de formas
diferentes, como as Máscaras sensoriais, que causavam sensações ao indivíduo que as
vestissem, desde cheiros, sons e a visão, por meio de óculos integrados que causavam
distorção do mundo percebido pelo sujeito. Há ainda a sensação de estar grávida e poder abrir
a barriga e retirar o objeto, podendo abraçá-lo, como ocorre em Cesariana (ver figura 5).
Assim, cada participante interfere na obra e a obra nele conforme as experiências simbólicas
criadas na imaginação e nas lembranças.

Figura 5 – Cesariana, de Lygia Clark (1968)

Fonte: Exposição Lygia Clark no Itaú Cultural, São Paulo, 2011.

A instalação A casa é o corpo foi exposta na Bienal de Veneza, em 1968, na

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retrospectiva de 10 anos de trabalhos de Lygia Clark. Era uma estrutura de oito metros de
comprimento, com dois compartimentos laterais. O centro desta estrutura se constituía de um
grande balão de plástico. Os compartimentos eram divididos em: penetração, ovulação,
germinação e expulsão. As pessoas que cruzavam os ambientes tinham sensações táteis ao
tocar as paredes, com luzes e transparência do plástico e desequilíbrio ao andar.

Seria seu corpo sua casa, como parece defender Lygia Clark com seus A casa é o
corpo e O corpo é a casa? Não, no corpo o sujeito está um tanto desconfortável. Não
há coincidência entre eu e meu corpo. Isso é o que a linguagem comum acentua
todos os dias, quando dizemos “eu tenho corpo”, mais do que “sou um corpo”
(Rivera, 2013. p.23).

A casa é o corpo apresentou como proposta despertar nos participantes a ideia de


interação do corpo com a obra de arte, por meio das peças de vestuário que modificavam as
sensações corporais, das máscaras que distorciam a audição, a visão e o olfato, bem como das
luvas que mexiam com o tato. Dessa forma, tiravam o participante do conforto habitual para,
propositalmente, fazê-lo questionar o que o sujeito julga ser real.
Ao voltar ao Brasil em 1976, após lecionar em Paris, a artista convida um grupo de
terapeutas para trabalharem com ela e com os seus participantes, agora pacientes de suas
obras sensoriais. A técnica consistia em fazer o paciente viver/reviver um momento que ficou
gravado na sua memória corporal por meio de um objeto com o qual entra em contato.
Conforme Milliet (1992): a artista persiste na dialética entre o dentro e o fora, o sujeito e o
objeto, o real e o imaginário, a linguagem e a não-linguagem, através dos quais o corpo deve
substituir a fala.

2 - Lygia Clark em busca do corpo generificado na série “roupa-corpo-roupa”

A partir da segunda metade da década de 1960, Lygia Clark, parcialmente em


consonância com algumas das principais discussões da vanguarda nacional, dedicou-se a
explorar o corpo como plataforma poética, num período de intensa atividade criativa e
mesmo expositiva. Roupa-corpo-roupa foi criada por Lygia Clark em 1967, juntamente à
obra A casa é o corpo, exposta pela primeira vez no Brasil no Museu de Arte Moderna. Essa
obra se tratava de dois macacões vestidos por um homem e uma mulher para que esses
pudessem ter a percepção de estar dentro de um corpo de outro sexo. A dualidade:
masculino/feminino está presente na metáfora construída pela série Roupa-corpo-roupa e na
obra O eu e o tu, em que dois macacões de plástico trazem sugestões de corpos: masculino ou

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feminino, para serem vestidos pelos seus opostos, com aberturas para que um possa tocar o
outro, como na descoberta do sexo.

Consiste em macacões de plástico para serem vestidos por um homem e uma


mulher. No interior dos macacões, há um forro com diversos materiais como sacos
plásticos cheios de água, espuma vegetal e borracha, no sentido de dar ao homem
uma sensação feminina e à mulher uma sensação masculina. Um capuz também de
plástico impossibilita a visão dos participantes, e um tubo de borracha, como um
cordão umbilical une os dois macacões. Seis zíperes em diversos locais da roupa
permitem que, ao abri-los, os participantes explorem o outro pelo tato “o homem
reconheceria o seu próprio corpo através de sensações tácteis operadas sobre
objetos exteriores a ele”, dizia Lygia Clark (Costa, 2010. p. 57).

O corpo vestido com Roupa-corpo-roupa passa a conduzir novas reações do


participante, porque a relação com o mundo externo ocorre a partir da interferência da
indumentária. Oliveira (2008) aponta para importância da relação geral do corpo com o
vestuário, afirmando que as aparências do corpo vestido podem ser tomadas como alicerces
de construções identitárias.

Nos palcos de exposição do sujeito, integram a cena não somente os modelos


prescritos de corpo mas também os prescritos para a indumentária, e os tipos de
articulação, que o sujeita realiza no processamento do corpo vestido, vão talhar a
construção de sua aparência, no qual intervem a sua concepção de mundo, vida seus
anseios e seus valores (Oliveira, Castilho, 2008. p.94).

Assim, a relação do corpo com o vestuário estaria ligada à definição da aparência, da


identidade e dos valores que expressam um determinado conteúdo para os demais corpos.

Como é essa relação do corpo à roupa? E da roupa ao corpo? Mais um tipo de


empréstimo? Um toma-lá-dá-cá de sistema em relação ao outro, mas em função do
quê? Não haveria uma dimensão além da unilateralidade relacional que operaria por
uma reversibilidade de papéis e, assim, tanto a roupa faria empréstimos, doações ao
corpo, como também o corpo à roupa? O que animariam essa operações de trocas?
Estariam elas restritas a valores prático-funcionais? Interfeririam os valores
simbólicos? E os valores estéticos, como estão investidos tanto no corpo quanto na
roupa? (Oliveira, Castilho, 2008. p.94)

A interação do corpo com a roupa ocorre por meio de uma relação não unilateral. A
relação primária funcional, de proteção contra o ambiente, não é a única estabelecida com os
corpos. Por meio da roupa há também fatores simbólicos e estéticos. Nas peças de Lygia
Clark, o vestuário ultrapassa a função estritamente utilitária para abranger a própria
concepção do corpo que se “veste”. Todavia, a exploração de gêneros, que ocorre dentro de
algumas peças da artista, por vezes se dá de forma aparentemente assexuada. Nesta obra, por
exemplo, temos macacões sem distinção externa de feminino ou masculino, em que os órgãos
que diferenciam os sexos estão sendo “sentidos” ou evocados apenas no interior da peça.

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Para concretização da obra, era necessário que houvesse a presença de um homem e


uma mulher, para que cada um pudesse vestir um macacão com os enchimentos que davam a
sensação do corpo oposto, homem-mulher, mulher-homem. Essa necessidade vinha da
proposta de Lygia Clark de alterar a percepção do sexo, uma pretensa inversão de gênero.
Havia uma tensão sexual na proposta, percebida no tocar um corpo e estar ao mesmo tempo
dentro de outro com sexo diferente. Ambos estavam ligados a um cano, que agia como um
cordão umbilical e propunha a interação entre esses corpos, como questões de nascimento,
mais trabalhada em outras ocasiões. Assim como cegos, pois estavam com os olhos cobertos
pelo capuz, eles necessitavam do tato para tocar o seu corpo e o do outro, conhecendo a ele
próprio e ao sujeito a seu lado por ideias falsas (trocadas de sexo), apontando limites
impostos pelo corpo para o conhecimento real dos fatos, no caso, o sexo.

Figura 7 – O eu e o tu, Lygia Clark (1967)

Fonte: Exposição Itaú Cultural, 2011, São Paulo.

A imagem acima mostra a roupa-corpo-roupa em exposição, sem a presença dos


participantes. Pode-se observar os detalhes externos do macacão, como os zíperes, a
densidade do material que ele foi confeccionado e o capuz a seu lado, que cobria os olhos e
as orelhas.
Na proposta do Eu e o tu, temos um macacão com um plástico com aspecto oleoso
vestido pelo casal que possui aberturas, feitas com zíperes, permanecendo todo o rosto
igualmente coberto. O corpo impossibilita a visão e a audição (cobre os olhos e as orelhas) e
um tubo de borracha na altura do umbigo interliga ambos. A intenção de Clark é que haja o

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toque e que o casal busque descobrir por meio da sensação das mãos o corpo do outro. Em
cada roupa há enchimentos que causam sensação de distinção sexual, porem invertidos,
como, por exemplo, a presença de pelos no peito feminino. Lygia gerava o questionamento
do corpo, do que é um corpo feminino e/ou masculino.

Trata-se de uma relação estrutural (homológica e não analógica). Meu trabalho não
está longe da violência sexual porque libera instintos reprimidos, mas não está
forçosamente ligado ao prazer. Tudo depende, logicamente, dos participantes: o
erotismo pode ser negado em favor do lúdico, e vice-versa (Clark, 1998. p. 232).

A sensibilidade dos gêneros como fixos é questionada por Lygia Clark por meio das
sensações corporais modificadas com as roupas/obras. A sensação provocada pelos pesados
macacões não era então somente o tocar-se e o descobrir o outro, ademais, era de ser
invadido, aberto pelo outro, e, ao mesmo tempo, poder fazer o mesmo. No texto “Breviário
do corpo” a artista remonta à sensação do tocar e descobrir o sexo, descrevendo como ele
poderia ser percebido por meio dos toques-cegos causados pelas indumentárias do Eu e o tu.

Figura 8 – Detalhe de O eu e o tu, Lygia Clark (1967)

Fonte: Imagem organização Mundo Lygia Clark

Mas que tiveram também a sabedoria da espera e por um pequeno lapso de tempo
compreenderam que, se elas podiam destruir com tal desejo e violência, poderiam
também reconstruir este corpo composto de uma cabeça alienada, de um coração
frouxo, de um sexo calado, rancoroso e surdo. Mãos que andaram nesta ocasião
pelo meu corpo, como um carrinho de mão, medindo- o, analisando-o, afagando-o e

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trazendo até o meu conhecimento todas as necessidades deste corpo até então inerte
e morto. Mãos que passaram pela minha sensualidade como um arado,
desdobrando, revolvendo, remexendo, mãos que arrumaram minha cabeça como
uma grande gaveta em desordem (Clark, 1980, p. 116).

Como na imagem, que mostra o detalhe da parte de dento do macacão, o participante


está descobrindo o corpo por meio do toque, Clark descreve poeticamente essa descoberta por
meio do tato na citação acima, essas mãos ao tocar provocam sensações e auxiliam a formular
um conceito sobre o eu.
Na matéria de capa da revista Visão, de 28 de abril de 1967 – com o cabeçalho
“Novas tendências da arte”, e título da matéria “A louca arte dos nossos jovens artistas”,
escrita pelo crítico de arte Flávio de Aquino (figura 9) a respeito da exposição que apresenta a
série Roupa-corpo-roupa, no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, em 1967 –, o
jornalista comenta como foi o contato do público/participante com a obra. Dentro da
compreensão do crítico, as novas experiências artísticas, entre elas a obra de Lygia Clark,
rompem com antigos conceitos de “arte”: “Hoje podemos afirmar que um capítulo da história
da arte se encerrou e iniciou quando entraram em cena os rudes, atrevidos e mal trajados
jovens da pop-arte (Aquino, 1967).” Sobre Lygia Clark, Flávio Aquino escreve:

A mesma artista, em sua roupa-corpo-roupa coloca um casal ao vivo, frente a frente


vestido com macacão de plástico fendido por inúmeros fechos éclair. Começada a
representação, macho e fêmea desenvolvem um lento ritual mímico, no qual
mutuamente descobrem que um é o outro, ou seja, que homem e mulher só existem
porque se completam. Ligia nega que isso é um ballet e também afirma que “uma
vez completado o ato da criação artística o resultado para mim é indiferente. Detesto
rever o que faço minha casa não é decorada com minhas obras (Aquino, 1967. p.
24)”.

Figura 9 – Revista Visão, 28 de abril de 1967

Fonte: Arquivo O Mundo de Lygia Clark

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Na legenda da imagem, “Lígia nega que sua experiência seja um ballet”, o conceito
de experiência corporal da artista parece confuso para Aquino. Clark traz novas proposições e
questionamentos que serão feitos pelo participante ao vestir: questionamentos sobre gênero,
sobre violação e sobre a percepção do outro. Segundo Sônia Salomão Khéde (1981), a visão
de alguns jornalistas entrava em conflito com a geração de vanguarda nas artes, havia um
choque de gerações, com opiniões e expectativas diferentes. Além das diferenças ideológicas
sobre arte e a discussão de sexo e gênero, os vanguardistas batiam de frente com os interesses
e afirmações das autoridades do regime que se estabelecia no governo.
Através da obra Corpo-roupa-corpo, é possível compreender que o corpo do homem
surge como um limite possível para o corpo da mulher e vice-versa, tal como na citação de
Aquino Assim, como em outras obras da artista, os eventuais limites de um corpo são
também uma completude, uma saciedade, ainda que temporária e passageira, de um desejo,
ou seja, de uma carência, de uma necessidade. Portanto, da mesma forma que, antes, os
objetos sensoriais tanto limitavam o corpo pela pele e pelo tato quanto demonstravam a
expansão do mesmo pela exploração de outros corpos (objetos, no caso), agora, com O eu e o
tu, o limite é também uma ampliação, uma extensão, um pequeno prazer.
Em contraposição, em outra reportagem do jornal carioca O Globo, de 11 de abril de
1967, na matéria “Arte jovem apresenta no MAM a nova-objetividade”, Lygia Clark explica
ao jornalista que em Roupa-corpo-roupa e O eu e o tu, como indumentária física, os
visitantes encontraram “biótipos trocados”. A série de Clark traz questões de gênero e sexo
que estavam presentes no cotidiano dos intelectuais e artistas do final dos anos 1960, mesmo
com a repressão exercida pelo governo militar. O corpo e suas sensações podem modificar a
realidade percebida quando há interferências, como os enchimentos, havendo um
deslocamento das percepções causadas pelos macacões.
É nesse período que a vanguarda nacional expõe e aborda a questão do corpo como
um problema ético e poético. Conforme afirma Lucia Santaella (2004), muitas artes
participativas no século XX, entre as quais estão as obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica, são
obras que apelam para a entrada do receptor na obra, sem o que ela não aconteceria. O corpo
volta às artes como um problema a procura de respostas (Santaella. 2004). Lygia Clark
escreve sobre o corpo em relação ao sexo feminino:

O corpo que no ritual se põe de joelhos, expressando assim com toda a reverência
de que é possuído pelo mistério do outro corpo que a ele se oferece: pênis que num
gesto soberbo de sociabilidade se transforma num braço estendido pelo prazer de
encontrar o outro. O corpo que se transforma na própria vagina, para receber este
gesto de entendimento do conhecimento, abrigo poético, onde o silêncio vem cheio

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de propostas e a escuridão e o esquecimento da autonomia do um (Clark, 2004. p.


123).

Trata-se, bem entendido, de um problema “ético universal”. Segundo Judith Butler


(2003), em Problemas de gênero, ocorre uma transformação na forma de se pensar/sentir o
corpo, pois o corpo “não é um ser, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja
permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo
cultural de hierarquia de gênero e heterossexualidade compulsória (Butler, 2003. p. 198).
As sensações podiam sugerir, conforme promovem os macacões de Lygia Clark, o
gênero como independente do sexo, o próprio gênero como um conceito flutuante, “com a
consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um
corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como
um feminino (Butler, 2003. p. 24-25).”

Judith Butler teoriza que o gênero é comunicado através de desempenhos sociais


que envolvem, por exemplo, a adoção de certos estilos de vestimenta e tipos de
acessórios e maquiagem mas o eu não é inteiramente masculino ou feminino.
Entretanto, no final do seculo xx, os ideias hegemônicos de comportamento e
aparência de gênero apropriados ainda permaneciam bastante diferentes para cada
um dos gêneros. Algo central para o conceito de hegemonia é a ideia de que as
definições hegemônicas de realidade, normais e padrões parecem “naturais” e
incontestáveis (Crane, 2006. p.51).

Os pressupostos de gêneros codificados por padrões socialmente definidos como


“naturais” e incontestáveis estavam já sendo questionados quando os macacões de Lygia
propuseram nada menos que a inversão “cênica” dos sexos. Quando hegemonia masculina
patriarcal é contestada por meio da possibilidade de sentir-se no outro sexo, pode-se dizer que
Lygia Clark introduz, em obra, a questão mais ampla da flutuabilidade dos gêneros.

O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência
mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica
torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação
na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais,
transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As minorias
sexuais tornam-se multidões (Preciato, 2011. p. 14).

O corpo, nesses termos, não deixa de ser um questionamento sobre os regimentos


sociais, morais e políticos. O corpo passa a ser ativo, a propor novas concepções de gênero,
política e família, em um período com ampla censura moral exercida e imposta pelo governo
militar ditatorial, censura obrigatoriamente reforçada por meios de comunicação. Em termos
gerais, trata-se, claro, de uma questão política, ao menos se tivermos em mente o seguinte
raciocínio de Stuart Hall:

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Assim sendo, certamente, há práticas políticas que se referem ao controle e ao


exercício do poder, da mesma forma que existem práticas econômicas, que se
referem à produção e distribuição dos bens e da riqueza. Cada uma está sujeita às
condições que organizam e regem a vida política e econômica destas sociedades.
Agora, o poder político tem efeitos materiais muito reais e palpáveis. Contudo, seu
verdadeiro funcionamento depende da forma como as pessoas definem
politicamente as situações. Por exemplo, até recentemente, as relações familiares,
de gênero e sexuais eram definidas como fora do domínio do poder: isto é, como
esferas da vida nas quais a palavra “política” não tinha qualquer relevância ou
significado. Teria sido impossível conceber uma “política sexual” sem que
houvesse alguma mudança na definição do que consiste o âmbito “político”. Da
mesma maneira, só recentemente — desde que o feminismo redefiniu “o político”
(como por exemplo: “o pessoal é político”) — que passamos a reconhecer que há
uma “política da família”. E isto é uma questão de significado — o político tem a
sua dimensão cultural (Hall, 1997. p. 12-13).

Figura 10 – Movimentos feministas (1969)

Fonte: http://blogs.estadao.com.br/apenas-gravida/que-filho-darei-para-o-mundo/

A fotografia acima mostra uma passeata em que um grupo de mulheres está à frente
da manifestação, pedindo o fim da censura. Nesse contexto, as mulheres começam a
participar das atividades que pediam liberdade, expondo-se onde antes era lugar somente
masculino, exigindo direitos que eram concedidos apenas aos homens. Note-se que elas não
estão buscando apenas direitos relacionados à maternidade ou ao ideal de família, mas a
ações políticas.
Parte-se do princípio que, após os anos 1960/70, período o qual Hall (1997)
denomina de “revolução cultural”, questões que se restringiam ao espaço doméstico são
levadas à discussão, à aprovação social e política. As obras da série Roupa-corpo-roupa
levam as discussões que anteriormente pertenciam ao campo do indivíduo para o julgamento
moral e político de uma sociedade que vivencia um regime impositivo e punitivo.

Quando ele [o homem] coloca na sua cabeça um capacete sensorial ele se isola do

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mundo, depois de já ter se situado em todo um processo anterior no


desenvolvimento da arte, nessa introversão perde contato com a realidade e
encontra dentro dele mesmo toda a gama de vivências fantásticas. Seria uma
maneira de buscar-lhe o fôlego da vivência. [...] O homem capacete tem a tendência
de se desagregar no momento da vivência. Nostalgia do corpo, decepá-lo e vivê-lo
em partes para depois reintegrá-lo como organismo vivo e total (Clark, 1975. p.
219-220).

Nessa mesma linha de se reconhecer nas possibilidades dadas a um sexo, geralmente


trocando os termos homem/mulher, Lygia Clark cria Roupa-corpo-roupa: Cesariana (1967),
um macacão feito do mesmo material de O eu e o tu, em que, pretensamente, os homens
podem ter a sensação da cesárea. Conforme a artista escreve em carta de 1969 para o amigo
Hélio Oiticica, a ideia surgiu “outro dia no banho, vendo a minha ‘cesariana’ tomei
consciência de que foi preciso fazer a Roupa-corpo-roupa Cesariana para fazer em seguida a
minha... acho que sou a mulher mais maluca do universo (Clark, 1996. p. 39).”
Cesariana é um macacão feito com tecido grosso emborrachado, com um capuz que
cobria os olhos e orelhas. Nela se encontrava uma barriga, semelhante à de uma mulher
grávida, com zíperes, permitindo que fosse aberta, e dela se podia retirar a espuma picada cor
de rosa que havia dentro, como se aquele que a vestisse estivesse realizando um parto. As
reações à obra foram diversas. Lygia Clark lembra-se que,

ao praticar a cesariana, as pessoas apresentam as reações mais inesperadas.


Algumas levam a espuma ao rosto, outras atiram o material para o alto ou na
direção dos espectadores. O crítico francês Pierre Restany chamou esse trabalho de
um verdadeiro happening psíquico-dramático (Clark, 1980. p. 38).

Figura 11 – Roupa-corpo-Roupa: cesariana, Lygia Clark (1968)

Fonte: O Mundo de Lygia Clark.

A questão de maternidade e sexo é tocada em várias cartas de Lygia Clark ao amigo


artista Hélio Oiticica. Em algumas ela retoma o tema de como foi sua primeira vez, como se
sentiu “deflorada”, utilizando, em muitos casos, essa expressão para relatar os objetos

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sensoriais, a abertura dos zíperes, o toque do outro. A maternidade em Clark aparece,


algumas vezes, como uma característica pesada para a mulher, como uma subjetivação da sua
liberdade. Em carta de 1968, um ano após Roupa-corpo-roupa, ela descreve o ser mãe: “De
mãe, nada mais tenho a dar, mesmo em relação aos meus filhos... não posso mais aceitar
alguém dependente de mim”; e mais adiante: “Continuo sozinha e parece que para sempre.
Isso não me deprime em nada. Por outro lado estou usufruindo numa grande alegria toda essa
liberdade, longe de problemas de filhos, desse ambiente daí que às vezes vira até sufocante
(Clark, 1996. p. 83)”.
Sendo o corpo uma presença na discussão da arte contemporânea, florescendo
fortemente na década de 1960/70 na vanguarda nacional, ela não deixou de estar presente nas
obras das artistas mulheres. Lygia Clark explorou o corpo feminino e masculino invertendo
as polaridades. De acordo com Maria José Justino (2013), a mesma aura boêmia que
pertencia ao artista homem não servia para a mulher artista, no homem era um charme, na
mulher uma devassidão de caráter. Para quebrar esse cunho pejorativo, muitas reivindicações
dos movimentos feministas eram voltadas para a maternidade, pois a associação com mulher-
mãe correspondia às expectativas impostas pela sociedade.

Certamente, a arte por ser um lugar privilegiado da liberdade, vem permitindo à


mulher, no seu exercício, transgredir condicionamentos e criar um olhar sobre si
mesma, ao mesmo tempo que abre comunicação ao outro, às experiências coletivas,
desde experiências intimistas de Lygia Clark (objetos relacionais) à comunitária
Judy Chicago (fiminist art program) ambas, por processos diferentes, chegando ao
corpo coletivo. Para as mulheres, a arte vem se constituindo num espaço de
afirmação, de reconhecimento e do exercício da alteridade (Justino, 2013. p. 5).

Através da arte sensorial, o corpo descoberto, com todas suas nostalgias, está mais
liberto para agir e repensar as coerções sociais, que no momento passaram a se tornar
políticas. Como propositora dessa ação por meio dos objetos sensoriais, a função passa a ser
de liberdade. Para Lygia Clark,

Isso é um exercício para a vida. Se a pessoa, depois de fazer essa série de coisas que
dou, consegue viver de uma maneira mais livre, usar o corpo de uma maneira mais
sensual, se expressar melhor, amar melhor... Isso no fundo me interessa muito mais
como resultado do que a própria coisa em si que eu proponho a vocês (Clark, 2006.
p. 123).

A obra proporcionava ao participante uma liberdade maior de conhecer o corpo por


meio do toque, capacitando-o para agir mais livremente; segundo Lygia Clark, essa era a
verdadeira intenção que a obra deveria comunicar e resultar ao público. O que Lygia Clark
propunha era que o sujeito que participava do roupa-corpo-roupa, bem como dos outros

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objetos sensoriais, pudesse se redescobrir em sua própria condição (homem/mulher), e se


reencontrasse com o passado pelas memórias e novas sensações (um parto para um homem,
um órgão masculino para a mulher). O corpo em Clark aparece dentro do contexto de
vanguarda; a artista não é declaradamente feminista, todavia, rompe barreiras ao apresentar o
corpo, ao tocá-lo e ao questioná-lo.
Lygia Clark questiona os limites do corpo e da experiência corpórea por meio das
obras analisadas (O eu e o tu e Cesariana). Para criar experiências, a artista fez uso de peças
do vestuário, criadas e confeccionadas por ela, para que o participante, ao vesti-las, pudesse
ter sensações corpóreas. As roupas funcionam, nesse momento, para Clark, como extensão do
corpo ao possibilitarem o toque em objetos e limitadores, que, ao interferem e se atrelarem ao
corpo ou criam novas percepções sobre o objeto e o próprio corpo.
Ao contrário da funções cotidianas exercidas pela roupa (conforto, proteção e caráter
estético), essas peças produzidas pela artista, muitas vezes, limitam a mobilidade do corpo,
dificultando os movimentos e as funções sensoriais (visão e tato), proporcionando uma
experiência de estranhamento de si mesmo. Outro aspecto importante é a relação que essas
peças estabelecem com a alteridade, ao conectar os corpos fisicamente — por meio de canos
— ou emocionalmente, como quando o sujeito abre o zíper para retirar a espuma,
transformando o objeto em um corpo que nasce e o sujeito em um outro, que se rasga para
dar origem a essa vida.

3 - Uma possível conclusão sobre o corpo na obra de Lygia Clark

Lygia Clark estabelece, em seu percurso como artista, novas questões estéticas
concernentes ao lugar e à relação do público com a arte, que vão desde a retirada do quadro
da parede até aos Casulos, os Bichos, Caminhando chegando aos Objetos Sensoriais.
Embasada nos conceitos de fenomenologia corporal e da arte de Merleau-Ponty, suas obras
propõem ao corpo do público a participação e os estímulos com objetos cotidianos para que
essas sensações, fantasmáticas, tornassem-se então arte. Segundo Merleau-Ponty o corpo
possibilita estabelecer ligações com a consciência da realidade, sendo o corpo, como aponta
também Nancy (2012), limitador da experiência do indivíduo com as dos demais.
Em 1966, os objetos sensoriais, de Lygia Clark, foram criados para tornar possível
uma consciência alterada de nossos corpos, de nossas capacidades perceptivas e de nossas
inevitáveis restrições físicas e mentais. Os objetos sensoriais precisavam ser ativados em
contato direto com o outro, em coordenação com as nossas funções corporais, orgânicas,

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subjetivas. Em boa parte de suas obras, Lygia Clark dava indicações de como agir e interagir
com os objetos em busca de sensações que poderiam estar em meio ao corpo “fantasmático”,
desenvolvendo novas formas de conceber a obra de arte, tirando dos meios tradicionais o
papel de única forma de Arte (quadro e esculturas, por exemplo) e dando ao público o poder
de participar do ato criativo por meio do estímulo de objetos cotidianos, sugeridos pelo
propositor.
Na obra “Roupa-corpo-roupa” “o eu e o tu” de 1967, por exemplo, os sexos podiam
ser alterados, o homem vestindo-se interiormente com órgãos femininos e a mulher
experimentando algumas caraterísticas tidas como masculinas. Macacões de plástico
igualmente sem definição de sexo por fora, somente com enxertos internos provocavam a
sensação de pertencer a um sexo. Era preciso tocar-se por meio de zíperes para sentir o outro
e a si mesmo.
Lygia Clark viabilizava uma maneira diferente da “troca” de sexo. O vestuário, que
simboliza em muitos casos o gênero que ao qual pertence o sujeito (vestidos e saias como
roupas relacionadas no ocidente a mulheres, bem como ternos e gravatas ao mundo
masculino), turva a distinções de gênero entre os participantes. Somente por dentro da peça
— macacões de plástico idênticos em que estavam costurados enchimentos de espuma e
pelos — era possível vivenciar a sexualidade de cada um. Tocando o corpo do outro notava-
se o próprio sexo, já que a mulher deveria vestir o macacão masculino e vice e versa, e ao
tocar-se poderiam conhecer o corpo do outro. A peça ainda trazia um cano no umbigo que
conectava os participantes, como se estivessem presos a um cordão umbilical, um
pertencendo ou vindo, ou se confundindo com o outro.

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Feminilidades ideais no tempo e no espaço: “a mulher” em “O Espírito das Roupas”

Ideal femininity in time and space: “the woman” in “O Espírito das Roupas”

Valéria Faria dos Santos Tessari (Universidade Federal do Paraná)


tessari.valeria@gmail.com
Pamela Bostelmann (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)
pam.bostelmann@yahoo.com.br

Resumo: Esse texto tem como objetivo evidenciar o tipo de feminilidade apresentado no livro “O
Espírito das Roupas”, de Gilda de Mello e Souza, publicado em 1987. Para isso, problematizamos tal
noção de feminilidade a partir de fragmentos textuais e de imagens, confrontando-a com autoras que
realizaram outras descrições a respeito de mulheres daquele período. Buscamos evidenciar que a
mulher descrita por Gilda de Mello e Souza deve ser compreendida como um tipo ideal de feminilidade
do século XIX, apresentado pela autora como a mulher daquele século.

Palavras-chave: “O Espírito das Roupas”; gênero; indumentária.

Abstract: This paper aims to highlight the femininity type presents in the book “O Espírito das Roupas”,
by Gilda de Mello e Souza, 1987. For this, we problematized that femininity idea from textual fragments
and pictures, comparing it with other authors who performed descriptions about women of that period.
We aim to show that the woman described by Gilda de Mello e Souza should be understood as a kind
of ideal femininity of the nineteenth century, presented by the author as the woman of the century.

Keywords: “O Espírito das Roupas”; gender; clothes.

Desde sua publicação o livro “O Espírito das Roupas”, da socióloga Gilda de Mello e Souza,
tem sido referência no Brasil para os estudos sobre história da moda, principalmente para
professoras(es) e alunas(os) das graduações em Design de Moda.

O livro é resultado da tese da autora, defendida em 1950 no departamento de Sociologia da


Universidade de São Paulo. Recebida friamente pela academia, a tese teve atenção e circulação
restritas, tendo sido publicada apenas na revista científica Anais do Museu Paulista (BONADIO, 2015).
No entanto, em 1987 o texto foi publicado pela editora Companhia das Letras. Nessa ocasião, Gilda de
Mello e Souza registra na apresentação da obra que “o tema abordado, que talvez tenha parecido fútil
a muita gente, assumiu com o transcorrer do tempo uma atualidade inesperada” (SOUZA, 1987, p. 7).
Com o intuito de mostrar que o valor do trabalho era o mesmo que à época de sua defesa, a autora fez
questão de manter seu texto o mais próximo possível da tese, alterando-a minimamente (SOUZA,
1987).

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O alcance e uso da obra foram ampliados a partir dessa publicização. Bonadio (2015) a
considera uma “obra canônica no campo da moda no Brasil” (BONADIO, 2015, p. 4). Logo, é possível
pensar que as ideias nele veiculadas circulam, em grande medida, entre estudantes e
pesquisadoras(es) da temática da moda no país, desde o final da década de 1980 até os dias de hoje.

Diante da influência da obra entre estudantes e pesquisadoras(es) da história da moda no


Brasil, o objetivo do presente texto é caracterizar e problematizar o tipo de feminilidade que Gilda de
Mello e Souza apresenta no livro. Realizamos esse procedimento contrapondo o tipo de feminilidade
explicitado em fragmentos textuais e iconográficos de “O Espírito das Roupas”, utilizando edições de
1996 e 2011, com outras ideias de feminilidade no século XIX. Autoras como Vânia Carneiro de
Carvalho (2008), Penny Sparke (2004; 2008), Joanne Hollows (2008) e Beverly Gordon (1996) são
chamadas para o diálogo pois discutem, na contemporaneidade, o tema da feminilidade no século XIX.
Esse texto é uma aproximação com o tema, um exercício de reflexão e discussão que deverá ser
aprofundado em oportunidades futuras.

É importante notar que “O Espírito das Roupas” trata de algumas relações entre a
indumentária e a figura feminina de elite no século XIX, em cinco capítulos que versam sobre relações
entre moda e arte, oposição entre a vestimenta de mulheres e homens, esferas separadas, questões
de classe e vestimentas e práticas em eventos sociais, como festas e bailes. Sem localizar o estudo
especificamente em um espaço, a autora toma como referência geral a moda francesa e inglesa do
século XIX para pensar costumes no Brasil. Suas fontes de pesquisa são obras da literatura brasileira,
pinturas e fotografias.

A partir dos anos 2000 o livro recebeu a atenção de autoras como Bonadio (2015) e Pontes
(2004; 2006) que reafirmaram a sua pertinência, principalmente em relação à atualidade e ao frescor
da obra, considerando a forma como Gilda de Mello e Souza aborda o tema da moda em suas
relações com a arte, o gênero e a sociedade. A trajetória profissional da socióloga também é
destacada como uma questão relevante para a leitura do seu estudo. A seguir, apresentaremos alguns
aspectos a respeito dessa trajetória.

Uma breve trajetória de Gilda de Mello e Souza

Gilda de Mello e Souza nasceu em 1919 na cidade de São Paulo, SP, mas foi criada até os
12 anos em Araraquara, interior do estado de São Paulo. Voltando à cidade de São Paulo, passou a

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morar na casa de Mário de Andrade, seu primo em segundo grau, que influenciou sua formação
(PONTES, 2004). Mais tarde cursou a Faculdade de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP),
sendo uma das primeiras mulheres a se formar na instituição (BONADIO, 2015).

No ano de 1950, defendeu a tese “A moda no Século XIX”, sob a orientação do sociólogo
francês Roger Bastide, obtendo o doutorado em Ciências Sociais na USP (BONADIO, 2015). A autora
comenta que na ocasião da defesa do trabalho “ele constituiu uma espécie de desvio em relação às
normas predominantes nas teses da Universidade de São Paulo” (SOUZA, 1987, p. 7). Nessa época, a
moda não era um tema apreciado, sendo considerado por muitos “como fútil. Coisa de mulher”
(PONTES, 2004, p. 21). Esse apontamento evidencia a posição secundária da moda no campo das
Ciências Humanas, o que explica a circulação restrita da tese logo após ser defendida. Heloisa Pontes
(2004, p. 21) discute que “na hierarquia acadêmica e científica da época, que presidia tanto a escolha
dos objetos de estudo quanto a forma de exposição e explicação dos mesmos, a tese de Gilda estava
‘condenada’ à ‘derrota’”. Tanto é que somente 37 anos depois foi publicada como livro.

Maria Claudia Bonadio (2010), em um estudo sobre a produção acadêmica brasileira


envolvendo o tema da moda, detectou que somente em 1986 o termo moda voltou a aparecer no título
de uma pesquisa resultante de programas de Mestrado ou Doutorado. Isso demonstra que o assunto
era considerado um tema sem relevância para a academia. Cheryl Buckley (2009) argumenta que esse
desinteresse pelo tema está relacionado à sua associação com algo feminino. A partir disso, é possível
pensar que havia uma hierarquia em relação à gênero na trajetória de Gilda de Mello e Souza como
socióloga, pesquisadora e professora na academia. Pois, a autora foi assistente de seu orientador na
cadeira de Sociologia I da USP até ele renunciar cargo, retornando para a França (PONTES, 2004).
No entanto, apesar do aparente direito na sucessão da cadeira, foi Florestan Fernandes1 quem
assumiu a posição. Dessa forma, fica evidente que a assimetria “vivida pelas mulheres, no plano das
relações intelectuais e institucionais (...) estavam se construindo dentro e fora da universidade”
(PONTES, 2004, p. 22). Joan Scott (2007) aponta que a construção dos significados sociais é sempre
relacional e permeadas por hierarquias que são construídas em termos de diferenças. Uma dessas
diferenças é construída em relação ao sexo, no contraste entre masculino e feminino, sendo que o
primeiro é o dominante em oposição ao segundo (SCOTT, 2007).

                                                                                                                       
1 Florestan Fernandes terminou sua tese de doutorado, na Faculdade de Filosofia, no ano de 1951, um ano após Gilda de
Mello e Souza. No entanto, sendo a guerra o tema de sua tese, uma “atividade masculina por excelência” (PONTES, 2006,
p. 90), teve o direito à sucessão da cadeira de Sociologia I da USP. Fernandes publicou uma crítica sobre a tese de Gilda
em dezembro de 1952, na qual ele reconheceu a qualidade acadêmica do trabalho, mas criticou a liberdade de expressão
da autora e o que ele considerou, à época, falta de fundamentação empírica. Tais pontos são hoje considerados méritos no
trabalho da autora. Para mais informações sobre as carreiras de Gilda e Florestan Fernandes ver PONTES, Heloisa.
Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo, 1940-68. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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No ano de 1954, Gilda de Mello e Souza assumiu o posto de professora de Estética da


Faculdade de Sociologia da USP, cargo que à época era considerado periférico no campo das
Ciências Sociais (BONADIO, 2015). Pensando nas hierarquias construídas socialmente em termos de
diferenças, como problematizadas por Scott (2007), aos homens caberiam os cargos mais notórios e
às mulheres os menos prestigiados. Esse acontecimento mostra como a divisão do trabalho por
gênero e as hierarquias aparecem na trajetória de Gilda de Mello e Souza. Como professora, a
socióloga acabou direcionando seus estudos para a literatura, as artes e o cinema, voltando a refletir
sobre moda e vestuário em apenas outras duas oportunidades, nos textos “Macedo, Alencar, Machado
e as roupas” e “Notas sobre Fred Astaire” (BONADIO, 2015). Além disso, no decorrer de sua atuação
como professora de Estética, orientou diversos trabalhos de pós-graduação, porém nenhum deles
esteve relacionado à moda. (BONADIO, 2010). As primeiras graduações em design de moda no Brasil
foram criadas somente após a aposentadoria de Gilda de Mello e Souza.

A importância da trajetória de Mello e Souza na academia e a relevância do livro que


escreveu são inquestionáveis2. No entanto, como o texto publicado em 1987 teve poucas modificações
em relação à tese de 1950, vale problematizar o tipo de feminilidade ali retratada, agora, à luz de
autoras que oferecem outras descrições sobre as feminilidades no Brasil do século XIX.

Feminilidades imaginadas

E se ainda hoje, depois de mais de um século de conquistas femininas, a mulher ainda se


move como estranha num mundo feito pelos homens em contradição com a sua índole,
naquela época era, na verdade, a prisioneira submissa de um universo que, incomunicável,
não suspeitava o fluir de sua alma subterrânea (SOUZA, 1987, p. 99).

Descrições como esta podem ser consideradas recorrentes nas falas sobre as mulheres do
século XIX, segundo as quais as mulheres eram prisioneiras submissas confinadas no lar. No entanto,
é importante problematizar sobre quais mulheres o texto fala. Gilda de Mello e Souza assume certo
tipo de feminilidade, generalizando-o. A autora fala sobre uma mulher de “certo nascimento” (SOUZA,
1987, p. 91), que é caracterizada como a mulher burguesa, branca, ociosa, urbana, que tem como
referência de idade a época próxima ao casamento. No contexto do movimento feminista, Judith Butler
(2003) problematiza a categoria mulher que a primeira onda do feminismo3 tinha como objetivo
representar e emancipar. Para Butler o sujeito desta categoria não existe, pois não há um conceito
                                                                                                                       
2Sobre a trajetória da autora ver PONTES (2004; 2006). Sobre a relevância do seu livro ver BONADIO (2015).
3A primeira onda do feminismo ocorreu na América do Norte e na Europa ainda no século XIX. As reivindicações estavam
centradas nos direitos políticos, sociais e econômicos das mulheres (PINSKY; PEDRO, 2012).

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unificado de mulher. A unidade que tal categoria necessitaria pressupor não poderia abarcar
intersecionalidades como etnia, classe, idade. Nem mesmo o uso da palavra no plural “mulheres”
resolveria a questão para Butler, uma vez que tal categoria continua tendo como base a mulher
branca, urbana, de classe média.

Nesse texto, propomos pensar a categoria mulher apresentada por Gilda de Mello e Souza
como um tipo ideal feminino do século XIX4. Compreendemos que esse ideal foi construído a partir de
prescrições que circulavam socialmente e que foram estabelecidas como normas.

Em parte, os tipos de fontes utilizados por Gilda de Mello e Souza na construção de seus
argumento, fotografias, pinturas e literatura, são meios para a constituição de tipos ideais em relação à
gênero, por exemplo (CARVALHO, 2008; GORDON, 1996). Em “O Espírito das Roupas” são
apresentadas uma série de imagens como ilustração sobre as feminilidades do século XIX. No
entanto, em sua maioria, elas não são referenciadas diretamente no texto e muitas delas estão sem
legenda, o que impede de as localizarmos no tempo e espaço. Conforme observamos nas
reimpressões do livro de 1996 e 2011, a autora agradece às diversas pessoas que “cederam livros,
fotos ou pranchas de modas para as ilustrações, agora muito mais abundantes que na versão
primitiva” (SOUZA, 1987, p. 7). Essas imagens foram acrescentadas à obra posteriormente, o que
justifica o fato delas não terem sido problematizadas pela autora.

Portanto, interessa-nos problematizar no presente texto alguns pontos que se evidenciam


nas imagens como discursos visuais, à luz de autoras como Carvalho (2008) que utiliza imagens não
como ilustração, mas como narrativas. Carvalho (2008) analisa coleções de retratos do Museu Paulista
e de imagens publicitárias, especialmente da loja de departamentos Mappin5. Os retratos são
considerados pela autora como veículos “por excelência da representação da identidade social do
indíviduo” (CARVALHO, 2008, p. 223). Neles ficam evidentes as desigualdades existentes na
representação das identidades femininas e masculinas, assim como referentes à classe também
(CARVALHO, 2008).

Para um exercício de análise, tomamos duas imagens apresentadas no livro “O Espírito das
Roupas”:

                                                                                                                       
4 Essa estratégia não resolve o fato da autora não ter localizado seu estudo em um espaço – mas apenas em um tempo –
assumindo que as práticas durante o século XIX tenham sido comuns, independente dos espaços. Sobre historiografia e a
escrita de uma história situada ver CAMPI (2013).
5 Para mais informações sobre a loja Mappin consultar Carvalho (2008).

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Figura 1 - Figuras femininas do século XIX apresentadas por Gilda de Mello e Souza.
Fonte: SOUZA (1987, p. 36).

A legenda apresentada pela autora diz “no final do século, a silhueta feminina se expande
em formas sinuosas” (SOUZA, 1987, p. 36). No entanto, as silhuetas femininas em questão podem nos
revelar mais. A figura da esquerda aparece em uma posição lateral. Carvalho (2008) aponta que isso
acontecia somente nas imagens femininas e que essa pose lateral destacava as curvaturas dos
corpos. Além disso, ela segura uma flor em suas mãos, destacando o aspecto estético da cena.
Carvalho (2008) afirma ainda que era raro as mulheres serem fotografadas segurando objetos, mas
quando o faziam eram “espelhos, flores, leques, um livreto ou o elegante face-à-main6” (CARVALHO,
2008, p. 61), enquanto fotografias masculinas mostravam situações relacionadas à funções, com
homens portando objetos para uso próprio como jornal e bengala.

A segunda imagem feminina que aparece na Figura 1, à direita, mostra uma jovem com seu
corpo contorcido, novamente evidenciando o seu contorno. A diferença é que ela está apoiada sobre o
recamier. A curvatura do móvel segue a curva da mulher que se apoia.

Ressaltamos duas questões que essa imagem permite pensar. A primeira, é a ideia de ação
centrípeta e ação centrífuga discutida por Carvalho (2008) no contexto das feminilidades e

                                                                                                                       
6 “Óculos com suporte para a mão” (CARVALHO, 2008, p. 61)

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masculinidades burguesas ideais e normativas no século XIX na cidade de São Paulo, SP. Para
Carvalho (2008) a identidade masculina é centrípeta, ou seja, auto referencial, como um centro que
atrai os objetos para si, criando uma hierarquia entre a identidade masculina e o objeto. Enquanto a
identidade feminina é centrífuga, na qual há uma síntese entre o corpo feminino, os objetos e a casa
em si. Segundo a autora, a identidade/presença feminina é pouco individualizada pois está difusa na
casa, diluída nos espaços domésticos, numa continuidade entre corpo, objeto e a esfera doméstica.

A segunda questão que a imagem da Figura 1 permite pensar é impulsionada pela a ideia de
síntese entre corpos femininos e interiores domésticos, discutida por Beverly Gordon (1996). Para essa
autora, a relação entre corpos e interiores domésticos se tornou particularmente associada às
mulheres durante a era industrial nos Estados Unidos e na Europa e permanece até a atualidade.
Gordon (1996) chama essa relação de fusão conceitual entre corpos femininos e interiores
domésticos, que resultou no ideal feminino na cultura do capitalismo industrial, que projetava um ser
naturalmente doméstico, necessariamente belo, de moral irrepreensível.

Em diálogo com Laver (1947) e Cunnington (1948), Gilda de Mello e Souza relata algumas
analogias encontradas entre vestuário e objetos que fazem parte dos interiores domésticos, no final do
século XIX: “encontramos uma evidente semelhança formal entre o desenho de uma blusa e o de um
quebra-luz (...) entre a linha da saia e os cálices (invertidos) da era isabelina, entre a saia tubular da
Regência e a taça de champanha” (SOUZA, 1987, p. 35). Tanto Gordon (1996), como Souza (1987)
concordam que há uma relação entre vestuário e decoração de interiores domésticos. O que Gordon
(1996) explicita é que tais relações não eram naturais, mas construídas, constituindo um ideal de
feminilidade. A autora explicita também que tais elementos se articulam em mútua influência, não
ficando restritos ao ambiente da casa, mas vazando para a esfera pública e desafiando a ideia das
esferas separadas.

Esse argumento ajuda compreender que Beverly Gordon (1996) discute feminilidades como
ideais construídos em determinada época e espaço e não como realidades naturais ou totais. No
entanto, Gilda de Mello e Souza apresenta sua ideia de feminilidade como a realidade no Brasil do
século XIX, argumentando que mulheres e homens eram obrigados a viver em mundos separados e
sob moralidades distintas. Para a autora os homens viviam sob “um código de honra originado nos
contatos da vida pública, comercial, política e das atividades profissionais”, as mulheres viviam uma
moral “relacionada com a pessoa e os hábitos do corpo, ditada por um único objetivo, agradar aos
homens” (SOUZA, 1987, p. 58).

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Questionando essa ideia, Vânia Carneiro de Carvalho (2008) discute identidades de gênero
femininas e masculinas e as esferas separadas, enfatizando os trânsitos, os fluxos, as negociações
realizadas nos espaços, mostrando como a presença feminina não ficava confinada aos lugares
prescritos, mas permeava espaços marcados como masculinos. Como exemplo, a autora cita a
presença de trabalhos manuais identificados como femininos – as camadas de toalhinhas feitas à mão
– que decoravam os escritórios masculinos nos espaços domésticos. Ao desnaturalizar as relações de
gênero rígidas no cenário da organização dos espaços da casa, Carvalho (2008) explicita que a ideia
de divisão/segregação entre universos femininos e masculinos era rígida, mas a prática era mais
fluida. A autora evidencia como os ideais de gênero foram construídos demonstrando, por exemplo,
que em manuais de etiqueta e civilidade os cuidados domésticos e trabalhos têxteis/manuais eram
dirigidos às mulheres, enquanto os homens eram relacionados ao estudo e ao trabalho no escritório.

A abordagem de Penny Sparke (2008) também problematiza a ideologia da separação das


esferas masculina e feminina ao analisar prédios públicos e espaços domésticos, enfatizando suas
intersecções e mútuas influências. Joanne Hollows (2008) vem ressaltar certa fluidez na prática das
esferas separadas, argumentando que mesmo os espaços públicos sendo considerados perigosos e
não respeitáveis para mulheres burguesas do século XIX na Inglaterra, muitas mulheres os
frequentavam. Lojas de departamentos, salões de chá, galerias de arte e bibliotecas eram lugares
públicos utilizados por mulheres constantemente. Ainda, muitas dessas mulheres estiveram envolvidas
nos escritórios dos maridos. Carvalho (2008) descreve situação similar na São Paulo da segunda
metade do século XIX. A autora cita o trabalho da historiadora Margareth Rago que descreve
“senhoras que passeavam desacompanhadas pelas ruas de São Paulo, olhando vitrines, fazendo
compras, consumindo doces” (CARVALHO, 2008, p. 220), assinalando assim a presença feminina das
mulheres brancas, burguesas de elite nos espaços públicos.

De modo distinto dos homens, as mulheres da elite utilizaram práticas de consumo/uso de


artefatos/cidade como estratégias para inserção na modernidade, pois “assim como as diferenças
sociais, étnicas e econômicas significaram modos diferentes de inserção no sistema capitalista,
também ser homem ou mulher teve implicações no modo de relacionamento com a cidade, com o
trabalho, a casa, o consumo e assim por diante” (CARVALHO, 2015, p. 2).

Todavia, Gilda de Mello e Souza argumenta que as mulheres foram excluídas da


modernidade. Em parte, por sua relação com a moda. Uma vez que, durante o século XIX os homens
adequaram sua vestimenta aos ideais de modernidade – inteligência, competência, simplicidade,
austeridade – as mulheres se afastaram desses ideais por meio da aberração dos tamanhos das

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mangas, do exagero das crinolinas, do excesso das anquinhas. Para a autora, a relação feminina com
a moda era baseada na ociosidade e na desocupação. A mulher estava entregue aos vestidos, pois

abandonada a si mesma, a mulher aplicou aquela curiosidade desassossegada de se


encontrar, que o ócio acentuava, no interesse pela moda. Enquanto ao companheiro a
sociedade permitia a realização integral da individualidade na profissão, nas ciências ou nas
artes, a ela negava interesses de outro tipo além dos ligados à casa, aos filhos e a sua
pessoa. Era como se não tivesse um cérebro, como se o exercício da inteligência tornasse
duros os seus traços e lhe empanasse o brilho da virtude. As preocupações do espírito,
essas eram privativas do homem, dono das artes, da literatura e do destino de seus
semelhantes (SOUZA, 1987, p. 99).

No entanto, a perspectiva de Gilda de Mello e Souza pode ser questionada à luz de autoras e
autores que avançaram nas discussões considerando, por exemplo, as práticas de consumo como
formas de produção – do corpo, da casa, das relações sociais e das formas de inserção na
modernidade. Joanne Hollows (2008) e Daniel Miller (2013) compreendem o consumo como uma
forma de produção, não limitado à compra de produtos, mas ampliado pelos usos e apropriações. Tais
práticas são usadas para produzir significados, identidades. O consumo pensado de maneira ampla,
como um processo ativo por meio do qual pessoas se envolvem com o mundo das mercadorias, é uma
forma de produção na qual constituímos relações e também nos constituímos.

A feminilidade apresentada por Gilda de Mello e Souza, caracterizada como prisioneira


submissa, incapaz de se comunicar, tendo sua vida bloqueada, contida e reclusa não é endossada por
autoras como Vânia Carneiro de Carvalho, Joanne Hollows e Penny Sparke. Ainda que não ignorem
as consequências reais da ideologia da separação das esferas, estas autoras enfatizam as
porosidades e trânsitos que permearam as relações entre gêneros no século XIX.

Considerações

A trajetória de Gilda de Mello e Souza na academia e o livro que escreveu são relevantes na
construção do lugar das mulheres na academia e das referências bibliográficas para os estudos de
moda no país. No entanto, “O Espírito das Roupas” apresenta alguns aspectos passíveis de
problematização, por exemplo o tipo de feminilidade retratado pela autora.

Assim, procuramos evidenciar o tipo de feminilidade apresentada na obra e problematizá-lo a


partir de autoras como Vânia Carneiro de Carvalho (2008), Penny Sparke (2004; 2008), Joanne

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Hollows (2008) e Beverly Gordon (1996). Para tanto, recorremos aos recursos textuais e imagéticos
encontrados no livro, além de um paralelo com a própria trajetória da autora.

O livro requer ainda ser problematizado enquanto historiografia da moda como, em certa
medida, tem sido a história do design, por autores como Judy Attfield (2000), Isabel Campi (2013) e
Adrian Forty (2007). Em parte, a história da moda continua sendo escrita em forma de (ou não
problematizando) narrativas lineares, tomando como sujeitos categorias unificadas e unificadoras7. É
certo que autoras como Rosane Feijão (2011) e Maria do Carmo Teixeira Rainho (2014)8 são
exemplos de histórias localizadas e problematizadas, no entanto não foi possível até aqui identificar
uma crítica a respeito da historiografia da moda.

Não obstante à importância que “O Espírito das Roupas” teve e tem para a escrita da história
da moda no Brasil, cabe dizer que o modelo de mulher apresentado na obra reforça as ideias de
feminilidades nos estudos de hoje. Basta perceber a acentuada relação que permanece entre a moda
e o feminino tanto como público-alvo das marcas, relações de consumo e mesmo a presença nas
graduações de design de moda. Reforça ainda a ideia de esferas masculinas e femininas separadas e
opostas quanto às linhas de produtos, mantendo a noção da existência de universos próprios. A
moralização nos usos das vestimentas e os sentidos de frivolidade que a moda ainda carrega, em
certos aspectos, também permanecem como uma sombra sobre as práticas femininas.

De certa forma, é possível perceber que o modelo de feminilidade apresentado por Gilda de
Mello e Souza era o modelo com o qual ela se identificava. A autora era aquele tipo de mulher que se
movia estranha em um mundo feito por e para homens – a academia, reconhecendo que “o século XIX
ainda está muito perto de nós, com sua divisão nítida dos dois mundos” (SOUZA, 1987, p. 58). Gilda
de Mello e Souza percebia reminiscências daquela época nas relações sociais. As permanências dos
ideais femininos do século anterior que identificava em seu tempo a envolviam e afetavam. De certa
forma, vestígios dessas reminiscências ainda nos envolvem e nos afetam. Aí está a importância de ler
“O Espírito das Roupas”, à luz dos diálogos que são hoje possíveis.

                                                                                                                       
7 Exemplos são: GRUMBACH, Didier. Histórias da moda. São Paulo: Cosac Naify, 2009 e PRADO, Luís André do; BRAGA,
João. História da moda no Brasil: das influências às autorreferências. Barueri, SP: 2011.
8 FEIJÃO, Rosane. Moda e modernidade na Belle Époque carioca. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011 e

RAINHO, Maria do Carmo Teixeira Rainho. Moda e revolução nos anos 1960. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014.  

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REFERÊNCIAS

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A FIGURA “IDEAL” DE DONA CASA NAS PÁGINAS DA REVISTA CASA & JARDIM (ANOS 1950 E 1960)

THE “IDEAL” FIGURE OF HOUSEWIFE IN HOME & GARDEN MAGAZINE (1950 AND 1960)

Ana Caroline de Bassi Padilha (Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR)1


carol_padi@yahoo.com.br

Marinês Ribeiro dos Santos (Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR)2


ribeiro@utfpr.edu.br

RESUMO
O presente artigo objetiva refletir sobre a construção da figura de dona de casa “ideal” a partir de sua
associação com a indumentária. O recorte de estudo tem como foco as reportagens e anúncios
publicitários veiculados na revista Casa & Jardim durante as décadas de 1950 e 1960. Os discursos
textuais e imagéticos veiculados no periódico operavam na construção de imagens acerca do que
significava ser uma mulher moderna, atualizada quanto aos padrões de gosto e comportamento
vigentes.
Palavras-chave: revista Casa & Jardim; indumentária; dona de casa “ideal”.

ABSTRACT
This paper proposes to reflect on the construction the “ideal” figure of housewife from its association
with clothing. The outline of the study focuses reports and advertisements in Home & Garden Magazine
during the 1950s and 1960s. The discourses of textual and image served in the magazine operated on
the construction of images what it meant to be a modern woman, updated as the prevailing standards of
taste and behavior.
Keywords: Home & Garden magazine; clothes; “ideal” housewife.

INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma pesquisa maior que tem como objetivo refletir sobre a
construção da figura de dona de casa “ideal” a partir de sua associação com a indumentária. O recorte
de estudo está centrado nos discursos textuais e imagéticos de reportagens e anúncios publicitários
veiculados na revista Casa & Jardim entre as décadas de 1950 e 1960. Tomando essa mídia impressa
como fonte de pesquisa, utilizamos como referencial teórico os Estudos em Design, com foco em
questões relacionadas à cultura material.
Publicada em 1952, a revista Casa & Jardim veiculava modelos de domesticidade e
representações de tipos de feminilidades que insistiam na identificação das mulheres com o espaço e

                                                                                                                       
1 Doutoranda do curso de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, linha de pesquisa Mediações e Culturas da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Brasil. Bolsista CAPES.
2 Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Departamento de Desenho

Industrial e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Brasil.  

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consumo domésticos. No período em estudo, o modelo de família “ideal” era o nuclear, heterossexual,
branco e de classe média. Nesse modelo, as mulheres deveriam viver sob a autoridade e o poder dos
maridos, considerados os responsáveis pelo sustento da família.
Uma questão bastante enfatizada nas páginas de Casa & Jardim dizia respeito à imagem
“ideal” da figura da dona de casa, constantemente associada ao uso das tecnologias do lar. Segundo o
periódico, as tecnologias do lar3 eram recursos capazes de garantir o conforto doméstico, facilitando as
rotinas das donas de casa e proporcionando maior bem-estar às famílias. Assim, as tecnologias
domésticas tanto favoreciam quanto glamourizavam as atividades cotidianas. Logo, as figuras femininas
divulgadas na revista ostentavam determinadas vestimentas, posicionamentos e comportamentos
compreendidos como modos “ideais” de ser e viver no âmbito familiar e na sociedade.

1 A REVISTA CASA & JARDIM E A MODERNIZAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA NOS ANOS


1950 E 1960

Foram vários os acontecimentos que marcaram e transformaram a história e a vida da


população brasileira entre as décadas de 1950 e 1960. O crescimento econômico acompanhado da
industrialização nacional na década de 1950 criou uma ampla gama de oportunidades4, especialmente
durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960) que tinha como lema “50 anos em 5”.
A modernização, ancorada pelo desenvolvimento industrial brasileiro, despertou o desejo e
possibilitou o acesso a uma variada gama de bens de consumo. De acordo com Anna Cristina
Figueiredo (1998, p. 31), “não havia nos anos 50 e 60 bem de consumo que não se pretendesse
‘moderno’, ‘novo’ ou ‘inédito’. Estes bens eram oferecidos a homens e mulheres igualmente ‘modernos’,
afinados com os ‘novos tempos’”. Nesse período, a elevação do padrão de vida de muitas famílias
brasileiras significava possuir uma casa própria e desfrutar do tão sonhado conforto doméstico.
No Brasil, nesse período, as possibilidades de acesso à informação, lazer e consumo foram
ampliadas, e a classe média brasileira passou por um processo de ascensão. Havia também um grande
deslumbramento e identificação com o progresso e estilos de vida e de consumo norte-americanos. Mello e
Novais (2000, p. 604) explicam que “o grande fascínio, o modelo a ser copiado passa a ser cada vez mais o
                                                                                                                       
3 Vale comentar que compreendemos por tecnologias do lar as práticas sociais e os artefatos que colaboram para o

cumprimento das atividades domésticas e com os quais as pessoas interagem individual e coletivamente. Ver: PADILHA,
Ana Caroline de Bassi. Tecnologias do lar e pedagogias de gênero: representações da “dona de casa ideal” na revista
Casa & Jardim (anos 1950 e 1960). 2014. 194 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia e Sociedade) – Programa de Pós-
Graduação em Tecnologia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, 2014.
4 As pessoas que moravam no campo foram atraídas pela oferta de emprego nos centros urbanos e a promessa de melhores

condições de vida. Já as pessoas que habitavam nas cidades e que tinham maior poder aquisitivo, eram atraídas pela oferta de
bens de consumo produzidos nacionalmente. Ver: FIGUEIREDO, Anna Cristina Camargo Moraes. “Liberdade é uma calça
velha azul e desbotada”: publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo:
Hucitec, 1998.

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American way of life”. Isso porque a “via de transmissão do progresso” passava pela referência aos padrões
de consumo e estilos de vida reinantes nos países economicamente mais desenvolvidos. Dessa forma, os
hábitos, artefatos consumidos ou desejados e, inclusive, formas de comportamento dialogavam com os
modelos de vida e consumo norte-americamos.
A partir de meados da década de 1950, diante do desenvolvimento econômico e industrial
brasileiro, o leque de ocupações no mercado de trabalho foi ampliado. Surgiram novas oportunidades, o
nível de escolarização da população brasileira aumentou e a educação profissionalizante das mulheres
passou a ser valorizada. No entanto, os valores atribuídos ao feminino estavam prioritariamente ligados
às atividades no lar. Para muitas mulheres das camadas médias, o desejo de trabalhar e de
independência financeira convivia com o ideal de “rainha do lar” (MELLO; NOVAIS, 1998).
As revistas direcionadas para públicos femininos destacavam que os principais ingredientes
para a felicidade conjugal estavam pautados no bom desempenho da dona de casa nas tarefas
domésticas, na boa reputação da esposa, no seu cuidado com a aparência física e na administração
adequada do orçamento doméstico (PINSKY, 1997). Sedutoras e diversificadas, essas revistas eram
procuradas e contempladas por propiciarem momentos de entretenimento e prazer, apreciados por
quem folheava uma publicação com imagens bem cuidadas e que abordavam assuntos do cotidiano,
de modo leve e interessante (LUCA, 2012, p. 448).
Nesse contexto, surge, em 1952, a revista Casa & Jardim, uma publicação de circulação
nacional especializada em decoração de interiores domésticos, cujo sub-título era “decoração, móveis,
arquitetura e culinária”5. O periódico apresentava conselhos sobre condutas e práticas no lar, que tanto
refletiam quanto afirmavam o consenso social sobre a moral e os bons costumes. Sua missão era
“apresentar soluções capazes de conciliar a preservação dos valores tradicionais da família com a
modernização do espaço doméstico” (SANTOS, 2010, p. 63). Sendo assim, num momento de grandes
mudanças sociais e culturais, as donas de casa dispunham da opinião de especialistas6, publicadas no
periódico, para orientar suas escolhas e práticas cotidianas.
Neste trabalho, assumimos a revista Casa & Jardim como mídia de pedagogias de gênero.
Isso porque ao ensinar, aconselhar ou sugerir determinadas condutas das donas de casa, elencadas
por Casa & Jardim como “ideais”, o periódico influenciava a maneira como essas mulheres se
autopercebiam e se relacionavam com os membros de suas famílias, bem como com a sociedade.
Assim, a revista, “amiga que acompanha a mulher” em várias etapas de sua vida, oferece padrões de

                                                                                                                       
5 A revista privilegiava igualmente os quatro assuntos. Neste trabalho, focamos nossos estudos em temas direcionados
especialmente às donas de casa e relacionados aos afazeres domésticos. Dessa forma, abordamos questões referentes à
“culinária”, “decoração” e “móveis”, no que concernia à organização e racionalização das atividades domésticas.
6 Profissionais especializados em assuntos relacionados ao universo da casa, como arquitetos/as, decoradores/as de

interiores, profissionais da área de jardinagem e culinária.

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comportamento, maneiras de viver a feminilidade e a masculinidade, percebidas como “normais” pela


sociedade (LUCA, 2012, p. 463).
A seguir, ressaltaremos a importância da cultura material como recurso para a construção do
modelo de “dona de casa ideal”, veiculado nas páginas da revista Casa & Jardim nos anos 1950 e
1960. Nessa época, uma questão bastante divulgada no periódico dizia respeito à forma de se vestir
das donas de casa para a execução dos afazeres domésticos e de como a apropriação de
determinados comportamentos e vestimentas poderiam caracterizar as mulheres em “donas de casa
ideais”.

2 A CONSTITUIÇÃO DA “DONA DE CASA IDEAL” NA REVISTA CASA & JARDIM

Autor do livro “Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material”,
Daniel Miller (2013) afirma que as pessoas fazem as coisas assim como, na mesma medida, as coisas
fazem as pessoas. Dessa forma, as coisas “não chegam a representar pessoas, mas a constituí-las”
(MILLER, 2013, p. 37). Para esse autor, grande parte do que nos constitui “existe não por meio da
nossa consciência ou do nosso corpo, mas como um ambiente exterior que nos habitua e incita”
(MILLER, 2013, p. 79). A fim de exemplificar o entendimento sobre cultura material, Miller (2013)
observa dois conceitos importantes: a objetificação e a materialidade.
A objetificação, segundo Miller (2013), é o caráter recíproco do processo de constituição de
sujeitos e cultura material. Logo, ao apropriar-nos de um objeto e das práticas a ele relacionadas estamos
nos constituindo da mesma maneira que estamos atribuindo significados aos artefatos. Dessa forma, as
vestimentas, ao serem incorporadas ao dia a dia e aos afazeres domésticos, transformam-se em parte do
que são as donas de casa. Partindo da ideia de que “os objetos nos fazem como parte do processo pelo
qual os fazemos” (MILLER, 2013, p. 37), ocorre uma inter-relação entre sujeitos e objetos.
Os discursos textuais e imagéticos de Casa & Jardim associavam o uso das tecnologias do
lar a “modernidade”, “eficiência” e “sofisticação”. Dessa forma, as figuras femininas associadas às
tecnologias do lar eram representadas por mulheres bem vestidas, maquiadas e que ostentavam
elegância e praticidade. Esse era o modelo proposto e idealizado de dona de casa nas páginas do
periódico. Assim, ao adotarem determinadas posturas e vestimentas para a realização do trabalho
doméstico, as donas de casa também estavam se constituindo em mulheres “modernas”, “elegantes” e
“práticas”.
No anúncio publicitário da geladeira da marca Admiral, veiculado em Casa & Jardim no ano
de 1962 (FIGURA 1), observamos a identificação das figuras femininas com o espaço e o consumo
doméstico. Para divulgar a variada cartela de cores das geladeiras Admiral, a propaganda sugere a

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combinação da cor da geladeira com a vestimenta da dona de casa. No anúncio, aparece a


representação de uma dona de casa trajando um vestido vermelho, com os seguintes dizeres: “Olhem
só! Esta cor combina com o meu vestido!” A cor vermelha aparece empregada na geladeira, no vestido,
na marca “Admiral” e na frase “nova linha elegance”, que faz menção à linha de geladeiras coloridas.
No anúncio ainda aparece retratada outra mulher que observa com admiração a combinação da cor da
geladeira com a da vestimenta. A caixa de texto em letras menores dá destaque à variedade de cores
da geladeira, garantindo um “show” na cozinha:

A chegada de Admiral é uma festa de descobertas. Suas côres dão um verdadeiro "show" na
cozinha, na copa ou na varanda. O azul, o verde salpicado, o aristocrático preto, o amarelo
cordial, o coral esportivo. Você pode escolher. Tôdas as côres que só Admiral possui,
ornamentando sua porta emoldurada, estão a espera do seu bom-gôsto. Você não se cansará
de achar bonito7.

Figura 1 – Anúncio publicitário da Admiral


Fonte: Casa e Jardim, n. 93, p. 81, out. 1962. Acervo da BPP.
                                                                                                                       
7 OLHEM só! Esta cor combina com meu vestido! Anúncio publicitário da Admiral. Casa e Jardim, n. 93, p. 81, out. 1962.

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Essas “descobertas” poderiam estar relacionadas tanto às novidades percebidas pela


incorporação da geladeira aos afazeres domésticos, quanto às descobertas da própria dona de casa no
que tange a novas formas de se vestir e de se comportar.
A seguir, nossa intenção é mostrar como a revista Casa & Jardim assumia uma função
importante como mídia de pedagogias de gênero ao enfocar a figura “ideal” da dona de casa e sua
associação com o uso de determinadas vestimentas e o consumo de eletrodomésticos.

3 A CONSTRUÇÃO DA FIGURA DA DONA DE CASA MODERNA

As revistas voltadas para públicos femininos enfatizavam a importância da dedicação como


mãe e esposa, do cuidado com a aparência física e do bom desempenho nos afazeres domésticos. Na
edição de agosto de 1964, a revista Casa & Jardim publicou uma reportagem na qual abordava a
necessidade da dona de casa estar bem vestida e arrumada para realizar suas tarefas no lar. Intitulada
“Elegância na Cozinha”8, a matéria dava dicas às leitoras sobre como utilizar e produzir diferentes
modelos de aventais. De acordo com o texto: “Podemos e devemos estar elegantes enquanto
desenvolvemos nossas atividades caseiras. Os feitios e côres dos aventais podem variar conforme
nossa fantasia, ou harmonizando ou contrastando com o vestido". Essa poderia ser encarada como
outra estratégia para “conquistar” a atenção do marido. Nesse período, segundo Pinsky (2012, p. 502),
o discurso de revistas direcionadas para públicos femininos reiterava que:

a “boa dona de casa” extrai prazer do trabalho doméstico, tem orgulho de sua cozinha,
congratula-se pela sua sala impecável. Dedicar-se aos filhos ou à costura são para elas
formas agradáveis de lazer. A “dona de casa perfeita” ainda encontra maneiras de ser
elegante enquanto tira o pó, usa um aventalzinho coquete por cima do vestido alinhado,
perfuma-se até para cozinhar.

Na figura que ilustra a matéria (FIGURA 2), observamos a representação de uma jovem dona
de casa trajando um avental xadrez com acabamento em crochê. Segundo o periódico, essa era
considerada uma vestimenta apropriada para a dona de casa realizar seus afazeres.
Diferentemente do “uniforme padrão” utilizado pelas empregadas domésticas, as donas de
casa podiam inovar e personalizar seus aventais, criando suas próprias peças de acordo com
sugestões divulgadas na revista Casa & Jardim. Ao indicar formas de criar, produzir e adotar
determinadas vestimentas para e pelas donas de casa, o periódico estava veiculando tipos de
feminilidades associados ao trabalho doméstico, como também estava colaborando na construção da
dona de casa “moderna”, “prendada” e “elegante”.
                                                                                                                       
8 ELEGÂNCIA na cozinha. Casa e Jardim. São Paulo: Monumento S. A., n. 115, p. 83, ago. 1964.

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Figura 2 – Matéria “Elegância na cozinha”


Fonte: Casa e Jardim, n. 115, p. 83, ago. 1964.
Acervo da BPP.

Torna-se pertinente ressaltar que a revista Casa & Jardim buscava criar uma identificação
das mulheres com o espaço e o consumo domésticos ao valorizar o trabalho produzido no lar. Dessa
forma, as tecnologias do lar eram apresentadas como recursos facilitadores das rotinas das donas de
casa, que tanto favoreciam quanto glamourizavam suas atividades cotidianas.
Podemos perceber essa glamourização em um anúncio publicitário da marca Arno, veiculado
na edição de abril de 1959 na revista Casa & Jardim (FIGURA 3), cuja chamada exibia a seguinte
mensagem: “Mais conforto – mais elogios – mais tempo livre!”. De acordo com o anúncio, que divulgava
a “enceradeira nova Arno” e o “aspirador de pó Arno”, a vida da dona de casa se transformava com a
inserção de novas tecnologias nos afazeres domésticos. Isso porque, segundo o texto: “Como por
encanto, sua vida se transforma! As horas lhe sobram – e no entanto a limpeza sai muito mais bem
feita – porque ARNO faz todo o trabalho com Você!”9. Conforme o texto do anúncio, os
eletrodomésticos auxiliavam as donas de casa no exercício do trabalho doméstico.

                                                                                                                       
9MAIS conforto – mais elogios – mais tempo livre! Anúncio publicitário da Arno. Casa e Jardim. São Paulo: Monumento S.
A., n. 51, p. 96, maio 1959.

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Figura 3 – Anúncio publicitário do aspirador de pó e da enceradeira da Arno


Fonte: Casa e Jardim, n. 51, p. 96, abr. 1959. Acervo da BPP.

Na imagem, o primeiro plano do anúncio é formado pela enceradeira Arno e o segundo plano
pelo aspirador de pó Arno. A figura feminina, aparentemente uma jovem dona de casa, possui os cabelos
curtos e bem alinhados, usa um colar vermelho, um vestido azul claro que contrasta com a cor amarelada
do piso, e calça sapatos brancos de salto baixo. De acordo com Inés Pérez (2011, p. 178), a dona de
casa “moderna” apresentava determinadas características que a definiam como tal. Entre os principais
atributos estavam: ser magra, andar sempre bem vestida e utilizar dispositivos destinados a “simplificar”
as tarefas domésticas. Corroborando com o argumento defendido por Ruth Cowan (1983) de que a
inserção de novos artefatos na execução do trabalho doméstico mudou as rotinas das donas de casa,
mas, não necessariamente, significou a diminuição do tempo e do trabalho realizado, Pérez (2011)
ressalta que, em muitos casos, os dispositivos criados mecanizaram apenas uma etapa do trabalho a ser
realizado. De acordo com essa autora, os anúncios publicitários promoviam os eletrodomésticos como
“libertadores” das tarefas domésticas realizadas pelas donas de casa. Porém, no caso do uso da
enceradeira elétrica, por exemplo, algumas etapas de trabalho manual precisavam ser realizadas antes
do seu emprego efetivo. Primeiramente, era necessário varrer e limpar o piso. Num segundo momento,

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era preciso passar manualmente a cera em toda a extensão do chão para, posteriormente, utilizar a
enceradeira que fornecia o brilho característico do piso (PÉREZ, 2011).
Nas páginas de Casa & Jardim podemos perceber a influência dos discursos tanto das
reportagens quanto dos anúncios publicitários na construção de imagens do que representava ser uma
mulher moderna e eficiente. No anúncio publicitário veiculado na edição de junho de 1961 da revista
Casa & Jardim (FIGURA 4) podemos observar essa questão. Na parte superior há a representação de
uma jovem dona de casa sentada em uma cadeira feita de vime. Ela possui os cabelos alinhados,
veste uma blusa quadriculada, uma saia azul na altura dos joelhos e calça sapatos brancos de salto
alto. Abaixo da cadeira encontram-se três livros, provavelmente de culinária, já que o texto afirma que a
dona de casa acompanha “o que há de mais avançado na arte culinária”10. Ela parece refletir, visto que
apresenta o corpo levemente inclinado, as pernas cruzadas, uma das mãos segurando o queixo,
enquanto a outra descansa sobre as pernas. Ao lado da figura feminina, há um círculo centralizado no
anúncio contendo o pensamento da dona de casa. De acordo como texto:

Sou uma dona de casa moderna. Quero aparelhos eletro-domésticos que não tomem o
tempo de meus deveres familiares e sociais. Acompanho o que há de mais avançado na arte
culinária. Quero alimentos fritos, cozidos e assados adequadamente. Pensando nisso é que
prefiro o fogão Brastemp. Claro: o fogão a gás Brastemp Imperador tem detalhes de
funcionamento ideais para a cozinha moderna e a satisfação da família11.

Abaixo do círculo contendo a reflexão da dona de casa aparece a chamada do anúncio:


"Pensar em satisfação – é comprar Brastemp!"12. Torna-se pertinente salientar que a expressão “em
satisfação” encontra-se na cor vermelha, enquanto a palavra “Brastemp!” encontra-se na cor azul.
Podemos pensar, neste caso, pelo emprego das cores que a expressão “em satisfação” faz menção ao
consumo do eletrodoméstico pela dona de casa. Já a palavra “Brastemp!” refere-se à marca da
empresa, à produção, ao masculino.
Conforme Lubar (1998) argumenta, as masculinidades e feminilidades são socialmente e
historicamente construídas. Elas refletem e reforçam as relações de poder na sociedade. Nesse
período, como grande parte das famílias das classes médias eram sustentadas pelos maridos,
considerados os chefes da casa, havia a associação dos homens com a produção e o trabalho
remunerado. No entanto, queremos reiterar que as donas de casa de classe média, mesmo que não
realizassem trabalho remunerado, produziam diariamente trabalho doméstico.

                                                                                                                       
10 PENSAR em satisfação – é comprar Brastemp! Anúncio publicitário da Brastemp. Casa e Jardim. São Paulo: Monumento

S. A., n. 77, p. 79, jun. 1961.


11 Idem, p. 77.
12 Idem, p. 77.

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Figura 4 – Anúncio publicitário do fogão Brastemp


Fonte: Casa e Jardim, n. 77, p. 79, jun. 1961. Acervo da BPP.

Voltando à figura 4, a outra metade do anúncio é composta por um fundo vermelho e por uma
ilustração centralizada do fogão. Ao lado da ilustração estão elencadas algumas características
diferenciadoras do fogão Brastemp Imperador como: mesa porcelanizada, queimador central, quatro
bocas, termostato, painel decorativo com tomada elétrica e forno com visor de vidro duplo e iluminação
interna.
Segundo o anúncio, ao adquirir o fogão Brastemp Imperador, as donas de casa estavam
modernizando suas práticas. Isso porque o fogão realizava diferentes funções “ideais para a cozinha
moderna”. No anúncio, percebemos que a dona de casa retratada não quer perder tempo na cozinha.
Ela prefere utilizar seu tempo nos “deveres familiares e sociais”. Figueiredo (1998, p. 96) afirma que na
fala publicitária não há “sucesso cabível sem consumo”. Dessa forma, de acordo com essa autora, o
indivíduo alcança seus objetivos menos em virtude de seu desempenho ou de suas qualificações e
mais em razão “do que ele aparenta ser, com base nos bens que adquire e por meio dos quais se
afirma” (FIGUEIREDO, 1998, p. 97). Além disso, segundo os discursos de Casa & Jardim, ser uma

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dona de casa “moderna” significava vestir-se elegantemente, mesmo que as roupas adotadas não
fossem ideais para a realização das tarefas.
Na figura 5 agrupamos recortes das quatro imagens analisadas. Neste excerto, podemos
observar que, em todas as imagens, a figura da dona de casa é branca, magra, alta, aparece maquiada,
impecavelmente bem vestida, com os cabelos alinhados e calçando sapatos de salto alto. Todas trajam
vestidos acinturados, cujo comprimento se dá na altura dos joelhos. A postura corporal das figuras
femininas representadas demonstra classe e elegância, segundo certos referenciais de moda da época.

Figura 5 – Representações da figura feminina de dona de casa.


Fonte: Casa e Jardim, n. 93, p. 81, out. 1962. Casa e Jardim, n. 115, p. 83, ago. 1964. Casa e Jardim, n. 51, p. 96, abr.
1959. Casa e Jardim, n. 22, p. 77, fev. 1956. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná.

Provavelmente era impossível manter essa classe e elegância o tempo todo, visto que o
trabalho doméstico exige tempo, esforço físico, locomoção e diferentes movimentos corporais. Essas
roupas, provavelmente, não eram adequadas para a realização das atividades domésticas. No entanto,
esse modelo idealizado de dona de casa era preconizado constantemente no periódico, que propagava
expectativas sociais capazes de influenciar escolhas e percepções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos investigar as representações de feminilidades e sua associação


com as indumentárias divulgadas nas páginas da revista Casa & Jardim que contribuíam na construção
do modelo “ideal” de dona de casa.
Os artefatos traduzem valores e comportamentos que são construídos socialmente e
medeiam o relacionamento entre as pessoas. Para Santos (2005), os artefatos funcionam como
mediadores das transformações socioculturais, políticas, econômicas e tecnológicas, podendo assumir

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valores de um determinado lugar e período. Dessa forma, percebemos que os discursos presentes nas
reportagens e anúncios publicitários de Casa & Jardim vinham com a proposta de aliar o uso de
vestimentas finas e elegantes pelas donas de casa ao consumo de eletrodomésticos com o intuito de
modernizar e legitimar a figura “ideal” de dona de casa. Essas práticas diárias anunciadas pelo
periódico eram elencadas como meios de proporcionar, entre outras características, maior “elegância”,
“ostentação” e “glamourização” às donas de casa. Isso porque ao se apropriarem de determinadas
vestimentas e das práticas sociais a elas relacionadas, as donas de casa das camadas médias
poderiam fazer investimentos e buscar incorporar a “dona de casa ideal” ensinada, descrita, ilustrada e
legitimada nas páginas da revista Casa & Jardim.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros

FIGUEIREDO, Anna Cristina Camargo Moraes. “Liberdade é uma calça velha azul e desbotada”:
publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo: Hucitec,
1998.

LUBAR, Steven. Men/Women/Production/Consumption. In: MOHUN, Arwen; HOROWITZ, Roger. His


and Hers: Gender Consumption, and Technology. Charlotsville: University Press of Virginia, 1998.

LUCA, Tania Regina de. Mulher em Revista. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria
(Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012, p. 447-468.

MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no Brasil, 4: contrastes da intimidade
contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 559-658.

MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de
Janeiro: Zahar, 2013.

PINSKY, Carla Bassanezi. A era dos modelos rígidos. Mulher em Revista. In: PINSKY, Carla
Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2012, p. 469-512.

PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 607-639.

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SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Design e cultura: os artefatos como mediadores de valores e práticas
sociais. In: QUELUZ, Marilda Lopes Pinheiro (Org.). Design & Cultura. Curitiba: Editora Sol, 2005.

Revistas

ELEGÂNCIA na cozinha. Casa e Jardim. São Paulo: Monumento S. A., n. 115, p. 83, ago. 1964.

MAIS conforto – mais elogios – mais tempo livre! Anúncio publicitário da Arno. Casa e Jardim. São
Paulo: Monumento S. A., n. 51, p. 96, maio 1959.

OLHEM só! Esta cor combina com meu vestido! Anúncio publicitário da Admiral. Casa e Jardim. São
Paulo: Monumento S. A., n. 93, p. 81, out. 1962.

PENSAR em satisfação – é comprar Brastemp! Anúncio publicitário da Brastemp. Casa e Jardim. São
Paulo: Monumento S. A., n. 77, p. 79, jun. 1961.

Teses e dissertações

PADILHA, Ana Caroline de Bassi. Tecnologias do lar e pedagogias de gênero: representações da


“dona de casa ideal” na revista Casa & Jardim (anos 1950 e 1960). 2014. 194 f. Dissertação (Mestrado
em Tecnologia e Sociedade) – Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, Universidade Tecnológica
Federal do Paraná. Curitiba, 2014.

PÉREZ, Inés. Vida familiar, género y modos de habitar: experiencias y representaciones de la


tecnificación del hogar (Mar del Plata, 1940-1980). 2011. 324 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais e
Humanas) – Universidad Nacional de Quilmes, Buenos Aires, 2011.

SANTOS, Marinês Ribeiro dos. O Design Pop no Brasil dos anos 1970: Domesticidades e Relações
de Gênero na Revista Casa & Jardim. 2010. 312 f. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências
Humanas) – DICH/Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.

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Charlotte Perriand e Louis Vuitton: relações entre indumentária e mobiliário

Charlotte Perriand and Louis Vuitton: relations between clothes and furniture

Letícia Rodrigues1
Yasmin Fabris2

Resumo
Em 2014 a marca Louis Vuitton lançou uma coleção de roupas e bolsas inspirada nos móveis da
designer francesa Charlotte Perriand. Neste artigo pretendemos discutir, por meio da análise do vídeo
promocional de divulgação da coleção, que a escolha que a grife faz pela figura de Perriand ultrapassa
o interesse pela inspiração formal dos móveis e busca também atrelar às roupas imaginários de
feminilidade e modernidade supostamente representados por Perriand.

Palavras-chave: Charlotte Perriand, Louis Vuitton, Feminilidades

Abstract
In 2014 the brand Louis Vuitton released a clothing and handbags collection inspired in the furniture
design by the french designer Charlotte Perriand. In this paper we aim to discuss through the analysis
of the promotional video for the collection that the choice the brand makes for Perriand overcomes the
formal interest in her furniture design and seeks a way of creating a connection between the clothing,
femininity imaginaries and modernity supposedly represented by Perriand.

Keywords: Charlotte Perriand, Louis Vuitton, Femininities

Introdução
Este artigo3 pretende investigar quais as estratégias utilizadas pela grife Louis Vuitton4 para
associar a obra e a persona da designer francesa Charlotte Perriand a sua coleção primavera / verão
2014. Essa reflexão permite-nos pensar quais representações de feminilidade são eleitas pela marca
ao construir as imagens publicitárias das peças. Para tanto, analisamos um trecho do filme de
divulgação da coleção produzido pela Maison em conjunto com a Cassina, detentora dos direitos de
produção dos móveis desenhados por Perriand, associando as imagens a algumas reportagens sobre

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnologia Federal do Paraná.
let.designer@gmail.com
2
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnologia Federal do Paraná.
yasfabriss@gmail.com
3
Este artigo foi inicialmente desenvolvido como uma proposta para a disciplina de Design e Cultura na linha de Mediações
e Culturas do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnologia Federal do Paraná em 2015 sob
orientação da prof.ª dr.ª Marinês Ribeiro dos Santos e do prof. dr. Ronaldo de Oliveira Corrêa.
4 Justificamos o uso dos termos empregados neste artigo: “a marca”, "a Maison", “a grife” e “a Louis Vuitton” devido a

ausência de autoria nas reportangens analisadas a respeito da coleção. Além de Julie de Libran, diretora de moda feminina
da Louis Vuitton, nenhum outro nome é citado como responsável pela concepção das peças ou como porta-voz da marca.
Acreditamos que essa postura acaba por invisibilizar trabalhadores/as que também participaram em outras etapas de
produção da coleção.

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 249


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a coleção que circularam na época. Consideramos a apresentação da biografia e obra de Charlotte


Perriand proposta por Silvana Rubino (2010) como ponto de partida para análise da escolhas feitas
pela Louis Vuitton.
Charlotte Perriand (1903-1999) nasceu em Paris e vivenciou um contexto transitório que levou
a produção de bens de luxo dos pequenos ateliês para os grandes espaços de entretenimento. Na
adolescência cursou a escola feminista Ecole de l`Union Centrale des Arts Decoratifs e ao terminar o
curso buscou o reconhecimento de seu trabalho através da realização de exposições em galerias e
ateliês (RUBINO, 2010). Ainda jovem, casou-se com Percy Schlonfield. O Casamento mostrou-se um
acontecimento estratégico para que a jovem Perriand pudesse exercer sua profissão “livre de algumas
determinações” impostas pela sociedade da época (RUBINO, 2010, p.341).
Charlotte Perriand, conforme argumenta Rubino (2010), passou, a partir desse período, por
transformações corporais e espacias. Segundo a autora, Perriand personifcava a imagem da mulher
moderna descrita por Le Corbusier5: cabelos curtos, sedutora, corajosa ao escolher suas roupas
deixando braços e pernas à mostra, além de demonstrar praticidade e agilidade ao vestir-se
rapidamente6. Usava um colar de bolas de cobre cromado que simbolizava seu pertencimento a
“época mecânica” do século XX. Passou a praticar alpinismo e demais esportes relacionados ao
montanhismo, atividades que não eram comumente praticadas por mulheres na época (RUBINO,
2010, p. 341). Charlotte Perriand representava uma mulher cujo corpo e práticas performatizavam um
tipo de feminilidade específico do imaginário moderno do período.
Não obstante, a própria obra de Perriand auxiliava na construção de um imaginário subversivo
sobre a feminilidade desta época. A exposição denominada Bar sous le Toit, de sua autoria, contava
com “um bar, com mesa de jogo – ambiente masculino – desenhado por uma mulher que era autora,
cliente e usuária” (RUBINO, 2010, p. 342). O Ambiente foi projetado para o apartamento onde ela
residia com seu marido, em uma área boêmia de Paris. No entanto, apesar das exposições que fazia
financiadas pelo esposo, sua posição profissional só se consolidou posteriormente, ao trabalhar ao
lado do principal arquiteto modernista do período, Le Corbusier.

5 Le Corbusier, Charles Édouard Jeanneret-Gris, (1887-1965), nascido em La Chaux-de-Fonds, Suíça. Como arquiteto e
teórico, foi responsável por promover uma forma reduzida de arquitetura Modernista e é considerado um dos mais
influentes arquitetos do século XX. Em 1929 cooperou com Charlotte Perriand e Pierre Jeanneret no design de móveis.
[Tradução livre] (Vitra Design Museum).
6 Beverly Gordon (1996) comenta sobre essas reformas da indumentária feminina que passam a operar no início do século

XX e em 1910, e se estabelecem firmemente após a Primeira Guerra. Tais reformas buscavam trajes mais “adequados”
que pudesse permitir às mulheres liberdade de movimentos, possuíssem estruturas menos elaboradas, sendo dessa forma
“funcionais”; no sentido de apresentarem-se fáceis de vestir e de simples manutenção (GORDON, 1996, p.298). Em 1920,
a autora aponta que saias na altura dos joelhos e vestidos sem manga eram norma, fazendo com que o corpo da mulher
passasse a ganhar maior visibilidade.

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Ao trabalhar com o arquiteto, Perriand foi responsável por desenhar o mobiliário dos projetos
arquitetônicos assinados por ele. Uma de suas criações em conjunto com Le Corbusier foi a chaise-
longue LC47, desenhada em 1928 com colaboração de Pierre Jeanneret.
Uma das fotografias mais difundidas de Charlotte Perriand retrata a designer sentada nessa
chaise-longue LC4 (figura 01). Rubino (2010) destaca, ao analisar esta imagem, a pose de Perriand
com as pernas erguidas, à mostra, em contraste com seus sapatos de boneca; e seu colar de bolotas
de cobre que afirmam sua relação com a modernidade (RUBINO, 2010, p.345). A postura de Perriand
com o rosto ocultado, ilustra a intenção da designer de que a cadeira pudesse ser utilizada por
qualquer pessoa. Essa fotografia de Perriand na chaise-longue LC4 (figura 1) será o ponto de
referência para análise proposta nesse artigo.

Figura 1. Charlotte Perriand na B306 Chaise-longue, 1928.


Fonte: Design Museum8

A aproximação da Louis Vuitton com a obra de Charlotte Perriand antecede a coleção de 2014
(RENZI, 2013). Os móveis da designer já haviam sido cenário de outras campanhas promocionais da
marca, incluindo um filme de 2012 dirigido por Olivier Zahm, editor-chefe da revista Purple, e estrelado
pela modelo Ursina Gysi9. No entanto, apenas em 2013, unindo-se a diversos acontecimentos que
retomam a obra de Perriand10, a diretora de moda feminina da Louis Vuitton, Julie de Libran assinou a
coleção primavera / verão 2014, inspirada nos móveis modulares desenhados pela francesa.
Esse artigo pretende argumentar que a escolha que a grife faz pela figura de Charlotte
Perriand ultrapassa o interesse pela inspiração formal dos móveis e busca também atrelar às roupas
imaginários de feminilidade e modernidade supostamente representados por Perriand. Para construir

7 A chaise-longue é um tipo de cadeira inspirada em modelos de cadeiras de balanço e cadeiras médicas denominadas
Surrepos, destinadas ao repouso. Tem por característica permitir várias posições (RUBINO, 2010).
8 Disponível em: <http://design.designmuseum.org/design/charlotte-perriand>. Acesso em 2016
9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FUt11tVQZtg>. Acesso em 2015
10 Em 2013 é exposto no MOMA, na exposição Designing Modern Women: 1890-1990, uma cozinha projetada por Charlotte com o
arquiteto Le Corbusier em 1952 para uma unidade habitacional na França. No mesmo ano, a Cassina, detentora dos direitos mundiais de
produção e comercialização dos produtos da designer, em comemoração aos 50 anos da coleção LC50, faz a reedição dos móveis
originais de Le Corbusier, Pierre Jeanneret e Charlotte Perriand.

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 251


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essa associação, a grife dispõe de algumas estratégias discursivas específicas que serão aqui
sucintamente exploradas.
Para pensar essas estratégias selecionamos uma sequência do filme de divulgação da
coleção. O vídeo foi publicado no site YouTube no canal da marca Cassina, em dezembro de 2013,
sob o título "Cassina compartilha sua paixão com Louis Vuitton por Charlotte Perriand11”. O filme
contém 1:11 minutos e apresenta algumas peças da coleção da Louis Vuitton, ao mesmo tempo em
que visa associá-las a fotografias de Perriand e a obras por ela projetadas12. A seguir exploraremos de
que maneira são firmadas essas associações. Para tanto temos como apoio, além do vídeo,
fragmentos de reportangens sobre a coleção, publicados em plataformas online (websites), e a análise
de Rubino (2010) sobre a biografia e obra de Perriand. Através desses cruzamentos buscamos
responder seguinte pergunta: de que maneira a grife Louis Vuitton cria associações entre as peças de
sua coleção primavera / verão 2014 e a obra e persona da designer francesa Charlotte Perriand?

Charlotte Perriand: a representação da feminilidade “moderna” para Louis Vuitton

Há de se pensar que o interesse da grife Louis Vuitton pela obra de Charlotte Perriand não
ocorre ao acaso, ou apenas com o intuito de resgatar ou valorizar seus trabalhos. Os vínculos de
Perriand com o modernismo arquitetônico são um ponto de partida para que a diretora artística Julie de
Libran13 considere seu estilo “atemporal”. Libran afirma que “as criações dela [Perriand] são
inteligentes e práticas. E hoje ainda são relevantes”14 (RENZI, 2013). O conceito de Modernismo
presente no discurso de Libran e Renzi tem eco na ideia de uma modernidade hegemônica e única, e
em estilos de arquitetura e design inspirados no Estilo Internacional. Marinês Ribeiro dos Santos
(2015) discorre sobre o Estilo Internacional localizando-o como um segmento proveniente do
modernismo europeu que ganha força mundialmente no período pós-guerra, contexto em que o
conceito de funcionalismo está inserido. A ideia de atemporalidade citada por Libran tem suas origens
neste estilo cuja premissa seria da criação de uma linguagem universal. Nas palavras de Rafael
Cardoso (2000) os/as adeptos/as do Estilo Internacional defendiam a crença de que: “todo objeto

11
Tradução livre de: “Cassina shares its passion with Louis Vuitton for Charlotte Perriand”
12 No vídeo divulgado pela Cassina, não é possível acessar a ficha técnica do material. Os créditos não informam os
profissionais responsáveis pela direção, criação e produção do filme. Todos os direitos são reservados a Cassina, Louis
Vuitton e a Charlotte Perrian.
13 Julie de Libran (1972) é diretora artística da grife Sonia Rykiel (desde 2014). Nascida na França, cresceu em Vernègues,

até seus oito anos quando sua família se mudou para os EUA. Foi criada por seu pai, dono de restaurante, e sua mãe, uma
designer de interiores. Sua carreira ilustre inclui 10 anos na Prada e 6 anos no comando das coleções femininas na Louis
Vuitton. Uma vez na Sonia Rykiel, inaugura seu protagonismo. Estudou no Instituto Marangoni em Milão e na l’Ecole de la
Chambre Syndicale de la Couture em Paris. Trabalhou para Gianfranco Ferré e Versace. A partir de 2008, quando na Louis
Vuitton recebeu o título de “arma secreta da Louis Vuitton” pelo The Telegraph.
14 Tradução livre de: “Her creations were so smart and practical. Today, they are still relevant.”

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poderia ser reduzido e simplificado até atingir uma forma ideal e definitiva, a qual seria o reflexo
estrutural e construtivo perfeito de sua função" (DENIS, 2000, p.154). Santos (2015) comenta que a
materialização decorrente deste pensamento aplicada ao design e a arquitetura traduz-se na:
“abstração de formas, mediante a geometrização de volumes e a supressão de
ornamentos; na “verdade” dos materiais, revelada pela transparência da
composição estrutural ; no recurso sistemático à tecnologia industrial, e no uso de
elementos modulares padronizados, capazes de permitir diferentes arranjos a partir
de necessidades específicas [grifo nosso] (ARGAN APUD SANTOS, 2015, p.101)

O interesse de Libran em utilizar sua obra como inspiração para uma linha de indumentária
tem suas justificativas em uma ideia de atemporalidade e universalidade, típicos dessa vertente
modernista que ainda hoje pode ser vista como sinônimo de bom gosto e apuramento estético.
Veremos adiante que o recurso sistemático de produção industrial, característico do
modernismo, é valorizado na coleção desenvolvida pela Louis Vuitton. A modularidade presente nos
móveis desenhados por Perriand está refletida nos trajes e bolsas da coleção a fim de atender as
necessidades de uma consumidora imaginada como moderna.
No discurso da grife, a modularidade das peças possibilita versatilidade nas combinações,
além da fácil adaptações das roupas em diferentes condições climáticas. Esses atributos autorizam a
caracterização da coleção como moderna. Em reportagem ao jornal WSJ, Libran discorre sobre a
modularidade das roupas ao que Jen Renzi, autora da reportagem, adere o conceito às falas de
Perriand. Nas palavras de Renzi: “Viajantes seriam prudentes em seguir o exemplo de Perriand: a
designer certa vez descreveu uma viagem ao exterior na qual seu guarda-roupa era composto de
‘módulos intercambiáveis’ para criar um look que era ‘sempre semelhante, mas nunca o mesmo.’ Que
moderno” (RENZI, 2013).
Sobre a coleção, um fragmento disponibilizado pela Louis Vuitton ainda discorre:
Algumas mulheres deixam para trás uma aura de brilho onde quer que vão. O
tempo é seu aliado, o mundo seu domínio. Charlotte Perriand foi uma delas. Uma
personalidade multi-talentosa e generosa, esta arquiteta, designer, urbanista e
fotógrafa rompeu com convenções ultrapassadas, livre para inventar um novo
conceito de elegância atemporal. Fascinada com a "simplicidade aparente"
procurada por grandes criadores, ela imaginou um mundo no qual a beleza e função
se fundem, retendo a promessa de uma vida imersa em harmonia. Identificando o
indispensável, erradicando o supérfluo, ela traçou os contornos de uma
modernidade fundamental que prenunciava o classicismo do futuro. Paralelamente
a esta missão, Louis Vuitton, criador de sonhos e inventor de uma elegância
cambiante carregada de sofisticação técnica e estética, oferece uma coleção de
roupas icônicas, pioneira em um vocabulário da moda eterno e fidedigno que se
adapta a todos os desejos15 (DEZEEN, 2013).

15
Tradução livre de: “Some women leave behind an aura of radiance wherever they go. Time is their ally, the world their
domain. Charlotte Perriand was one. A generous, multi-talented personality, this architect, designer, urban planner and
photographer broke away from outmoded conventions, free to invent a new concept of timeless elegance. Fascinated with
the "apparent simplicity" sought by the great creators, she envisioned a world in which beauty and function merge, holding

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Ao traçar sua visão da persona de Charlotte Perriand, a Louis Vuitton forja uma imagem da
designer que é compatível com as características desejadas pela marca. A Louis Vuitton, ao definir
Perriand, está definindo a si mesma, como se ambas tivessem características intercambiáveis, de fácil
identificação. Este discurso pode ser visto como uma das estratégias utilizadas pela grife para
naturalizar a relação da coleção primavera / verão 2014 com a figura de Perriand.
A Louis Vuitton glorifica, na reportagem publicada na revista online DEEZEN (2013), a
personalidade e a prática profissional de Perriand, narrando-a sempre como uma figura atemporal,
eternizada em um ideal de beleza, sofisticação e praticidade. Tais atributos são considerados
semelhantes (paralelos) ao trabalho da grife, por isso a escolha da designer como fonte de inspiração
para a elaboração das roupas.
É possível notar pelo trecho destacado da reportagem que a influência para elaboração da
coleção ultrapassa o registro do mobiliário projetado por Perriand - os móveis possibilitam acesso a um
imaginário de modernismo que excede as características formais das poltronas e estantes. A grife,
encontra nos objetos assinados por Perriand uma possível representação da mulher moderna. A
proposta da coleção, comentada por Renzi (2013), contempla a ideia de uma modernidade atemporal,
conforme podemos identificar no trecho “é o estilo atemporal e moderno de Perriand que Libran utilizou
como fonte de inspiração [para coleção]16” (RENZI, 2013). Desta forma, é possível associarmos a
proposta da grife à preceitos do modernismo vinculados ao Estilo Internacional.
É necessário ressaltar, no entanto, que a concepção imagética da coleção, assim como a
escolha da figura de Charlotte Perriand com representação de feminilidade, acarretam valorações que
determinam a consumidora “ideal” da grife. A feminilidade representada pela Louis Vuitton na coleção
é branca, jovem, magra e transpassada por uma clivagem de classe. Essa determinação imposta pela
marca pode ser vista na escolha das modelos que aparecem nas imagens de divulgação da coleção,
bem como no valor de venda dos produtos. (figura 2).

forth the promise of a life infused with harmony. Pinpointing the indispensable, eradicating the superfluous, she traced the
outlines of a fundamental modernity that foreshadowed the classicism of the future. Paralleling this quest, Louis Vuitton,
dream-maker and inventor of a movable chic born of technical and aesthetic sophistication, offers a collection of iconic
garments, pioneering a spare, timeless, dependable fashion vocabulary that adapts to every desire.”
16 Tradução livre de: “It’s Perriand’s timeless, modern style that [...] Julie de Libran used for her spring/summer 2014 Icons

collection.”

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Figura 02: Julie de Libran (a esquerda) e modelos posando com peças da coleção em frente a estante projetada por
Perriand.
Fonte: Daniella on Design (blog)17

Icônes Collection - Louis Vuitton Primavera/Verão 2014: trajes, bolsas e móveis

Nesta seção será analisada uma sequência de imagens retiradas do vídeo promocional da
Louis Vuitton sobre a coleção inspirada em Charlotte Perriand. A intenção é identificar como a grife
forja associações entre a obra da designer francesa e as peças desenvolvidas para a coleção.
Priorizamos o recorte de um trecho do filme que incorpora a fotografia de Perriand na chaise-longue
(figura 1) para atribuir sentido à cena. Outro ponto importante para análise, que auxilia na interpretação
das imagens, são as falas de Charlotte Perriand destacadas pela grife nas reportagens divulgadas na
época de lançamento da coleção.
Segundo texto publicado no site de grife, a proposta da coleção estaria vinculada à seguinte
afirmação feita por Perriand ao regressar do Japão em 1940:
Um novo modo de viver me esperava lá: trabalho, lazer, descoberta, representação. Eu fiz
meu guarda-roupa com ‘módulos’ intercambiáveis, como em minhas investigações com a
padronização: quatro saias, longas ou curtas, para a parte debaixo do corpo e suéteres,
blusas, ou bustiês para a parte de cima, todos combinados para me proporcionar pelo
menos 16 possibilidades. Ao adicionar lenços, estolas, jóias atípicas e luvas, eu atingi uma
ampla variedade como uma boa quantidade de surpresa e fantasia 18 (LOUIS VUITTON,
2014).

17Disponível em <http://www.daniellaondesign.com/blog/louis-vuitton-and-charlotte-perriand>. Acesso em 2016.


18Tradução livre de: “A new way of living awaited me there: work, leisure, discovery, representation. I had made up my
wardrobe with interchangeable 'modules,' as in my investigations of standardisation: four skirts, long or short, for the lower
body and sweaters, blouses and bustiers for the top, all of which combined to give me at least 16 possibilities.By adding
scarves, stoles, atypical jewels and gloves, I achieved wide variety with a great deal of surprise and fantasy.”

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A intensão da Louis Vuitton, ao destacar essa fala de Perriand, sugere uma relação entre a
praticidade da designer e a versatilidade da coleção inspirada na sua figura. Ainda segundo
informação divulgada no mesmo site, a coleção se propõe a contemplar os “desafios da vida de uma
mulher ocupada [...] com elegância nômade, moderna e confortável, aliada à manufatura excepcional e
paletas de cores básicas [...]”19 (LOUIS VUITTON, 2014). A obra de Perriand também foi fonte de
inspiração para a estamparia de padrões geométricos utilizada nas roupas. As cores complementares
usadas na coleção buscam o contraste entre as peças e o xadrez gingham20, assim com os tons
terrosos, fizeram referência aos anos 1940 (DEZEEN, 2013).
O recorte do filme selecionado para análise (0:52' aos 0:57') trabalha com a associação da
fotografia de Perriand na chaise-longue LC4, apresentada na figura 1, em contraponto com uma
releitura da imagem feita pela grife. Nessa alusão a fotografia de Perriand, a modelo posa para o vídeo
da campanha sentada no redesign da chaise-longue LC4 (1928), a cadeira 522 Tokyo Chaise Longue,
projetada por Perriand em 1940.
No primeiro quadro21 selecionado, aos 0:52', (figura 03) a imagem apresenta a modelo em
postura relaxada encarando a câmera com uma expressão neutra. Suas pernas estão erguidas e
cruzadas sobre a chaise-longue a imitar a pose que Perriand faz na fotografia original.

Figura 03: Modelo na chaise-longue em bambu.


Fonte: Elaborado pelas autoras, fragmentos do vídeo “Cassina shares its passion with Louis Vuitton for Charlotte
Perriand”.

Ao contrário da fotografia de Perriand em que a designer esconde o rosto para dar ênfaze ao
móvel (RUBINO, 2010), na releitura a modelo encara a câmera, evidenciando a importância da figura
feminina na imagem. A releitura da fotografia de Charlotte Perriand procura dar sentido a relação que a
grife busca criar entre a designer e a coleção - a chaise-longe e as pernas erguidas são chaves de
acesso para que o espectador ou a espectadora entendam a inferência. É importante ressaltar que a
visualização da imagem é fragmentada e acontece na justaposição de quadros em sequência. A
19
Tradução livre de: “the challenges of a busy woman’s life. The wardrobe offers modern comfort and nomad elegance,
together with exceptional craftsmanship and a basic colour palette[...]”
20 Tipo de tecido quadriculado (KADOLPH, 2007).
21 Quadro, aqui utilizado no sentido de frame. Cada imagem que quando colocada em sequência produz o movimento no

vídeo.

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primeira imagem ilustra a modelo da cintura para cima e a segunda foca apenas em suas pernas
erguidas, logo não é possível visualizar a imagem como um todo no decorrer do vídeo.

Figura 04: Modelo na chaise-longue em bambu folheando livro sobre Perriand.


Fonte: Elaborado pelas autoras, fragmento do vídeo “Cassina shares its passion with Louis Vuitton for Charlotte Perriand”.

A sequência seguinte do vídeo, dos 0:53' aos 0:56' (figura 04), ilustra a modelo em outros
trajes, sentada na mesma cadeira, mas com outra postura. Dessa vez ela não olha para a câmera,
ocupa-se em abrir e folhear um livro. Agora, ela veste um chapéu que oculta seu rosto e torna-a
anônima. Apresenta postura relaxada e as pernas novamente cruzadas. Traz nas mãos o livro
"Charlotte Perriand: Photography: A Wide-Angle Eye" de Jacques Barsac. Ela se senta e folheia o
documento permitindo que imagens do interior do livro possam ser vistas.
Essa representação da modelo lendo um livro pode ser pensada a partir de Carvalho (2008). A
autora afirma que no início do século XX era comum que fotografias retratassem o hábito da leitura,
pois, no imaginário moderno, o trabalho era visto como uma prática intelectual, relacionada também a
uma clivagem de gênero que associava a prática ao enobrecimento do homem. A representação
feminina no vídeo, como um corpo que detém agência, intelectualizado, pode ser interpretada como
uma apropriação desse valores incorporados pela feminilidade moderna que a Louis Vuitton escolhe
performatizar.
Por fim, a imagem que encerra o trecho selecionado, aos 0:58', mostra a fotografia de
Perriand na chaise-longue (figura 05). A recuperação desse documento no vídeo parece justificar os
quadros anteriores, criando sentido para as cenas que se passaram. A montagem sugere que
associando-se a releitura da fotografia e a fotografia original é possível acessar a proposta da coleção.

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Figura 05: Montagem com a fotografia original de Perriand na primeira edição da cadeira.
Fonte: Elaborado pelas autoras, fragmento do vídeo “Cassina shares its passion with Louis Vuitton for Charlotte Perriand”.

Figura 06: Total da sequencia de imagens analisadas no texto. Modelo na chaise-longue em bambu e a fotografia original
de Perriand.
Fonte: Elaborado pelas autoras, fragmento do vídeos “Cassina shares its passion with Louis Vuitton for Charlotte Perriand”.

Ao analisar a sequência do filme dedicado à chaise-longue (figura 06), observa-se um


contraste intencional na construção da analogia entre a fotografia original e a releitura proposta pela
Louis Vuitton. Se Perriand, na imagem original, procura evidenciar a cadeira ao esconder o rosto, a
grife deseja mostrar uma personalidade definida e uma feminilidade específica associada a coleção,
performatizada pela modelo que encara a câmera. Portanto, a comparação entre as imagens propostas
no filme, foi capaz de gerar novos sentidos que não eram possíveis de serem acessados antes da
montagem. Através da análise do filme, foi possível inferir que o mobiliário funcionou, na coleção da
Louis Vuitton, mais do que como uma fonte de inspiração, mas como um elo que possibilitou
referenciar a importância da feminilidade representada por Charlotte Perriand.

Considerações Finais

Nosso questionamento inicial procurava explorar de que maneira a grife Louis Vuitton criou
associações entre as peças da sua coleção primavera / verão 2014 e a obra e persona da designer
francesa Charlotte Perriand. É possível argumentar, a partir da investigação realizada, que a

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associação ocorre por meio de analogias entre a fotografia de Perriand sentada na chaise-longue LC4
e as releituras dessa imagem feitas no vídeo de divulgação da coleção. Os discursos da grife, retirados
de reportagens sobre a coleção, demonstram a tentativa da Louis Vuitton de sustentar uma relação
naturalizada na escolha da designer como inspiração para a coleção.
No trecho analisado do vídeo, é possível perceber que a contraposição das releituras com as
imagens originais de Perriand são necessárias para construir significados para a coleção e operam
como uma indicação à espectadora ou ao espectador, como uma nota de rodapé, orientando de que
maneira a visualidade da coleção deve ser “lida”, tendo sempre como ponto de partida o repertório
imagético proporcionado por Perriand.
Visando evitar que a/o leitor/a que desconheça as obras de Perriand ou as fotografias originais
dêem outro sentido à coleção ou, até mesmo, um sentido não desejado pela marca, a grife utiliza uma
estratégia relacional ao construir a narrativa do filme. Assim, a Louis Vuitton organiza as fotografias
que retratam Perriand de maneira didática, construindo relações evidentes entre a corporeidade das
modelos, os artefatos e as fotografias originais da designer. Os quadros do vídeo constroem uma
sequência onde os móveis, a roupa e Charlotte estão intimamente relacionados e o sentido só é
alcançado com a associação dessas três esferas.
A interdependência mostra-se evidente em outros momentos do filme que não são tratados
com profundidade neste recorte, mas citamos brevemente devido a sua relevância. Em algumas
montagens, por exemplo, há uma busca por similaridade na gestualidade “abrir e fechar” visando
associar a estante Nuage aos zíperes de um casaco. Em outro momento, a relação é construída ao
contrapor o giro da cadeira LC7, assinada por Perriand, seguido pelo corpo da modelo trajando a saia
da grife, filmado também em movimento circular. Todo o filme é atravessado por uma direção
fotográfica que pretende enfatizar o caráter modular da coleção, explorando formas geométricas e
cortes secos entre as cenas.
O modernismo explorado na coleção está essencialmente vinculado ao Estilo Internacional e a
sua vertente funcionalista. Esse vínculo com os conceitos modernistas encontra-se materializado na
coleção por meio da suposta modularidade das peças, da geometrização da alfaiataria e da
simplificação das formas na estamparia. A relação entre as roupas e a figura de Perriand é construída
através da utilização do seu mobiliário como plano de fundo para a apresentação da coleção, bem
como por meio das referências às suas fotografias.
Ao associar as roupas e acessórios da coleção da Louis Vuitton com o mobiliário projetado por
Perriand, são evocados aspectos funcionais da moda, visto que Perriand é conhecida como uma figura
feminina da arquitetura moderna, e portanto, militante do funcionalismo. As fotografias de Charlotte
Perriand selecionadas para dar suporte à campanha, remontam a um período em que a designer

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trabalhou em parceria com Courbusier e Jeanneret. O porte do colar de metal na fotografia é uma
afirmação de modernidade "um símbolo e uma provocação que marcava [seu] pertencimento à época
mecânica do século XX" (Rubino, 2010, p. 341). Através das sequências do filme e das narrativas
selecionadas é possível perceber que os móveis, para Louis Vuitton, são indissociáveis da figura de
Perriand e da sua representação de mulher moderna. A circularidade entre a roupa, o mobiliário e a
personalidade é capaz de gerar sentido para a coleção criada pela grife e evidenciar como os limites
entre artefatos e pessoas são borrados e como ambos constituem-se mutuamente.

Referências

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<http://www.businessoffashion.com/community/people/julie-de-libran>. Acesso em 2016.

CARVALHO, Vânia Carneiro de. Espaços e representações de gênero. In: _____.


Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São
Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008.

CASSINA. Designers: Charlotte Perriand. Disponível em:


<http://www.cassina.com/en/designer/charlotte-perriand>. Acesso em 2015.

DEZEEN Magazine. Louis Vuitton fashion collection influenced by Modernist architect Charlotte
Perriand. Disponível em:
<http://www.dezeen.com/2013/12/14/louis-vuitton-fashion-collection-influenced-by-modernist-architect-
charlotte-perriand/>. Acesso em 2015.

GORDON, Beverly. Woman's domestic body: The conceptual conflation of women and interiors in the
industrial age. Winterthur Portfolio, 31: 4, pp. 281-301, January,
1996.

KADOLPH, Sara J., ed.: Textiles, 10th edition, Pearson/Prentice-Hall, 2007.

ONSTAD, Katrina. Home Again: Louis Vuitton's Style Inspiration.


<http://www.elle.com/fashion/a11394/home-again-louis-vuittons-style-inspiration-497669/>. Acesso em
2016.

RENZI, Jen. Connecting Modernist Charlotte Perriand With Louis Vuitton. The Wall Street Journal.
Disponível em:
<http://www.wsj.com/articles/SB10001424052702304213904579095472199227620>. Acesso em 2015.

RUBINO, Silvana. Corpos, cadeiras, colares: Charlote Perriand e Lina Bo Bardi. Cadernos Pagu, n.
34, p. 331-362, jan.-jun., 2010.

SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Questionamentos sobre a oposição marcada pelo gênero entre
produção e consumo no design moderno brasileiro: Georgia Hauner e a empresa de móveis Mobilinea
(1962-1975). Caderno aTempo: Histórias em arte e design. Barbacena: EdUEMG, vol. 2, p. 25-44,
2015.

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VITRA DESIGN MUSEUM . Biographies of Designers: Le Corbusier. Disponível em:


<http://www.design-museum.de/en/collection/biographies-of-designers/detailseiten/le-
corbusier.html#c4093>. Acesso em 2016.

VUITTON, Louis. Louis Vuitton 2014 Precollection Winter Essential’s. LV Now 05/27. Disponível em:
<http://uk.louisvuitton.com/eng-gb/articles/louis-vuitton-2014-precollection-winter-essential-s>. Acesso
em 2015.

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Ela nasceu Gabrielle, e tornou-se Chanel.


She was born Gabrielle , and became Chanel.
Karol Testoni (UFG)
karoltestoni@gmail.com

Resumo

O estudo propõe uma breve análise de quatro imagens fotográficas da jovem órfã Gabrielle Bonheur
Chanel e a evolução para se tornar Coco Chanel. A reflexão se dá através da relação da construção
da identidade de mademoiselle Chanel com a suposta revelação de uma nova categoria de gênero
que re-vestiu as mulheres ao longo do século XX mudando os modos de ser de uma geração.
Finalmente o artigo propõe cogitar se a modista realmente é responsável pelo surgimento de uma
categoria de gênero e qual seria ela.

Palavras-chave: Coco Chanel, gênero, fotografia.

Abstrat

The study offers a brief analysis of four photographic images of the young orphan Gabrielle Bonheur
Chanel and evolution to become Coco Chanel. The reflection is given by the ratio of the construction
of Mademoiselle Chanel identity with the supposed revelation of a new category of genre that re-
dressed women throughout the twentieth century by changing the ways of being a generation. Finally
the article proposes wonder whether the dressmaker really is responsible for the emergence of a
category of gender and what would be her.

Keywords: Coco Chanel, gender, photography.

1- Introdução

Nossas vidas são um enigma.


(COCO CHANEL apud PICARDIE, 2011, p.17)

Nossas vidas realmente são um enigma? A história de vida de uma mulher é um enigma? A
frase acima é da estilista Coco Chanel proferida a sua amiga Claude Delay, ao tentar contar a
sua própria história. Por muito tempo a história das mulheres era vista como algo
desinteressante, mas os estudos feministas nos permitiram explorar esse universo tão
discriminado. O estudo da modista de grande influência na história da moda merece aqui um
enfoque diferente, sob o aspecto do gênero, sua narrativa é sempre um tema a ser explorado, por
se tratar de uma mulher que construiu sua carreira e história remodelando as ideias que as
mulheres tinham delas mesmas.

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E nesse contexto e exemplo de vida de madeimoselle Chanel, que analisamos algumas


imagens do seu arquivo fotográfico, e embarcarmos em um tema bastante delicado que sobre a
questão dos estudos dos gêneros, onde a binaridade é questionada, e a definição para gênero
pode ir além dos termos masculino-feminino. Assim consideraremos porque a igualdade de
gêneros vem sendo apresentada como uma saída para esse embate nos dias atuais, e porquanto
a própria moda vem discutindo e apresentando alternativas para consolidar essa ideia baseando-
se em argumentos originários na história da ditadora da moda.
O presente artigo é uma parte da dissertação de mestrado sobre a relação de gênero e poder
construída por essa mulher tão emblemática que atende pelo nome de Coco Chanel. Pretende-se
através deste estudo trabalhar a análise de quatro imagens da lendária estilista e o seu fazer
para a construção desse sujeito feminino que busca elementos do guarda-roupa masculino para
ganhar voz em meio a uma sociedade parisiense, onde a condição de “ser mulher” era relevada a
uma categoria de subordinação.
A história aponta para essa estilista como a pioneira na construção do chamado termo “sem
gênero”, ou “gênero único”, mas será mesmo que Coco criou através do seu estilo, tal categoria?
Nosso objetivo é refletir as imagens da costureira e sugerir através da imagem construída da
própria Chanel, uma nova categoria de gênero, que aqui chamaremos de CC (Coco Chanel). Um
novo gênero capaz de re-vestir a mulher, sugerindo assim um novo olhar para a construção do
gênero feminino, não de igualdade, mas baseado na construção da identidade através de
elementos distintos, modos e modas encontradas na sua própria leitura de vida.

2- Coco Chanel- uma imagem em construção

Uma mulher precisa de independência dos homens, não de igualdade. Na


maioria dos casos a igualdade é um passo para baixo. (PICARDIE, 2011,
p.236)

A frase acima é de Coco Chanel, e parece bastante contraditório sendo dita por alguém que
fora sempre referência para as feministas. Pois o que se vê nos estudos feministas é uma
mulher, digo por sexo, buscando seu espaço de igualdade ao lado do homem. Entende-se
gênero aqui como possível modo de ser uma mulher e modos de ser de um homem e as

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diversas possibilidades de vivências de feminilidades e masculinidades que são mutáveis em


seus aspectos culturais e sociais.
A partir do trocadilho da célebre frase de Simone de Bevouir, "Ninguém nasce mulher; torna-se
mulher", escrita pela autora em seu livro "O Segundo Sexo", publicado em 1949, por qual essa
proposição afirma que ser mulher é uma construção social e histórica, vamos aqui brevemente
esboçar a linha da construção de Gabrielle Bonheur ao tornar-se Coco Chanel e, conseguinte a
categoria de gênero CC. Para tal, iremos usar o pensamento de Mauad onde afirma que a imagem
fotográfica nos permite presentificar o passado e o historiador pode ter um novo problema na
situação de leitor do passado, em conformidade com as palavras de Scott (1989) que vê na ligação
entre a história do passado e as práticas atuais a resposta para estudarmos gênero como categoria
de análise.
Então como olhar através das imagens? Segundo Mauad: “o historiador entra em contato com
este presente/passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos
contemporâneos da imagem, mas próprio à problemática ser estudada” (1996, p.10) e Scott (1989)
nos apresenta a abordagem de ordem casual que permite entender como e por que os fenômenos
tomam a forma que eles têm. Assim propomos uma nova abordagem de leitura das imagens
fotográficas ilustradas neste artigo, voltadas para um sentido de produção do estudo de gênero
como retrato das práticas sociais da era moderna de acordo com as representações sugeridas por
Chanel em sua forma de vestir, ou re-vestir.
Como propõe Mauad às imagens precisam de perguntas a ser feitas, elas não falam por si só:
“Nunca ficamos passivos diante de uma fotografia: ela incita nossa imaginação, nos faz pensar
sobre o passado, a partir do dado de materialidade que persiste na imagem” (MAUAD, 1996, p.15).
Para tanto a pergunta que se faz aqui é: nessas imagens fotográficas que tipo de categoria de
gênero Coco Chanel construiu? Sem gênero? Gênero único? Ou uma nova categoria? Quatro
imagens que mostram a evolução do estilo1 Chanel agora revisitadas e reinterpretadas para auxiliar
no campo de gênero.
Para criar seu guarda-roupa de sucesso a estilista mostra que seus ditames estavam
relacionados à própria leitura que fazia da vida e do momento sócio, político e cultural de cada
período de sua história e isso é possível ao se observar suas fotografias. Nestas análises iremos
                                                                                                                       
1
  Segundo   Costanza   Pascolato   (1999,p.15):   “O   estilo   será   a   expressão   do   seu   caráter,   a   sua   atitude   para  
transformar  a  mesmice  e  a  banalidade  da  existência  em  obra  original,  engraçada,  interativa  e  em  constante  
andamento”.  

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focar em alguns artefatos utilizados pela estilista em cada fotografia que apontam para uma
evolução da sua construção. Há uma linearidade na construção, saindo do gênero feminino,
passando pelo masculino e finalizando com uma nova proposta de categoria de CC.
Sabemos que o modelo de representação do gênero masculino e feminino varia de acordo com a
cultura (LAURETIS, 1987) e que desta forma gênero não pode ser definido somente por sexo.
Barnard explica como a moda e a indumentária reproduzem esses códigos para reforçar a definição
de gênero em cada cultura, segundo ele:

Assim, enquanto se pode mudar o que uma cultura considera como traje
masculino ou feminino, as distinções de sexo e gênero podem ser feitas por meio
do usar ou não uma roupa específica, uma cor, uma textura, um tamanho ou
estilo determinado de vestimenta. (2003, p.169)

Vale lembrar que as distinções entre gêneros começaram a aparecer mais marcantes
somente no século XIX, e que até em tão a separação se dava propriamente pela diferença de sexo.
Então o que temos no trabalho de Chanel é algo que vai além da binaridade apresentada como
patriarcal, e se apresente como o que Lauretis (1987) define ao falar de gênero como a
representação de uma relação social. Daí faz sentido o trabalho de Coco ao introduzir elementos
masculinos dentro do universo feminino sem alterar ou discutir a questão do sexo ou mesmo a
postura de “mulher”, no sentido universal da palavra. A estilista reorganiza os códigos de
representação de gênero feminino na sua cultura e assim faz nascer uma nova categoria de gênero
não para a “Mulher”, universal, mas para certa classe de mulheres parisienses e que posteriormente
chega ao resto do mundo.
Iniciamos com o panorama da cidade de Paris e arredores que ainda não são de movimentos
feministas nos anos de 1910, mas certamente os ares já aspiravam por mudanças por parte das
mulheres deste tempo. A capital parisiense é o local dominante na moda, e procurava ainda no início
do século XX reforçar a figura da mulher como procriadora, uma vez que o índice de natalidade
ainda era baixo. Para isso, reforçavam-se os elementos simbólicos femininos de gênero como base
para dificultar a liberdade das mulheres. Chanel era uma mulher como outras tantas de sua época,
envolta em um cenário predominantemente masculino nos primórdios do século XX, porém se
destacava por saber falar as mulheres do seu tempo. A jovem órfã Gabrielle Bonheur2 é mais uma

                                                                                                                       
2
  Nome   completo   da   estilista:   Gabrielle   Bonheur   Chanel,   ou   Chasnel   não   se   sabe   ao   certo   ter   havido  
problemas  na  hora  do  registro.  

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vítima de um desfecho infeliz de uma família cujo pai, segundo as biografias da estilista3, foi uma
figura que deixou marcas profundas por causa do abandono em um orfanato, a partir daí, a jovem
tratou de construir sua própria história, muitas vezes misturada em fantasias por ela mesma criada
para esconder suas feridas.
Nossa abordagem começa pela primeira imagem da então jovem Gabrielle ao lado de um dos
oficiais (figura 1), com quem tem início as amizades e inspirações dos artefatos perfeitos para o
princípio da sua transformação ideológica, chamo por ideológica, pois ela constrói para si verdades
que ainda não eram vistas por mulheres da sua região, porém historicamente alguns indícios já
apareciam. O contexto da época mostrado nessa imagem é de um corpo aprisionado por
espartilhos, assim como uma alma feminina aprisionada pela autoridade masculina. Chanel mostra
que fez parte dos ditames da moda de sua época, mas sua personalidade e ideais vai buscar no
guarda roupa do amigo e amante, Etenienne Balsan4, elementos da tal liberdade masculina. A figura
de Gabrielle é construída com itens totalmente femininos da época: cabelos presos longos, busto
projetado para frente, cintura fina, projeção na parte traseira e vestes longas, bem o oposto do seu
amigo ao lado no retrato que está muito mais à vontade para se locomover.

Figura 1: Gabrielle Chanel em 1903, Moulins. Ao lado um oficial da 10ª cavalaria.

                                                                                                                       
3
 Ver:  DELAY,  Claude.  Coco  Chanel:  gênio,  paixão  e  solidão  e  PICARDIE,  Justine.  Coco  Chanel:  vida  e  lenda.  
4
 Amigo,  amante  de  Chanel,  que  possibilitou  sua  entrada  na  sociedade  parisiense.  
 

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Fonte: DELAY, 2012, p.17


Aqui a distinção entre os papéis de homem e mulher são bem retratados através do vestuário.
Neste momento a diferença entre gêneros ainda é binariamente masculino-feminino, porém o que
Chanel propõe ao furtar os itens do guarda roupa de Etienne Balsan é que esses elementos têm
muito mais significados de liberdade do que de oposição. Apaixonada por equitação, Chanel agora,
já atendendo pelo nome “Coco”, parte para uma grande aventura, que é desbravar e reconstruir
através do universo dos artefatos másculos, seu próprio universo.
Não foi uma tarefa fácil, a foto a seguir (figura 2) mostra o desastre que ela e sua amiga Vera
Bate se tornaram ao tentar se apoderar do universo masculino por completo, demonstrando que a
lapidação do seu estilo Chanel de ser ainda estava longe. Nesta imagem, vemos elementos bastante
desajeitados para época, aqui nossa personagem já experimenta tudo que um homem usufruía. A
começar por estar vestida em um jumper5, chapéu tweed e com suas calças dobrado dentro de suas
meias de grandes dimensões, poucos reconhecem a mulher retratada sorrindo ao lado, ambas

                                                                                                                       
5
 Jumper:  peça  similar  ao  vestido,  mas  normalmente  sem  cinto  e  sem  mangas,  e  com  decote  grande  em  U  ou  
quadrado.  Dirigido  ao  mercado  feminino  e  infantil,  é  usado  sobre  blusa  com  mangas,  suéter  ou  camisa.  

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vestidas aparentando o estilo a La garçonne6, que seria a nova simplicidade na primeira guerra
mundial (MENDES; HAYDE, 2011, p.48).

Figura 2: Chanel com Vera Bate, em Lochmore, Scotland 1925.

Fonte: PICARDIE, 2011, p.136

Para trabalhar os elementos de representação de uma nova categoria de gênero, que aqui
chamamos de gênero CC, foi pleiteado por Chanel em toda a sua história de vida. Responsável
pela difusão do uso das calças, a estilista se sentiu profundamente decepcionada quando as
mulheres não entenderam sua proposta como item apenas esportivo. Para Coco, o vestido seria
sempre o retrato da feminilidade que as faria diferente e especial dos homens, como veremos na
figura 4. A imagem fotográfica com seu amigo Serge (figura 3) mostra seu amadurecimento na
busca por elementos simbólicos corretos para transferir seus ideais de liberdade, e aqui já então
conceituada mademoisele Coco Chanel, a costureira mostra seu fascínio pelo universo masculino, e

                                                                                                                       
6
 O  termo  Garçonne:  foi  cunhado  em  1880  pelo  autor  francês  J.-­‐K.  Huysmans  para  descrever  as  mulheres  que  
usavam  penteados  e  roupas  masculinas.  Ela  foi  reintroduzida  e  popularizada  em  1922  por  Victor  Margueritte  
para  classificar  as  mulheres  emancipadas  da  época  que  cortavam  o  cabelo  curto  e  levantaram  suas  bainhas.  
O  termo  Inglês  para  essas  mulheres  foi  "flappers".    

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sua grande habilidade em não perder a essência de uma mulher. As palavras de Chanel são bem
claras em relação à moda do seu tempo e o seu ideal de feminismo:

Preciso dizer uma coisa importante. A moda sempre faz parte da época em que
você vive. Não é uma coisa isolada. O problema da moda de 1925 era diferente.
As mulheres estavam começando a trabalhar em escritórios. Inspirei o corte do
cabelo curto por que combina com a mulher moderna. Eu disse á mulher que saía
para trabalhar para arrancar o espartilho. Inventei o tweed em blusas e suéteres
soltos e em roupas esportivas. Encorajei as mulheres a se vestirem bem e a
gostarem de perfume – uma mulher sem perfume não é uma mulher! (PICARDIE,
2011, p.223)

Para Coco Chanel as mulheres sempre foram o sexo forte e pensava que os homens sempre
procuram mulheres como travesseiros onde poderiam repousar suas cabeças. (PICARDIE, 2011)
Aqui percebemos a construção diferenciada de um ideal de feminilidade, algo com sabor de
liberdade, mas sem perder a essência. A estilista atribuiu ao longo de sua carreira outros elementos
que consideraria símbolos de feminilidade, como o batom vermelho, o uso de joias e perfumes,
segundo ela ,itens indispensáveis para uma mulher elegante (PICARDIE, 2011). A linha entre o novo
estilo e o novo gênero parece aqui não ter muita diferença, mas com igual proporção de importância
para o re-vestir das mulheres modernas. Deixamos aqui uma lacuna para possíveis interpretações
sobre a diferença entre ambos os termos.

Figura 3: Chanel com o amigo e bailarino Serge Lifar (1937)

Fonte: DELAY, 2012, p.280

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De fato a construção do sujeito é inacabada, conforme afirma o filósofo Michel Foucault7 em suas
obras, e mademoiselle sabia disto, e mesmo com as mudanças sociais e econômicas de cada
período, não há impediam de trabalhar e refinar sua nova categoria de gênero. Não fora fácil
construir seus elementos representacionais que se tornariam símbolos da mulher Chanel, era
necessário criar uma iconografia familiar que perdurasse a cada estação nova da moda. Com isso a
modista conseguiu mostrar tradição e valor perene.
A diferença entre os universos masculinos e femininos ainda tinham grandes avanços, mas a
proposta da estilista ao criar o gênero CC, não era tornar um gênero único como muitos afirmam8,
mas mostrar a sociedade que os mesmos elementos de liberdade, que representavam o universo
dos homens, poderiam ser transformados para as mulheres sem que as mesmas perdessem sua
delicadeza.
Não creio que podemos chamar Coco Chanel como uma figura militantemente feminista, sua
história parece mostrar que ela gostava da proteção de seus amantes. A própria estilista afirma que
uma mulher para ser feliz precisa casar e ter filhos, em suas palavras segundo menciona sua
sobrinha Gabrielle Labrunie: ‘Uma vida simples, com um marido e filhos – uma vida com pessoas
que você ama – isso é a vida de verdade’ (PICARDIE, 2011, p.234). Porém a própria sobrinha viu
sua tia cortar os laços com a família para se libertar do sofrimento da infância, pois para Chanel
esquecer fazia parte da sua liberdade. (PICARDIE, 2011)
A história de Coco Chanel, não nos mostra uma criadora da categoria sem gênero, ou um único
gênero, pelo contrário, mostra uma mulher ávida por mudanças em prol da liberdade feminina, mas
mostra uma criadora preocupada em estabelecer novos elementos masculinos com alma de mulher.
A imagem produzida abaixo (figura 4) é um retrato autoral de uma mulher que conseguiu destrinchar
e re-vestir as mulheres do seu tempo deixando um legado de meios representativos para dar
continuidade a tal liberdade feminina que ela tanto defendia. A jovem Gabrielle amadureceu
tornando-se a mulher Coco Chanel que a frente do seu tempo soube que o segredo da liberdade
não estava na igualdade, mas no saber se re-vestir com os elementos certos.

                                                                                                                       
7
 Foucault,  M.  As  palavras  e  as  coisas.  Lisboa:  Portugália,  (1967).    
_______.  Estratégia,  Poder  e  Saber.  Org.  e  seleção  de  textos:  Manoel  Barros  da  Motta;    
Trad:  Vera  Lucia  Avellar  Ribeiro.  Rio  de  Janeiro,  Forense  Universitária,  (2003).    
_______.  História  da  Sexualidade  II:  o  uso  dos  prazeres.  Rio  de  janeiro,  Graal,  (1984).    
8
 http://theedgytor.com/2014/estilo-­‐genero-­‐moda-­‐estilo-­‐masculino-­‐looks-­‐streetstyle-­‐preconceito/  
http://www.sebraemercados.com.br/moda-­‐sem-­‐genero-­‐conquista-­‐mercado-­‐em-­‐todo-­‐o-­‐mundo/  
 

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Madame Chanel (figura4) era agora nos anos 30 o exemplo da elegância, usando o preto como
símbolo de força e liberdade, e misturando joias falsas e verdadeiras para mostrar sua autoridade e
revelando para o mundo a sua pobreza chique (PICARDIE, 2011). A estilista tornou-se um símbolo
de liberdade da mulher moderna, seus autorretratos eram uma maneira de afirmação do seu
personagem tão bem elaborado. A estilista declarou para Bettina Ballard9 na década de 30: “Faço
moda com a qual as mulheres podem viver respirar, sentir-se confortáveis e parecer jovens”
(PICARDIE, 2011, p.212). Esses ideais parecem estar em voga ainda hoje nas coleções da marca
Chanel.

Figura 4: Chanel fotografada por Man Ray (1937)

Fonte: DELAY, 2012, p.253

De fato ao fazermos a leitura dessa última imagem vemos um resultado bem elaborado da soma dos
elementos masculinos com os femininos, as referências masculinas estão nas praticidades dos bolsos, no
corte simplificado do vestido, no chapéu simples e no cigarro, já a feminilidade é muito bem representada no
famoso tubinho preto e na mistura de joias com bijuterias. . A autora Picardie descreve ao relatar sua
conclusão sobre o efeito Coco Chanel nas mulheres que: “[...] Chanel lhes oferecia que era, entre outras
                                                                                                                       
9
 In  My  Fashion.  Secker  &Warburg,  1960.  

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coisas, uma maneira de se vestir masculinizada em sua dignidade sem babados, mas fiel à ideia de
feminilidade de sua criadora” (2011, p. 219). Não resta a menor dúvida que essa mulher repensou a forma de
se vestir e se comportar perante uma sociedade moderna que abria espaço para uma nova leitura sobre o
gênero feminino.

1- Conclusão

A descrição de Picardie e sua conclusão sobre o enigma Coco Chanel nos ajuda a entender que
essa mulher foi muito mais que suas coleções:

[...] Chanel continua a ser um enigma – quanto mais se anda atrás dela, mais
esquivo se torna seu fantasma. Talvez seu espírito deva ser procurado não
nas imagens brilhantes de suas criações para a tela, ou nas tentativas de
retratá-la no cinema, mas nesse fragmento de sonho, no trem branco que
atravessou os Estados Unidos, carregando seu corpo e seu nome. Seu pai
tinha partido, e com ele algo dentro dela morrera; mas ao mesmo tempo
Coco Chanel estava se transformando em mito em vida, uma lenda viva,
ganhando velocidade enquanto deixava sua perda para trás (2011, p. 162).

Criar seu próprio estilo, assim como Chanel, requer um conhecimento da sua própria
evolução histórica. Talvez como sujeitos inacabados realmente sejamos um enigma, ainda mais
pela falta de estudos sobre a história das mulheres que tem encontrado no campo do gênero
uma luz para se repensar a sua história. Narrativas como a de Coco Chanel repensada e
analisada sob o enfoque do estudo de gênero permitirão com que tenhamos uma nova
interpretação da história das mulheres.
As imagens aqui apresentadas mostram o resultado final muito longe de uma moda sem
gênero, ou gênero único. Segundo a própria estilista: ‘Sou apenas uma costureira, tentando
deixar as mulheres jovens e bonitas. Esses outros estilistas que fazem croquis bonitos, os
rapazes, não entendem as mulheres, não sabem como elas vivem. A ideia deles é torná-las
estranhas, esquisitas. ’ (PICARDIE, 2011, p.218), aqui sua fala é reconhecida nos elementos que
constituem a figura 4, não se percebe ali uma moda de gênero único, ou sem gênero, mas uma
nova categoria de gênero. Querer comparar ou indicar que suas criações apontavam para essa
tendência é inconsequente, pois o resultado final desta análise mostra a estilista não abrindo
mão dos elementos femininos, mas sim adequando aos modos da sociedade do século XX.

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Tão pouco poderá sugerir seu trabalho com os movimentos feministas, pois a própria
Justine Picardie cita em seu texto biográfico que o trabalho de Chanel: “Não era uma moda
feminista – na verdade, não era moda, em sua adesão e continuidade - mas havia nela algo de
libertador” (2012, p. 19). Essa liberdade fora transformada em elegância, própria dos modelos
masculinos em sua simplicidade praticidade, e não só pelos artefatos, mas também pela postura
adotada em plena era moderna pelas mulheres. Para madeimoselle ‘ Elegância em uma roupa é
a liberdade de movimento’ (PICARDIE, 2011, p.219), isso denotava certa igualdade entre os
gêneros de forma que a essência sexual não desaparecia, mas era agora traduzida de forma
mais simples.
Teria Coco Chanel criado um novo gênero? A resposta está na construção da identidade
pessoal que a moda tanto defende atualmente e permite ao indivíduo escolher quais elementos
preferem para elaborar seu próprio gênero. Os estudos de gêneros ainda são inconclusivos e
possuem uma longa caminhada pela frente, mas o percebe se que surgem a cada dia novas
categorias de gêneros que merecem atenção. Talvez Chanel não seja a pioneira no gênero
único, mas a pioneira ao abrir as portas para o surgimento de outros tipos de gênero.
Usar frases de Chanel para estabelecer suas verdades é como ler a bíblia segundo sua
própria interpretação. Precisamos estudar mais a história das mulheres para entender a
construção de uma sociedade. As fotografias de moda em todos os seus aspectos, seja autoral
ou de produção são excelentes meios de pesquisa e análise. Revisitar o passado e trazê-lo para
o presente e dar um novo sentido de leitura possibilita os diversos campos da ciência uma nova
descoberta, um novo caminho para contar a história da humanidade.
Terminamos este artigo lendo essa frase de Coco Chanel que: ‘Uma mulher que não é
amada não é mulher [...] Uma mulher precisa ser olhada por um homem que a ame [...] sem
esse olhar ela morre’. (PICARDIE, 2011, p.235) e deixando em aberto uma prerrogativa de que
precisamos de outros olhares, outras interpretações, afinal a história das mulheres não pode ser
contada só por homens, mas precisa ser contada principalmente por aquelas que mais a
entendem, as mulheres.

Referências Bibliográficas

BARNARD, Malcom. Moda e Comunicação. Tradução: Lúcia Olinto. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

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DELAY, Claude. Coco Chanel: genio/passione/solitudine.Traduzione: Federica Giardine. Torino:


Lindau, 2012.
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. Tradução de Suzana Funck. In: BUARQUE DE
HOLANDA, Heloisa (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994, pp. 206-42.
MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e História interfaces Revista Tempo, Rio de
Janeiro, vol. 1, n °. 2, 1996, p. 73-98.
MENDES,Valerie; HAYE, Amy de La. La Mode depuis 1900. Paris: Thames & Hudson L’univers de
l’art,2011.
PASCOLATO, Costanza. O essencial: o que você precisa saber para viver com mais estilo. Rio
de Janeiro: Editora Objetiva, 1999.
PICARDIE, Justine. Coco Chanel- vida e a lenda. Tradução: Elvira Serapicos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira,2011.
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of
history. New York: Columbia University,1989.

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A juventude na revista ilustrada O Cruzeiro no período de 1928 a 1946

Ana Paula Dessupoio Chaves (Universidade Federal de Juiz de Fora)

anadessupoio@gmail.com

Resumo

Neste estudo aborda-se de que forma a juventude era retratada na revista ilustrada O Cruzeiro, com foco
principalmente no conteúdo que envolvia o ambiente da praia. O impresso circulou no Rio de Janeiro, num
período em que a ideia de modernidade nacional estava em voga e ser jovem era considerado algo positivo.
O recorte utilizado será de 1928 a 1946. O periódico trouxe inovações e ajudou a retratar o contexto da
cidade carioca. Os jovens apareciam nas páginas da revista principalmente quando se tratava de moda e
beleza, aspectos que ajudaram a desenhar o momento e as transformações que esse público sofreu ao longo
do tempo mencionado.
Palavras-chave: O Cruzeiro; juventude; moda.

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Marcada por muitas transformações, a juventude foi retratada em diversos jornais e revistas ao longo
da História. O estudo em questão será sobre a revista ilustrada O Cruzeiro, que circulou no Rio de Janeiro de
1928 a 1985. A análise englobará textos e imagens que abordavam a cultura de praia e como a juventude era
representada nestes materiais. O recorte utilizado será de 1928 a 1946, por abranger o ano em que a revista
ilustrada surgiu, além do fato de que em 1946 ser o ano da criação do biquíni e um momento da emergência
da cultura juvenil.

No artigo, a juventude será considerada como uma fase de transição entre a infância e a vida adulta,
como um momento de amadurecimento. A intenção é discutir a forma como este público era delineado pela
revista. “Menos do que uma etapa cronológica da vida, menos do que uma potencialidade rebelde e
inconformada, a juventude sintetiza uma forma possível de pronunciar-se diante do processo histórico e de
constituí-lo” (FORACCHI, 1965, p. 303).

A revista semanal O Cruzeiro nasceu no dia 10 de novembro de 1928, no Rio de Janeiro, durante o
governo de Washington Luiz Pereira de Souza, época de intensa migração do campo para as cidades, em
que fábricas se espalhavam, diminuindo os costumes agrários, dando ao país ares de modernidade. A revista
em questão estabeleceu uma nova linguagem na imprensa brasileira: inovações gráficas, publicação de
grandes reportagens e deu ênfase ao fotojornalismo. Na primeira edição do periódico era possível conhecer a
linha editorial e quais seriam seus objetivos – um deles era fazê-la a revista mais moderna da época. “Uma
revista como um jornal terá de ter, forçosamente um carácter moral. Dessa obrigação não estão isentas as
revistas que se convencionou apelidar frívolas” (O CRUZEIRO, 10 de novembro de 1928, p. 02).

A revista ilustrada foi criada para representar a nova ordem que era a de modernidade nacional.
“Assis Chateaubriand, e o presidente Getúlio Vargas, que, com propósitos políticos definidos, concedeu
empréstimo para a criação do impresso. Interessava, então, politicamente, a Getúlio mostrar que o Brasil
estava se modernizando” (SERPA, 2003, p. 12). A modernidade visava dinamizar a ordem, alterar os hábitos
e costumes tradicionais. Para Giddens (2002, p.09), a modernidade altera a natureza da vida social cotidiana
e afeta os aspectos pessoais. O que significa que ela deve ser entendida a nível institucional, pois as
instituições modernas exercem influência de maneira direta na vida individual.

A ideia de modernidade impregnava as matérias da revista, com o objetivo de atentar o público para
as novas interferências que ela causaria na rotina da sociedade. Já em 1930, ocorreram mudanças que
refletiram na vida nacional. A Revolução de 1930 foi marcada pelo fim da República Velha e a ascensão de
Getúlio Vargas ao poder.

2  
 
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O projeto político de Getúlio Vargas implicava, fundamentalmente, a centralização do poder, o qual,


durante o período da República Velha, estava fragmentado no poder das províncias mais
importantes: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Para tanto, era necessário que os brasileiros
se identificassem com a nação como um todo (BONADIO e GUIMARÃES, 2010, p. 149).

As mudanças provocadas por Getúlio Vargas e o Estado Novo, a partir de 1937, modificaram o
nacionalismo brasileiro. A forte centralização do poder fez com que o Estado pudesse criar uma identidade
nacional e o desenvolvimento de alguns órgãos e regras que beneficiavam a cultura do Brasil. Era necessário
que:

(...) o fomento a estudos e pesquisas que tenham o Brasil e os brasileiros como temas centrais. A
inserção do poder público também se deu diretamente na produção cultural, culminando com a
criação, em 1939, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que atuará como órgão
regulador das atividades culturais e de censura a obras literárias, peças teatrais, programas
radiofônicos e letras de músicas (BONADIO e GUIMARÃES, 2010, p. 150).
 

Há uma busca por criar uma imagem do Brasil para que, principalmente, os brasileiros se sentissem
parte dela. O Estado buscava ícones da cultura popular para inseri-los na cultura da nação. Durante a
República, o nacionalismo também visava romper com o passado da colonização. “A nacionalidade seria,
para os republicanos, o resultado da luta contra o passado, da construção de uma nova sociedade
organizada politicamente pelos nacionais” (OLIVEIRA, 1990, p. 23). O Cruzeiro contribuiu para a afirmação
dessa política nacionalista e modernista de Vargas.

O modernismo estava atrelado à imagem de Paris como ideal de civilização. Sendo assim, muitos
aspectos da cidade eram absorvidos pelo Brasil. O Rio de Janeiro era o polo que irradiava as tendências e
principalmente, através da imprensa, as pessoas podiam ter acesso às novidades vindas do estrangeiro. Em
função da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Paris ficou isolada dos mercados consumidores de moda, o
que abriu espaço para os Estados Unidos ganhar visibilidade no cenário da moda. Isso fez com que a revista
brasileira recebesse grande influência norte-americana. Mesmo com o contexto de guerra, na edição do dia
16 de junho de 1944, chegou a circular 91 mil exemplares.

Podemos deduzir que era um número considerável de leitores, já que no país, nesse período, só a
população feminina chegava a 20.622.227. Dessas, 19% estavam no mercado de trabalho e, pelos
indicativos da revista, a maioria das suas leitoras não fazia parte do operariado nacional; eram donas
de casa, que poderiam até ser também trabalhadoras, mas pertencentes às elites empresariais,
políticas, econômicas e militares, principalmente dos grandes centros urbanos (SERPA, 2003, p. 13).

O Cruzeiro contribuiu para mudanças, adotou técnicas gráficas que não eram muito usadas no país,
como a rotogravura, e implantou as reportagens. Ainda sendo um período em que grande parte da população

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deixava o meio rural e partia para as cidades, quando as máquinas começaram a substituir o trabalho agrário,
a revista continuava ganhando e conquistando novos leitores, mesmo que a situação não favorecesse. “Era o
Brasil com altos índices de analfabetismo que contava com uma revista de grande tiragem, chegando a 700
mil exemplares na década de 1960 e com um público de quatro milhões de leitores” (SERPA, 2003, p.14).

A revista tinha em sua equipe dois importantes jornalistas: David Nasser e Jean Manzon que
desenvolviam importantes reportagens, dando fama à dupla. “A fórmula foi um sucesso. As reportagens da
dupla logo passaram a ocupar as primeiras páginas da revista, com as sensacionais fotos de Manzon e o
texto atraente de David Nasser, que parecia sempre seguir o rumo desejado pelos leitores” (NETTO, 1998, p.
109). Os repórteres buscavam abordar casos sensacionais para se diferenciar do resto da imprensa.

A revista ilustrada não era essencialmente feminina, mas praticamente metade de suas páginas era
destinada a esse público, com colunas especializadas em espaços que mostravam a realidade social das
“senhoras” e das “moças” das classes mais privilegiadas da época. As colunas de moda contribuíram para o
grande sucesso da revista.

A juventude também tinha lugar especial em O Cruzeiro. Com certa frequência, pelo menos uma
matéria era desenvolvida para este público, principalmente com temas envolvendo o hábito de ir à praia, o
esporte e a moda. Eram assuntos que faziam parte da rotina dos jovens e a maioria deles tinha grande parte
do tempo destinada para o lazer. Um dos motivos para a juventude ser tão citada é que sua imagem estava
associada à beleza que era o ideal de aparência a ser seguido. “A juventude está associada a um padrão de
beleza e isso envolve um aumento progressivo com os cuidados do corpo, cuidados que, em geral, tendem a
atenuar e dissimular a idade sociobiológica e causar a impressão de vitalidade perene” (VIANNA, 1992, p.2).

Todos deveriam parecer jovens. Essa era considerada uma aparência positiva e atrativa. “Enquanto
as pessoas idosas são excluídas, a juventude deve estender-se e fazer-se mais presente no conjunto da
sociedade” (SCHPUN, 1999, p. 101). O discurso encontrado na revista era com foco em preservar a
juventude. A aparência também estava ligada ao reconhecimento social. O avanço da idade não era o ideal,
procurava-se prolongar o visual juvenil.

Na revista encontram-se matérias que incentivam a prática corporal. A atividade física geralmente era
voltada para o público mais jovem. Mesmo que abrangesse outros leitores valorizava a manutenção dos
traços da juventude. “A hora é dos jovens, dos fortes, dos saudáveis. Velhos, obesos, feios – e negros –
encontram-se reunidos, segundo os novos critérios de beleza e de saúde em vigor, numa marginalidade

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determinada pelos seus corpos” (SCHPUN, 1999, p. 27). Os grupos que não seguiam o padrão eram
considerados um incômodo para a sociedade e não deveriam ser seguidos.

Na coluna Graça, Saude e Belleza, escrita por Sylvia Alccioly, há alguns exercícios com bola que servem
para manter a musculatura forte e aumentar a flexibilidade. Dissemina-se a ideia do corpo saudável e
trabalhado na praia. Fala-se também dos benefícios da ginástica que ajudam na prevenção de lesões e
mantem a estética corporal em dia, como é possível observar na figura abaixo:

Imagem 01: Ginástica feita por uma jovem na praia

Fonte: O Cruzeiro, data não descrita, ano de 1934, p.44.

Em O Cruzeiro, era possível ver os jovens estampados em fotos, anúncios, matérias e dicas de
comportamento. Um assunto recorrente e que trazia os jovens como protagonistas era o esporte. Havia uma
coluna fixa que se chamava Estadio trazendo toda semana algum campeonato esportivo com imagens e
legendas do evento. Na maioria das vezes, quem tinha participado da competição era algum jovem, até por
conta da idade e do corpo atlético. Na foto da coluna esportiva é possível ver o concurso aquático da liga de
esportes da Marinha. Em seguida, a página dedicada ao evento, parabeniza os jovens atletas que
conquistaram o campeonato de natação:

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Imagem 02: Jovens com traje de banho na coluna Estadio.

Fonte: “O Cruzeiro”, 02 de março de 1929, p.06.

Nas fotografias no contexto da praia, era possível perceber corpos com poucos trajes, e cada vez
mais expostos ao sol, o que em 1928 era sinônimo de saúde. “(...) O sport, a praia e a dança são, de certo, os
maiores fatores do aperfeiçoamento physico em sua moderna concepção de esbelteza e de graça” (O
CRUZEIRO, 24 de novembro de 1928, p. 7).

Aliás, o esporte estava presente na rotina dos jovens que iam até as praias do Rio de Janeiro e
aproveitavam para encontrar os amigos e praticar alguma atividade física. Como se pode observar na coluna
de comportamento Dona da Sociedade, com subtítulo “A mulher, o sport e a Moda”, escrita por Peregrino
Júnior. “A influência do sport na vida da mulher moderna é considerável. O sport viu habituar a mulher do
nosso tempo a duas alegrias incomparáveis que as nossas avós não conheceram: a alegria do ar livre e a
alegria do movimento” (O CRUZEIRO, 31 de agosto de 1929).

O esporte era uma prática mais voltada para a juventude que tinha disposição e o estilo de corpo
ideal para ficar exposto com pequenos trajes. “O esporte não combinava com as senhoras que haviam
passado dos 30 anos. Representava um risco para a saúde uterina das mais jovens e uma indecência para
as mais velhas” (SANT’ANNA, 2014, p. 38). Nas praias, a prática de atividade física era constante, ajudava a
manter o corpo definido, o que era visado pela juventude e servia de interação.

Ainda nas fotografias, a forma como a juventude era representada nas fotos enquanto estava na
praia, por exemplo, era geralmente em grupos e com uma característica visual parecida. Pode-se entender

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como a necessidade de estar em contato com pessoas com gostos similares. Outra possibilidade é interpretar
a praia como um ponto de encontro e também local para a prática esportiva. Afinal, a maioria dos esportes
era praticada em equipe, ou seja, incentivava a socialização no meio em que vivem.

A concepção de juventude corrente na sociologia, e genericamente difundida como noção social, é


profundamente baseada no conceito pelo qual a sociologia funcionalista a constituiu como categoria
de análise: como um momento de transição no ciclo de vida, da infância para a maturidade, que
corresponde a um momento específico e dramático de socialização, em que os indivíduos
processam a sua integração e se tornam membros da sociedade, através da aquisição de elementos
apropriados da “cultura” e da assunção de papéis adultos. É, assim, o momento crucial no qual o
indivíduo se prepara para se constituir plenamente como sujeito social, livre, integrando-se à
sociedade e podendo desempenhar os papéis para os quais se tornou apto através da interiorização
dos seus valores, normas e comportamentos. Por isso mesmo é um momento crucial para a
continuidade social: é nesse momento que a integração do indivíduo se efetiva ou não, trazendo
consequências para ele próprio e para a manutenção da coesão social (ABRAMO, 1997, p. 29).

O momento de sociabilização era importante para que os jovens pudessem se sentir parte daquele
contexto. O jovem, ao escolher um determinado grupo para pertencer, automaticamente definia afinidades e
ao se manter nele é porque possuía gostos semelhantes aos de seus integrantes. Para Bourdieu (1983), o
gosto é a propensão à apropriação de uma categoria de objetos ou práticas que é possível classificar, é a
fórmula generativa que está no princípio do estilo de vida.
No contexto da modernidade, a noção de estilo de vida possui um significado particular. “Quanto mais
a tradição perde seu domínio, e quanto mais a vida diária é reconstituída em termos do jogo dialético entre o
local e o global, tanto mais os indivíduos são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma
diversidade de opções” (GIDDENS, 2002, p. 13). As influências advindas das formas de produção do
capitalismo fazem com que o estilo de vida tende a ser padronizado. No entanto, por conta da pluralização
das ações, a escolha do estilo de vida se torna cada vez mais relevante para a formação da autoidentidade e
para encaminhar as atividades do cotidiano.
Nas ilustrações da revista O Cruzeiro, percebe-se também que o estilo de vida dos jovens, muitas
vezes, era representado de maneira mais ousada, com os trajes de banho ainda menores dos que eram
comumente usados na época. Pode-se observar ainda que a atitude desenhada era mais expressiva e
audaciosa. A ilustração a seguir é do cartunista e ilustrador Orlando Mattos para a coluna Da mulher para a
mulher e ilustra jovens na praia. Os trajes de banho usados marcam bem as curvas do corpo e são bem
parecidos, o que expressa um padrão da modelagem da roupa.

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Imagem 03: Ilustração coluna Da mulher para a mulher.

Fonte: O Cruzeiro, 23 de novembro de 1946, p. 80.

A revista tinha uma seção destinada a publicidades. A maioria dos anúncios traziam imagens de
belas jovens com o slogan e o produto que estava sendo divulgado. Geralmente, eram produtos de estética e
de moda. Como, por exemplo, a seguinte publicidade de maillot: “O corte impecável que se ajusta ao corpo, a
maciez do tecido, a combinação elegante de cores, fazem com que os trajes Jantzen sejam os “modelos”
usados pelas banhistas chics e pelos esportistas que não prescindem de sua inteira liberdade de movimento
(O CRUZEIRO, 27 de dezembro 1930, p. 55).

A seguir um anúncio do Creme Hinds, que é um creme que promete deixar a pele hidratada. Em um
dos slogans, vinha escrito que o produto era destinado também à pele branca e delicada que tinha sido
queimada pelo sol. Essa descrição ajudava a definir o público da revista – a burguesia carioca que não queria
ser confundida com o trabalhador com a cor mais morena por conta da exposição ao sol, durante o trabalho.
Anúncios que mostram a estética corporal da época, do corpo com um leve bronzeado e trabalhado através
da prática esportiva, incentivam o estilo de vida praiano e a aparência jovem.

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Imagem 04: Anúncio Creme Hilds

“Nada conheço melhor de


que o Creme Hinds para conservar a
cútis branca, assetinada, juvenil...”.

Fonte: O Cruzeiro, 24 de maio de 1930, p. 60.

  Outra justificativa utilizada para convencer o leitor da importância do produto era a promessa da
manutenção da juventude. “Assim, novas tecnologias surgem para prolongar a aparência jovem de cada um e
afastar todo signo de envelhecimento. A indústria de cosméticos, a prática de esportes e a moda são três
elementos fundamentais desse movimento coletivo de proscrição do velho” (SCHPUN, 1999, p. 32). O ideal
era a aparência juvenil: corpo atlético e bronzeado.

Nas páginas da revista pode-se notar cada vez mais a presença do estilo de vida carioca que
significava: frequentar as praias e manter o bronzeamento dos corpos. Uma das explicações para estes
novos hábitos é que, nos anos de 1930, o esporte se tornou mais presente na rotina dos jovens, assim como
a vida ao ar livre e os banhos de sol. “A mulher carioca é a parisiense do Novo Mundo; ella sabe conservar-se
eternamente jovem, sempre com o mesmo sorriso nos lábios, haja sol, garoa ou chuva, sempre a mesma girl
desembaraçada e grácil, fértil em expedientes, datada do instincto da sociabilidade em elevado grau” (O
CRUZEIRO, 4 de janeiro de 1930, p. 17).

A adesão ao estilo de vida praiano se tornava cada vez mais comum, caracterizava e legitimava o ser
carioca. Os banhistas, através do esporte, trabalhavam o corpo para que pudesse desfrutar dos trajes de
banho e se expor na areia da praia. “Era nesses termos que, já profundamente associada à vida moderna e,
sem demora, à ideia de brasilidade, a estética bronzeada compunha agora o temário das elites, deixando
para trás o tempo em que pele branca era sinal de bom-tom” (O’DONNELL, 2013, p. 163). A juventude era o

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principal público que atendia aos aspectos do estilo praiano; possuíam o ideal de corpo: belos, saudáveis e
fortes.
Como exemplo, em 1938, surge a coluna Garotas de Alceu. Nela, as garotas representavam a
juventude e o estilo de vida que levavam, com uma rotina bem diferente dos adultos. As jovens eram muitas
vezes chamadas de “brotos” na coluna, estavam em fase de transição e de descoberta. “Como etapa que
antecede a maturidade, fase dramática da revelação do eu, essencial para a formação da pessoa, a
juventude corresponderia a um momento definitivo de descoberta da vida e da história” (AUGUSTO, 2005, p.
20).

As ilustrações de Alceu Penna retratavam a rotina, o comportamento e a moda utilizada pelas jovens.
“As adolescentes tinham outros sonhos de estilo. Elas queriam ser iguais às Garotas do Alceu, personagens
desenhadas pelo mineiro Alceu Penna na revista O Cruzeiro. Eram as ideias mais vistas nas salas das
costureiras da cidade” (CASTILHO E GARCIA, 2001, p. 78). Isso reforça a necessidade dos jovens se
sentirem diferente dos adultos, afinal tinham gostos e estilo de vidas diferentes.

A coluna Garotas retratava um mundo bem peculiar dos jovens. “Ao mesmo tempo em que a
juventude tendia a possuir gostos comuns, como a vaidade exacerbada e a insegurança, compartilhavam de
estilos de vida particulares” (PENNA, 2010, p.43). Este era o momento em que a juventude da classe média
carioca começa a emergir e, com isso, surgiam mais conteúdos voltados para este público.

Na década de 1940, a praia continua sendo um dos principais pontos de encontro da juventude e de
lazer. A imagem abaixo “As Garotas ao sol...” faz parte da edição da revista de 1946, período em que as
curvas do corpo feminino são ressaltadas. O uso da cintura marcada, no estilo “pilão” pode ser notado
inclusive nos trajes de banho. Na ilustração, as jovens permanecem ao sol e com a pele bronzeada, o que era
sinônimo de beleza e de estar saudável.

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Imagem 05: Coluna As Garotas

Fonte: O Cruzeiro, 16 de março 1946, p. 22.

A praia associada também ao esporte, que ajudava a incentivar os corpos à mostra, era a
possibilidade de tirar as camadas de tecido e apostar no traje de banho. Com isso, há uma busca pelo corpo
ideal. A estética do magro e saudável valorizava a condição da juventude. Havia a necessidade de retardar o
envelhecimento. “Nestes dias quentes de março, quando tôda natureza é um convite à vida, as garôtas
refugiam-se nas praias, como qualquer mortal, absorvendo o ar puro do mar, e deixando-nos às mais das
vezês asfixiados. Nadando, jogando peteca, jogando voleibol, correndo, namorando e às vezês mesmo sem
fazer nada, as garôtas abafam qualquer um” (O CRUZEIRO, 16 de março 1946, p. 22).

A coluna Garotas de 02 de novembro de 1946 mostra imagens feitas por Alceu Penna das jovens que
passavam parte do tempo livre na praia. Além de se bronzearem, aproveitavam para falar de moda, cinema e
de futebol. O bronzeamento mencionado nas colunas não queria incentivar a miscigenação, muito pelo
contrário, criou um estilo de vida no Rio de Janeiro. Como já foi mencionado, o estilo de vida pode ser
entendido como um conjunto de preferências independentes e que possuem a mesma intenção expressiva.
Estas preferências da juventude eram representadas nos materiais da revista e, neste momento, o estilo de
vida que seguiam era o da cor morena da carioca.

Considerações finais

A forma como a juventude era representada na praia na revista ilustrada O Cruzeiro desenhou o
momento e as transformações que sofreram ao longo do tempo mencionado. As mudanças podem ser vistas

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também nos trajes de banho que se tornaram cada vez menores e com uma modelagem que valorizava o
corpo. A cultura jovem foi ganhando espaço com o pós-guerra e, com isso, mais conteúdos voltados para
este público foram inseridos. Para Feixa (1999), as culturas juvenis se referem à maneira com que as
experiências sociais dos jovens são expressas coletivamente, mediante a construção dos estilos de vida
distintos, localizados fundamentalmente no tempo livre, ou em espaços intersticiais da vida institucional.

A juventude combinava com o sentimento de modernização, significava renovação, negação da


velhice e decadência. Para Schpun (1999, p. 32), a imagem do jovem trazia a ideologia do novo e da
mudança, que era atrelada a realizações positivas. Rompe-se com tudo que possa lembrar o passado e que
seja carregado de aspectos negativos.

Os jovens, desde o início da revista O Cruzeiro, tiveram um espaço, seja através de fotografias,
ilustrações ou textos. De certa forma, O Cruzeiro, como era um impresso semanal e de circulação nacional,
contribuiu para a disseminação do estilo da juventude que frequentava as praias cariocas, participando,
assim, da construção e divulgação do comportamento deste público, entre 1928 a 1946.

Referências

Livros

BOURDIEU, Pierre. In: ORTIZ, Renato (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho D’Água,
2003.

CASTILHO, K.; GARCIA, C. (orgs). Moda Brasil – fragmentos de um vestir tropical. São Paulo: Anhembi
Morumbi, 2001.

FEIXA, C. De jóvenes, bandas y tribus. Barcelona, Ariel, 2006.

FORACCHI, Maria Helena. O estudante e a transformação da sociedade brasileira. São Paulo,


Companhia Editora Nacional, 1965.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

O'DONNEL, Julia. A invenção de Copacabana: Culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Zahar, 2013.

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OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq,
1990.

PENNA, Gabriela Ordones. Vamos, garotas! Alceu Penna: moda, corpo e emancipação feminina (1938-
1957). São Paulo: Annablume; Funesp, 2010.

NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina,1998.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. A história da beleza no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2014.

SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20;
São Paulo: Boitempo Editorial/Editora SENAC, 1999.

Periódico

O CRUZEIRO. Rio de Janeiro: Diários Associados, 1928-1946. Semanal. Disponível em:


<http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=003581>. Acesso em 30 ago. de 2015.

Teses ou Dissertações
ABRAMO, Helena W. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. In: Revista
Brasileira de Educação, Agosto de 1997, nº 05, pp. 25-36.

AUGUSTO, Maria Helena O. Retomada de um legado intelectual – Marialice Foracchi e a sociologia da


juventude. In: Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, v. 17, nº 02, novembro de 2005, pp. 11-33.

BONADIO, Maria Claudia; GUIMARÃES, Maria Eduarda Araújo. Alceu Penna e a construção de um estilo
Brasileiro: modas e figurinos. Horizontes antropológicos, 2010, pp. 145-175.

SERPA, Leoní. A máscara da modernidade: a mulher na revista O cruzeiro, 1928-1945. Universidade de


Passo Fundo. 2003, pp. 1-181.

VIANNA, Letícia C.R. A idade mídia: uma reflexão sobre o mito da juventude na cultura de massa. Série
Antropologia 121. Fundação Universidade de Brasília, Brasília, 1992.

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Uma mulher de fraque no Jornal das Moças: Uma leitura da imagem na


moda feminina.
A cutaway woman in the Journal of Jornal das Moças: An image reading
in women's fashion.

Celso Sánchez
(Professor Adjunto GEAsur, UniRio)
celso.sanchez@hotmail.com
Léa Maria Schmitt Leal
(Pesquisadora GEAsur, UniRio)
lea.schmittleal@yahoo.com.br

Resumo:

Este trabalho tem como objetivo analisar a capa da publicação Jornal das Moças de
1917 aonde aparece uma mulher de fraque, para tanto foi efetuado o levantamento histórico e de
imagens junto a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Pontuando como a política de gênero
pôde refletir na cultura das aparências a moda feminina e como a prática do vestir influenciou a
emancipação da mulher no período referido.

Abstract:
This project aims to analyze the cover of the Journal of Jornal das Moças in 1917
where it appears a cutaway woman, for that was made the historical survey in the subject, and of
its images from the National Library of Rio de Janeiro. Punctuating how the gender policy can
refletc Woman´s policy in the culture of appearances could reflect the culture of appearances
women's fashion and how the practice of dressing influenced the emancipation of women in that
period.

Introdução:
O que o presente artigo propõe e´ um estudo detalhado sobre a potência da roupa e da
moda como plataforma privilegiada para pensar as sociedades, seus conflitos, hierarquias,
rupturas e permanências. Antes de discorrer sobre o tema feminismo é preciso voltar na história
e observar o papel que as mulheres exerciam no mundo para compreender a atual situação do
feminismo, sendo necessário desta forma, conhecer como e em quais situações as mulheres
viveram para então entender porque foi preciso lutar por sua liberdade profissional. Em relação as
roupas, a sua trajetória está ligada ao seu processo histórico nas sociedades. O significado de cada
roupa, adorno, ornamento se faz significante de acordo com delimitação temporal e o recorte dentro dos
limites de cada sociedade. Problematizando o uso da indumentária feminina como meio de discurso de
inserção e empoderamento das mulheres ao meio público, cotidiano e político onde por meio de uma
capa de revista, será possível visualizar tal empoderamento.

A personagem a qual propomos analisar neste artigo se chamava Aida Regina Borges,
farmacêutica pela Universidade de Medicinada do Rio de Janeiro. Infelizmente na publicação
não obtemos uma maior descrição para uma melhor pesquisa histórica. Mas pelo pouco que foi
descrito pela revista Jornal das Moças, foi que a mesma seria filha de oficial da armadura
brasileira, solteira e integrada na sociedade da época. Madeleine Ginsburg (1989) identifica a

 
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gravata como a peça principal do uniforme feminista. Notamos pela imagem de capa da
publicação é a altivez da figura retratada, sendo que a mesma se encontra em primeiro plano,
com os cabelos presos e usando um fraque, peça usualmente masculina demostrando toda a
emancipação feminina em uma publicação tradicional. A forma gráfica das letras e números não
são decorativas, muito pelo contrário, são todas em caixa alta para a construção da imagem da
mulher moderna e independente. Podemos alegar que usar os elementos de estilo alternativo
como gravata, colete, chemisier, paletó demostravam uma posição de manifesto mais rígida.
Mas além de ser um manifesto era Moda, e Diane Crane (2006) se pergunta em seu texto como
os elementos masculinos eram percebidos pelas mulheres que o adotaram no período. Toda
época tem suas discursões sobre o vestuário, entre os que aceitam as normas vigentes e os que
desejam e almejam que estas normas tomem uma nova direção. É interessante, como aponta a
socióloga Crane (2006) as mudanças muitas das vezes ocorrem mais por fatores externos aos
proponentes, como economia, tecnologia, mudanças sociais do que pelos seus discursos.

Figura 1. Capa do jornal das Moças Jornal. Ano IV. Nº 125, p. 01 Ano 1917.

Hábito ou maneira de ser, atitude ou modo de vida, a moda pode ser vista como uma
manifestação cultural dinâmica que torna possível não apenas as alterações dos gostos os quais
se expressam por meio do vestir sinalizando e carregando consigo marcas distintas através dos
quais os sujeitos se relacionam. Alegaremos desta forma, que a indumentária tem um potencial
simbólico próprio, e através da visualidade da imagem feminina, podemos referenciar as
questões de gênero, período, identidade, comportamento e a personalidade do sujeito retratado.
Resgatando e analisando historicamente o discurso da publicação e o inserindo como objeto de
seu tempo. Podemos assim, ter um parâmetro de como na imagem do referido periódico, se

 
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delinearam as relações com o feminino e a questão do empoderamento. As revistas femininas


são importantes fontes de pesquisa para o estudo da evolução da mulher dentro sociedade, para
este artigo os principais recursos utilizados para o corpo da pesquisa foram: os livros, para situar
historicamente o rumo da pesquisa; os artigos e a fotografia da publicação Jornal das Moças,
encontrados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
O  Jornal  das  Moças  era  um  caderno  ilustrado  produzido  na  cidade  do  Rio  de  Janeiro  
no  século  XX  (maio  de  1914  a  dezembro  de  1968)  e  distribuído  nacionalmente,  seu  conteúdo  
trazia  informações  sobre  moda,  culinária,  comportamento,  dicas  de  beleza  e  também  anúncios  
de   produtos   variados   como   lingerie,   remédios   e   filmes.   No   seu   interior   o   Jornal   das   Moças  
trazia  44  páginas  com  textos,  artigos,  ilustrações  e  fotos.

Para o historiador a análise e a pesquisa nas imagens do passado tem como finalidade
a busca das sociedades que a produziram, possuem um potencial simbólico pois, através da
visualidade das imagens apresentadas no periódico e a especificidade das fotografias de moda
oferecem assim, a possibilidade de reconstrução histórica do comportamento e da personalidade
feminina. Conseguimos ter um parâmetro social, econômico, político e tecnológico de um
determinado período tornando-a assim, um parâmetro social, pois como ocorreu essa
reapropriação da mesma junto a um meio tecnológico. Pretendemos analisar neste trabalho, de
que maneira a identidade de uma capa foi capaz de referenciar a construção no imaginário
coletivo e para o empoderamento. Pois não há sociedade senão por um fundo de ideias e de
desejos em comum, é a semelhança entre os seres que institui o elo da sociedade. As roupas se
tornam assim, uma presença visual do imagético na constituição e permanência da memória.

Podemos pontuar que as mulheres do século XXI obtiveram a confirmação que ocorreram
várias lutas pela libertação feminina no século XX, desta forma, as mulheres galgaram respeito e
espaço no mercado de trabalho graças a participação de mulheres que se associavam mais
ativamente na vida publica, socialmente, culturalmente e em menor grau, politicamente. Esses
lugares concretos manifestaram um certo afastamento do lugar social tradicional destinado às
mulheres em geral: o lar. Na primeira metade do século XIX, as mulheres voltaram a conquistar seu
espaço no nível social, cultural e econômico. Para a autora Fujisawa (2006. p. 28) “ com a revolução
industrial elas retornaram ao trabalho e no final do século XIX, eram a maioria nas indústrias têxteis.
No entanto começava o preconceito quanto a mulheres casadas”. Durante vários séculos de nossa
história, a função da mulher foi a de dona do lar, obediente ao marido e responsável pelos cuidados
dos filhos, Segundo Novais e Sevcenko (1998) essa forma de educar nascia de uma crença que a
natureza feminina dotada de uma predisposição biológica para as funções da vida do lar que
consistia em casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter dos futuros cidadãos. Para Bauer
(2001. p. 60) “as tarefas desempenhas pelas mulheres no âmbito do lar deixaram de ser
consideradas trabalho, solapadas pela ideia de amor, de felicidade familiar e doméstica”.
Paralelamente cresceram a participação feminina no mercado de trabalho na cidade do Rio de
Janeiro. Existiam mulheres que lutavam para soltar as amarras do tradicionalismo, simplesmente
por terem o desejo e o objetivo pelo reconhecimento social, profissional e pela emancipação. Para
Bessanezi,
“Resgatando, analisando e comparando os discursos
destas revistas podemos ter uma idéia de como se
delinearam as relações homem-mulher em seus diversos
aspectos, que vão desde a preparação de “destino

 
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feminino” até a convivência entre marido e esposa,


passando pelas expectativas e imposições sociais, pelas
idéias de felicidade, por insatisfações e decepções, pelos
jogos de poder articulados em forma de
dominação/submissão, de resistência e de convivência e de
complementaridade”. (BASSANEZI, 1996, p.12).
A aparência era então um dos princípios de identificação da “mulher moderna” ou da futura
mulher moderna. A importância conferida à aparência feminina é crucial para a noção de mulher
moderna na concepção da elite, pois, era a forma mais direta de tornar visível a identidade moderna
da mulher e do grupo social a qual pertencia. A imagem aparente modernizada desta mulher
retratada na capa da publicação associada a modernização da cidade constrói esta imagem que
pode ser compreendido não apenas como um modo moderno de formatar a fotografia. Nessa
imagem fotográfica, a combinação de rigidez e “fragilidade” e a utilização de uma peça masculina
nos oferece a possibilidade de interpretar a sua finalidade , o que efetivamente a imagem foi
produzida para ser – a exposição de uma imagem moderna desta mulher representante da elite
brasileira; como também a de lhe dar outra interpretação que nada tem a ver com a sua finalidade –
mesmo havendo desejo para que o lugar social da mulher, principalmente da elite, fosse
emancipado, a estrutura rígida e segmentada da sociedade seria sempre o limite ultimo para suas
aspirações de emancipação.
O papel secundário dado à mulher durante séculos proporcionou-a encontrar formas de
superação diante dessa anulação da sociedade. Inventar novas formas de vestir e se comportar,
foram caminhos encontrados pelo ser feminino de se auto afirmar e de participar da vida social
de maneira mais relevante e visível. A seguir tentaremos mostrar historicamente como ocorreram
as transformações dos primeiros vinte anos do século XX para a mulher e como a mesma
buscou uma saída ao se deparar com as responsabilidades e transformações causadas por uma
mudança social, cultural, arquitetônica e política. Este trabalho pretende refletir sobre a conquista
da cidadania feminina, envolvendo o processo de desenvolvimento das questões de gênero para
o empoderamento feminino junto à capa de uma revista tradicional carioca, garantindo igualdade
de oportunidades e de direitos.

Moda e Arquitetura
O fenômeno da moda sempre esteve ligado ao desenvolvimento das cidades. A partir do
século XX na cidade do Rio de Janeiro viu-se uma transformação arquitetônica, social e cultural.
Tal modernidade estava presente nos novos hábitos de consumo e as novas formas do pensar
social, surgidas para alavancar o progresso social.

Na segunda metade do século XIX, a moda foi reinventada, contribuindo para algo novo e
diferente. A sociedade de massa começava a se constituir e a cidade adquiria novo sentido para
o desenvolvimento da produção e da dominação social. Como podemos perceber, a moda não é
uma decisão ou intervenção tomada por indivíduos ou grupos. Ela é uma construção, uma
interferência objetiva e estimulada no mundo social e comportamental, uma intervenção externa
e intencional valorizada na perspectiva sobre o passado, empenhada em superá-lo, e que
remete a uma interpretação do presente, passado e do futuro.

 
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O Rio de Janeiro do fim do século XIX e início do século XX, enfrentava graves problemas
sociais, acentuados pelo rápido e desordenado crescimento. Com o declínio do trabalho escravo,
a cidade passara a receber grandes contingentes de imigrantes europeus e de ex-escravos,
atraídos pelas oportunidades de trabalho assalariado. A explosão demográfica e, sobretudo, o
aumento da pobreza, agravaram a crise habitacional que perdurava desde meados do século
XIX. Na Cidade Velha e suas adjacências, área central do Rio, o problema era mais acentuado,
pois ali se multiplicavam as habitações coletivas e eclodiam as violentas epidemias de febre
amarela, varíola e cólera-morbo que conferiam à cidade fama internacional de porto sujo. Este
quadro favorecia o discurso articulado dos higienistas sobre as condições de vida na cidade, os
quais propunham intervenções drásticas para a restauração do equilíbrio da cidade, vista como
um “organismo doente”. O primeiro plano urbanístico para o Rio de Janeiro foi elaborado entre
duas epidemias muito violentas (1873 e 1876), mas graças à estabilidade político-econômica, a
duras penas alcançada no governo Campos Sales, Rodrigues Alves pôde promover, entre 1903
e 1906, o ambicioso programa de renovação urbana da capital. Apoiada nas ideias de civilização
e beleza, de regeneração física e moral, a reforma urbana, tratada como questão nacional,
sustentou-se no tripé: saneamento, abertura de ruas e embelezamento, e objetivou a atração de
capitais estrangeiros para o país. Com a reforma, houve intensa valorização do solo urbano da
área central, determinante na expulsão da população de baixa renda ali concentrada. Cerca de
1.600 velhos prédios residenciais foram demolidos.

O período que ficou conhecido como "Belle Époque", mais especificamente no período da gestão
de Pereira Passos, 1902 a 1906, prefeito na cidade do Rio de Janeiro, então Capital da
República, os meios de valorização da cidade, tanto nos aspectos arquitetônicos como na vida
privada de seus cidadãos, foram expostos e exibidos na busca de um objetivo comum, a
igualdade entre os moradores e visitantes. Implicaram um novo pensar da sociedade carioca. E
a representação máxima desta nova cidade que surgia seria mais tarde, a recém-inaugurada,
Avenida Central, futura Rio Branco, Andrzejewski,(2006, p. 60) “onde o “mostrar” se tornaria uma
prática válida na configuração política, econômica, cultural e, sobretudo, social da cidade”.
Desfilar os modelos comprados nas boutiques da área central, tornou-se atividade permanente
social e cultural da nova cidade que surgia. Para Gilda de Mello e Souza (p. 34) existe uma
imensa relação entre as formas que a arquitetura de uma determinada época utiliza e as formas
estampadas na moda demostram estarem correlacionados com o espirito do tempo. Tanto a
arquitetura quanto a moda distinguem-se por estarem em eterna mudança. As transformações
de Pereira Passos redesenharam a cidade e a transformaram, com as suas devidas ressalvas,
em uma pequena Paris dos trópicos. Pois Paris era o modelo a ser seguido cultural e
comportamental, desta forma a reforma urbana implementada por Pereira Passos representou
um esforço de modernização para cidade. Para os autores Pereira e Jr. (2006,p. 08). “Dentro de
uma perspectiva ideológica pragmático positivista e de evidente compromisso com os capitais
franceses e ingleses, a “cidade colonial” cedeu lugar, de forma definitiva, à “cidade burguesa”,
moderna, do século XX, que tinha como parâmetros as metrópoles europeias”. Foi no fim de sua
administração que a cidade ganhou o título de "maravilhosa". Podemos afirmar com posicionou,
Gilles Lipovetsky,(2014, p. 311) “não há sociedade senão por um fundo de ideias e de desejos
comuns é a semelhança entre os seres que institui o elo da sociedade”. Contextualizada com as
mudanças impostas pela administração da Nova República no início do século XX no Rio de
Janeiro, nos permite afirmar que a moda se tornou uma presença constante na sociedade media
e alta carioca. A moda encaminhou a mudança nos indivíduos e nos grupos, nas subjetividades
e nas relações e comportamentos sociais, enquanto as reformas garantiam a continuidade dos
interesses, estratégias, alianças e modelos relacionais e o fortalecimento do Estado e das
instituições no controle, na disciplina e na hierarquização da sociedade.

 
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Gibson Gils
As Gibson Girl foram consideradas o primeiro ideal de beleza feminina nos Estados
Unidos, Europa e América do Sul. Criada pelo artista Charles Dana Gibson (1867–1944),
Gibson Girl apareceu em várias revistas e reproduções, tornando-se um dos ícones do século
XIX e XX.
Na Primeira Guerra Mundial, o corpo e as características aristocráticas das garotas eram
consideradas como um modelo que muitas jovens desejavam copiar, um retrato romântico dos
traços femininos. Também foi uma das primeiras pin-ups.
Além de alta e magra, mas com formas, ela usava espartilho. Exibiam um nariz e boca
pequena bem desenhados, mas seus olhos eram grandes. Elegante e bem vestida, correspondia
com a imagem de uma senhora bem-educada.

Figura 2. Imagens de Desenho das Ginbson Girl. Imagem retirada pesquisa internet.
Em: http://www.torontopubliclibrary.ca/ve/fashion/gibson.jsp.
As “Gibson Girl” representavam no final do século XIX e inicio XX a imagem completa
da moda, da beleza e do êxito social. As mulheres que se auto intitulavam desta forma,
buscavam também uma certa independência e realização pessoal. Eram mulheres e jovens da
burguesia e da alta sociedade que não abandonavam os seus estudos e viagens, desejavam
que fossem elas a escolherem os seus futuros maridos, podemos afirmar que foram as primeiras
“feministas” na sociedade ocidental, coloquei entre parentes tal terminologia pois as mesmas
estavam inseridas dentro das amarras sociais vigentes na época. Obviamente, elas não
possuíam total liberdade, mas para uma sociedade a qual, onde a maioria da população ainda
era analfabeta, essas mulheres deram os primeiros passos para aquilo que veríamos a conhecer
socialmente como as sufragistas, desportista, auto-confiante, sorriam com frequência, mas não
costumavam rir, sempre mantendo uma certa distância.
Com o aumento das sufragistas, e as transformações da sociedade culturalmente e
arquitetonicamente, a moda mudou consideravelmente. Logo ficaram para trás os corsets, a
favor dos vestidos curtos e sem formas. Na década de 20 a Garota Gibson foi ultrapassada em
comparação com a moda de melindrosas. Com base nos ideais tradicionais de beleza feminina,
Gibson criou uma imagem muito peculiar da mulher perfeita.

 
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O empoderamento Feminino as Sufragistas e o direito ao voto feminino.


O empoderamento feminino, é o empoderamento das mulheres, que traz uma nova
concepção de poder, assumindo formas democráticas, construindo novos mecanismos de
responsabilidades coletivas, de tomada de decisões e responsabilidades compartidas. O
empoderamento feminino é também um desafio às relações patriarcais, em relação ao poder
dominante do homem e a manutenção dos seus privilégios de gênero, é uma mudança na
dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, garantindo-lhes a autonomia no que se
refere ao controle dos seus corpos, da sua sexualidade, do seu direito de ir e vir. Nunca tal temática,
e podemos supor, já existir a muitas décadas, pois desde o movimento sufragista pós-revolução
Industrial no século XIX a qual as mulheres exigiam o direito ao voto, tal tema esteve tão atual nos
nossos dias. A moda foi e sempre será reflexo de uma determinada sociedade, pois a moda
feminina passou por diversas transformações sendo incorporada ao vestuário feminino, peças
masculinas. Pois a roupa será sempre expressão das tensões sociais e econômicas em uma
sociedade. Conforme Mello e Novais:
“No séc. XIX, as classes proprietárias e a classe média
abonada viveram “sob a obsessão dos olhos dos
estrangeiros”. (...) Foi essa preocupação ou temor do
brasileiro diante do inglês ou do francês, de quem se acha
inferior diante de quem se afirma superior, que desencadeou,
já no início do século XIX, a cópia febril dos estilos de
consumo e de vida próprios ao capitalismo desenvolvido. Já
do final do século XIX em diante, e acentuadamente a partir
dos anos 50, o grande fascínio, o modelo a ser copiado
passa a ser cada vez mais o American Way of life”. (MELLO
e NOVAIS 1998, p.604).
Desta forma cresceu a participação feminina no mercado de trabalho na cidade do Rio de
Janeiro. Existiam mulheres que lutavam para soltar-se das amarras do tradicionalismo, simplesmente
por terem o desejo e o objetivo pelo reconhecimento social, profissional e pela emancipação. Para
Bessanezi, (2002 p. 12). Resgatando, analisando e comparando os discursos desta revista, podemos
ter uma idéia de como se delinearam as relações homem-mulher em seus diversos aspectos, desde
aquele período já se pontuava a participação das sufragistas nas revistas da época, pois mesmo em
uma revista tradicional como Jornal das Moças, já se pronunciavam quanto a questão do voto
feminino e o progresso social e cultural. Percebemos neste determinado artigo publicado na mesma
revista que saiu na capa a mulher de fraque e cabelos presos; não obstante este artigo analisar a
questão da mulher ter o direito ao voto pelo progresso social a qual o Rio de Janeiro se encontra,
pontuaram em determinado momento que os policias de nossa terra nada fariam às nossas mulheres,
pois as mesmas são seres “frágeis “ e conciliadores”. Percebe-se que ao mesmo tempo, no
determinado artigo pontuaram a questão do progresso e mudanças culturais e comportamentais que
estavam ocorrendo na sociedade carioca, paralelamente, percebesse ainda o embotamento ou
melhor colocando o tradicional modo de ser para a mulher da época culturalmente e socialmente,
onde o ser feminino era frágil, delicado e do lar. Existiam imposições sociais, pelas ideias de
felicidade, por insatisfações e decepções, pelos jogos de poder articulados em forma de
dominação/submissão, de resistência e de convivência e de complementaridade.

 
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Figura 2. “A Mulher e o direito ao Voto”. Jornal das Moças. Ano IV.Nº 125, p. 14. Ano 1917.

A função das revistas feministas, projetavam mulheres que se percebiam e se faziam


notar por intermédio de discursos que construíam a sua subjetividade na ordem do privado:
diários, memórias e escritos íntimos, gêneros discursivos de escrita em si e que juntamente com
os figurinos, tentavam normatizar a conduta feminina em seus múltiplos papéis. Para a autora
Gilda de Mello e Souza, define no seu livro O espirito das Roupas, que a moda e´ uma Arte
extremamente comprometida pelas injunções sociais do momento, e alega (1987, p. 50) “(..)
para que possamos compreende-la em toda a sua riqueza, devemos inseri-la no seu momento e
no seu tempo tentando descobrir as ligações ocultas que mantém com a sociedade”.
A doutora Generoso Estrela é entendida por Hahner como uma feminista brasileira que
lutou pelos direitos civis das mulheres, tendo exercido influência nos debates travados pela
intelectualidade brasileira do século XIX que levaram D. Pedro II a assinar a Reforma Leôncio de
Carvalho, decreto n.º 7247, abrindo as portas do ensino superior às mulheres no Brasil, em 19
de abril de 1879. Segundo a autora, a primeira médica brasileira, formada nos Estados Unidos,
foi fonte de inspiração para outras mulheres dispostas a enfrentar um mundo masculino e hostil à
entrada de mulheres nesse universo. Hahner (2003) mostra também que as mulheres
pertencentes às elites dominantes brasileiras, que almejavam ser médicas, defrontaram-se com
os preconceitos dos homens de sua própria classe social.

Ainda que o feminismo político da época não houvesse se limitado apenas ao sufragismo,
esta foi sua principal tendência e o que provocou as reações mais violentas por parte dos
opositores. O voto feminino havia sido discutido na Assembleia Constituinte de 1891, sendo
considerado para Miriam L. Moreira “o caminho da dissolução da família brasileira, pois, para a
maioria dos deputados dessa assembleia, era indiscutível e inapelável o papel da mulher no lar e
na família e o sufrágio feminino parecia-lhes uma ousadia “anti-social”. Abrir a possibilidade de
voto às mulheres seria admitir-lhes a capacidade de pensar os rumos políticos da nação e de
exercer atividades de cunho público, campo destinado apenas aos homens.

Sem se intimidarem com as campanhas anti-sufragistas que se encontravam em todas


as partes, surge no Rio de Janeiro de 1910 o Partido Republicano Feminino. Fundado pela

 
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professora Deolinda Daltro, o partido tinha como objetivo ressuscitar no Congresso Nacional o
debate sobre o voto da mulher (abandonado desde a Assembleia 1891). Sete anos após sua
fundação, em 1917, o Partido Republicano Feminino chegou a organizar uma passeata na
capital do país à fim de reivindicar o direito ao voto feminino. Ainda que este direito não fosse
conquistado naquele ano, obteve-se outra conquista no campo do trabalho e a mulher brasileira
passou a ser aceita no serviço público do Brasil.

No ano de 1919 outro passo significativo em prol do sufrágio universal é dado com a
criação da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher que, no ano de 1922, acabou por se
transformar na Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF). O movimento de
mulheres começava a tomar força, (BEM98. p 2). “por iniciativa de algumas intelectuais, que
estudaram no exterior e ao regressarem difundiram ideias emancipacionistas”.
Historicamente ainda teríamos que aguardar algumas décadas para podermos termos
assegurado o direito ao voto. Somente em 3 de maio de 1933, a mulher finalmente teve o direito
de votar pela primeira vez em todo território nacional. Em 3 de maio de 1933, na eleição para a
Assembleia Nacional Constituinte, a mulher brasileira, pela primeira vez, em âmbito nacional,
votou e foi votada. A luta por esta conquista durou mais de 100 anos, pois o marco inicial das
discussões parlamentares em torno do tema começou nos debates que antecederam a
Constituição de 1824, a qual não trazia qualquer impedimento ao exercício dos direitos políticos
por mulheres, mas, por outro lado, também não era explícita quanto à possibilidade desse
exercício.
O exercício desses direitos foi introduzido no ano anterior, com a aprovação do Código Eleitoral
de 1932, que, além dessa e de outras grandes conquistas, instituiu a Justiça Eleitoral, que
passou a regulamentar as eleições no país.

Conclusões finais.
O início do século XX na cidade do Rio de Janeiro, foi um período permeado de
mudanças, conflitos e de um novo modo de ver e perceber a cidade. A nova cidade que se
apresentava aos moradores e visitantes mostrava uma cidade mais europeizada paralelamente
as colunas de comportamento e capas sugeriram uma mudança comportamental. A moda e a
indumentária, portanto, não são apenas meios pelos os quais os grupos sociais se constituem
mas comunicam suas identidades.
Fica evidente na capa da publicação a intenção de mostrar uma atitude ousada para a época,
demostrando os movimentos sociais para a emancipação da mulher e o direito ao voto que
estavam ocorrendo no período referido. Pois sair numa capa com um traje tipicamente masculino
com cabelos presos eram, pois, um elemento representativo do desejo de emancipação no início
do século passado em uma publicação tradicional, demostra nitidamente o desejo pela
emancipação e da liberdade social e cultural para uma cidade moderna e cosmopolita para os
padrões vigentes da época.

 
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Pois nos dias de hoje o trabalho é visto como um meio de socialização e um caminho
para a efetiva emancipação da mulher. Mas no início do século passado, esta realidade era
distinta, mulheres de classes pobres e imigrantes integravam a força de trabalhos nas fabricas,
mas raras eram as vezes que tais imagens apareciam nas publicações. Mesmo a fotografia de
uma mulher independente da elite, eram também muito raras; o principal determinante para a
pouca representatividade do trabalho era que a expectativa de emancipação da mulher
esbarrava na herança do passado colonial e patriarcal. Como tradicionalmente, o lugar da
mulher continuava sendo o lar, os afazeres sociais, o trabalho estava abaixo do dito “normal”
para a mulher. Hahner (2003) alega que isto foi reforçado pelo código civil de 1916, que ainda
reduziu a inserção das mulheres nas fabricas, pois legalmente era necessário ter a autorização
do marido às mulheres casadas que desejavam trabalhar fora. Quanto a mulheres da elite, as
mesmas estiveram mais subordinadas do que as dos setores populares. Devido a posição
econômica que ocupavam, a mesma lhe davam privilégios de usufruir as novidades dos tempos
modernos, que em contrapartida, eram economicamente tolhidas no espaço e experiência das
mulheres da camada social desfavorecida. Dentro desse discurso comum na época,
procuramos tirar partido dos conceitos abordados da valorização feminina e os movimentos que
permearam o início do século passado, onde a mulher tentou se livras das amarras da cultura e
do ser tradicional.
A moda teve sua parcela de contribuição tanto na cultura feminina de opressão quanto na
libertação da mulher, hora ela funcionava como uma forma modeladora da mulher perfeita hora
funcionava como um princípio libertador que a masculinizava e tornava apta para competir com o
homem no mercado de trabalho.
Devemos lembrar que em tal publicação, havia um público a atingir, tendo um papel
especifico difundindo uma ideia de padrão comportamental no imaginário coletivo destinado à
sociedade vigente, que reconhece e entende as suas mensagens. Desta formam percebe-se a
importância da capa em questão para quebra de determinados tabus vigentes na época e de um
modo de ser aceitável para as mulheres, ao mesmo tempo, que a revista e coluna de
comportamento descreveram um novo tipo de comportamento mais adequado com seu tempo,
essas mesmas colunas sugeririam a manutenção de um modo de ser tradicional, segundo eles
próprios, já antiquado. Na verdade, o que muda e o que é importante neste momento é a
imagem dessa nova mulher empoderada e social.

Referências.
Livros:

 
ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 297
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São Paulo. Companhia das Letras, 1998.

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Teses ou Dissertações.

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Revistas ou Periódicos

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O Jornal das Moças, revista semanal ilustrada, Rio de Janeiro, Editora Jornal das Moças Ltda. O
Jornal das Moças, 1914-1965.

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3. Jornal das Moças. Ano IV. (Numero. 125. Pagina 14 Ano.1917)

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PINHEIRO, Manoel Carlos, JR. Renato Fialho. Pereira Passos Vida e Obra – Instituto municipal
doe urbanismo Pereira Passos. IPP/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Nº 20060802.
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Gestor Responsável: Assessoria de Imprensa e Comunicação Social. Disponível em:


http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2013/Marco/ha-80-anos-mulheres-conquistaram-o-
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SUPPIA, Alfredo e SCARABELLO, Marilia. Minérios/Mineração. Revista pré.univesp. São Paulo:
UVSP, nº 54. Fev2016. Disponível em: http://pre.univesp.br/as-reformas-do-rio-de-janeiro-no-
inicio-do-seculo-xx#.VtQ9pvkrLIUreito-de-votar-e-ser-votadas. Acesso 23 fev 2016.  

 
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Maio 2016

A RELAÇÃO HISTÓRICA ENTRE A MARCA DE LUXO DIOR E A ATRIZ MARLENE


DIETRICH NO CINEMA

The Historic Relationship Between The Dior Luxury Brand And The Actress Marlene Dietrich In
The Movies

Isaac Matheus Santos Batista (Universidade Federal de Pernambuco)


Amilcar Almeida Bezerra (Universidade Federal de Pernambuco)
isaacmsbatista@gmail.com; amilcar.bezerra@gmail.com

Resumo: Instância de criação e disseminação de valores que conformam o imaginário e práticas


sociais, o cinema têm sido veículo para divulgação massiva de marcas e produtos. Aqui,
abordamos a relação entre a estrela europeia Marlene Dietrich e a marca de luxo Dior em
narrativas fílmicas, por meio de uma metodologia semiótica de matriz barthesiana. Entendemos
que a marca continuamente explorou uma imagem de glamour e poder associada a atriz,
reiterando sua própria identidade de marca e ajudando a moldar a persona da estrela.

Palavras-chaves: Cinema, Figurino, Marlene Dietrich, Dior.

Abstract: Instance for creation and propagation of values that conform the imaginary and social
practices, the Cinema have been a vehicle for massive divulgation of brands and products. Here,
we approach the relationship between the european star Marlene Dietrich and the Dior brand in
filmic narratives, through a semiotic methodology of a barthesian matrix. We understand that the
brand continually explored an image of glamour and power associated to the actress, reiterating
its own brand speech and helping to build the star’s persona.

Keywords: Cinema, Costume Design, Marlene Dietrich, Dior.

Introdução

Inaugurada no período pós-Segunda Guerra Mundial, em 1946, a marca de luxo


francesa Dior consagrou-se através de uma estética de moda que ficou mundialmente conhecida
como New Look, a qual foi lançada na primeira coleção da companhia, em fevereiro de 1947.
Esse novo padrão estético remontava ao vestuário usado pelas mulheres durante o Antigo
Regime na França, de modo que a marca rompeu com a moda dos tempos de guerra ao renovar
o luxo e certa feminilidade delicada e ociosa. (BAUDOT, 1999. MARTIN, 1998).

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Desde seu início, a Maison soube aproveitar o poder dos meios de comunicação de
massa, aparecendo fortemente em mídias impressas e audiovisuais, as quais disseminaram
amplamente os produtos da marca, fazendo com que a cintura marcada e a saia ampla do New
Look fossem adotadas por várias camadas sociais, das altas às baixas, e em vários países do
Ocidente, tornando-se um símbolo da feminilidade dos anos 1950 (SINCLAIR, 2012).
No cinema, a Dior vestiu atrizes com roupas que, várias vezes, não eram construídas
especialmente para os filmes, mas se tratavam de peças das coleções das estações correntes,
as quais seguiam as linhas estéticas dos demais produtos que eram vendidos nas lojas da
empresa. Essas peças eram escolhidas conforme as necessidades da narrativa, mas também,
muitas vezes, em função do gosto pessoal das atrizes que, ao final da produção, costumavam
ficar com os vestidos para si (HANOVER, 2012).
Diante disso, visamos compreender como a Dior constrói seu discurso de marca através
da criação de figurinos que são endossados, em narrativas fílmicas, pela diva alemã Marlene
Dietrich, uma das atrizes que mais vestiu Dior em produções cinematográficas. Faremos isso ao
observar como o filme, a estrela e a marca de moda são mutualmente influenciados por meio de
interações simbólicas durante as cenas.
Para tal, resgatamos três filmes das décadas de 1950 e 1960, época em que a Dior
dominou a área da Alta-Costura, com os quais, segundo Hanover (2012), a maison associou-se
para vestir a atriz em cena. São eles: Stage Fright (1950), No Highway In The Sky (1951) e Paris
When It Sizzles (1964). A partir disso, fez-se um levantamento do contexto social e histórico do
lançamento das produções, assim como analisou-se a imagem pública construída em torno da
atriz e as estéticas de moda lançadas pela Dior e recorrentes nos filmes observados.
Analisou-se todas as aparições da atriz nos filmes citados, portanto, as cenas aqui
apresentadas são uma amostra de algo mais amplo cujo espaço não permite exibir, mas é,
todavia, levado em consideração no trabalho.
Para estudar as cenas, utilizou-se o método de análise semiótica para imagens paradas
(PENN, 2002), ao se descrever os elementos que constituem o objeto de estudo, para só então
inferir conotações a partir desses elementos cotejados com os significados que estruturam a
narrativa e com o contexto histórico que permeia a obra.
Para dirigir o olhar aos significantes, utilizamos os critérios de análise de figurino, ao
dissecarmos o traje segundo a forma, cor, material, composição da roupa e gestual do usuário
(MACIEL, MIRANDA, 2009). Além disso, empregou-se as ferramentas de análise fílmica
(JULLIER, MARIE, 2012), ao observarmos os planos, pontos de vista, movimentos de câmera,
luzes e cores, combinações audiovisuais, cenário e a própria história que é contada no filme.

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Memória, Cinema e Consumo

Nas sociedades modernas, devido à informatização e tecnicização, a máquina tem


passado a ser uma extensão da memória humana, alargando-a. Nessa nova configuração, o
Cinema se torna uma moderna memória artificial, que pode falar sobre uma determinada
sociedade de um determinado momento histórico (ALTMANN, 2004). Como afirma Soares
(2011):

Um filme pode ser o testemunho de histórias, rituais, modos de ser, vestir e viver de
um povo. Por esses motivos e outros mais, a preservação de filmes configura não
apenas na preservação da História e da Memória do Cinema, mas também da
História no Cinema e a Memória da sociedade na qual ele se insere e se inspira.
(SOARES, 2011, p. 13).

Contudo, o Cinema não apresenta apenas uma cópia literal de um passado, pois ele
não pode apreender a realidade tal como ela é, mas, na medida em que se impõe como
representação de um real que, na verdade, é um ponto de vista específico sobre o real, se torna
agente da história, expondo-a, criando-a e recriando-a (ALMEIDA, 1999. ALTMANN, 2004).
Por ser indicador de memória, o Cinema se torna perpetuador de heranças culturais,
constituindo-se como patrimônio cultural imaterial, “pois, além do fato de seu material ser
literalmente imaterial, o conteúdo da arte cinematográfica enfatiza seus aspectos mais ideais e
valorativos” (ALTMANN, 2004).
Entretanto, segundo Linke (2013):

Para que o patrimônio imaterial se expresse, é necessária a presença de uma


materialidade. Isso é fundamental para que as diversas falas que compõem a prática
cultural possam ser transmitidas, para que a celebração se faça presente, pois os
objetos auxiliam no processo de significação das mesmas. (LINKE, 2013).

Assim, entendemos que os aspectos “materiais” que vão dar sustento para a significação
das práticas culturais dizem respeito, no Cinema, à própria linguagem audiovisual, que é uma
linguagem da realidade. Formas, cores, texturas, figurinos, gestos, imagens do real carregados
de ideologia, pois “toda escolha estética é uma escolha política” (AMEILDA, 1999, p. 36).
Estética que vai dar ao Cinema uma configuração de documento, onde a memória se vincula e

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se expressa através da linguagem cinematográfica. Sons e imagens do real em movimento que


compõem um arsenal simbólico que testemunha, a partir de uma determinada visão de mundo,
sobre um “passado” que é rememorado quando da apresentação do filme. (SOARES, 2011).
Dentre esse universo simbólico, o vestuário tem um lugar muito importante, pois está
presente nas mais diversas manifestações culturais, com uma função muito além da simples
cobertura do corpo. O vestuário serve como materialização da cultura, comunicando valores e
crenças, “produzindo e reproduzindo os grupos sociais” (BARNARD, 2003, p. 64).
No cinema, o vestuário vai aparecer em forma de figurino, auxiliando na construção
simbólica das cenas, ao comunicar o tempo/espaço em que se desenrola a narrativa fílmica,
além de contribuir para a construção das identidades dos personagens. (COSTA, 2002).
O figurino dá significado ao filme, porém, ao mesmo tempo, recebe significação através
do contexto em que se insere durante o desenrolar dos acontecimentos, é aqui onde o
personagem que porta o traje de cena tem grande relevância.
Conforme afirma Almeida (1999), no momento em que o ator age na imagem da tela de
cinema, ele dá um exemplo de como se deve agir no mundo real. Suas práticas se tornam então
modelos de comportamento a serem rejeitados ou aceitos e apropriados pelo público. Desse
modo, o figurino passa a fazer parte da performance do ator, adquirindo ele mesmo uma
performance, uma identidade.
A persona da celebridade contratada para a atuação também contribuirá na criação da
identidade do personagem, comumente ambas se assemelhando. A persona, ou imagem pública
das celebridades, se organiza por meio da produção que cria a aparência e aparições das
estrelas, e através da assimilação e modificação dessa imagem pelas mídias e pelo público. Tais
representações, mitificadas em astros pop, servirão como modelos de ser e estar na sociedade,
auxiliando no modo como os grupos sociais compreendem a si mesmos e aos outros. (ROJEK,
2008. MORIN, 1997).
Visto que a produção fílmica demanda a mobilização de grande volume de recursos para
sua criação, é comum que seja comercializada massivamente para gerar o máximo de lucro.
Isso faz com que o mundo simbólico apresentado no cinema, por vezes, passe a fazer parte do
mundo real das pessoas, quando estas adotam práticas, assimilam ideias e adquirem objetos
disseminados por esse meio. (MORIN, 1997)
Isso torna o cinema alvo de empresas que buscam propagar suas marcas de modo
abrangente, visando transmitir ao grande público valores simbólicos associados aos seus
produtos. Para isso, utilizam o endosso da celebridade inserida no filme, partindo “do princípio de
que o reconhecimento público da celebridade [...] pode ser transferido para o bem de consumo

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num comercial ou anúncio” (ROJEK, 2008, p.101), de modo que as pessoas comprarão a marca
ao se identificarem ou se projetarem na pessoa que a promove.
Assim, através dos sons e imagens agentes e em movimento do Cinema, visamos
compreender a memória que a Dior tenta construir em torno de sua marca nos filmes,
observando como seus produtos são inseridos na narrativa fílmica, tanto por meio da
performance da atriz em questão, quanto da interação com os demais elementos das cenas.

Marlene Dietrich: uma deusa europeia

Marlene Dietrich, nome artístico de Marie Magdalene Dietrich, nasceu em Berlim,


Alemanha, em 1901, iniciando sua carreira nacional como atriz em 1923. Entretanto, foi o filme
intitulado Anjo Azul (1929) o primeiro a estereotipá-la internacionalmente como sex symbol à
moda das femmes fatales, consolidando-a, assim, como representação de uma mulher
dominadora e persuasiva, com um poder de sedução feminino que hipnotiza e leva à perdição os
homens que por ela se apaixonam (BACH, 1992. SAVINO, 2014).
O grande sucesso desse filme, levou a indústria cinematográfica norte-americana a
contratá-la para atuações em papéis principais, os quais garantiram sua fama mundial. Devido
as produções bem-sucedidas que seguiram, ela se tornou a atriz mais bem paga do mundo, no
seu tempo. Isso lhe permitiu uma vida regada a luxo, tornando-a conhecida “como um ícone do
glamour” (BACH, 1992, p.310, tradução nossa).
Antes mesmo da parceria no Cinema, Marlene Dietrich e Christian Dior mantinham uma
relação próxima de amizade. Além disso, Dietrich era uma cliente assídua, marcando presença
constantemente na plateia dos desfiles da Maison. Ela foi, inclusive, escolhida como modelo
para a apresentação da coleção alta-costura do outono-inverno de 1947 da marca, tendo suas
fotos publicadas na edição de dezembro do mesmo ano da revista Vogue Americana. Dietrich foi
também uma das convidadas de honra à inauguração da boutique Dior na Quinta Avenida, em
Nova York, em meados de 1948, evento ao qual compareceu vestida a caráter (em Dior)
(COSGRAVE, 2007. HANOVER, 2012).
A experiência de Dietrich na atuação em grandes películas, principalmente na década de
1930, lhe rendeu um olhar acurado para a produção fílmica. Ela costumava se envolver dando
opiniões e fazendo exigências. Um exemplo disso é a sua famosa frase, “No Dior, no Dietrich”,
imposta a Hitchcock, a qual lhe renderia não só o traje de cena de Stage Fright (1950) assinado
pela marca de seu amigo, como lhe garantiria, por contrato, que as peças utilizadas no filme
fariam parte de suas posses ao final das gravações. (COSGRAVE, 2007. HANOVER, 2012).

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A associação entre Dietrich e Dior deu novo impulso à carreira da atriz, projetando
novamente sua imagem pública, cuja aparição vinha sendo cada vez menos frequente nos anos
pós-Segunda Guerra Mundial (HANOVER, 2012).

Stage Fright (1950)

O filme Stage Fright (1950), passa-se na Inglaterra, e conta a história de Eve (Jane
Wyman), uma atriz iniciante que decide ajudar Jonathan (Richard Todd), um jovem suspeito de
matar o marido de Charlotte (Marlene Dietrich), uma afamada atriz que é sua amante, a qual Eve
tenta provar ser a criminosa, fingindo ser uma empregada e indo trabalhar para ela para melhor
poder investiga-la. Charlotte é a mandante do crime realizado por Jonathan, que o cometeu por
estar cego de amor. Aqui, percebemos que a imagem de Dietrich como uma femme fatale
coopera na construção da personagem Charlotte, a qual leva à desgraça seu amante.
No primeiro encontro entre as protagonistas (Figura 1), Eve entra no luxuoso quarto de
Charlotte, usando uma camisa de gola bebê, conotando ingenuidade, pois é enganada pelo
verdadeiro assassino; feito de algodão, mostra que ela vem de uma classe econômica baixa.
Seu tailleur possui ombreiras largas, sugerindo uma imagem masculina de labor e austeridade.
Por sua vez, Charlotte porta um vestido de cintura marcada, conotando ócio, ao
relacionar-se ao uso de espartilhos, os quais prejudicam a mobilidade, explicitando a falta de
necessidade de trabalhar. Sobre sua cabeça há um attifet anexado a um véu de musseline,
objeto conhecido como “chapéu da viúva”, pois a rainha da França, Catherine de Médici, passou
a utilizá-lo em preto, depois da morte de seu marido, em 1559 (NORRIS, 1997), de modo que o
seu uso, na cena, coopera na percepção de Dietrich como uma viúva glamorosa e poderosa,
visto que ao seu marido morrer ela, que já era rica, herda todos os bens do esposo.

Figura 1. Print Screen do Filme Stage Frigth. Primeiro encontro entre Eve e Charlotte.

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Detetives chegam à residência de Charlotte para interrogá-la. Ela manda-os entrar,


colocando um negligée de seda e deitando-se sobre um divã, esnobe e tranquila. O negligée
possui rufos de renda, que evocam um sentido de nobreza e majestade, pois a própria rainha
Elizabeth I, para demonstrar imponência, “vestia seu rufo mais alto, mais largo e mais rígido do
que o de qualquer outro na Europa” (NORRIS, 1997, p. 623, tradução nossa).
Sua roupa é preta, conotando luto. O tom é o mesmo dos ternos dos detetives, a
colocando em um nível de poder igual ao deles e superior aos restantes, os quais usam roupas
em tons claros ou médios, pois, ali, ela é a única a saber de toda a verdade, e saber, nesse
caso, é poder (Figura 2).

Figura 2. Cena do filme Stage Frigth. Charlotte usa um negligée. (Fonte: The Alfred Hitchcok Wiki1)

Desse modo, percebemos rapidamente o alto status social de Charlotte, assim como sua
imponência sobre os demais personagens, os quais estão sob sua ordem e controle. Charlotte é
glamorosa, altiva, dominante e poderosa, sentidos reforçados pelo vestuário criado pela Dior.
Durante outra cena, Eve está nos bastidores de um teatro organizando os pertences de
Charlotte. Eve veste um jaleco com mangas dobradas que conota labor, afirma sua sujeição ao
poder da patroa, Charlotte, além de deixar seu corpo retangular retirando-lhe o sentido de
sedução. A gola bebê de sua camisa sugere ingenuidade.
No palco, Charlotte desce uma escada com colunas neoclássicas nas laterais, enquanto
estende suas mãos para rapazes em fraque, traje de gala. Seu vestido tem decote tomara-que-
caia, cintura marcada e saia ampla, expressa luxo e delicadeza, além de sensualidade. Bordado
em madrepérola, material caro, percebemos que ela faz parte da alta-sociedade (Figura 3).
                                                                                                                       
1 Disponível em <http://the.hitchcock.zone/wiki/Hitchcock_Gallery:_Marlene_Dietrich>. Acesso em 31/03/2016.

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Essa cena alude ao estilo de vida aristocrático dos séculos XVII e XVIII, o qual se
mitificou como símbolo de luxo e imponência. Nessa época, havia uso da arquitetura pelos
nobres para consolidar uma noção de superioridade quase divina na mente dos súditos, por
meio de elementos como grandes colunas e escadarias, ouro e jardins (GOMBRICH, 2012). Tais
simbologias são evocadas na cena a partir da utilização de elementos semelhantes, com os
quais Charlotte interage.

Figura 3. Print Screen do Filme Stage Fright. Charlotte desce uma escadaria durante uma apresentação teatral.

A imagem da mulher cortejada por cavalheiros também reflete uma simbologia


associada à nobreza. Um exemplo é este desenho (Figura 4) que retrata a rainha Maria
Antonieta, expoente máximo do luxo da corte francesa. Nessa obra do século XVIII, ela é
mostrada em uma carruagem de ouro, acompanhada por vários dignitários bem vestidos. Os
homens em traje de gala que disputam a atenção da personagem reproduzem o mito da nobreza
e suas conotações de glamour e superioridade social.

Figura 4. Chegada de Maria Antonieta à França. (WEBER, 2008, p. 164)

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Charlotte troca de roupa e volta ao palco. Espreguiça-se, deita-se sobre divãs e canta
sobre sua falta de necessidade de trabalhar e esnobação para com os amantes. (Figura 5).
Usa um négligée com plumas, que conota ócio, sobre um vestido de cintura marcada
que reforça o sentido da inatividade, ao remeter aos espartilhos que impedem movimentos
necessários para trabalhos manuais. Colar de diamantes e vestido de musselina expressam luxo
e sofisticação.

Figura 5. Print Screen de Stage Fright. Charlotte canta a música Laziest Girl in Town em uma apresentação teatral.

O ócio, tão presente na vida cortês, surge na canção Laziest Girl In Town2, adensando
os significados já expressos no figurino e na performance da atriz. Por volta do século XVIII
várias pinturas retratavam os nobres vestidos luxuosamente e descansando ao ar livre. Tais
quadros expressavam a ociosidade de uma classe social que não precisava se preocupar com
os imperativos burgueses do tempo, e cujo estilo de vida se mitificou como símbolo de luxo.

No Highway In The Sky (1951)

Theodore Honey (James Stewart), um engenheiro aeronáutico, desconfia que o avião


em que está tem grande probabilidade de cair. Ele decide avisar à Monica Teasdale (Marlene

                                                                                                                       
2 Música Laziest Girl In Town, escrita por Cole Porter e lançada em 1927: “Nada me preocupa / Ninguém me faz ter
pressa / Eu me divirto com o prazer / Mesmo quando não posso / Mas sempre que eu os beijo, eles querem mais / E
querendo mais se tornam chatos / Não vale a pena todo o esforço / Então eu lhes digo: não é que eu não faria /
Não é que eu não deva / Deus sabe / Não é que eu não possa / É simplesmente porque eu sou a garota mais
preguiçosa da cidade / Embora eu esteja mais do que disposta a aprender / Como essas garotas obtêm dinheiro
para torrar / Todas as propostas eu recuso / Recuso mesmo / Não é que eu não faria / Não é que eu não deva /
Deus sabe / Não é que eu não possa / É simplesmente porque eu sou a garota mais preguiçosa da cidade /
Meu pobre coração sofre / Para trazer comida para casa / E se caso eu venha ficar sozinha e esquecida / É
simplesmente porque eu sou a garota mais preguiçosa da cidade” (SHERRIN, 2008, p. 353, tradução nossa)

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Dietrich), uma famosa estrela de cinema inglesa que trabalha em Hollywood, que se acomode
em uma parte específica do avião, a qual poderia salvá-la quando ocorresse o acidente. O avião
não cai e, depois do pouso, Monica, juntamente com a aeromoça Marjorie (Glynis Johns), tenta
livrar Theodore da prisão, após ele quebrar o avião para que não pudesse voar e vir a cair.
O reconhecimento de Dietrich como uma glamorosa celebridade cinematográfica
contribuiu para a construção de uma atmosfera mais real na trama. Seu papel de uma grande
atriz de cinema está associado à sua própria imagem pública, como se Marlene interpretasse a
si própria. “No filme [...] Marlene basicamente interpreta ela mesma. ‘Você não tem ideia de
como é viver um personagem parecido com você’, ela disse. ‘Você fica sem poder se apoiar em
mais ninguém” (CHANDLER, 2011, p. 177, tradução nossa).
Em uma das cenas, Monica Teasdale vai à casa de Theodore entregar um presente à
sua filha. Ela vai à cozinha onde fica admirada, pois vê que Marjorie está ajudando Theodore ao
fazer os serviços domésticos. (Figura 6).

Figura 6. Print Screen do filme No Highway in the Sky. Monica conversa com Marjorie na cozinha.

Marjorie conversa com Monica enquanto passa roupas sobre um balcão. Ela usa um
vestido de altura até a metade da panturrilha, sobre o qual há um avental, o que conota trabalho
manual e submissão, o seu tecido, algodão, demonstra que ela não tem grande poder aquisitivo.
Sobre a composição, há um cardigã, o qual remete à simplicidade e praticidade, visto que surgiu
como uma rejeição à estética de moda restritiva da Belle Époque, e foi inspirado nos trajes
esportivos (MENDES, 2009).
O colarinho fechado de seu vestido expressa humildade, recato. Sobre sua cabeça há
um chapéu de enfermeira, o que traz à mente os serviços de enfermaria que as mulheres

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ofereceram durante a Segunda Guerra Mundial (VEILLON, 2004), de modo que a Dior constrói
sua identidade de marca na cena a partir de uma contraposição à imagem da mulher dos tempos
da guerra. A composição está totalmente em tons claros, os quais se confundem com os tons da
cozinha em que ela está, adensando os sentidos de domesticidade e austeridade à roupa.
Monica, por sua vez, enverga um vestido cuja cintura é bastante marcada, o que remete
aos espartilhos, mostrando que ela não necessita fazer trabalhos pesados, visto que eles
impedem alguns movimentos do corpo, o que constrói um sentido de ócio e delicadeza.
A saia do seu vestido é rodada, excessiva em tecido, transmitindo ostentação. Ao entrar
na casa de Theodore, ela retira dos ombros um manto feito de pele de vison, material muito caro
e símbolo de luxo e glamour femininos, sentido que são reforçados pelos brincos e o colar de
diamantes que utiliza. Ela desfruta uma xícara de café enquanto conversa com Marjorie e
posteriormente acende um cigarro, ato considerado sofisticado na época que a obra foi filmada.
A cor escura da composição do vestuário de Monica a coloca numa posição de poder
superior à Marjorie, que está vestida em tons claros. Esse fato é confirmado pelo destino das
duas. Enquanto Marjorie decide ficar com Theodore e servir como mãe e dona-de-casa, Monica
afirma que vai à Hollywood continuar com suas filmagens, o que reforça a noção de glamour e
superioridade social.

Paris When It Sizzles (1964)

Richard (William Holden) é um roteirista contratado para escrever um filme, o qual,


passados cinco meses, ele não havia sequer iniciado. Com a ajuda de Gabrielle (Audrey
Hepburn), tentará fazer o roteiro de 138 páginas em dois dias.
Richard tenta imaginar um bom início para a obra, que se passará em Paris. Sugere que
a primeira cena mostre a Torre Eiffel, mas sente-se mal com o resultado e a substitui pela
filmagem do Sacre Coeur, e depois pelo Grand Palais, ambos símbolos de Paris e possuidores
de arquitetura grandiosa. Permanecendo insatisfeito com a cena, afirma que é necessário dar ao
público o gosto e o cheiro da verdadeira Paris e, então, há um plano detalhe sobre o nome
Christian Dior estampado na entrada da boutique (Figura 7). Assim, a Maison é tida como
símbolo máximo da França, resgatando o histórico aristocrático e artístico do país, o qual é
bastante conhecido como símbolo de elegância, luxo e bom gosto.
Portanto, a Dior vende seus produtos como materializações da própria cultura francesa,
fator importante para conquistar os consumidores estrangeiros. Os Estados Unidos, por

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exemplo, apesar de não terem um histórico aristocrático, eram o principal país para a qual a Dior
exportava, explorando o desejo americano por um mundo de glamour e luxo (HANOVER, 2012).

Figura 7. Print Screen do filme Paris When It Sizzles. Entrada da boutique Christian Dior.

Ele informa que, de um Bentley, marca europeia de carros de luxo, deveria sair uma atriz
clássica e glamorosa. Revela-se, então, Dietrich, vestindo um conjunto branco, cor que expressa
status social elevado, pois ao mantê-lo alvo, evidencia-se que o portador não necessita fazer
trabalhos pesados que sujariam a roupa. Isso é reforçado pela cintura marcada que remete aos
espartilhos. A cor é semelhante à do carro e da loja, formando um conjunto, expondo que os três
possuem significados semelhantes, como glamour, classicismo e “europeidade” (Figura 8).
Luvas brancas expressam uma investidura de poder, ao se relacionarem com as luvas
que eram abençoadas durante as coroações dos reis franceses, assim como é símbolo de
elegância feminina (BECK, 1969). Tal proposição é confirmada quando Richard informa que a
atriz deveria entrar como uma majestade na boutique Dior.

Figura 8. Print Screen do filme Paris When It Sizzles. Dietrich deixa um carro Bentley e se dirige à Maison Dior.

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Conclusões

Diante do exposto, percebe-se que Dietrich usa roupas Dior apenas quando representa
mulheres europeias de alto nível social, como grandes atrizes francesas e inglesas, as quais são
ricas e glamorosas, representadas como estando no controle das situações que se desenrolam e
no controle dos demais personagens, de modo a disseminar uma simbologia de luxo,
“europeidade” e poder social associada a marca.
Por outro lado, as peças da Maison vão contribuir para reiterar a imagem dos
personagens e a persona de Dietrich como uma mulher majestosa e de índole dominadora, a
partir de referências à um estilo de vida cortês perceptível pela estética do figurino. Não somente
isso, mas o simples nome da marca se direciona ao mesmo propósito, pois a Dior está
intimamente associada à renovação do luxo por meio de características ligadas não apenas ao
vestuário, mas aos valores e à cultura do Antigo Regime na França, os quais tem reiterado até
hoje por meio de suas campanhas publicitárias.
Assim, através da parceria Dior e Dietrich no cinema, a empresa poderia ser
amplamente reconhecida por essas conotações, de modo que as mulheres poderiam adotar
roupas da marca para construírem suas próprias identidades, no mundo real, sendo atraídas
pelo que supostamente seria um anseio por um mundo de glamour e luxo.

Referências

Livros
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BACH, S. Marlene Dietrich: life and legend. London: University of Minessota Press, 1992.

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STAGE fright. Direção: Alfred Hitchcock. England: Warners Bros. 1950. [DVD]

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Maio 2016

Produção de moda como identidade visual para uma marca


Fashion image and styling as visual identity for a brand

Nathali R. de Lima Freitas (Faculdade de Tecnologia SENAI Curitiba)


nathalirenata@hotmail.com
Daniele M. Lugli (Faculdade de Tecnologia SENAI Curitiba)
daniele.lugli@pr.senai.br

Resumo
O artigo apresenta ferramentas da produção e da fotografia de moda e investiga seu papel na
construção da imagem de uma nova marca. Para isso, foi realizada uma pesquisa-ação que
resultou na produção de um editorial para uma marca curitibana de lingerie. Constatou-se que,
em comparação às imagens anteriores da marca, que não contaram com a aplicação das
ferramentas de produção, a nova produção fotográfica comunicou de maneira mais efetiva os
valores e os diferenciais dessa marca de moda.

Palavras-chave: produção de moda; imagem de moda; fotografia de moda.

Abstract
This paper presents tools of fashion photography and styling and investigates their role in the
making of the visual identity of a new brand. In order to achieve it, an action research was
performed and resulted in a custom made editorial for a lingerie brand from Curitiba, Brazil. It was
possible to find that, in comparison to the previous images that did not use the fashion image and
styling tools, the new photography work communicated more effectively the values and identity of
this fashion brand.

Keywords: fashion styling; fashion image; fashion photography.

1. Introdução
A construção de uma imagem de moda de qualidade vai além de peças bonitas ou uma boa
câmera. Cria-se uma ambientação, um clima para o desenvolvimento da imagem desejada, que
transmita emoção, provoque desejo e chame a atenção. Essa função é designada à produção de
moda, que diz respeito à composição de elementos diversos para construção de imagens com
valor estético e também simbólico. Dessa forma, o presente artigo trata da produção de moda e
seu passo-a--passo, da fotografia de moda como ferramenta de promoção, e da relação entre
marca e consumidor. Também se relata o processo de produção de moda para fotografia de um

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editorial para uma marca curitibana, com foco na construção da imagem e na comunicação dos
valores dessa nova marca. Assim, foi possível observar de que forma as ferramentas da
produção e da fotografia de moda puderam ser aplicadas no desenvolvimento de imagens que
apresentam valores estéticos e simbólicos alinhados à proposta de posicionamento da marca.

2. Marca e imagem
Segundo Martins (2007), o cliente relaciona o processo de compra às suas necessidades e
desejos pessoais. A imagem tem como função despertar a preferência que esta no inconsciente
coletivo de cada um. Assim a preferência pela marca esta diretamente associada a
necessidades objetivas, psicológicas e sentimento ligado ao imaginário de cada pessoa.
Considerando-se que a moda “é uma linguagem não verbal com significado de diferenciação
[que] instiga novas formas de pensar e agir” (MORAES, 2008, p. 1), as imagens de moda
tornam-se essenciais para a conexão entre as marcas e esse imaginário de seu consumidor.
O mercado da moda é motivado pelo visual: conceitos, estilos e apresentações de estéticas
subjetivas. Sem a apresentação visual e a edição criativa e de estilo, looks e tendências
tornam-se apenas roupas. Há ainda o desejo de se dizer algo sobre nós mesmos pela forma
como escolhemos nossas roupas e como vestimos (MOORE, 2013). Assim, as marcas procuram
moldar e desenvolver com cuidado o aspecto visual de seus produtos, fazendo com que seus
clientes sintam-se especiais e únicos. Ter uma visão clara e compreender o que a imagem da
marca transmite é um grande acerto tanto para uma marca como para a coleção. Em alguns
momentos, a forma como é comunicada uma coleção é mais impactante do que a coleção em si.
A peça de roupa deixa criar-se um centro em volta do espetáculo, e vira um complemento de um
objetivo maior, a divulgação de imagem por um ou vários conceitos (RONCOLETTA, 2008).
Com o passar do tempo e com a evolução da comunicação, percebe-se uma grande mudança
no foco e linguagem da imagem de moda. No começo, predominava a ideia da informação dos
atributos e dos benefícios oferecidos pelo produto ou marca, com relação a material, preços e
outros fatores. Aos poucos a imagem foi simplificada, ilustrações foram substituídas por
fotografias ou textos menores, ao passo que, muitas vezes, apenas a imagem é veiculada.
Dessa forma, torna-se necessário que elas sejam expressivas e capazes de transmitir
mensagens além do que se vê, fazendo o leitor de algum modo refletir. “A imagem é responsável
por atrair o consumidor e manter o elo de comunicação com ele, o segredo está no uso
estratégico da emoção, que levará as pessoas á decisão de compra” (TESSER apud FAÇANHA;
MESQUITA, 2012, p. 209).

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3. Fotografia de moda
Conforme Souza e Custódio (2005), a fotografia se consolidou no século XX como uma forma de
documentação com valor histórico inquestionável, e foi popularizada pela imprensa como um
veículo de informação, dado seu caráter realista e objetivo. No caso da fotografia de moda, sua
história está ligada diretamente à das revistas especializadas.
Segundo Bezerra (2013), as primeiras fotografias de moda valorizavam o vestuário, promovendo
apenas os produtos a serem vendidos. A estética era pouco valorizada, pois objetivo era exibir a
peça para o consumo e não a ideia do estilista. Com o passar do tempo, a fotografia evoluiu
junto ao seu público consumidor, adequando-se cada vez mais ao novo sistema de consumo.
Com a facilidade de acesso à informação, o consumidor passa a ficar cada vez mais exigente,
desenvolvendo assim um novo olhar sobre as imagens.
Diante de uma fotografia de moda pode se experimentar uma variedade de comportamentos, ou
pelo menos a imaginá-los e desejá-los, porque a imagem propõe uma espécie de protótipo de
vida, uma experiência de estilos e de modos de ser. Assim, mesmo que de forma virtual, a moda
vive na fotografia (MARRA; AMBROSIO, 2008). Sendo assim, a fotografia de moda assume
características distintas de outras áreas, criando universos cheios de significados e sentimentos
dentro de uma única imagem. Nela formas, cores e expressões unem-se e constroem cenários
inimagináveis, pois quanto maior a relação emocional com o produto, mais forte será a atração
do consumidor (BEZERRA, 2013).
A fotografia é um dos principais veículos de comunicação da moda e pode ser utilizada de
maneiras diferenciadas, tais como: fotografia de desfile; editorial de moda; campanhas
publicitárias; lookbook; e still-life. A fotografia de desfile é um trabalho técnico, pois trata
prioritariamente do registro documental do evento; cabe ao fotógrafo criar uma proximidade do
público com o modelo fotografado, sem a interferência de outros elementos. As fotografias para
editorial são aquelas que aparecem em revistas, assim sendo, sofrem variações devido à
particularidade da linha editorial de cada publicação; porém, a influência determinante vem dos
profissionais com poder de decisão no que diz respeito à produção das imagens relacionadas
diretamente com o conceito, pois é a partir desse conceito que a imagem editorial é construída.
Ela se assemelha à fotografia de campanha porque esta materializa a ficção criada para
personalizar as marcas, porém, é importante frisar que a propaganda de uma marca específica é
que determina a diferença entre essas fotografias; assim, no trabalho publicitário, é dada uma
tarefa já definida a ser feito para o profissional, ele recebe de agências publicitarias ou
diretamente do responsável pela imagem do produto ou marca (SOUZA; CUSTÓDIO, 2005).

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Já a fotografia para lookbook tem como principal objetivo vender a roupa, por isso, foca nas
peças e suas combinações possíveis, buscando diferentes ângulos como frente, lateral e costas,
bem como utilizando modelos humanos com poucos movimentos de braços e pernas.
Finalmente, a fotografia de produto still-life, normalmente utilizada em produtos para catálogos,
apresenta a roupa não-vestida e destaca detalhes específicos. Muitas marcas estão investindo
nesse tipo de fotografia, pois, segundo Mcassey e Buckley (2013) para seus catálogos,
comércios eletrônicos e revistas online, as marcas sempre precisam da especialidade e do bom
gosto de stylists para ajudar a exibir os produtos da melhor forma possível.

4. Produção e Styling de moda


O produtor de moda é o responsável pela aplicação das ideias para produções fotográficas e
desfiles. Ele é o profissional que busca elementos, modelos, roupas e acessórios para a
realização de fotografia, vídeos ou desfiles, visando alcançar o ideal de beleza preestabelecido
por uma pauta especifica. Conforme afirma Stoppe (2011), o produtor de moda tem como
objetivo administrar o desejo das marcas de projetar uma imagem final. A produção de moda é a
continuidade do trabalho do designer, viabilizando e idealizando com pesquisas para o meio de
comunicação, causando desejo de consumo, fechando assim o ciclo que a engrenagem da
moda funcionar.
Já o stylist é o profissional de moda responsável pela escolha do look e das roupas, para
comunicar uma ideia, tendência, tema de moda, ou para promover um produto de moda.
(MCASSEY; BUCLEY, 2013, p.6). “Um intérprete da moda - não é um designer, mas sim um
personagem responsável pela criação da imagem de moda que coordena a preparação dos
looks” (RONCOLLETA, 2008). Assim, cada vez mais os stylists se tornam os olhos e ouvidos dos
designers de moda para o mundo, a arma secreta que percorre as ruas em busca de matérias de
referência interessantes (BLASHARD, apud STOPPE, 2011).
É comum a confusão entre stylist e produtor de moda, pois ambas as profissões estão ligadas à
imagem de moda, porém, de formas diferentes. Conforme Mcassey e Bucley (2013), o stylist é o
profissional responsável pela escolha das peças e acessórios, é quem informa a ideia, tema ou
tendência. O produtor de moda é quem recebe as informações da produção em geral, ficando
responsável pela equipe, pela locação de roupas e cenário e contratação de serviços. Em muitos
trabalhos, devido a restrições de orçamento e até mesmo falta de conhecimento, o produtor
acaba fazendo o trabalho do stylist ao escolher e criar o look para produção.

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5. A produção para fotografia


Mcassey e Bucley (2013) afirmam que, para a construção de uma imagem de moda, deve-se
estar atualizado em relação a cada um dos componentes da imagem, por exemplo, inspiração e
desenvolvimento, locação, casting, etc para que a junção dos mesmos transmitam o clima e a
sensação desejada. Assim, o processo de produção depende de escolhas que levam à
construção da imagem completa.
Inicialmente, para o desenvolvimento de um conceito, é preciso ter inspirações e, a partir delas,
desenvolver ideias. As ferramentas mais usadas são scrapbooks ou painéis de inspirações,
gerados a partir de recortes de revistas, palavras, imagens desenhos, objetos e tecidos que
ilustrem um estado de espirito ou uma ideia para roupas, acessórios, cabelos, cenário, etc.
(MCASSEY; BUCKLEY, 2013). Também é necessário estar sempre conectado à moda e ao que
acontece no mundo, muita pesquisa, olhar imagens, coletar dados, aprender a observar, ter seu
próprio banco de imagens (BEZERRA, 2013).
No que diz respeito ao cenário, as produções fotográficas de moda podem ser realizadas em
diversos lugares, como, por exemplo, praças, paredes coloridas e estúdios. Nesse caso, a
narrativa é de grande importância entre outros, para determinar onde a foto deve ser feita
(FAÇANHA; MESQUITA, 2012). ‟A locação tem sua própria atmosfera e confere á imagem uma
referencia de sociedade, historia e geografia” (MCASSEY; BUCKLEY, 2013, p.124). É
necessário que a equipe esteja ciente do local de cenário escolhido, para poder assim preparar-
se sabendo tipo de material necessário para a realização de fotos e preparação com as peças e
modelos.
Em relação aos “personagens”, é necessário conhecer os modelos para determinar se eles têm
a atitude e energia certa, pois isso também permite que sejam tomadas decisões sobre sua
relevância para a narrativa (MCASSEY; BUCKLEY, 2013). Segundo Façanha e Mesquita (2012),
modelos, manequins, figurantes, atores, enfim, pessoas que aparecem na imagem de moda,
geralmente estão vinculadas a agências, estas mandam o composite ou book para ser feita uma
pré-seleção, ou até mesmo enviam os modelos para seleção pessoalmente, na qual será
avaliado de acordo com peso, pele, cabelo, ângulos do rosto, proporção do corpo e atitude.
Dependendo da proposta, opta-se por não modelos, pessoas comuns.
Definidos os conceitos principais, a produção fotográfica precisa de planejamento, para que
assim possa garantir que tudo corra bem, e obtenha-se maior proveito no dia das fotos. A equipe
é dividida de forma que cada um tenha sua função bem definida. Equipes normalmente são
formadas, no mínimo, por fotógrafo, stylist e maquiador. Em alguns trabalhos existe a solicitação
de vídeos de making of, tanto para registro quanto para gerar uma forma de publicidade em

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vídeo, assim, é contratada uma equipe de vídeo ou apenas um cinegrafista e editor de vídeo. É
essencial conhecer o trabalho dos profissionais envolvidos a partir de seu portfólio, pois cada um
irá imprimir seu estilo. Segundo Siegel (2008, p. 104), ‘’forme a melhor equipe criativa que puder,
pois as grandes fotos de moda são sempre fruto da colaboração de vários profissionais
inspirados e inovadores’’.

6. Desenvolvimento de uma produção


Como forma de verificar a aplicabilidade das ferramentas de produção de moda na construção
da imagem de uma marca, selecionou-se como objeto da pesquisa uma marca nova no mercado
curitibano, que ainda possuía pouco material de imagem e não costumava utilizar equipe de
produção profissional.

6.1. Briefing e planejamento


A Alcobas Underwear é uma marca ainda em construção, que teve início em 2015. A empresa
descreve-se como uma marca curitibana que produz peças de forma artesanal, em pequena
escala, e que visa principalmente a qualidade e o conforto aliado a elementos de estilo que
trazem design à lingerie. Um dos valores que guiam a criação é a valorização do corpo feminino,
independente do tamanho que se veste, e sem impor padrões.
A figura 1 apresenta a logo, desenvolvida pela própria criadora da marca, na qual ela optou por
demonstrar a sensualidade da mulher, sem explicitar vulgaridade, com certo toque de
delicadeza, que representaria o conceito da marca.

FIGURA 1 – LOGO DA MARCA ALCOBAS

FONTE: Alcobas Underwear (2015)

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Em termos de divulgação, a página da internet apresenta poucas imagens, de diferentes origens.


Há um editorial feito para a própria marca e outros dois ensaios independentes, nos quais a
marca apenas participou fornecendo as peças. A figura 2 é um destes ensaios, realizado com
intuito de gerar material para o portfolio da modelo, tendo como cenário um apartamento de alto
padrão no bairro Cabral em Curitiba, sem foco na marca e sem equipe de produção.

FIGURA 2 – EDITORIAL CAROLINA MERHY

FONTE: Alcobas Underwear (2015)

O outro ensaio é apresentado na figura 3. O trabalho foi desenvolvido pelos alunos do Centro
Europeu, de Curitiba, para um workshop idealizado pela fotógrafa Fernanda Preto, com o tema
“ensaio sensual”. As fotos foram realizadas pelos alunos na própria instituição, sob a orientação
da idealizadora do evento, e as peças não foram o foco da produção.

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FIGURA 3 – WORKSHOP FERNANDA PRETO

FONTE: Alcobas Underwear (2015)

Já a figura 4 apresenta o único editorial direcionado para a marca, com uma modelo não
profissional e sem contar com equipe de produção. O cenário escolhido foi um apartamento
locado no centro de Curitiba, com vários elementos de estilo e cores impactantes, porém, como
não houve pesquisa prévia, o gerou uma polêmica, pois o apartamento já tinha sido locado por
outra marca curitibana de lingerie, causando desconforto para ambas as marcas.

FIGURA 4 - EDITORIAL ALCOBAS

FONTE: Alcobas Underwear (2015)

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Por meio de uma entrevista com a idealizadora da marca, constatou-se que os valores a serem
transmitidos estão relacionados à delicadeza, com sensualidade, porém sem expressar
vulgaridade. As peças são confeccionadas artesanalmente, em pequena escala, chamando a
atenção para o cuidado na confecção e escolha de cada material, e para a singularidade de cada
peça, já que é realizada de acordo com a expectativa da cliente.
O tipo de fotografia é a de editorial de moda, a qual, conforme citado anteriormente por Souza e
Custódio (2005), sofre diferentes variações dependendo de cada particularidade das marcas e
dos resultados desejados. Salienta-se também que a influência de cada profissional é
determinante na decisão a produção da imagem relacionada diretamente com o conceito.
Sendo assim, cada escolha de profissional e local foi pensada de forma a criar a imagem de uma
marca artesanal, que tem a sensualidade, o romantismo e o desejo em cada uma de suas peças.
A figura 5 apresenta o painel de inspiração usado na idealização da sessão fotográfica, com
referências condizentes aos valores observados.

FIGURA 5 – PAINEL DE INSPIRAÇÃO

FONTE: A autora (2015)

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Para a seleção da modelo, optou-se por um rosto jovem e delicado como a marca, e uma boa
desenvoltura em frente às câmeras, já que o ensaio em lingerie gera maior exposição do corpo e
poderia provocar desconforto em modelos não habituadas ao trabalho. Mesmo jovem, a modelo
escolhida já é experiente, trabalhando há 3 anos em revistas como Vogue, Harper’s Bazaar e
Elle, e campanhas para marca como Schultz e Reptilia.
Novamente devido à exposição, a fotografia de lingerie acaba restringindo-se a locais fechados.
Para esse trabalho, a escolha da locação teve como proposta mostrar o diferencial artesanal da
marca, assim, optou-se por um ateliê localizado no centro de Curitiba, já decorado com painéis
de inspirações, maquinários e uma “bagunça charmosa”, ou seja, um cenário realista para fotos
de confecção.
A fotógrafa escolhida, formada em jornalismo e fotografia, descreve-se como alguém que adora
fotografar paisagens, pessoas e locais que possam ter algum significado. Ainda começando a
carreira, planeja trabalhar no ramo de moda e gastronomia como autônoma, porém, está sempre
aberta a propostas e trabalhos novos e diferenciados.
Formada a equipe, coube à produtora, finalmente, orientar cada um dos profissionais a respeito
da inspiração e dos procedimentos esperados para a realização das fotos, agendadas para uma
tarde de sábado, momento no qual o ateliê não estaria em funcionamento. O orçamento
disponível para o trabalho foi distribuído da seguinte forma: R$100 para a fotógrafa; R$100 para
a modelo; R$200 para a produção de um vídeo registrando os bastidores do ensaio, para
posteriormente ser utilizado como material de divulgação. A pesquisadora atuante como
produtora não foi remunerada e acabou por desempenhar também o papel de stylist, situação
comum relatada anteriormente.

6.2. Resultado
O ambiente foi preparado de forma a compor uma ambientação compatível com a retratada no
painel de inspiração, utilizando-se de elementos que remetem ao fazer artesanal. A fotógrafa
julgou a luz natural como suficiente e compatível com a proposta natural e espontânea da
pequena produção em ateliê. Foram fotografados seis looks, compostos pela produtora, que
também dirigiu a equipe na escolha de locais, ângulos e poses para a modelo. O resultado está
apresentado a seguir nas figuras 6 e 7.

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FIGURA 6 – EDITORIAL PRODUZIDO PARA A MARCA

FONTE: A autora (2015)

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FIGURA 7 – EDITORIAL PRODUZIDO PARA A MARCA

FONTE: A autora (2015)

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Observa-se que o painel de inspiração colaborou para a efetividade da comunicação entre os


membros da equipe, que dialogaram a partir da mesma linguagem visual. O cenário e as cenas
evidenciaram o fazer artesanal, escolhido como um dos valores centrais da marca. Já os valores
relacionados à sensualidade delicada foram expressos pelo perfil e atuação da modelo, de rosto
jovem, maquiado de forma leve e natural, e corpo com curvas suaves, sem ênfase no busto ou
quadril. Assim, pode-se constatar que as imagens do editorial apresentam características
compatíveis com as estipuladas como essenciais para a imagem da marca, e tais características
foram obtidas por meio do método de trabalho e das ferramentas da produção para fotografia de
moda descritas anteriormente.

7. Considerações finais
O trabalho de produção é amplo e conta com diferentes recursos e funções, passando pelo
primeiro contato com o cliente, pela busca por referências, até a escolha dos profissionais
envolvidos. Esse é um trabalho de grande responsabilidade, pois influencia a construção da
imagem de uma marca ou coleção perante seus consumidores. O processo relatado no presente
artigo aponta que a aplicação das ferramentas de produção e fotografia de moda permite a
construção de imagens de moda com maior carga estética e simbólica e, em comparação com
imagens executadas sem essa preocupação, tais imagens podem ser mais efetivas ao
comunicar os valores de uma nova marca.

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STOPPE, Andrea, 2011. A transformação e criação da imagem. Disponível em:


http://www2.uol.com.br/modabrasil/fortaleza_link/produtor_moda_profissao/index.htm. Acesso
em 01 jun. 2015.

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O calçado feminino moderno, o design e o meio urbano: algumas transformações


Modern female shoes, design and the urban environment: some transformations

Natalie R. A. Ferreira de Andrade (UNIFRAN e FATEC Franca)


nativolpe@yahoo.com.br

 
Resumo

Este artigo pretende contextualizar os calçados femininos modernos e o design por meio de uma
análise sobre a urbanização e a industrialização do setor no século XIX e início do século XX. A
pesquisa foi desenvolvida por meio de uma reflexão de conceitos relacionados ao design, moda
e da história da indústria e dos calçados femininos brasileiros a partir de referências
bibliográficas e pesquisas iconográficas (fotografias) da sociedade de Franca, cidade do interior
do Estado de São Paulo.

Palavras-chaves: calçados femininos, design de moda, urbanização, industrialização.

Abstract

This article aims to contextualize the modern women's shoes and design through an analysis of
the urbanization and the industrialization of sector in the 19th and early 20th centuries. The
research was developed through a reflection of concepts related to design, fashion and history of
the industry and the Brazilian women's footwear from references and iconographic research
(photos) from Franca society, city of inner São Paulo State.
 
Keywords: women’s shoes, fashion design, urbanization, industrialization.

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Introdução

O calçado, localizado nessa pesquisa como cultura material, sendo este artefato
portador de histórias individuais e coletivas, significados, desejos, valores e experiências, reflete
por meio do design e da moda as transformações socioculturais, hábitos e comportamentos
sociais.
Por meio da análise do artefato calçado, podemos observar as funções simbólicas dos
calçados para refletir sobre os significados dos objetos materiais na vida social, na memória e
nas identidades.
Desta forma, Gonçalves (2007, p.24) descreve que podemos

perceber os processos sociais e simbólicos por meio dos quais esses objetos
vêm a ser transformados ou transfigurados em ícones legitimadores de
ideias, valores e identidades assumidas por diversos grupos e categorias
sociais.

Este artigo pretende demonstrar por intermédio de um contexto histórico, afirmar como o
design e a moda foram responsáveis pela aceleração do desejo e da necessidade do calçar das
mulheres no Brasil no século XIX e início do século XX, em seu processo de urbanização.
Os objetivos foram contextualizar as alterações na forma de calçar das mulheres
brasileira e especificamente as francanas, a partir das transformações no meio urbano brasileiro,
além de identificar o design e a indústria na produção do calçado feminino moderno.
Por meio de uma investigação sobre o contexto histórico nacional e sobre a cidade de
Franca - um dos polos calçadistas mais antigos do país, reconhecido em meados da década de
1950, mas com produção de calçados desde o século XIX - busca-se analisar, por meio
especialmente de fotografias do período, o design e a moda de calçados no país.
Observaremos como as alterações no meio urbano brasileiro modificaram as formas e
significados de se calçar no período moderno.
Foram utilizadas para fundamentação teórica bibliografias acerca do design e artefatos,
obras sobre a história dos calçados, história e conceitos de moda; história do polo calçadista de
Franca e o design de calçados, especialmente os femininos.
Portanto a metodologia utilizada foi partir de pesquisas bibliográficas, pesquisas
iconográficas (fotos e campanhas de marcas de calçados) e pesquisa documental.

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1. O calçado feminino, a moda e a urbanização no Brasil do século XIX

Distinguimos que o artefato calçado, assim como as roupas, reflete em diversos


momentos o espírito de uma época, por isso a relevância de uma análise das mudanças na
forma de calçar das mulheres brasileiras, que preservam passagens importantes e que podem
esclarecer acerca de algumas referências e elementos do design e a moda dos calçados na
contemporaneidade.
Nesse contexto, a moda reflete as transformações socioculturais da sociedade e revela
hábitos, comportamentos, posições sociais e gostos de uma determinada época. Desta forma, o
conceito de moda não é limitado ou restrito ao vestuário, mas também inclui a cultura das
aparências que envolvem, além de roupas, acessórios, joias, calçados, penteados, objetos,
linguagens e maneiras, gostos, ideias, artistas e suas obras, que são atingidos pelo processo da
moda (RAINHO, 2002).
Rainho (2002, p.14) afirma que

[...] ao longo da segunda metade do século XIX que a moda, no sentido


moderno do termo, se consolida. Nesse momento surge um sistema de
produção e distribuição desconhecido até então. As conquistas técnicas
sucedem-se com rapidez, e a moda, “filha da revolução industrial e da
máquina a vapor”, alcança mobilidade e abrangência.

No Brasil do século XIX, segundo Rainho (2002, p.15) a moda atingiu um maior número
de pessoas, as consideradas da “boa sociedade”, de locais como o Rio de Janeiro – capital do
império – onde, a partir de então, se tem acesso quase simultaneamente às novidades
estrangeiras. A burguesia exibia-se nos espaços públicos, como ruas, e em acontecimentos
sociais, como bailes e teatros, usando o que havia de mais parecido com as novidades
parisienses, pois necessitava “igualar-se à burguesia europeia e à aristocracia portuguesa”,
adotando valores e modos europeus com seus costumes civilizados, “eliminando os ares
coloniais”.
Não apenas por dinheiro e poder, a “boa sociedade”, por meio da aparência, deixava
visíveis as diferenças e abismos, mas também demonstrava estilo de vida e prestígio, o que
realmente a diferenciava da sociedade comum. No século XIX, a vida social já regulava o ritmo
efêmero da moda (LIPOVETSKY, 1989 apud RAINHO, 2002).

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As transformações no espaço urbano da cidade, a “europeização” dos costumes, o


incremento do comércio e a intensificação da vida social foram os elementos ideais para difusão
da moda.
Nesse período, e dentro de um processo amplo de europeização dos costumes, a moda
adquire função capital, tornando-se elemento caracterizador de uma sociabilidade moderna e
marca de distinção social (RAINHO, 2002, p.44).
As grandes cidades são o espaço privilegiado para o desenvolvimento da moda, porque
acentuam as individualidades, os cuidados com a aparência e status. O processo de
modernização na cidade, com ferrovias, portos, sistemas de água e esgoto, iluminação, gás e
introdução de bondes, contribui para a urbanização da cidade. “Nesse momento, a difusão da
moda esteve intimamente associada ao desenvolvimento urbano” como descreve Rainho (2002,
p. 58).

Com a urbanização e o aumento de passeios pela cidade e o encurtamento


dos vestidos, os calçados ganham visibilidade e status, passando a ser vistos
e comentados.
Um período de rápidas transformações sociais e econômicas a partir de
meados do século XIX viria a alterar a vida das mulheres e,
consequentemente, a sua maneira de vestir. À medida que as mulheres
começaram a trabalhar fora de casa, em escritórios e fábricas, o seu calçado
e vestuário foram se tornando menos incômodos e mais práticos (O’KEEFFE,
1996, p. 242).

No fim do século XIX, devido ao crescimento das camadas médias urbanas, aumentou-
se o consumo dos artigos confeccionados pelas indústrias do couro. Carneiro (1986, p. 64)
descreve que “o crescimento da indústria calçadista, aparentemente, coincidiu com um
decréscimo de importância do artesanato de pertences de montaria”.
Os sapatos femininos, em particular, se convertem em objetos baratos de
consumo massivo, com um tempo de vida mais curto, tornando-se rapidamente obsoletos (COX,
2009). É importante ressaltar que estes calçados não eram adquiridos pela população em geral,
mas sim por uma parcela da sociedade com maior poder aquisitivo e de regiões urbanizadas
(grandes cidades).
Também, as mudanças nos calçados da época estão inextricavelmente ligadas à história
do transporte (McDOWELL, 1989), pois, antes do século XX, o meio mais comum de se
locomover era caminhando ou a cavalo. Mas em diversos momentos, os calçados criados
colocavam a moda antes da praticidade. Os sapatos delicados seriam apropriados apenas para

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o interior das casas, mas somente os sapatos de couro eram fortes o suficiente para suportar as
sujeiras das ruas, ao contrário dos brocados e sedas.
No final do século XIX, na cidade de Franca (interior de São Paulo), a ferrovia
transformou e direcionou para uma nova etapa em seu desenvolvimento e urbanização: o
transporte em carros de boi faria parte do passado, já que as ruas eram todas pavimentadas em
paralelepípedos; e as recentes construções, todas em alvenaria, contribuíram para uma
dinâmica de uma cidade moderna, com um centro urbano com negócios e fábricas (FERREIRA,
1983).
Conforme descreve Chocklat (2012) a melhoria nas calçadas e pavimentação das ruas
nas cidades desenvolvidas permitiram o retorno do salto aos calçados femininos, e, segundo o
autor, foi nesse período que o calçado passa a ter a aparência e forma contemporânea.
Bergstein (2013) descreve que a mulher do século XIX possuía limitados estilos e cores
de calçados e usava modelos que cobriam o peito do pé e os tornozelos quando estavam fora de
casa como modelos de oxfords1, brogues2 quase andróginos ou botas eduardianas amarradas
ou com botões - como se fossem espartilhos que apertassem os pés - como pode se observar
nas fotos das figuras 1 e 4, analisadas posteriormente. Sapatilhas e chinelos adornados e com
partes dos pés a mostra eram apropriados somente para seus dormitórios.
Enfatizamos também que a diferenciação sexual no design nunca foi tão acentuada
como no fim do século XIX. As grandes diferenças entre homens e mulheres de classes alta e
média estiveram relacionadas à existência separada e à exclusão gradual das mulheres da vida
pública, relegadas “às funções “sociais” de receber e retribuir visitas” devido a, além de uma
“constituição supostamente frágil e delicada, seu temperamento sensível e emocional” (FORTY,
2007, p.94).
Segundo O’Keeffe (1996, p.14),

os sapatos sempre refletiram o estatuto social e a situação econômica de


quem os calça. As mulheres da aristocracia do princípio do século XIX
usavam chinelos de brocado tão finos como papel e com as solas tão frágeis
que não conseguiam resistir a dois ou três passos fora de casa, enquanto as
suas criadas trabalhavam com robustas botas de cabedal negro.

Os sapatos femininos brasileiros passaram a ser confeccionados com um tecido


resistente e alguns modelos eram arrematados com biqueira de verniz. “O calçado masculino,
                                                                                                                       
1
Calçado tradicional de origem inglesa de cano fechado costurado por baixo da gáspea, com atacadores e
lingueta.
2
Modelo de calçado de origem escocesa e rural com picotes e desenhos perfurados na gáspea.

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por sua vez, daqui por diante, vai realizar o movimento inverso do feminino, fundindo-se ao
vestuário pela cor e economia das formas, até quase a neutralidade com que chegou aos nossos
dias”, afirma Motta (2004, p.62).
No interior do Brasil, especialmente no campo, a moda não constituía marca de
distinção, pois outros valores eram mais importantes, por exemplo, o de ostentar a riqueza em
outros elementos, tais como o número de escravos e a extensão das terras dos fazendeiros. Os
trajes e calçados eram simplificados, e ligados à sua funcionalidade também. A sociedade do
interior do estado de São Paulo, especialmente a de Franca é composta neste período em sua
maioria por trabalhadores, muitos deles imigrantes e elite agrária (FERREIRA, 1983).
Esse contexto é descrito também por Bergstein (2013) quando relata que as famílias
mais simples compravam calçados feitos à mão, feitos para durar uma vida inteira e que sapatos
em estilos diferentes para várias ocasiões eram privilégio dos mais abastados.

2. A Belle Époque brasileira e o consumo de calçados femininos de 1901 a


década de 1920.

O período de 1900 a 1914 é conhecido na Europa como belle époque, caracterizado


pelo viver bem, pela ostentação, pelo luxo e pela extravagância da classe alta. Na belle époque,
costureiros famosos, como Fredérick Worth, determinavam uma moda clássica e severa para
homens e sinuosa e pesada para as mulheres. A linha em “S” da silhueta feminina da Europa
enfatizava as curvas, como a Art Nouveau.
A Alta Costura, chamada inicialmente de Costura, e a indústria de produção de massa
são os sistemas da moda do início do século. Esse sistema, considerado bipolar por Lipovetsky
(2009, p.80),

foi fundado sobre uma criação de luxo e sob medida, opondo-se a uma
produção de massa, em série e barata, imitando de perto ou de longe os
modelos prestigiosos e griffés da Alta Costura. Criação de modelos originais,
reprodução industrial: a moda que ganha corpo e se apresenta sob o signo
de uma diferenciação marcada em matéria de técnicas, de preços, de
renomes, de objetivos, de acordo com uma sociedade ela própria dividida em
classes, com modos de vida e aspirações nitidamente contrastados.

Ainda para o autor (2009, p.84), o contexto da moda, seus sistemas e processos
criativos do início do século XX apresentavam-se da seguinte forma:

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Ao invés de uma lógica fortuita da inovação, instalou-se uma normalização


da mudança da moda, uma renovação imperativa operada com data fixa por
um grupo especializado. A Alta Costura disciplinou a moda no momento em
que ela engatava um processo de inovação e de fantasia criada sem
precedente.

A belle époque brasileira trazia novos padrões de consumo, impulsionados pelo cinema
e revistas ilustradas. O calçado do cotidiano das brasileiras eram as botinhas ou borzeguins de
estilo vitoriano e saltos baixos e grossos. Quanto mais curtas as saias dos vestidos, mais subiam
os canos das bottines, que eram fechadas com botões ou em versões de amarrar, muito
populares. Os modelos mais sofisticados eram ricamente bordados com motivos florais e
adornados com cadarços de seda. Os custos de produção diminuem com a diversificação das
confecções, com surgimento dos grandes magazines e com as técnicas aprimoradas, fazendo
com que a moda chegue a outras camadas da população, democratizando-a, mas não no
sentido de uniformidade ou igualdade no parecer (RAINHO, 2002).

Figura 1: Anúncio de fabricante de


calçados. A província de São Paulo -
13/01/1884.
Fonte: 100 ANOS DE
PROPAGANDA, 1980, p. 7.

O vestuário feminino do início do século XX, incluindo os calçados, era um meio de


exibição dos homens e seus “status” sociais por intermédio de suas mulheres (COX, 2009).
Em foto de acervo abaixo (Figura 2), podemos observar o vestuário suntuoso das
mulheres, confirmando a afirmação acima, de que o vestuário feminino do início do século exibia
as posses e o poder masculino por meio da vestimenta de suas esposas, já que as vestimentas

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masculinas eram mais sóbrias. Os calçados femininos aqui ficavam ocultos sob as saias, com
apenas suas pontas ou no máximo as gáspeas3 aparecendo.
Observamos também que pés pequenos, geralmente cobertos pelas longas saias, como
na Figura 2, se converteram em símbolos eróticos e eram considerados signos de boa educação
e refinamento, demonstrando que a mulher não trabalhava e era mantida por seu marido. Além
disso, mudar de calçados várias vezes ao dia era signo de bom gosto e de status social
(O’KEEFFE, 1996; COX, 2009).

Figura 2: Família francana no período da bellè époque,


sem data.
Fonte: Acervo pessoal.

Com o encurtamento das saias, no início do século XX, os sapateiros passam a produzir
botas com canos ainda mais altos. Porém, a elite da moda da época passa a permitir que a
mulher comum passe a mostrar parte de seus tornozelos (com meias) (BERGSTEIN, 2013).
Podemos observar transformações significativas na moda em um período muito curto
(por volta de 20 anos) na forma de se vestir e calçar das mulheres das fotos das figuras 2, 3 e 4.
A nova mobilidade social, em que mulheres frequentavam as ruas da cidade e utilizavam meios
de transporte como bondes elétricos, trens e posteriormente carros, refletiu-se nos modelos de
calçados. Essa euforia urbana assustava e atraía os recém-saídos de uma cultura rural. Os

                                                                                                                       
3
Gáspea: Parte superior dos calçados.

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sapatos desempenharam um enorme papel naquele momento, pois atestavam civilidade e


inseriam o usuário na modernidade (MOTTA, 2004).

Figura 3: Fotografia de mulheres no final da década de 1910.


Fonte: Acervo pessoal.

Figura 4: Casal Pinho. A esposa


está calçando modelo com

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elementos masculinos. Berlim


03/09/1922.
Fonte: Acervo pessoal.
Observamos nas fotos 3 e 4 que os modelos de saltos baixos, com tiras, tornozeleiras e
detalhes como laços e palas4, e com referências masculinas como o modelo Oxford, foram
amplamente usados entre mulheres e adolescentes da sociedade francana em meados das
décadas de 1910 e 1920. A moda dos sapatos femininos a partir da década de 1910 se torna
mais funcional, e essa funcionalidade foi demonstrada por meio dos estilos de calçados com
linhas geométricas, o uso de materiais exóticos, tiras no peito do pé e tornozelo e recortes
combinados com saltos baixos. Essa década começou a apresentar em sua moda sinais de
decadência dos signos de suntuosidade ostensiva do século anterior.

Figura 5: Família francana na década de 1920. No detalhe ampliado (dir.),


observamos dois modelos de sapatos de salto baixo com tornozeleira e
tiras em T. Fonte: Acervo pessoal.

Também na fotografia acima, de uma família francana, notamos que os modelos eram
simplificados, sóbrios, clássicos e práticos, com tiras e pequenas fivelas, que possuíam
influência da moda internacional. As cores mais usadas eram as neutras, como preto, café e
branco, e os materiais iam de couro (funcionais) a tecidos finos (para salão ou cerimônias), como
a seda e o cetim. Os calçados infantis possuem as mesmas características dos calçados dos
adultos. Não podemos afirmar se os calçados das fotos das famílias francanas selecionadas
foram criados e produzidos na cidade.
                                                                                                                       
4Pala: parte do calçado em que fica a fivela ou atacadores; parte da gáspea que recobre o pé (HOUAISS)

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A partir do século XX uma gama maior de novos materiais, cores, fôrmas, modelos e
estilos foram utilizados, além da criação de novos tipos de solados, demonstrando a enorme
capacidade de inovação e criação dos designers de moda perante as mudanças na sociedade e
suas formas de consumo permeadas por duas grandes guerras mundiais.
As revistas de moda, auxiliam as indústrias de calçados em desenvolvimento e
consolidação de marcas (BERGSTEIN, 2013).
Os artefatos produzidos nas indústrias para consumo em massa – com múltiplos
modelos, diversificação de séries e opções de produção – estimularam uma procura por
produtos personalizados e mais tarde de uma espécie de democratização do luxo que acabam
gerando uma situação em que “a maioria da população consegue (ou pretende) ter algumas
posses e, portanto, passa a se sentir incluída no projeto social coletivo” (LIPOVETSKY, 2009;
CARDOSO, 2008, p. 166).

3. O Design e a indústria na produção do calçado feminino moderno

O conceito atual de Coelho (2008, p.98), que define a indústria como “a conjugação do
trabalho e do capital para transformar a matéria-prima em bens de produção e consumo”, é
resultado da Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século XVIII na Grã-Bretanha,
período de transformação da pequena indústria de produção manual com consumo local para a
de grande escala, para consumo longínquo.
As mudanças naquele século não se dão apenas pela implantação de novos
maquinários; foram repensados os níveis de controle dentro das fábricas, com alteração da
organização do trabalho, da sua produção e distribuição, envolvendo mudanças mais de ordem
social do que tecnológica.
A forma de organização industrial avançou na Inglaterra, pois se pautava, além do uso
de novas tecnologias, em fatores comerciais. São contratados autônomos para desenvolver
peças utilitárias ao gosto da época e de seus consumidores, enfatizando, a partir daquele
momento, o papel do design no processo produtivo.
O design é associado à beleza de um período, além de conceito de valor ou qualidade,
objeto de estima ou desejo (COELHO, 2008).
A partir daí o artesão perde seu espaço para o designer, que produz objetos em maior
número. “O design então passava a valer dinheiro, e esse valor estava atrelado à preocupação

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com o segredo e a exclusividade como instrumento de vantagem comercial” (CARDOSO, 2008,


p.35).
A nova sociedade, incluindo a brasileira, se organizava em torno de ideais, como ordem
e progresso, indústria e civilização. As fábricas são símbolos desse progresso e da modernidade
e “o design teve seu papel nessa reconfiguração da vida social, contribuindo para projetar a
cultura material e visual da época”, como observa Cardoso (2008, p. 73).
Porém ainda não existia uma consciência do designer como profissional e da
importância das atividades projetuais. Os objetos então se tornam símbolos das relações
humanas, parte das interações sociais e imbuídos de significados múltiplos.
“O design nasceu em um determinado estágio da história do capitalismo e desempenhou
papel vital na criação da riqueza industrial”, em que ideias eram fundidas com técnicas de
manufatura. Os trabalhos, mesmo elaborados manualmente, não eram mais necessariamente
feitos do começo ao fim pelo mesmo artífice. Desde o século XVIII, “o artesão individual perdeu o
controle do processo completo com que se tornou necessária a atividade nova e separada do
design” (FORTY, 2007, p. 11 e 64).
Desta forma, o design passou, lentamente, a integrar a concepção dos produtos.
Lipovetsky (2009) afirma que, com a introdução do design, a grande indústria adotou a
perspectiva da sedução e a forma “moda”, e esta não remete apenas aos caprichos dos
consumidores, mas passa a ter uma estrutura constitutiva da produção industrial de massa.
No século XIX, os objetos eram pensados como um sistema de comunicação e meios
simbólicos pelos quais indivíduos, grupos e categorias sociais emitiam (e recebiam) status e
posição social (BOURDIEU, 1979apud GONÇALVES, 2007).
No Brasil do início do século XIX, os artesãos sapateiros passaram a reproduzir
rapidamente os novos calçados, por meio do domínio de seu ofício. As camadas mais ricas da
população importavam seus calçados, mas a outra parcela da população consumia os artefatos
de couro produzidos por artesãos livres ou escravos (MOTTA, 2004).
Cardoso (2008) relata que, no fim do século XIX, ocorreu o primeiro surto industrial
brasileiro. A maioria das fábricas era de pequeno porte, mas seus resultados foram importantes
na formação do mercado consumidor interno e no início de uma tradição brasileira de design.
A industrialização dos calçados brasileiros, inicialmente, era feita em domicílio, mesmo
em estágios avançados do capitalismo, marcando o segmento até a contemporaneidade, pois
ainda hoje encontramos as chamadas “bancas de pesponto” nos fundos das casas no polo de
Franca.

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As primeiras indústrias de calçados brasileiras surgem nas capitais do Rio de Janeiro e


São Paulo. A fabricação de calçados sempre se utilizou dos métodos tradicionais – como nas
etapas de montagem e costura manual – e, mais tarde, da tecnologia e inovações.
Para Barbosa (2004, p. 170), a fabricação do calçado distanciou-se do paradigma da
indústria moderna, “pois manteve características manufatureiras”. Segundo Costa (1993 apud
BARBOSA, 2004, p.68), o processo de produção de calçados

ainda caracteriza-se por constituir um processo de trabalho de natureza


intensiva em mão de obra, com tecnologia de produção que guarda ainda
acentuado conteúdo artesanal. Assim, esta indústria apresenta elevado
potencial de emprego, desempenhando importante papel na incorporação de
mão de obra, inclusive não-especializada.

No início do século XX, a produção em massa transforma o mercado calçadista. A


produção industrializada diminui os preços do artefato e aumenta seu consumo. Para Lipovetsky
(2009, p.11), neste novo século,

o esquema da distinção social que se impôs como chave soberana da


inteligibilidade da moda, tanto na esfera do vestuário como na dos objetos e
da cultura moderna, é fundamentalmente incapaz de explicar o mais
significativo: a lógica da inconstância, as grandes mutações organizacionais
e estéticas da moda.

Por meio de resgate histórico do processo de desenvolvimento de produtos, Maynardes


(2002 apud MONTEMEZZO, 2003, p. 16) argumenta que “no início do século XX, apesar do
avanço da mecanização, as práticas projetuais ainda eram calcadas naquelas utilizadas pelos
artesãos, sendo fortemente marcadas por questões estéticas”.
Em períodos posteriores, os princípios do taylorismo, com um “pensamento científico e
racional como base teórica para a organização produtiva”– e mais tarde aplicados por Henry
Ford –, ocasionaram “a adoção de uma postura teórica racionalista com relação aos
procedimentos empregados no desenvolvimento de produtos e no design em geral”
(MONTEMEZZO, 2003, p. 16). Assim, o design passa a se relacionar como atividade ligada à
ciência e à tecnologia.

Considerações Finais

O enfoque e recorte dessa pesquisa são sobre os calçados femininos no século XIX e
início do XX, refletindo sobre a influência da urbanização na moda dos modelos calçados

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femininos do país e sobre a industrialização e o design dos calçados no século XIX e início do
XX.
Percebemos que o calçado é um artefato imbuído de significados e guardião de
memórias individuais e coletivas, reforçando uma determinada situação, espaço ou tempo.
Podemos deduzir que não houve um design nacional ou a existência de designers, ou
mesmo de conceituados sapateiros brasileiros no século XIX e início dos XX (até meados de
1940). Os modelos seguiam uma moda ditada (ou eram importados), pois buscavam novidades
para aparentar um conhecimento e bom gosto baseado nas influências e no estilo do continente
europeu. Também passa a existir uma preocupação com calçados que se adaptassem ao novo
cotidiano urbano brasileiro.
Nesse sentido, demonstramos por meio de um recorte da história dos calçados no Brasil
e na cidade de Franca, no interior do estado de São Paulo, as variadas transformações no modo
de calçar das brasileiras, devido às transformações no meio urbano, até o início do século XX.
No polo de Franca, percebemos por intermédio desta pesquisa (bibliográfica e
iconográfica – fotos e propagandas de calçados) influências diretas da moda internacional na
produção dos calçados, que se desenvolvia de forma mais lenta e na maioria das vezes apenas
reproduzia modelos estrangeiros.
O calçado torna-se acessório efêmero para a maioria das mulheres, que, a partir do
século XX, passa a consumir o calçado com maior facilidade, nesse novo mercado. Desta forma,
por meio do vestuário, incluindo os sapatos, as mulheres conseguem “mudar de pele” e
procuram expressar uma personalidade individualizada.

Referências

Publicações

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BERGSTEIN, Rachelle. Do tornozelo para baixo: A história dos sapatos e como eles definem
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CARDOSO, Rafael. Design, cultura material e o fetichismo dos objetos. Revista Arcos, ESDI-
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_______________. Uma introdução à história do design. 3. ed. São Paulo: Blücher, 2008.

CARNEIRO, Lígia de Azambuja Gomes. Trabalhando o couro: do serigote ao calçado “made in


Brazil”. L&PM/CIERGS, Porto Alegre, 1986. ISBN- 85-254-0114-5.

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COELHO, Luiz Antônio. Conceitos chave em design. Rio de Janeiro: Editora PUC-RIO, 2008.

COX, Caroline. Zapatos vintage: calzado del siglo XX: diseños y diseñadores. 2. ed. Barcelona:
Parramón Ediciones, 2009.

FERREIRA, Mauro. Franca: itinerário urbano. Franca: Edição Laboratório das Artes, 1983.

FORTY, Adrian. Objetos de Desejo: Design e Sociedade desde 1750. Tradução: Pedro Maia
Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e


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LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas.
São Paulo: Companhia das Letras/ Companhia de Bolso, 2009.

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MOTTA, Eduardo. O calçado e a moda no Brasil: um olhar histórico. Novo Hamburgo:


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O’KEEFFE, Linda. Sapatos: uma festa de sapatos de saltos, sandálias, chinelos. Colônia,
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RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções –
Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.

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BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Empresário fabril e desenvolvimento


econômico:empreendedores, ideologia e capital na indústria do calçado (Franca, 1920- 1990).
2004. 285 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade
Estadual Paulista, Araraquara.
MONTEMEZZO, Maria Celeste F. S. Diretrizes metodológicas para o projeto de produtos de
moda no ámbito acadêmico. 2003. 97 f.Dissertação (Mestrado em Desenho Industrial) –
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru.

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“Enfeitada de Pesar”: luto, moda e etiqueta no Segundo Reinado Brasileiro

Paré de Tristesse: deuil, mode et socialité dans le Second Règne au Brésil

Maria Cristina Volpi (UFRJ)1; Márcia Carnaval de Oliveira (UFRJ)2


mcvolpi@ufrj.br
ciacarnaval@gmail.com

A indumentária de luto feminina mesclou, em meados do século XIX, elementos da tradição portuguesa
e elementos modernos que o sistema de modas oferecia para a elite e a nobreza instalada na capital
do Império, primeiramente. Seu significado é analisado pelas referências na imprensa, pelos manuais
de etiqueta e pelo retrato fotográfico. Busca-se compreender sua função no contexto do discurso de
“civilidade” e suas implicações culturais a partir de um evento fúnebre aristocrático.

Palavras-chave: Luto, manuais de etiqueta, retrato fotográfico.

Les vêtements féminins de deuil ont mélangé, au cours du XIXe siècle, des éléments de tradition
portugaise, et des éléments modernes que le paysage de la mode d'alors offrait à l'élite et à la noblesse
installées dans la capitale de l'Empire. Leur sym-bolique est déjà analysée dans la presse, dans les
manuels de savoir vivre et dans les portraits photographiques. Il s'agit ici de comprendre leur fonction
dans le cadre du discours sur la "civilité", ainsi que les implications culturelles des événements funèbres
aristocratiques.

Mots-clés: Deuil, manuels de savoir-vivre, portrait photographique.

O ano de 1853 foi de pesar para a casa dos Bragança em Portugal e no Brasil. Em fevereiro,
em Funchal, morria a jovem princesa Maria Amélia, meia-irmã caçula do imperador Pedro II; em
novembro, poucos meses depois do luto aliviado, era a vez da irmã mais velha, Maria II, rainha de
Portugal, em decorrência do parto do décimo primeiro filho. Por todo o Brasil as manifestações públicas
de luto pela morte das princesas se sucederam. As notícias fúnebres e os rituais que tomaram a corte
no Rio de Janeiro de assalto têm, todavia, um peso simbólico distinto, claramente relacionado ao papel
público que tiveram as princesas em relação ao país e a enlutada família imperial brasileira. Significa
dizer que o número de missas, a indumentária de luto, o cortejo de pêsames, a produção das exéquias,
os necrológios e as notícias na imprensa refletiram mortes distintas, cujo sentido de unidade refletiu
diferentemente o fato de ambas serem irmãs do segundo imperador do Brasil e filhas do primeiro.
Desde a chegada de D. João VI ao Brasil, as exéquias da nobreza envolveram rituais públicos
e grandiosos, parte das tradições dinásticas portuguesas. Enquanto na Europa católica, desde meados

                                                                                                                       
1 Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutora pela Faculdade de Letras da UFRJ, possui graduação em
Artes Cênicas e mestrado em Artes Visuais pela UFRJ, doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 Designer gráfico, mestre em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro é doutoranda da mesma instituição. Integra o

IMAGINATA, grupo de Estudos de Filosofia da Imagem, Filosofia da Arte e Estética Contemporânea.

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do século XVIII, se processava a desestruturação do sistema de pompas barrocas em favor da


simplicidade (VOVELLE, 1983),3 em meados do século XIX no Brasil, porém, persistia o formato. O
ritual fúnebre na forma “barroca”, espetacular e extravagante, segundo o testemunho do inglês Thomas
Ewbank (1976, p. 60),4 em 1846, no Rio de Janeiro, contava com o uso de trajes de luto inteiramente
pretos, condição “sine qua non” não apenas para o cortejo, mas para a visita de pêsames, quando a
viúva aparecia com vestido de cauda e touca de lã pretos, véu de crepe, um leque na mão e um lenço
na outra. Todos pretos, obviamente. As mudanças no ritual, todavia, já se faziam sentir, relatou o
viajante.
Segundo Norbert Elias (2001, p. 132-159), em nome da etiqueta se organizava o “teatro da
corte”, cujos rituais não tinham um papel meramente decorativo, mas eram peças do poder dinástico
constituído, determinantes para sua distinção, estabilidade e continuidade. Nos rituais fúnebres da
nobreza, as manifestações, gestos, indumentárias, palavras e expedientes que se produziam e eram
dados a ver somavam relevo e distinção aos envolvidos. Ao tangenciarem as demonstrações de
tristeza que atingiam espiritual ou emocionalmente um monarca, por exemplo, − que “deveriam” ser
sentidos pelos súditos − acabavam fortalecendo simbolicamente os laços entre as classes sociais, o
respeito ou a submissão ao rei. A indumentária de luto, por exemplo, mais que parte dos costumes,
cujo uso obrigatório ainda constava em lei,5 esbarrava, em meados do século XIX, todavia, com um
sistema de moda que se integrava ao cotidiano das elites na capital do império, com discurso na
imprensa e presença nos romances morais e nos manuais de etiqueta. Mesmo num país afastado e
sem o peso da tradição das cortes europeias, a jovem monarquia brasileira buscou uma identidade
“civilizadora” nos rituais fúnebres, inclusive, sua forma própria de realização e afirmação como país
moderno – embora, contraditoriamente, agrário e escravocrata – que cumpria o dever ético de honrar e
dar visibilidade às augustas mortas. Uma ética que se descrevia em uma forma estética própria
(RIBEIRO, 1998, p. 6-8), cujo sentido solene mobilizava as elites instaladas pelo largo território
imperial. Como destacou Lilia Schwarcz, essa classe situada amplamente na capital do Império
apostou na monarquia e na conformação de uma ritualística local, entre continuidades e atualizações,
“misturando valores seculares e profanos: não se abriu mão da origem europeia, mas esta se combinou
com um ambiente singular” (SCHWARCZ, 2013, p. 18-19). Se uma “europeização” da paisagem
urbana e da cultura cariocas, dos hábitos e costumes e das instituições começou com a vinda da corte
portuguesa em 1808, foi a partir do Segundo Reinado que as elites desenvolveram e promoveram a
defesa de valores que, na época, designava-se genericamente por “civilizar-se”. Bailes, cortejos,

                                                                                                                       
3 VOVELLE, Michael. La mort et l’Occident, de 1300 à nos jours. Paris: Éditions Gallimard, 1983, p. 457.
4 O cortejo descrito por Ewbank é pela morte de uma dama de honra da imperatriz, não identificada.
5 As leis suntuárias, constando no conjunto das Pragmáticas Portuguesas, embora não tivessem muito êxito na demarcação da

indumentária entre as classes sociais, ainda eram citadas nos manuais de etiqueta e na imprensa.

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indumentárias, titulações, honrarias, tudo no contexto do discurso das elites teria como sentido
“aristocratizar-se” (RAINHO, 1995, p. 139), ou seja, igualar aos pares europeus e distinguir-se dos
demais.
O objetivo do presente artigo é cotejar as referências ao vestuário de luto presentes nos
manuais de civilidade e etiqueta e as indicações na imprensa por ocasião das exéquias da princesa
Maria Amélia de Bragança. Partiu-se da premissa que a elite brasileira (CARVALHO, 2007),6
majoritariamente monarquista, serviu-se de representações simbólicas, incluindo aquelas dos rituais
fúnebres, como forma de distinção e prestígio – ou, como o discurso usual da época, de “civilidade” −
diante das diversas formas locais de ritualização da morte. A hipótese que orienta a pesquisa defende
que os valores ligados às honras fúnebres, foram amplamente praticados e disseminados pela
sociedade carioca. O vestido de luto, parte desse conjunto simbólico, esteve presente até entre as
camadas menos favorecidas da sociedade, embora seja confirmado mais facilmente nos retratos
fotográficos da nobreza e da elite carioca. É o seu significado cultural − numa conjuntura formadora do
moderno sentido de nação − cuja importância se quer ressaltar e que se realiza na dramatização dos
gestos e do corpo, desempenhando um papel público determinado (ROCHE, 2007, p. 25). Em 1853 −
nas vésperas de registro da patente da carte de visite, que abriu um novo paradigma na produção de
retratos − ainda eram daguerreotipistas e ambrotipistas estrangeiros que operavam na produção
fotográfica e respondiam às demandas de um público ávido pela perpetuação da imagem de si e dos
seus, aos moldes da família imperial brasileira. O vestido de luto, cerimonial ou não, presente no
daguerreótipo [Figura 1] e nas fotografias subsequentes da imperatriz Thereza Christina [Figuras 2 a 6]
não descrevem apenas um desenvolvimento estético, mas apontam as obrigações morais e os afetos
que precisavam ser reforçados em nome da tradição. Como objetos da cultura material, essa forma
vestimentar era a parte mais visível dos rituais fúnebres, responsável por sinalizar crenças, temores,
compromissos morais e mesmo as veleidades de seus usuários, ou seja, formas de perceber
expressões de uma determinada sociabilidade. Embora não se possa provar que a imperatriz esteja
enlutada nas imagens, a presença da joalheria escura denuncia uma ampla probabilidade.

                                                                                                                       
6Segundo José Murilo de Carvalho, a elite era proveniente dos proprietários de terra, do comércio e da mineração, tendo como núcleo
burocratas, principalmente magistrados, militares, padres e profissionais liberais, principalmente advogados.

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Figura 1: daguerreótipo colorido, Buvelot & Prat, c. 1855 [Fonte: FERNANDES JR., Rubens; LAGO, Pedro Corrêa. O Século
XIX na Fotografia Brasileira. São Paulo: Fund. Armando Alvares Penteado, 2000, p. 33]; Figura 2: carte de visite, Revert
Henry Klumb, 1861 [Fonte: LAGO, Pedro Corrêa do. Coleção Princesa Isabel: fotografia do século XIX, 2ª ed., Rio de
Janeiro: Capivara, 2013, p. 36]. Figura 3: fotopintura de J. Courtois, coleção Arquivo Grão-Pará, Carneiro & Gaspar, c. 1870
[Fonte: VASQUEZ, Pedro Karp. O Brasil na fotografia oitocentista. São Paulo: Metalivros, 2003, p. 31]; Figura 4: carte de
visite autografada, Adolphe Beau, coleção particular, s./d., (1871) [Fonte: Wikimedia commons]; Figura 5: Papel albuminado,
anônima, acervo da rainha Victoria, s./d. [Fonte: Royal Collection, United Kingdom]; Figura 6: Sem descrição técnica,
Joaquim Insley Pacheco, s./d. [Fonte: Brasiliana Fotográfica, Fundação Biblioteca Nacional]

Os Manuais de Etiqueta no Brasil


Tomas Ewbank, em 1846, deixou impressões sobre o diversificado comércio ambulante de
produtos “femininos”, onde incluiu a proliferação de “manuais”:

[...] sapatos, gorros enfeitados, belas joias, livros para crianças, novelas para as jovens e
obras de devoção para beatos, A arte de dançar, para desajeitados, Escola de bem
vestir para as jovens, Manual de polidez para os rústicos, Oráculo das jovens,

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Linguagem das flores, Relíquia de santos, e um Sermão em honra de Baco


(EWBANK,1976, p. 79) [Grifou-se].

As publicações citadas pelo viajante tratavam-se, muito provavelmente, de traduções


simplificadas ou compilações, pois um dos primeiro manuais brasileiros sobre a literatura de civilidades,
o Entretenimentos sobre os deveres de civilidade, colecionados para uso da puerícia brasileira de
ambos os sexos (NEVES, 1853)7, escrito por Guilhermina de Azambuja Neves e aprovado pelos
conselhos de ensino da Corte e das províncias do Rio de Janeiro e Pernambuco, foi publicado em
1875, apenas. Embora não exista indicação específica sobre luto no capítulo sobre vestuário, D.
Guilhermina é enfática sobre a necessidade de asseio, modéstia e disciplina em matéria de aparência.
Nas páginas finais da obra, todavia, consta o parecer do Dr. José Manoel Garcia, de 1878, que fornece
uma indicação sobre os manuais que circulavam no país em língua estrangeira8 e, em português, cita:

Muitas são as obras que tratam ex-professo do assumpto em portuguez, bem que
nenhuma sustente o paralelo com primorosos tratados de Carreno, em Hespanhol, de
Chantall em francez, de Chesterfield em inglez, de Parravicini em italiano, mas daquelas
mesmo, taes como a Escola de Política, o Manual de Civilidade e Etiqueta, o Código do
Bom Tom, o Manual de Civilidade Brasileira, o Novo Código do Bom Tom, os Elementos
de Civilidade por Prévost, não vejo uma só que esteja no caso considerar-se adaptada à
capacidade dos meninos e meninas que frequentam nossas escolas públicas primarias,
já por serem minimamente difusas, já por usarem um estylo elevado em que traçam
preceitos que mais convem a adultos do mundo elegante. (GARCIA in NEVES, 1878, p.
130). 9

O “Escola de Política” corresponde à Escola de Política ou tratado prático de civilidade


portugueza acrescentado com o compreendido da doutrina christã (SIQUEIRA, 1862) de João de
Nossa Senhora da Porta Siqueira (-1797). Foi publicado em Lisboa em 1786, mas encontram-se
diversas edições até a de 1862, que foi a analisada. Ex-cônego da ordem de Santo Agostinho e ex-
jesuíta, Porta Siqueira acrescentou regras de cortesia do “modo português” e dedicou seu livro ao
público infantil e juvenil, para que fossem amáveis em sociedade e para suprir a “ignorância” que pais e
educadores tinham dos regramentos. No capítulo que trata do vestuário, recomendou decência,
gravidade e asseio, sem excessos de ornamentações ou riquezas; os homens deveriam estar
condizentes com a idade, procurando imitar seus pares, as estações do ano e as leis; as mulheres
também deveriam adequar seus vestidos às leis, ao estado, qualidade, condição e as máximas e
regras da modéstia. Destacou que certas liberdades no vestir eram permitidas às mulheres ilustres e
distintas, “plebeias e inferiores” teriam de se conformar com as vestimentas tradicionais. As modas

                                                                                                                       
7 A primeira edição esgotou-se em três meses, segundo sua autora (p. 6).
8 Em línguas estrangeiras trata-se, possivelmente, do Manual de Urbanidad y buenas maneras para jóvenes de ambos sexos, de Manuel
Antonio Carreño Muñoz, de 1853; La ruche du parnasse français, dédiée à la jeunesse des deux sexes[...], de Jean-Baptiste-Joseph
Champagnac, de 1851; Letters to his son […], de Philip Dormer Stanhope Chesterfield; e o Manuale di pedagogia e metodica generale, de
Luigi Alessandro Parravicini, de 1844.
9 Não foi possível localizar o Manual de Civilidade Brasileira tampouco o Elementos de civilidade de Prévost.

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poderiam ser seguidas, explicou, mas sem sermos inventores delas, pois seria na sobriedade e na
mediação que residiria a virtude e a boa educação. Para o luto pesado os homens deveriam vestir
casaca, calções e véstia de lemiste10 ou de crepe, com botões forrados e em hipótese alguma a seda;
alertou que casacas de quatro botões estavam em desuso; que espadim, fivelas pretas, fumo no
chapéu com laçada no canto esquerdo − sempre meio penduradas −, faziam parte da indumentária
lutuosa, que seguia períodos determinados (Tabela 1). O luto era rigoroso na metade daquele período
e aliviado no tempo restante, ocasião em que era permitido usar casacas com forros de cor. As viúvas
deveriam conformar o luto segundo a legislação: a Pragmática de 17 de agosto de 1762 e de 4 de
fevereiro de 1756.

Tabela 1
LUTO POR PERÍODO
Pessoas Reais, Primeira Esposa, Pais, Avós, Bisavós, Filhos, Netos e Bisnetos 6 meses
Sogro (a), Genro, Nora, Irmãos, Cunhados 4 meses
Tios, Sobrinhos, Primos (coirmãos) 2 meses
Parentes Remotos 15 dias

Fonte: SIQUEIRA, João de Nossa Senhora da Porta. Escola de Política ou tratado prático de civilidade portugueza
acrescentado com o compreendido da doutrina christã. Lisboa: Typografia Rollandiana, 1862, p.171.

O “Manual de Civilidade e Etiqueta” conforme citado por Garcia trata-se do Manual de


civilidade e etiqueta (ornado com estampas) para uso da mocidade Portugueza, e Brazileira (SILVA
MENGO, 1845). Foi publicado em 1845 e seu autor é Jacinto da Silva Mengo (1808-1866), que usou o
pseudônimo “Cavalheiro”. Seu objetivo era tornar portugueses e brasileiros “interessantes e
agradáveis” segundo padrões dos países mais civilizados. Comendador da Ordem de Christo,
cavalheiro condecorado de diversas ordens estrangeiras, Silva Mengo explicou que a redação mais
simplificada tinha como objetivo atingir um número maior de pessoas dispostas a entrarem no “grande
mundo”, o círculo denominado como “alta sociedade” e definiu assim “etiqueta”:

[...] é um muro que a boa sociedade levantou para se acobertar de quaesquer ofensas,
ou faltas de respeito graves, cuja pena não se acha estabelecida nas leis, que regem os
diferentes povos ou, para melhor dizer, é um escudo impenetrável contra a invasão de
tudo quanto é impertinente, grosseiro e vulgar. (SILVA MENGO, 1845, p. VI)11

Como o excesso de joias, decotes generosos e quaisquer novidades que atentassem contra a
‘moral’ e a ‘decência pública’ (idem, p. 34), complementa. Para as modas o autor recomendou equilíbrio
nos mesmos termos que Porta Siqueira. Sobre o luto destacou o adiantado processo de ‘uniformização’

                                                                                                                       
10 Tecido fino, preto, de lã.
11 Manteve-se a grafia original em todas as citações usadas neste artigo.

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dos rituais fúnebres, “quase idênticos em todas as cidades da Europa” (idem, p. 35), inclusive quanto
ao período regular (Tabela 2).

Tabela 2
LUTO POR PERÍODO

Pessoas Reais, Esposa, Pais, Avós, Bisavós, Filhos, Netos e Bisnetos 6 meses
Sogro (a), Genro, Nora, Irmãos, Cunhados 4 meses
Tios, Sobrinhos, Primos (coirmãos) 2 meses
Parentes Remotos 15 dias

Fonte: SILVA MENGO, Jacinto [CAVALHEIRO]. Manual de civilidade e etiqueta ornada de estampas para uso da mocidade portuguesa e
brasileira. Lisboa: Typ. da Soc. Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1845, p. 164.

É bastante provável que Silva Mengo tenha copiado o verbete “luto” do Esboço de hum
Diccionario Juridico, Theoretico, e Practico,12 de 1827, que inclui as leis Pragmáticas e as datas de
outorgas. No entanto, é a distinção do uso do vestuário de luto que, para o autor, deveria ser ditado
pelo costume e não somente pela lei:

Luto é o vestido que se toma em demonstração de sentimento pela morte de alguma


pessoa da nossa obrigação – chama-se pezado ou rigoroso o que traez durante a
primeira metade do tempo que a lei, ou o uso estabelecem em relação aos diferentes
graus de parentesco. (SILVA MENGO, 1845, p. 163, grifou-se).6

Sobre as mudanças nos costumes o autor destacou a ampliação do luto mais íntimo, por
marido ou esposa, pais ou filhos, que se ampliava para um ano, seis meses mais longo que aquele que
a regra determinava. Sobre o vestuário destacou a seda como a grande definidora do tipo de luto que
se carregava: na primeira fase somente a lã era admitida enquanto no luto aliviado “côres menos
carregadas se podem usar” (idem, p. 164).
O “Código do Bom Tom”, também citado por Garcia, corresponde ao Código de bom tom ou
regras da civilidade e de bem viver no século XIX (ROQUETTE, 1845). Foi escrito pelo cônego José
Inácio Roquette, em 1845, e recebeu diversas edições, inclusive uma contemporânea com análise
contextualizada por Lilia Schwarcz,13 onde afirma a relação do autor com membros da nobreza
brasileira. O objetivo da obra era introduzir costumes da corte francesa para leitores da língua
portuguesa. Embora não trate do luto ou de vestuário especificamente, abriu subitens onde abordou os
enterros, pêsames e cartas de pêsames. Nestes tópicos explicou que nos enterros, diferentemente de
batizados e casamentos, as formalidades eram menores. Os parentes próximos, normalmente
debulhados em lágrimas, usavam o manto de dó e grandes crepes nos chapéus. Recomendava que
                                                                                                                       
12SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira, 1827, s./i.
13ROQUETE, J.I. Código de bom tom ou regras da civilidade e de bem viver no século XIX. Lilia Moritz Schwarcz (Org.). Col. Retratos do
Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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todos, exceto as mulheres, acompanhassem o corpo até o cemitério e prestassem, depois de três dias,
uma visita de pêsames. Na introdução destacou aspectos em desuso no Escola de Política, de Porta
Siqueira:

Quem se não rirá hoje lendo os Alvarás sobre os tratamentos, as pragmáticas em


que se marcam os feitios das casacas, e das véstias, e quantas algibeiras devem
ter? Quem não terá como ridículo tudo que ali se diz acerca das fivelas, do espadim,
da caballeira etc.?! (ROQUETE, 1875, p. 10).

Outro manual analisado teve edição no Brasil em 1859, mas seu original é justamente de 1853.
Trata-se do Novo Manual do Bom Tom: contendo modernissimos preceitos de civilidade, política,
conducta, e maneiras em todas as circunstancias da vida, indispensáveis à mocidade e aos adultos
para serem bemquistos e caminharem sem tropeço pela carreira do mundo (VERARDI, 1872) de Luiz
Verardi, pseudônimo de Pierre Boitard. É provável que Garcia tenha cometido um pequeno engano ao
citá-lo como “Novo Código do Bom Tom”. Dizia a propaganda no Diário do Rio de Janeiro, sobre o livro:
“[...] não há livrinho mais próprio para ser adotado nas aulas e como leitura doméstica” (1861, n. 120, p.
3) que prometia sucesso pessoal e profissional. Seu autor estudou desenho, pintura e gravura e
dedicou-se à botânica, geologia, zoologia e taxidermia; trabalhou como redator do Journal des débats e
contribuiu com a Encyclopédie des dames e manuais e tratados sobre os mais variados temas.14 O
Novo manual do bom tom foi impresso até 1910, sempre pela editora dos irmãos Laemmert. Bastante
simplificada em relação a seu original, a edição em português não descreveu nem as formas
vestimentares nem os períodos ritualísticos, apenas que era uma total incivilidade não comparecer a
uma cerimônia fúnebre tendo sido convidado.
A edição francesa de 1853, mais abrangente, afirmava que a polidez tinha regras que
mudavam da mesma forma como mudava a sociedade e discorria minuciosamente sobre as regras do
luto. Segundo Boitard, havia dois tipos de luto, os grandes e os comuns: os primeiros seriam para pais,
avós, marido ou esposa, irmão ou irmã, que se dividiam em três fases. Nas seis primeiras semanas
dever-se-ia usar apenas lã preta, nas seis semanas seguintes a seda e nos últimos três meses poder-
se-ia misturar o branco e o preto. Os lutos comuns seriam para tios, primos consanguíneos e de
segundo grau. Nos quinze primeiros dias dever-se-ia trajar seda preta e nos oito últimos, o pequeno
luto, o branco misturado ao preto. Explicou também que os costumes pediam que a viúva fizesse luto
por um ano e seis semanas, enquanto os viúvos faziam-no por apenas seis meses. Boitard explica o
porquê da diferença:

                                                                                                                       
14 Dictionnaire universel el classique d’histoire et de géographie. Bruxelas: V. Parents et fils, 1862, p. 59-60.

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A mulher não perde apenas o amigo no esposo que escolheu, mas um protetor seu bem
feitor; ela parece sentir a perda da respeitabilidade social e se deixa ficar num estado de
abandono e isolamento e deve aumentar sua dor e suas lástimas. Essa aflição da viúva
se adequa tão bem que o mundo, que nem sempre é tão injusto nos seus julgamentos,
reclama e as estima sobremaneira; sua dor é, assim, sua virtude. Uma viúva, ao
contrário, que se mostra demasiado cedo ao público e se livra o mais rápido possível das
vestimentas lúgubres, fornece uma péssima impressão de si perdendo a estima que
poderia angariar com a sua viuvez. (BOITARD, 1829, p. 86-87)

Para corresponder a tal perda o luto da viúva se diferenciava dos demais: nos três primeiros
meses deveriam usar apenas lã, nas seis semanas iniciais com chapéu e o lenço de crepe preto e nas
seis seguintes de crepe branco. Nos seis meses consecutivos vestir-se-iam de seda preta e, no
inverno, gros de Nápoles e tafetá com chapéu de crepe branco no verão; nos três últimos meses,
roupas em tecido preto e branco; nas seis semanas finais o branco liso, sem estampas. O vestido não
deveria ter botões, os sapatos deveriam ser escuros da mesma forma que os acessórios. A etiqueta
impunha, ainda, que funcionários públicos e militares usassem fita de crepe no braço e na espada; os
eclesiásticos usam-na no chapéu.
O século XIX viu proliferar os manuais e, nesse contexto, é bastante natural que as regras
apresentassem discordâncias, lacunas e contradições. A leitura fácil e a sistematização em capítulos,
que abrangiam diversos aspectos da vida cotidiana, faziam entender rapidamente que havia uma
etiqueta para cada espaço de convívio. Um aspecto relevante, todavia, é a percepção de alguns
autores para as mudanças que deslocavam o luto do espaço do regramento legal para o campo dos
costumes. Já em meados do século, nas principais cidades ocidentais, o luto seria compreendido como
um aspecto das convenções sociais, ainda que se impusessem regras de civilidade ‘moralmente’
obrigatórias.
O vestido de luto que, desde o século XVIII, vinha estreitando sua relação formal com os
vestidos de não luto – sofrendo apenas variação na cor, tecido e acessórios – tornou-se uma
verdadeira febre, como informa Lou Taylor (2009, p. 120-163), atingindo seu ápice a partir de meados
do século. Tudo a indicar que nem mesmo seu uso entre as classes médias europeias fez diminuir o
gosto entre a nobreza e as elites, que se viram obrigadas a redobrar esforços no sentido de remarcar
nos modelos sua “superioridade social”.

Maria Amélia de Bragança, a “flor de régia estirpe”


O Diário do Rio de Janeiro15, de 12 de março de 1853, trouxe no editorial tarjado de preto a
notícia da morte da princesa Maria Amália, de 21 anos, ocorrida oito dias antes, vitimada pela

                                                                                                                       
15 DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, Sábado, 12 de março, 1853, ano XXXII, n. 70.

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tuberculose, a mesma doença que matou seu pai. Nascida em Paris, do segundo casamento de Pedro
I com Amélia de Beauharnais, foi reconhecida princesa brasileira em 1841, com dotação aprovada pelo
Senado logo após o fim do período Regencial. Em março de 1853, quando sua morte foi divulgada pela
imprensa, a nobreza e as senhoras da elite preparavam-se para missas e procissões da Semana Santa
– possivelmente a mais importante solenidade do calendário cristão no período − e para o aniversário
da imperatriz Teresa Cristina, com cortejo e bailes em sua homenagem. Adiantava, então, o Jornal das
Senhoras16 que se trocariam por esta justa razão, os vestidos novos de seda pelos crepes negros, os
enfeites de veludo com berthas igualmente pretas e o lapim para as mantilhas. Um ano antes, o Álbum
Semanal17 havia descrito a receita para a moda de luto – que, inclusive, não diferenciou o rigoroso do
aliviado:

[...] vestido de bella seda preta de grenadine com babados de balsorine, de barege & c.,
camisinhas de renda e retroz preto, manteletes, visites brancos, pulseiras, colares, & c.,
tudo do melhor gosto” (1852, p. 42).

Le Moniteur de la Mode,18 detalhando anos mais tarde as regras do luto para os ofícios das
cortes europeias, explicou que o uso da seda, o destacando que tais regras eram sempre ditadas pelo
soberano, embora fosse praxe funcionários e militares de uniformes trazerem o fumo no braço
esquerdo e na espada e os eclesiásticos no chapéu por um ano. O dr. Sallustio, comentando sobre as
novas estampas no Novo Correio das Modas,19 advertia que chapéus de veludo preto com rendas e
plumas − que não escondiam o rosto − eram a “voga” em Paris, usados com vestidos pretos de uma
ordem de babados de tafetá, apenas.
Como era comum nesses acontecimentos, divulgava-se na imprensa as deliberações do
Ministério do Império: seguir-se-iam oito dias de nojo e seis meses de luto, três rigorosos e três
aliviados; marcava-se a missa de Réquiem, o cortejo de pêsames − no Paço Imperial −, quando “as
pessoas da corte e da imperial casa [deviam] concorrer [...] com segunda farda e vestuário preto”.20 A
Marinha, em anúncio no Correio Mercantil21 também reforçava a indumentária em comunicado próprio:
os oficiais da armada deveriam comparecer com o segundo uniforme, o de calça azul. A Câmara
Municipal da Corte convidava vereadores a tomarem nojo com o Imperador, enquanto o calendário,
amplamente divulgado, deliberava a data para as exéquias e a missa pontifical, ambas com a presença
dos monarcas. Salvas de canhão de cinco em cinco minutos, fortalezas e navios de guerra com

                                                                                                                       
16 JORNAL DAS SENHORAS, Tomo III, março, 1853, p. 90.
17 O ALBUM SEMANAL, 18 jan. 1852, n. 11, p. 42.
18 LE MONITEUR DE LA MODE, journal du grand monde, n. 3, Set. 1871, p. 215.
19 NOVO CORREIO DAS MODAS, Rio de Janeiro, 1853, p. 120.
20 DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, Ano XXXII, n. 71, 13 março 1853, p.1.
21 CORREIO MERCANTIL, Rio de Janeiro, Ano X, n. 76, 17 março 1853.

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bandeiras a meio mastro, teatros fechados, enfim, tudo concorria para solenizar a princesa morta como
praticado nas cortes da Europa.
De modo geral, os jornais dividiam a notícia fúnebre com os detalhes da pompa do casamento
do imperador francês Napoleão II com a condessa espanhola Eugenia de Montijo. Elencavam-se por
meio de metáforas simples as virtudes da princesa Maria Amélia: “lâmpada apagada do templo da
virtude, pérola caída do diadema dos príncipes, rosa caída antes de desabrochar”; “anjo do céu,
peregrina na terra”; “rico tesouro, gema de mais peso desta terra tão fecunda”, “cândida açucena do
paraíso, precioso lyrio dos ceos, anjo beatificado de Deos e adorado pelas duas gloriosas nações” etc.
O Novo Correio das Modas,22 também tarjado de preto, conclamava as brasileiras a chorarem com o
imperador: “Chorem-a todos aquelles para quem virtude e nascimento não são chimeras!” De forma
unânime, monarquistas e republicanos, escravocratas e abolicionistas, todos pareciam unidos no
sentido de reverenciar a jovem princesa. O Jornal do Commercio23 reproduzia com elogios algumas
linhas do português Revolução de Setembro: “A dor não conhece distincções mundanas” e o Periódico
dos Pobres24, também tarjado de preto, destacava na capa a dor da mãe viúva pedindo, em seguida, a
intercessão da princesa no céu pelas duas nações enlutadas. A maior parte dos periódicos, como A
Rosa Brasileira,25 descreveu o cenário dos eventos de forma pouco espetacular com direito à presença
de um retrato da princesa coberto por véu negro. Há, no entanto, no Correio Mercantil26 uma crítica
severa aos produtores do espetáculo. O retrato da princesa, embora não citado no comentário, será
relembrado como sinal de mau gosto na descrição das exéquias de D. Maria II, no mesmo ano.

Uma porção de panos velhos e de galões falsos ornava o templo e dava um aspecto
mesquinho e sórdido a essa cerimônia que devia ter alguma cousa de grandioso e
severo. [...] Uma coroa de princesa e um manto imperial dizem mal sobre uma grosseira
baeta preta, e a pompa de uma monarchia não pode ser compreendida por quem tão
pouco zela a dignidade de um imperador. (1853, p. 1).

Os decretos do Ministério do Império, que organizavam o calendário de solenidades da casa


imperial, eram reproduzidos pela imprensa diária que, posteriormente, reportava muito superficialmente
as cerimônias. Embora nenhum dos impressos brasileiros tenha discorrido especificamente sobre as
regras de luto, tudo indica que, pelo menos nas solenidades e atos públicos, havia uma forte
concorrência de público feminino trajando luto. Na missa pela alma da rainha de Portugal, em 1854, a

                                                                                                                       
22 NOVO CORREIO DAS MODAS, Rio de Janeiro, 1853, p. 89.
23 JORNAL DO COMMERCIO, suplemento, n. 70, 11 março 1853, p.2.
24 DIÁRIO DOS POBRES, 15 mar. 1853, ano IV, n. 28, p. 3.
25 A ROSA BRASILEIRA, dedicado ao Bello Sexo, vol. IV, n. 8, 16 abr. 1853, p. 6.
26 CORREIO MERCANTIL. Rio de Janeiro, anno X, n. 107, 17 abr. 1853, p. 1.

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Marmota Fluminense27 informou: “No coro superior via-se como um anphiteatro, onde se achavam 200
das principais senhoras desta cidade, trajando pesado luto.”

Conclusão
A literatura de civilidade para adultos colocou de forma didática e objetiva regramentos
capazes de garantir distinção e prestígio para leitores preocupados em espelhar um estilo de conduta
“civilizada”. Numa cidade tropical com pretensões modernas criava-se uma agenda de eventos onde os
signos de diferenciação precisavam ser remarcados. Embora a corte instalada no Rio de Janeiro
estabelecesse parte dessa nova agenda, havia espaços de sociabilidade na crescente oferta por bailes
e óperas, passeios na rua do Ouvidor, banhos de mar em Botafogo, jantares familiares e lanches nas
confeitarias da cidade que acabaram por implementar novas formas de conduta e aparência. A moda,
que se estabelece como marca de diferenciação, impõe-se também como sinal dos tempos modernos.
O discurso da contenção e do equilíbrio defendido pelos manuais de etiqueta para as modas não
impediu que se operassem mudanças. O vestido de luto, cerimonial ou não, seguiu essa tendência
como, aliás, todo o ritual fúnebre. Nesse aspecto da vida urbana, por sinal, as transformações foram
profundas. Enquanto práticas sociais despontavam como sinal dos novos tempos, outras tendiam à
simplificação ou ao desaparecimento. A frequência à igreja, cenário de convívio entre vivos e mortos,
antigo local de exumação, por exemplo, perdia seu espaço milenar com a criação dos cemitérios
afastados dos centros urbanos. Essa, inclusive, parece ter sido uma das razões para as regras de luto
terem se complexificado e se sobrecarregado no decorrer do século. O retrato fotográfico, que fez
circular a imagem da elite urbana, construiu com corpo enfeitado de pesar28 que, solenizado no vestido
de luto, confirmava as novas formas de relação entre vivos e mortos.

REFERÊNCIAS
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política imperial. 9ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de


corte. Trad.: Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1976.

                                                                                                                       
27MARMOTA FLUMINENSE. Rio de Janeiro, 21 mar. 1854, n. 454, p. 3.
28O título deste artigo parafraseou elogiosamente a obra de WILSON, Elizabeth. Enfeitada de Sonhos: moda e modernidade. Trad.: Maria
João Freire. Lisboa: Edições 70, 1990.

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RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no Antigo Regime. Col. Polêmica. São Paulo: Editora Moderna,
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VERARDI, M. Louis, [Pierre BOITARD]. Novo Manual do Bom Tom contendo modernissimos preceitos
de civilidade, politica, conducta e maneiras em todas as circunstancias da vida indispensaveis à
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Traduzido do francez de luis verardi e offerecidas ao publico brasileiro por um amigo da mocidade, 2ª
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VOVELLE, Michael. La mort et l’Occident, de 1300 à nos jours. Paris: Éditions Gallimard, 1983.

Periódicos

A ROSA BRASILEIRA, dedicado ao Bello Sexo. Rio de Janeiro, 16 abr. 1853, vol. IV, n. 8.

CORREIO MERCANTIL. Rio de Janeiro, 17 mar. 1853, ano X, n. 76.

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CORREIO MERCANTIL. Rio de Janeiro, 17 abr. 1853, ano X, n. 107.

DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO. 12 março 1853, ano XXXII, n.70.

DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO. 13 mar. 1853, ano XXXII, n. 71.

DIÁRIO DOS POBRES. Rio de Janeiro, 15 mar. 1853, ano IV, n. 28.

JORNAL DO COMMERCIO [suplemento]. Rio de Janeiro, n. 70, 11 março 1853.

JORNAL DAS SENHORAS. Rio de Janeiro, Tomo III, março, 1853.

MARMOTA FLUMINENSE. Rio de Janeiro, 21 mar. 1854, n. 454, p. 3.

LE MONITEUR DE LA MODE, journal du grand monde, n. 3, Set. 1871.

O ALBUM SEMANAL. Rio de Janeiro, 18 jan. 1852, n. 11.

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Sessão Temática 04
História da Indumentária e da Moda

Coordenação: Profa. Dra. Rita Andrade | UFG


Local: Museu Paranaense

Dia 13/05

A categoria vestido de prenda no Movimento Tradicionalista Gaúcho de Porto Alegre - RS


Caroline Müller / Universidade Federal do Paraná – UFPR / carolinemuller.design@gmail.com
Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Corrêa /Universidade Federal do Paraná – UFPR / rcorrea@ufpr.br

Este texto tem como objetivo apresentar a categoria vestido de prenda no Movimento
Tradicionalista Gaúcho (MTG), explicitando algumas prescrições de uso instituídas pelo
movimento, referente ao modelo que compõe a vestimenta feminina. Ainda, com base em
documentos, referências bibliográficas, nas narrativas de Nilza Gonçalves Lessa e na
participação de eventos organizados pelo movimento, procuramos identificar como é utilizado o
vestido de prenda no contexto deste grupo, seus desvios e invenções.
Palavras-chave: Cultura material, identidade, indumentária

As aparências no além-mundo: reflexões acerca do guarda-roupa fúnebre e do hábito


franciscano no Brasil (séculos XVIII e XIX)
Juliana de Mello Moraes / Universidade Regional de Blumenau – FURB / jmmoraes@furb.br

Até início do século XIX, variados elementos contribuíam para a salvação da alma dos fiéis
católicos, incluindo a escolha acertada das vestes fúnebres. Dentre essas destacava-se a
mortalha franciscana. Nesse sentido, este texto, a partir das representações do hábito de São
Francisco inscritas na bibliografia produzida pelos franciscanos, avalia como as práticas fúnebres
se adequaram às exigências da moralidade católica em voga, em detrimento das mutações no
universo da moda.
Palavras-chave: Trajes fúnebres, franciscanos, História da morte

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A formação do olhar, o Design de Moda e a história da moda como argumento para a


emancipação feminina
Maria Teresa Lopes Ypiranga de Souza Dantas / Universidade Federal de Pernambuco
//teresa.designer@gmail.com

Este artigo consiste em fazer a discussão do processo de Formação do Olhar dos alunos de
design, a partir da relação com a história e com a sociologia, tomando como recorte para tal o
exame da relação de emancipação feminina, com base na relação do vestir, ou seja, dentro do
campo da moda, por meio da análise de significação das obras de quatro estilistas modernos,
Charles Frederick Worth, Paul Poiret, Christian Dior e Yves Saint Laurent.
Palavras-chave: Formação do olhar, Aparência feminina, Discurso Visual.

Têxteis, vestuários e cores na Idade Média tardia (séculos XII-XIV)


Igor Renato Machado de Lima / Universidade de São Paulo / Igorlima.usp@gmail.com

O objetivo deste artigo é tratar do debate historiográfico sobre moda, relacionando o tema dos
têxteis, do vestuário e das cores durante o medievo tardio (séculos XII ao XIV). Deste modo,
trabalha-se com o conceito de moda cavalheiresca, sendo destacado principalmente os debates
historiográficos sobre Inglaterra e França. No presente artigo são enfocados os aspectos
culturais, como as investiduras cavalheirescas, a presença e força simbólica dos artefatos de
luxo, como tecidos e joias do Oriente, bem como os discursos morais sobre as aparências e as
cores. Desse modo, a historiografia medieval tem levado em consideração as grandes
transformações das aparências e a presença da moda.
Palavras-chave: História da Moda; História Têxtil e da Indumentária; História das Cores; História
Medieval; Historiografia Medieval.

Dia 14/05

A lingerie na obra de Édouard Manet e Henri de Toulouse Lautrec


Mônica Greggianin (Faculdades Integradas de Taquara) / monicagreggianin@gmail.com

O objetivo deste artigo é ressaltar a possibilidade do uso das obras de arte dos artistas Henri de
Toulouse Lautrec e Édouard Manet como auxílio para o estudo da história da lingerie. A
representação das peças de roupa íntima nas obras desses artistas possibilita a visualização de
artefatos não mais existentes, dando subsídios para a compreensão de costumes, vestes e
hábitos de uma classe menos favorecida e que, portanto, dificilmente teriam seus pertences
conservados e catalogados em um acervo.
Palavras-chave: História da lingerie; Édouard Manet; Henri de Toulouse Lautrec

A indumentária do imigrante em Joinville/SC no século XIX


Ruth Pavanello Bianchini / Univille / ruthpavanellobianchini@gmail.com
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes / Univille / sandraplcguedes@gmail.com

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 359


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Este artigo tem como principal objetivo identificar os diferentes tipos de indumentária e os modos
de utilizá-la existentes em Joinville, Santa Catarina, no século XIX. Partiu-se do pressuposto que
os imigrantes tiveram que fazer adaptações àquela indumentária utilizada na Europa antes de
partirem para o Brasil. Além da revisão bibliográfica realizada, a pesquisa contou com a análise
de documentos escritos e iconográficos existentes no Arquivo Histórico de Joinville o que
possibilitou a identificação dos diferentes tipos e usos da indumentária utilizada em Joinville no
período em estudo.
Palavras-chave: História da moda, Indumentária, Joinville.

História da moda brasileira no século XIX: uma leitura do romance Quincas Borba de
Machado de Assis
Eleonora Regina Capovilla Meleiro / eleonora.capovilla@gmail.com

Com o intuito de destacar alguns aspectos centrais do desenvolvimento da moda brasileira no


século XIX, o notório romance Quincas Borba - de autoria de Machado de Assis - fora escolhido
como objeto central de análise e estudo. Tal escolha não pretende ser arbitrária: a primeira
publicação da obra se deu em formato de folhetim , sob forma seriada, na revista “A Estação”,
veículo impresso destinado exclusivamente ao gênero feminino com forte ênfase sobre a moda e
comportamento daquele período. Neste sentido, a presente investigação baseia-se em trechos
do livro que destacam o vestuário e outros comportamentos típicos dos personagens,
possibilitando uma reflexão sobre a moda do período novecentista a partir de documento
contemporâneo à época.
Palavras-chave: Machado de Assis; Quincas Borba; moda; personagens; folhetim

A moda afro-brasileira: raízes culturais por estilistas brasileiros


Patrícia H. C. Harger / Universidade Tecnológica Federal do Paraná / patyharger@hotmail.com
Raquel Rabelo Andrade / Universidade Estadual Paulista / raquel_andrade00@yahoo.com.br
Andressa Karen Rossi / Universidade Estadual Paulista / dressa_rossi@hotmail.com

Este artigo discute a moda afro-brasileira, podendo a moda ser considerada um suporte cultural.
Tem por objetivo abordar a diferença existente entre a moda brasileira e a moda afro-brasileira.
Considerando também os estilistas criadores dessa moda e como estes atores sociais
materializam sua identidade por meio das roupas, das coleções e também, como a moda afro-
brasileira tem como influência a religião e a cultura, fazendo com que a estética das roupas se
diferenciem construindo assim uma narrativa própria.
Palavras-chave: Moda; Estilistas; Afro-brasileiro.

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A lingerie na obra de Édouard Manet e Henri Toulouse Lautrec


The lingerie in Édouard Manet and Henri Toulouse Lautrec’s work

Mônica Greggianin (Faculdades Integradas de Taquara)


monicagreggianin@gmail.com

Resumo: O objetivo deste artigo é ressaltar a possibilidade do uso das obras de arte dos artistas
Henri de Toulouse Lautrec e Édouard Manet como auxílio para o estudo da história da lingerie. A
representação das peças de roupa íntima nas obras desses artistas possibilita a visualização de
artefatos não mais existentes, dando subsídios para a compreensão de costumes, vestes e
hábitos de uma classe menos favorecida e que, portanto, dificilmente teriam seus pertences
conservados e catalogados em um acervo.
Palavras-chave: História da lingerie; Édouard Manet; Henri de Toulouse Lautrec.

Abstract: This article’s aim is highlight the possibility to use Henri de Toulouse Lautrec and
Édouard Manet’s work as a complement for the study of lingerie history. The representation of
underwear parts at the work of these artists allows the visualization of no more existent artifacts,
giving subsidies to understand costumes, clothes and habits of a less favored class that possibly
wouldn’t have their belongings preserved and cataloging as a collection.
Keywords: Lingerie history; Édouard Manet; Henri de Toulouse Lautrec.

Introdução

As fontes para estudar a história do costume são variadas bem como os aspectos
sociais, culturais e tecnológicos que compõem a história das roupas. Tantas fontes podem ser
entendidas como um quadro problemático e historiográfico que possibilita analisar os
documentos dentro das limitações de cada uma. A primeira fonte direta são as próprias roupas e
peças do vestuário dos acervos de museus de moda ou históricos. Porém, devemos questionar
quais são as peças e tecidos disponíveis para estudo. Tecidos são frágeis e por isso, com o
tempo desgastam e desintegram com facilidade, além de possuírem difícil conservação. Por
exemplo, raramente as peças conservadas são roupas íntimas e, mesmo as roupas íntimas
conservadas devem ser analisadas com parcimônia visto que, encontradas em castelos nobres,
não demonstram hábitos de uso das camadas urbanas. Portanto, se é possível conhecer certas
combinações de tecidos, cortes e modelagens, também há de se pensar cuidadosamente no que

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essas peças conservadas nos permitem conhecer do aspecto social e habitual da vestimenta
das épocas em questão. (CALANCA, 2011).
Por esse fato que o quadro problemático de fontes é ampliado. O estudo dos tecidos
está ligado o estudo das roupas, e sobre esses pode ser feita uma análise de arquivos,
inventários e livros contábeis de comerciantes e fabricantes. Isso possibilita o conhecimento da
história econômica da fabricação e distribuição dos fabris. Essa análise é útil e deve ser
associada a uma análise dos hábitos de consumo em relação às roupas e tecidos em cada
época. (CALANCA, 2011). Outra importante fonte para o estudo da história da vestimenta são as
fontes literárias. Entre elas estão incluídos dicionários e enciclopédias que informam antigos
hábitos e práticas. Além de romances que muitas vezes descrevem quase que graficamente as
vestes das personagens. A literatura, então, se classifica como um dos registros que
pesquisadores podem recorrer na reconstrução da história da vestimenta e dos estilos de vida,
consumo e moda dos períodos. (CALANCA, 2011; RODRIGUES, 2010).
Tão importante quanto as fontes citadas estão as fontes imagéticas. As imagens formam
uma documentação figurativa importante e útil para a descoberta de cores, modelos, ocasiões de
uso. Dessa documentação iconográfica fazem parte gravuras e estampas que têm grande
difusão e serviam como divulgação de modelos, regras e procedimentos do processo fabril.
Segundo Peter Burke (2005), as imagens possibilitam a aproximação com a cultura material
quando o próprio material não está mais disponível. São as imagens que auxiliam para nosso
reencontro com esses materiais. Deste modo, pinturas e esculturas também auxiliam na
construção de uma análise histórica da vestimenta mesmo que, segundo Calanca (2011) deva
também ser analisada com cuidado, pois pode representar uma imagem distorcida, compondo
uma teatralização de gestos e corpos. Porém, as pinturas evocam o sentido de uma época e o
contexto do período retratado que o têxtil por si só talvez não fosse capaz de nos trazer. As
pinturas contam certas histórias e possibilitam que as roupas sejam personagens importantes
delas tornando visíveis detalhes de uma vida que os tecidos não mostram. (BOSAK, 2015).
Ainda, os quadros oferecem uma perspectiva na história da moda em relação às cores,
possibilitando estudar a combinação entre a evolução dos corantes e técnicas, e principalmente
as funções simbólicas dessas cores e das peças delas tingidas ou cerzidas.
Não apenas pelo trabalho da cor, a moda se entrelaça com a arte em diversos aspectos
e maneiras. Caminham juntas a história do vestuário e a história de como ele “foi usado,
interpretado e transformado pelos artistas em diferentes contextos. ” (COSTA, 2009. p.9). Para a
autora, essa relação entre arte e moda explora aspectos com o corpo, a identidade, o poder e a

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sexualidade e, por isso a indumentária foi tão instigante para mestres da arte do passado ao
presente.

A lingerie na época de Manet e Toulouse Lautrec

Édouard Manet nasceu em Paris em janeiro de 1832 e veio a falecer também na capital
francesa no final de abril de 1883. Já Henri de Toulouse Lautrec nasceu em Albi, França, em
novembro de 1864 e faleceu em Saint-André Du Bois em setembro de 1901. Os dois artistas
foram contemporâneos por apenas vinte anos, porém, os dois, fizeram parte da história da arte
do século XIX. (GOMBRICH, 2013).
Faz-se necessário contextualizar como se encontrava o estado da arte da roupa de
baixo feminina daquele momento da história. O século XIX foi um momento de grandes e
importantes mudanças na história da lingerie. A Revolução Francesa no final do século XVIII
sinalizou uma grande mudança política e social que influenciou na moda vestida por cima e por
baixo. As saias amplas, anáguas e armações juntamente com os espartilhos apertadíssimos
deram lugar ao estilo romântico que contava com cinturas largas e o mínimo de roupa “de baixo”
possível. Após a Revolução os espartilhos caíram em desuso e togas retas de linho, musselina e
algodão eram usadas por baixo dos vestidos também mais simplificados. Já se tinha a ideia de
que a lingerie passava a ideia de nu e por isso as roupas de baixo passaram a ser de cores
claras como branco ou o nude. Essa moda das roupas de baixo pouco estruturadas durou pouco
e logo os espartilhos de barbatana de baleia voltaram e as lingeries chegavam a pesar até cinco
quilos. (SCOTT, 2013). A principal característica que permeia a moda feminina neste período é a
questão dual da volúpia contrastando com a moral repressora da época. Ao mesmo tempo que
as mulheres estão enclausuradas em trajes rebuscados e sem mobilidade, aparecem de maneira
erotizada em determinadas vestimentas.
O século XIX foi sinônimo de repressão sexual, e as mulheres voltaram a vestir camadas
sobrepostas e múltiplas roupas de baixo. As limitações físicas que os espartilhos impunham
eram sinônimo de disciplina moral fazendo com que o que determinasse a virtuosidade de uma
mulher fosse a sua cintura, o mais estreita possível. Inclusive, um espartilho mal amarrado ou
afrouxado era sinal de mulher de pouca virtude ou mesmo de que a mulher era prostituta.
(BOUCHER, 2010; SCOTT, 2013; THOMAS; ORMEN, 2010). A cintura muito fina era o
estereótipo de uma mulher ideal, pois representava o corpo não deformado pelas funções da
maternidade, o que se relacionava com a valorização da virgindade, da mulher preservada e
longe das tentações do sexo. (RODRIGUES, 2010). O espartilho era utilizado desde o século

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XVI tanto por mulheres como para homens. É no século XIX que a peça passa a ser unicamente
feminina pois se acreditava que a mulher, tomada por furores e uma sexualidade não controlada,
necessitava de algo que a controlasse e a coagisse em relação à esses desejos. Passa isso o
uso do espartilho que comprimia o corpo e as vontades. (SCOTT, 2013; RODRIGUES, 2010).
A autora Maria Alice Ximenes (2011) enfatiza questões de sexualidade e culpabilidade
da mulher analisando as roupas como um medidor da libido tendo o homem como espectador. O
fato pode ser percebido nas obras de pintores - homens - do realismo, impressionismo e pós-
impressionismo, tais quais Édouard Manet e Toulouse Lautrec. As mulheres representadas,
grande parte delas prostitutas, aparecem como exemplo da representação do nu que enfatiza
quadris e nádegas avantajadas. Tal silhueta também formada pelos espartilhos do século XIX,
no caso delas, prostitutas, espartilhos mal amarrados.

A lingerie na obra de Manet e Toulouse Lautrec

Como citado, os artistas escolhidos foram contemporâneos por pouco tempo, sem sinal
de convivência e não necessariamente fazem parte do mesmo movimento, sendo que Manet é
considerado um grande nome do Impressionismo e Toulouse Lautrec um representante do que
seria um pós-impressionismo (GOMBRICH, 2013). A escolha dos dois pintores foi feita a partir
de suas obras que enfatizam o nu, as roupas íntimas femininas e recorrentemente representam
prostitutas.
Para o século XIX, o espartilho é o grande conformador de silhueta feminina e
responsável pela caracterização do corpo da mulher, além de também responsável
simbolicamente por sua moral. (SCOTT, 2013; XIMENES, 2001).
Édouard Manet, em 1877, pinta a obra intitulada Nana. O próprio nome Nana era comum
na França do século XIX para se referir a prostitutas ou mulheres frívolas.

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Édouard Manet, Paris, 1832 – 1883, Nana, 1877.


Óleo sobre tela, 264cm x 115cm, Kunsthalle, Hamburgo.

Na obra vemos a representação de uma prostituta de alta classe. Pode-se observar sua
roupa de baixo composta por um espartilho azul claro que fica por cima de um chemisier,
espécie de camisola utilizada por baixo das roupas no século XIX. A chemisier é branca, com a
barra trabalhada no que aparenta ser uma renda e fica na altura dos joelhos. Veem-se também
as meias de seda em um tom parecido com o do espartilho e ornamentada pelo que parece ser
um bordado perto dos pés calçados em salto alto. Pela iluminação representada pelo artista,
supõe-se que o espartilho seja em cetim azul, um tecido nobre, o que era possível pelo fato da
mulher representada ser uma prostituta de alta classe, também demonstrado pelo alinhamento
de sua lingerie, limpa e com adereços em renda. Outro aspecto interessante que a obra nos
permite perceber sobre o espartilho é seu modelo. Um modelo com alças e não “tomara que
caia”, mais comum na época. Com a parte anterior alongada, o espartilho já demonstra uma
modelagem da silhueta em S, o que se tornou padrão no final do século XIX, concordando com a
data da obra, 1877.
Um ano antes de Nana, Manet pintou Delant la glace. A pintura representa,
provavelmente, a mesma mulher, mas em uma cena individual, de costas para o espectador.

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Édouard Manet, Paris, 1832 – 1883, Delant la glace, 1876.


Óleo sobre tela, 921cm x 714cm, Guggenheim, Nova York.

É interessante perceber em Delant la glace as amarrações do espartilho. Pela pintura de


pinceladas mais marcadas, típicas do impressionismo, não se percebe, tanto como em Nana, a
textura do tecido do espartilho, porém, nessa posição da mulher, as amarrações do espartilho
ficam visíveis. No século XIX ainda eram comuns os espartilhos com amarrações em fitas, como
o visto na obra, o que tornava seu ajuste complicado de ser feito sozinha, necessitando, para
que ficasse devidamente apertado como a moral sugeria, de uma criada. Este fato também
relaciona o espartilho ao simbolismo de mulher nobre, de boa conduta e ainda com dinheiro
suficiente para ter uma criada que lhe auxilie na colocação dos espartilhos. Até por isso a
relação de um espartilho mal amarrado com pessoa de más condições sociais e morais.
(BOUCHER, 2010; SCOTT, 2013).
Outra obra de Manet em que é possível se observar a roupa íntima feminina no século
XIX é Femme fixation as jarretière de 1878.

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Édouard Manet, Paris, 1832 – 1883, Femme fixation sa jarretière, 1878.


Pastel sobre tela, 55cm x 46cm, Ordrupgaard, Copenhagen.

Nessa obra de Manet vemos uma mulher, que não se sabe ser uma modelo profissional
ou uma amiga pessoal do artista, fixando sua liga, o que já é dito no nome da obra.
Conseguimos ver nessa obra que no século XIX ainda se tratava de meias individuais (e não
unidas como a meia calça) e que, sem elástico na composição, necessitavam ser presas com
ligas. Também é visível nas vestes da mulher que, por baixo da saia de cor marrom, encontra-se
uma saia de tecido branco. Esta saia em tecido branco é uma saia de armação utilizada acima
do chemisier que também é visível na imagem, abaixo do espartilho. Diferente do espartilho em
Nana e Delant la glace, o espartilho nessa imagem é de cor preta e um modelo muito melhor e
mais simples que o anterior. O espartilho mostrado localiza-se apenas na cintura da mulher até a
base dos seios, salientando e aumentando seu volume. Analisando o espartilho pintado com
cuidado também nota-se que a abertura é frontal. Percebe-se isso na lista branca presente no
espartilho, mostrando o tecido da chemisier. Os espartilhos com amarração frontal passaram a
existir justamente para facilitar o ajuste individual da peça no corpo, não necessitando de outra
pessoa para isso. Era costume, nesses casos, o uso de um corset cover, uma espécie de blusa
que cobria o espartilho e ficava por baixo do vestido, mas poderia aparecer em detalhes de
rendas e bordados. (SCOTT, 2013; THOMAS; ORMEN, 2010). Não há um corset cover sendo
usado pela mulher retratada. Pode ser pelo fato dela ainda estar se vestindo ou por talvez ser
uma prostituta, que geralmente não usavam a peça enaltecendo os seios bastante a mostra.

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Toulouse Lautrec também possui obras em que é possível se perceber a lingerie feminina do
século XIX. A obra Conquête de passage de 1896 é um exemplo disso.

Henri de Toulouse Lautrec, 1864 – 1901, Conquête de passage, 1896.


Pastel sobre tela, 106cm x 68cm, Museé des Augustins, Toulouse.

Nessa obra vê-se uma mulher de costas ajustando seu espartilho sozinha. Como já foi
colocado, essa era uma ação difícil de se praticar sozinha, principalmente com o ajuste em fitas
na parte posterior da peça. A imagem nos permite ver que o modelo do espartilho é diferente dos
anteriormente mostrados. Diferente de Nana e Delant la glace, o espartilho mostrado aparenta
ser mais simples tanto em modelo como em tecido. A modelagem é tomara que caia, mais
comum na época, (SCOTT, 2013) e possui o comprimento da parte traseira maior do que na
parte frontal. O rebaixo da parte frontal favorece a sustentação dos seios e também os salienta.
Também aparece, por baixo do espartilho, a chamisier e, neste caso, é interessante perceber a
representação da saia ainda aberta, mostrando a roupa íntima. Como visto, no século XIX a
roupa íntima passa a ser sempre de cores claras como branco e nude (SCOTT, 2013) fazendo
com que a sujeira acabasse ficando aparente e assim demonstrando mais uma vez um sinal de
virtuosidade quando as roupas íntimas eram brancas e limpas. (CALANCA, 2011).
Referindo-se a roupas íntimas brancas, outro exemplo de obra do Toulouse Lautrec
pode ser comentado.

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Henri de Toulouse Lautrec, 1864 – 1901, L’Inspection médicale, 1894.


Óleo sobre cartão, 83,5cm x 61,4cm, National gallery of Art, Wasgington.

Nessa obra de Toulouse Lautrec estão representadas duas mulheres com as roupas
levantadas para uma inspeção médica. O que se pode ver com essa imagem, em relação às
roupas íntimas, é o fato de não se usar o que hoje chamamos de calcinha. No século XIX essa
peça não era comum. O chamisier era a peça mais próxima ao corpo, algumas vezes
acompanhada por uma espécie de calção amarrados às pernas, nas pessoas mais abastadas.
Percebemos também que a mulher a esquerda veste seu chemisier de cor nude, cor mais
recorrente, juntamente com o branco, nas lingeries. (SCOTT, 2013). Apesar disso, as meias de
ambas - e de muitas outras mulheres prostitutas representadas por Toulouse Lautrec - são de
cor preta. Ao contrario das meias de Nana, uma prostituta de alta classe com meias azul claras,
as mulheres representadas por Toulouse utilizam meias escuras que possibilitava esconder a
sujeira sendo comum para pessoas de classes menos abastadas. Lembrando que as roupas
brancas e limpas eram um símbolo de status, dinheiro e condições de manter empregados para
o cuidado com as roupas (CALANCA, 2011).
Outro fato a ser percebido na obra é a silhueta das mulheres. Principalmente da mulher
representada à direita da obra, vê-se uma silhueta em S, típica do final do século XIX. Essa
silhueta era proporcionada por espartilhos que projetava o peito para frente e a parte posterior

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para trás aumentando o volume da bunda. Isso era muito explorado com o uso de anquinhas e
puffs acima da chemisier e abaixo das saias de armação, que aumentavam significativamente o
volume posterior dos vestidos. (BOUCHER, 2010). Essa representação de nádegas avantajadas
presente na obra, principalmente na mulher de cabelos ruivos, deve ser analisada também com
parcimônia, visto que, como afirma Ximenes (2011) é fruto de uma visão masculina marcada por
simbolismos sobre corpo nu da mulher que, mesmo sem suas vestes e seu espartilho
modelador, possui a silhueta que este o impõe.
Cada uma das obras analisadas traz algumas características do que foi a lingerie do século XIX
principalmente em uma classe menos representada e com menos indícios de cultura material
disponível nos acervos.

Considerações finais

As fontes para estudar a história do costume são variadas. A história da lingerie se vale
muito dessa variedade de fontes justamente por serem peças de difícil conservação
principalmente quando se trata da lingerie de mulheres comuns, não nobres. Quando não se
possui a cultura material disponível é possível, através do aparato imagético, perceber
informações sobre o objeto em estudo que não necessariamente tenhamos em corpo para
análise.
Temos em Manet e Toulouse Lautrec artistas auxiliares do estudo da historia da lingerie. Porém,
é sabido que isso deve ser feito com cuidado. Primeiro porque sabemos que essa é uma
realidade representada também pela imaginação de um artista. Não há um compromisso com a
realidade da representação das peças e das silhuetas pelos artistas. Segundo, porque se trata
de um olhar masculino sobre a figura feminina, o que inclui erotizações e simbolismos de uma
época que devem ser considerados, como foi feito quando tratamos da silhueta da prostituta
representada em L’Inspection médicale.
Apesar do cuidado ao utilizar as obras de arte para uma visualização da lingerie de uma época,
o que se ressalta nas pinturas é o contexto de um período, sua atmosfera e contornos que o
têxtil poderia não nos mostrar. É o que nos permite ver as obras de Édouard Manet e Henri de
Toulouse Lautrec. Um universo de mulheres despidas mesmo com tantas peças, uma ideia do
nu que vai além da carne exposta, mas é composta por sobreposições de chemisiers, saias de
armação e espartilhos mal amarrados. Espartilhos esses que tem diversos significados na
história e que vem a tona nas obras relacionadas. Tecidos mais nobres e cores claras para

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prostitutas de alta classe, bem como as meias também claras, e tecidos e modelos mais
simplificados com cores escuras para as prostitutas de Toulouse Lautrec.
O que o artigo se propõe defender é que as obras dos mestres da arte podem ser utilizados para
auxiliar e nos dar pistas sobre uma parte da história da lingerie que não com facilidade temos
contato. O imaginário de Manet e Toulouse Lautrec pode se unir ao nosso imaginário e
conhecimento encontrado em fontes secundárias para recuperarmos e detalharmos uma história
que não mais está presente em nossas mãos. Temos em grandes museus de moda
representantes de espartilhos das altas classes que puderam ser conservados com mais
facilidade, mas é nas obras desses artistas que temos exemplares de espartilhos das mulheres
comuns, das prostitutas, das mulheres de classes menos abastadas.
Em um segundo momento, as obras desses artistas podem inclusive servir para uma
comparação entre o que temos disponível em acervos e o que seriam os espartilhos de mulheres
comuns. Diferenças de cores, modelos, estruturas, tamanhos. Não apenas utilizando Manet e
Toulouse Lautrec, mas muitos dos artistas realistas, impressionistas, expressionistas. Degas,
Monet, Schiele também são artistas que nos favorecem no estudo da história da moda das
mulheres comuns.

REFERÊNCIAS

Livros
BOUCHER, F. História do vestuário no Ocidente. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
BURKE, P. Testemunha ocular. Bauru: EDUSC, 2005.
CALANCA, D. História social da moda. São Paulo: Editora Senac, 2011.
COSTA, C. T. Roupa de artista: o vestuário na obra de arte. São Paulo: Edusp, 2009.
GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013.
RODRIGUES, M. T. Mancebos e mocinhas: moda na literatura brasileira do século XIX. São
Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.
SCOTT, L. Lingerie: da antiguidade à cultura pop. São Paulo: Manole, 2013.
THOMASS, C.; ORMEN, C. Histoire de la lingerie. França: Ed. Prin, 2010.
XIMENES, M. A. Moda e arte na reinvenção do corpo feminino do século XIX. São Paulo:
Estação das Letras e Cores, 2011.

Artigo
BOSAK, Joana. A moda no museu: o acervo do MARGS e uma história da indumentária local. In:
Anais do XI Colóquio Nacional de Moda. Curitiba: ABEPEM, 2015.

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As aparências no além-mundo: reflexões acerca do guarda-roupa fúnebre e do hábito


franciscano no Brasil (séculos XVIII e XIX)

Appearances in the Otherworld: reflections on the funeral wardrobe and the franciscan
habit in Brazil (eighteenth and nineteenth centuries)

Juliana de Mello Moraes (Universidade Regional de Blumenau - FURB)


jmmoraes@furb.br

Resumo:
Até início do século XIX, variados elementos contribuíam para a salvação da alma dos fieis
católicos, incluindo a escolha acertada das vestes fúnebres. Dentre essas destacava-se a
mortalha franciscana. Nesse sentido, este texto, a partir das representações do hábito de São
Francisco inscritas na bibliografia produzida pelos franciscanos, avalia como as práticas fúnebres
se adequaram às exigências da moralidade católica em voga, em detrimento das mutações no
universo da moda.
Palavras-chave: Trajes fúnebres, franciscanos, História da morte

Abstract:

Until the early nineteenth century, various elements contribute to the salvation of the soul of
catholic faithful, including the right choice of funeral vestments. Among these stood out the
franciscan shroud. In this sense, this text, from the representations of the Saint Francis habit
listed in the bibliography produced by the franciscans, assesses how the funeral practices are
suited to the demands of catholic morality in vogue at the expense of changes in the fashion
world.

Keywords: Funeral Costumes, Franciscans, History of death

O campo da moda nas últimas décadas tem atraído a atenção de pesquisadores de


diferentes áreas, com destaque para a História (CALANCA, 2011). Tal como outros objetos de
pesquisa, a moda vincula-se à diversos aspectos, incluindo o econômico, tecnológico, político,
religioso e cultural. Nesse sentido, enquanto problema de investigação, ela possibilita inúmeras
abordagens. Como matéria interdisciplinar permite, inclusive, a análise das suas representações
e práticas em determinadas sociedades e épocas. Paralelamente, como expressão da cultura
material, a indumentária se afirma como "produto porque resulta da ação humana, de processos
de interações sociais que criam e transformam o meio físico, mas também vetor porque constitui
um suporte e condutor concretos para a efetivação das relações entre os homens" (REDE, 2012,
p. 147).

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As transformações sociais desencadeadas a partir de meados do século XIV, quando


emerge a distinção entre as vestes femininas e masculinas, determinando a gênese do sistema
de moda (LIPOVETISKY: 2009), proporcionaram novas e inéditas relações entre os indivíduos e
o seu entorno. Essas mutações vinculam-se às características inerentes à indumentária, uma
vez que ela expressa "o laço profundo que se cria entre o indivíduo e o mundo" (ROCHE, 2000,
p. 13). Entre os séculos XVI e início do século XIX, a indumentária evidenciava outras
características nas sociedades ocidentais, expressando, sobretudo, as distinções e posições
sociais, através dos jogos de aparências. O movimento provocado pelas transformações do
vestuário demandou, inclusive, a elaboração de legislação específica, denominada Leis
Suntuárias nas monarquias católicas ibéricas (Espanha e Portugal), as quais pretendiam
assegurar o uso de roupas consideradas adequadas a cada grupo social (BOUCHER, 2012, p.
186), conformando uma "cultura da distinção" (ROCHE, 2000, p. 267).
Nesse sentido, as aparências consistiam em sinais exteriores da posição ocupada pelos
indivíduos, marcando seu status na configuração social. Elemento de preocupação e cuidados, o
vestuário enquanto "linguagem simbólica (dos trajes, das armas ou das formas de tratamento)
interessava aos diferentes grupos sociais" (LARA, 2007, p. 91). Nesse sentido, os trajes e
adornos possuíam especial significado no cotidiano das populações.
Além da monarquia, membros da Igreja também não estiveram alheios às mutações do
vestuário e fomentaram debates a respeito do luxo e do supérfluo (ROCHE, 2007). O papel
desempenhado pela Igreja e pela religiosidade naquela época mostrava-se fundamental, pois
como uma dimensão essencial da existência, o religioso "ocupava uma posição central na
sociedade" (FEITLER; SOUZA, 2011, p. 9).
Homens e mulheres participavam de distintas cerimônias religiosas, as quais
assinalavam as alterações do status do indivíduo no seio da coletividade católica. Desde sua
entrada na comunidade de fieis, a formação dos laços conjugais, a prática da comunhão e,
finalmente, a derradeira despedida do mundo terreno decorriam sob os auspícios da Igreja
católica. Após a morte, os fieis contavam com a perpetuação da existência da alma, sendo que
no mundo celeste a alma do fiel poderia atingir um estado ideal, alcançando a salvação. Nessa
perspectiva, a hora da morte implicava um acerto de contas e uma relação direta com o sagrado
ou, ainda mais diretamente, com Deus. No momento de trespasse para o outro mundo, ocorria o
julgamento individual e seria este que condenaria ou exaltaria a alma do defunto, demarcando
também o local onde ela ficaria encerrada. Desse modo, o julgamento individual fazia com que
os homens se tomassem iguais diante de Deus. Ricos ou pobres, nobres ou plebeus, livres ou
escravos, todos que seguissem os preceitos católicos estavam condenados a enfrentar a

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mediação divina no final de sua existência terrena. Logo, “o medo da punição depois da morte e
a angústia em relação à salvação da alma se apossavam igualmente de ricos e pobres, sem
aviso prévio” (ELIAS, 2001, p. 23).
Inferno, Purgatório e Paraíso representavam, pois, a tríade básica da geografia celeste
e, dependendo da vida e da morte do fiel, sua alma tinha como destino certo um desses lugares.
O Paraíso, morada dos justos, local por excelência da felicidade eterna, postava-se como o mais
desejado, porém adentrar as suas fronteiras exigia do cristão uma vivência e uma morte dentro
dos cânones estabelecidos pela Igreja. Para conseguir esse privilégio, era indispensável evitar
todos os tipos de pecado, desde os mais leves aos mais graves, e ter uma vida dedicada à
elevação da fé cristã. A recompensa seria a possibilidade de esperar o Juízo Final da maneira
mais agradável que poderia existir e ter a garantia de que seria salvo no final dos tempos, pois
após a entrada no Paraíso não havia forma de ser retirado dessa instância. Assim, a geografia
do além-mundo, por meio de suas peculiaridades, oferecia oportunidades de felicidade, mas
também de sofrimento e purgação, fomentando temores e exigindo dos vivos cuidados especiais
para a ocasião.
Essas crenças referentes ao momento da morte e suas consequências ampliaram-se
após o século XVI, como fator de contraste ao protestantismo. O reforço da doutrina do
purgatório, após o Concílio de Trento (1563), decorreu através da ação do clero secular e
mendicante. Tanto os sermões como a literatura religiosa, duas esferas essenciais para a
difusão doutrinária na época, enfatizavam as necessárias ações para garantir uma boa morte
(RODRIGUES, 2008, p. 263).
Diversos elementos compunham a "arte de bem morrer", incluindo o cuidado com o local
da inumação e os ritos fúnebres adequados. Entretanto, no conjunto de atitudes recomendadas
para a salvação da alma, também constavam as concepções a respeito da escolha mais
acertada do vestuário fúnebre. A seleção da indumentária adequada era fundamental, pois a
aparência daquele que morria influenciava seu destino no além-mundo (ARAÚJO, 2010, p. 106).
O sucesso da difusão dos preceitos do bem-morrer pode ser verificado nos testamentos
da época. Nessa documentação encontram-se os últimos desejos dos indivíduos e,
diferentemente da atualidade, o principal objetivo consistia nos pedidos relacionados à salvação
da alma, entre os quais se destaca a indicação da roupa fúnebre. Característica que demonstra
a adesão das populações aos ritos divulgados pela Igreja,pó meio da literatura ou durante os
sermões realizados nas missas regularmente executados nos púlpitos.
Entre os séculos XVIII e início do XIX era utilizada uma grande variedade de vestes
fúnebres, incluindo lençóis de distintas cores, vestes militares ou ocupacionais (por exemplo, do

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clero), bem como os hábitos de diferentes santos e santas. Nesse sentido, a devoção de
distintos santos poderia se referenciada no momento da morte através do vestuário do defunto.
Os hábitos de Nossa Senhora do Carmo, de Nossa Senhora da Conceição, de São Francisco
são alguns exemplos das escolhas existentes dentre as vestimentas fúnebres. A disponibilidade
de variadas roupas para o momento da inumação determinou, contudo, a presença de algumas
predileções entre os féis na época. Entre as mortalhas mais utilizadas, na cidade de São Paulo,
no início do século XIX, destacavam-se: os hábitos de São Francisco e o de Nossa Senhora do
Carmo. A veste do santo de Assis envolvia pelo menos 40% dos enterrados em São Paulo
(REIS, 1997). Não era somente nesta localidade que os inumados preferiam a mortalha
franciscana. Na mesma época os moradores, tanto negros como brancos, da Bahia também
eram, em sua maioria, sepultados com as vestes de São Francisco (REIS, 1991, p. 116).
A preferência pela mortalha franciscana em localidades distintas evidencia similaridades
nas preferências dos testadores independente do grupo social, sendo pertinente questionar
quais seriam os motivos para o seu sucesso naquele período.
Nesse sentido, esta pesquisa analisa as representações e práticas fúnebres referentes
ao hábito de São Francisco inscritas na bibliografia produzida pelos mendicantes e difundida no
Brasil, no intuito de avaliar como as práticas se adequaram às exigências da moralidade católica
em voga, em detrimento das mutações no universo da moda.

O guarda-roupa fúnebre e o sucesso do hábito franciscano

O uso generalizado do hábito franciscano entre os mortos do passado já foi assinalado


em diferentes estudos, porém, como afirma Fausto Viana a respeito dessa questão:

"duas abordagens, no mínimo, podem ser feitas. Na primeira, espera-se que o traje
ajude a receber o socorro divino. No outro caso, em avaliação menos modesta, a
entrada no Paraíso fica garantida pelo uso da roupa. Um verdadeiro lobo em pele de
cordeiro, já que o requisito apregoado pela própria crença na humildade ficaria
esquecido." (VIANA, 2015, p. 51)

A crença nas benesses proporcionadas pelo hábito franciscano enquanto elemento


propiciador da salvação é evidente, bem como a crença nas suas capacidades para demonstrar
modéstia e humildade, ainda que de modo estrategicamente calculado pelo moribundo ou
testador, afastando-se da essência do ethos franciscano.
Além dessa perspectiva, a historiografia enfatiza a difusão de crenças entre os fieis dos
atributos do hábito franciscano no momento da morte, pois o santo teria "um lugar destacado na

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escatologia cristão" (REIS, 1991, p. 117). Tal destaque se explicaria pelas capacidades do santo
de Assis de visitar regularmente o purgatório e, por meio do seu cordão, resgatar as almas
sofredoras. E é dessa maneira que São Francisco foi retratado na catacumba do convento
franciscano em Salvador, como afirma João José Reis. O autor também destaca o próspero
comércio de mortalhas realizado pelos mendicantes na cidade, enfatizando o seu sucesso no
ramo da confecção de vestimentas tanto na Bahia como no Rio de Janeiro.
As hipóteses apontadas pelos referidos autores são de grande relevância para
compreender o fenômeno, entretanto, essas afirmações não contemplam outros aspectos
relacionados à difusão e sucesso da mortalha franciscana. Afinal, de onde provém ou em quais
elementos estariam baseadas essas crenças nos poderes de São Francisco? Qual seria o papel
ou as estratégias utilizadas pelos frades na promoção do seu hábito entre os fieis?
A partir desses questionamentos é conveniente apontar também o contraste entre o
cotidiano dessas populações e a escolha do hábito franciscano para o sepultamento, pois a
distinção através do vestuário, marcada pela ascendência do luxo e ostentação, contrapunha-se
ao ideal ascético da Ordem franciscana, contudo, paradoxalmente o hábito religioso tornou-se a
grande moda do guarda-roupa fúnebre da época (TORRES AGUDO, 2009). Essa característica
não foi ignorada inclusive por Jean-Baptiste Debret. Ele viveu no Brasil entre 1816 e 1831, e na
sua obra representou trajes fúnebres da época, destacando também o hábito franciscano:

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Debret, Jean-Baptiste. Divers cercueils. (1816-1831) Disponível em:


<http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/624530117> Acesso em: 16 fev. 2016.

O hábito de São Francisco, valorizado entre os católicos desde o século XIII, adquiriu
relevância ao longo do tempo e, a partir do século XVI, angariou notoriedade entre as
indumentárias fúnebres tanto na Península Ibérica quanto na América (MÓL, 2004; REITANO:
2004; RODRIGUEZ ÁLVAREZ, 2001). Como um fenômeno abrangente, ou seja, evidente em
diversos espaços tanto europeus quanto americanos, a ascensão da mortalha franciscana
requer um estudo mais aprofundado.
Inicialmente, destaca-se a atribuição de distintas indulgências pelo papado, entre os
séculos XV e XVI, as quais imbuíram a mortalha franciscana de um papel especial na trama da
salvação (GONZÁLEZ LOPO, 2002). As indulgências significavam, segundo dicionário da época,
"graça que concede a Igreja ao pecador arrependido remetindo-lhe a pena devido aos seus
pecados, a qual haviam de padecer ou neste mundo ou no Purgatório" (BLUTEAU, 1728, p.
114). Desse modo, a concessão de indulgências à mortalha denotava-lhe grande significado
simbólico e lhe proporcionava atributo muito atraente para os fieis angustiados com o destino

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das suas almas. É provável que essas indulgências tenham colaborado para a conformação das
crenças sobre os poderes de São Francisco no resgate das almas.
Contudo, a difusão dessas crenças e uso recorrente do hábito pelos fieis dependeu
igualmente da ação promovida pelos mendicantes. Como os principais interessados, os frades
participaram ativamente na promoção da sua mortalha, assim as ações dos mendicantes e seus
esforços na difusão de sua religiosidade, através de suas redes internacionais (GRUZINSKI,
2001) foram fatores importantes para o sucesso da mortalha franciscana. A partir dos púlpitos -
através dos sermões, e, principalmente, dos livros impressos - os franciscanos disseminaram
representações que promoveram o seu hábito enquanto indumentária fúnebre ideal.
A bibliografia religiosa destinada aos leigos, ou seja, a generalidade dos fieis, era
manipulada e lida pelas populações em ambas as margens do Atlântico, sendo significativa sua
presença também na América (ALGRANTI, 2004). Embora o índice de analfabetismo fosse
elevado, a população contatava regularmente com a palavra escrita, pois, muitas vezes, as
leituras ocorriam em grupo, onde um leitor recitava em voz alta o conteúdo da obra.
Dentre a literatura religiosa, merece destaque, os livros produzidos pelos franciscanos.
Neles se encontram as características referentes ao hábito, as quais expressavam preocupações
relativas aos elementos materiais, bem como aos atributos espirituais da roupa.
Inicialmente, é importante verificar quais seriam as características materiais necessárias
para a confecção do hábito na bibliografia da época. No livro Caminho dos Terceiros Seráficos,
publicado em 1731, encontra-se um capítulo destinado exclusivamente a explicar as
"prerrogativas e excelências do hábito e cordão do nosso Padre Seráfico" (SILVA, 1731, p. 115),
ou seja, de São Francisco. Nele, o autor, especifica a qualidade do tecido e o corte apropriados,
justificando que "o hábito há de ser no preço e na cor humilde" (SILVA, 1731, p. 116). A
representação da humildade, através das vestes franciscanas, vincula-se a trajetória de São
Francisco, o qual se despojou dos seus pertencentes para seguir uma vida ascética, dedicada a
Deus. Assim, o tecido e a sua cor deveriam expressar a modéstia e o desprendimento
monetário, por isso a lã seria mais adequada na sua confecção. A ausência de tingimento,
deixando o tecido na sua cor natural, ou seja, cinza igualmente comprovava a humildade, pois a
"lã bendita do Senhor se chama a que não conhece afetação ou tintura" (SILVA, 1731, p. 116).
As cores possuem especial significado e sua percepção altera-se de acordo com os contextos e
tempos, entretanto naquela época o "pardo, encardido, terroso, indistinto era a cor (ou não cor)
nativa, rústica não polida. Na humanidade era a cor dos primeiros homens" (HESPANHA, 2008,
p. 354). A rusticidade reforçava a ausência de custos e afastava o fiel da aparência ostentatória.

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A combinação de elementos naturais associadas ao seu feitio simples (VIANA, 2015) denotavam
à vestimenta seus atributos morais e poderes de salvação.
Além do tecido e da cor, as capacidades espirituais contidas nas vestes franciscanas
eram enfatizadas na bibliografia. O hábito possuía a habilidade de afugentar demônios, isso
porque se "vê a cada dia que os espíritos malignos nos obsessos se atormentam e afligem
quando se lhes aplica o santo hábito e cordão o seu remédio." (SILVA, 1731, p. 134). Essa
potencialidade tornava as vestes franciscanas importantes para o momento da morte,
especialmente durante o trepasse da alma durante o velório, pois seria uma ocasião perigosa
para a defunto, devido as possíveis interferências provocadas pelos espíritos malignos.
Nesse sentido, forma, textura, cor e atributos espirituais juntavam-se às indulgências
concedidas pelo papado, denotando ao hábito franciscano qualidades excepcionais para o
período.

Conclusões

A abrangência do uso do hábito franciscano, ou seja, tanto entre brancos como negros,
bem como a sua valorização em diferentes territórios das monarquias católicas ibéricas,
incluindo aqueles no além-mar, revela, não obstante, suas especificidades, uma consonância
nas representações e práticas fúnebres, sugerindo a existência de conexões profundas entre a
vivência religiosa e suas expressões nesses espaços. Paralelamente, as contradições entre as
práticas fúnebres e a vivência cotidiana expressavam as aproximações e distâncias entre as
representações produzidas nas esferas religiosas e leigas, revelando-se a indumentária objeto
privilegiado para a compreensão da complexidade inerente a essa dinâmica (ROCHE, 2007).
Se no cotidiano as populações demonstravam preocupação quanto ao vestuário,
buscando nos trajes e adornos indicar ou reforçar sua condição social e seu status, no momento
da morte a ostentação e o luxo eram desvalorizados em prol da salvação da alma.
No entanto, as escolhas dos trajes fúnebres não decorriam de forma aleatória e
imprecisa. A promoção do hábito franciscano entre os fieis incluiu distintas estratégias, as quais
se revelam na bibliografia produzida pelos frades. Essa sublinha e destaca os atributos da
vestimenta denotando-lhe funções excepcionais relativas a sua materialidade, bem como
enfatizando seus atributos espirituais. Tais características tornavam as vestes de São Francisco
bastante valiosas na trama da salvação para os católicos da época.

Referências:

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A formação do olhar, o design de moda e a história da moda como argumento para a


emancipação feminina.
The formation of the look, fashion design and fashion history as an argument for women's
emancipation.

Maria Teresa Lopes Ypiranga de Souza Dantas, professora Adjunta da UFPE – CAA –
teresa.designer@gmail.com
Resumo
Este artigo consiste em fazer a discussão do processo de Formação do Olhar dos alunos de
design, a partir da relação com a história e com a sociologia, tomando como recorte para tal o
exame da relação de emancipação feminina, com base na relação do vestir, ou seja, dentro do
campo da moda, por meio da análise de significação da obras de quatro estilistas modernos,
Charles Frederick Worth, Paul Poiret, Christian Dior e Yves Saint Laurent.
Palavras chave: Formação do olhar, Aparência feminina, Discurso Visual
Abstract
This article consists in the discussion of the “training the eye” process of design students,
taking the relationship between history and sociology as a crop for the examination of the
female emancipation analysis based on the dressing relation. As a result, the investigation
works inside the fashion field and through the significance analysis of the works of four modern
designers: Charles Frederick Worth, Paul Poiret, Christian Dior and Yves Saint Laurent.

Key-words: Training the eye. Female appearance. Visual discourse.


.
Introdução
Este artigo busca introduzir sua discussão no campo de estudos que visa pontuar a formação
do olhar1 dos estilistas modernos da alta costura2 européia – Worth, Poiret, Dior e Saint
Laurent (YSL) – como um processo histórico e social de deslocamento da identidade/imagem
de feminino nos momentos históricos em que eles vigoraram como deflagradores de estilo 3.
Essa argumentação foi possível na medida em que se trouxe o conceito de formação do olhar
(LOPES, M.T. 2014) e no fato de que se compreender essa formação é de grande importância
quando se está estudando os conteúdos de moda, pois até hoje esses valores estéticos são
vigentes.
Para dar lastro ao estudo dessa relação foi importante se fazer a construção dos argumentos
a partir de uma exploração da significação do universo teórico da disciplina de História e
Estética dos Estilistas - HEE, ofertada aos alunos da graduação em design da UFPE - CAA
entendendo esse processo como uma ferramenta de ensino e aprendizagem que possibilita a

                                                                                                               
1 M.T.Lopes, 2014
2Como um fenômeno de moda que se acumula em história e memória da moda global
3Sendo aasim estes estilistas estão nessa posição de deflagração de estilo, como base no argumento do como trickle down
como processo de adoção de moda e como um comportamento social algo característico da modernidade.    

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compreensão e a análise dos discursos visuais propostos pelo que chamaremos aqui de “os
quatro modernos”: Worth, Poiret, Dior e Saint Laurent. O que será feito aqui é a observação de
como esses quatro estilistas desenharam a silhueta feminina e como elas acabavam sendo
um reflexo das mudanças do comportamento feminino.
O que se pretende é o entendimento de que se observar, tendo como ponto de partida o
campo do design de moda, e a partir dele se tomar como marcas de significação para essa
observação, elementos visuais e definidores formais dessa aparência feminina que vai de
1870 a 1970, como: o tipo de silhueta, a altura da saia, a marcação da cintura, a amplitude dos
movimentos e o uso ou não de próteses que redesenham o corpo como a creolina, a anca, as
anáguas ou as saias de armação, podem funcionar como indicadores dos movimentos
discursivos que fazem o engaste dos sentimentos emancipatórios da imagem feminina.
Vale apena ressaltar que momentaneamente Mademoiselle Chanel ficará, de fora desse
estudo, justamente por ser uma mulher e por buscar com suas proposições de estilo, ou como
prefiro tratar, sua formação do olhar, ter construído uma trajetória significativa onde ela vem a
marcar uma posição muito firme nesse processo de emancipação da aparência feminina e
enquanto proposição de uma imagem de feminino, quando trás pra si a inspiração na
economia da forma e profusão dos adereços do traje masculino, e com isso investe dessa
significação a aparência4 da mulher dos anos 20 , 30 e até os dias de hoje.
Não somente Chanel, mas também tantas outras mulheres ficaram de fora, pois se buscou
aqui evidenciar o fato de como os homens na modernidade, entendendo de maneira mais
precisa, o olhar masculino na moda, independente da sua condição homo ou hétero sexual,
pensaram e propuseram a aparência feminina da modernidade. Contudo, é importante frisar
aqui que o papel de YSL é pouco difuso dos demais, e justamente por isso de suma
importância, pois aqui será ele quem fará essa ligação entre o moderno e o pós-moderno e
quando traz para a alta costura os solavancos do prête-à-Porter que terá como manifestação
hipermoderna5 o Fast Fashion da atualidade e a criação do Le Smoking, que por mimese do
masculino, se impõe como signo de distinção e poder para o feminino.
Para dar prosseguimento a essa investigação científica, para além das relações que o design
pontua foi articulado um corpo de saberes que se organizam por meio da intersecção dos
campos da história (presentismo histórico), da sociologia (fenômenos da aparência) e da moda
(como campo de poder para o feminino) cujo corte de significação6 – e por onde irão incorrer
as inferências aqui apontadas – é a proposição do vestir como um processo de constituição e
negociação de discursos visuais7 que geram, em certa medida, a emancipação feminina.
1. Os quatro Modernos
Para o desenvolvimento dos argumentos do artigo proposto, foi escolhido um corte no corpo
geral da disciplina História e Estética dos Estilistas, que será apresentada mais a frente e que
aqui foi intitulado de ‘Os quatro modernos’, que compuseram a base de significação e de
análise para a definição e o entendimento desse olhar masculino sobre a aparência feminina,
sendo eles: Charles Frederick Worth (1825 – 1895), Paul Poiret (1879-1944), Christian Dior
(1905 – 1957) e Yves Saint Laurent (1936-2008), e com a ressalva no caso de YSL, que já
                                                                                                               
4 MAFFESOLLI, Michel. (1996) para se poder discutir a aparência como lócus de embates e discurso visuais.

5 LIPOVETSKY, Gilles. (1989)


6 DARRAS, Bernard. (2012).
7 M.T. Lopes (2014)    

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fora explicada anteriormente. Esses quatro estilistas formam uma linha do tempo que aqui se
torna interessante, que se inicia em 1877 e vai até 1966, como se pode observar na figura
abaixo:
Figura 01 – As silhuetas dos quatro modernos8

Como base na leitura e análise das imagens acima se pode entender que frente a esses
quatro modernos, se tem aqui quatro proposições de mulheres diferentes, para épocas e
condições sociais diferentes. Essas mulheres representadas por essas imagens assumem,
entretanto, um posicionamento onde elas são recebedoras de um investimento de
significação, passando a ser emancipada e não agente de sua própria emancipação. Esses
quatro homens funcionaram como agentes estéticos negociadores, entre o desejo feminino
vigente, o desejo deles de distinção e sucesso capital e o comportamento da sociedade em
relação a essa mulher, equalizando esse campo de forças na ordem material apresentada
como “aparência feminina”.
Essa forma de negociação social, diga-se de passagem aos olhos da pós-modernidade é
bastante lenta, se comparado ao vestuário praticado na rua, por exemplo, ou pelas mulheres
que trabalhavam e faziam o uso da mobilidade urbana moderna e, por conseguinte, das
novas relações ergonômicas que estavam sendo impostas na época como o uso de
automóveis, bicicletas, metrô, bondes e para a ocupação de novos postos de trabalho,
notadamente se analisarmos a condição social pós primeira e segunda guerras.
Nesse sentido, aqui friso que a relação de necessidade de mobilidade, economia da forma e
dos ornamentos, por mimese com o masculino, mas também alicerçada pela vida moderna,
serão fatores primordiais para as mudanças na história da vestimenta. É fato que para se
entender e assim, se aprofundar, essa relação: alta costura e emancipação feminina, era
preciso se inserir, por exemplo, a relação do corte em viés (M. Vionnet), quando a melhoras na
modelagem para o caimento e a fluidez dos tecidos, será fundamental para o conforto no
vestir, ou mesmo os discursos de identidade masculina de Chanel, mas lembro que isso tudo
será assunto para outro artigo.
                                                                                                               
8
 Imagem  Worth  –  https://wandabvictorian.wordpress.com/tag/dinner-­‐dress/(acessado  em  20  de  fevereiro  de  
2016);  Poiret  –  http://www.kci.or.jp/archives/digital_archives/detail_116_e.html  (acessado  em  20  de  fevereiro  
de  2016);  Dior  –  https://danabowen.wordpress.com/2014/10/18/the-­‐revolution-­‐of-­‐fashion/  (acessado  em  20  de  
fevereiro  de  2016)  e  YSL  –  http://www.parischerie.com/10898/le-­‐smoking-­‐a-­‐fashion-­‐favourite-­‐is-­‐a-­‐fantasy-­‐for-­‐
all-­‐designers/  (acessado  em  20  de  fevereiro  de  2016).  

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Como se pode ver na pequena linha do tempo desenhada, no campo da alta costura, a
relação de “emancipação feminina”se deu não de uma forma linear, mas a partir da
negociação objeto a objeto, ou seja, a cada mínima marcação de estilo e definição de forma.
Entretanto, a linha que marca a cintura é um dos elementos mais fortes nessa relação de
constrangimento da mulher ao seu vestir. Há um grande rompimento estético entre Worth e
Poiret, quando este ultimo desloca a cintura para a linha abaixo do busto e amplia ‘um pouco’
a mobilidade da parte inferior do vestido. Contudo Dior, com o seu New Look, e a celebração
do romantismo em ambiência domestica, capital e norte-americana, retoma o redesenho do
corpo, descartando a forma mais livre proposta por Poiret, marcando novamente a cintura e
retomando as anáguas e saias de armação, que sim, comprometem a mobilidade.
Por sua vez YSL, e o Le Smoking fazem um rompimento total nesse organização da aparência
feminina, por impor a mimese com o masculino, nesse caso, não há altura da saia, a
marcação da cintura é leve, e a prótese sai da linha do quadril, onde prejudica a mobilidade, e
se coloca na altura dos ombros (ombreiras), utilizando assim recursos do sistema de poder,
representante no ato de vestir, do masculino, tomando como base algo que, historicamente, é
um signo de distinção da imagem masculina, o Smoking.
Assim, pode-se concluir as análises fazendo a inferência de que a constituição da aparência
feminina é também uma negociação estética entre a condição social do feminino e o seu
protagonismo como recebedora da ordem vigente do espírito do tempo, mas que no caso aqui
apresentado são uma análise das proposições de estilo oriundas do campo da Alta Costura,
onde se buscou o prevalecimento do trickle down como sistema de deflagração dos
comportamentos de moda, assim, se pode compreender que por meio do acúmulo de
significados que as proposições de estilos foram engendrando ao longo da história da moda e
com base no regime de historicidade de Hartog (2013), os homens foram fortes agentes de
designação e ordenamento do estilo feminino, lhes inferindo e subtraindo poder, a medida que
negociavam a sua aparência total.
2. O uso do termo Formação do Olhar
Neste artigo adota-se o conceito de Formação do olhar proposta por Lopes (2014), em que a
referida autora descreve como sendo:
Formação do olhar é um processo de ensino e aprendizagem, que nesse
caso depende da figura de um mediador discursivo (no caso um
professor), que ocorre por meio do uso e do agenciamento de imagens.
Imagens estas que são entendidas como manifestação e materialização
em aparência de um discurso visual. Essa formação prevê etapas de
leitura, análise e critica do corpo de significação em que essas imagens se
estruturam, que assim se organizam para articular a emancipação da
pessoa que faça parte desse processo. (LOPES,P. 469, 2014)

O conceito trabalhado acima colabora para o entendimento de que as imagens produzidas por
esses estilistas são uma manifestação e materialização do Discurso Visual que estes
propunham, discurso este definido pela mesma autora como sendo:
... tomando-se Foucault como referência, começa a ser definido como
todos os demais discursos, ou seja, como um ato humano para a
sistematização de um organismo de significados, que para existir ancora-
se em um campo de poder simbólico disciplinar e sobre os
sombreamentos prováveis e possíveis com os demais campos. Esse tipo
de discurso se caracteriza ainda, assim como os não-visuais, por envolver-
se em uma vontade de verdade que é ideológica e às vezes política, e
revela, como argumento de diferenciação dos não-visuais, a condição de

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que a sua manifestação é aparente e por decantação de ideologia em


aparência. (LOPES, P.57,2014)

Nesse sentido, a silhueta produzida por esses estilistas na época e as imagens fruto do
esforço da preservação da memória e história são uma decantação ideológica da ordem de
signifcação vigente na época, e hoje o são do entrelaçados de discursos que é a
contemporaneidade, a autora ainda aprofunda a definição de Discurso Visual no sentido de
encontrar com a relação de poder (Foucaultiana):
Outra condição essencial é que a sua vontade de verdade se estabelece
no engaste das forças de poder que se instalam entre dois argumentos
simbólicos: a materialidade (objetual) e as correntes espirituais
(subjetividade). Os discursos visuais requisitam para os seus
acontecimentos a percepção por estímulo visual, seus comentários, e
estão sob uma ordem ritualista, e por sujeição. Contudo, esse
acontecimento é uma ação que é a essência e a existencialidade desse
discurso. Trata-se de um espaço subjetivo no qual se concentra uma
enorme potencialidade para ações e esforços formadores. (LOPES,
P.57,2014)

Trazendo a reflexão de que a posição em que se encontram essas imagens, e esses quatro
modernos, em que mesmo até hoje se encontram no topo da pirâmide do trikcle down,
assumem no campo das visualidades dos alunos de design de moda como de extrema
importância para a formação do olhar deles, e quando apresentadas em livros, na sala de aula
e nos blogs de moda como referência do ‘Belo’, acabam exercendo uma força ideológica, que
precisa ser questionada, como , por exemplo, que aqui sugiro, a relação de emancipação
feminina. A pergunta é: essa vontade de verdade visual é hegemônica para quem?
3. A disciplina de história e estética dos estilistas
A disciplina de História e Estética dos Estilistas, ponto de partida do escrutínio proposto, faz
parte do meu campo de ensino há 5 (cinco) semestres, nesses mais de 2 anos de trabalho
acumulou-se um número em torno de 300 (trezentos) alunos que passaram pelo processo de
formação, todos de períodos variados, visto que ela faz parte do corpo de eletivas do curso e
está elencada no eixo de estética para a ênfase de design de moda da Universidade Federal
de Pernambuco – Centro Acadêico do Agreste – UFPE – CAA.
Sua ementa prevê o desenvolvimento ao longo de quatro meses dos conteúdos de história do
estilismo, dos estilistas que marcaram a moda no mundo e no Brasil, a análise social, cultural
e da identidade visual das criações desses estilistas, assim como as suas influências e
inovações. E por fim, a atualidade da moda e os novos estilistas.

E ainda apresenta como conteúdo programático os seguintes pontos:

1. Cultura, formas de produção e comunicação da moda pré-revolução industrial;


2. Século IXX: O ofício e a influência na moda do estilista inglês Charles Frederick
Worth;
3. Estilistas do século XX: influências, inovações e transição do comportamento;
4. Formação da comissão da Alta Costura;
5. Estilistas do prêt-à-porter;
6. A moda conceitual;
7. Estilistas brasileiros;
8. Atualidade da moda e novos estilistas.

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Como a maioria das ementas apresentadas na graduação ela é mais ambiciosa do que de fato
organizadora de um senso de ensino que esteja focado no balizamento da relação teoria
aplicada à prática, que comumente é esperado numa graduação em design. Contudo, essa
mesma ambição acaba proporcionando ao professor que a leciona uma leitura ampliada dos
diversos temas estudados e ela preserva uma certa linha do tempo que ajuda ao aluno
compreender como o fenômeno da moda que se tem hoje veio a ocorrer.

Essa pretensão ainda veio a possibilitar – a esse professor – que ele venha a dar o recorte
que esteja associado ao seu melhor ‘rendimento’, como, por exemplo, a entrelaçar a questões
de pesquisa que ele esteja trabalhando, ou mesmo questões pertinentes ao mercado local,
caso queira dar um enfoque em alguma ação extensionista. Essa vantagem se coloca também
porque essa disciplina está dentro de uma instituição de ensino e pesquisa Federal, gerando
um campo de força cuja necessidade de compromisso com a tríade: ensino, pesquisa e
extensão é o esteio que a organiza. Não que instituições privadas não possam fazer o mesmo,
mas é sabido que na prática esse tipo de atuação é bem mais difícil de ocorrer. Visto se estar
falando da graduação no Brasil.

Nesse sentido, foi possível se traçar o seguinte plano de aula, que são organizada em 18
encontros, que se dão ao longo que quatro meses, e que estão divididos sob quatro estruturas
principais, sendo elas:

1. Objetivo:
2. Estrutura de ensino 1 – Introdução aos fenômenos da estética e ao da moda como
constituição de aparência;
3. Estrutura de ensino 2 – Uma linha do tempo significativa: Worth e Ducet e a
precariedade da mobilidade; Poiret, Vionnet e Chanel: como incorporadores da
mobilidade urbana para o lazer e o trabalho; Lanvin, Schiapparelli e o Período entre
guerras: a maternidade, a arte e a identidade com a militarização da vida e, por fim,
Dior e Yves Saint Lourant: romantismo, poder e feminino.
4. Estrutura de Ensino 3 – Seminários das décadas de 1910 a 2000 – o moderno e o
pós-moderno na moda do Trickle Down ao Bublle up.
5. Estrutura de Ensino 4 – Moda e contemporaneidades: estilistas nacionais e
internacionais
6. Sistema de avaliação: avaliação individual e em grupo: seminários e atividade
projetual.
Nesse processo a metodologia de ensino oferecida busca proporcionar ao aluno que ele
desenvolva habilidades e competências para:

-­‐ a leitura de imagem com base na análise de significação;


-­‐ a análise dos discursos visuais dos diferentes estilos e épocas e o entendimento do
seu processo de materialização na aparência do corpo feminino;
-­‐ a discussão para o entendimento do engaste discursivo que gera o processo na
aparência feminina como lócus de emancipação, com base na ação histórica e
acumulativa dos significados;
Como resultado de todo esse processo foi realizado em novembro de 2015, a exposição
intitulada, Recriando a moda: os artefatos segundo a estética dos estilistas, que ocorreu no

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Shopping Difusora na cidade de Caruaru, 29 de outubro a 29 de Novembro de 2015 e cujas


imagens refletem a capacidade dos alunos de fazerem um Sign-Crossing9 entre um estilista
escolhido por eles, e um objeto atual.
Figura 02 – Banners da exposição Recriando a moda: os artefatos segundo a estética dos estilistas – Fotos:
Jessica Vanessa

Assim se pode concluir que a disciplina de História e Estética dos Estilistas vem a funcionar
como uma ferramenta da formação do olhar, na medida em que proporciona aos alunos um
processo de aprendizado onde há o deslocamento do papel do designer como determinista de
uma forma, para um negociador de uma aparência em que haja a compreensão da
necessidade de dar autonomia, mobilidade e liberdade para a manifestação dos corpos
femininos, algo próprio do contemporâneo. E que a mimese com o masculino é um opção, não
a única condição como nas décadas de 1960 e 1970.
Esse aluno compreende que a moda é sim um acúmulo de significados, e que com o
presentismo histórico, articulam-se valores de passados não tão distantes assim e futuros
muitas vezes apenas desejados para se propor a roupa/ o objeto de design no presente. E que
nesse movimento significativo em que coadunam forças que ao mesmo tempo designam o
vestir da mulher, e expressam os seus desejos e conquistas sociais, acaba por dar a
responsabilidade ao designer, na atualidade, de não apenas se formar para autorar estilos, ou
mesmo fazer o desenrolar frenético das modinhas do fast fashion, mas o coloca como um
profissional que precisa buscar o entendimento de que a aparência totalitária e modernista se
rarefaz diante da imposição da realidade de emancipação feminina e que ele se colocando
alheio a essas mudanças, acarreta um prejuízo profissional para si, e para o campo do design
de moda, que pode se deslocar para uma relação que aliena mais do que emancipa.
4. Metodologia
É importante que se frise que este texto tem uma característica de ser introdutório na
discussão da moda como instrumento de emancipação feminina, visto que a história dos
                                                                                                               
9(LOPES, M.T., 2015) Metodologia de design, para a geração de produtos de moda, tomando como fundamento
a necessidade de se trabalhar a troca de significação de um campo de significados para o outro. Essa
metodologia foi um dos produtos gerados após a consolidação do projeto de pesquisa para inovação no Agreste,
e encontra-se em fase de teste.

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movimentos feministas vêm frequentemente denotando essa relação como sendo opressora
aos sistemas de significação em que a mulher está engendrada.
Essa é uma posição histórica, epistemológica e responsável por muitas das conquistas das
mulheres, a qual tenho bastante respeito, o que faço aqui é apenas começar uma
investigação de dentro do campo do design de moda, dando enfoque nele como atividade que
organiza o pensamento, o imaterial e o simbólico em objeto e materialidade, e assim se torna
um conhecimento produtor de um círculo de significados que muitas vezes mesmo sendo
contraditório aos desejos de transformação social, ele não deixa de ser um representante,
dessas mudanças, e em alguns casos é sim um experimento tardio da realidade vigente.
A história do vestir feminino, pode ser entendida não somente por uma linha de opressão, mas
como uma trajetória de emancipação feminina, pois é um campo de significação social onde a
mulher constrói uma trajetória onde ela deixa de ser vestida, ou seja, de receber a significação
masculina de ser uma mulher, para vestir-se, e assim ser protagonista na constituição de sua
aparência, e mesmo sendo um fato de que na maioria dos casos ela não consegue abrir mão
da mimese com o masculino para evocar poder, mas também é um fato de que isso não a
impediu de ter poder e de ser mulher.
Assim, para se chegar a esse tipo de raciocínio no universo de pensmaento cientifico houve
apoio dos métodos do levantamento bibliográfico, como base no que fora proposto para a
disciplina de HEE, que percorrem campos da história, da moda e da sociologia, como método
para subsidiar nossas análises de significação, optou-se pela base da semiótica Darrasiana e
na compreensão dos sistemas de análise do discurso de base Foucaultiana. Esperando-se
com isso dar conta do recorte aqui apresentado.
5. Inferências e últimos apontamentos
Concluo este artigo fazendo algumas inferências e apontamentos que julgo importantes,
reforçando a relevância do ensino da disciplina de HEE para a formação dos designers de
moda, a partir do recorte da moda como campos de significação para a emancipação
feminina, nesse sentido de que ela abre espaço para que esses estudantes tenham uma visão
histórica e quem sabe passa fazer ele refletir sobre sair da posição em que as mulheres são
apenas vitimas da moda, e chegando a contemporaneidade onde a mulher em seu processo
histórico na moda como um sistema de significações que ao se acumularem possibilitaram e
ainda possibilitam a reconstrução da trajetória da imagem feminina na sociedade, e assim se
possa entender que a moda moderna como um momento em que a proposição do olhar
masculino para a ação feminina, vigorou de forma veemente, surgindo ações de
constrangimento como a silhueta “S”.
Aqui reforço ainda o fato de que a história da moda pode e deve ser contada de diversas
posições no campo de poder dos saberes, o design de moda, aqui é apenas uma dessas
forças cabíveis, o seu corte como conhecimento ordenador da materialidade, aqui escolhido,
tem também o sentido de garantir que o ensino de design, não esteja alheio aos processos de
transformações sociais, e a escolha pelo argumento da emancipação feminina colabora com
esse pensamento, mas é fato que existem outros grupos sociais, que possuem a sua história
galgada num sistema de opressão política, cultural e econômica que também podem ter a sua
história narrada pelos processos de negociação do discurso visual que a moda permite.
Como questões do tipo: qual o papel dos negros e dos asiáticos na cultura de proposição de
estilo da alta costura? Ou o fato de que mesmo hoje, a presença das mulheres ainda é bem
seleta nesse ambiente. A bem da verdade, muito ainda precisa ser discutido, pois de fato a

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estrutura em que moda nasce, como fenômeno de dotação de sentido e materialidade para a
ordem capital, moderna e totalitária, a deixa refém dos dissabores da desigualdade e da
exclusão social, contudo, ela não é só isso, e o Bublle up da contemporaneidade, no bojo dos
movimentos da contracultura das décadas de 1960 até hoje, a deslocam para um espaço onde
há busca de emaciapação, de liberdade e de beleza para todos e não para poucos.

Nesse sentido reforço a necessidade de se conhecer mais sobre história da moda, para se
poder criticá-la, e não apenas se adotar um discurso que a primeira vista pareça
emancipatório, quando entende a moda como um sistema de opressão, mas com sob olhar
atento da história, da sociologia e demais disciplinas se pode entender que a mulher está no
centro de deflagração de sentido e proposições estéticas e de comportamento há mais de um
século e isso precisa ser aprofundado e discutido abrindo espaço para que a moda seja
também entendida como espaço de transformações sociais.
Referencias Bibliográficas
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TÊXTEIS, VESTUÁRIOS E CORES NA IDADE MÉDIA TARDIA


(SÉCULOS XII-XIV)

TEXTILES, CLOTHING AND COLORS IN LATE MEDIEVAL AGE


(XII-XIV CENTURIES)
 
Igor Renato Machado de Lima1

Igorlima.usp@gmail.com

Resumo
O objetivo deste artigo é tratar do debate historiográfico sobre moda, relacionando o tema dos têxteis,
do vestuário e das cores durante o medievo tardio (séculos XII ao XIV). Deste modo, trabalha-se com o
conceito de moda cavalheiresca, sendo destacado principalmente os debates historiográficos sobre
Inglaterra e França. No presente artigo são enfocados os aspectos culturais, como as investiduras
cavalheirescas, a presença e força simbólica dos artefatos de luxo, como tecidos e jóias do Oriente,
bem como os discursos morais sobre as aparências e as cores. Desse modo, a historiografia medieval
têm levado em consideração as grandes transformações das aparências e a presença da moda.

Palavras-Chaves: História da Moda; História Têxtil e da Indumentária; História das Cores; História
Medieval; Historiografia Medieval.

Abstract
The purpose of this article is to address the historiographical debate about fashion, linking the issue of
textiles, clothing and colors during the late Middle Ages (twelfth to fourteenth). Thus, working with the
concept of gentlemanly fashion, being mainly highlighted the historiographical debates about England
and France. In this article we focused on the cultural aspects, as the chivalrous investitures, the
presence and symbolic force of luxury artifacts, such as tissues and Eastern jewelry and moral
discourses on appearances and colors. Thus, the medieval historiography have taken into account the
major changes of appearance and the presence of fashion.
Key Words: History of Fashion; History of Textiles and Clothing; History of Colors: Medieval History;
Medieval Historiography.

No plano das transformações das formas indumentárias, o debate historiográfico


acirra-se em relação à construção da ideia de moda. Em meados da década de 1970,
François Piponnier e Perrine Mane publicaram um trabalho importante sobre o vestir-se,
analisando vários tipos documentais como iconografias, romances cavalheirescos, livros de
contas, testamentos, inventários e evidências materiais.
Na interpretação realizada pelos autores não houve distinção entre vestir-se e o
costume. Realizaram uma introdução ao tema da indumentária na Europa, indo além do
período Medieval, informando sobre os materiais, os consumos vestuários ainda incipientes,
os quais variavam conforme os diferentes estratos sócios econômicos, os ciclos de vida e as
relações entre os gêneros. (PIPONNIER & MANE, 1997)
                                                                                                               
1Pós doutor em História da Arte (Departamento de História da Arte/UNIFESP), doutor e mestre pelo programa de
História Econômica (FFLCH/USP). (email para contato: igorlima.usp@gmail.com)

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De uma maneira geral, dentre os materiais existentes, pesquisadores, como


Popponier & Mane enfatizaram a presença da lã na fabricação dos tecidos medievais,
revelando que a técnica da produção têxtil lanífera variava entre as diferentes regiões
européias. Os autores apontaram ainda que, no reino de Aragão, os proprietários de terra
criavam raças de merino [tipo de carneiro] que produziam produtos laníferos
excepcionalmente finos.
A descoberta e o uso do tear horizontal, além das técnicas de tecelagem no século X,
foram as mais importantes revoluções na produção têxtil durante todo o período Medieval.
Com relação às cores dos tecidos laníferos, no século XIII, aumentavam as tonalidades
vibrantes nas cidades que no século seguinte, espalharam-se para o campo. Na Idade Média
Tardia, as tinturas verdes e azuis escuras, violeta e o preto nos tecidos de lã tornaram-se mais
populares, embora haja poucas evidências desses tecidos nos inventários e testamentos
medievais. (Idem, pp. 18-19)
Piponier e Mane afirmam que as indumentárias laníferas eram utilizadas no cotidiano
de todas as camadas sociais, diferentemente da seda, a qual era reservada,
predominantemente, às cerimônias religiosas. Na Europa do Oeste, os tecidos sedosos eram
produzidos em regiões como as da Sicília – mais próxima do comércio com o Oriente. A partir
do século XIV, Palermo, Lucca, Florença, Veneza e Genova, consequentemente, passaram a
ser grandes produtoras desse tecido. (Idem, pp. 19-20)
A Península Ibérica, influenciada pela presença muçulmana, também produzia a seda.
Um dos mais importantes têxteis realizados na região eram os brocados de carmesim
aveludados e cetins, tingidos com corantes de cochinilha, que atingiam preços astronômicos.
No fim do século XIV, quando o preto tornava-se moda, as sedas banhadas em séries de
tinturas de ísatis e indigos tornaram-se predominantes.
Além do brocado, o tafetá, ou cendal, fabricado também com a seda, tornara-se mais
barato. A produção, a circulação e o consumo de seda, por causa do alto preço e das leis
suntuárias, restringiam-se à alta nobreza e à burguesia das Monarquias européias. Têxteis
laníferos sobrepujavam em muito a seda, com relação à quantidade de tecidos. (Idem, pp. 20-
21)
Ao analisar o comércio têxtil de Paris no século XIII, Sharon Farmer, em “Biffes,
tireatines and aumonières: the role of Paris in the international textile markets of the Thirteenth
and Fourteen Centuries”, nota que em 1239, tecidos de lã parisiense, chamados de biffes,
eram comercializados com várias regiões, como Aragão, Castela, Portugal, Genova, Veneza,
Florença, Siena, Marcele e Provença. Também descreve as mudanças ocorridas na

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fabricação e no comércio do tiretaine, espécie de mistura de tecido de lã e linho, ou lã e seda,


produzido em Saint-Marcel, uma região do subúrbio de Paris. Esses tecidos eram de
diferentes preços e qualidades, variando de acordo com as camadas sociais que os
utilizavam. O tiretaine francês, a partir de 1314, era suplantado pelo florentino, sendo esse
consumido pela aristocracia da corte do Norte da Europa. (FARMER, 2006, p. 78)
Na passagem do século XIII ao XIV, os têxteis de linho das cidades de Reins e Paris
tinham preços superiores aos ingleses, destacando-se os mappa, tipos de tecidos laníferos
vendidos à realeza inglesa, em 1303 a 1330, assim como ao papado de Avignon (1307-1417).
(Idem, p. 79)
Dentre os tecidos luxuosos feitos em Paris, estava a produção de seda, havendo seis
corporações de ofício. Salientando-se também o papel das artesãs especializadas na
produção de tecidos de seda para a confecção de véus, bem como o velvet, tecido sedoso de
feitura exclusivamente masculina. (Idem, p. 83)
Os tecidos bordados eram outra produção artesanal luxuosa de Paris para o consumo
da realeza e do alto clero, sendo esses últimos presenteados com preciosos têxteis pela
aristocracia. Também os burgueses da cidade, segundo Farmer, começavam a consumi-los.
(Idem, p. 86)
Em Paris, havia o mercado de peças sarracenas das bolsas de almas, isto é,
pequenas bolsas de pano bordadas com motivos cavalheirescos – de encontros entre damas
e cavalheiros. Era habitual senhoras da aristocracia presentearem seus familiares com essas
bolsas, como o fazia a condessa de Mahaut de Artois. Para Farmer, Paris tornava-se o centro
propagador de uma enorme variedade de têxteis, que circulavam entre reis, papas,
aristocratas e burgueses durante o século XIV. (Idem)
Os têxteis e as roupas no universo das sociedades pré-industriais eram peças de
valores significativamente altos, bem como de preciosos significados simbólicos. Dessa forma,
as práticas de produção, circulação e consumo indumentários e têxteis devem ser analisadas
a partir de uma temporalidade longa, centrada basicamente dos séculos XII ao XVI, pois
algumas modificações eram lentas, outras mais aceleradas.
No que se refere à historiografia sobre a moda no período medieval, é preciso
destacar o trabalho de Johan Huizinga, O outono da Idade Média. Para o autor, na França e
em Flandres, as camadas dominantes deslocavam-se com ornamentos e eram
acompanhados por vassalos, aparatos e armas. Cada camada social possuía seus trajes, que
tinham diferenças com relação ao gênero. (HUIZINGA, 2010, p.11)

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As modificações da moda franco-borguinhã mantinham-se inigualáveis, segundo


Huizinga, durante os anos de 1350 até 1480, sendo que o “traje de corte” era “sobrecarregado
com centenas de pedras preciosas. Todas as medidas são exageradas, chegando ao grau do
ridículo.” Os modos de vestir variavam conforme os gêneros, sendo o penteado das mulheres
com “o formato de pão de açúcar do hemmin, ou seja, o cabelo natural é escondido ou
removido das têmporas e da área da testa, para exibir as frontes excepcionalmente
arqueadas, consideradas bonitas; subitamente começou o uso dos decotes”. (Idem, p. 426)
Adicionado a isso, as vestes masculinas transformavam-se com maior intensidade,
como: os sapatos de bico fino, os poulaines; as mangas bufantes, chamadas de
houppelandes; as jaquetas curtas; os chapéus pontiagudos, drapeados ao redor da cabeça.
Desse modo, “quanto mais solene, mais extravagante; pois todo o belo significava poma de
estat”. (Idem, p. 430)
Na perspectiva da História das Mentalidades e da Cultura, Le Goff e Truong
enfatizam a relevância de se estudar as metamorfoses da moda medieval. A moda
cavalheiresca estava condicionada à “incorporação social”, por meio do processo de
investidura e das corporações de ofício. Segundo os autores a roupa “é não somente adorno,
mas também proteção e armadura”, enquanto o nu era “risco moral, falta de pudor o erotismo.”
O processo de vestir-se era um rito “significativo”, na “ordenação do monge e do clérigo”, na
“investidura do cavaleiro. Quando da consagração dos reis, o abandono das roupas anteriores
e a adoção de hábitos reais constituem um dos ritos mais importantes”. Esse jogo entre a
nudez e a vestimenta continua na valorização da beleza física, como as tranças e o recato
feminino, e a admiração do corpo do cavaleiro, como Lancelote, herói dos romances
arturianos. Ainda conforme os autores, “...heróis e heroínas corteses impõem-se também pela
beleza de suas roupas, favorecendo, assim, o desenvolvimento da moda”. (LE GOFF &
TRUONG, 2006, pp. 141-142) Nesse sentido, os mesmos levantam a necessidade de
desenvolver a “História da moda indumentária na Idade Média”, com o estudo da relação do
corpo (como cabeleira, bigode, barba), com a “evolução de enfeitar o rosto” (principalmente
por parte das mulheres) a partir dos estudos literários e iconográficos. (Idem, p. 74)
Desse modo, a historiografia medieval atual tem analisado as transformações
referentes aos têxteis, tecidos, vestimentas e transformações na moda. Apesar da maior parte
da historiografia apontar a origem da moda no século XIV, Sarah-Grace Heller, no artigo
“Fashion in French crusade literature: desiring infidel textiles”, defende a ideia de que o contato
entre cristãos e infiéis nas Cruzadas, a partir de 1190, transformava os modos de vestir dos
primeiros, por meio das trocas comerciais de tecidos de diferentes técnicas de fabricação,

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coloração, ornamentos e dos intercâmbios culturais com os árabes e bizantinos, que usavam
diversas indumentárias. Como exemplo, aponta os têxteis de seda, a cor púrpura do império
de Bizâncio, os botins das conquistas de Jerusalém e o enriquecimento do território
mediterrânico como o caso da Sicília e da Península Ibérica.
Os cristãos consumiam jóias de ouro, topázio e esmeralda, elmos verdes, malhas bem
enlaçadas, bandeiras de seda, bem como novas peças, como o siglaton (veste de ouro), e
bordados com motivos de pássaros e peixes. Além disso, a autora aborda as modas islâmicas,
centradas nas diferentes colorações e texturas. Dentre as indumentárias islâmicas
importantes, destaca o khil’a (ornamentos honoríficos com carcterísticas diferentes para cada
pessoa e os tiraz) cintos tecidos com desenhos decorativos em ouro. (GRACE-HELLER, 2002,
pp. 109-110)
Em outro artigo, intitulado “Obscure lands and obscured hands: fairy embroidery and
the ambiguous vocabulary of Medieval Textile decoration”, Sarah-Grace Heller enfatiza a
dificuldade de compreensão da linguagem das roupas em diferentes momentos históricos.
Afirma que é necessário realizar uma aproximação dos significados das palavras sobre os
têxteis e a indumentária. Para isso, conforme a autora, deve-se tratar do tema valendo-se da
categoria gênero, quando se analisam textos literários como os de Chrétien de Troyes (c.
1165-70) e Marie de France. (GRACE-HELLER, 2009, pp. 15-16)
Grace-Heller observa que era raro encontrar dados a respeito de mulheres bordando
ou tecendo nas fontes literárias dos séculos XII ao XIV. Nota, além disso, o crescimento das
manufaturas têxteis, em Paris, com a participação feminina, enquanto que a produção
doméstica de tecidos de luxo entre a aristocracia diminuía de importância. (Idem, pp. 19-20) A
partir de 1292, por meio da análise da documentação das corporações de ofício, nota-se a
presença de brodadeurs (bordadores) e broderesses (bordadoras), destacando-se aqueles
que produziam os brocados com ouro. (Idem, p. 26)
A autora ainda sugere a necessidade de entender a constituição do trabalho têxtil
imbricado com o religioso. A atividade de ofício estava diretamente relacionada com a
religiosidade cristã a partir da confecção de tapeçarias com motivos hagiográficos durante os
séculos XII e XIII. (Idem, pp. 20-30) Essas “roupas exóticas” seriam peças relacionadas ao
sobrenatural e ao maravilhoso, pois eram feitas com tecidos do Oriente Médio, originário das
Cruzadas, bem como possuíam características religiosas, principalmente nas formas e no seu
consumo em missas, rezas e batalhas contra os infiéis. (Idem, p. 35)
As camadas populares do Velho Mundo vestiam-se ainda de maneira mais simples
com tecidos de lã e sapatos rústicos. Mas as vestimentas religiosas passavam lentamente por

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modificações nos detalhes, como os ricos bordados sobre ícones religiosos. (BOUCHER,
2010, p. 146) Susan M. Carroll-Clark, em “Bad Habits: clothing and textiles references in the
register of Eudes, Archbishop of Rouen”, trata da reforma religiosa de Inocêncio III, no IV
Concílio de Latrão, em 1215, no que se refere aos têxteis e indumentária. A autora destaca a
crítica à “desnecessária ornamentação” dos monges por meio de relatos do Arcebispo de
Rouen. Salientam-se, dentre os artefatos, o uso da camisa de linho, o tabardo (espécie de
short, proibido para monges e padres) e da capa (espécie de pequena faixa, geralmente, de
seda). Com relação aos têxteis, consumiam a lã, seda, o barracan e peles das mais variadas
espécies, como coelhos e raposas. Possuíam acessórios como sapatos, cintos (de tecido e
metálicos), véus, cuff, ou cucufa (espécie de capuz). (CARROLL-CLARK, 2005, pp. 85-86)
Carroll-Clark nota que geralmente os artigos de luxo proibidos pela legislação papal
eram encontrados nos monastérios, como as comuns camisas de linho, as peles de coelhos e
a roupa de lã listrada (serge radiata). Às freiras era também interditado o uso de joias e
ornamentos luxuriosos em seus véus. No entanto, a autora encontrou referências de religiosas
com esses bens, sendo que estes artefatos podiam ser comercializados.
Havia, portanto, dificuldade de se compreender as distinções e mudanças no vestir do
interior dos membros da Igreja porque os clérigos, no século XIII, ainda vestiam-se de maneira
próxima a outras camadas sociais. (Idem, pp. 90-91)
Nesse sentido religioso, Charlot A. Stanford, no artigo “Donation from de body for the
Soul: apparel, devotion and status in Late Medieval Strasbourg”, analisa o Book Donors,
relacionando-o com as doações para a construção da catedral de Strasburgo, do século XIII
ao XVI. (STANFORD, 2010, pp. 173-205) Nessas listagens, a autora encontra expressões em
latim, alemão ou até mesmo termos mistos referentes às vestimentas mais significativas dos
espólios de doadores, geralmente falecidos. Era comum a referência às esmolas serem
apenas declaradas como “vestimentum”, ou mesmo a sua abreviação: vestes. Segundo a
mesma, eram encontrados nomes genéricos das peças de indumentária feminina ou
masculina nos arrolamentos de esmolas para a Igreja. (Idem, p. 202)
Nessa linha de pesquisa, Tomas M. Izbicli estuda as cores das vestimentas
eclesiásticas, em “Forbidden colors in the regulation of clerical dress the Fourth Lateran
Council (1215) to the time of Nicholas de Cusa (d. 1464)”. Nesse artigo, o autor descreve as
restrições impostas em várias legislações suntuárias dos concílios da Igreja Católica
Apostólica Romana, de vestimentas e ornamentos de cores vermelhas e verdes (pannis rubeis
aut viridibus) de ornamentadas de dourado (deauratis) nas suas vestimentas e da prática de
freqüentar tavernas. Segundo os decretos gregorianos de 1234, as mulheres judias eram

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

obrigadas a colocar faixas azuis em seus véus. E, especialmente para as vestimentas


femininas, o Cardeal Latino Malabranca, em 1279, proibia qualquer mulher de vestir-se
imodestamente, revelando-se muito ou apresentando seu corpo. (IZBLIC, 2005, pp.105-104)
Além dessas regras, vários outros concílios menores tentavam regular os materiais, as
formas e as cores das indumentárias clericais durante os séculos XIII e XIV. A proibição de
sapatos, faixas e outras peças verdes ou vermelhas faziam parte das regulamentações da
Igreja. Durante o século XIV, as proibições passaram a diminuir, sendo que no Conselho de
Basel (1431-1449), o tema das restrições vestuárias não estava em pauta. Apesar da tentativa
reformista de Nicolau de Cusa (Reformo Generalis), o papado mantinha-se com o crescimento
do luxo, principalmente na corte romana. (Idem)
No que se refere à indumentária religiosa, John Harvey, em Homens de preto, relata
que os dominicanos, ordem fundada por Domingo Guzman em 1215, ficaram conhecidos
como os “frades negros”, pois se vestiam com manto e capuz negro por cima de manto e
capuz branco. Conforme o autor,
nos Frades Negros encontramos o grande paradoxo do preto, pois o preto
é uma quantidade negativa, a ausência de cor: considerada como uma cor,
que se escolhe vestir, ela é o sinal da abnegação e da perda. Entretanto, a
abnegação pode também conferir poder e autoridade sobre os não-
abnegados. A abnegação total pode dar a ideia de santidade e fazer do
abnegado um exemplo a ser admirado com reverência e temor, e o preto,
entendido como a cor do poder sobre si mesmo, tornou-se a
representação de uma impressionante e intensa introversão. (...).
(HARVEY, 2003, p. 62)

Os códigos de vestir limitavam o consumo cavalheiresco no medievo. Ao analisar o


tecido do diabo, Michel Pastoureau descreveu que no século XIV, a legislação suntuária
proibia os clérigos de usarem roupas bicromáticas, seja a bipartida (veste partitae), listrada
(veste virgatae), ou em xadrez (veste scacatae). O concílio de Viena (1311) insistia nas
interdições indumentárias. Na cidade de Rouen, em 1310, um padre e um sapateiro eram
condenados à morte por vestirem listrado.
No período anterior, a partir das canções de gesta, as indumentárias e heráldicas
listradas, na literatura, faziam parte das roupas dos “Cavalheiros desleais, senescais
usurpadores, mulheres adúlteras, filhos rebeldes, irmãos perjuros, anões cruéis, serviçais
cúpidos, todos podem ser dotados de riscas heráldicas ou de vestuário”. (PASTOUREAU,
1991, p. 25) A partir do século XII, paulatinamente a risca começava a fazer parte da moda
cortesã. No reino de Aragão, o brasão tornava-se listrado, com riscas verticais amarelas e
vermelhas”. (Idem, p. 42)

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O branco cru integrava as roupas de baixo como camisas, ceroulas, véus e lençóis.
De acordo com Pastoureau, “Tais prescrições vinham do fato de a cor passar por qualquer
coisa mais ou menos impura (sobretudo se era ela obtida por meio de materiais animais), de
mais ou menos inútil e muito imodesto. Era preciso afastá-la dessa superfície íntima e natural
que constitui a pele”. (Idem, p. 78)
Acompanhando as transformações nas técnicas de tingimento e nos significados
simbólicos e culturais das cores, observa-se que a fabricação e o comércio dos tecidos
modificavam-se na longa duração. No mundo mediterrânico, o comércio de tecidos,
principalmente de seda de Sicília, Egito e Espanha Muçulmana predominavam entre os
mouros. Os laníferos coloridos também tornavam-se artigos luxuosos nesses
espaços.(PIPONNIER & MANE, Op. Cit, pp. 59-60)
Durante o século XIII, as metamorfoses das silhuetas ocorriam nas formas das
armaduras, aparecendo a brigandine, a pourpoint, ou doublet, ou ainda o gibão. Desse modo,
a moda cavalheiresca constituía-se a partir das modificações modernas do vestir masculino.
(Idem, pp. 61-65)
A produção têxtil predominante era originária da economia doméstica, de modo que
servos, plebeus e mesmo as damas medievais eram obrigadas ao árduo trabalho cotidiano
para fabricar tecidos e túnicas. Na Inglaterra do Trezentos, as donas de casa, chamadas de
mesuer em francês antigo, ou mesmo housewif , em inglês medieval, possuíam rocas, fusos e
teares e dominavam a produção lanífera caseira. A expressão latina textrix significava
tecedeira. A palavra latina trama permaneceu a mesma em português, mas em inglês, o termo
spoole era originário do francês espole e de spola da língua germânica. As linguagens dos
têxteis caseiros parecem ter circulado no norte da Europa, entre a Ilha Britânica, Flandres e o
Norte da França. (SAYERS, 2010, pp. 111-126)
Tratando dos papéis femininos na economia indumentária, por meio da análise da
literatura de cavalaria, Monica L. Wright, em “‘De fil d’Or ET de Soie’: making textiles in
Twelfth-Century French Romance”, defende a ideia de que a partir da metade do século XII, o
domínio da fabricação dos têxteis não era somente feminino, mas contava com o trabalho dos
homens artesãos de ofício. As atividades de cuidado com as ovelhas, fiação, tecelagem e
costura passavam a fazer parte dos ofícios masculinos. (WRIGHT, 2010, pp. 61-72)
A produtividade lanífera tornava-se significativa nos países do Norte, especialmente
na Inglaterra, onde as criações de ovelhas foram muito valorizadas, assim como em Castela.
Com relação ao papel feminino na produção dos têxteis e na economia doméstica, Piponnier

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observou que os ofícios de alfaiate ou costureiro substituíam nas cidades o trabalho das
mulheres. (Idem, p. 446) A autora parece ainda exagerar quando afirmou que,
no final da Idade Média, a tecelagem doméstica praticamente
desapareceu. A gama dos tecidos de lã ou de misturas oferecidas pelos
mercadores é suficientemente diversa para responder a todas as
clientelas. Mas na cidade como no campo a tecelagem por encomenda
das fibras vegetais trazidas pela cliente está bem desgastada, e alguns
inventários mobiliários permitem verificar que na Borgonha este trabalho é
realizado tão frequentemente por tecedeiras como por tecedeiros. (Idem,
p. 447)

Contudo, é provável que até o século XII, predominassem as atividades têxteis


femininas na economia medieval européia. Avós, mães e filhas das mais variadas camadas
sociais participavam das atividades de fiação, tecelagem e costura para o dia-a-dia, bem como
os ricos bordados para os dias de festas e casamentos, principalmente para as mulheres da
nobreza. Carlos Magno afirmava que a educação feminina, no caso das suas filhas, não
deveria ser somente fiar, tecer e coser, mas também bordar, ler e escrever. Um exemplo da
atividade intelectual das mulheres reais era a rainha Matilde, que depois da morte do esposo
Henrique I, aprendia a ler e escrever, além de incentivar as duas damas a fazer o mesmo.
(BOHEN, 1928, p. 32)
Originava-se, dessa forma, uma distinção social relacionada ao consumo
indumentário, que será cada vez mais enfatizado. A capacidade criativa das mulheres, em
suas casas, era paulatinamente substituída pelos trabalhos mais especializados dos alfaiates,
tecelões, tecelãs e costureiras. Yvain, em uma obra do século XII, lamentava a falta de
fortuna, ou seja, da sorte das mulheres tecelãs. Afirmava, além disso, que
havemos sempre de tecer panos de seda e jamais estaremos mais bem
vestidas. Seremos sempre pobres e nuas; teremos sempre fome e sede.
Jamais ganharemos o suficiente para melhorar nossa alimentação (....)
Pois quem ganha vinte soldos por semana não consegue sair da miséria
(....) e, enquanto vivemos na penúria, aquele para quem trabalhamos
enriquece às nossas custas. (Apud. PASTOUREAU. Op. Cit. (1989), p. 40)

Contudo, é necessário retomar o debate sobre as ideias a respeito dos modos de


vestir a partir das análises da literatura medieval do século XII. Conhecedora do latim, do
francês (lingua natal) e do inglês (local onde foi criada), Marie de France escreveu suas Leis
em francês a partir do precioso repertório dos poetas meridionais do amor cortês, mas iniciou,
segundo Jean Larnac, um tipo de poesia da perspectiva feminina. (LANARC, 1929, pp. 29-30)
Vivenciando o reinado de Henrique II Plantagenet (1154-1189), segundo esposo de
Leonor de Aquitania, o universo da corte de Londres, bem como a produção literária de

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Chrétien de Troyes, Marie de France escrevia em versos “uma maravilhosa aventura” do


mundo cavalheiresco. (LAIS DE MARRIE DE FRANCE, 1990, trad., introdução LARC-
HANFNER, p. 13)
No ideal de cavalaria, damas e cavalheiros conviviam nos castelos e nas florestas
repletas de perigos e magia. Gloria Tomas Gilmore, no artigo, “Marie de France’s Bisclavret:
what the werewolf will and will not wear”, estuda os significados das roupas em Bisclavret, uma
parte da obra de Marie de France, na qual trata de um lobisomem e a relação deste com as
vestimentas e a nudez, correspondendo a primeira à civilidade e a segunda ao selvagem e ao
bárbaro.
No contexto de escassez material e consumo precário para os padrões
contemporâenos, na obra as Leis, o vestir estava relacionado com a linhagem e com o
privilégio dos senhores, bem como às suas obrigações com seus vassalos (uma das
responsabilidades dos primeiros era armar os segundos). (GILMORE, 2002, pp. 75-76) As
damas vestiam indumentárias maravilhosas para receberem seus valorosos cavalheiros.
(LAIS. Op. Cit., p. 65)
O universo da cavalaria, segundo M. Pastoureau, era constituído por uma ética da
courtoisie, na qual eram valorizados os ideais de exaltação do desperdício,
beleza física, elegância e o desejo de agradar; a doçura, o frescor da alma,
a delicadeza de coração e de maneiras; o humor, a inteligência, uma
polidez requintada e, para dizer claramente, m certo esnobismo.
Pressupõe também a juventude, liberdade de todo apego para com a vida,
a disponibilidade para a guerra e os prazeres, a aventura e a ociosidade.
(...) Para ser cortês, a nobreza de berço não basta; os dons naturais
devem ser refinados por uma educação especial e alimentada por práticas
cotidianas no palácio de um grande senhor. O modelo é a corte de Artur. É
lá que encontramos as damas mais belas, os cavalheiros mais valentes, as
maneiras mais delicadas. (PASTOUREAU, 1989, pp. 48-49)

Ainda sob a perspectiva de Pastoureau, era a partir da metade do Duzentos que


a difusão do ideal cortês introduz nos meios aristocráticos uma maior
preocupação com a aparência. À polidez das maneiras é preciso
acrescentar a elegância do vestuário. Este assume uma crescente
importância nas relações econômicas e sociais; tal como um produto de
luxo, pode ser importado de muito longe, ofertado de presente ou mesmo
utilizado como forma de pagamento. (...). (Idem, p. 88)

De maneira geral, a moda cavalheiresca revelava-se por meio das metamorfoses nas
formas de vestir, constituindo em alterações como por exemplo, no aumento do comprimento
das túnicas masculinas, no crescimento da barba e do cabelo, nas mangas e mantos
arrastados pelo chão, nos sapatos com a ponta crescente que perduram por um longo tempo.

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Por volta de 1220, a túnica (bliaud) era substituída pelo surcort. O calção comprido não é mais
colorido de vermelho, mas predominantemente cru, e era enfiado sobre esses, as chausses,
espécie de camisas que iam até o meio da coxa, podendo ser de lã tricotada ou de seda.
Essas chausses podiam ser de cor escura como carmesim ou listradas. No século anterior, a
camisa de linho passava a predominar e seu consumo, geralmente, variava de acordo com as
estações do ano.
No tempo de Felipe Augusto, o gibão substituía a túnica. Os calçados podiam ser
sapatilhas ou borzequins. Estes eram de couro, habitualmente produzidos na Espanha, e
envolviam os tornozelos. Os cavalheiros utilizavam a heusse, “botas altas impermeáveis, de
couro flexível e cor vermelha ou preta”. Mas a novidade reside na profusão de acessórios
como chapéus, cale (pequeno gorro de lã ou outro tecido), chapel (grande faixa de tecido
enfeitado ricamente com pedras e metais preciosos) e as luvas de tricô, couro ou pele.
(PASTOUREAU, 1989, pp. 92-94)
A moda cavalheiresca centrava-se na grande variedade de armas e vestimentas,
como as cotas de malha que podiam pesar de dez a doze quilos, a haubergenon (jaqueta, ou
cota de malha pequena de mangas curtas), o gambinson, espécie de jaqueta de pele ou tecido
acolchoado. No final do século XII, a túnica de linho é agregada à indumentária cavalheiresca,
em cima da malha, para proteger o usuário do sol e da chuva. Acrescenta-se a isso, os
machados dos escudeiros e infantes, a corgiée, chicote sem cabo de couro e a besta,
armamento que predominava no Ocidente cristão a partir da segunda metade do século XII.
Os cavaleiros passavam a manter uma diversidade de cavalos para cada carga, viagens, e o
mais importante, o combate. (Idem, pp. 110-117)
O consumo indumentário feminino marcava-se pelo uso de um véu para cobrir os
seios, a camisa, e a túnica constituída basicamente por duas formas. A primeira era simples,
mas a segunda era composta por duas peças, sendo o corpinho, bastante ajustado ao corpo,
uma faixa apertando a cintura e uma longa saia pregueada, destacando a silhueta das
mulheres. As metamorfoses também acontecem nos seus trajes com a versatilidade das
mangas na moda cavalheiresca, bem como os adornos nos cintos. O botão, difundido a partir
da segunda metade do século XII, podia ser de couro, tecido, osso, chifre, marfim ou metal. A
partir do período seguinte, as tranças desapareciam dando lugar aos cabelos mais curtos e
presos com aros. Para sair à rua, as mulheres cobriam-se com véus, sendo os das viúvas e
freiras chamados de guimpe. (Idem, pp. 94-96)
A produção de brasões representou um dos aspectos mais significativos da moda
cavalheiresca, podendo ser emblemas de famílias ou pessoas. Um dos mais antigos era de

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Godofredo Plantageneta, um “escudo azul com seis leões de ouro”. (Idem, p. 97) Desse modo,
segundo Pastoureau, “na Idade Média o porte de brasões jamais esteve reservado a uma
categoria social particular”. (Idem, p. 98)
A função dos artefatos, principalmente dos hábitos, transformava-se
fundamentalmente de acordo com as mudanças das articulações entre gênero a partir da
propagação da vida cortesã, do mercado da economia mundo, da expansão das modas
renascentistas e das transformações culturais relacionadas à coloração das roupas e dos
tecidos.
Abordando a temática das cores, Michel Pastoureau, em Bleu: Histoire d’une couleur,
afirmava que o tingimento de azul possuía no mundo antigo, um alto preço, sendo originário
do índigo, proveniente do Oriente, bem como o lapis lazuli, pedra originária de regiões como
as atuais Sibéria, Afeganistão, Tibet e China, ou ainda o guède uma planta para a extração da
coloração azul. Mas as cores: o branco, o preto e o vermelho eram privilegiados na liturgia
medieval. O azul – blau na raiz germânica e lazaward na etimologia árabe, manteve-se até o
século XII distante da liturgia cristã. (PASTOUREAU, 2006, pp. 1-46)
O azul nas imagens cristãs, durante os séculos XII e XIII, aparecia principalmente no
manto da Virgem Maria. Essa cor fazia parte das armaduras cavalheirescas e segundo
Pastoureau, em 1200 representava 5% dos brasões, em 1250, passava para 15% e
finalmente, em 1400 dobrava. (Idem, p. 49)
A partir de 1200, o azul ganhava força nas vestimentas reais, com o manto real
francês bordado com flor-de-lis em ouro. Nesse período, na Europa, essa cor foi acolhida na
França e Inglaterra, nas cidades italianas e alemãs sofrendo resistência. Durante os anos de
1230, a tinturaria têxtil do guède, planta natural de regiões nobres, era introduzida na Europa
por meio de um processo técnico longo e complexo. Dentre locais de produção mais
importantes estavam a Picardai, Noramandia, Lombardia, Lincoln, Glocester e Sevilha. Além
dessa planta, o pastel, material tintorial produzido a partir de plantas como o “guède”, era
comercializado com Bizâncio e Constantinopla. (Idem, p. 55)
Durante os séculos XIII e XIV, a produção têxtil crescia no Ocidente com uma
complexa hierarquia social nos trabalhos dos mestres e artesãos tintureiros, principalmente de
linho e lã, entre os franceses e, raramente, em tinturairas de algodão nas cidades italianas.
Para realizarem seus trabalhos, esses oficiais mecânicos deveriam pedir licença para os
administradores das vilas e das cidades. Porém, as relações entre os tintureiros e tecelões
eram sempre conflituosas com as autoridades.

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Alguns locais especializavam-se em só realizar tinturas com determinado produto,


como em Nuremberg e Milão, onde separavam as tinturas entre as diferentes qualidades de
vermelho. Nas cidades da Alemanha, como Magdembourg, Erfurt, Constance e Nuremberg, a
produção da tinturaria era dividida de acordo com a clientela, havendo aquelas para os tecidos
e cores ordinárias e os Fäber, ou Swarzfäber para os de luxo. (Idem, pp. 56-60)
Em artigo intitulado “Some Medieval Colour Terms for Textiles, Lisa Monas revela que
o termo “perse” para tecidos originava-se do francês antigo (ca. 1100). E, estava presente
como um azul caro e escuro em grande parte das cidades europeias. (MONAS, 2014, pp. 29-
30)
Geralmente, o perse referia-se a cor azul, no entanto, podia aproximar-se do negro
como em Florença do pintor Merci Bicci (1419-1491). (Idem, pp. 29-32). Outras duas paletas
de azul descritas por Monas era o azul brilhante royal das vestes de Luis IX (1214-1270) e o
“alessandrino”, que tingia a seda italiana, proveniente do puro índigo do Oriente Médio (Idem,
pp.32-35). Esses tecidos, conforme a autora, atingiam os mercados da França e Inglaterra.
(Idem, p. 35)
Observa-se que as técnicas de tingimento, de restauração das tinturas e de coloração
das roupas eram processos complicados e demorados, podendo levar de um dia até semanas.
Drea Leed pesquisou uma série de reagentes para lavagem e tingimento de tecidos. Eram
mais comuns os materiais químicos e os reagentes realizados com urinas e vinho para a
produção de sabão. As lavagens frequentes eram realizadas pelo trabalho das mulheres em
grupo.(LEED, 2006, pp. 101-119)
Dentre as cores de dificuldade em tingimento estava o preto. No século XII, a
expansão da heráldica e das imagens negras que nela acompanhavam transformavam a
paleta negra, entendida anteriormente como cor do diabo. Esta cor seria revalorizada no fim
do período medieval. O exemplo mais claro desta valorização na heráldica era a águia do
Santo Império Romano Germânico. (Pasoureau, 2008, p. 86) A promoção da cor negra
avançava no vestuário, aparecendo no fim do medievo, o cavaleiro negro que escondia sua
identidade, sendo vestido, segundo Pastoureau, com a “cor do incógnito”. (Idem, p. 90)
O verde, segundo Pastoreau, possuía uma definição frágil na Grécia Antiga, contudo,
em latim e nas línguas romanas, etnologicamente, esta cor remonta à eloquência e ao vigor.
Vis (força), vir (homem, individuo masculino) e viridis foram palavras relacionadas ao verde
viril romano. (PASTOUREAU, 2013, pp. 20-21)
Nas modas romanas, a stola (veste feminina) e a palla (grande tecido drapeado das
mulheres) possuíam uma variada paleta de cores. E, embora as modas orientais estivessem

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presentes nos tecidos romanos, nos séculos II e III, o verde tinha influência dos tecidos
germânicos, sendo uma cor predominantemente masculina. (Idem, p. 25)
Com o advento do cristianismo, a vestimenta verde adquiria um caráter impuro,
inicialmente. Entretanto, à partir do século XII, esta cor tornava-se a “cor religiosa religiosa do
islã. Era a cor predileta dos seus mandatários religiosos. (Idem, p. 46)
Para a sensibilidade medieval, mais que o vermelho, o verde simbolizava o amor
(Idem, p. 45). Relacionado à juventude, esperança, fidelidade, poesia e elegância, o verde
estava relacionado à qualidade do homem cortês. (Idem, pp. 75-76).
Durante a moda cavalheiresca do século XII, nos torneios, especialmente na região da
Germânia, o verde imperava. Na literatura cavalheiresca do século seguinte, os cavaleiros
verdes representavam a juventude audaciosa. (Idem, pp. 78-82)
Herói verde por excelência, Tristão apaixonava-se pela rainha da Cornualha, a bela
Isolda, esposa do rei Marcos. Desse modo, a cor representava de certa maneira a
transgressão juvenil e viril cavalheiresca. (Idem, pp. 83-84)
Lisa Monnas nota a diferença entre o verde escuro, mais próximo do marrom,
conectado com a tristeza. O verde mais claro e brilhante aproximava ao sentimento de alegria.
Como exemplo deste último, aponta a vestimenta da famosa rainha Guinevre da novela de
cavalaria, Morte d’Arthur de Sir Thomas Marloy (1405-1471). (Idem, p.42)
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A categoria vestido de prenda no Movimento Tradicionalista Gaúcho de Porto Alegre - RS

Prenda’s dress category in the Movimento Tradicionalista Gaúcho from Porto Alegre – RS

Me. Caroline Müller (Universidade Federal do Paraná - UFPR)


carolinemuller.design@gmail.com

Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Corrêa (Universidade Federal do Paraná - UFPR)


rcorrea@ufpr.br

Resumo

Este texto tem como objetivo apresentar a categoria vestido de prenda no Movimento
Tradicionalista Gaúcho (MTG), explicitando algumas prescrições de uso instituídas pelo
movimento, referente ao modelo que compõe a vestimenta feminina. Ainda, com base em
documentos, referências bibliográficas, nas narrativas de Nilza Gonçalves Lessa e na
participação de eventos organizados pelo movimento, procuramos identificar como é utilizado o
vestido de prenda no contexto deste grupo, seus desvios e invenções.

Palavras-chave: Cultura material, identidade, indumentária

Abstract

This text aims to present prenda’s dress category in the Movimento Traditionalista Gaúcho
(MTG), indicating some wearing regulations imposed by the movement, referring to the model
that makes up the female dress. Still, based on documents, bibliographical references, in the
narrative of Mrs. Nilza and participation in events organized by the movement, sought to identify
how the prenda’s dress is used in the context of this group, its deviations and inventions.

Keywords: Material culture, identity, memory

Introdução

Este artigo tem como objetivo descrever e analisar algumas prescrições e modos de
uso do vestido de prenda no Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) de Porto Alegre, Rio
Grande do Sul, Brasil. O movimento, que teve origem nos anos de 1940, é uma entidade que
tem o propósito de orientar atividades vinculadas à cultura e tradição gaúcha, sendo o vestido de
prenda considerado um dos principais trajes que constitui a mulher tradicionalista gaúcha.
Para descrever e analisar algumas prescrições e modos de uso deste artefato,
utilizamos como estratégia a investigação de documentos e referências que registram

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características do vestido de prenda propostas pelo movimento, a saber: livros, croquis e


diretrizes. Também registramos narrativas de Nilza Gonçalves Lessa, esposa de Luiz Carlos
Barbosa Lessa, e participamos de eventos organizados por este grupo ao longo dos anos de
2014 e 2015. Os fatos narrados e memorados são informações obtidas tendo com base um
roteiro de entrevista1 semiestruturado. As negociações com a interlocutora sobre data, local e
assunto foram constantes ao longo destes dois anos de estudo, sendo apoiadas no método da
História Oral, que “é a interpretação da história e das sociedades e culturas em processo de
transformação, por intermédio da escuta às pessoas e do registro das histórias de suas vidas”
(THOMPSON, 2006, p.20). A análise foi realizada a partir do cruzamento dos dados obtidos,
entendendo que estas manifestações, sejam elas materiais e/ou por meio de narrativas,
permitem aos pesquisadores identificar embates, disputas e marcas sobre práticas que
constroem a identidade do movimento.
Ao registrar como o Movimento Tradicionalista Gaúcho compreende e utiliza o vestido
de prenda, procuramos pensar em como os artefatos fazem sentido para o mundo das pessoas
no âmbito da cultura material. Nesta perspectiva, dialogamos com Miller (2013), pois ele nos
ajuda a perceber a importância da materialidade e as relações sociais e materiais entre as coisas
e os sujeitos.
Entendemos os artefatos como produtos culturais, onde o objeto é usado como um dos
pontos de partida para reflexão (BENARUSH, 2012), podendo conhecer parte de uma cultura
através do legado de objetos e artefatos que a sociedade produz ou produziu (DENIS, 1998).
Interpretamos a indumentária como uma estratégia para acessar os sentidos inscritos em suas
formas e usos. Procuramos entendê-la em relação social e como método de estudo (ANDRADE,
2008). A seguir, apresentamos o vestido de prenda, fio condutor desta discussão.

A categoria vestido de prenda

A trivialidade que atribuímos aos objetos muitas vezes nos impede de notar sua
importância na determinação de nossa identidade. Miller (2013) destaca que os objetos
obscurecem seu papel justamente por comporem nosso cenário sem percebermos. O autor
chama isso de “humildade das coisas”, pois o fato de não enxergarmos os objetos fazem deles
tão importantes ao nosso cotidiano.

                                                                                                                       
1As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra, sendo que todas foram lidas e aprovadas pelos
entrevistados(as).

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Para os integrantes do MTG, o vestido de prenda, por exemplo, é uma indumentária


habitual, comum, trivial. Miller (2013) diria que é “tão óbvio que cega” (p. 79), visto que os
indivíduos crescem aceitando as normas de vestir por meio de rotinas cotidianas. No tocante aos
diferentes festejos que o movimento organiza, o vestido é uma peça fundamental, o que torna o
artefato quase que um ritual. Toda mulher que deseja participar de uma atividade festiva deve
utilizar este traje, pois ele constitui e legitima a mulher gaúcha.
O vestido de prenda tem essa denominação por ser dedicado à prenda, como são
chamadas as mulheres que participam do culto às tradições gaúchas. Na dissertação de Claudia
Pereira Dutra, intitulada “A prenda no imaginário tradicionalista”, é possível analisar pontos
referentes à inserção e o significado da mulher no MTG, já que a presença feminina no
movimento não era imaginada no início. A pesquisadora afirma, com base em relatos de Paixão
Côrtes2, que os fundadores do movimento pesquisaram “um termo que melhor representasse a
companheira do herói romântico mitificado pela expressão gaúcho. Escolheram o nome de
prenda, para idealizar uma mulher pura, ingênua e graciosa” (DUTRA, 2002, p. 49).
Essa figura do herói gaúcho é recorrente no discurso do movimento. Para eles, a
finalidade de preservar as tradições gaúchas está atrelada não somente aos costumes e hábitos
de um tempo distante. Além disso, o MTG volta-se para a figura do gaúcho e para uma cultura
ancorada no campo e no pampa, tendo a Revolução Farroupilha3 como uma época heróica e,
sobretudo seu momento maior.
Com o intuito de representar a essência da mulher gaúcha, oficializada como autêntica
pelo tradicionalismo, prescrições de uso de trajes foram criados. Elaboradas principalmente
pelos pioneiros do Movimento Tradicionalista Gaúcho, tais como Paixão Côrtes, Luiz Carlos
Barbosa Lessa, Antônio Augusto Fagundes e Luiz Celso Gomes Hyarup, eles são tratados como
aqueles que têm a propriedade para escrever a história do movimento.
Dentre os artefatos elaborados está o vestido de prenda, que fora criado em 1948 pelo
MTG, que “instituiu um traje que representasse a mulher das áreas agropecuaristas do estado de
tal forma que pudesse combinar com o traje atual dos peões” (ABREU, 2003, p. 127). Com esta
afirmação fica evidente que a intenção era traduzir a ideia da mulher submissa, dependente do
homem e que estivesse vinculada à área rural do estado.
                                                                                                                       
2 João Carlos D'Ávila Paixão Côrtes (Santana do Livramento, 12 de julho de 1927) é um dos idealizadores do
Movimento Tradicionalista Gaúcho, folclorista, compositor e pesquisador da cultura gaúcha. Disponível em:
<http://www.paginadogaucho.com.br/pers/paixao-01.htm>. Acesso em: 07 jan. 2016.
3 Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos ficou conhecida como revolução regional, de caráter republicano,

contra o governo imperial do Brasil, entre 1835 e 1845. O Marco inicial ocorreu no amanhecer de 20 de setembro de
1835. Nesse movimento revolucionário, que teve duração de cerca de dez anos e mostrava como pano de fundo os
ideais liberais, federalistas e republicanos, foi proclamada a República Rio-Grandense, instalando-se na cidade de
Piratini a sua capital (SEMANA FARROUPILHA, 2014).  

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Juntamente com a vestimenta masculina – a bombacha – calça masculina fofa e


pregueada feita em tecido de brim liso ou xadrez, o vestido de prenda foi oficializado como
“Pilcha Gaúcha” para representar a visão atual da mulher gaúcha. Sua regulamentação se deu
com a Lei Nº 8.813 de 10 de janeiro de 1989, que oficializou como traje de honra e de uso
preferencial no Rio Grande do Sul. No Art. 1º da lei alega claramente a importância dos trajes ao
pronunciar que “será considerada Pilcha Gaúcha somente aquela que, com autenticidade,
reproduza com elegância, a sobriedade da nossa indumentária histórica, conforme os ditames e
as diretrizes traçadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho” (MTG, 2015). Desde 1989 a
Pilcha Gaúcha pode substituir o traje convencional em todos os atos oficiais, públicos ou
privados realizados no estado do Rio Grande do Sul.
Quanto às diretrizes para o uso da Pilcha Feminina, o MTG estabeleceu os possíveis
cortes do vestido de prenda, modelos de manga, enfeites, tipos e cores dos tecidos. Dutra (2002)
pontua claramente esses aspectos ao expor que:

O MTG como órgão coordenador das atividades tradicionalistas no Rio Grande do


Sul disciplinou o uso "adequado" das pilchas: estabeleceu o comprimento do vestido,
as estampas, a textura e as cores dos tecidos, o estilo das mangas, os enfeites com
babadinhos, rendas e fitas, o tipo e as cores das meias e sapatos, o estilo do
penteado, da saia de armação e da "bombachinha”; além disso limitou o uso do
decote, de acessórios e de maquiagens, estabeleceu o que é permitido e proibido na
confecção do vestido de prenda dentro de um padrão. Os manuais a respeito da
indumentária feminina repetem as expressões: "sem exageros", "discretos",
"atendendo a idade e a ocasião do seu uso", "cuidado para não descaracterizar",
"sem contrastar com o recato da mulher gaúcha" (DUTRA, 2002, p.69).

Estas minuciosas e detalhadas orientações para a Pilcha Gaúcha são publicadas e


divulgadas pelo MTG por meio de seu website, livros e em eventos de cunho tradicionalista. Para
visualizarmos as regras fixadas pelo movimento, apresentamos a seguir as instruções para o uso
do vestido de prenda (Figura 1), organizadas em um livro por Abreu (2003) e Gonçalves (2013)
que pertencem à Coletânea da Legislação Tradicionalista, Volume 1 – 2012 – 9ª Edição
Atualizada e Ampliada. Esta coletânea é o documento norteador, fonte de informações que
orienta os tradicionalistas do MTG.

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Figura 1 - Prescrições de uso do vestido de prenda. Fonte: Adaptado de Abreu (2003) e Gonçalves (2013).

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Além do perfil que os trajes necessitam ter, os livros geralmente contém ilustrações ou
fotografias, exemplificando o que é ou não permitido. O movimento limita, a título de exemplo, o
uso de maquiagens excessivas, tatuagens e enfeites na cabeça, apresentando por meio de
fotografias o que pode e o que não pode ser utilizado. Neste sentido, não somente o vestido de
prenda, mas o ato de vestir carrega uma simbologia da mulher idealizada pelo movimento: pura,
simples, modesta e que acompanha o homem. A Figura 2 é um registro de um desfile de 2014,
mas que é organizando anualmente pelo MTG e tem como objetivo realçar a cultura e os
costumes do passado do Rio Grande do Sul.

Figura 2 - Mulher com o vestido de prenda acompanhando o homem, que está vestindo bombacha, em desfile.
Fonte: A autora (20.09.2014).

 
Para Nilza Gonçalves Lessa, conhecida por Dona Nilza e esposa de Luiz Carlos
Barbosa Lessa, as prescrições quanto ao uso do vestido de prenda são importantes e afirma que
procura seguir a tradição. É enfática ao falar que – para ela – nem todos os livros que tratam
sobre os trajes gaúchos podem servir como referência. Com o livro “Diretrizes para a Pilcha
Gaúcha: traje atual ilustrado” (GONÇALVES, 2013) em mãos, Dona Nilza expôs o que seria a
autêntica indumentária gaúcha, em contraponto às ilustrações desta obra. Tomando como
exemplo os detalhes dos trajes, em grande medida, os vestidos apresentam babados, rendas e
brilho, o que para Dona Nilza não tem relação com a indumentária gaúcha.
O envolvimento de Dona Nilza com o MTG teve impulso quando ela se casou, em
1960, com Barbosa Lessa. Com ele pode aprofundar seus conhecimentos sobre o
tradicionalismo gaúcho. Por acompanhar seu marido por longos anos, ela associa o movimento e
as características do vestido de prenda às pesquisas e posicionamentos do marido. Sua fala
geralmente remete ao passado e de como as peças eram utilizadas na época de criação dos

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trajes que hoje compõe a Pilcha Gaúcha. Ainda, salienta que “tudo isso, cetim, renda é moda
francesa, não tem nada a ver com a tradição. Pra mim, que foi passando o tempo, deixei de ver
a coisa autêntica pra ver essas fantasias, porque isso pode sim ser chamado de fantasias” (Nilza
Gonçalves Lessa, entrevista, setembro, 2014). Assim, no que se refere às prescrições atuais,
Dona Nilza acredita que os vestidos sofreram muitas alterações ao longo dos anos e que não
condizem com o que ela compreende por tradição gaúcha.
Diferente do que é apresentado e disponibilizado nos livros aos tradicionalistas
participantes do movimento, ela acredita que os trajes gaúchos devem apresentar apenas um
modelo de estampa e alcançar o comprimento da metade da canela, pois “sendo a tradição
relacionada ao campo e galpão, não se podia usar um vestido comprido. Infelizmente deixaram
de usar os vestidos tradicionais, normais, simples, sem fita de cetim e essas coisas” (Nilza
Gonçalves Lessa, entrevista, setembro, 2014). Novamente, Dona Nilza explicita que as
prescrições mantidas por ela são práticas e costumes que procuram manter as tradições. O
vestido de prenda não assume apenas a função de cobrir o corpo, mas dá sentido ao ser mulher
tradicionalista gaúcha.
Desta forma, registrar relatos como este, que envolvem pequenas histórias de vida,
podem nos ajudar a compreender, sob outras luzes, as maneiras como temos nos constituído e
vivido. Tais inserções também permitem perceber que a própria história não é fixa, imutável,
assim como as memórias e as tradições. São/estão sempre em processos dinâmicos, já que
sempre há algo ainda por ser escutado, registrado, construído e conhecido. A narrativa de Dona
Nilza nos ajudou a observar que nem sempre as prescrições são compreendidas igualmente.
Estes modos de utilizar o vestido de prenda, que em muitos aspectos são particulares e
ultrapassam as diretrizes, serão investigados no tópico a seguir.

Sobre os usos e invenções que constroem o movimento

De acordo com Miller (2013) devemos reconhecer e respeitar os artefatos, ao passo


que “também somos trecos, e nosso uso e nossa identificação com a cultura material oferecem
uma capacidade de ampliar, tanto quanto de cercear, nossa humanidade” (MILLER, 2013, p. 12).
Sua intenção com esta obra é mostrar que uma apreciação mais profunda dos artefatos nos
levará a uma apreciação mais profunda das pessoas.
Com a ajuda da indumentária é possível entender como as pessoas enxergam o
mundo, compreendendo, assim, como as práticas sociais e culturais relacionam-se com o
vestuário. Esses artefatos contribuem com a história social e as memórias individuais e coletivas

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de uma sociedade. Para Merlo (2012) a veste tem um papel valoroso e expressivo. Nas palavras
da autora “o ato de vestir e cobrir o corpo expressa um papel importante na formação social da
identidade, pois a maneira como a humanidade se veste, e isso ocorre e ocorreu em diversas
épocas e culturas, influenciam o meio no qual o indivíduo se insere na sociedade” (MERLO,
2012, p. 9).
Para os que integram o movimento, a adoração pela tradição gaúcha está diretamente
relacionada ao uso de artefatos que simbolizem a cultura gaúcha. Os artefatos denunciam em
seu uso a importância que têm. No primeiro encontro com alguns dos participantes do MTG,
realizado no ano de 2014, o que nos chamou a atenção foi o fato de todos(as) eles(as) estarem
vestidos(as) com a Pilcha Gaúcha. Com relação às mulheres, algumas vestiam seu próprio
modelo de vestido, com muitos babados, cetins e rendas. Outras, uma bombacha com camisa,
sendo estes inaceitáveis para Dona Nilza.
Isso se deve, pois para Dona Nilza nos últimos dez anos surgiram interferências no
traje tradicionalista gaúcho, o que comprometeu a autenticidade ao passado e à tradicional
vestimenta gaúcha. Nas palavras dela “deixaram de usar os vestidos tradicionais (...) e eu me
perguntava: por que uma índia americana estava envolvida nisso daqui?” (Nilza Gonçalves
Lessa, entrevista, setembro, 2014). Para a interlocutora, a tradição estabelece uma continuidade,
é imutável, ou seja, não sofre alterações com o tempo.
No entanto, concordamos com Hobsbawm (2015) ao afirmar que, quando se
estabelece um conjunto de práticas que visam denotar valores do passado através da repetição,
o grupo está destinado a produzir uma tradição inventada. Segundo o autor, “não é necessário
recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam” (HOBSBAWM,
2015, p.15). Diante deste posicionamento do autor, é possível pensarmos que as tradições,
mesmo inventadas, se atualizam e se transformam nas relações cotidianas. Em um texto
publicado no site do MTG fica visível que o movimento acredita que existem constantes
atualizações nos trajes ao pronunciarem que:

O vestido de prenda, sabemos, foi “inventado” pelo 35 CTG, por volta de 1950,
portanto, somente agora, estaria adquirindo o status de fato folclórico, porém se
compararmos os vestidos utilizados pelas prendas até a criação do MTG, em 1966, e
os que são usados hoje, não encontraremos muitas semelhanças. Aqueles eram
simples, no tecido e no corte, estes são ricos (MTG, 2015).

O vestido de prenda é um exemplo de atualização. Mesmo que seu objetivo seja


“conservar a padronagem e a sobriedade do vestido padrão da mulher gaúcha” (FAGUNDES,
1977, p. 24), existem constantes inovações em seu uso e até fabricação. Ao observarmos os

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vestidos de Dona Nilza, como também os que compõem o Acervo de Indumentária do


movimento, foi possível notar a presença dos acabamentos realizados com o auxílio da máquina
de costura. Ora, se para Dona Nilza a tradição é algo que não tem evolução, por que seus
vestidos foram costurados em cooperação com esta tecnologia?
Sabe-se que a ideia de uma máquina de costura que produzisse roupas em maior
quantidade começa a surgir em 1760. Mas é o estadunidense Isaac Merritt Singer (1811-1875)
quem cria e solicita em 1851 a patente da máquina de costura que se aproxima das que
conhecemos hoje. No Brasil “a história da Singer começa em 1858 com a abertura do primeiro
ponto de venda de máquinas na Rua do Ouvidor, número 117” (MAGNABOSCO E SILVA, 2015,
p. 3). Côrtes (1980) complementa que até 1870 as peças de roupa eram feitas a mão e que este
invento demorou a chegar às famílias gaúchas, diante da inovação e do alto custo para compra.
Logo, mesmo que Dona Nilza procure obedecer ao passado, os processos de
fabricação, a compra dos tecidos e o uso das vestimentas acontecem no presente, com base
nas tecnologias atuais. Ainda, os tecidos, as rendas, os fios, as pessoas e os saberes investidos
nestas roupas são parte de uma trajetória recente, de algo construído hoje, em seu tempo. A
título de exemplo, no que se refere ao vestido (Figura 3) do Acervo de Indumentária do MTG,
seu tecido é sintético. O nylon, um dos tecidos sintéticos mais reconhecidos, por exemplo, teve
sua disseminação em larga escala a partir de 1937, com a empresa Du pont (SILVA E
MENESES, 2013), o que nos permite concluir que o surgimento do tecido é posterior ao período
heroico da Revolução Farroupilha que Dona Nilza e o MTG cultuam como o passado do povo
gaúcho. Na figura seguinte podemos visualizar o detalhe da costura feita com uma Overlock, tipo
de máquina que efetua simultaneamente a costura e o chuleio (acabamento das bordas para que
não se desfiem) do tecido sintético.

Figura 3 - Detalhe da costura de um dos vestidos do Acervo de Indumentária do MTG. Fonte: A autora (10.11.2015).

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Durante as visitas exploratórias procuramos estar atentos aos componentes da


indumentária feminina. Ainda, uma das questões que nos inquietou foi entender as formas de
apropriação dos trajes, já que nossas referências até então eram as prescrições contidas nas
diretrizes para a Pilcha Gaúcha. Observamos, por exemplo, que nas atividades da Semana
Farroupilha, evento festivo que se comemora e homenageia no mês de setembro a Revolução
Farroupilha, o traje da mulher não se restringia à indumentária tradicional. Algumas moças, como
é o caso da Figura 4, utilizavam chapéus, que em via de regra, são destinados ao público
masculino. Conforme menciona Abreu (2003), quando a mulher deseja utilizar algum traje
alternativo, ela deve optar por um chapéu com fita ou flores e não o chapéu dito masculino.

Figura 4 - Menina com vestido de prenda e chapéu masculino. Fonte: A autora (19.09.2014).

Outro aspecto percebido foi quanto às reorganizações dos trajes. Muitas mulheres
usavam bota, bombacha, uma camisa e sem penteados nos cabelos. O uso da bombacha
feminina é um fato bastante discutido pelos tradicionalistas. Ao longo da pesquisa conversamos
com alguns integrantes do movimento a respeito deste assunto e as interpretações do uso nem
sempre eram similares. Isso porque, cada pessoa, a partir de sua trajetória, compreende o uso
do traje de uma determinada forma. Em entrevista para o Jornal local Zero Hora4 em março de
2013, a coordenadora do 35 CTG5, Márcia Borges, afirma que a mulher que veste bombacha
não tem acesso ao espaços deste CTG, posto que para ela a mulher deve utilizar o vestido de
prenda. Assim como Dona Nilza, Márcia Borges não aceita a atualização dos trajes e assume
que suas ações têm como essência referir-se a situações do passado.
                                                                                                                       
4 Matéria na íntegra disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/reporter-
farroupilha/platb/2013/04/30/35-ctg-proibe-bombacha-feminina/>. Acesso em: 12 de nov. 2015.
5 O “35 CTG” é um Centro de Tradições Gaúchas filiado e orientado ao MTG, órgão maior.

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Contudo, novamente concordamos com o argumento de Hobsbawm (2015) quando


afirma que “na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições ‘inventadas’
(...) são reações a situações novas ou que assumem a forma de referência a situações
anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória”
(p.8). Nesse caso, mesmo que Márcia Borges e Dona Nilza busquem uma referência ao
passado, o processo de formalizar e organizar a tradição gaúcha nos dias de hoje é inventada.
Para que entendamos mais sobre a invenção do MTG e, sobretudo, do vestido de
prenda, é preciso que reflitamos sobre as circunstâncias que levaram os tradicionalistas a
produzirem esta peça como típica feminina. No período em que o Movimento Tradicionalista
Gaúcho fora criado, nos anos de 1940, o estado do Rio Grande do Sul sofria impacto do avanço
da política econômica norte-americana sobre o país, em que o uso de novas tecnologias estava
transformando as atividades rurais (DUTRA, 2002). Neste quadro ocorrem mudanças, como a
introdução de multinacionais no país, manifestações do êxodo rural e a população do campo é
atraída para a cidade a fim de servir de mão de obra ao setor industrial que prospera. Este
período também foi marcado pelo fim do regime do Estado Novo implantado por Getúlio Vargas,
que adotou uma política centralizadora, enfraqueceu o poder regional e estadual e solicitou a
queima das bandeiras e a abolição dos hinos estaduais.
É nesta época de mudanças, frente a um mundo aberto, de novas referências culturais
e de abandono às tradições que surge um movimento estudantil a favor das tradições e contra
os "estrangeirismos". Este sentimento de perda é uma das principais particularidades que
envolvem as tradições inventadas, da qual Hobsbawm defende que elas ocorrem com mais
frequência “quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões
sociais para os quais as ‘velhas’ tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais
essas tradições são incompatíveis” (HOBSBAWM, 2015, p. 11). Em síntese, geralmente
inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações rápidas na sociedade.
O autor inicia sua obra alertando para o fato de que muitas vezes as “tradições”, que
parecem ser antigas, são bastante recentes ou até inventadas. Para isso, reporta-se a “pompa”
que cerca a realeza britânica nas cerimônias públicas. Assim como os ingleses, existe um
estereótipo sobre o Rio Grande do Sul, sobre os gaúchos e que se traduz em imagens mentais e
objetuais, em personagens-símbolos, em ritos, crenças, valores, práticas sociais e
manifestações artísticas (PESAVENTO, 1993).
A pesquisadora Maria Eunice de Souza Maciel em seu texto “A memória tradicionalista:
os fundadores” (1999) também profere sobre a figura do gaúcho dizendo que o MTG criou o que
é chamado de “cultura tradicionalista, ou seja, uma atualização do passado que cria novas

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formas culturais com base em tradições e no folclore regional, dentro de um processo


semelhante ao das invenções das tradições descrito por Hobsbawm” (MACIEL, 1999, p. 3). Ao
nascer o movimento, nasciam também símbolos com rituais a serem seguidos. Foram criadas
práticas e manifestações adequadas ao presente com referência ao passado. Analisando as
características do tradicionalismo como um movimento cultural, fica visível o esforço de criação
de símbolos que os identifiquem. As atividades procuram apresentar um processo de ritualização
impostos pela repetição, tais como a dança, a música, o estar pilchado e o churrasco. E em
todas as atividades que participamos esses elementos estiveram presentes.
A figura da prenda é uma criação do MTG, em que as mulheres passaram a ser
vestidas conforme as regras estabelecidas e aceitas por todos os CTGs participantes do
movimento (ABREU, 2003; ZATTERA, 1997). Dutra (2002) defende que a representação da
prenda “foi solidificada através de imagens (indumentária), gestos (danças) e poesia (canções),
que expressam um modelo de mulher, embasado na concepção positivista e católica, dentro de
uma mentalidade conservadora” (DUTRA, 2002, p.9). Nesta perspectiva próxima a de
Hobsbawm (2015), cada elemento do vestuário, da dança e da poesia passaram a ser
reelaborados e atualizados para representar o passado no presente, onde lhe são dados novos
significados.
A leitura que realizamos das vestimentas é que o interesse está na constituição de
uma memória que, através da forma, cores, texturas e uso, o grupo acredite ser capaz de
recuperar o passado coletivo. Entendemos que esse trabalho de solidificação da memória
presente nas prescrições de uso não seja um resgate ao passado, “mas uma reconstrução do
passado num processo de seleção e ressignificação dos acontecimentos” (DUTRA, 2002, p.76).
Logo, pensamos que no momento que o MTG considera seu passado, o grupo toma consciência
de sua identidade através do tempo e, mesmo que haja mudanças e atualizações, o que ocupa
maior espaço e perpetua são os elementos que constantemente são reconstruídos do passado
no presente. Essas atualizações muitas vezes nem são percebidas como modificações, mas sim
uma reafirmação de que aquilo é importante e valoroso para o movimento.
Outro ponto a destacar é quanto às diferenças e descontinuidades percebidas por
Zattera (1997) ao analisar os trajes reconhecidos como os de época para o movimento com o
vestido de prenda atual. Para Zattera (1997), o vestido de prenda foi criado para facilitar as
danças e porque eram muito tristes os trajes do final do século XIX e início do século XX.
Manoelito Carlos Savaris, atual presidente do MTG, admite que este modelo de vestido é algo
que se usa modernamente, sendo “uma invenção do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Ele não
tem uma origem histórica clara (...) mas ele guarda semelhanças com os trajes utilizados em

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determinadas épocas pelas mulheres das cidades” (Manoelito Carlos Savaris, entrevista, maio,
2015). Ou seja, no tocante ao tradicionalismo, é preciso analisar as representações produzidas
para tentar entender como são articuladas em suas práticas. Novamente aqui fica evidente que o
grupo afirma que existem atualizações na vestimenta, mas que elas continuam apresentando
semelhanças e representando as tradições.
Sobre grupos que acreditam não haver ruptura com o passado, Hobsbawm (2015)
afirma que “tal ruptura é visível mesmo em movimentos que deliberadamente se denominam
‘tradicionalistas’ e que atraem grupos considerados por unanimidade repositórios da
continuidade histórica e da tradição” (HOBSBAWM, 2015, p.15). Para o autor, o aparecimento
destes movimentos que defendem a restauração das tradições já indica que houve uma ruptura
com o passado, logo estão destinados a serem uma tradição inventada.
Por fim, parece-nos relevante destacar que o grupo tradicionalista gaúcho desenvolveu
um conjunto de rituais com base em elementos antigos, sendo o vestido de prenda um de seus
artefatos mais reconhecidos e legitimados. Em conformidade com Miller (2013) percebemos que
os significados não estão inerentes no artefato, mas nos diferentes usos, apropriações e
consumos. Os materiais, métodos de fabricação e sua composição nos dão indícios de como
este grupo pensa e materializa seus ideais, mas são nos usos e nas apropriações possíveis que
estão contidos os discursos de como o movimento entende a identidade gaúcha.

Considerações Finais

Este artigo teve o objetivo de apresentar a categoria vestido de prenda no Movimento


Tradicionalista Gaúcho (MTG), apontando algumas prescrições de uso instituídas pelo
movimento, referente ao modelo que compõe a vestimenta feminina. Também observamos e
registramos como é utilizado o vestido de prenda no contexto deste grupo, seus desvios e
invenções.
O vestido de prenda, artefato de discussão neste trabalho, é uma invenção do MTG.
Ao longo das visitas exploratórias aos eventos tradicionalistas gaúchos e com as narrativas de
Dona Nilza, reconhecemos que as tradições que o movimento cultua se atualizam nas relações
cotidianas com o tempo e o espaço vivido. Entendemos que a busca pela restauração das
tradições no tempo presente indica que houve uma ruptura com o passado, logo estão
destinados a ser uma tradição inventada. O MTG desenvolveu um conjunto de rituais com base
em elementos antigos, mas que são constantemente atualizados e reconfigurados.

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Neste processo de construir sentidos para o passado, o movimento construiu regras e


estabeleceu um padrão da mulher gaúcha, sendo um destes traços marcantes o tamanho dos
vestidos. O fato do vestido de prenda e a bombacha serem considerados trajes de honra e de
uso preferencial na vida do tradicionalismo gaúcho faz com que esta seja a imagem atual do
homem e da mulher gaúcha. Ou seja, fronteiras são estabelecidas para dizer o que deve ser
masculino e feminino.
Partindo desses apontamentos, compreendemos que os sujeitos que participam do
MTG os são na medida em que vestem a indumentária gaúcha. A materialidade das roupas e de
seus acessórios está entranhada na materialidade de seus seres. Logo, do mesmo modo que as
pessoas, as indumentárias também são narradoras e protagonistas de uma história.
As prescrições quanto ao uso das indumentárias no contexto do movimento são
necessárias para sustentar a identidade gaúcha, legitimando quem é o(a) verdadeiro gaúcho(a).
O vestido de prenda e a bombacha, atualmente denominados de “Pilcha Gaúcha” são
materializações de como o movimento está construindo a identidade gaúcha e de quão
importante estes artefatos são para cultuar as tradições. Para o movimento, ser gaúcho(a) é
participar e reconhecer nestes trajes a “essência” e a história do estado. Pontuamos estas
considerações como registros e análises desta pesquisa, certos de que mais poderão ser
investigadas e documentadas.

Referências

Livros
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BENARUSH, M. K. Moda é patrimônio. In: CAMARGO, P. de O.; RIBEIRO, P. E. V. L.;
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ZATTERA, V. S. Gaúcho: Vestuário Tradicional e Costumes. Porto Alegre: Pallotti, 1997.

Teses e dissertações
ANDRADE, R. M. de. BouéSoeurs RG 7091: a biografia cultural de um vestido. 2008. 224 f.
Tese (Doutorado em História) – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2008.
DUTRA, C. P. A prenda no imaginário tradicionalista. 136p. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio
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Revistas ou Periódicos
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A INDUMENTÁRIA DO IMIGRANTE EM JOINVILLE/SC NO SÉCULO XIX*

The immigrant garment in Joinville/SC in the 20th century

BIANCHINI, Ruth Pavanello; (Univille)1


ruthpavanellobianchini@gmail.com

GUEDES, Sandra Paschoal Leite de Camargo; (Univille)2


sandraplcguedes@gmail.com

Resumo: Este artigo tem como principal objetivo identificar os diferentes tipos de indumentária e os
modos de utilizá-la existentes em Joinville, Santa Catarina, no século XIX. Partiu-se do pressuposto
que os imigrantes tiveram que fazer adaptações àquela indumentária utilizada na Europa antes de
partirem para o Brasil. Além da revisão bibliográfica realizada, a pesquisa contou com a análise de
documentos escritos e iconográficos existentes no Arquivo Histórico de Joinville o que possibilitou a
identificação dos diferentes tipos e usos da indumentária utilizada em Joinville no período em estudo.
Palavras-chave: História da moda, Indumentária, Joinville.

Abstract: This article aims to identify the different types of clothing and ways to use it existing in
Joinville, Santa Catarina, in the nineteenth century. He started from the assumption that immigrants
have had to make adjustments to that garment used in Europe before heading to Brazil. In addition to
the literature review conducted, the survey included the analysis of written documents and iconographic
existing in Joinville at the Historical Archives which enabled the identification of different types and uses
of clothing used in Joinville in the period under study.
Keywords: History of fashion, Garment, Joinville.
.

INTRODUÇÃO

Roupas e adornos estão presentes em todas as sociedades e a estes objetos culturais é


atribuída grande importância. Problematizar a indumentária a partir de uma perspectiva interdisciplinar
contribui para uma compreensão mais profunda sobre as relações sociais e processos históricos de

* Este artigo, vinculado ao Grupo de Pesquisa de Estudos Interdisciplinares em Patrimônio Cultural é ligado ao projeto de pesquisa “O
Brasil no estrangeiro e os estrangeiros no Brasil: Museus e Representações”.

1 Acadêmica do curso de Graduação em Design de Moda, bolsista de iniciação científica da UNIVILLE


2 Orientadora. Professora Doutora do Departamento de História e do Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da UNIVILLE

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determinada sociedade. A indumentária é parte integrante do cotidiano das sociedades, é o ponto de


junção de variantes distintas que provem das técnicas, de estruturas sociais, da economia, das trocas,
das diferenças sexuais, das atitudes psicológicas, da ideologia e da política.

Segundo o Dicionário da Moda, escrito por Sabino (2007, p. 340), “A indumentária consiste no
conjunto de roupas, calçados e acessórios usados pelos diversos povos em diferentes momentos da
história da humanidade”. A indumentária faz parte da cultura material e por meio dela também possível
compreender a sociedade de determinada época, uma vez que o estudo da indumentária traduz os
usos e costumes dos povos.

A roupa segue a trajetória do homem através dos tempos, pois, por fazer
parte de sua cultura material, são refletidos nela fatores que caracterizam
cada período histórico. Dedicar-se ao estudo da indumentária usada em
uma determinada época significa buscar compreender a sociedade através
de uma parte de sua cultura material, ou seja, através dos objetos
produzidos e utilizados pelo homem em seu cotidiano num determinando
período. A cultura material pode ser uma das bases para a análise histórica
de uma sociedade (FERNANDES, 2000, p.28).

A indumentária, que difere da moda por ter uma historicidade mais longa, está diretamente
relacionada ao processo histórico da sociedade onde se insere. Como os discursos são construídos
dentro de contextos históricos e sociais específicos, é possível reconhecer, os nos diferentes discursos
sobre a moda de uma época, como são pensados os indivíduos, suas relações e interações, como se
articulam as classes sociais, as pertenças políticas e até mesmo os gêneros e as sexualidades.
A pesquisa que deu origem a este artigo teve como objetivo principal identificar os diferentes
tipos de indumentária e os modos de utilizá-la existentes em Joinville no século XIX, visto que essa
área é pouco explorada pelos historiadores da moda e a bibliografia sobre o tema é escassa. Optou-se
por realizar uma revisão bibliográfica sobre a história de Joinville no século XIX e da indumentária
utilizada nos países de onde vieram os imigrantes que habitaram essa região naquele período. Em
seguida foi realizado um levantamento de dados no Arquivo Histórico de Joinville em documentos como
fotografias, inventários e jornais. Todos os levantamentos de dados realizados foram importantes para
ajudar a responder o problema de pesquisa: Quais são os diferentes tipos de indumentária e os modos
de utilizá-las existentes em Joinville no século XIX?
Hoje, Joinville é uma cidade cosmopolita, formada pelas contribuições culturais das pessoas
que chegaram de todos os cantos do mundo, no entanto, procurar compreender e descrever as
práticas cotidianas da cidade no século XIX é um desafio para o pesquisador, um desafio de se
conhecer essa linguagem e de construir uma narrativa que contemple aquele cotidiano. Por
consequência, para se compreender o vestuário usado em determinado local, é necessário entender a

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sociedade que ele esta inserido, portanto, para se compreender a indumentária utilizada em Joinville
oitocentista é necessário contextualizar a sociedade da época.

A JOINVILLE OITOCENTISTA

A história da cidade de Joinville começa oficialmente em 09 de março do ano de 1851,


segundo estudos do historiador Carlos Ficker (2008), nesta data chega a então Colônia Dona
Francisca a Barca Colon trazendo o primeiro grupo mais numeroso de imigrantes europeus.
Originalmente o nome dado à colônia foi uma homenagem à princesa Francisca Carolina, filha de Dom
Pedro I, pois as terras colonizadas eram parte do dote de seu casamento com o príncipe francês
François Philippe d’Orleans, Príncipe de Joinville. Entre os imigrantes vindos para a Colônia Dona
Francisca, vieram, principalmente, imigrantes suíços, noruegueses e uma quantidade relevante de
pessoas de diversas partes da atual Alemanha, que de uma forma geral, vieram em busca de um futuro
próspero.
Os imigrantes eram oriundos de uma Europa conturbada política e economicamente e que
sofria com a falta de trabalho. “Os camponeses emigravam por causa das guerras, das lutas políticas,
do excessivo crescimento populacional, dos altos impostos, e das terras concentradas nas mãos de
poucos” (LAEMMLE, 2014, p.19). De acordo com Fernandes (2000, p. 29), “O fracasso das revoluções
de 1848 e 1849 e as perseguições políticas que se seguiram também foram fatores que estimularam
muitos profissionais integrantes da burguesia da época a emigrarem”. Enquanto isso, no Brasil,
segundo o historiador Ficker (2008), a imigração para a Colônia Dona Francisca atendeu aos
interesses do governo imperial, que estava interessado em estimular a entrada de mão de obra no
Brasil, já que eram necessárias novas alternativas para suprir a falta do trabalho realizado pelos negros
com o fim do tráfico de escravos.
O imigrante europeu chegou à Santa Catarina com a ideia de buscar liberdade e igualdade no
“Novo Mundo” da América. No entanto, ao chegarem a Colônia, os imigrantes decepcionaram-se com o
que viram, pois a terra era alagadiça e não havia boas condições para se instalarem. A real situação a
qual os imigrantes se encontravam era muito diferente das propagandas divulgadas na Alemanha.
(FICKER, 2008).

Tudo era estranho: a língua, o calor, os insetos, a mata fechada e o mangue que cobria boa
parte das terras da cidade. Os imigrantes nada conheciam da cultura da nova terra; seu
referencial de mundo eram as terras da Europa. E, de lá, trouxeram, portanto, seus costumes
e seus valores, junto com muitos sonhos e saudades (LAEMMLE, 2014, p.22).

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A cultura dos imigrantes sofreu mudanças, entretanto, as sociedades colonizadoras


consideravam de extrema importância que o emigrante não perdesse a sua cultura, língua e
nacionalidade e mesmo com muitas dificuldades, o ambiente cultural joinvilense era bem movimentado,
havia bailes e consertos musicais.
O início da vida na colônia foi difícil, tudo estava para se começar, porém persistia o sonho de
construir uma boa cidade no Novo Mundo. Compreender o imigrante é, sobretudo, pensar nos estigmas
que estes ajudaram a imprimir sobre a cidade.

A INDUMENTÁRIA DE JOINVILLE NO SÉCULO XIX

Após esse breve relato sobre a colonização da cidade, resta discutir o objeto de análise, ou
seja, a indumentária utilizada por esses imigrantes. A moda é um fenômeno cultural nascido no seio
das sociedades europeias do século XIV. “A moda é uma das expressões, individuais e coletivas, dos
valores e ideias que permeiam determinadas sociedades e épocas” (CARVALHO, 2007, p.17).
Segundo Carvalho ainda, efêmera e carregada de referências sociais, culturais, históricas e
comportamentais a moda articula as relações humanas, a partir da maneira como cada época
representou esteticamente seus mitos, crenças, valores, ideais e produção intelectual.
A vestimenta é utilizada como instrumento social para exibir riqueza e posição, a moda é um
reflexo de uma época vivida, de uma sociedade, suas prioridades, aspirações, liberalismos ou
conservadorismos. A moda integra o indivíduo a um contexto político e social. Por meio das vestes, as
pessoas comunicam que pertencem a determinada classe social e faixa etária, o que permite a
classificação dos indivíduos em hierarquias sociais (CARVALHO, 2007).
O século XIX foi marcado pela ascensão burguesa ao poder político. A burguesia encontrava-
se numa posição privilegiada em que ditava as normas da moral e dos bons costumes de acordo com
seus valores. A Revolução Industrial iniciada no século anterior acelerou-se e seu efeito foi sentido de
forma mais contundente pela ascensão dessa classe média. O desenvolvimento do capitalismo
industrial significou que esforço pessoal e propósito eram agora os únicos atributos capazes de garantir
uma vida próspera (MACKENZIE, 2010).
Os valores da classe média moldaram a moda europeia do século XIX; pautada nos novos
valores burgueses, o homem deveria mostrar através de sua aparência a preocupação com o trabalho.
Dessa forma, o vestuário masculino sofre mudanças, de extravagantes tornaram-se cada vez mais
limpos e monocromáticos. Segundo Mackenzie (2010, p. 32) “O terno justo, de aparência austera e
cores escuras, virou símbolo de respeitabilidade e das ideias das mentes elevadas”. Em contrapartida,

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o vestuário feminino passa da simplicidade pós-revolucionária para, gradativamente, encher-se de


rendas, babados, fitas e bordados, acentuando consideravelmente a discrepância entre o universo de
interesses do masculino e do feminino. Será que essas características foram trazidas e conservadas na
pequena colônia de imigrantes no sul do país?
Segundo Laver (1989, p. 175), “Em 1850, a moda vitoriana para homens e mulheres parecia ter
sido posta em uma fôrma. As pessoas que a usavam não viam qualquer motivo para mudar”. A beleza
e a feminilidade põem-se como modos de organização das relações sociais, pautadas nos discursos
que permearam o século XIX. Às mulheres restava “uma moda que as mantinha afogadas em fofos e
laçarotes, espremidas em espartilhos ou sedutoras em decotes, crinolinas e anquinhas” (CARVALHO,
2007, p. 19).
Ainda segundo Laver (1989), as principais características da indumentária feminina europeia,
na década de 1840, era a cintura baixa e as linhas de adornos do corpete se destinavam a realçar esse
efeito; as mangas eram justas ou ficavam fofas no antebraço; as saias eram compridas e rodadas; o
corpete e a saia geralmente formavam uma só peça abotoada atrás com colchetes; havia também a
possibilidade de se utilizar uma jaqueta curta, justa e abotoada na frente e uma espécie de colete
masculino; as saias eram armadas pelo forro e usavam-se muitas anáguas com crinolina; o xale voltara
à moda, sendo às vezes muito grande e com bordas franjadas (LAVER, 1989).
No Brasil, o cotidiano de homens e mulheres joinvilenses do século XIX tem suas
especificidades. Ambos trabalharam muito, no entanto, a própria historiografia não conta a importância
do trabalho feminino, inclusive doméstico, para a colonização da cidade. Foram mulheres de cultura e
etnia diferentes, brasileiras, imigrantes, ou teuto-brasileiras e todas estiveram presentes nos mais
diversos espaços, tanto no público, quanto no privado (SILVA, 1995).
A indumentária dos imigrantes no século XIX claramente teve que se adaptar ao Brasil,
segundo Novais (2006, p 113), “As mulheres imigrantes rapidamente se aclimataram ao ambiente
social das cidades brasileiras e às modalidades da economia informal, compartilhando com negras
quitandeiras e caipiras dos arredores a venda de gêneros alimentícios pelas ruas”.
As fotografias foram de extrema importância no processo desta pesquisa. Há muito os
historiadores utilizam a fotografia como fonte de pesquisa e, em muitos casos, ela é até mesmo a fonte
principal. No caso deste artigo, a fotografia possibilita a análise de diversos aspectos que compreende
o estudo da indumentária. De acordo com as fotografias elaboradas no século XIX e existentes no
Arquivo Histórico de Joinville, foi possível ratificar o quão significativas elas são para o estudo da
indumentária é, ao conseguir nortear os discursos sobre a construção de gênero no período exposto.
No entanto, é preciso salientar que as fotografias da época estudada são, em sua grande maioria,
registro de um determinado grupo social, já que o acesso a elas só era permitido a uma classe muito

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abastada, devido ao seu preço elevado (KOSSOY, 2001). As fotografias no oitocentos eram objetos de
luxo e, por isso mesmo, todos aqueles que posavam para obter uma foto, se vestiam com suas
melhores roupas que, certamente, não eram as mesmas que utilizavam no dia a dia. É possível, por
outro lado, ter-se informações sobre a indumentária de uso cotidiano dos moradores da cidade por
meio de fotografias da própria cidade onde o transeunte aparece involuntariamente em imagens onde
ele não é a figura central.
Por intermédio das fotografias consultadas no Arquivo Histórico de Joinville foi possível
perceber que a população mais abastada da cidade utilizava uma moda similar à Europeia, porém
introduziram adaptações que fossem condizentes ao clima tropical brasileiro, como por exemplo, a
substituição dos suntuosos vestidos feitos de veludo e tafetá por tecidos mais leves na qualidade de
seda e tule de algodão. Certamente que, mesmo a elite joinvilense, não conseguia acompanhar os
lançamentos de moda, no entanto, procurava copiar os modelos de roupas das revistas de moda
vindas da Europa. A Figura 1 exibe uma de várias fotos que trazem mulheres joinvilenses do século
XIX utilizando vestimenta que evidencia a utilização, em solo brasileiro, da principal característica da
indumentária europeia: a cintura em forma de ampulheta.

Fonte: Arquivo Histórico de Joinville

Figura 1 – Vestimenta Feminina – Cintura em ampulheta. [18-?]

Mesmo os tecidos mais simples utilizados pelos imigrantes, não eram fabricados na cidade, até
o final do século quando começam a aparecer indústrias têxteis na cidade. A partir de 1880, tem-se a
indústria Doehler que foi constituída por teares manuais feitos por seu fundador e que se tornou

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conhecida pela confecção de tecidos rústicos e fortes como morim, brim e sarja (acrescente a fonte da
informação. É do TERNES?). Porém, o cientista francês August de Saint- Hilaire ao passar pela região
em 1824, antes da fundação da Colônia Dona Francisca, notara que a população local plantava um
algodão grosseiro para confeccionar suas próprias roupas, assim, é de se supor que essa prática
devesse ter continuado para suprir a população menos abastada e que não poderia comprar tecidos
importados da Europa (Saint- Hilaire, 1978, p.148).
Detalhes sobre a indumentária utilizada em Joinville neste período são encontrados em
diferentes tipos de fontes, como em alguns relatos sobre os bailes que são destacados como
momentos especiais nas reminiscências daquele tempo. De acordo com o depoimento de Mella
Kroehne, relatado por Silva (2005), as mulheres passavam por verdadeiras aventuras para chegarem
ao local dos bailes e apresentarem-se bem vestidas:  

[...] E lá íamos nós – o vestido branco de musselina, sem o qual moça nenhuma aparecia
nas festas – cuidadosamente dobrado e envolto num guardanapo branco, no colo – e lá
íamos nós! No próprio local da reunião mudávamos de vestido. (SILVA, 2005, p. 63)

Com relação aos sapatos, o modelo mais comum na Europa era a sapatilha, às vezes
amarrada ao tornozelo, feitas de seda ou crepe, com cores que combinavam com o vestido. Na rua o
costume era utilizar botas de tecido com laterais de elástico (SILVA, 1995).
Nessa época os sapatos eram feitos artesanalmente e seu custo era elevado para a maioria
das pessoas. Na década de 1850 veio para Joinville, aos 28 anos de idade, o sapateiro Jacob Richlin
com sua mulher Burgine, ambos suíços. Tornando-se pioneiro na vida cultural de pequena Colônia,
Richlin instalou o primeiro curtume da Colônia aproveitando uma pequena lagoa.
Descia do morro, hoje em parte aplainado e ocupado pelo colégio Santos Anjos e pela sede
do Corpo de Bombeiros, um riacho de águas límpidas e murmurantes a sombra de arvores
seculares e densa vegetação. Os produtos desse curtume, couro de solas, constitui a
primeira mercadoria transportada, a lombo de burros, de Joinville, serra acima para Curitiba,
em 15 de julho de 1865. (FICKER, 2008, p. 87).

Outra característica do século XIX foi certamente ser um período em que o luto foi mais
rigorosamente seguido e normalizado, pois a morte estava presente no dia a dia das pessoas, sendo
comum que se passasse de um tempo de luto imediatamente para outro. Dessa forma, os indivíduos
ficavam um bom tempo de sua vida vestidos de roupas pretas e a vestimenta de luto passou a ser
vestuário de moda na Europa e no Brasil não foi muito diferente, seguindo tendências e novidades. O
luto feminino era bastante severo e exigia grande modificação no guarda-roupa da mulher, onde até
mesmo os seus acessórios deveriam ser negros e seu luto fechado deveria durar cerca de dois anos,
dependendo da proximidade com o falecido. No entanto, o homem vitoriano se vestia da mesma
maneira durante o luto por utilizar em seu cotidiano roupas sóbrias e escuras (SCHMITT, 2009).

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Além da bibliografia existente, outra fonte valiosa para estudar e se aprofundar sobre a
indumentária no século XIX, é a imprensa. A pesquisa em jornais foi realizada no Arquivo Histórico de
Joinville, no Jornal Gazeta de Joinville, para identificar os anúncios relacionados à indumentária
vendida na cidade. O que se observa, através das notícias e anúncios nos jornais é o desenvolvimento
do comércio da “moda” e as facetas da produção e consumo da indumentária.
Observa-se que o comércio da moda era constituído por casas comerciais que ofereciam
produtos necessários para a confecção do vestuário, estas lojas se chamavam Secos e Molhados. É
importante ressaltar aqui, que na época referida, a confecção do vestuário era uma tarefa especifica
das donas de casa, e apenas em alguns casos este trabalho era delegado a costureiras e alfaiates. Os
secos e molhados vendiam basicamente um pouco de tudo, desde alimentos, cigarros e ferragens até
produtos relevantes para se compreender a indumentária da época, como por exemplo: linha, agulha,
alfinetes, chapéus, fazendas de tecidos, luvas, renda, bordados, tranças, cachos e grampos de cabelo,
entre outros. Um anúncio do Jornal Gazeta de Joinville de Julho de 1885, evidencia que no final do
século, na casa de secos e molhados do senhor Boehm, já existia uma grande variedade de produtos
“prontos” para serem utilizados na confecção do vestuário.

C. W. Boehm recebeu ultimamente: Collarinhos e punhos modernos para senhoras, homens


e crianças, gravata de lã e seda brancas e de cores para senhoras, colchas bordadas para
cama, jaquetas brancas e de cores para crianças, luvas de cores para senhoras e meninas,
fichús de lã e algodão de todas as cores, babadouros para crianças, meias brancas e de
cores para crianças, aventaes de lã preta para senhora, fitas de seda de todas as cores,
cadarço de cores proprio para sapateiro, trancelins, linhas em carreteis de todas as cores
para sellerios e sapateiros, retroz em carreteis para machina de costuras, linha de crochet
(GAZETA DE JOINVILLE, 1885, p. 8)

Já no fim do século, percebe-se que as casas de secos e molhados que forneciam roupas
prontas geralmente importavam do Rio de Janeiro ou da Europa, contudo não possuíam muita
variedade de modelos e tamanhos. Existiam também estabelecimentos que trabalhavam com
segmentos específicos, como o caso de relojoarias, que vendiam relógios e joias, entre outros
produtos.
ATTENÇÂO. O abaixo assignado participa aos seus numerosos amigos e fregueses, que
acaba de chegar um bonito sortimento de obras de ouro, como sejão: collares de coral, prata
dourada e de ouro, cruzes, broxas, medalhas, anneis brincos, etc. Offerece também um
grande sortimento de relógios e correntes de todas as qualidades. Emilio Schmidt. Relojoeiro
e ourives. (GAZETA DE JOINVILLE, 18 out.1878, p. 40)

Através dos jornais verificados destacaram-se como lojas influentes da Joinville oitocentista os
estabelecimentos nomeados como: Armarinho do Adriano, Antonio Sinke, Antonio de Oliveira, C. W.
Boehn, Carlos Lange, D. Schlemm, Emilio Schmidt, Jacob Muller, Martin Mâder; Otto Mueller e Viuva
Goerresen & Filho. Outros nomes interessantes que foram evidenciados através da pesquisa foram
nomes de alfaiates e modistas, como: Antão Schneider, mestre-alfaiate; D. Steiner e Otto Mueller,

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alfaites; Frederica Maria Schneider, modista; e, Loide Weise e Verena Kuhne, cada uma com sua
fábrica de “chapéos”.
Por intermédio dos Inventários analisados no Arquivo Histórico de Joinville, pode-se constatar
que as peças de roupas prontas, por possuírem um valor elevado, eram descriminadas no inventário
das famílias. Outra observação importante obtida através dos inventários é a identificação de algum
dos principais tecidos existentes e utilizados na região, como o algodão, chita, lã, linho e seda e
também as rendas.
Em síntese, o conhecimento dos produtos ofertados pelo comércio da época, assim como seus
valores, materiais e características possibilitam maior entendimento e compreensão sobre o tipo de
indumentária utilizada pelos Joinvilenses oitocentistas e proporcionando também maior entendimento
sobre a história da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao decorrer da pesquisa foram analisados diversos fatores que influenciaram a indumentária


do século XIX. O conhecimento da história da imigração dos europeus para a cidade de Joinville
possibilitou compreender como se deu a construção do cotidiano dessa população, assim como quais
eram as características do vestuário desses habitantes enquanto a roupa cotidiana era feita pelas
mulheres das próprias famílias.
Além da bibliografia revisada, tiveram-se como fontes de pesquisa jornais, inventários e
fotografias, obtidos no Arquivo Histórico de Joinville. A análise dos anúncios dos jornais consistiu na
compressão de quais produtos eram oferecidos pelo comércio local, seus preços, materiais e por vezes
até mesmo mencionavam a procedência dos mesmos. A análise dessa documentação permite concluir
que a indumentária em Joinville no século XIX seguia apenas parte da moda europeia, devido às
mudanças culturais e sociais que os imigrantes tiveram que se adaptar.

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História da moda brasileira no século XIX :


uma leitura do romance Quincas Borba de Machado de Assis.

Eleonora Capovilla

Graduada em Design de Moda pela Faculdade Santa Marcelina


Pós-graduada em Historia, Sociedade e Cultura pela PUC-SP

Resumo: Com o intuito de destacar alguns aspectos centrais do desenvolvimento da moda brasileira no século
XIX, o notório romance Quincas Borba - de autoria de Machado de Assis - fora escolhido como objeto central de
análise e estudo. Tal escolha não pretende ser arbitrária: a primeira publicação da obra se deu em formato de
folhetim, sob forma seriada, na revista “A Estação”, veículo impresso destinado exclusivamente ao gênero
feminino com forte ênfase sobre a moda e comportamento daquele período. Neste sentido, a presente
investigação baseia-se em trechos do livro que destacam o vestuário e outros comportamentos típicos dos
personagens, possibilitando uma reflexão sobre a moda do período novecentista a partir de documento
contemporâneo à época.
Palavras-chave: Machado de Assis; Quincas Borba; moda; personagens; folhetim.

INTRODUÇÃO

A presente investigação tem como principal objetivo uma análise da moda, modos e costumes
do século XIX, a partir de uma leitura do romance Quincas Borba (1989) de Machado de Assis,
partindo de recortes selecionados da obra em questão, assim como uma colcha de retalhos, articula-se
ainda autores de distintas áreas, com o intuito de se elucidar as questões pretendidas.
É preciso destacar que o romance Quincas Borba fora publicado pela primeira vez sob a forma
de edição seriada pela revista “A Estação”, entre os anos 1886 e 1891. Desta forma, trata-se de
documento contemporâneo e recorte histórico importante no que se refere aos desdobramentos da
moda e costumes do final do século XIX. Deve-se acentuar ainda o fato de que a revista “A Estação” foi
o primeiro veículo impresso brasileiro destinado exclusivamente aos assuntos femininos, com forte
ênfase sobre a moda e o comportamento daquele período.
No decorrer da pesquisa percebeu-se que Machado de Assis fora um homem extremamente
moderno diante dos padrões vigentes na sociedade brasileira à época, refletindo sobre a sociedade a
partir de ideias em pleno desenvolvimento na inteligência europeia: basta, neste sentido, ressaltar o
fato de que Machado publicou seus romances realistas contemporaneamente a outros grandes
escritores, como Flaubert e Dostoievski, ainda que nunca tenha saído do Brasil. Em suas obras,
impressionam os retratos minuciosos dos costumes da agitada sociedade carioca e, ao mesmo tempo,

   
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a preocupação em abordar a alma humana com uma precisão irônica e sútil. Neste sentido, um dos
recursos mais presentes em toda literatura Machadiana é a analise das pessoas pelo olhar, usando da
metáfora “os olhos são a janela da alma”. O presente trabalho parte de sua obra, com o intento de
analisar os personagens e suas vestimentas e costumes, na tentativa de articular o imaginário
machadiano e a moda no século XIX.

O RIO DE JANEIRO E OS NOVOS COSTUMES DA SOCIEDADE CARIOCA

O personagem principal do enredo – Rubião – inicia a narração da história na posição de um


simples professor em Barbacena, cidade de Minas Gerais, até que inesperadamente vira herda fortuna
de seu amigo Quincas Borba. Após sua morte, Quincas Borba deixa uma polpuda herança para o
amigo, com a condição de que este cuidasse com esmero de seu cachorro, também chamado Quincas
Borba. Rubião então parte para o Rio de Janeiro, onde faz amizade com Cristiano Palha, personagem
responsável por inseri-lo na sociedade carioca, com seus modos e costumes.
Em Quincas Borba, Machado de Assis registrou a ambição da alta sociedade brasileira em
refletir certos ideais tipicamente europeus para a época e de forma muitas vezes contraditória. Nas
páginas, destaca-se a sensação de que no Brasil “as ideias estavam fora de centro em relação ao seu
costumeiro sentido na Europa; ou seja, havia uma clara disparidade entre a sociedade brasileira
escravista e as ideais do liberalismo europeu vigente à época“. (SCHAWRZ, 2012, p. 25)
Após a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, importou-se toda uma
cultura e diversos costumes que foram implantados de uma maneira completamente improvisada,
mascarando assim a cultura regional. No livro “Ao vencedor as batatas“ de Roberto Schwarz, coloca-se
perfeitamente:

Sobre as paredes de terra, erguidas por escravos, pregavam-se papéis decorativos


europeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a criar a ilusão de um ambiente novo,
como os interiores das residências dos países em industrialização. Em certos
exemplos, o fingimento atingia o absurdo: pintavam-se motivos arquitetônicos grego
- romanos – pilastras, arquitraves, colunatas, frisas e etc. – com perfeição de
perspectiva e sombreamento, sugerindo uma ambientação neoclássica jamais
realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local. (SCHAWRZ, 2012, p.
23)

Outra questão a ser comentada: Rubião prefere o uso do ouro e da prata, na medida em que
no século XVIII fora em Minas Gerais, seu estado natal a aconteceu o Ciclo do Ouro. Ali, por 60 anos,
houve maciça extração de ouro e prata, que foram em sua maioria exportadas para a Corte
portuguesa, como bem sabido. Nada mais natural, diante destes fatos, o apreciar de metais tão

   
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valiosos e muito conhecidos em sua cidade natal, e que foram a principal fonte de lucro no século
passado. Seu amigo Palha, porém, insistia pelo apreço das estatuetas de bronze: Rubião não gostava
de bronze, mas o amigo Palha, em passagem marcante do livro, disse-lhe que era matéria de preço, e
assim explicava o par de figuras presentes em sua própria sala, um Mefistófeles e um Fausto (ASSIS,
1891, p. 52).
Apesar de onipresente e arraigada, a cultura aristocrata rural brasileira passava por essas
marcantes transformações culturais, cujo ideal europeu era inserido nos lares camuflando a realidade,
já que esses ideais europeus não foram adotados de fato e de maneira ampla no âmbito politico e
social. Nas palavras de Roberto Schwarz: “[...] as transformações atendiam apenas as mudanças de
costumes, que incluíam agora o uso de objetos refinados, o uso de cristais, louças, e porcelanas, e
formas de comportamento cerimonial, como maneiras de se servir a mesa” (Op. Cit., 2012, p.23)

RUA DO OUVIDOR

No final do século XIX, o Rio de Janeiro vive efervescente transformação urbanística e cultural.
Após 1840, a cidade é tomada por bares, cafés, óperas e teatros, e a rua do Ouvidor é a síntese de
toda essa efervescência, como um salão a céu aberto”, nas palavras de Wanderley Pinho, “sem
convites, sem horários, sem etiquetas” 1.
É o próprio Machado que assim descreve o ambiente da referida rua:

Ia assim, descendo e subindo as ruas da cidade, sem guiar para casa, sem plano,
com sangue aos pulos. De repente, surgiu-lhes este grave problema: - se iria viver
no Rio de Janeiro, ou se ficaria em Barbacena. Sentia cócegas de ficar, de brilhar
onde escurecia, de quebrar a castanha na boca aos que se riram da amizade do
Quincas Borba. Mas, logo depois, vinha a imagem do Rio de Janeiro, que ele
conhecia, com os seus feitiços, movimentos, teatros em toda parte, moças bonitas,
“vestidas à francesa”. Resolveu que era melhor, podia subir muitas e muitas vezes
á cidade natal. (ASSIS, 1898, p. 69, grifo nosso)

Após a vinda da Corte Portuguesa em 1808, a abertura dos portos fez com que os
comerciantes que desembarcavam se instalassem na Rua do Ouvidor. A Rua era conhecida então
como a mais badalada da cidade do Rio de Janeiro: ali encontravam-se as lojas mais chiques, com
todos os artigos de luxo importados da Europa, além de livrarias (para se ter uma ideia, no final do
século XIX a Rua do Ouvidor possuía mais de cinquenta livrarias), muitos cafés e confeitarias. Era
nestes cafés e confeitarias que o circulo intelectual se reunia: a famosa Confeitaria Colombo, por

                                                                                                               
1 PINHO (1959, p. 251)

   
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exemplo, era o local onde Machado de Assis se reunia com os integrantes da Academia de Letras.
Gilberto Freyre (1962, p.10) apelidou o Rio de Janeiro de “cidade pan-brasileira”, pois exportava esse
novo life style para todo o território nacional.
No trecho do livro em que Quincas Borba decide ficar no Rio de Janeiro e não voltar para
Barbacena, é explícita esta idealização da Rua do Ouvidor, com toda sua movimentação boêmia e o
frescor recém-chegado da Europa.

Figura 1 : Rua do Ouvidor 2.

INÍCIO DA BELLE EPOQUE BRASILEIRA

Vestidas à francesas: Moda importada.

A chamada Belle Époque define o espírito da época entre 1890 até 1914 - início da Primeira
Guerra Mundial (1914 -1918) - onde a cultura florescente era exportada da França para todos os outros
países, assim como as novas tecnologias.
Limitada a ambientes urbanos, a Belle Époque brasileira foi um marco importante urbanístico e
cultural, especialmente no Rio de Janeiro nos primeiros anos de Primeira República (1899-1930). Este
desenvolvimento é marcado por paradoxos, pois ao mesmo tempo em que se buscavam as raízes
também existia pela Alta Burguesia o ” desejo em ser estrangeiros” (BRAGA, 2012, p 29).
O Brasil demorou em assimilar os estilos de vestir da sociedade europeia, pois aqui não existia
uma classe burguesa clássica enriquecida pelo capital industrial que sustentasse esse novo modelo

                                                                                                               
2 Fonte: (FERREZ, 1890, álbum)

   
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social. Havia de fato “uma conjuntura política e econômica miscigenada em ideais republicanos e
democratas, que conviviam com uma elite formada por barões e baronesas segregados em casarões
patriarcais, comandando latifúndios movidos pela mão de obra não mais escravizada e, cada vez mais,
de imigrantes advindos de diversas nações” (BRAGA, 2012, p. 33)
No fim do século XIX no Brasil, a classe dominante constituía-se da aristocracia rural, ou seja,
os barões e baronesas do café, que se vestiam e procuravam se comportar à imagem e semelhança
das elites europeias. Com a abertura dos Portos às Nações Amigas em 1808, D. João, por meio da
carta régia, definira que as roupas deveriam ser trazidas prontas da Europa ou cozidas por alfaiates
portugueses aqui instalados e apoiados por ajudantes escravos.
No Brasil tudo o que se consumia era trazido da Europa: tecidos finos, roupas acabadas,
moldes e acessórios. As elites agrárias e burguesas compravam roupas muitas vezes direto da Europa,
mesmo porque muitos possuíam residências naquele continente. No início do século XIX - após a
Independência do Brasil em 1822 - isso pouco mudou, pois, a Corte portuguesa preservou os
costumes, modos e tradições das cortes na Europa, que eram rigidamente seguidas, com definições de
tecidos para cada estação e demais características das roupas e adornos. Nas palavras de Didier
Grumbach (2009): “A moda, antes de mais nada, era um privilégio da Corte”.
Não por acaso, no fim do século XIX - após a implantação da República - a indústria brasileira
sofria um grande atraso evolutivo, com uma indústria incipiente e de sub-existência. Em 1840, as
industrias têxteis brasileiras possuíam maquinários ultrapassados, que produziam apenas algodão
rústico, linho e juta, tecidos estes que eram fabricadas para o vestuário dos escravos. A indústria
brasileira vivia esse atraso que era causado, principalmente, por uma série de leis protecionistas na
época do Brasil Colônia. Acordos comerciais entre Portugal e Inglaterra, em que as tarifas de
importação eram muito baixas, fazendo com que a indústria existisse apenas para a autossuficiência
local, impelia que a maioria dos bens de consumos fossem importados, pois mais baratos que os
produtos locais fossem.
Apenas em 1840, a Tarifa Alves Branco tenta de alguma forma incentivar e proteger a indústria
nacional, aumentando a taxação de mais de 3000 produtos, aumentando para 20% a taxa dos produtos
importados de primeira necessidade, e aumentando para 60% a taxa para as demais mercadorias. No
final do século XIX foram criados, no Rio de Janeiro e em São Paulo, liceus de arte e ofícios,
oferecendo, entre outros cursos, os de alfaiataria, corte e costura. Sabe-se, porém, que as técnicas de
corte, costura e modelagem, eram usualmente passadas de profissional para profissional, ou em
âmbito familiar, de pai para filho.
As cópias de modelos eram feitas para uma nova camada social: a classe média. Os
profissionais liberais, como médicos, advogados e os funcionários públicos, representavam essa

   
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pequena e nova classe social. Estes, por sua vez, queriam imitar as vestes das elites: assim, as donas
de casa dessa nova classe média costuravam suas próprias roupas ou contratavam serviços de
costureiras, pois não tinham poder aquisitivo para comprar roupas prontas vindas da Europa.
Na rua do Ouvidor, as senhoras da alta-sociedade – as tais mulheres “vestidas á francesa” -,
lançavam as novas modas estrangeiras e eram copiadas quase que imediatamente pelas costureiras
locais, como modelos vindos direto da Europa. Na área das vestimentas, começaram a ser importados
tecido elásticos (confeccionados com a borracha da Amazônia), o fecho éclair e a própria máquina de
costura. No romance Quincas Borba, refere-se a máquina de costura como “Navette”. (ASSIS, 1891, p.
232)
Como já dito, é na revista “A Estação: Jornal ilustrado para a família”, que Machado de Assis
inicia a publicação da obra Quincas Borba. Aquele folhetim nada mais era do que uma revista que
ambicionava em formalizar o gênero feminino. Dividia-se a revista em: Hygiene, Sauraus Familiares,
Variedades, Mosaico, Poesia, Litheratura e sessões com ilustrações sobre roupas, objetos de
decoração, modelagens e bordados.

MODA FEMININA NO SÉCULO XIX

A Belle Époque brasileira possuía idiossincrasias, em um período de afirmação política com o


início da Republica Brasileira em 1889, onde a economia cafeeira e patriarcal predominava no domínio
político, mulheres, crianças e criados eram considerados como seres de importância menor. Essa
desigualdade entre gêneros só viria a mudar parcialmente na primeira década do século XX, com a
expansão da cultura feminista nos anos 1910, importada para o Brasil por meio da Imprensa e do
cinema. O mundo era dos homens, livres para trabalhar, conviver com a política e sair às ruas para
“ganhar a vida“; não por acaso, o vestuário masculino fora simplificado ao extremo.
As mulheres da alta sociedade burguesas não tinham uma função específica para si, como a
dos homens: não trabalhavam e não precisavam cuidar da casa, pois a maioria das senhoras tinha
muitos criados. Eram tratadas como verdadeiras propriedades do homem: justamente por isso
necessitavam estar sempre bonitas dentro e fora de casa, e ainda precisavam aprender a se vestir com
propriedade e elegância, sinônimo à época de emular da forma mais fiel possível os costumes
franceses. João Braga explica em seu livro História da Moda no Brasil (2012, p. 35) esse contexto: “a
mulher de salão, a mulher vestida com propriedade e elegância e que, por procuração, refletia a
riqueza dos homens”.
Essa ideologia paternalista é transcrita na passagem em que o personagem Cristiano, marido
de Sofia, exige que sua esposa se mostre bela e com vestidos decotados para a sociedade, de forma

   
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que Sofia represente o status do marido: “Tinha essa vaidade singular; decotava a mulher sempre que
podia, e até onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares”. (ASSIS, 1891, p.
90)
A silhueta feminina tinha como princípio a sedução e a atração masculina. No início do século
XIX, a vestimenta inicia-se com simplicidade, inspiradas nos ideais da Revolução Francesa: as
mulheres aboliram o espartilho, as anáguas e o salto alto. Seus vestidos eram camisolas brancas
atadas debaixo dos seios e escassos de formas e transparências, vestimentas que remetiam ao
Renascimento. O imposto sedentarismos feminino, porém, ao contrário do mundo dos homens, fez
com que o tempo livre dessas mulheres burguesas fosse destinado à confecção de um vestuário cada
vez mais complexo, com excessos de camadas, rendas e brocados.
Muitos historiadores ressaltaram o papel deste sedentarismo culturalmente imposto como força
motriz da complexidade da moda entre os últimos decênios do século XIX. Gilda de Mello e Souza
releva que a moda para as mulheres foi também “o único meio lícito de expressão” (SOUZA, 1987,
p.100), onde a moda refletia como o único meio de expressão em que as mulheres podiam descobrir
sua individualidade “refazendo por si o próprio corpo” (SOUZA, 1987, p. 100).
Na segunda metade do século XIX, entre 1830 e 1860, as mulheres consideradas belas
possuíam o silhueta-ampulheta” ou “cintura de marimbondo”, “ construídas a força de espartilhos, que
comprimiam o ventre e as costas e projetavam os seios para a frente e nádegas para trás” (BRAGA,
2012, p.32). Eram feitos de barbatanas de baleia: as meninas iniciam seu uso já aos 11 anos de idade.
Causavam sérias deformações na estrutura óssea, atrofiavam as costelas inferiores; sacrificavam
também pulmões, o baço, o fígado e os rins.
Os espartilhos eram comumente feitos de lona, aço e barbatana de baleia, sempre adornados
com rendas e aviamentos. A deformação do corpo feminino com espartilhos, hoje visto por muitos
como verdadeira crueldade, eram, na Belle Époque, aspecto essencial da estética feminina. Em
Quincas Borba, Machado de Assis assim descreve a silhueta feminina:

O marido de Dona Fernanda envolvera Sofia em um grande olhar de admiração.


Ela, em verdade, estava nos seus melhores dias; o vestido sublinhava
admiravelmente a gentileza do busto, o estreito da cintura e o relevo delicado das
cadeiras – era foulard, cor de palha (ASSIS, 1891, p. 253)

No romance Quincas Borba é citado a fina cintura de Sofia pelo menos três vezes, o que se
entende por ser a cintura uma zona intensamente erotizada e apreciada pelos homens.

   
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Figura 2: ilustração de um corselete na Revista A Estação.3

Abandonado o modelo de simplicidade, o espartilho volta a ser a estrutura básica da silhueta


feminina; além disso, eram costumeiros as enormes mangas dos vestidos, vestidos estes sobrepostos
à crinolina – ampla armação arredondada feita de aço – além de camadas e mais camadas de saias
em que não se mostravam os pés.
Figura 3 : ilustração da crinolina.

Figura 3 : ilustração da crinolina4.

As roupas eram, portanto, ricamente adornadas com rendas, bordados, brocados de ouro e
prata, e os vestidos eram decotados e as cinturas muito apertadas. No livro o “Espírito das roupas”,
Gilda e Mello e Souza discorre sobre a invenção da crinolina:

                                                                                                               
3  Fonte: (LOMBAERTS, 1879, p. 24)  
4 Fonte: disponível em http://babilonia61.com/2008/11/21/la-moda-femminile-dellottocento/crinolina/

acesso em Ago, 2014.


   
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Os meados do século vão presenciar o aparecimento da grande descoberta


mecânica da vestimenta: em 1855 surge a crinolina, introduzida pela imperatriz
Eugênia e simbolizando o triunfo da nova era de aço. A mulher passa a ser um
triângulo equilátero, auxiliado pela voga dos chalés e mantilhas que, atirados sobre
os ombros e descendo pelas costas, escondem a cintura. Em 1859 a crinolina
alcança a sua expressão maior e daí em diante a roda do vestido diminui e a
fazenda começa a ser arrepanhada na parte posterior, a parte anterior ficando mais
ou menos lisa e acentuando a curva suave das cadeiras. (SOUZA, 1987, p.64)

Em 1870 a 1880 a crinolina é reduzida ás “anquinhas”, que são armações muito menores que
a crinolina, arrematadas com um laço nas costas que resultava numa curva suave das ancas.
A principal personagem feminina do romance Quincas Borba, a já citada Sofia, esposa de
Cristiano Palha, é a representação perfeita de como uma dama que fazia parte da elite aristocrata
brasileira deveria se portar. Talvez a isto se deva o fato de Rubião se apaixonar perdidamente por ela,
pois a mulher nessa época é uma profissional na arte da sedução com requinte, dos bons modos
afeitos com doçura, leveza e graciosidade, juntamente compostos com a aparência correta, as vestes e
joias apropriadas. Em verdade, Machado de Assis narra Sofia como uma mulher mais encantadora do
que bela:

Rubião tinha vexame, por causa de Sofia; não sabia haver-se com senhoras.
Felizmente, lembrou-se da promessa que si mesmo fizera de ser forte e implacável.
Foi jantar. Abençoada resolução! Onde acharia iguais horas? Sofia era, em casa,
muito melhor que no trem de ferro. Lá vestia os olhos e o corpo, elegantemente
apertado em um vestido de cambraia, mostrando as mãos, que eram bonitas, e um
princípio de braço. Demais, aqui era a dona da casa, falava mais, desfazia-se sem
obséquios; Rubião desceu meio tonto” (ASSIS, 1891, p.77)

Note-se que Sofia vestia um vestido de cambraia, material feito de algodão ou linho, que na
época era considerado uma “fazenda” simples, ou seja, um tecido simples. Imagina-se um vestido com
rendas claras, algumas camadas de saia, as mangas justas e rentes ao corpo, o vestido de cor clara,
pois esse era o código de vestimenta para se estar em casa. De certo usava uma anquinha, pois são
as armações menores as mais usadas no fim do século XIX. Nas palavras de Gilda de Mello e Souza:
“[...] e os últimos anos do século XIX compõem uma variação nova de silhueta tubular, agora colante,
transformando a mulher num milagre de curvas”. (SOUZA, 1987, p. 64).
Na revista A Estação, (LOMBAERTS , 1879, p.30), a descrição das peças é tal: “Toillets para
bailes, visitas e saraus.”, codificando assim os trajes em que as mulheres deveriam se vestir dentro de
ambientes, em casa, em sarais ou bailes.

   
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Figura 4: ilustração em página dupla na Revista A Estação5.

Outro componente usado na vestimenta feminina eram as ligas-de-entrave, com o objetivo de


ajustar os passos á roupas, e presos a panturrilhas e unidas umas às outras por um fitilho, “restringiam
o andar das mulheres para torna-lo mais curto, compassado e elegante” (BRAGA, 2012, p. 62). Nota-
se ainda os corpinhos e mangas justas, a silhueta tubular, os saiotes com cascatas de rendas, barras
ricamente adornadas, pouco se vê dos pés. Os penteados são sempre presos, com adornos na cabeça
com flores, joias ou laçarotes. Todas as mulheres ilustradas compõem as vestimentas adornadas com
colares e pulseiras.
As cores também evoluíram, assim como a vestimenta, da simplicidade para a complexidade.
Na era Napoleônica, o período é caracterizado pela paixão pelo branco nos vestidos, as vezes
acrescentado por cores vibrantes como vermelho, violeta e acessórios como luvas e echarpes. Em
1830, porém, surgem os tecidos floridos, e as cores mais vibrantes ficam apropriadas para os trajes de
jantar e as claras, como azul, rosa e limão, adequados para ir a Ópera e os bailes. Em meados do
decênio de 90, um vestido terá muitas cores com listras alternadas, por exemplo, entre rosa, lilás ou
preto.
Os tecidos diferenciavam-se por classe social e ocasião de uso: os tecidos, por exemplo, eram
os mesmos entre homens e mulheres da mesma classe social. Os tecidos mais grosseiros eram
usados na confecção de trajes de viagens e para montaria. As fazendas mais luxuosas eram usadas
nos trajes de gala: sedas, fitas e veludos. Em 1850 é comumente usado a musselina, a tarlatana, o
organdi, tecidos prediletos da imperatriz Eugênia, esposa de Napoleão III. De 1830 em diante, difunde-

                                                                                                               
5 Fonte: ( LOMBAERTS , 1879 , p. 30 e 31 )
 
   
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se os tecidos mais pesados como o veludo, e seda adamascada, os brocados, os tafetás cambiantes, o
gorgorão, o cetim, todos estes muito característicos da segunda metade do século XIX. Para os trajes
de rua mais simples, usava-se tecidos com misturas entre linho e seda, ou lã e seda.
O uso do algodão era associado ao vestuário das classes mais pobres, considerado um tecido
de segunda categoria: seu uso era restrito às roupas de baixo e aos trajes de banho, que logo viriam a
ser confeccionados com malha de lã.

ACESSÓRIOS FEMININOS

No período que abrange o século XIX até o começo do século XX, os acessórios eram
agregados e de mesma importância que o vestuário. Sendo assim, os acessórios femininos dividiam-se
em: broches (o camafeu era muito apreciado), colares, brincos, leques, a bolsa e os chapéus sempre
adornados com arranjos florais, laços e plumas. As mocinhas usavam chapéus de palha para passeio.
Sofia, em Quincas Borba, ganha muitas joias de Rubião, entre eles brincos de pérolas
verdadeiras:

Traja bem: comprime a cintura e o tronco no corpinho de lã fina cor de castanha,


obra simples, e traz nas orelhas duas pérolas verdadeiras – mimo que o nosso
Rubião lhe deu pela Páscoa. (ASSIS, 1891, p.89, grifo nosso)

O cabelo da mulher era sempre muito longo, simbolizando a feminilidade e erotismo; para as
mulheres mais novas e solteiras, chamadas de donzelas, aceitava-se o uso do cabelo solto, sobre os
ombros ou em tranças. Para as mulheres casadas era considerado de bom tom ter o cabelo preso, em
coques altos, presos por meio de grampos, prendedores de tartaruga ou metal. Os cabelos das
mulheres casadas só eram soltos para seus maridos, em momentos de intimidade.
Os calçados femininos mais comuns eram as botinhas com muitos botões, também chamados
de borzeguins ou sapatos fechados, bordados e com saltos baixos. João Braga aborda a importância
dos pés e da meia de seda para o imaginário erótico: Os pés deviam ser pequenos e escondidos;
mostrar os pés nus era considerado apelo erótico. Nos bailes, as meias eram de seda branca e os
sapatos em cetim da cor dos vestidos (BRAGA, 2012, p. 64).
Confirma-se esse imaginário pela passagem em que Sofia usa meia de seda na intimidade
com o marido Cristiano Palha: “A meia de seda mostrava a perfeição do contorno” (ASSIS, 1891, p.
234)

   
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A sombrinha ou ombrelles também era acessório indispensável, sempre adornado e


confeccionado com tecidos finos; além disso, protegia as mulheres do sol, suposto sinal de nobreza,
pois o tom de pele pálido das mulheres significava que estas não precisavam trabalhar de sol a sol.
Apenas após os anos 20, em que as roupas se tornaram mais leves, a sombrinha foi abandonada e
adquiriu-se o hábito de bronzear a pele.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema de pesquisa em questão teve como objetivo, inicialmente, utilizar a trilogia realista de
Machado de Assis - Dom Casmurro (1899), Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880) e Quincas
Borba (1891) - como referencial metodológico, para assim levantar uma possível articulação entre a
literatura e a moda no século XIX no Brasil. No decorrer da pesquisa, graças às visitas ao Cedic
(Centro de documentação e informação científica da PUC-SP), fora descoberto a existência da Revista
“A Estação”, em que o romance Quincas Borba fora publicado em forma de folhetim, fato que acabou
por direcionar os rumos da pesquisa. Essa descoberta foi, em suma, o fato que faltava para definir o
foco de pesquisa.
O presente trabalho considera, portanto, a literatura de Quincas Borba como ponto de partida
para iniciar a pesquisa: destacado fora do romance trechos em que a indumentária, os acessórios ou
comportamentos, estavam relacionados ao comportamento de moda.
Após este expediente, foi necessário recorrer à bibliografia disponível sobre a história da moda
no século XIX. Um empecilho se deveu ao fato de haver atualmente poucas informações sobre a
moda nesse período. Assim uniu-se duas problemáticas: pouco conteúdo didático e a utilização de
informações de um romance, ou seja, de conteúdo ficcional.
Essas duas problemáticas foram sanadas com muito cuidado e pesquisa, pois é sabido que as
obras de Machado de Assis, nas palavras de John Gledson, representam um “realismo enganoso”,
irônico e permeado de um forte pano de fundo crítico-social. Nas palavras de Gilda de Mello e Souza:
“... sobretudo Alencar e Machado de Assis, muito hábeis em desentranhar do visível a verdade oculta
das coisas, ...”. 6 Contudo, todas essas questões foram postas em análise previamente, antes de se
alcançar de fato o objetivo final: a moda.
Após tal segmentação teórica, foi possível ter a percepção de que o romance Quincas Borba
publicado de forma seriada na revista “A Estação”, por ser q a mídia mais popular a época, fora um
importante disseminador do comportamento de moda no século XIX. Machado de Assis eximiamente
detalhara e descrevia as vestes, os brocados, saiotes e detalhes da indumentária feminina narrado
pela personagem Sofia, com a clara intenção de comunicar e prender a atenção de suas leitoras. Ouve
                                                                                                               
6 Souza, 1995, p.111.

   
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então uma união entre roupas e comportamento de moda, “surpreendemos na mulher machadiana a
mesma simbiose entre o corpo e roupa”. (SOUZA, 1995, p.118)
Na narrativa, Machado de Assis contrapõe-se o jogo “dessa mulher brasileira: ainda submissa,
embora sequiosa de correspondência afetiva”. (Souza, 1995, p.119)
Em Quincas Borba, com o requinte machadiano, foi possível confirmar hábitos e vestimentas
usuais do século XIX retirando a moda do campo banal e agregando o valor comportamental à
indumentária da mulher da Alta-sociedade do século XIX.

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Maio 2016

A MODA AFRO-BRASILEIRA: raizes culturais por estilistas brasileiros

AFRO-BRASILIAN FASHION: cultural roots by the Brazilians designers

Patrícia H. C. Harger1(UTFPR)
Raquel Rabelo Andrade 2(UNESP)
Andressa Karen Rossi 3(UNESP)
patyharger@hotmail.com
raquel_andrade00@yahoo.com.br
dressa_rossi@hotmail.com
RESUMO
Este artigo discute a moda afro-brasileira, considerando-a um suporte cultural. Seu objetivo
primordial é abordar a diferença existente entre a moda brasileira e a moda afro-brasileira. O
trabalho pretende, também, referenciar os estilistas, criadores dessa moda e como estes atores
sociais materializam sua identidade por meio das roupas e das coleções. Trata, ainda, de como
a moda afro-brasileira tem como influência a religião e a cultura, o que faz com que a estética
das roupas se diferenciem construindo, assim, uma narrativa própria.
Palavra Chave: Moda; Estilistas; Afro-brasileiro.
Abstract
This article discusses the african-brazilian fashion, may be this fashion considered a cultural
support. It aims to approach the difference between Brazilian fashion and african-brazilian
fashion. Considering the designers that created this fashion and how these social actors embody
their identity through clothing, the collections and how the african-brazilian fashion is inspired by
the influence of religion and culture, making the aesthetic of the clothes differ thereby building its
own narrative.
Key-Words: Fashion; Designers; African-Brazilian
INTRODUÇÃO
A abordagem deste trabalho é voltada para os estilistas que atuam no segmento de moda
afro-brasileira, e em como este segmento se relaciona com a moda, com o mercado e com a
sociedade em geral assumindo uma estética característica, com elementos característicos que
traduzem uma identidade pessoal de cada criador.
Neste artigo são tratadas as questões da identidade afro-brasileira dos estilistas que
desenvolvem a moda afro-brasileira e como eles procuram demonstrar que através da roupa
pode-se transmitir a simbologia de uma cultura, da ancestralidade e quais são os elementos
utilizados nas coleções que traduzem a identidade da cultura afro-brasileira.
                                                                                                                       
1
 Docente  da  Universidade  Tecnologica  Federal  do  Paraná;  Mestre  pelo  programa  de  pos-­‐  graduação  em  
Ciencias  Sociais-­‐UEM  e  doutoranda  do  programa  de  pós-­‐graduaçao  em  História  da  UEM.  
2
 Docente  da  Universidade  Tecnologica  Federal  do  Paraná;  Mestre  pelo  programa  de  pos-­‐  graduação  em  
Design  da  UNESP/FAAC    e  doutoranda  do  programa  de  pos-­‐graduação  em  Design  UNESP/FAAC.  
3
 Mestranda  do  programa  de  pós-­‐graduaçao  em  Design  da  UNESP/FAAC.  

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Por meio de três entrevistas com as estilistas Goya Lopes, Julia Vidal e Madalena
Cardoso acrescidas de informações contidas nos sites de vinte marcas afro-brasileiras foi
elaborada uma tabela contendo as principais marcas que atuam no segmento de moda afro-
brasileira. Podendo fazer uma breve abordagem de como as estilistas criam as suas coleções
transformando a moda como um meio de manter vivas suas origens e difundir os conceitos a
população.
A moda é um mercado de estilos diferentes que necessita de difusão e visibilidade,
portanto, os estilistas ao criarem seus objetos de moda, buscam o maior alcance possível para o
sucesso de sua marca. Acerca da moda afro-brasileira podemos dizer que esta é dotada de
valores simbólicos e culturais que estão presentes nas roupas como materialização da
identidade de cada estilista. A moda afro-brasileira esta inserida na cultura brasileira, e pode ser
um suporte de comunicação de outras culturas como a indígena ou africana, construindo assim
sua própria identidade plural.
1 CONCEITO DE MODA
É através da roupa que podemos disseminar diferentes signos. A moda pode ser
considerada assim uma linguagem não verbal porque também tentamos transmitir nossa
identidade através da roupa. Segundo Sue Jones (2005), nós compramos e usamos roupas para
demonstrar impressões verdadeiras ou falsas às outras pessoas. Para a autora, algumas das
características pessoais que mantemos a necessidade ou o desejo de revelar ou ocultar
abrangem a idade, orientação sexual, tamanho, formas, estado civil, status econômico,
ocupação, filiação religiosa, autoestima, atitudes e importância do indivíduo.
A moda volta-se para as raízes antropológicas das civilizações, abrangendo
transformações em vários setores da sociedade. Trata-se de uma linguagem sociocultural indo
além do vestir, adentrando-se no “universo de tecnologias da beleza, design de superfície,
design de joias e bijuterias, decoração, gostos de consumo cultural etc.” (SANT’ANNA, 2009, p.
50).
A moda pode expressar o modo de se vestir, a personalidade, os interesses e outras
características que demonstram o tempo histórico em que os seres humanos se encontram
inseridos, demonstrando comportamentos e permeando processos comunicativos e culturais.
Assim, a moda funciona como um mediador de papeis dentro da sociedade. Neste contexto, a
estética da moda afro-brasileira (figura 1) se relaciona com a moda, com o mercado, com a
sociedade e principalmente com os afro-brasileiros, assumindo essa identidade através das
roupas, acessórios, cabelos e comportamentos.

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Figura 1- Estética Afro


Fonte: estilistasbrasileiros.com.br

A moda não envolve apenas os elementos associados ao vestuário em si, mas também se
encontra relacionada com aspectos que influenciam o desenvolvimento social, as mudanças
tecnológicas, a modernização e globalização de uma comunidade, mantendo um caráter
heterogêneo e extremamente dinâmico impactando principalmente as relações de consumo.
Diante deste contexto, nos tempos atuais podemos observar que muitos autores descrevem a
sociedade contemporânea como a “sociedade do consumo” (BARBOSA, 2010; BAUDRILLARD,
1995; ROCHA, 2005; SAHLINS, 1979).
A moda é um mercado de estilos diferentes que necessita de difusão e visibilidade,
portanto, os estilistas ao criarem seus objetos de moda, buscam o maior alcance possível para o
sucesso de sua marca. Dentro dessas possibilidades, a moda pode se difundir por imitação,
quando pessoas que tem grande visibilidade adotam um visual, ou um estilo de roupa e são
imitadas pelo seu modo de vestir. Ou então, a moda pode surgir a partir de relações
interpessoais dentro de um grupo social, não significando que é necessário ter alto poder de

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consumo, estando relacionada com o valor simbólico do ato de possuir a roupa. O papel do
criador é interpretar a identidade do publico ao qual a roupa se destina, bem como os valores
simbólicos, imateriais e transformá-lo em um produto de consumo.
Assim a moda afro-brasileira é dotada de valores simbólicos que estão enraizados na
cultura brasileira, que se tornam objetos de desejo à medida que ocupam corpos que estão
circulando pelo mundo.
Marshall Sahlins (1979) em seu livro “Cultura e razão prática” mostra a ideia que a
sociedade capitalista opera com base em uma racionalidade econômica, mas adere a
parâmetros simbólicos e transforma objetos que tem valor simbólico, em valor de consumo. Por
meio da moda, podemos ter um compartilhamento de diferentes culturas, é um processo de
comunicação feita através da roupa que vestimos que pode ser uma forma de fortalecer valores
morais, culturais e ate mesmo pode transparecer crenças e religiões. A partir do momento em
que as pessoas vestem algo que está ligado a sua religiosidade, ou a conceitos de suas origens
como a moda afro-brasileira, a moda torna-se um transmissor de cultura que pode estar ligado a
conceitos da própria identidade ou meramente estéticos.
Cabe ressaltar que os povos são diferenciados pelas suas características culturais que
envolvem os fatores como crenças, costumes, vestimentas, alimentação, idiomas e outros
elementos que são considerados diferenciais para a sociedade. Cada grupo social consegue
interagir com determinado ambiente físico quando seus aspectos culturais se encontram
inseridos no mesmo. Dessa maneira, uma vez que esses aspectos culturais são transformadores
da sociedade e são inerentes ao desenvolvimento humano, podem desenvolver novos atributos
de sobrevivência para os indivíduos, demonstrando que o ser humano é capaz de vivenciar
outras culturas por meio do aprendizado de diferentes idiomas e funções (SAHLINS, 1979).
Tratando desses aspectos culturais, podemos ressaltar a moda como um fenômeno
cultural e um meio de comunicação que pode ser usado como um meio de construção de
identidades, atendendo a desejos e diferentes necessidades, mas que está inserida em um
contexto cultural. Deste modo, a moda afro-brasileira esta inserida na cultura brasileira, e pode
ser um suporte de comunicação de outras culturas como a indígena ou africana, construindo
assim sua própria identidade plural. À medida que uma pessoa adota certo estilo de vestir, ela
está comunicando ao mundo o seu nível de pertencimento a dado grupo, transmitindo assim
seus valores culturais e políticos que fazem parte da sua própria identidade. Ao vestir uma roupa
afro-brasileira o sujeito não busca apenas atender suas necessidades de vestimenta, mas,
sobretudo se alinhar aos seus pensamentos que vão ao encontro com suas crenças. (figura2)
Adriana Leite e Lissete Guerra (2002, p. 10) afirmam que:

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O desejo de expressar-se através da aparência física, de embelezar-se,


enfeitar-se, sempre esteve presente, de formas diversas, em todas as
sociedades e civilizações. E debruçar-se sobre esse binômio
função/imaginário contido na indumentária pode fornecer um panorama
extremamente esclarecedor do funcionamento e das prioridades dos grupos
humanos em determinados momentos históricos. A roupa revela, desvenda
sintonias e sinais. Pode ser decodificada. Nela se inscrevem, de forma
mínima – com precisão e riqueza de informação – aspectos globais, de
alcance macro.

Para as autoras, a partir do momento em que o indivíduo escolhe as peças que deverão
compor seu visual, estará expressando seu modo de pensar, evocando sinalizações de seu
próprio ser, a fim de desenvolver sua identidade pessoal e consequentemente permanecer
inserido em um espaço de sociabilidade que lhe agrade.

Figura 2- Valores identitários por meio da roupa


Fonte- Marca Negriff
A moda é mantida através da abordagem de tendências mundiais voltadas para a
apresentação de novas coleções de roupas, sapatos e acessórios, contribuindo na formação de
novos modos de se vestir de se maquiar ou de arrumar o cabelo.
De acordo com Adriana Leite e Lissete Guerra (2002, p. 29) a ação de vestir “parte de
uma ideia que se materializa pelo objeto roupa e tudo aquilo que se relaciona com a atitude de
se ornamentar, desde penteados até intervenções feitas diretamente sobre o próprio corpo,

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constitui um sistema de representação”. Com isso, observa-se que a moda é um fenômeno que
permite a socialização do indivíduo por meio da condição cultural e simbólica determinada pelas
vestimentas e acessórios. Para Malcom Barnard (2003, p. 38) “o que antes poderia ser
considerado como signo pelas velhas teorias de comunicação social – os produtos da indústria
cultural – hoje é “ressignificado” e é condição de socialização”. Ao se vestir, os indivíduos estão
transmitindo seu desejo de fazer parte de determinado grupo, de expressar suas opiniões e
emoções.
Com isso, a roupa não é apenas um elemento simbólico utilizado apenas como função
utilitária, mas um fator elementar no estabelecimento de relações sociais, fazendo com que
muitas pessoas se vistam para enquadrar-se em um determinado grupo ou classe social.
Para Veruska Barreiros Gonçalves (2008, p. 23) “a moda consegue circunscrever
determinados espaços sócio-culturais que se constituem como tribos (grupos são acolhidos, são
territórios de referência). Essas tribos são formadas de acordo com ideais, características e
pensamentos em comum”. Ao se vestir, as pessoas desenvolvem uma consciência acerca de
seus próprios valores e sentidos, refletindo nas especificidades do grupo ao qual permanecem
inseridas. Assim como em algumas regiões existem a culinária típica, a musica e a dança a
moda está ligada, faz parte e é capaz de influenciar as manifestações culturais em todos os
níveis sociais através de várias linguagens, mantendo um sincretismo comunicativo. A moda
Afro-brasileira é uma forma de manifestar e demonstrar conceitos da cultura brasileira por via da
roupa.
Em suas explicações, Veruska Barreiros Gonçalves (2008, p. 27) enfatiza que:

A Moda é um fato social ligado ás transformações nos diferentes setores da


Sociedade, nas atividades: Econômica, Política, Social, Religiosa, na Ciência
e também na concepção estética predominante numa determinada época.
Com a globalização, foi necessário criar uma moda alicerçada em conceitos
nacionais, para lançar um estilo próprio. No nosso caso, um estilo com
elementos da cultura brasileira, utilizando, por exemplo, nosso artesanato. A
moda institui-se como papel fundamental na produção cultural, onde as
formas econômicas, estéticas e sociais estiveram ligadas ao surgimento do
modo de produção capitalista. Não há como negar que a moda
contemporânea envolve criação, oscila entre o velho e o novo, entre o visual
e o funcional, caracterizando-se pela sinalização da atualidade vivida por
seus sujeitos.

Para a autora, é neste cenário que a moda surge como uma estrutura social cuja lógica
deveria respeitar as formas do passado, mas que com o desenvolvimento da sociedade, passa a
dotar novas estruturas nas vestimentas e acompanhar os comportamentos da sociedade,

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buscando satisfazer as necessidades do contemporâneo. Isto ocorre, pois a moda é, sobretudo,


um fenômeno cultural que precisa atender objetivos plurais, construindo uma nova realidade
acerca do capitalismo vigente. Quando uma pessoa monta seu estilo, ou escolhe vestir certa
roupa podemos afirmar que essa pessoa está demonstrando sua posição social, marcada
através de suas escolhas e de seus desejos, pelo mercado e pelos objetos, expressando assim
sua própria identidade.
2 MODA ETNICA E AFRO-BRASILEIRA
A etnia é o “termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais- língua,
religião, costume, tradições, sentimento de “lugar”- que são partilhadas por um povo” (HALL,
2005, p. 62).
Podemos referenciar assim a moda étnica com essas mesmas características, partindo do
ponto em que moda étnica é toda aquela que está ligada ou faz referencia a determinado grupo
étnico, através da moda podem ser transmitidas características e elementos que remetem a
determinada cultura, tradição ou religião. Para se compreender o conceito de moda étnica torna-
se preciso entender os aspectos que envolvem a moda afro-brasileira e a moda brasileira, e
entender quais elementos são mantidos como referências para os estilistas e consequentemente
são fundamentais para o mercado de moda e para quem se identifica com esses conceitos.
Grant McCracken (2007, p. 103) afirma que o vestuário comunica tanto a presunção da
delicadeza feminina quanto da força masculina, ou tanto a presunção de “refinamento” da classe
alta quanto a de “vulgaridade” de outra, mais baixa. Assim através da vestimenta o ser humano
consegue manifestar suas crenças e valores culturais, transformando-se muitas vezes em
oportunidades para buscar lutar por ideologias. No Brasil podemos observar que a moda é um
domínio onde a cultura negra se destaca.
Gilberto Freyre (2003) revela que a moda no Brasil manteve influências notórias das
camadas mais populares denominadas de “não senhoris”, sendo possível identificar uma
participação da mulher negra da constituição das vestimentas, conforme relatado abaixo:

E como já foi sugerido, não poucas as inspiradas por usos tradicionais de


vestido, de adorno, de penteado de mulher do campo ou do povo ou de
quase segregadas minorias étnico-culturais, como algumas das afronegras
ou ameríndias coexistentes, no Brasil, com populações de culturas
superiormente dominantes. Dessa convivência de contrários culturais vêm
resultando combinações, no Brasil, de modas já sofisticadamente europeias
ou não europeias de mulher com primitivismos ou plebeísmos, não raras as
mulheres brasileiras que, seguindo quanto a vestidos, modelos sofisticados,
conservam-se de todo primitivas ou populares nos seus penteados ou nos
seus adornos ou nas suas sandálias de couro cru (FREYRE, 2003, p. 46).

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Porém, a moda afro-brasileira, só obteve destaque na década de 1960, conforme relata Livio
Sansone:

O visual afro, que na Bahia chegou no fim dos anos 60 por meio das imagens
de James Brown e The Jackson Five, agora se diversificou em uma série de
variantes: os robes e os turbantes africanos que são usados especialmente
durante o carnaval e em uma série de eventos relacionados a este; o visual
funkeiro dos fãs de música eletrônica e dançante; e o visual dos ativistas
negros, que incorpora um conjunto heterogêneo de atributos afro e
“africanos” (SANSONE, 2000, p.98).

Através da moda é possível formar grupos que apresentam os mesmos interesses. O


consumo é mantido como um instrumento para identificar pontos de vista em comum, podendo
contribuir com a valorização de aspectos étnicos e culturais assim, os consumidores se
identificam com dadas marcas e fazem escolhas por certo estilo de roupa baseado em suas
raízes ou em sua historia pessoal fazendo com que a roupa esteja carregada de conteúdo
simbólico.
Grant McCracken (2007) afirma que “se as categorias culturais resultam da segmentação
do mundo por uma cultura em parcelas distintas, os princípios culturais são as ideias
organizadoras por meio das quais se dá a segmentação”. É preciso citar que os princípios
culturais são considerados os agentes mais importantes para a construção de fenômenos
culturais, distinguindo as pessoas entre si, porém fortalecendo as relações na sociedade, já que
são premissas básicas para o desenvolvimento do pensamento e da ação, indispensáveis para a
prática da vida social.
Assim, cada vez mais surgem bens de consumo, que expressam características e valores
culturais, um exemplo disso é a segmentação do mercado de moda em nichos de mercado,
fazendo com que cada fatia do mercado consumidor fosse designada a um tipo de público-alvo.
Podemos citar, por exemplo, a moda plus-size , moda infantil, moda festa e a moda étnica que é
destacada neste trabalho, enfim, uma diversidade de produtos destinados a públicos específicos.
A moda étnica é um segmento que engloba vários estilos, ela está geralmente ligada com
as raízes de algum grupo étnico, como por exemplo, tribos indígenas, povos africanos, peruanos,
egípcios, portanto a estética das roupas criadas dentro do segmento de moda étnica está
referenciada em algum grupo étnico. O mercado de moda brasileiro é todo segmentado, a moda
étnica é um desses segmentos e a moda afro-brasileira é uma fatia da moda étnica. Sendo
assim, a moda étnica esta relacionada a grupos étnicos diversificados, e a moda afro-brasileira

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esta intimamente ligada às raízes culturais brasileiras e africanas como exemplificado na figura
3.

Figura 3- Segmento de moda afro-brasileira


Fonte- autoria própria

É notório o destaque da cultura afro-brasileira na sociedade, principalmente através de


seus elementos religiosos, cores fortes e predominantes, embora seja ainda pouco explorada no
universo na moda. Renato Ortiz (1986) destaca que a indumentária utilizada nos rituais dos
negros, fortalece não apenas a beleza destes fatores, mas também a intensa criatividade que
este público possui para manter viva a memória cultural de seu povo.
No Brasil ainda permanecem influencias de culturas que se estabeleceram aqui, como os
bantos, iorubas e nagôs, que atuam nas praticas culturais, religiosas, no modo de vestir e na
estética do negro brasileiro.
Livio Sansone (2000, p. 98) destaca que as roupas com influência africana, já não fazem
parte somente dos rituais religiosos, citando que “outro domínio por meio do qual essa nova
cultura negra se torna visível é a moda”.
A moda afro-brasileira, com publicações direcionadas para o público negro através de
revista como a Revista Raça, Revista Afro (online) e a facilidade de acesso às redes sociais
permitiu a melhor comercialização e divulgação de marcas de estilistas que se dedicam a moda
afro-brasileira.
Embora com esta ascensão, atualmente o país ainda possui poucas marcas, que estão
relacionadas na Tabela 1, que se dedicam à criação de roupas afro-brasileiras.
Tabela 1 – Empresas de Moda afro-brasileira

MARCA ESTILISTA CIDADE/ ESTADO


Goya Lopes Goya Lopes Salvador/BA
Ifá veste Saraí Reis Salvador/BA
Negrif Madalena Cardoso Salvador/BA
Xongani Arte com tecido Cris Mendonça e Ana Paula São Paulo/SP

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Empório afro moda Fatima Negran Rio de Janeiro/RJ


Botuafrica Mônica Nador/Renato Imbroisi Botucatu/SP
Balaco Julia Vidal Rio de Janeiro/RJ
Moda arte e design Enia Belo Horizonte/MG
Monica Anjos Monica Anjos Salvador/BA
N’Black Najara Black Salvador/BA
Criolê Isabel Cristina Hortolândia/SP
Bazafro Lydia Garcia Brasília/DF
By yosh Washinton José Salvador/BA
TC arte Makota Kizandembu Belo Horizonte/MG
Marcia Ganem Marcia Ganem Salvador/BA
Pegada preta Cynthia Mariah São Paulo/SP
Chica da Silva Marcial Avila Belo Horizonte/MG
Pretto Básico Marcio Vaz Rio de Janeiro/RJ
Moyó Atelie Deia Talamungongo/Yuri Tawaresi Brasília/DF
Katuka Africanidades Renato Carneiro Salvador/BA
Fonte: Elaborado pela autora

Dentre alguns estilistas de maior destaque no Brasil, cita-se Goya Lopes (figura 4), que
também é uma das pioneiras no segmento, que afirma:
“A minha bandeira como afrodescendente é criar uma moda da cultura afro pra todos, e
realmente a gente tem essa questão, que é uma moda que qualquer pessoa veste.”

Figura 4- Goya Lopes e suas criações


Fonte- Pinterest

Sabe-se que a moda apresenta marcadores étnicos, nos quais os indivíduos poderão
identificar novas maneiras de se expressar e de se serem vistos na sociedade. O papel do
estilista é fundamental quando tratamos da moda afro-brasileira, pois o estilista é o criador que
faz suas coleções a partir de sua própria experiência de vida e como Pierre Bourdieu (1983, p.

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154-161) compara o estilista a um pintor: “se pensarmos na pintura de vanguarda, na pintura


conceitual, compreenderemos que é fundamental que o criador possa se criar como criador ao
ter o discurso que faça seu poder criador ser acreditado”, nesse contexto a individualidade de
cada estilista no ato de sua criação deixa marcas em suas coleções.
Existe uma divergência entre o estilista de moda afro-brasileira e o estilista de moda
brasileira, não no ato de criar em si, mas no sentido das referencias utilizadas como base das
coleções.
Todas as marcas citadas na Tabela 1 trabalham com inspirações afro-brasileiras em suas
coleções, porém existe uma grande diferença das marcas dos estilistas que atuam no mercado
da moda afro-brasileira como Goya Lopes, Julia Vidal, dentre outras estilistas citadas, e os
estilistas que trabalham com a moda brasileira.
A principal diferença é que a moda afro-brasileira apresenta caráter cultural estando
inserida na moda étnica, enquanto a moda brasileira pode referenciar aspectos e elementos
variados, pode fazer referencia a lugares, tribos, a natureza, a música, a pessoas, enfim as
marcas brasileiras podem utilizar qualquer elemento para ser a base da referencia para sua
coleção como mostrado na figura 5. A moda étnica está inserida na moda brasileira e pode fazer
referência a outras culturas, necessariamente, ela está ligada a determinados aspectos culturais
de diferentes lugares do mundo, a moda afro-brasileira é uma fatia dentro da moda étnica, pois
referencia aspectos culturais, porém não de diferentes lugares do mundo e sim utiliza como base
a cultura brasileira e africana. Representada na figura 6 .

 
Figura 5 – Moda brasileira com referencia indígena
Fonte- Desfile SPFW verão 2016 da marca Cavalera

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Figura 6- Moda afro-brasileira com referencia na estética negra


Fonte- blackwomenofbrazil.co

Essa diferença pode ser mais bem explicada através das falas de algumas estilistas
entrevistadas quando questionadas sobre a diferença entre a moda brasileira e a moda afro-
brasileira.
Para a estilista Julia Vidal (da marca Balaco, que desde 2014 passou a se chamar Julia
Vidal Moda Étnica) a moda brasileira, ou qualquer moda, dificilmente esta separada de suas
raízes étnicas (figura 7). Para ela, ao analisar a coleção de outros estilistas brasileiros, de uma
forma geral, não necessariamente as roupas estão relacionadas com a cultura ou enraizadas ou
conectadas ao Brasil. Existem muitos estilistas que criam pensando na forma de comportamento
das pessoas nas ruas e esta forma de comportamento pode impactar na concepção de uma
coleção, que pode ser inspirada ou pensada em qualquer cultura, mas a moda que Julia Vidal
cria está intimamente ligada às raízes culturais brasileiras.

Figura 7- Estilista Julia Vidal


Fonte- Google imagens

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Julia Vidal ressalta que “moda brasileira é uma coisa e moda com identidade brasileira é
outra”. Esta última deve transmitir os aspectos de regionalidade por matérias-primas que são
naturais de determinado universo, estilo e apresentação de peças que estejam de acordo com o
modo de ser daquela sociedade. Dessa maneira, a moda brasileira se encaixa num conceito
mais amplo de todos estes aspectos. Com isso, cada estilista realmente tem uma forma de
representar seu trabalho, encontrando elementos diferentes pra colocar como resultado final de
sua coleção. A estilista compara a moda brasileira a um guarda chuva maior, citando como
exemplo, Ronaldo Fraga que se encontra mais voltado para a concepção de moda brasileira,
pois este estilista trabalha com elementos do regionalismo.
Julia Vidal afirma que a moda afro-brasileira também apresenta um recorte com
influências africanas no Brasil. E por fim, faz menção ao trabalho de Goya Lopes, que em sua
visão é uma referência em moda afro-brasileira que trabalha dentro da moda étnica.
Desse modo, podemos perceber que a moda afro-brasileira é muito específica, visto que
cada estilista busca apresentar seus conceitos étnicos e manter sua forma de produzir,
representando sua própria moda e ressaltando os elementos que consideram mais importantes
na concepção do segmento.
Madalena Cardoso, estilista da Negrif ( figura 8), situada em Salvador, no centro da cidade
conta que a Negrif foi criada em 2001 pela própria estilista com a proposta de desenvolver
roupas a partir de tendências étnicas, misturando a brasilidade com a ancestralidade africana,
empregando-as na moda de forma atualizada. A estilista relata que a moda afro-brasileira
envolve tudo que seja pensado com identidade, cores, modelagem própria e que não se iguale
ao que é produzido em série. Para ela a principal diferença entre moda brasileira e moda afro-
brasileira esta associada com a identidade, já que na primeira a inspiração é proveniente do que
é ditado pelas tendências dos grandes centros de moda (Paris, Milão, França) e a segunda
busca inspiração no continente africano e na ancestralidade.

Figura 8- Estilista Madalena Cardoso


Fonte- Site Negriff

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Goya Lopes (figura 9) é estilista e fundadora da marca Didara, que está situada na cidade
de Salvador, é uma estilista pioneira no segmento de moda afro-brasileira, artista plástica
renomada, que trabalha principalmente no desenvolvimento de estampas que misturam o
cotidiano baiano com a cultura africana.

Figura 9- Goya Lopes


Fonte- Pinterest

A busca de inspirações da artista mescla o “olhar para” o passado desde a chegada dos
Africanos no Brasil até as características que se mantem até hoje.
A estilista tem o foco de suas criações no desenvolvimento de estampas que são
aplicadas nas peças da coleção. O desenvolvimento dos desenhos é feito pela própria estilista
que através da junção de elementos e símbolos que retrata uma história podendo fazer
referencia ao passado escravocrata, a ancestralidade africana, ou mesmo ao presente como as
feiras da Bahia, a culinária, religião, sempre ligado à cultura afro-brasileira. Para Goya a principal
diferença entre a moda afro-brasileira e a moda brasileira é que a primeira necessita se manter
da cultura afro-brasileira, ou seja, ela estabelece uma conexão, está subsidiada e amparada pela
moda que retrata a identidade da cultura afro-brasileira, e a moda brasileira pode estar
amparada por outro suporte que não necessariamente venha da cultura afro-brasileira em si.
Cada estilista possui sua maneira de referenciar a cultura afro-brasileira através de suas
coleções, o que podemos observar é que algumas optam por trazer os conceitos afro-brasileiros
em roupas que seguem as tendências, e outras trazem conceitos, que em peças atemporais, são
independentes da tendência, ou ainda trabalham com o estilo religioso e suas roupas (
chamadas paramentas) que são utilizadas em cultos religiosos como túnicas, kaftans e bubus.
Identifica-se que as estilistas possuem suas próprias particularidades que formam os
conceitos identitários das peças criadas, abrangendo os aspectos regionais como a Bahia, os

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conceitos étnicos da afro-descendência, ou até mesmo as características pessoais, como as


origens de família ou mesmo influencia da cidade que moraram ou moram.
Através desta análise compreende-se que a moda afro-brasileira é apresentada ao
mercado consumidor diferente da moda brasileira, pois ela carrega os pilares da cultura afro-
brasileira em seus elementos.
Para Goya Lopes a moda afro-brasileira pode ser a referência, sendo um trabalho de base
para se criar novos estilos. Por outro lado, também pode ser pontos de referências para outros
designers que desejam desenvolver produtos e inseri-los no comércio.
Com isso Goya relata que os estilistas que desenvolvem a moda afro-brasileira, trabalham
roupas com bagagem cultural, dotada de significado, o que não acontece com muitos outros
estilistas que buscam a moda europeia (que é de onde se origina a maior parte das tendências
que observamos nas roupas) e em certas coleções, se assim for conveniente ou estiver em voga
podem por sua vez inserir algum conteúdo de origem ou de referencia africana. Para ela, existe
a necessidade da moda afro-brasileira se expandir, sendo indispensável ter uma produção, uma
distribuição e uma mídia positiva para possibilitar um trabalho contínuo.
Goya Lopes enfatiza ainda a importância de se diferenciar as referências que fazem
menção ao cotidiano e as que fazem menção a religiosidade, pois a moda da religiosidade são
as roupas das filhas de santo, e algumas roupas que são feitas pelas pessoas que frequentam
os encontros religiosos, diferente da moda afro-brasileira do cotidiano, que é a moda utilizada
pelas pessoas que se identificam com roupas que carregam um conteúdo cultural, que foi
inspirado na ancestralidade, e na brasilidade.
Goya explicita ainda que a moda afro-brasileira é um trabalho laboral que exige uma
pesquisa pontual, necessitado de uma releitura e apropriação da linguagem que o mercado quer,
pois se o estilista precisa realizar um desfile inspirado no afro-brasileiro, ele vai buscar referencia
na raiz, na cultura afro-brasileira dentro da necessidade do mercado brasileiro sendo possível
inserir um contexto pontual. Com isso, pode-se atender o mercado e transformar a moda afro-
brasileira em um grande potencial de imagem.
Júlia Vidal concorda que a moda afro-brasileira é composta por inúmeras referências
étnicas podendo estar focadas em aspectos religiosos ou mais atuais, devendo atender objetivos
mais comerciais. Dessa maneira, ao explicar como é a sua moda, a estilista descreve que
inicialmente sua marca, a Balaco, se encontrava enraizada nas matrizes étnicas, e existia uma
preocupação em transmitir essas raízes afro-brasileiras e estar mais conectada com o cerne do
DNA brasileiro; com as religiões de cultura africana e com as religiões de uma forma geral.

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Ela ressalta que as religiões de cultura africana no Brasil foram responsáveis por uma
manutenção da cultura, desde a forma de cozinhar até a forma de se vestir, sendo que muitas
coisas permaneceram vivas por causa da religião, sendo fundamental para a estilista conhecer a
religião afro-brasileira, assim como as religiões de matrizes africanas para a criação da sua
moda. Essas referências são importantes, porem existe uma diferença em trabalhar com a moda
afro-brasileira no contexto religioso que é um trabalho mais individual, seria uma roupa feita pra
um culto ou uma filha de santo. E a moda que é feita para um coletivo, já que a moda não é feita
para uma pessoa só, e sim, para a sociedade, para um grupo heterogêneo, necessitando estar
conectada com uma leitura mais contemporânea que é a leitura de moda.
Julia Vidal destaca que sua missão enquanto designer de moda é estética, transformar as
vestimentas que estão embasadas no universo afro religioso e cultural em peças esteticamente
atuais, que estão em voga. Para isto ser possível, é imprescindível um processo de criação,
fundamentação e pesquisa.
A estilista cita ainda que atualmente é possível encontrar criadores de moda afro-brasileira
jovens, que fazem vestimentas mais atuais e que ainda se mantém conectados com o religioso.
Para ela, a moda afro-brasileira ainda se encontra muito conectada com a religião, pois em
alguns aspectos isso pode ser considerado um fator positivo bom e em outros negativos, pois se
deve pensar não no individual, mas no coletivo.
Segundo Julia Vidal, há diferenças da moda vista dentro dos cultos religiosos afro-
brasileiros (umbanda ou no candomblé), visto hoje em dia como um patrimônio cultural e um
lugar de visitação, sendo preciso que se faça e tenha uma loja para a produção relacionada
dentro daquele contexto; e da moda vista num contexto especifico de produção, de economia
criativa de um país, de geração de ícones, de símbolos culturais. Ambas são formas diferentes.
Para a estilista, a preocupação deveria rondar o objetivo de fazer projetos comuns e fortalecer o
mercado de moda afro-brasileira a partir da união das marcas.
3 CONCLUSÃO
Podemos afirmar que as roupas afro-brasileiras, são carregadas de conteúdos culturais,
para desenvolver essa moda as referencias estão embutidas ou fazem parte da historia pessoal
de cada estilista, não existe uma regra, não é uma moda homogênea, pois cada estilista tem sua
forma de ver o mundo, de manifestar seus conceitos e materializa-lo em forma de objetos de
moda. As estilistas buscam transmitir seus valores identitários na produção de objetos de moda,
fazendo com que essa estética seja referencia para os consumidores.
O mercado de moda é um mercado de visibilidade, de valoração social, é um mercado
rico, crescente e aquecido. Através da mídia e redes sociais o mercado de moda influencia nas

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opções de escolhas. Dentre diferentes estilos de roupas presentes no mercado atual, a moda
afro-brasileira se diferencia da estética padrão. Quem veste a moda afro-brasileira usa produtos
que são esteticamente diferenciados, pois possuem modelagens amplas, cores que chamam
atenção, mistura de materiais. Portanto, quando os estilistas optam por criar roupas com a
estética afro-brasileira estão deixando de criar produtos que teoricamente seriam “padrões” no
mercado de moda, ou seja, mais homogêneos com a tendência que esta sendo seguida e se
posicionando conforme seu alinhamento histórico, politico e social, podendo ate mesmo abrir
mão de um grande publico em favor de suas propostas estéticas. A partir desse artigo pode-se
constatar através das falas das estilistas as principais diferenças entre as marcas da moda
brasileira e da moda afro-brasileira, observando também que a moda afro-brasileira não tem
apenas como referencia a inspiração vinda da África, e sim, é proveniente de toda a mistura de
culturas que temos em nosso país.
É possível constatar através da pesquisa desse artigo que existem diversas marcas que
atuam no segmento de moda afro-brasileira dentre elas a maior parte esta concentrada na
Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, e algumas espalhadas em Minas Gerais Sergipe e Brasília,
sendo que esses centros também possuem grande concentração da população afro-brasileira.
A moda afro-brasileira ainda não é um segmento fortemente estabelecido dentro moda
brasileira, mas é um grande potencial de exploração de mercado que está em crescimento e um
universo rico em referencias culturais e sociais.
4 REFERENCIAS
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Sites
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SANT’ANNA, Patrícia. Moda: uma apaixonante história das formas (2009) Disponível em:
<http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v61n1/a20v61n1.pdf> Acesso em: 11/11/2015

Entrevistas concedidas
Goya Lopes. Entrevista concedida. Salvador;BA setembro 2013
Julia Vidal. Entrevista concedida por celular, Rio de Janeiro;RJ , abril de 2014
Madalena Cardoso. Entrevista concedida por e-mail; Salvador; BA, maio de 2014

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Sessão Temática 05
Design, Moda e Cidade

Coordenação: Profa. Dra. Tula Fyskatoris | PUC-SP


Local: Estúdio Coletivo

Dia 13/05

A aplicação de tecidos inteligentes no vestuário cotidiano de ciclistas


Ana Jéssica Mensch Canabarro / Universidade Federal de Santa Maria/
ana.jessica.mensch.canabarro@gmail.com

Este trabalho buscou solucionar a problemática de vestuário feminino primavera/verão,


destinados à ciclistas que utilizam a bicicleta como meio de transporte no espaço urbano. A partir
de análise dos movimentos realizados durante a atividade em bicicletas, associado aos
requisitos estéticos priorizados pelas ciclistas. Pretende-se com a utilização de diferentes
materiais e configurações deste, projetar uma linha de vestuários centrado no usuário
empregando a tecnologia e tecidos inteligentes em favor deste, para que este tenha o vestuário
adequado para se deslocar nos centros urbanos.
Palavras-chave: Projeto de Vestuário; Moda Urbana; Design Centrado no Usuário.

Os primórdios do ciclismo em Porto Alegre sob uma perspectiva de moda (1895-1905)


Natália Santucci / nataliasantucci@gmail.com

Neste texto abordaremos uma pesquisa interdisciplinar acerca dos primórdios do ciclismo na
cidade de Porto Alegre (1895-1905) sob uma perspectiva de moda. Serão comentados a
delimitação do tema, a seleção de fontes e, parcialmente, o andamento do projeto. O trabalho é
guiado por um duplo aspecto - o ciclismo tido como “esporte da moda” e a entrada em voga de
roupas específicas para sua prática. Buscamos contribuir com reflexões sobre a combinação
entre múltiplos campos, que nos permitam realizar a escrita de uma história da moda sob viés
social.
Palavras-chave: moda, esporte, Porto Alegre.

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Fast fashion e slow fashion - o processo criativo na contemporaneidade


Samantha Pereira da Silva / samanthasilvaa@gmail.com
Raul Inácio Busarello / Universidade Federal de Santa Catarina / busarello.belasartes@gmail.com

O artigo tem como objetivo a análise do processo criativo do slow fashion e do fast fashion. Usa-
se como base a leitura do profissional pertencente à sociedade atual junto à observação do
ambiente de trabalho no qual cada sistema de Moda é inserido. No fim, chega-se a um
comparativo entre o processo criativo do slow fashion e do fast fashion.
Palavras-chave: Fast fashion, Slow fashion, Processo criativo.

Fashion film como imitação do gesto


Salma Soria / Universidade Veiga de Almeida / salmasoria@gmail.com

Grande parte da estrutura narrativa dos principais curtas metragens de moda são constituídos
por danças que substituem os diálogos. Exceção à regra, o curta metragem Cover Girl, lançado
no site da Vogue America apresenta a atriz Lena Dunham e o editor de moda Hamish Bowles em
batalha de voguing. Entram em cena a diegese, a busca pela aparência ideal e a imitação do
gesto transformando a história audiovisual em realidade verossímil.
Palavras-chave: Fashion film, Estrutura Narrativa, Vogue

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APLICAÇÃO DE TECIDOS INTELIGENTES NO VESTUÁRIO COTIDIANO DE CICLISTAS

TISSUE IN INTELLIGENT APPLICATION OF EVERYDAY CLOTHING CYCLISTS

Ana Jéssica Mensch Canabarro,


Universidade Federal de Santa Maria (Brasil),ana.jessica.mensch.canabarro@gmail.com;

Resumo
Este trabalho propõem uma nova aplicação do vestuário feminino primavera/verão, destinado a ciclistas que
utilizam a bicicleta como meio de transporte urbano. A partir de análise dos movimentos realizados durante a
atividade em bicicletas, associado aos requisitos estéticos priorizados pelas ciclistas. Pretende-se com a
utilização de diferentes materiais e configurações deste, projetar uma linha de vestuários centrado no usuário
empregando a tecnologia e tecidos inteligentes para a criação do vestuário adequado para se deslocar nos
centros urbanos.
Palavras-chave: Projeto de Vestuário; Moda Urbana; Design Centrado no Usuário.

Resumen
Este estudio buscó propone una nueva aplicación de ropa de mujer primavera / verano para los ciclistas que
usan la bicicleta como medio de transporte urbano. A partir del análisis de los movimientos realizados durante la
actividad en las bicicletas, asociados con los requisitos estéticos priorizados por los ciclistas. El objetivo de la
utilización de diferentes materiales y configuraciones de este, el diseño de una línea de ropa utilizando la
tecnología de centrado en el usuario y telas inteligentes para crear la ropa adecuada para moverse en centros
urbanos.
Palabras clave: diseño de la ropa; Moda urbana; Diseño centrado en el usuario.

1 INTRODUÇÃO

Os transportes podem ser classificados em individuais, coletivos, de massa ou de carga e sofrem


constantemente reinvenções para comportar a demanda. A forma de locomoção das pessoas pela
cidade depende de fatores como conforto, praticidade, segurança e rapidez, somados a elementos
individuais como poder aquisitivo, condições físicas e capacidades motoras. Ainda nas definições de
Larica (2003) transporte é

a combinação de uma atividade estritamente funcional, que é a habilidade de ir de um lugar


para outro por meios mecânicos com máxima conveniência e mínimo desconforto, com uma
atividade que proporcione satisfação e divertimento. Algumas vezes a função é mais
importante que o prazer. Outras vezes o prazer é essencial. Mas seja qual for o percurso,
ambos os atributos função e prazer coexistem lado a lado, cada um com sua própria
intensidade. Tanto a função como o prazer dizem a respeito ao campo de trabalho do
Designer Industrial (LARICA, 2003).

Um dos meios de locomoção individuais popularmente menos dispendioso é a bicicleta. Hoje


no Brasil o número de mulheres que usam bicicleta como meio de transporte é muito inferior ao número
Este trabalho de Conclusão de Curso teve a orientação da Professora Doutora Marilaine Pozzatti Amadori;
Universidade Federal de Santa Maria (Brasil), marialaineamadori@gmail.com.

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de homens ABRACICLO (2015). Compreende-se que deslocar-se de bicicleta depende de uma série
de fatores como intempéries, segurança, distância e condições do percurso até o destino, assim seu
uso fica reservado aos audaciosos e aventureiros urbanos, que levam em conta o auxílio dessa
atividade no físico, psicológico e econômico.

Assim, no projeto de linha de vestuário primavera/verão para mulheres que se deslocam na


cidade de bicicleta, utilizou-se o processo de Design Centrado no Usuário (PREECE, 2005) que possui
as ferramentas mais adequadas para este trabalho, permitindo dar maior ênfase aos requisitos e
necessidades das usuárias, essenciais para o desenvolvimento das peças finais.

Pretende-se com isso facilitar a atividade, deixando-a mais prazerosa possível, tanto no
decorrer do percurso quanto na chegada ao destino, na proposta de um novo vestuário feminino. Para
que o conforto e a usabilidade, definido por Cybis (2010, p.24) durante a movimentação do percurso
estivesse aliado a estética apropriada ao destino das ciclistas, surgiu a necessidade de especificar os
detalhes que iriam compor os requisitos para o projeto.

Constatou-se a necessidade de um projeto centrado no usuário e de um produto a ser


desenvolvido, que propusesse um vestuário adequado para mulheres, que utilizam bicicleta como meio
de transporte urbano. Nesse sentido, foi verificada rara utilização de tecidos inteligentes ou adaptações
para proteção e comodidade nos movimentos para roupas não-esportivas. O investimento em
tecnologia e qualidade de artigos esportivos tem um elevando custo, resultando em um oneroso valor
final de venda final, bem maior em comparação aos não-esportivos.

Na rotina comum de isolamento das intempéries, estando-se sempre protegido da chuva, vento
e luz solar, nos automóveis e transportes públicos, vive-se isolado e protegido da real temperatura e
humidade do ar, assim as propriedades das roupas passam despercebidas. Basta observar-se os
congestionamentos no trânsito, nos quais fica esclarecido que o “isolamento” dos meios de transporte é
confortável e bem aceito para uma grande parte da população.

A bicicleta, porém, não oferece nenhuma dessas comodidades de isolamento, pelo contrário, o
usuário fica em contato direto com o ambiente e consequentemente com a cidade. Sendo assim, é um
meio de transporte alternativo e com a sua popularização observou-se o nascimento de outras
necessidades no vestuário juntamente com a possibilidade dessa nova demanda no mercado.

Esta é a demanda deste trabalho, seu objetivo central é um projeto de vestuário que utilize uma
nova aplicação materiais, com emprego de modelagem pensada para a atividade e requisitos estéticos
embasados na cultura urbana atual.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

O Design Centrado no Usuário (UCD – sigla em inglês) é uma metodologia de desenvolvimento de


projetos, baseada no Design de interação. De acordo com Preece (2002, p.185), Design de interação
significa, “projetar produtos interativos que forneçam suporte às atividades cotidianas das pessoas seja
no lar ou no trabalho”.

No Design de Interação, investigamos o uso de artefatos e o domínio-alvo a partir de uma


abordagem de desenvolvimento centrada no usuário, o que significa que as preocupações
deste direcionam o desenvolvimento mais do que as preocupações técnicas (PREECE,
2002, p.186.).

Ou seja, o design de interação surgiu a favor da usabilidade de interfaces, projetando para que
elas fossem fáceis e intuitivas. Essa metodologia corresponde à necessidade do projeto de vestuário,
pois o envolvimento do usuário é vital para que suas necessidades sejam listadas, compreendidas e
solucionadas. Para listar as necessidades foi necessário aproximar os usuários em um grau consultivo
(CYBIS, 2010, p.132), pois acredita-se que seja a relação mais adequada para o projeto.

Ainda, pode ser constatado na norma ISO 13407 (1999 apud CYBIS, 2010), a qual refere-se ao
projeto centrado no usuário para sistemas interativos, que o desenvolvimento com o usuário permite
sucessivos ciclos compostos por concepção e teste, obtendo-se o feedback no término de cada etapa.
Esse ciclo leva a uma constante atualização e, consequentemente, os produtos seguem a melhoria
contínua com esse processo de desenvolvimento.

Observa-se ainda que o Projeto Centrado no Usuário para sistemas interativos possui fases
que arranjam o processo de forma circular e retroalimentar, assim como o projeto de vestuário deve
proceder depois de implantado no mercado. No caso do projeto de vestuário para mulheres, que
utilizam a bicicleta como meio de transporte urbano, a coleção primavera/verão teria um ciclo e a
coleção outono/inverno outro, com necessidades, contexto de uso, exigências e soluções diferentes.

3 METODOLOGIA

A metodologia utilizada foi uma adaptação do Design Centrado no Usuário. Organizou-se o


método de projeto com as fases que se julgam necessárias para propor a solução da problemática do
vestuário adequado para deslocar-se de bicicleta, com a aplicação de tecidos inteligentes adaptados a
um novo tipo de modelagem para o dia-a-dia, apropriado à atividade.

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Após a fase de definição dos requisitos, foram selecionadas as propriedades que as peças
deveriam ter, delimitando-se a quatro peças, duas inferiores e duas superiores, foi gerado uma série de
opções que tinham a forma e modelagem possíveis de execução e idênticos aos desenhos.

Porém, além da modelagem inteligente, pensada especificamente para a movimentação, para que
as peças cumprissem com todos os requisitos determinados, foi aliada a criação dos desenhos a
aplicação do material. Os tecidos inteligentes foram selecionados conforme suas propriedades
correspondentes aos requisitos das peças.

3.1 Um novo uso para tecidos inteligentes

A urbanização dos grandes centros foi simultânea ao surgimento de novos meios de transportes
que transformaram os modos de vida e a cultura cotidiana nas metrópoles do século XIX. A bicicleta
popularizou-se principalmente pelo poder de deslocamento para praticamente qualquer pessoa que
tivesse capacidade de pilotá-la, seja homem ou mulher. Ainda nessa época, o único meio de transporte
individual motorizado era o automóvel, que além de estar fora do poder aquisitivo dos operários, dirigi-
lo era uma atividade estritamente masculina, culturalmente.

Assim, a bicicleta desencadeou uma série de mudanças para a cultura feminina por ser um meio
de transporte moderno e sem tradições vinculadas aos gêneros e papéis sociais. A prática do ciclismo
urbano trouxe mais uma importante emancipação: a mudança do vestuário feminino. Para que as
mulheres pudessem pedalar seria necessário o uso de um vestuário simplificado e confortável. A
primeira modificação iniciou-se pelo corpete, as adeptas do transporte trocaram o espartilho pelo
Spencer (uma adaptação do casaco masculino). Em seguida, abandonaram os enchimentos de tecidos
que eram colocados sob as saias adotando as saias-calças.

Nos anos 1882 e 1884, as ciclistas passaram a adotar uma nova roupa para praticar o esporte
ou simplesmente transitar nos centros urbanos (Figura 1). As mulheres passaram a adotar uma calça
mais curta, precursora da modelagem inteligente. As calças tinham a altura ideal para não encostarem
na correia das bicicletas e o volume clássico do período, porém com divisão entre as pernas, para que
fosse possível sentar no banco da bicicleta com mais facilidade. As novas calças nos Estados Unidos
eram denominadas Bloomer e na Inglaterra, Knickerbockers.

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Figura 1 - Vestuário adaptado para utilização da bicicleta em 1851. Fonte: ATOM, 2012.

A estilo Bloomer foi lançada em 1851 por Elizabet Candy Stanton que criou calças soltas e
justas nos tornozelos, cobertas por uma saia curta. Foi uma homenagem ao editor de jornal e
advogado Amelie Bloomer, um ativista dos direitos das mulheres, que inclusive participou da
Convenção de Seneca Falls, a primeira convenção dos direitos das mulheres. A luta pela liberdade de
movimento às mulheres, gerou uma das reformas mais importantes na história do vestuário feminino.

Em 1901, o ciclismo se tornara imensamente popular na Europa, o “ciclismo chique” era


considerado um tipo de esporte, o qual as mulheres levavam a sério, compravam roupas sob medida,
incluindo chapéus enfeitados com ave-do-paraíso (Figura 2).

Figura 2 - Anúncio "Ciclismo Chique" 1901. Fonte: 100 anos de moda, 2012.

O vestuário feminino para essa atividade sofreu ainda mais alterações durante o período da
primeira guerra. Nesse período, de acordo com Blackman, produtores e criadores de moda procuraram
criar trajes adequados, considerando o racionamento de petróleo, aumentando com isso o número de
ciclistas.

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A marca britânica Aquascutum, foi pioneira em criar tecidos impermeáveis, frequentemente


utilizados para ternos e capas masculinas. A partir de 1900, começou a produzir roupas femininas com
tecidos sintéticos da própria marca, precursores dos tecidos inteligentes, como o tecido Scutum, que
era resistente à água e ao vento. Eram produzidos conjuntos de três peças, compostos de casaco, saia
e calça (Figura 3). “Desse modo, a mulher pode ir de bicicleta ao trabalho, ou qualquer outro lugar,
vestindo a calça para depois vestir a saia”. (1939 apud BLACKMAN; AQUASCUTUM, 2012),

Figura 3 - Conjunto de três peças Aquascutum. Fonte: 100 anos de moda, 2012.

A partir desta breve pesquisa histórica contatou-se a significante adaptação do vestuário


feminino em relação a atividade de se deslocar no perímetro urbano bem como a quebra de
paradigmas culturais e estéticos. Isso tudo com uma reduzida tecnologia em comparação aos dias
atuais, sem a variedade de tecidos inteligentes que temos disponíveis hoje.

A moda claramente se adequou para atender a necessidade do público. Hoje a adequação, em


relação as atividades, é utilizado para projeto de roupas esportivas diversas, sempre visando requisitos
como proteção, conforto e performance do atleta para que ele tenha segurança, menor fadiga e assim
atinja melhores resultados.

Todavia, em análise mais detalhada essas prioridades também seriam requisitos para o
vestuário do cotidiano urbano, em atividades diárias como trabalhar ou estudar. Além disso, agrega-se
um fator com igual ou semelhante importância a todos estes requisitos esportivos, o fator estético.

O estudo da atividade com o detalhamento da necessidade de cada movimento envolvido,


verificado em testes de laboratório experimental, em situações idênticas as cotidianas do período

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primavera/verão, foi aliado ao estudo de tendência, estilo de vida e análise sincrônica e diacrônica.
Assim foi possível perceber um novo uso para tecidos inteligentes, desta vez aliado a uma modelagem
inteligente, que favorecesse o movimento, requisitado para a atividade durante o deslocamento urbano
e ao mesmo tempo favorecendo a estética adequada ao destino de trabalho ou estudo, por exemplo.

Os tecidos inteligentes foram selecionados conforme suas propriedades, essas deveriam


corresponder aos requisitos de cada peça. Para que os desenhos fossem executados em
correspondência a estética projetada, ainda foram observados a espessura, transparência, caimento,
cor e textura dos tecidos.

Para a calça o tecido ideal é o Jeans ou Denin inteligente, este possui uma maior durabilidade na
coloração e resistência a atrito, o que corresponde aos requisitos de durabilidade. Este Jeans é
composto de algodão e elastano, com tramas não muito fechadas e pouca espessura, o que confere
com os requisitos relacionados ao conforto da temperatura, pois absorvem e expelem a umidade do
corpo com facilidade permitindo trocas com meio externo, não retendo calor mesmo em contato direto
com o sol. Já nos requisitos referentes a movimentação, o elastano é um componente que pode
facilitar a adaptação ao corpo e a modelagem inteligente é a ferramenta que auxilia ainda neste
quesito.

No projeto da Blusa os tecidos inteligentes selecionados foram Lycra Praia (composição de


poliamida e elastano) e o Dry (composto de poliamida), ambos favorecem a transpiração e evaporam
os líquidos absorvidos rapidamente, o que confere com os requisitos de conforto térmico. Ambos têm
proteção solar acima de 50FPS, cumprindo com os requisitos de proteção solar. Ainda possuem a fibra
entrelaçada de tal forma que não permite criar “bolinhas” com o tempo e uma forma de tingimento
especial para evitar o desbotamento, o que garante a durabilidade.

Para o projeto da camisa os requisitos eram semelhantes aos da blusa, porém a camisa ao em
vez do conforto térmico prioriza-se a proteção solar. Então, utilizando da mesma técnica de dois
tecidos, o Dry (na região dos ombros e axilas) se manteve, porém, para o corpo foi utilizado um tecido
inteligente com a mesma composição e tratamentos químicos do Lycra (com conforto térmico) porém
com trama mais fechada e com maior proteção ao sol, chamado Amani Liso (nomeado pelo fabricante).
Esta peça protege do sol o tronco e os braço até o punho.

Igualmente como na blusa, a saia-calça cumpri com os requisitos de durabilidade, conforto


térmico, conforto de movimentação e estética não esportiva. O tecido inteligente foi aliado a uma
modelagem que ajudou a conferir a sensação de “frescor” a partir de uma forma mais ampla da peça.

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4 RESULTADOS

A seguir estão listadas as peças finais, juntamente com o seu detalhamento após todas fases de
criação, testes e execução citados no processo metodológico. Elas foram adequadas as necessidades
das intempéries, do movimento e estéticas seguindo os requisitos estabelecidos anteriormente no
projeto.

4.1 Calça

O tecido escolhido para a calça foi o Jeans com 3% de elastano e 97% de algodão, que por ser
composto majoritariamente por fibra natural, não esquenta tanto. O projeto da calça teve seu
aperfeiçoamento na modelagem inteligente, o desenho justo as pernas e cintura alta, é relativo a
estética e ao movimento, pois além de terem sido observados nos painéis de referências de estilo,
também foram constatados como necessários pela observação do movimento.

A cintura e cós dessa calça a tornam mais confortável, pois a calça deve ser justa, para não ficar
caindo, porém não tão justa que comprima o abdômen, dificultando a flexibilização e respiração. Por
isso, a modelagem desta prevê a posição do corpo da ciclista curvada para pedalar, sendo necessário
mais tecido na parte do abdômen e menos tecido nas costas (Figura 4). O desenho do cós aplicado
nessa calça, que na indústria é chamado de “Cintura alta”, também é muito usado em roupas para
grávidas com o chamado “Cós Anatômico”.

Figura 4 - Peça final cós da calça.

Para não pressionar o abdômen, o fecho da calça Jeans foi posicionado na lateral, já que é um
dispositivo rígido. Nas pernas também é crucial que se tenha facilidade para realizar o movimento de
pedalar. A calça deve exercer o mínimo de compressão, então na modelagem esse ajustamento ideal
para o movimento solucionou paralelamente a largura da calça na altura do tornozelo e do joelho.

No tornozelo pensando que a barra não poderia encostar na correia da bicicleta, por segurança, e
na altura do joelho, é importante que se tenha mais tecido para curva-lo com facilidade não limitando o

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movimento. Assim, foi acrescido um zíper lateral, que permite uma maior abertura na região quando se
está pedalando (Figura 5).

Figura 5 - Calça detalhe do joelho.

4.2 Saia-calça

A Saia-calça é um item prático de se vestir, pois tem elastano, é flexível e pode combinar com
uma vasta gama de peças na parte superior, as quais podem ser justas ou mais soltas. Esta foi
confeccionada em malha de Poliamida mais grossa, geralmente utilizada para fabricação de calções e
Leggins esportivos. O fabricante a nomeia de Fluity e sua composição é 90% Poliamida e 10%
elastano.

Foi observado que o modelo proporciona grande frescor, pois permite que o ar passe livremente,
apesar de ter sido confeccionado com tecido preto. Optou-se por tecidos escuros para as peças
inferiores, por se tratar de cores que geralmente as mulheres preferem em relação às cores mais
claras, por serem mais discretos, assim se sentindo mais seguras (Figura 6). Nessa peça, também foi
colocado um fecho lateral para não pressionar o abdômen. Isso confere maior conforto no abdômen.

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Figura 6 - Saia-Calça.

A saia aparentemente muito semelhante a uma saia comum, se diferencia pela divisão no meio
as pernas, que proporciona confiança ao pedalar, pois, ao contrário da saia comum, ela não levanta
com o vento, deixando aparecer a lingerie tanto na parte da frente quanto na parte de trás.

4.3 Camisa

A camisa final foi confeccionada com dois tecidos inteligentes, a malha da base é de poliamida
fina nomeada pelo fabricante de Amini Liso Farbe com 92% poliamida e 8% elastano. Nos ombros e na
parte de cima da manga uma malha de tela chamada pelo fabricante de Dry Nylon Liso que é
confeccionada com 100% Poliamida.

Esta combinação de dois tecidos inteligentes a deixou muito confortável para ser usada em altas
temperaturas. Além do “frescor do tecido” de poliamida da parte de cima, que é uma malha de tela com
furos visíveis a olho nu, o tecido do corpo também é de poliamida e, apesar de ser uma malha com
trama mais fechada, é muito fresca (Figura 7). Além disso, ela protege todo o tronco, ombros e braços
do sol, que danifica a pele, além de evitar as marcas de bronzeado indesejadas no braço, que com os
anos podem causar manchas e câncer de pele.

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Figura 7 – Camisa.

A estética da Camisa tem destaque pela aparência contemporânea e simples, pelo


acabamento e caimento, mas ainda assim é uma peça que poderia ser usada tranquilamente em uma
ocasião mais formal com uma calça Jeans, uma calça social ou ainda com uma saia. A cor mais escura
e não tão vibrante transmite seriedade e confiança.

Pela utilização de tecidos inteligentes existe uma garantia de que a cor mais escura não
prejudicará a transpiração. No teste da peça-piloto, foi confirmado que, principalmente no tecido de
cima do ombro (Dry), realmente existe uma efetiva circulação do vento por entre a trama do tecido.

Adiciona-se isso ao fato dela ter um corte não tão justo ao corpo, o que ajuda a mantê-lo confortável,
podendo-se transpirar livremente mesmo em altas temperaturas (Figura 8)

Figura 8 - Detalhe camisa.

O acabamento da peça a deixou com a aparência formal solicitada pelas ciclistas urbanas. E
para verificar a combinação das peças, vestiu-se a camisa com a saia-calça, confirmando que de fato
poderiam ser usadas juntas (Figura 9).

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Figura 9 - Camisa com saia-calça.

4.4 Blusa

A Blusa também foi confeccionada em dois tecidos inteligentes diferentes. A parte do tronco é
uma malha de poliamida nomeada pelo fabricante de Lycra Praia Lisa com 16% de elastano e 84% de
Poliamida, o que garante com facilidade as trocas entre o interior e o exterior do tecido. A cor escolhida
foi um rosa claro, para que também auxiliasse no frescor da peça. Além disso, esta cor se mostrou
presente na pesquisa de tendências e foi a mais votada pelas ciclistas urbanas.

A malha de tela utilizada nos ombros e manga, é composta por 100% Poliéster. Embora exista
essa mesma tela fabricada em 100% Poliamida, optou-se por esta no modelo, devido a
indisponibilidade da cor desejada para sua fabricação em tecido de Poliamida, que seria o ideal. Esse
mesmo tecido fabricado em fibras diferentes é nomeado pela indústria por Dry, que em inglês significa
“seco”. É um tecido que absorve o suor e a umidade do corpo e o evapora rapidamente para o exterior,
mantendo a blusa seca. A peça foi testada e avaliada de forma positiva pelas usuárias (Figura 10).

Figura 10 - Teste blusa modificada.

5 CONCLUSÕES

5.1 Teste de uso e parecer dos usuários

O teste diretamente com as usuárias foi essencial para verificar a real funcionalidade de cada
peça. De forma positiva, foi possível integrar as ciclistas urbanas ao projeto e assim coletou-se suas
respostas a partir de testes em situação idêntica ao contexto de uso para o qual as peças foram
projetadas. Da mesma forma, as usuárias aprovaram a estética das peças, comprovando que estas

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seriam adequadas a compromissos diários no perímetro urbano para o trabalho ou estudo, por
exemplo.

As peças, dispositivos e materiais experimentados mais destacados positivamente pelas ciclistas


foram o zíper nas laterais dos joelhos e da cintura da calça Jeans e a textura e sensação ao toque do
tecido Lycra da blusa.

A seu modo, cada uma destacou o quanto a abertura com mais tecido na lateral do joelho é útil
para não estragar as calças Jeans, que ficam laceadas. Também evita lesões no joelho considerando
que não limita o movimento repetitivo da pedalada.

A camisa azul foi a segunda peça mais elogiada. As usuárias destacaram sua versatilidade,
quanto às maneiras e ocasiões que pode ser usada e a sensação de frescor quando em uso.

A blusa de mangas curtas destacou-se positivamente quanto aos recortes dos tecidos
inteligentes, cor e funcionalidade, com grande ênfase também ao frescor mesmo sendo justa ao corpo.
O primeiro modelo da blusa recebeu, porém, algumas críticas quanto às suas dimensões. A blusa foi
considerada justa nos braços, busto e curta no abdômen por duas usuárias. Esses detalhes foram
confirmados e corrigidos e a blusa foi modificada, sendo refeito o molde para um modelo mais largo e
mais comprido. Então, novamente a peça foi costurada, verificada pelas usuárias e registrada
fotograficamente.

Por último, a saia-calça se mostrou igualmente muito versátil. As usuárias frisaram a estética
com relação às combinações com outras peças da linha desenhada e com as roupas que elas mesmas
já possuem. Também foi destacada na saia-calça a livre circulação do ar entre a peça e a pele. Essa
circulação acontece na medida em que a ciclista se desloca. Quanto mais se pedala sobre a bicicleta,
maior é a sensação de frescor proporcionada.

5.2 Considerações Finais

Apesar deste trabalho ter obtido um resultado muito positivo, inicialmente foi um desafio
encontrar bibliografia que tratasse do assunto “projeto de vestuário” com as características requisitadas
para esta pesquisa. Assim foi necessário realizar adaptações da literatura existente unindo áreas afins
como tendência, ergonomia e costura. Assim sendo possível descobrir e relacionar os requisitos
necessários para a realização do projeto.

Para isso utilizou-se instrumentos de coleta de dados como entrevista/questionários, observação


in loco das usuárias, bem como a participação das usuárias para verificação das peças. Também é

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importante ressaltar a contribuição da própria autora também como usuária, que se deslocava
diariamente de sua casa a universidade de bicicleta durante o período de graduação. Além de ser o
ponto de partida da motivação para trabalhar com este tema, proporcionou considerações relevantes
no trabalho, unindo as visões de projetista e ciclista.

Com a execução de ferramentas aprendidas no Curso de Desenho industrial, foi possível utilizar
o método de Projeto Centrado no Usuário, para organizar o problema em segmentos e para melhor
analisá-lo. Assim foi possível propor uma melhoria com disposição de todo o panorama que envolve a
atividade de deslocamento urbano por meio de bicicleta por mulheres, bem como a utilização da
tecnologia empregada nos materiais e a confirmação da solução verificada com as usuárias.

REFERÊNCIAS

ABRACICLO. O uso da bicicleta no Brasil: Qual o melhor modelo de incentivo. ABRAM. 2013.
Disponível em:
<https://drive.google.com/folderview?id=0ByXbIivD1esJUk1sbS11RzR4ZVU&usp=sharing> Acesso
em: 22 de out. 2015.

ATOM. História da Moda: Visuais que Chocaram Épocas. Modadesubculturas, 2012. Disponível em:
<http://www.modadesubculturas.com.br/2012/08/historia-da-moda-visuais-que-
chocaram.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed:+ModaDeSubcult
uras+(Moda+de+Subculturas)>. Acesso em: 13 abr. 2015.

BLACKMAN C. 100 anos de moda. A história da indumentária e do estilo no século XX, dos grandes
nomes da alta-costura ao prêt-à-porter. São Paulo: Publifolha, 2012.ISBN 978-85-7914-360-1.

CYBIS Walter; BETIOL Adriana; FAUST Richard. Ergonomia e Usabilidade. Conhecimentos,


Métodos e Aplicações. São Paulo: Editora Novatec, 2010. ISBN 978-85-7522-232-4.

PREECE Jennifer; ROGERS Yvonne; SHARP Helen. Design de interação: além da interação homem-
computador. São Paulo: Bookman, 2005. ISBN 8536304944

LARICA, Neville J. Design de transportes: arte em função da mobilidade. São Paulo: 2AB, 2003.
ISBN 8586695289

LÖBACH, Bernd. Design Industrial – Bases para a configuração dos produtos industriais. São Paulo:
Editora Edgard Blücher, 2001. ISBN 85-212-0288-1

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A MODA E O CICLISMO EM PORTO ALEGRE (1895-1905)

FASHION AND CYCLING IN PORTO ALEGRE (1895-1905)

Natália de Noronha Santucci


Mestranda em História pelo PPGH/PUCRS
nataliasantucci@gmail.com

Resumo
Neste texto abordaremos uma pesquisa interdisciplinar acerca dos primórdios do ciclismo na cidade de
Porto Alegre (1895-1905) sob uma perspectiva de moda. Serão comentados a delimitação do tema, a
seleção de fontes e, parcialmente, o andamento do projeto. O trabalho é guiado por um duplo aspecto -
o ciclismo tido como “esporte da moda” e a entrada em voga de roupas específicas para sua prática.
Buscamos contribuir com reflexões sobre a combinação entre múltiplos campos, que nos permitam
realizar a escrita de uma história da moda sob viés social.

Palavras-chave: História; Moda; Ciclismo

Abstract
In this paper we discuss interdisciplinary research about the early days of cycling in Porto Alegre (1895-
1905) under a fashion perspective. Will be discussed the delimitation of the subject, the selection of
sources and partly the project's progress. The work is guided by double aspect - cycling considered
"trendy sport" and come in vogue specific clothes for practice. We seek to contribute with reflections on
combination of multiple fields, which allow us to perform writing a history of fashion in social bias.

Keywords: History; Fashion; Cycling

O tema e sua relevância

Durante o século XIX profundas alterações ocorreram no mundo ocidental, consequência de


aprimoramentos tecnológicos, rupturas políticas, novos arranjos sociais e mudanças de paradigmas
científicos. Parte dessas transformações tiveram suas raízes ainda no século XVIII, com as revoluções
Industrial e Francesa. O Brasil, inserido no curso destas mudanças, passou de colônia a capital do
reino português, a império independente e, pouco depois, a república.
Ainda que distante da sede da corte e futura capital da república - o Rio de Janeiro - essa
efervescência de acontecimentos também oportunizou ao Rio Grande do Sul incorporar suas próprias
modificações: em 1824 recebeu um contingente de imigrantes alemães para colonizar a região do Rio
dos Sinos, tomou parte na Guerra do Paraguai (1864 – 1870), depois da qual recebeu um novo grupo
imigrante - os italianos - além de ser palco de levantes políticos, como a Revolução Farroupilha (1835-
1845) e a Revolução Federalista (1893-1895).
Em "Porto Alegre no século XX: crescimento urbano e mudanças sociais" (2004), Charles
Monteiro aborda as transformações dos espaços urbanos e das formas de sociabilidade pública, e

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menciona que "as cidades brasileiras, a partir da consolidação da ordem republicana, passaram por um
processo de reorganização espacial e social" (MONTEIRO, 2004, p.52). Diante do processo de
industrialização e reurbanização, dinamizado na década de 1890, Porto Alegre vislumbrou mudanças
muito intensas nos anos seguintes, em consequência do desenvolvimento econômico e do aumento da
população. Ainda de acordo com Monteiro, "a elite política [de orientação positivista] e as novas elites
econômicas ligadas ao comércio e à indústria deram impulso a novos padrões de arquitetônicos e
novas formas de sociabilidade, gerando uma nova cultura urbana" (MONTEIRO, 2004, p.52).
A Porto Alegre do fim do século testemunhou a ascensão de uma nova elite urbana, burguesa,
em grande parte composta por comerciantes, industriais e por teuto-brasileiros, que tornavam a relação
com a Europa mais direta e próxima. Essa nova elite, almejando a afamada modernidade, empenhou-
se em adotar novos hábitos, condizentes com esse desejo. Assim, importavam-se as atualidades
europeias oriundas da França, da Inglaterra ou da Alemanha - entre elas, o vestuário e as práticas
esportivas.
Vemos em Vigarello e Holt (2008) que na Europa do século XIX estava ocorrendo uma
mudança de paradigma a respeito da higiene, da saúde e dos padrões de aparência socialmente
aceitos. Nesse contexto, práticas corporais, como a ginástica, foram disseminadas e novos esportes
conquistaram praticantes, por agrupar valores alinhados aos ideais de vitalidade e civilidade da época.
Em meados da década de 1880 a introdução das safety bicycles - um novo modelo de bicicleta, bem
semelhante ao que utilizamos até hoje - adquiriram uma relativa popularidade e não tardou a atrair
adeptos em terras brasileiras. De acordo com o jornal Diário de Notícias do Rio de Janeiro, em 1892 a
União Velocipédica Francesa reunia 68 clubes de ciclismo do país. No mesmo ano, a Revista Illustrada
noticia a inauguração do “Bellodromo” carioca.
O primeiro velocípede em circulação no Rio Grande do Sul que se tem notícia foi de Alfredo
Dillon. Em 1869 o comerciante apareceu com seu veículo na colônia de Santa Cruz do Sul e inspirou
os irmãos Mabilde a construírem seus próprios e diversos outros, até a década de 1890, quando as
novas bicicletas começaram a ser importadas da Europa (LICHT, 2002).
O ciclismo, entendido aqui como a prática de andar de bicicleta, começa então a ser
institucionalizado em Porto Alegre, e é a partir disso que iniciamos a nossa análise. Optamos pelo
recorte temporal compreendido entre 1895 e 1905, iniciando com a fundação do primeiro clube de
ciclismo da cidade em 1895 até os sinais de declínio apresentados em 1905. Entretanto, alguns
transbordamentos dessa delimitação podem ocorrer com a finalidade de elucidar algumas questões
específicas, como o encerramento das atividades dos clubes.
A escolha desta temática e a pertinência acadêmica deste trabalho foram motivadas e
reforçadas por alguns fatores. O primeiro deles foram as controvérsias causadas pelos trajes femininos

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de ciclismo, que nos motivou a investigar os processos sociais por trás da História do Vestuário. Diana
Crane aponta em “A moda e seu papel social” (2006) que “o ciclismo também se distinguia das
recreações anteriores por ser praticamente impossível praticá-lo com as roupas elegantes da época”
(CRANE, 2006, p.242). Assim, trajes específicos para a prática começaram a aparecer e ganhar o
mundo, estando inclusive em concordância com algumas teorias médicas correntes, que defendiam
essas roupas - podemos ver menções à questão higiênica em Licht (2002) e Pastoureau (1993).
Observando que em várias cidades brasileiras as bicicletas estavam sendo utilizadas, nos
interessamos em saber como este uso se configurou no país, se os trajes e as polêmicas também
atravessaram o oceano.
Localizamos também fotografias e menções em periódicos, mas pouca bibliografia relacionada.
A partir de algumas leituras, vimos que Macedo (1982) considerava o estudo do uso do tempo livre do
porto-alegrense e o aprofundamento em atividades recreativas como o circo, a patinação e o ciclismo
relevantes. Sobre o ciclismo no Rio de Janeiro, encontramos trabalhos de Victor Andrade de Melo e
André Schetino (2009); quanto à prática em São Paulo, há um capítulo muito esclarecedor da tese de
Gambeta (2014). Vinte anos depois da consideração de Macedo, foi publicada a compilação “História
do Ciclismo no Rio Grande do Sul (1869-1905)”, na qual Henrique Licht reuniu conteúdo sobre o
ciclismo publicado em periódicos na virada do século, principalmente o Correio do Povo, contudo sem
elaborar uma análise ou uma narrativa. Em 2011 ainda se acusava a “ausência de estudos históricos
referentes à prática do ciclismo em Porto Alegre” (FROSI et al., 2011, p.2), e mesmo em 2015
localizamos apenas alguns artigos - fora nossa própria produção - que utilizam perspectivas distintas
da nossa, e menções esporádicas em textos sobre outros assuntos, sobretudo reminiscências sobre a
Porto Alegre de antigamente.
Em nosso estudo será utilizada a perspectiva de moda, sendo esta compreendida como um
dispositivo social sem conteúdo específico (CALANCA, 2008), desta forma podendo ser trabalhada em
um duplo aspecto - o ciclismo tido como “esporte da moda” e a entrada em voga de roupas específicas
para sua prática. A expressão “esporte da moda” é utilizada por diversos autores, sobre os mais
variados tipos de esporte, e nos sugere essa “moda” como favorecedora do interesse das elites pelo
uso das bicicletas, assim como seu posterior desinteresse em função de algo mais novo. Além disso, a
questão da especialização do vestuário impulsionada no século XIX nos conduz rumo à investigação
da moda-indumentária presente nesse contexto. De acordo com Feijão, "o processo de moda sempre
esteve ligado ao crescimento das cidades" (FEIJÃO, 2011, p.23). Em uma cidade em busca da
modernização como Porto Alegre nos anos 1890, nos parece coerente que os processos de moda
fossem abrangentes o bastante para atingir esferas tão diversas quanto o urbanismo, a vida social, os
hábitos e a vestimenta.

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Alguns levantamentos1 indicam que as pesquisas na área de história da moda, principalmente


no Rio Grande do Sul, ainda não são muito numerosas, oferecendo muitas possibilidades de trabalho.
Quanto a estudos que relacionem as práticas esportivas ao vestuário, são ainda bem raros -
localizamos apenas duas produções recentes: a dissertação de Luciana Bicalho da Cunha, “As roupas
esportivas em Revista na cidade de Belo Horizonte (1929-1950): moldes, recortes e costuras” (2011) e
a pesquisa de pós-doutorado de Carmen Lúcia Soares, publicada em livro com o título “As Roupas nas
Práticas Corporais e Esportivas” (2011).

Questões e procedimentos

A primeira versão do projeto desta pesquisa estava bastante cru, carecendo de alguns ajustes
quanto às fontes, e até mesmo quanto à maneira de encarar o objeto. Novas questões surgiram com o
andamento das leituras, das disciplinas cursadas e da participação em eventos.
A partir disso, reformulamos a indagação norteadora da seguinte forma: quais eram as
conexões estabelecidas entre o ciclismo e a indumentária de seus entusiastas com o desejo de
modernização de Porto Alegre na virada para o século XX?
Para responder a isso, estabelecemos como objetivo geral investigar como ocorreu a difusão
da prática do ciclismo em Porto Alegre, quais reações promoveu por meio de seus novos espaços de
sociabilidade e como era composta a aparência de quem os frequentava. Temos procurado argumentar
que se trata de um fenômeno de moda, que teve sua difusão alinhada às expectativas de modernidade,
vivências sociais cosmopolitas, saúde, entre outras, esteve em voga até que outras novidades foram
introduzidas e conquistaram a atenção das pessoas que estavam engajadas com “o moderno”. Por
meio de notícias e anúncios feitos nos jornais da época, como o Correio do Povo e A Federação,
notamos que os velódromos eram numerosamente frequentados, e os uniformes eram uma exigência
para os sócios dos clubes nas ocasiões sociais nas quais tomassem parte em nome do grupo.
Não podemos deixar de mencionar que foram estabelecidos também objetivos específicos, que
pudessem auxiliar na contextualização e no desenvolvimento da análise. Por meio deles, buscamos
pontuar as heranças que compunham a cultura brasileira no século XIX e verificar como essa cultura
preexistente se misturou com novos modelos, trazidos por imigrantes e periódicos importados,
principalmente em Porto Alegre. É importante destacar que, devido à relevante presença de teuto-
brasileiros nas elites, a influência francesa não era hegemônica como no Rio de Janeiro, por exemplo.

1 Um levantamento de Bonadio (2010) indica que apenas 4% das dissertações e 11% dos doutorados no período
1926-2010 foram em História. Nos levantamentos de Santucci sobre São Paulo [2010-2014] (2015a) e Rio Grande do Sul
[2005-2014] (2015b), vemos que a escrita da História da Moda no âmbito de pós-graduação ainda apresentou números
modestos nos últimos anos.

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Outro aspecto sobre o qual procuramos refletir é de natureza política - a consolidação do Positivismo e
da República e seu impacto na vida cotidiana. Além desse panorama social, cultural e político,
examinaremos também a difusão dos esportes no país. A partir da articulação entre as fontes,
traçaremos uma breve história do ciclismo em Porto Alegre (dentro de nossa delimitação temporal),
analisando os processos envolvidos em seu desenvolvimento. Por último, trataremos as questões do
vestuário - os efeitos da criação de espaços urbanos coletivos e das sociabilidades ao ar livre no vestir,
os comportamentos e ideais que moldaram as silhuetas que associamos ao período de 1895-1905, os
significados atribuídos aos objetos de vestuário vistos, e quais diferenças foram estabelecidas entre a
realidade brasileira e europeia.
A revisão do projeto contemplou também os procedimentos teóricos e metodológicos. Em um
primeiro momento, foi realizada a coleta e leitura superficial dos materiais que julgamos ser
indispensáveis para a formulação do projeto. Posteriormente, um número considerável de materiais foi
listado, explorado e filtrado, entre fontes primárias (fotografias e periódicos), fontes bibliográficas e
textos (artigos e periódicos) para fundamentação teórica. Organizamos uma estrutura prévia de
capítulos para dirigir as leituras, visitas a acervos e a organização dos fichamentos, na qual
distribuímos os objetivos específicos e algumas anotações complementares. Com o início da escrita do
texto final, percebemos a necessidade de manter essa estrutura flexível, para permitir que a análise
seja construída continuamente e aponte suas potencialidades até o momento de concluir a redação.
O tema foi desconstruído em partes, para que possamos nos debruçar em seu tempo sobre
conceitos próprios das questões de urbanização, modernidade, sociabilidade, esporte e moda, e
formular uma linha de raciocínio que possibilite, ao fim, uma reconstrução interdisciplinar.
Atualmente resta pouco material de nossa lista a ser manuseado. Os textos produzidos durante
o andamento das disciplinas e leituras foram distribuídos dentro da estrutura prévia de capítulos, e
temos trabalhado em responder as questões e aprimorar os conceitos e análises já empreendidos. A
dissertação está sendo redigida, com previsão de defesa para agosto de 2016.

Amparo teórico

Conforme mencionamos anteriormente, a lista de materiais consultados foi bastante ampla.


Aqui indicaremos apenas os principais, ressaltando que exploramos outras fontes como complemento.
Iniciamos pela necessidade de traçar um panorama do século XIX, para apontar os antecedentes
sociais, políticos, culturais e econômicos que sejam relevantes e possam ser comentados brevemente,
de maneira introdutória. O Rio de Janeiro, como cidade brasileira mais importante da época, é um de
nossos principais pontos de referência. Desta forma, “A Cidade e a Moda” , de Maria do Carmo Teixeira

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Rainho (2002), “Moda e Modernidade na Belle Époque Carioca” de Rosane Feijão (2011) e “Belle
Époque tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século” de Jeffrey D.
Needell (1993) são textos fundamentais. Rainho trata da necessidade de “civilizar-se” estabelecida pela
presença da Corte, e da difusão de manuais de etiqueta e prescrições feitas na imprensa. Feijão
aborda a importação do conceito de modernidade parisiense e como foi aplicado na reurbanização do
Rio de Janeiro; comenta aspectos da legitimação da presença feminina em espaço público e o
surgimento de trajes temáticos para determinadas ocasiões, como frequentar as praias. Needell nos
ajuda a pensar no flutuante conceito de belle époque, suas implicações e versões em outras
localidades. São estudos que nos fornecem paralelos para refletir sobre a remodelação de Porto Alegre
inserida em um contexto mais amplo, no qual modificações em cidades da América do Sul se tornaram
justificativa para as reformas, assim como as cidades europeias são referência.
Para dar conta das especificidades de Porto Alegre, são indispensáveis os textos de Charles
Monteiro, como “Porto Alegre: Urbanização e modernidade. A construção social do espaço urbano”
(1995), e de Sandra Jatahy Pesavento, que desenvolveu uma vasta bibliografia sobre Porto Alegre no
século XIX. No quarto capítulo de “O Imaginário da Cidade: Visões Literárias do Urbano – Paris, Rio de
Janeiro, Porto Alegre” (2002), “Os ecos do Sul - Porto Alegre e seu duplo (1890-1924)”, a historiadora
aborda o desenvolvimento da cidade e as referências de modernidade transmitidas para a capital
sulista pelo Rio de Janeiro e por Paris. Outro texto importantíssimo é “Modernidade, Noite e Poder”, de
Núncia Santoro de Constantino (1997), o qual nos propõe questões sobre a presença feminina, o papel
da imigração e a quem eram permitidos certos tipos de sociabilidade. A autora coloca que no século
XIX a capital gaúcha implantou “padrões culturais urbanos, influenciados pela Europa (...) incluídas as
inovações em termos de sociabilidades noturnas” (CONSTANTINO, 1997, p.49) e acrescenta que “na
cidade moderna desenvolve-se uma cultura pública, que Sennett define como decorrência da linha
divisória entre o público e o privado” (CONSTANTINO, 1997, p.50). Constantino comenta que na
década de 1870 "apareceram as confeitarias que começaram a atrair prendadas senhoras e
senhoritas, finos ornamentos da melhor sociedade gaúcha" (CONSTANTINO, 1997, p.53). Sérgio da
Costa Franco (1998) e Francisco Riopardense de Macedo (1982) nos apresentam a espaços e hábitos
vigentes que arrematam o cenário local. Por fim, “Presença Teuta em Porto Alegre”, de Magda Roswita
Gans (2004) e a tese de Arnoldo Doberstein (1999). Estes últimos nos apontam direções bastante
distintas para pensar a relação dos porto-alegrenses com as referências europeias - a presença dos
alemães, em concordância com os autores, modulou o “afrancesamento” da cidade em uma proporção
bem distinta da do Rio de Janeiro.
Todas essas referências mencionadas acima nos indicam a necessidade de estabelecer
conceitos como o de Modernidade - que autores tão diversos quanto Baudelaire, Marx, LeFebvre,

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Giddens, Berman e Benjamin procuram analisar. Tendemos à concepção de Baudelaire: “a


modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o
eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 2006, p.859), que por um lado nos sugere, além da permanente
busca pela atualidade, a justificativa da substituição de hábitos sem muito pesar pelo olvidamento de
outros. Por outro lado, nos indica o vínculo com a continuidade, que nos permite partir para a discussão
sobre identidades, tendo em vista que os teuto-brasileiros, por exemplo, na prática de esportes
modernos tinham também a preocupação de estabelecer referências que remetessem às suas origens
culturais. Isso nos conduz à questão da cultura híbrida. Para Coelho, “a hibridização refere-se ao modo
pelo qual modos culturais ou partes desses modos se separam de seus contextos de origem e se
recombinam com outros modos ou partes de modos de outra origem, configurando, no processo, novas
práticas” (COELHO apud KERN, 2004, p.59), o que julgamos muito pertinente ao cenário configurado
pela importação de tantos modelos externos para a constituição da vida nas cidades modernas.
A Modernidade também demanda uma definição de Civilidade - a busca por civilizar-se dentro
dos moldes europeus mais novos era uma preocupação das elites brasileiras, e não foi diferente com a
elite de Porto Alegre. Elias (1993) discute que a reorganização dos relacionamentos humanos é
acompanhada de mudanças nas maneiras e na estrutura de personalidade do homem, e que o
resultado provisório disso é a conduta "civilizada". O autor aponta que a ampliação da rede de
interdependência social tornou importante a sincronização dessa conduta, pois as ações dos indivíduos
estariam integradas.
Finalmente, a fruição de novas práticas no tempo livre, incluindo o esporte e o lazer. Sennett
coloca que já no século XVIII, no campo do lazer, “surgiram padrões de interação social adequados ao
intercâmbio entre estranhos [no que o autor chama de “região pública”] (...)” (SENNETT, 1988, p.32).
Vigarello e Holt (2008) nos demonstram que as práticas corporais modernas estão relacionadas a
mudanças de sensibilidade quanto à violência (e seu controle), do controle do tempo, e de uma
renovação na visão do corpo e do imaginário da água, sendo essa última um prolongamento da visão
dos higienistas do fim do século XVIII. Podemos, então, notar que as novas sociabilidades, vivenciadas
na esfera pública da cidade que se moderniza, estão em concordância com as noções modernas e
civilizadas do corpo inserido no tempo e no espaço.
Adentrando a questão da cultura esportiva e do ciclismo, utilizaremos textos do já mencionado
Victor Andrade de Melo, um nome relevante no estudo da história do Esporte no Brasil, com destaque
para as práticas de esportes na "Belle Époque tropical", e de André Schetino, que analisa
comparativamente como o uso da bicicleta se desenvolveu no Rio de Janeiro e em Paris na transição
do século XIX para o XX. Schetino (2007), além de fazer um painel histórico do ciclismo, comparando o
Rio de Janeiro e Paris, menciona que os clubes cariocas promoviam festas à guisa de premiação, o

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que soma mais um elemento à questão da sociabilidade proporcionada pela introdução das bicicletas
no Brasil.
Recorreremos também à socióloga Diana Crane (2006), que comenta o impacto do surgimento
e difusão do ciclismo no exterior, sobretudo entre as mulheres. A autora coloca que o surgimento do
novo esporte, inicialmente não identificado com um gênero, possibilitou uma alteração nas fronteiras
simbólicas estabelecidas pelo vestuário, sobretudo em público, visto que exigia espaço para ser
praticado. Esse tópico nos permite ampliar a discussão identitária para o campo da divisão entre
feminino e masculino. Aqui destacamos a importância de ter cuidado ao se abordar questões de moda
e de gênero, para que não se torne uma reflexão sobre o feminino, negligenciando as atribuições da
masculinidade. Ao falar da relação estabelecida entre a indumentária esportiva e o ciclismo devemos
considerar ambos os gêneros, ainda que não possamos escapar de dar atenção especial à questão
emblemática das peças bifurcadas utilizadas pela primeira vez pelas mulheres com relativa aceitação.
Para investigar o ciclismo em Porto Alegre, utilizaremos informações localizadas no jornal A
Federação e ao já referido livro de Licht. Complementarmente, serão vistos materiais do autor
disponibilizados pelo Centro de Memória do Esporte (CEME) da UFRGS. Há ainda a tese de Janice
Mazo (2003), sobre associativismo esportivo na comunidade teuto-brasileira, que nos permite
compreender um pouco melhor o papel do esporte neste grupo, tendo em mente que o segundo clube
de ciclismo de Porto Alegre era constantemente identificado como o “clube dos alemães”.
Além dos periódicos, outras fontes primárias indispensáveis são as fotografias da época. Cabe
aqui dizer que o conjunto analisado vem sendo garimpado desde o início da pesquisa - o encerramento
das associações de ciclismo ainda nos primeiros anos do século XX dispersou as imagens, e as
poucas restantes encontram-se em diferentes fontes e acervos, carentes muitas vezes de informações
mais precisas sobre os retratados e a procedência. Sendo assim, essas imagens serão cruzadas com
as outras fontes e nos serão úteis “não como amostras representativas de comportamento [uma vez
que não se trata de uma série muito extensa], mas como ilustrações de diferentes tipos de
comportamento, particularmente quando fotografias análogas de situações sociais semelhantes foram
localizadas” (CRANE, 2006, p.58) nas outras localidades que nos servem como pontos de referência.
Em outras palavras: as imagens, em conjunto com os textos, serão analisadas de maneira
complementar, para que possamos compreender as conexões entre a idealização de modernidade e a
materialização dela no contexto do esporte sobre rodas, e quanta semelhança guardavam com suas
referências originais.
O embasamento teórico para trabalhar questões próprias da fotografia tem como pontos de
partida Zita Possamai (2006), que aborda o circuito social da fotografia em Porto Alegre, e Alexandre
Ricardo dos Santos (1997), que estuda as representações contidas nos corpos retratados na belle

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époque porto-alegrense. Os conceitos de iconosfera, visualidade, visível e visão de Ulpiano B.


Meneses (2005) e as funções e sentidos da fotografia no século XIX apresentados por André Rouillé
(2009) também nos serão de grande valor. Contudo, buscando um aprofundamento no conteúdo das
imagens, recorreremos também a teóricos da história da arte, como Samain (2012), sobretudo para a
discussão de detalhes e sobrevivências, oriundos dos estudos de Aby Warburg.
As fotografias nos possibilitam estabelecer uma aproximação maior da correlação entre
esporte e indumentária. O ciclismo “marca o momento em que tem origem a concepção moderna de
vestuário: o uso de calças por mulheres, sua emancipação e liberdade física” (MONIER apud CRANE,
2006, p.243), pois “levou as mulheres a começar a usar, em espaços públicos urbanos, roupas que
antes eram usadas apenas em espaços marginais” (CRANE, 2006, p.469). Segundo Crane, os trajes
mais adequados contrariavam muito do que estava em voga de acordo com os valores hegemônicos
da época, e ainda eram mal-vistos por diversos grupos. Conforme mencionamos acima, por um lado o
ciclismo teve destaque pela ruptura com o traje feminino em voga, por outro devemos pensar no
impacto da vida esportiva também nos padrões masculinos - nas imagens podemos ver homens
utilizando, na virada do século, camisetas e calções que não estariam completamente antiquados nos
dias de hoje.
Além disso, conforme explicado anteriormente, nosso estudo parte das vivências nos clubes de
ciclismo de Porto Alegre - a União Velocipédica de Amadores (1895) e Radfahrer Verein Blitz (1896) - e
a prática de esportes em clubes introduz as questões dos uniformes. O embasamento teórico para
esse tópico será obtido na “História Social da Moda” de Daniela Calanca (2008) e em “O pano do
diabo: uma história das listras e dos tecidos listrados” de Michel Pastoureau (1993).
Não podemos deixar de retomar a questão da difusão das modas, tanto comportamentais
como vestimentárias, que se imbricam nessa combinação de prática corporal e especialização do
vestuário. Lars Svendsen (2010) considera a teoria do gotejamento uma explicação insuficiente, apesar
de não estar errada e ser até mesmo um propulsor para a adoção das novidades. Miller et al. (1993),
por sua vez, combinam as diversas teorias sobre processos de moda e elaboram um modelo de
difusão que leva em consideração caminhos variados, em nível individual e social, que se traduzem na
adoção de determinadas modas em detrimento de outras. Esses autores contribuem para adotarmos
um olhar um pouco mais complexo sobre o difusão, que encaixa com as questões específicas da
modernidade periférica em curso no Brasil e com as possibilidades de sobrevivências estéticas de
outras épocas e culturas nos trajes de ciclismo.
As fontes e o amparo teórico desta pesquisa são provenientes de campos diversos e, com sua
apresentação, procuramos contribuir com a reflexão sobre a possibilidade de combinação entre eles

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para realizar a escrita de uma história da moda sob viés social. A transposição dessas fronteiras, a
nosso ver, tende a enriquecer os temas que selecionamos.

Considerações finais

Perto de concluir, desejamos expor algumas considerações sobre o andamento do trabalho.


Neste momento temos um panorama do século XIX, que nos revela uma mudança generalizada na
forma como as pessoas se relacionavam com o mundo. Ainda que muitas vivências estivessem apenas
ao alcance das elites, eram os projetos destes grupos que geralmente moldavam as cidades e as
práticas consideradas civilizadas. Os novos grupos de elite que se formavam nas cidades brasileiras do
período da república velha não tinham mais a Corte como referencial, mas sim a Europa, suas cidades
modernas, os hábitos da burguesia, os adventos da ciência.
Nos clubes de ciclismo que se formaram em Porto Alegre, observamos uma grande
atualização em relação ao Velho Continente – não levou muito tempo entre a popularização das
bicicletas por lá e sua difusão no Brasil. Contudo, nem a Blitz, tampouco a União, sobreviveram à
década de 1910. Também não verificamos longevidade do interesse pela prática do ciclismo em outras
cidades, embora o uso da bicicleta não tenha deixado de existir completamente. Visto isso, traçamos
um paralelo com o ciclo de adoção de modas de vestuário, ou ainda, com o ciclo de adoção de
inovações, que compreende os inovadores, adotantes iniciais, maioria precoce, maioria tardia e
retardatários.
Em relação aos trajes, verificamos nas fontes primárias que ambos os clubes utilizavam
camisetas listradas e calções bufantes, embora existissem algumas variações – com paletó ou mesmo
um short bem curto. As cores utilizadas pelas sociedades possivelmente se relacionavam à visão que
tinham de si como grupo – acreditamos que a União ostentava azul e branco conforme o que havia de
mais higiênico e moderno, enquanto a Blitz teria adotado preto e amarelo em referência às suas raízes,
possivelmente remetendo à região da Saxônia. Embora não tenhamos localizado em nenhuma fonte
escrita, vemos uma versão feminina do uniforme da União em fotografias. Esse uniforme era composto
por um quepe, um casaqueto e uma saia, e não pelas polêmicas calças, embora a existência de uma
fotografia do estúdio de Virgílio Calegari mostre uma moça utilizando um modelo de calças bufantes –
essas imagens sugerem que os trajes femininos de ciclismo também eram conhecidos e utilizados em
Porto Alegre. O fato de não termos encontrado grandes oposições a eles, entretanto, nos faz pensar
que talvez tenham sido melhor aceitos que em outras partes do mundo, eventualmente por serem
roupas vistas como um traço de modernidade.

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Temos nos empenhado em identificar possíveis origens para essas roupas especializadas, que
acreditamos ter relação com algumas tipologias de exotismo. Enquanto não obtemos mais respostas
sobre essa origem, concluímos observando que, embora as práticas esportivas e a moda pareçam
estar em campos tão distantes, ambas possuem o corpo como ponto em comum – corpo este que, nos
últimos séculos, tem adquirido novas conotações e transitado por novos espaços, carregando consigo
a interdisciplinaridade com a qual procuramos arrematar essa pesquisa.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

FAST FASHION E SLOW FASHION O PROCESSO CRIATIVO NA CONTEMPORANEIDADE


FAST FAHION AND SLOW FASHION THE CONTEMPORARY CREATIVE PROCESS

Samantha Pereira da Silva (Pós-Graduada em Direção de Arte em Comunicação, Centro Universitário


Belas Artes de São Paulo, 2015; graduada em Desenho de Moda, Faculdade Santa Marcelina, 2012;
samanthasilvaa@gmail.com).
Raul Inácio Busarello (Doutorando e Mestre em Engenharia e Gestão do Conhecimento, UFSC; pós-
graduado em Design Gráfico e Estratégia Corporativa, especialista em Cinema, NYFA-NY-EUA; e
graduado em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda,
busarello.belasartes@gmail.com)

RESUMO

O artigo tem como objetivo a análise do processo criativo do slow fashion e do fast fashion.
Usa-se como base a leitura do profissional pertencente à sociedade atual junto à observação
do ambiente de trabalho no qual cada sistema de Moda é inserido. No fim, chega-se a um
comparativo entre o processo criativo do slow fashion e do fast fashion.
Palavras-chave: Fast fashion. Slow fashion. Processo criativo.

ABSTRACT

This article aims to analyze the creative process of slow fashion and fast fashion. The
interpretation of the contemporary professional is used as a basis as well as the observation of
the work environment in which those fashion systems are inserted. In the end, one comes to a
comparison between the creative process of slow fashion and fast fashion.
Key words: Fast fashion. Slow fashion. Creative process.

1 INTRODUÇÃO

A indagação da relevância da Moda para o período histórico vigente é um dos pilares


para o entendimento desse fenômeno. Tendo em vista que o título é proveniente da palavra
em latim modus, seu significado semântico traduz a essência do que ele representa como um
todo: moda é modo (BRAGA, 2005), é a forma de ser e manifestar-se.
Pode-se observar o quanto a Moda rege a nossa sociedade em razão do seu poder
de manifestar a sedução e o efêmero como princípios da vida coletiva, principalmente a
moderna (LIPOVETSKY, 2009). Justamente por ser um dos condutores do seu tempo,
estabelecer uma conexão da Moda com uma tangente histórico-sociológica é inevitável. Esse
sistema tem a capacidade de assinalar uma época e identificar o indivíduo dentro do coletivo
(NÓBRIGA, 2011), podendo servir como um ótimo indicador comportamental e econômico.

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Analisando a contemporaneidade, observamos que a sociedade trata a ação do


tempo como uma manifestação natural que representa cada vez mais o efêmero e
inconstante. Essa aceleração da vivência humana faz com que o olhar voltado para o universo
criativo, aqui focado na esfera da Moda, suscite alguns questionamentos, sendo um deles a
questão de como essa grande mudança antropológica pode afetar o processo criativo vigente.
A problemática criada em torno da Moda, contemporaneidade e processo criativo
demanda uma contextualização a fim de um maior aprofundamento. Com isso, chega-se à
discussão central do artigo; uma das grandes reflexões sobre a Moda atual é a relação entre
fast fashion e slow fashion, ambas convivendo na mesma era contemporânea, mas
carregando ideias defendidas por profissionais diferentes. Justamente por incorporarem o
fenômeno em seu estado mais recente, foi observado que os produtos finais junto aos motivos
de compra dos consumidores são amplamente discutidos no meio de estudos científicos,
porém, a análise entre o processo criativo dos dois universos é pouco discutida.
Portanto, o artigo analisa o processo criativo entre esses dois expoentes da Moda.
Sendo assim, é indispensável examinar e interpretar a relação entre o processo criativo de fast
fashion e slow fashion junto à questão da sociedade e da era atual, distinguindo estes dois
tipos de produção inseridos em suas respectivas cadeias de mercado. Sendo assim, é
indispensável examinar e interpretar a relação entre o processo criativo de fast fashion e slow
fashion junto à questão da sociedade e era atual, distinguindo os tipos de produção inseridos
em suas respectivas cadeias de mercado. Junto a isso, é necessário fundamentar quem é e
onde se encontra esse profissional criativo. E apontar segundo os Indicadores de Clima para a
Criatividade (BRUNO-FARIA; ALENCAR, 1997), e outras leituras de ambiente de trabalho,
fatores que influenciem ambos os processos de criação.

2 A MODA NA CONTEMPORANEIDADE
2.1 NOMENCLATURAS CONTEMPORÂNEAS

Para Bauman (2004), “pós-modernidade” se traduz através da palavra “sociedade”, ou


também em um tipo de condição humana. É possível observar que o homem inserido na pós-
modernidade está constantemente desmontando tudo ao seu redor sem nenhuma perspectiva
de permanência. Com isso, chega-se ao termo modernidade líquida. Ela traduz uma metáfora
para explicitar uma sociedade que também é incapaz de manter sua forma. A força da
destruição criativa está em evidência, isto porque o homem cria com o intuito de refazer o seu
espaço. A desconstrução é com o propósito de fazer o mesmo no futuro, ou em nome da pura

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produtividade. (Ibidem, 2004). Sendo assim, a vida social permanece em constante


movimento, com sua essência flexível e volátil (PALLARES-BURKE, 2004).
Para Anderson (1999), a expressão pós-modernidade trata-se de um recorte temporal.
A explicação desse termo tem no seu significado na relação direta com a era da modernidade.
Para ele, o moderno “[...] é sempre em princípio o que se deve chamar um presente absoluto,
ele cria uma dificuldade peculiar para a definição de qualquer período posterior, que o
converteria num passado relativo” (ANDERSON, 1999, p. 20). Essa leitura relaciona essa era
à Moda, já que a questão levantada é a de que o pós-moderno é tão mutável que ocupa mais
de um período ao mesmo tempo (Ibidem), como é o caso de alguns momentos da Moda. Um
exemplo dessa dualidade é a passagem do prêt-à-porter1 para o fast fashion e slow fashion.
Lipovetsky (2004) defende a ideia de que a pós-modernidade foi um período de
transição e que a sociedade já não se encontra inserida nele. No final dos anos 70, a ideia
dessa nova era surgiu com o movimento de libertação do indivíduo, onde o homem se
questionava sobre seu papel no social e coletivo. Assim, a valorização da autonomia e o culto
à felicidade individual ficaram em evidência. E com isso, sustenta-se a ideia de que a força da
renovação constante de ideias do homem esteja transformando a pós-modernidade em um
lugar do passado. Começa-se a lidar com a hipermodernidade, termo que explicita uma
sociedade que era antes focada no futuro e que agora desloca seu centro de gravidade
temporal para o presente. Pode-se notar essa diferença claramente quando o processo da
Moda passou do prêt-à-porter para o fast fashion, abordado mais adiante. Essa mudança na
criação dá-se pelo fato de que a hipermodernidade não deixa alternativas a não ser acelerar
cada dia mais para que o homem não seja ultrapassado pela própria evolução (Ibidem).

2.2 O CONTEXTO ATUAL DA MODA

Ao definir a Moda como uma corrente que segue as transformações antropológicas, é


natural aplicar a característica mutável do homem a esse fenômeno. Com isso, pode-se dizer
que a história da Moda é caracterizada por um sistema em constante desenvolvimento.
O recorte da Moda abordado será da ruptura do período chamado “Moda de Cem
Anos”. Essa expressão aborda o período histórico de meados do século XIX até a década de
1960, época na qual o fenômeno foi denominado Moda Moderna (LIPOVETSKY, 2009). Essa

1Expressão
lançada na França em 1949 por J. C. Weill, que é a tradução da fórmula americana ready to wear.
(LIPOVETSKY, 2009)

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era teve como pontos principais a Alta Costura2 em contraponto com a novidade da confecção
industrial (Ibidem). Durante essa era, a moda3 era ditada de maneira piramidal, onde a parcela
mais poderosa da sociedade, consumidora e adepta à Alta Costura, servia de parâmetro para
uma produção em massa – facilitada graças à Revolução Industrial – que tinha como objetivo
produzir peças com referências estéticas próximas às apresentadas pelos grandes couturiers4.
Na década de 1960, uma ruptura pode ser percebida no caminhar que a Moda levava
até então. A Moda de Cem Anos que estava chegando a um fim já havia colocado em prática
a produção serial industrial, os lançamentos de moda em temporadas pré-definidas e até a
produção das roupas por personagens considerados criadores profissionais (PEREIRA, 2003).
Porém, nessa época o homem passava por um período de grandes mudanças onde o
questionamento pelo seu papel no coletivo era evidente e com isso, a Moda se articulava para
traduzir essa passagem através da sua própria linguagem dentro do sistema criativo.
Os valores individualistas tiveram seu reflexo no meio da Moda através do surgimento
do prêt-à-porter. Para traduzir o zeitgeist5, o novo formato propunha a produção industrial e
propagação de roupa acessível a todos os interessados (PEREIRA, 2003). Mas a sua grande
mudança foi que a partir de então, o processo criativo era focado em criar um produto final que
iria ser popularizado pela interpretação de cada indivíduo consumidor. Com isso, tem-se:

De um lado, fim do polo sob medida e da moda de dois patamares sob o


primado da Alta Costura; de outro, generalização do prêt-à-porter e
disseminação dos polos criativos – assim se pode resumir
esquematicamente a transformação do sistema da moda. (LIPOVETSKY,
2009, p. 130)

Mas assim como a pós-modernidade foi tratada por alguns pensadores como um
período de transição, é válido salientar que a Moda também estava passando por esse mesmo
período de ligação entre duas correntes. Logo, com esse novo quadro no cenário da Moda e
suas constantes intervenções no processo criativo, era de se esperar que a dinamização da
cadeia criativa apresentaria a nova discussão da Moda: o fast fashion e o slow fashion.

3 A DUALIDADE DA MODA

2Expressão cunhada em meados do século XIX em referência inicialmente ao trabalho de Charles Frederick
Worth (1825-1895). Hoje, a Alta Costura é uma marca controlada e legalmente protegida que pode somente ser
utilizada pelas grifes que obtiveram essa designação pelo Ministério da Indústria Francesa. (Fédération Française
de la Couture du Prêt-à-Porter des Couturiers et des Créateurs de Mode, 2015)
3Passa-se a utilizar também o termo moda com m minúsculo para distinguir o fenômeno (Moda) da rede de

tendências que está em voga em um determinado momento (moda).


4Termo utilizado para designar os criadores que trabalham dentro do domínio exclusivo da Alta Costura, nomes

como Christian Dior e Yves Saint Laurent são exemplos de grandes couturiers da história da Moda.
5 Define o espírito de um período particular da história, como mostrado pelas ideias e crenças da época.

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3.1 O FAST FASHION

O fast fashion é um sistema que começou a se expandir a partir dos anos 1980, tendo
como objetivo potencializar ainda mais a competitividade e rotatividade dentro da cadeia de
produção de moda (CAETANO, 2013). Sendo um processo que tem como principal faceta sua
rapidez industrial, o fast fashion tem o compromisso de produzir o que o seu consumidor
deseja no presente momento (CIETTA, 2010), fortalecendo o pensamento contemporâneo de
trazer o presente absoluto ao indivíduo.
Com a demanda do consumidor final cada vez mais imediata, alguns ajustes na
cadeia criativa tiveram que ser feitos. Um dos mais notáveis é a transformação do calendário
de moda. Antes constituído por duas coleções anuais, hoje é esperado a entrega de três a
cinco coleções de “meia estação” para o público, forçando uma pressão sobre os fornecedores
que devem entregar em um espaço curto de tempo o que antes era esperado com um
intervalo maior (TYLER, HEELEY e BHAMRA, 2006 apud. BHARDWAJ, FAIRHURST, 2009),
mas principalmente para a própria equipe de criação, também diretamente atingida por essa
diminuição de tempo para a elaboração das coleções. Essa ânsia por novidades enfatiza a
leitura da Moda sobre a necessidade de satisfazer o estilo de vida do consumidor atual, que
está em uma busca de informação de moda que seja compatível às suas ocasiões específicas
(BHARDWAJ, FAIRHURST, 2009) e à sua personalidade multifacetada.

3.2 O SLOW FASHION

Em oposição a essa aceleração criativa e industrial, entra em vigor o conceito de slow


fashion para alicerçar os pensamentos de quem não se encaixa com os desejos apresentados
à outra esfera. Kate Fletcher cunhou esse termo em 2007 ao traçar um paralelo entre a moda
sustentável e o movimento de slow food6, analisando as semelhanças em termo de processo e
produção (CATALDI, DICKSON, GROVER, 2010). O processo de slow fashion coexiste com o
fast fashion, porém, trazendo características opostas um ao outro.
O slow fashion é definido em algumas publicações como uma produção que não está
sob os ideais do modelo fast fashion e não responde à rapidez das mudanças das tendências
da moda (WATSON; YAN, 2013). Encontra-se também a definição de que o slow fashion é

6Termo utilizado para definir o movimento que enfatiza a produção conscientizada de alimentos, se aproveitando
de métodos de produção local, apoio aos menores produtores e uso consciente dos alimentos da estação (KAHN,
2009; apud POOKULANGARA, SHEPHARD, 2013).

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uma corrente que fortalece a conexão do consumidor com a roupa e os seus designers7
incluindo também os valores de comunidade e diversidade. Sendo assim, trata-se de um
movimento que valoriza o esmero, a qualidade e o pensamento em longo prazo
(JOHANSSON, 2010). Essa forma de cadeia atinge o pensamento criativo no momento em
que o estilista se encontra em uma nova perspectiva: primeiramente, ele deve estar atento em
oferecer opções que o cliente entenda ser um novo modelo de agir em relação ao consumo, e
com isso, o profissional deve analisar a relação do seu produto dentro da cadeia da Moda com
os sistemas sociais e econômicos atingidos (LIMA, 2013).
Traçadas as características iniciais das duas vertentes da Moda atual, já é possível
visualizar que ambas as cadeias tem o processo criativo afetado diferentemente. Portanto,
chega-se enfim ao aprofundamento no processo criativo das manifestações da Moda atual.

4 A ANÁLISE DO PROCESSO CRIATIVO


4.1 FATORES DO AMBIENTE DE TRABALHO

O olhar sobre a Moda como produção artística mostra que o estímulo para a
criatividade se torna fundamental para um bom resultado. Ao estimular a criatividade, é
notável o impacto nos seus profissionais, já que se o mesmo não estiver inserido em um meio
que valorize a produção criativa, seus esforços podem encontrar obstáculos que
comprometam o saldo final (STEIN, 1974, apud. ALENCAR, 1998). Inserido na cadeia de fast
fashion, o profissional já está exposto a um ambiente que tem como costume a expectativa de
um produto final com características de baixa qualidade, sobretudo em relação ao acabamento
(LECLERC, 2014). Com isso, a tentativa de estudo para a melhoria dessa propriedade deixa
de ser prioridade quando a questão do retorno de resultado imediato está em evidência.
Em contraponto ao pensamento imediatista, o slow fashion aparece como uma
corrente de um novo pensamento. Esse sistema não tem uma relação exclusiva com o tempo.
A palavra slow remete à atenção que é colocada em cada desenvolvimento, não
necessariamente sendo sempre um processo mais demorado (POOKULANGARA;
SHEPHARD, 2013). O principal é que a cadeia é favorecida uma vez que os profissionais
debatam mais sobre cada produto. Esse movimento permite uma interação maior entre
estilista e fornecedor, fornecedor e produto, produto e consumidor (FLETCHER, 2007).
Com isso posto, é correto afirmar que ao ignorar o potencial para a iniciativa e a
inventividade, estimula-se ainda mais a dependência e a passividade (ALENCAR, 1998). Isso

7A palavra designer aqui tem a função de nomear os profissionais da Moda, principalmente os estilistas.

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ocasiona um resultado negativo ao levar em conta o significado fundamental da Moda, onde a


leitura atenta do ser é primordial para sua essência. Porém, deve-se salientar que o processo
criativo sofre influência por alguns fatores pré-determinados. Segundo o modelo apresentado
por Martins (1987), a proposta de “Missão e Visão” afeta o ambiente criativo. Esse tópico
traduz o entendimento da pessoa criativa em relação à visão, missão e valores da organização
e o quanto isso é transformado em objetivos individuais e coletivos (MARTINS;
TERBLANCHE, 2003). No campo da Moda, pode-se visualizar que entre os dois expoentes
estudados há um abismo de valores passados para o indivíduo criativo. No fast fashion o meio
da rapidez econômica empurra o profissional em direção a uma cultura homogênea em
relação ao pensamento coletivo, o que acaba por acarretar em um processo criativo formador
de clones e limitador de uma perspectiva de longo prazo (JOHANSSON, 2010).
Nesse modelo, o ambiente externo determina o nível de foco em participantes internos
e externos do sistema e também a percepção dos empregados nos efeitos do envolvimento
com a comunidade. Analisando o processo de criação dentro do slow fashion, um dos
principais pilares é a questão de “Think globally, act locally - Pense globalmente, atue
localmente” (CLARK, 2008). Essa teoria defende que o sistema de criação deve tomar uma
abordagem local em toda cadeia, desde a elaboração da ideia à produção. Sendo assim, no
slow fashion, o primeiro passo do processo criativo já está inserido em uma reflexão do
panorama geral da ação do designer. É necessário pensar em um sistema que contenha
considerações de sustentabilidade, equidade, desperdício mínimo, cadeia de produção em um
ciclo fechado e economia local priorizada (LEONARD, 2009 apud. JOHANSSON, 2010).
Já no fast fashion, a estrutura externa demanda uma gestão de abastecimento e
técnicas que promovam um encurtamento do tempo de espera entre o designer e o
consumidor (LECLERC, 2014). Aqui, o slow fashion e o fast fashion tem uma similaridade:
ambos observam a cadeia geral do seu sistema durante o processo criativo. O primeiro,
notando as consequências que suas decisões causam, e o segundo para buscar soluções
para diminuir o tempo de entrega da ideia inicial até o cliente em forma de produto final.

4.2 INDICADORES DE CLIMA PARA A CRIATIVIDADE

O desafio cotidiano de uma organização criativa é a abertura de espaço para a


criatividade. Devido ao atual contexto globalizado altamente mutável, cada vez mais acelerado
e imprevisível, é notável o quanto a exigência de novas ideias e soluções são fatores em alta
demanda (BRUNO-FARIA; ALENCAR, 1997).

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Porém, essa leitura de fatores socioambientais é relativamente recente quando se


trata do estudo sobre criatividade no meio corporativo. Com isso, um instrumento desenvolvido
para analisar os estímulos e barreiras para a criação no ambiente de trabalho serve de apoio
para a realização do paralelo entre fast fashion e slow fashion. Denominado de Indicadores de
Clima para a Criatividade, ICC, (BRUNO-FARIA; ALENCAR, 1997), é utilizado apresentando
três fatores favoráveis e três fatores desfavoráveis em relação ao processo criativo.

4.2.1 FATORES FAVORÁVEIS

O profissional criativo deve ser analisado não como um ser isolado, mas sim como um
indivíduo inserido no seu tempo e junto aos seus contemporâneos. Deve-se entender que o
contexto no qual o estilista está atuando afeta diretamente seu processo criativo, já que esse
tempo e espaço passam a fazer parte do seu produto final (SALLES, 2012). Portanto, nessa
seção a análise a ser feita é se o fator considerado favorável por Bruno-Faria e Alencar
(1997), ainda continua positivo quando transportado para essas duas esferas da Moda.
A “Liberdade de ação” é o primeiro fator favorável a ser analisado. Segundo Bruno-
Faria e Alencar (1997) esse tópico analisa a possibilidade de agir de forma diferente dos
profissionais ao redor. Para o profissional do fast fashion, essa perspectiva de individualidade
se torna mais difícil devido ao contexto no qual ele se encontra. O fast fashion é um sistema
sólido em padrões que são utilizados há um tempo e com isso, suas ações já são pré-
moldadas. Isso faz parte de uma das características do fast fashion: a sua alta previsibilidade,
já que o que está sendo vendido já foi decidido pela demanda do consumidor (CIETTA, 2015).
Na esfera do slow fashion, a possibilidade de o designer ser criativo enquanto
aproveita o seu processo de criação é um dos pilares que sustentam o fenômeno. Com isso, o
esperado é que haja uma diversidade de moda no produto final (JOHANSSON, 2010). Na
sociedade na qual os dois elementos estão inseridos, é natural os estilistas serem
influenciados por dados externos de maneira igual. Porém, o diferencial é que dentro do slow
fashion, o caráter de cópia não é valorizado, e sim o cultivo de um processo criativo mais
profundo onde o profissional se capacite para desenvolver algo que traduza o tempo de uma
maneira original e não apenas reproduzindo o que é esperado dos consumidores (Ibidem).
O segundo fator favorável dos ICC é o “Incentivo a ideias novas”. Sendo uma
progressão do primeiro item, nesse o foco é na produção de novas ideias independentemente
das ações ao redor do profissional. Ou seja, a ação do próprio designer deve ser efetiva em
relação a algumas demandas, sendo elas: a contribuição para o aumento de alternativas que

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sejam praticáveis de maneira técnica e econômica, a interferência no âmbito das visões de


mundo possíveis a fim de afetar o cenário existente, a definição de resultados e meios para
alcançar essas metas (MANZINI; VEZZOLI, 2008 apud. LIMA, 2013). Essas tarefas tornam-se
limitadas no momento em que o designer oferece soluções que considere melhores que as já
apresentadas. Porém, ao mesmo tempo em que a análise em relação ao sistema econômico e
social deve ser feita, não é viável tomar uma postura radical, já que é necessário agir em
relação a um sistema e sua demanda já definida (LIMA, 2013).
As ideias de cada fenômeno aqui estudadas devem ser compatíveis com a visão dos
mesmos. Dentro do slow fashion, esperam-se novas soluções: na questão da durabilidade do
produto, já que se espera que o mesmo dure cada vez mais – indo na contramão da
característica de descarte do fast fashion, aonde a rapidez da troca de produto vai de encontro
com a as identidades temporárias do consumidor hipermoderno (JOY et al., 2012) –; no
aprimoramento do impacto social do qual o processo criativo faz parte; e também na exigência
do conhecimento do ciclo do produto, da sua origem ao seu descarte (JOHANSSON, 2010).
Já no fast fashion, a demanda gira em torno de aperfeiçoar o tempo em que o produto
chega ao consumidor a fim de estar de acordo com o timing da tendência atual (CAETANO,
2013). Além da velocidade esperada nesse momento, a gerência da cadeia de produtividade é
um fator importante quando se trata do fast fashion (CIETTA, 2010, apud. CAETANO, 2013).
Portanto, as soluções envolvem de fato a rapidez na própria cadeia criativa. Quanto mais
rápido o produto estiver com o consumidor, mais eficiente será o retorno para a organização.
E o terceiro fator favorável é a “Disponibilidade de recursos materiais”, explicado pelos
ICC com o significado de posse dos recursos necessários para a realização do trabalho.
A premissa do slow fashion é a de focar em cada etapa dentro do processo criativo, e
com isso, chega-se a etapa inicial desse procedimento: o estudo do material. O profissional
tem como pré-requisito o entendimento da movimentação do material dentro da cadeia. Isso
quer dizer que ele deve ter a preocupação em saber que produto está sendo usado, de onde
veio e qual é seu futuro. O slow fashion gira em torno da sustentabilidade no sentido de não
utilizar nada em excesso e sim, tudo de forma balanceada (WATSON; YAN, 2013).
Por conta dessa prudência, é possível afirmar que a disponibilidade de recursos
materiais nessa metodologia de criação será sempre positiva já que a mesma se planeja de
acordo com os materiais disponíveis e adequados, e não da maneira contrária.
No fast fashion, a postura adotada é proporcionalmente inversa à do sistema
apresentado anteriormente. Tem-se aqui uma relação linear em face à cadeia produtiva, ou
seja, o pensamento desconsidera a propriedade cíclica da Moda. Com isso, o ciclo de vida do

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produto torna-se um sistema em crise já que estamos em um sistema global finito (LEONARD,
2009). O processo em relação aos materiais gira em torno da questão “que tipo de produto
pode ser comprado?” em vez de “que tipo de produto é necessário?” (ABRANTES, 2004) e
com isso, é raro no método de criação o questionamento de onde aquele material veio.
É um fato que a Moda abraça a obsolescência como uma das suas principais
filosofias (ABRAHAMSON, 2011 apud. JOY et al., 2012), porém, também é um fato o quanto o
fast fashion é o ápice dessa característica. Com isso, esse item dos ICC torna-se desfavorável
no momento em que ele é inserido no contexto desse sistema. Durante o processo criativo no
fast fashion, um exemplo comum encontrado é a burocracia envolvendo o esgotamento do
material utilizado antes do mesmo ter entrado em uma produção maior.

4.2.2 FATORES DESFAVORÁVEIS

O tempo pode ser considerado como um sintetizador do processo de criação, já que o


mesmo é traduzido como uma sobreposição de camadas de registros criativos (SALLES,
2012). E com isso, o regime do presente absoluto apresentado pela sociedade atual é um dos
fatores que mais influenciam os dois movimentos aqui estudados.
Com esse parâmetro em foco, chega-se ao primeiro fator desfavorável de acordo com
os obstáculos à criatividade dos ICC: “Excessos de serviço e escassez de tempo”. O estudo
aponta esse item como sendo um indicador da quantidade demasiada de trabalho em
oposição à falta de tempo para realizá-lo (BRUNO-FARIA; ALENCAR, 1997). Deve-se
relembrar que a questão do tempo no slow fashion diz respeito à liberdade que o profissional
pode demorar em cada produto que está sendo feito, por ter como prioridade a atenção em
todos os fatores que agregam o mesmo. Ainda que não seja necessariamente mais demorado,
o processo criativo do slow fashion traz consigo essa emancipação em relação à aceleração
do tempo visto na contemporaneidade e, principalmente, no fast fashion.
A pressão exercida sobre os profissionais criativos resultou em manifestações da
própria cadeia criativa. Como é o caso da marca Viktor & Rolf, que na temporada de
outono/inverno 2008 desfilou uma coleção denominada "NO". Ela tinha como tema um apelo
contra o ritmo acelerado da indústria da Moda, onde eles deixavam claro a impossibilidade em
serem inovadores naquele ritmo (BUMPUS, 2008). Os estilistas expuseram sua preferência
em diminuir o ritmo de criação, o que afetaria diretamente na qualidade dos produtos
desenvolvidos e na escolha dos consumidores ao serem direcionada a ofertas melhores
(FURUMAN. RYDBERG, SWANSTEIN, 2009; apud JOHANSSON, 2010).

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A estilista Anna Bonnevier, que possui uma marca homônima, chegou a trabalhar em
uma grande empresa de fast fashion antes de decidir criar sua empresa voltada ao slow
fashion. Anna optou por se libertar do calendário de moda no formato tradicional e decidiu criar
um formato de longo prazo para as suas peças. A solução encontrada para um dos
lançamentos foi uma coleção de oito peças em jersey preto que tinha como foco traduzir um
produto atemporal e que se adaptasse às tendências que são inevitavelmente ditadas pela
moda (STROMQUIST, 2008).
A diferença dos dois modelos de trabalho em relação ao tempo é clara. Em relação
aos ICC, o fast fashion realmente tem o tempo como um obstáculo a ser vencido, o que é um
prejuízo quando avaliado o processo criativo em si. E já no slow fashion, a liberdade de prazos
e calendários proporciona uma relação mais saudável em relação ao fator aqui apresentado.
Para o segundo fator desfavorável do ICC, “Bloqueio a ideias novas”, tem-se a
discussão de quando o comportamento de profissionais no ambiente de trabalho tende a inibir
a expressão do potencial criativo dos demais. Para essa análise, alguns pontos são expostos:

Esses fatores inibidores são evidenciados por bloqueio das ideias pela
chefia imediata, soluções dos chefes serem consideradas as melhores,
posse da ideia alheia como se fosse própria, chefia que receia ser
superada, ideia nova no grupo vista como exibição, falta de liberdade para
decidir como realizar as tarefas e apego aos cargos em detrimento às
metas organizacionais. (BRUNO-FARIA; ALENCAR, 1997, p. 90)

Relacionando essas problemáticas ao slow fashion e ao fast fashion, deve-se concluir


que esses fatores podem afetar de maneira igual os dois sistemas. Por se tratar de índices
sobre a relação interpessoal no meio coorporativo, entende-se que a chance de se tornar um
ponto negativo no processo criativo aconteça de maneira aleatória, já que para isso, os fatores
característicos de cada sistema não são fatores diretamente influenciáveis.
E por fim, para o terceiro fator desfavorável do ICC: a “Resistência de ideias novas”.
Diferentemente do primeiro fator desfavorável, onde as ideias podem surgir, mas são barradas
para que não sigam adiante, esse tópico representa a dificuldade de elaborar uma nova ideia,
justamente pela cultura de acomodação dos profissionais.
Ao discorrer sobre esse fator, deve-se salientar o momento no qual o fast fashion se
estabeleceu. Vive-se um momento de concentração e celebração de roupas, onde a Moda
com “m” maiúsculo não tem tanto valor. O fast fashion trouxe à tona uma era onde a Moda não
está mais em contato com a sociedade, mas as roupas estão (FAIRS, 2015). E por mais que
isso possa soar negativo, deve-se analisar como uma boa ocasião para repensar a Moda.

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Com isso exposto, entende-se que o fast fashion ocupa uma posição no mercado da
moda bem estabelecida, onde as atitudes tomadas já estão bem definidas ao decorrer de toda
a cadeia criativa. Sendo assim, isso pode acarretar uma acomodação em relação às buscas
de soluções para transformar uma linha de raciocínio criativa.
Retomando o raciocínio sobre ser um bom momento para repensar a Moda, o slow
fashion abre essa oportunidade ao trazer a contracorrente, o pensamento de reflexão sobre as
novas possibilidades. Ao ir contra a força da moda atual que demanda uma mudança rápida
nas tendências (WATSON; YAN, 2013), esse sistema abre a discussão sobre como lidar com
a ideia de roupas dentro do fenômeno da Moda (FAIRS, 2015). Portanto, pode-se afirmar que
esse fator desfavorável é um incentivo à criatividade quando colocado nesse sistema.

4.2.3 ANÁLISE DO RESULTADO

Com os dados da análise, foi possível chegar à seguinte observação dos sistemas:

Tabela 1 – Tabela de análise dos dados comparativos


Fast Fashion Slow Fashion
Fatores Favoráveis
I. Liberdade de ação Reduzida devido à solidificação do É o pilar do sistema de slow fashion,
sistema de fast fashion, que pede por que clama por uma diversidade de
ações já pré-determinadas moda no produto final
II. Incentivo à ideias Esperam-se novas soluções: Esperam-se novas soluções:
novas aperfeiçoamento do timing de durabilidade do produto,
chegada do produto final ao aprimoramento do impacto social e
consumidor e rapidez na cadeia conhecimento do ciclo do produto
criativa
III. Disponibilidade de O processo criativo prioriza o tipo de O planejamento sustentável do uso da
recursos materiais produto que pode ser comprado e matéria prima é essencial durante o
não o que é necessário processo criativo
Fatores Desfavoráveis
I. Excessos de serviço e Profissionais da área demonstram a O sistema possui autonomia do
escassez de tempo pressão sofrida devido a calendário de moda do fast fashion e
impossibilidade de serem inovadores as coleções são desenvolvidas para
em um ritmo extremamente durarem a longo prazo
acelerado
II. Bloqueio a ideias novas Por se tratar do comportamento dos Por se tratar do comportamento dos
profissionais no ambiente de profissionais no ambiente de trabalho,

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trabalho, há a chance de acontecer há a chance de acontecer


III. Resistência a ideias O fast fashion faz parte de um O slow fashion abre a oportunidade de
novas movimento onde a roupa está mais trazer o pensamento sobre as novas
em contato com a Moda do que a possibilidades da Moda
sociedade, o que trouxe uma
acomodação em relação à inovação
Fonte: Autora (2015)

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho abordou a questão da Moda através de um recorte temporal. O


aprofundamento deu-se por meio da análise entre a passagem da modernidade – pós-
modernidade – contemporaneidade, enquanto paralelamente a Moda transitava entre Moda
dos Cem Anos – prêt-à-porter – fast-fashion/slow-fashion. A partir desse recorte, o foco
principal foi o estudo do processo criativo do slow fashion e do fast fashion utilizando
principalmente o método de análise dos ICC.
A análise do profissional criativo inserido na contemporaneidade destacou um
indivíduo com um poder de destruição criativa aguçado, já que o mesmo cria com o intuito de
refazer o seu espaço e acompanhar as mudanças da sua própria personalidade. Após
contextualizar esse indivíduo, discorreu-se sobre os dois fenômenos mais atuais da Moda: o
slow fashion e o fast fashion. As diferenças entre o processo criativo entre os dois puderam
ser vistas a partir da explicação do que de fato é cada um desses movimentos. O slow fashion
tem como mote o pensamento global do processo de criação, ou seja, é necessário entender e
se atentar a toda cadeia criativa ao executar a ideia desejada. Já o fast fashion tem como
principal pensamento durante o processo criativo o compromisso de produzir o que o seu
consumidor deseja no momento, o que vai de encontro com o indivíduo contemporâneo que
tem o presente absoluto como uma das suas principais características.
Com isso posto, foi possível observar um panorama do processo criativo de ambos na
Tabela 1 da seção 4.2.3, onde as diferenças entre o slow fashion e o fast fashion ficam
evidentes. É imprescindível analisar esses resultados junto à uma visão da sociedade de
consumo atual, onde o ritmo cada vez mais acelerado faz com que a maioria das atividades
diárias sejam terceirizadas, desde da alimentação à moda em si. Essa terceirização do
consumo vai de encontro com a rapidez do fast fashion, um sistema o qual o profissional se
adequa diariamente às solicitações do cliente final, muitas vezes produzindo alguma ideia com
a qual ele não compactue.

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É cada vez mais evidente que o ritmo acelerado que o fast fashion dita para os
profissionais nele inserido traz um resultado de desgaste; vide a saída de Marc Jacobs, Raf
Simons, Alber Elbaz das grifes na qual trabalhavam que se tratavam de maisons que adotam
um calendário extremamente atribulado. Essa pressão em entregar inúmeras coleções –
característica vinculada ao fast fashion – fez com que até as grifes que tinham mais liberdade
para apresentar o trabalho final fossem obrigadas a entrar no ritmo imposto pelo mercado a
fim de não perder para as marcas que atendiam essa demanda.
Sendo assim, a partir do momento que o processo criativo do fast fashion se torna
uma reflexão predominantemente sobre as roupas que devem estar à disposição do
consumidor, a questão da Moda se perde como leitura da sociedade. A tradução do ser como
indivíduo separado de uma grande massa sempre fez parte do processo criativo da Moda, se
destacando assim da visão do mercado de demanda apenas por demanda. E isso é o que se
tem visto na retomada do slow fashion, o pensar no porquê de cada ação e a prática de
acordo com a leitura de um pensamento atual, o de conscientização geral. Esse retorno da
Moda individualizada renova a linha de raciocínio, como se a partir do ápice do fast fashion um
novo sistema renascesse para a observação da sociedade através de um novo viés.

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Fashion Film como imitação do gesto


Autora: Salma Soria1 (UVA)

salmasoria@gmail.com

Resumo: Grande parte da estrutura narrativa dos principais curtas metragens de moda são
constituídos por danças que substituem os diálogos. Exceção à regra, o curta metragem Cover
Girl, lançado no site da Vogue America apresenta a atriz Lena Dunham e o editor de moda
Hamish Bowles em batalha de voguing. Entram em cena a diegese, a busca pela aparência ideal
e a imitação do gesto transformando a história audiovisual em realidade verossímil.

Palavras-chave: Fashion film, Estrutura Narrativa, Vogue

Abstract: Narrative structure of the short fashion films are made up of dances that replace the
dialogues. Cover Girl film released on the website of American Vogue presents the actress Lena
Dunham and Hamish Bowles in voguing battle. The search for the ideal appearance, diegesis
and imitation of the gesture transforming the story.

Keywords: Fashion Film, Narrative structure, Vogue

                                                                                                                       
1
 Pós-­‐graduação  em  Roteiro  para  Cinema  e  Tv  na  Universidade  Veiga  de  Almeida.  Trabalho  desenvolvido  
com  a  orientação  da  Profª  Drª    Sabine  Mendes  Moura  
 

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Introdução
Fazer filmes de moda é um dos grandes acontecimentos da indústria. Quase todas as grandes
marcas contratam renomados diretores de cinema e arte para convergirem seu diálogo para o
campo da arte fílmica que revelam a aceitação de estéticas que no passado eram ignoradas pelo
high fashion sendo inseridos com a necessidade de referenciar a realidade do pluralismo de
massa. Entretanto, há algumas questões a serem perguntadas nessa categoria.

Hoje, até mesmo a revista de moda produz conteúdo de cinema convergindo seus leitores em
assíduos expectadores, tal como os curtas-metragens produzidos pela revista Vogue. Um
fashion film remonta a dimensão planar da fotografia de moda, porém, não se torna estática
como a foto. É toda uma ocorrência de sons, texturas e cores intensivas que ganham vida
própria e que contam uma história com início meio e fim. Posto isto, entende-se por fashion film
curta metragem que extrai sentidos do universo da moda como narrativa principal. Estaria a
moda segregando a si mesma no universo do cinema? Ou levando para o cinema aceitação do
filme de moda como gênero fílmico?

Para o roteirista Robert Mckee, os gêneros dos filmes (tais como comédia, drama, etc.) não são
estáticos ou rígidos e sim flexíveis e expansíveis (McKEE, 2013, p. 93).

Se a finalidade de um fashion film é divulgar seus novos produtos como objetivo principal o
consumo, estaria o fashion film no limiar da peça publicitária? Se boa parte dos curtas-
metragens de moda são divulgadas com danças e músicas próprias elas também alcançam o
status de um videoclipe?

Ainda que provocadoras, estas perguntas carecem de respostas em comum. A moda reflete
tendências antropológicas, sociológicas, ideológicas e políticas de cada época e a
experimentação fílmica fornece poderosos elementos que ajudam a revelar a síntese subjetiva
do que a moda se tornou. Subjetiva do ponto de vista da imposição. O espectador pode não
distinguir entre um filme e uma peça publicitária, mas talvez esse leitor (agora) espectador nem
se importe. Essas relações de subjetividade sempre foram retroalimentadas no campo das
revistas de moda. A cada mudança de estação, vemos que tão importante quanto a capa da
revista e seus editoriais são os anúncios publicitários que página a página possuem um objetivo
em comum: divulgar a última moda.

Nos últimos tempos a indústria incorporou os curtas-metragens em virtude da potência na


divulgação das redes sociais tendo a experimentação fílmica um grande aliado na obtenção da

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unidade artística/comercial de moda. A união de todas essas linguagens dá ao filme de moda um


produto atual na era das convergências.

A cultura da convergência pode ser definida como a coalizão entre as velhas e novas mídias, o
cruzamento da mídia corporativa e alternativa, onde o poder do produtor de mídia e o poder do
consumidor interagem de maneiras imprevisíveis (JENKINS, 2008, p.27).

As convergências nas relações de divulgação da última moda, peça publicitária, revistas de


moda, videoclipe, formas de se mostrar um filme leva a uma unidade que pode ser vista como
um filme experimental. Mas o que torna um filme experimental? Segundo Vanja Obad no artigo
How to understand experimental film (a cognitive approach) o filme experimental muitas vezes
testa nossa comunicação padrão e explora o potencial perceptivo quando os expectadores
devem lidar com uma ruptura da relação padrão (OBAD apud TURKOVIC, 2009). Na maior
parte das vezes a ausência de um diálogo verbal nos filmes impedem a construção de uma
ligação lógica entre os acontecimentos, motivo pelo qual a utilização dos recursos de edição
(som, luz e detalhes de imagem) completam a narrativa não verbal causando a ruptura linear de
acontecimentos.

Com a experimentação fílmica consolidada entre as casas de moda a narrativa desses encontros
visuais deixam para a expressão da dança a tarefa de ligação dos sentidos. Como dito
anteriormente, em determinados momentos os curtas assumem uma mistura de peças
publicitárias com vídeo clipes, agente responsável por difundir a massificação da cultura pop nos
anos 80 e 90. Os videoclipes estiveram lado a lado da moda na função de massificar modismos
e divulgar novas formas de comportamento.

Figura 1: abertura do curta metragem da Lanvin.


Fonte: youtube.com.

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Ao divulgar a roupa em corpos que apenas dançam, os fashion films podem associar o ato do
vestir a uma impulsiva e prazerosa diversão, eliminando a culpa do consumo.

Curta metragens que utilizam apenas música e dança em sua narrativa (disponíveis no
youtube.com ou showstudio.com):

Lanvin Fall 2011 Campaign Movie: a história consiste em modelos que dançam de frente para a
câmera em um quarto de hotel luxuoso. Participação especial do estilista Alber Elbaz que surge
no fim do vídeo também dançando.

Balmain x H&M: a história se passa num vagão de metrô conceitual em que os passageiros
promovem batalha de dança. O estilista da marca Olivier Rousteing é quem pilota o metrô. O
vídeo possui mais de seis milhões de acessos no youtube.

Tom Ford Womenswear Spring Summer 2016: Com participação especial de Lady Gaga, todos
os modelos dançam enquanto a coleção do estilista é desfilada.

Gucci the Cruise 2016 Campaign — A Short Edit: Dirigido por Glen Luchford, um grupo de
jovens dança em rodinha que assume tons alucinógenos.

Alexander Wang Winter 2015: dupla de dançarinas AyaBambi performam no vídeo de 15


segundos.

Nicopanda S/S 16: no vídeo de pouco mais de quatro minutos, um grupo de dançarinos
performam num galpão com as roupas da última coleção da marca.

Gisele Bundchen: No vídeo patrocinado pela loja de departamento H&M, Gisele atua como
cantora e deixa sua própria versão de Heart of Glass. A cada nova tomada, a top model surge
dançando com uma roupa de praia diferente.

A experimentação dos filmes tem fornecido boas informações de história da moda, tal como o
curta metragem Cover Girl, lançado em fevereiro de 2013 no site da Vogue americana. No curta,
a movimentação corporal dos atores é fundamental para contar a história da própria revista. A
corporalidade fruto da movimentação cênica provoca intrínsecas relações entre cinema e moda,
razão pela qual este curta será nosso objeto de análise, utilizando importantes bibliografias
fílmicas como estratégia de pesquisa.

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1. Voguing

A técnica de voguing foi bastante popularizada nos anos 80. Malcolm Maclaren gravou o single
Deep in Vogue. A capa do disco revelava os passos da dança. Dois anos depois Madonna
imortalizou a sua própria Vogue com passos que até hoje são reproduzidos nos clubes noturnos
mundo afora.

Com técnicas sofisticadas e elaboradíssimas, o objetivo do Voguing é imitar as poses das


modelos nas revistas. Há três formas de dançar o Voguing: Old Way, New Way e Vogue Fem.
Este último deve constar os elementos Hand Performance (movimento de mãos e braços), o
Catwalk (desfilar), Duckwalk (equilíbrio de ponta dos pés), Floor Performance (Joelhos, pernas e
costas no chão) e o Dip (apoio de braços)2. A dança é revisitada em Cover Girl, curta metragem
de quatro minutos e vinte e quatro segundos, dirigido por Henry Joost e Ariel Schulman que
apresenta a atriz e roteirista norte americana Lena Dunham, no papel dela mesma, em meio a
um dilema: ela deve posar para a capa da revista Vogue America, publicação de moda mais
importante do mundo, mas, após treinar no espelho do quarto, sentindo-se desajeitada para
aquilo, fica nervosa e trava: não consegue pensar em poses para o ensaio fotográfico.

Vestindo um conjunto de pijama branco com calça e blusa largos, deitada na cama e desolada, a
atriz liga para o editor de moda internacional da revista, Hamish Bowles, que a salva de um
acidente diplomático fashion.

Como num conto de fadas, Hamish surge no quarto de Lena, vestindo smoking, trench-coat
preto sobreposto nos ombros, camisa e gravata de borboleta branca. Nas mãos, um chapéu de
fedora preto.

Hamish parece tirar de seu fedora imagens icônicas de Vogue nas últimas décadas. Ensina para
a atriz algumas das principais poses: “Dovima segurando o guarda-chuva”, “Naomi como
Josephine Baker” ou “Cindy em traje de banho”. Hamish acelera o ritmo descritivo e quando
Lena percebe, os dois estão ensaiando as poses como se estivessem em Voguing. Logo, o curta
é tomado por imagens de arquivo da revista: o filme toca a representação visual do símbolo

                                                                                                                       
2
 https://en.wikipedia.org/wiki/Vogue_(dance)  

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Vogue assim como uma breve história da revista que hoje, além de ensinada, filmada e vestida,
pode ser dançada. Esse entrelaçamento nas relações que constroem o mundo dos personagens
e que ficam tão sensíveis aos olhos no cinema é o que Gérard Genette chamou, por meio do
universo literário (e que mais tarde o cinema adicionou para si) de diegese.

2. Diegese

O conceito de diegese dimensiona a parte narrativa não fílmica. O espectador também faz parte
da diegese, construindo um pseudo-mundo do qual ele participa e se identifica (AUMONT, 2003,
p.78). Dentro do conceito fílmico o espectador age sobre o filme, age com o filme e antes de
tudo, o filme age sobre o espectador (AUMONT, 2003, págs. 105 e 106).

O espectador-leitor assiste a cena e pode até não entender o diálogo que se passa inteiramente
em inglês e sem legendas em português, mas através da diegese, compreende que há a
iconicidade de uma mulher comum e sem glamour de moda: aquela que passa o dia de pijama,
cola recados pelos cantos do quarto e que diante de uma sessão de fotos para Vogue, quer que
tudo fique bem. Em Cover Girl, fazem parte da diegese: o quarto, a decoração, a apreensão ao
telefone nos personagens, os post-its colados na parede, os figurinos, as referências de imagem
formando elementos na construção do tempo e espaço da personagem e que auxiliam na
composição dos efeitos.

Na diegese também é preciso falar do significado Lena Dunham: atriz, roteirista e ativista
americana. Lena escreveu a série da HBO Girls e atualmente é uma das vozes do feminismo. De
rosto “normal” e acima do peso para os padrões hollywoodianos, Lena representa uma
considerável parcela de pessoas comuns.

“Se, na diegese, são as causas que parecem determinar os efeitos, na construção da


narrativa, são os efeitos que determinam as causas(...)Para retomar uma fórmula de
Gérard Genette, se a função de uma unidade diegética é aquilo para que serve, sua
motivação é o que lhe é necessário para dissimular sua função”. (AUMONT, 1994, p.
142).

A luz da diegese, o ponto alto do curta metragem é a possibilidade, dada pela Vogue, de uma
mulher normal tornar-se ícone de moda.

Diegese: padrão comum (causa) x ícone de moda (efeito).

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Na narrativa o ponto alto é a chegada de Hamish Bowles que retira Lena de um limbo fashion
existencial. A ação do padrão comum não é dissimulada, mas representada pela imagem de
Lena.

Narrativa: editor de moda que propõe (efeito) x o novo baseado no velho padrão de moda
(causa).

3.Tempo-espaço

Ao acessar o vídeo, o espectador de Vogue participa da subjetividade de ação no tempo. O curta


foi lançado no site oficial da Vogue America para promover a edição de fevereiro de 2014. O
material fílmico sobrepõe-se ao tempo.

O filme como objeto estaria no passado pela simples razão de que ele registra uma
ação já acontecida; por sua vez, a imagem fílmica estaria no presente porque
provocaria a impressão de acompanhar essa ação “ao vivo”. Tal formulação meio
esquemática mostra que, aparentemente, esses dois julgamentos sobre a realidade
cinematográfica não visam verdadeiramente à mesma realidade: a primeira fala da
coisa filmada, o segundo, da recepção fílmica (...) a imagem fílmica atualiza aquilo
que mostra (JOST & GAUDREAULT, 2009, p. 131).

O filme reproduz fotografias das décadas de 50 até os anos 2000, re-significando as posturas
corporais das modelos, projetando-as como possíveis objetos de dança.

As fotografias que mostram top models atuam na obra cinematográfica tanto quanto Lena e
Hamish: o recurso da fotografia de arquivo auxiliou o processo narrativo. A partir da recepção
dos atores diante das poses dois novos elementos se instauram na trama: o retorno do Voguing
e a busca pela aparência que mereça estar na revista.

A imagem cinematográfica, em compensação, quer consideremos ou não que


remeta a um momento passado da realidade (o tempo da gravação ou da filmagem),
é principalmente uma imagem marcante pelo fato de mostrar o processo narrativo se
realizando diante de nós. Ela toma tempo, em todos os sentidos do termo: o tempo
do fenômeno que ocorreu diante da câmera e também o tempo de sua restituição
(AUMONT, 1994, p.133).

Ao realizar inúmeras poses de top models, o esteriótipo da garota comum tenta igualar-se ao das
sofisticadas modelos, resultando na ordem estética do parecer. O sociologista Michel Maffesoli,
descreve em No fundo das aparências que a vida deve parecer para ser, nos colocando numa

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proposição que obriga a considerar o corpo e suas diversas aparências ordenando em círculos
toda a vida social, sendo o corpo como o centro do mundo (MAFFESOLI, 2009, p.137).

Lena precisa da pose ideal para ser aceita no mundo da Vogue ou pelo menos, não passar
vergonha. A revista, através de seu editor, lhe dá a oportunidade de conhecer as imagens
icônicas em troca do mise-en-scène que tornará o ensaio fotográfico em importante composição
de moda e como “quase tudo no cinema depende da arte da mise-en-scène” (AUMONT, 2003,
p.162), a desajeitada Lena e o sofisticado Hamish cumprem seus papéis ao lado das imagens de
estrelas da moda. A partir daí a essência do high fashion ganha sentido. Maffesoli chama esse
ordenamento de papéis, em paralelo com Max Weber, de teatralidade mundana numa ampla
existência social:

“A existência social e individual é uma sequência de figuras, de posturas, de gestos,


de configurações múltiplas, formando o que M. Weber chamava belamente
“constelação”. Metáfora que traduz bem seu aspecto móvel, brilhante e ordenado.
Ficando entendido que essa ordenação, à imagem da constelação celeste, de
estrelas muito diversas, integra tão bem o grande planeta, tanto quanto o menor
meteorito. Assim, no vasto jogo da teatralidade mundana, tudo é bom, cada elemento
tem seu lugar, e vale, ao mesmo tempo, por si mesmo e pelo conjunto que ele
contribui para criar”. (MAFFESOLI, 2009, p.139).

4. Imitação redentora

A imitação do gestual das top models gerou uma dança particular entre os atores. A gestualidade
é exaltada por diversas vezes até provocar no espectador-leitor a vontade de fazer o mesmo.
“As imagens fabricadas imitam mais ou menos corretamente um modelo (...) Sua função
principal é imitar com tanta perfeição que podem se tornar “virtuais” e provocar a ilusão da
própria realidade sem serem reais”. (JOLY, 2006, p.40). É esta imitação que sustenta a
característica inovadora da narrativa. Simmel no artigo intitulado de A moda fala sobre a
imitação:

“A imitação pode ser designada como uma herança psicológica, como a transposição
da vida do grupo na vida individual (...) Ela dá ao indivíduo a segurança de não estar
sozinho em suas ações e se apoia no exercício da mesma atividade até aqui
estabelecida sobre um sólido fundamento que a alivia da dificuldade de se sustentar
a si mesma (...) Quando imitamos, não apenas impelimos a exigência de uma
energia produtiva para o outro, mas, ao mesmo tempo, também a responsabilidade
por essa ação; assim, o indivíduo se livra do tormento da escolha, fazendo-a

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aparecer como um produto do grupo, como um recipiente de conteúdos sociais”


(SIMMEL, 2004, p.165)

A imitação salva a protagonista, entrando numa moeda de troca: para ser aceita, ela precisou
parecer com o gestual da Vogue, não importando que esse gestual tenha sido feito no passado.

Ao citar as lendas da moda, o editor Hamish Bowles desperta no espectador-leitor o alcance dos
ícones (quem acompanha a Vogue familiarizou-se com estes nomes), diferenciando o
espectador do não espectador de Vogue. Simmel afirma ser na diferenciação que os grupos
estão interessados: na separação entre os que estão na fração do diferente e daquele que não
estão. Seja pelo andar, tempo, ritmo dos gestos (2008, p.169). A principal revista de moda do
mundo não difunde apenas padrões de vestuário, mas também padrões de vida, cultura,
comportamento e atualmente, filmes de moda. Se a Vogue diz que é moda, está dito. Não há o
que resistir. Para Simmel a moda é aceita por ser suporte social:

A moda satisfaz uma necessidade de apoio social, ela leva o singular à via seguida
por todos, ela indica uma universalidade que reduz o comportamento de cada um a
mero exemplo. Ela também satisfaz, no entanto, a necessidade de distinção, a
tendência à diferenciação, à variação, ao destaque. Ela consegue isso, por um lado,
através da mudança de conteúdos que imprime à moda de hoje sua marca individual
em relação à moda de ontem e de amanhã, mas por outro lado, ainda mais
energicamente, pelo fato de as modas serem modas de classe, de as modas das
camadas mais altas se distinguirem daquelas das mais baixas e serem abandonadas
no momento em que essas começam a se apropriar daquelas (SIMMEL, 2008, p.
165).

O espectador, ao assistir o curta metragem, pertencerá a classe dos que assistiram Cover Girl,
um tipo de fashion film que pela ótica de Simmel, como vimos, é motivo de diferenciação.

5. A jornada da heroína

Joseph Campbell na obra O herói de mil faces aponta passos que levam a jornada do herói,
aquele que salva a história após passar por provações, redenções e alumbramentos. Esta obra é
clássica e de vital importância para a compreensão da narrativa. Campbell define em 12 passos
a jornada. No curta metragem Cover Girl é possível identificar alguns desses passos.

O herói é introduzido ao seu mundo comum (CAMPBELL, 1997): Lena está no quarto, de
pijamas e coloca um disco de vinil para tocar.

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Figura 2: A aparência da personagem.

Fonte: reprodução vogue.com.

Chamado da aventura: “O chamado sempre abre as cortinas do mistério da transfiguração”


(CAMPBELL, 1997, p.31).

A personagem passa batom diante do espelho, iniciando seu processo de transformação da


aparência. Em seguida, surge outro quadro com os dizeres “Vogue Apresenta”.

Figura 3: Ensaia poses desajeitada.

Fonte: reprodução vogue.com.

A recusa do chamado: “Aprisionado pelo tédio, pelo trabalho duro ou pela “cultura”, o sujeito
perde o poder da ação afirmativa dotada de significado e se transforma numa vítima a ser salva”
(CAMPBELL,1997, p.35).

Lena simula poses de moda. Depois de algumas tentativas atrapalhadas, a atriz percebe que
não terá sucesso na sessão de fotos. Isto é um fator importante na obra pois todo o
desdobramento cênico surgirá a partir desta recusa. Outro quadro interrompe a cena. Desta vez
com o título do curta: Cover Girl.

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Figura 4: Lena pede ajuda.

Fonte: reprodução vogue.com.

Auxílio sobrenatural: “O primeiro encontro da jornada do herói se dá com uma figura protetora
(...) que fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele
está prestes a deparar-se” (CAMPBELL,1997, p.39).

Insegura diante da sessão de fotos para a capa de revista, Lena liga para o editor de moda
Hamish Bowles, que prontamente surge no cenário e promete ajuda-la.

Figura 5: Treino Voguing.


Fonte: reprodução vogue.com.
A passagem pelo limiar: “Tal como a fumaça em elevação de uma oferenda, que atravessa pela
porta do sol, assim vai o herói, libertado do ego pelas paredes do mundo” (CAMPBELL, 1997,
p.50).

Hamish pensa em poses de moda que Lena pode usar durante a sessão, para isto, ela precisa
imitá-lo. Lena começa a absorver os conhecimentos. Não tem medo do ridículo. Entra então o
que Campbell chama de barriga de baleia “O herói, em lugar de conquistar ou aplacar a força do
limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão que morreu” (CAMPBELL,1997, p.51). Ao
descobrir poses novas e repletas de atitude, Lena dá adeus a garota anti-moda.

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Figura 6: A garota da capa.

Fonte: reprodução vogue.com.

Benção última: O herói se sobrepõe aos demais e ganha uma recompensa (CAMPBELL, 1997,
pags.93-95).
O curta termina com a atriz na capa da Vogue, ganhando a benção do mundo da moda. Na
capa, Lena ajeita a gola como se causasse algum desconforto. O olhar parece perdido e a outra
mão na cabeça. O espectador-leitor pode extrair da imagem a pergunta que talvez a atriz e a
revista quisesse que o público captasse: o que estou fazendo aqui? A mulher atrapalhada é a
última moda, segundo a capa da Vogue.

6. Realidades verossímeis

A gestualidade identificada pelo público de moda, resultando no Voguing, expõe ao público a


possibilidade de imitar não apenas os gestos das modelos referenciadas nas imagens
fotográficas, mas a dança de Lena e Hamish em Cover Girl.

 
Figura 7: início do tutorial.
Fonte: vogue.com.
Diante do sucesso do curta metragem, dias após o lançamento do vídeo, a plataforma digital da
revista lançou outro conteúdo audiovisual para seus espectadores-leitores. Desta vez o tutorial
ensinando como fazer a dança de Lena Dunham em Cover Girl.

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Figura 8: o passo Naomi.


Fonte: vogue.com.
                                                                   

O tutorial, que teve a coreografia criada por Celia Rowlson-Hall termina com a exaustão da
modelo, após fazer todos os passos da coreografia, joga-se no chão, ofegante: uma realidade
bastante verossímil para qualquer pessoa, o que aproxima o espectador da realidade diante da
obra cinematográfica.

“A   realidade   afílmica,   isto   é,   a   realidade   “que   existe   no   mundo   habitual,  


independentemente   de   qualquer   relação   com   a   arte   fílmica”   é   um   mundo  
que  pode  ser  verificado  (dependendo  dos  conhecimentos  do  espectador  do  
universo  espaço-­‐temporal  em  que  vive),  enquanto  o  mundo  da  ficção  é  um  
mundo  em  parte  mental,  que  tem  suas  próprias  leis  (GAUDREAULT  &  JOST  
apud   SOURIAU).   De   maneira   que   o   que   sucede   em   tal   ou   qual   narrativa  
fílmica   e   que   nos   parece   verossímil   pode   parecer   absurdo   em   outro”  
(GAUDREAULT  &  JOST,  2009,  p.  49).                                                            

O espectador-leitor pode levar a dança para casa e reproduzi-las como uma espécie de
diferenciação em conhecimento de moda. A revista oferece a oportunidade de parecer
dançarino, podendo levar consigo os movimentos corporais dos atores que contribuíram para a
narrativa. Ainda que a audiência possa ter a memória da narrativa fílmica, a história que consiste
em metade documentário do gesto no quarto de Lena Dunham metade fantasia realizada por um
editor de moda da revista, o Voguing sobrepõe-se e pode ser feito em casa, por qualquer
pessoa: estar na capa da revista Vogue America, não.

Conclusão
Os fashion film são curtas metragens que promovem um olhar mais aproximado do universo da
moda. Por serem patrocinadas por grandes indústrias do vestuário com a finalidade de promover
o lançamento da estação extrai-se uma mistura de peças publicitárias com vídeo clipes. As

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experimentações das técnicas dos curtas metragens na cultura da convergência produzem


narrativa não verbal valorizada pela dança ou gestualidades potentes.

A composição visual de Cover Girl é repleta de referências de moda. Na obra, a Vogue não
apenas afirma-se como instância superior ao salvar o mundo estético da garota comum e
projetá-la em sua capa, como também reforça seu apelo de ineditismo cultural ao utilizar a dança
que tem origem na própria revista. Se a moda mundial precisa copiar a Vogue, a revista prefere
copiar a si mesma e tem no cinema a plataforma que possibilita transformar o leitor em um
espectador/dançarino.

O espectador por sua vez encanta-se pela mise-en-scène e tende a refletir de alguma maneira a
obra diante da vida comum.

Se por vezes a ausência de diálogos seja um fator comum para os curtas metragens do gênero,
os fashion films reforçam a capacidade de significar o mundo da moda, seja pela imitação dos
gestos ou pela linguagem formada não por palavras, mas pelas roupas que conversam longas
histórias diante do olhar do espectador.

Bibliografia:
AUMONT, Jacques. A estética do filme. [trad] Marina Appenzeller. Editora Papirus. Campinas
SP, 1994
________________. O olho interminável [cinema e pintura]. [trad] Eloísa Araujo Ribeiro.
Editora Cosac Naify: São Paulo, 2004
________________. MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Editora Papirus.
Campinas SP, 2003.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. [trad] Adail Ubirajara Sobral. Editora Cultrix/
Pensamento. São Paulo, 1997
GAUDREAULT, André. JOST, François. A narrativa cinematográfica. [trad] Adalberto Muller.
Editora UnB: Brasília, 2009.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. [trad] Suzana Alexandria. Editora Aleph: São Paulo,
2008.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. [trad] Marina Appenzeller. Editora Papirus.
Campinas SP, 2012.
MAFFESOLI, Michel. No fundo das Aparências. [trad] Bertha Halpern Gurovitz. Editora Vozes:
Petrópolis RJ, 2010.

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McKEE, Robert. Story. Substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita do roteiro.


[trad] Chico Marés. Editora Arte & Letra: Curitiba PR, 2013
VANOYE, Francis. GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. [trad] Marina
Appenzeller. Editora Papirus: Campinas SP, 1994

Periódicos:
OBAD, Vanja. How to understand experimental film- A cognitive approach. In: Croatian Film
Chronicles. N.60 (Winter, 2009): págs. 34-48; Disponível em:
http://www.hfs.hr/hfs/ljetopis_clanak_detail_e.asp?sif=32638 Acesso em: 05/01/2016
SIMMEL, Georg. A Moda. Revista Iara, São Paulo: SENAC, v.1, n.1. Págs 163-188. 2008.
Disponível em :http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistaiara/wp-
content/uploads/2015/01/07_IARA_Simmel_versao-final.pdf. Acesso em: 05/01/2016

Sites:
Youtube. Alexander Wang. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sfLERPLPqRI>
acesso em 05/01/2016
Youtube. Balmain. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=L9o96N0AowM> acesso
em 05/01/2016
Youtube. Cover Girl. Disponível em: http://video.vogue.com/watch/vogue-original-shorts-lena-
dunham-and-hamish-bowles-star-in-cover-girl acesso em 05/01/2016
Youtube. Cover Girl (tutorial). Disponível em: <http://video.vogue.com/watch/on-set-with-vogue-
learn-how-to-do-lena-dunham-s-the-cover-girl-dance> acesso em 05/01/2016
Youtube. Gisele para H&M. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zR9GnsqS0Dg
> acesso em 05/01/2016
Youtube.Gucci Cruise. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EvcdVVHta1U>
acesso em 05/01/2016
Youtube. Lanvin. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=S3N8QZTsZic> acesso
em 05/01/2016
Youtube. Nicopanda. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l9V_wCd9HqA >
acesso em 05/01/2016
Youtube. Tom Ford. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JiSQHJ_a5Z0> acesso
em 05/01/2016

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Sessão Temática 06
Memória, Museu e Moda

Coordenação: Profa. Dra. Márcia Merlo | MIMo / IED-SP / FASM


Local: UFPR Edifício D. Pedro I // Sala 810

Dia 13/05

A moda no museu: investigação, questionamento e reflexão na contemporaneidade


Marly de Menezes Gonçalves / Universidade Anhembi Morumbi / IED-SP/Centro Universitário
Belas Artes / arqmarlydemenezes@gmail.com

Este artigo relata a experiência de visitas em espaços culturais que, por meio da exposição de temas
relacionados ao design e à moda, exemplificaram o conceito de museu na contemporaneidade como
espaço de investigação, questionamento e reflexão da sociedade atual, utilizando a metodologia
exploratória de estudo de caso.
Palavras-chave: Museu, Moda, Design

Moda, patrimônio e curadoria de acervos museológicos: uma perspectiva da Seção Moda


da Coleção Amazoniana de Arte
Marcela Guedes Cabral / marcelagcabral@hotmail.com

Dada a importância dos elementos que constitui o sistema de moda como patrimônio cultural, o
artigo tem o intuito de apresentar as ações de curadorias então realizadas no Projeto de
extensão intitulado “Ações de Curadoria de Acervo na Seção Moda da Coleção Amazoniana de
Arte”, que visa a salvaguarda do acervo doado pelo estilista paraense André Lima.
Palavras-chave: moda, patrimônio e curadoria de acervo.

Modateca e documentação: a vestimenta como documento


Luciana de Sousa Santos Costa / Universidade de Brasília / lucianasousasantos1994@gmail.com
Rita de Cássia do Vale Caribé / Universidade de Brasília / rita.caribe@gmail.com

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Estudo preliminar sobre o conceito e fundamentos do termo modateca, partindo da afirmação de


que a moda é espelho de momentos históricos e que ela é documentada por meio da
indumentária. Busca um conceito de modateca e o analisa a partir das noções de arquivo,
biblioteca, museu e centro de documentação, norteando em qual desses segmentos a modateca
está inserida.
Palavras-chave: Modateca, Documentação, Indumentária

O acervo Rui Spohr : um breve relato sobre ações de conservação preventiva


Renata Fratton Noronha / PUCRS/CNPq / ffratton@gmail.com
Ana Reckziegel / Reckziegel Acervos

O presente artigo busca apresentar o acervo particular de Rui Spohr, costureiro gaúcho com
uma trajetória de mais de sessenta anos dedicados à moda. Dividido em quatro coleções, o
acervo testemunha a atuação de Rui através de um rico conjunto documental, o que possibilita a
ação de pesquisadores de diferentes áreas. Será apresentado o resultado da ação preventiva
que envolve a amostra documental que registra a participação do costureiro nos desfiles
promovidos pela empresa têxtil Rhodia, durante a Feira Nacional da Industria Têxtil (FENIT), nos
anos de 1962 a 1964.
Palavras-chave: Rui Spohr, Rhodia, Conservação preventiva.

Dia 14/05

Espaço perfume viagem ao mundo e a história da perfumaria


Andreia da Silva Mirón / andreia.miron@uol.com.br

O Espaço do Perfume – Arte+História, com iniciativa do Grupo O Boticário e Faculdade Santa


Marcelina, oferece visitação gratuita ao acervo em 3.000 a.C.; mais de 5 mil anos de história.
São 500 peças históricas, entre objetos originais e réplicas, que ilustram e ajudam a entender a
composição de um perfume, conhecer suas matérias-primas e ver os frascos que acondicionam
o produto final – que também instigam a memória e provocam verdadeiras viagens no tempo.
Palavras-chave: perfume, moda, história.

Museu de Arte Dica Frazão: um guardião da criação em processo na Amazônia


Susanne Pinheiro Dias/ Universidade da Amazônia / susannepinheiro@gmail.com

Fundado em 1999, o Museu de Arte Dica Frazão, espaço idealizado pela modista Raimunda
Rodrigues Frazão, é um dos poucos museus brasileiros com acervo majoritariamente de
indumentária. Desde os anos 1940, Dica desenvolve peças que enfatizam o manual e o uso das
fibras vegetais encontradas na floresta amazônica. Este trabalho se propõe a refletir sobre a
articulação entre o processo criativo da modista, a musealização de seu acervo de indumentária
e os entrelaçamentos que se apresentam entre o espaço público do museu e o espaço privado
de sua casa e ateliê.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

Palavras-chave: Raimunda Rodrigues Frazão; Museu; Processo de criação

Registro de entradas de acervo e seus impactos na documentação museológica do Museu


Hering
Daniel Philipi Knop / Museu Hering / daniel.knop@ciahering.com.br
Gustavo Nascimento Paes / Museu Hering/ gustavo.paes@ciahering.com.br

O artigo descreve os processos institucionais observados no recebimento e processamento


técnico para musealização do Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering, especificamente da
marca de moda intitulada “DZARM”, pertencente ao portfólio da indústria têxtil Cia. Hering. O
objeto deste estudo reflete a aplicação prática do processo de Registro de Entradas, seguindo a
metodologia de documentação híbrida - em vigor na instituição desde 2014 – e seus resultados e
observações.
Palavras-chave: acervo DZARM, Museu Hering, documentação híbrida.

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A moda no museu: investigação, questionamento e reflexão na


contemporaneidade.
Fashion in the museum: research, questioning and reflection of contemporary times.

Marly de Menezes Gonçalves


“Universidade Anhembi Morumbi / IED-SP/Centro Universitário Belas Artes”
arqmarlydemenezes@gmail.com

Resumo: Este artigo relata a experiência de visitas em espaços culturais que, por meio da
exposição de temas relacionados ao design e à moda, exemplificaram o conceito de museu na
contemporaneidade como espaço de investigação, questionamento e reflexão da sociedade
atual, utilizando a metodologia exploratória de estudo de caso.
Palavras-chave: Museu, Moda, Design

Abstract: This article reports on the visits of experience in cultural spaces that, through the
exposure of issues related to design and fashion, exemplified the concept of the contemporary
museum as a space of research, questioning and reflection of today's society, using the
exploratory methodology of case study.
Keywords: Museum, Fashion, Design

1. Introdução

Num passado próximo, a peculiaridade dos museus sempre esteve atrelada aos espaços
reservados à conservação de objetos antigos, representativos de uma determinada época,
relacionados a uma sociedade, onde os visitantes passavam horas observando objetos com os
quais pouco ou nada tinham relação com o seu dia-a-dia.
Interessante perceber que, ao interpretarmos uma das definições de museu no dicionário,
nos deparamos com a seguinte definição: “lugar onde estão expostos objetos de arte referentes
à História e que recompõem uma série de fatos” (Michaelis on line). O que nos suscita a pensar
que o museu na verdade não é um depositório de peças sem préstimos e descontextualizados
do nosso tempo, e sim, na contemporaneidade é um espaço onde seus objetos expostos
pertencem a um ideário, com os quais as rotinas do cotidiano constituem o entendimento de um

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grupo de pessoas com interesses comuns que, a partir da usabilidade, redesenham as relações
espaciais de convívio social recorrentes na vida da pessoa que percorre o próprio museu.
Neste artigo, iremos mostrar a experiência da visita de quatro espaços culturais que se utilizaram
do tema do design e da moda para exemplificar o conceito de museu na atualidade como espaço
de investigação, questionamento e reflexão da sociedade atual.

2. O MUDE – Museu de Design e Moda, em Lisboa

 
Figura 1 museu Mude

Quando entramos em um museu como o MUDE na cidade de Lisboa, nos encontramos


inesperadamente com um conceito novo não só de museu, mas de espaço cultural.
O edifício, onde hoje encontramos o MUDE data de 1866 e por mais de um século
sediou o Banco Nacional Ultramarino. No início do século 21, a Caixa Geral de Depósitos,
proprietária do edifício naquela data, viria a realizar uma reforma que destruiria boa parte do seu
interior. Embargada a obra pelos órgãos governamentais lisboetas, o edifício retornou à cidade
por meio de um projeto de revitalização da baixa Pombalina, centro histórico de Lisboa, onde o
MUDE tem fundamental importância.
Foi em 2009 que o projeto do Museu de Design e Moda iniciava suas atividades de uma
forma diferente da maioria dos museus do mundo. Seu espaço interior danificado, quase em
ruínas, foi o partido utilizado pelos arquitetos Ricardo Carvalho e Joana Vilhena para alocar a
coleção do renomado colecionador de arte português Francisco Capelo no piso térreo, em uma
exposição permanente. As 672 peças de design de equipamento e 690 coordenados de moda
que compõem o acervo são apresentados ao grande público, paulatinamente, de acordo com o
projeto curatorial. Periodicamente, o acervo que foi distribuído por décadas a partir dos anos

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30/40, é exibido de forma a retratar a importância do design e da moda na formação da


sociedade impulsionadora do século 20.
A cada nova exposição temporária apresentada nos andares superiores do edifício, a
exposição permanente, localizada no nível da entrada principal, é reorganizada, mostrando
outros elementos do patrimônio do museu, e desta maneira, o acervo permanente está sempre
se “renovando” aos olhos do público. O atributo fundamental das obras selecionadas por
Francisco Capelo é a personalização do século 20 por meios de usos e costumes verificados em
objetos do cotidiano projetados por profissionais como Mies van der Rohe, Le Corbusier, Herman
Miller, o grupo Memphis, por exemplo, e da vestimenta criada por estilistas consagrados como
Coco Chanel, Christian Dior, Paco Rabanne, Pierre Cardin, John Galliano dentre tantos outros,
retratando a história recente da sociedade em que vivemos.
A caraterística principal do museu está no conceito “work in progress”, tanto na
ocupação física dos espaços como no teor abordado pelas suas exposições permanentes e
temporárias, na medida em que o seu conteúdo expositivo sofre alterações ao longo do tempo,
“influenciado” pelos desejos da comunidade que o visita. Em entrevista, Barbara Coutinho
(COUTINHO, 2009), diretora do museu explicou que o MUDE é uma continuidade da rua, e
assim, o visitante ao entrar no espaço da exposição esquece que está num espaço museológico
e tenta tocar nas peças que estão sem qualquer redoma de proteção. Um verdadeiro convite ao
toque, mas que é educadamente impedido pelos diversos monitores que circundam o recinto.
Nem mesmo o uso de câmeras é permitido na exposição permanente para evitar a deterioração
das peças. A exposição do acervo do museu é apresentada sem barreiras visuais entre os
elementos que a compõem, o que permite permeabilidade panorâmica do recinto, onde é
possível ao mesmo tempo ver a influência de Mondrian na moda de André Courrèges e na
estante de Charlotte Perrienad ou visualizar praticamente lado a lado peças de Dior e John
Galliano que foram criados, por exemplo, para a mesma maison, mas separados pelo tempo.
A disposição das peças em um espaço sem bloqueio permite ao frequentador do museu
realizar novas leituras, concepções e entendimentos das analogias entre partidos projetuais
realizados pelos vários criadores de design pertencentes ao século passado, e desta forma,
entender e reavaliar o momento atual do design de produto e da moda.
O MUDE - Museu do Design e da Moda, localizado na capital portuguesa, foi concebido
com o propósito de não somente abrigar os produtos de design nas suas mais diversas formas
de representação como fazem os museus tradicionais, mas, principalmente, criar um espaço de
discussão e reflexão entre as áreas abrangidas e relacionadas ao design, de forma a permitir a

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sua plena concretude dentro da sociedade, seguindo o conceito que os “produtos são sobre
ideias; eles não são simples objetos” (BRUMMER e EMERY, 2010,p.25).
No site institucional do museu é possível perceber que este espaço de cultura lisboeta
“na sua origem esteve a aquisição pelo Município de Lisboa da coleção de design de produto e
design de moda de Francisco Capelo que declarou na altura da inauguração do museu que
“quando imaginei esta coleção com um destino museológico, a moda era parte integrante”
(CAPELO, 2009).
O nome MUDE - Museu do Design e da Moda, foi cunhado da ação imperativa do verbo
mudar, “expressando uma das suas missões – contribuir para a formação de utilizadores mais
informados, conscientes, críticos e criativos de modo a provocar a mudança de atitude perante a
cultura material e a própria vida” (COUTINHO, s/d).

3. Espaços culturais em São Paulo

3.1. Shopping Iguatemi – Espaço Iguatemi - 29 de abril a 29 de maio de 2011.


Exposição Pierre Cardin – Criando Moda, Revolucionando Costumes.

 
Figura 2 – Exposição Pierre Cardin Acervo pessoal

Em 2011, o Shopping Iguatemi apresentou no Espaço Iguatemi a Exposição “Pierre


Cardin: Criando Moda, Revolucionando Costumes”. Com curadoria de Denise Mattar, a
exposição teve como objetivo mostrar a produção do estilista, apresentando além de croquis,
fotos, objetos, um vídeo em conjunto com 70 looks que retrataram a trajetória de seus sessenta

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anos de carreira, entre os anos de 1952 a 2010. Assim como no MUDE, ao visitante era possível
apreciar a coleção bem de perto, pois cada peça foi apresentada em um manequim sobre um
pedestal sem redomas. A ambientação formada por quatro espaços delimitados, porém
integrados, possibilitavam ao observador compreender o desenvolvimento projetual do estilista.
Segundo entrevista de Mattar ao site IG: “a exposição foi dividida em quatro espaços e a
disposição de onde vai cada obra foi baseada em um colar desenhado por ele (Pierre Cardin). O
desenho da sala foi pensado em cima desse acessório” (MATTAR, 2011).
Apesar das peças serem originais do acervo da Fundação Pierre Cardin Paris, os
organizadores permitiram aos frequentadores da exposição fotografar todas as peças sem flash,
possibilitando uma maior aproximação do público à obra.

3.2. Itaú Cultural - 01 de abril a 11 de maio de 2014


“Ocupação Zuzu”

       
Figura 3 – Exposição Ocupação Zuzu Acervo pessoal

A exposição organizada pelo Itaú Cultural e Instituto Zuzu Angel, mostrou em São Paulo
como a Moda está diretamente ligada a todos os assuntos relacionados a cultura e ao modo de
vida de uma sociedade.
A “Ocupação Zuzu” mostrou 400 peças pertencentes ao espólio da família da estilista
que através da sua obra procurou mostrar a cultura brasileira por meio de tecidos, estampas,
bordados, cores e acessórios, inserindo o Brasil no universo fashion internacional, ao mesmo
tempo que, ao perder seu filho brutalmente assassinado pelos militares, transformou seu
trabalho em uma bandeira de questionamento do regime militar instalado no Brasil, entre os anos
60 e 70.

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Alocada nos três andares do edifício, a exposição envolveu seu público contextualizando-o do
período vivido pela estilista. Diferentemente das mostras atuais, todas as peças estavam
envoltas por uma redoma de vidro, impedindo a proximidade do público. Podemos relacionar de
forma metafórica que esse distanciamento do público com a obra, remetia às dificuldades com
que Zuzu Angel enfrentou pela falta de informação sobre o desaparecimento de seu próprio filho.

3.3. Museu Masp – 23 de outubro de 2015 a 14de fevereiro de 2016


Arte Na Moda: Coleção Masp Rhodia

 
Figura 4 Exposição Arte na Moda Acervo pessoal

Em 1972, a Rhodia, empresa francesa fabricante de fios sintéticos fez uma doação ao
Masp de 79 peças de sua coleção, com exemplares entre os anos de 1960 e 68, que têm como
característica a confecção de peças de moda elaboradas em tecidos com estampas criadas por
artistas plásticos brasileiros tais como: Aldemir Martins, Nelson Leiner, Alfredo Volpi, dentre
tantos nomes importantes do cenário artístico nacional.
A Rhodia, com a intenção de divulgar a sua produção de fio sintético, patrocinava
desfiles-espetáculos utilizando as expressões artísticas brasileiras como a arte, a música, a
dança, o teatro e promovia encontros de artistas renomados com costureiros, pois na época a
profissão de estilista ainda não era reconhecida, criando duplas como Aldemir Martins e Alceu
Penna, Antonio Bandeira e Dener Pamplona, Alfredo Volpi e Jorge Farré, por exemplo.
As peças apresentadas na exposição do Masp, em sua maioria, apenas foram utilizadas
pelas modelos que desfilaram para a Rhodia entre os anos 60 e 70 na FENIT - Feira Nacional da
Indústria Têxtil, contudo, ao percorrer a exposição é possível perceber que vários looks poderiam

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vestir a mulher brasileira nos dias atuais. Como explica Patrícia Carta, Lívio Rangan, gerente de
publicidade da Rhodia, era um italiano visionário que antevendo a tendência de aproximação
entre as áreas de arte, design e moda, escolhia os artistas e costureiros de forma a promover um
diálogo entre a arte contemporânea em ebulição no período e o mundo fashion.
E deste modo, a coleção da Rhodia doada para o MASP, ao apresentar um período
importante do design de moda brasileiro, é um rico material de pesquisa no entrosamento entre
as artes, o design, a moda, o momento social cultural e o desenvolvimento embrionário pelo qual
passava a indústria têxtil do Brasil de forma a podermos compreender o percurso da moda e
suas influências no desenvolvimento da sociedade brasileira até os nossos dias.

4. Moda e Museu

É interessante perceber como nos últimos anos, os museus têm se interessado pelo campo
da moda. Apesar de existirem exposições sobre trajes, estilistas e marcas num passado recente,
neste início de século 21 o tema da moda deixou de ser um complemento da arte, para dividir
com esta o mesmo espaço de exposição tanto na comunicação, como no campo artístico.
Patrícia Sant’Anna nos elucida que os museus históricos, por exemplo, possuem em seus
acervos objetos que retratam o passado, contudo, a vestimenta é vista muitas vezes como mais
um elemento ilustrativo da “história cotidiana” (SANT’ANNA, 2008).
Por outro lado, nos museus do traje e têxteis, onde o trabalho de identificação das peças
vai além de especificidades relacionadas à história do objeto, catalogando a criação do objeto
têxtil tridimensional a partir de considerações técnicas aplicadas sobre corte e costura, bem
como sobre os materiais utilizados, “os vestuários são compreendidos como os mais adequados
documentos sobre como a moda adentra a realidade nacional e regional. E também como o
patrimônio cultural regional identifica e aloca este exemplo dentro da sociedade ocidental
capitalista industrial e urbana”, complementa Patrícia Sant’Anna (SANT’ANNA, 2008, p.1).
Ao longo do século 20, houve uma profusão de museus espalhados pelo mundo que
buscaram na indumentária temas para exposições e aquisição de peças para seus acervos,
procurando uma maior “interlocução entre as questões que envolvem preservação e
esquecimento (...) ligadas a ideia de propriedade compartilhada” (SANT’ANNA, 2008, p.1).
Contudo, segundo Lou Taylor, a maioria dos museus considera os artefatos têxteis
suportes inferiores quando comparados às formas tradicionais de arte, na medida em que ao
pertencerem ao mundo feminino, os objetos relacionados ao vestuário seriam efêmeros e teriam
pouco valor comercial, não sendo “compreendidos como arte propriamente dita, mas sim como

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

objetos capazes de proporcionar uma sensação artística”, nos esclarece Maria Claudia Bonadio
(BONADIO, 2012, p.9).
Quando observamos museus na contemporaneidade, compartilhamos da ideia de Merlo
e Castilho, que consideram ser “possível supor que uma sociedade se revele através dos seus
museus, já que estes guardam objetos ou elementos considerados de interesse sociocultural que
são evidentemente carregados de valores materiais e simbólicos” (MERLO e CASTILHO, 2009,
p.3).
Na atualidade, estamos vivendo o período das hibridizações artistas, onde não há mais
diferenças entre os contornos entre arte e moda, na medida em que a moda não está mais
vinculada somente ao vestir, ela está relacionada a renovação perpétua dos produtos, e por
tanto, como nos lembra Gilles Lipovetsky “nada é mais exterior ao mundo da moda”
(LIPOVETSKY, 2015).
Ao coexistirem no mesmo espaço da sociedade, o mundo comercial e o universo
artístico, onde “produtos de grande consumo se confundem com a moda” e “a arte se impõe
como uma ferramenta de ‘comunicação acontecimental’ que permite enobrecer marcas, criar
uma imagem audaciosa, criativa, menos mercantil” (LIPOVETSKY, 2015), torna-se difícil delinear
o que é arte, o que é moda, o que é design, sem que um conceito não seja tocado, tangenciado
e até mesmo sobreposto pelo outro.
Em seu livro O Império do Efêmero, Lipovetsky já abordava que a:

explosão da moda: doravante ela já não tem epicentro, deixou de ser


privilégio de uma elite social, todas as classes são levadas pela embriaguez
da mudança e das paixonites, tanto a infraestrutura como a superestrutura
estão submetidas, ainda em graus diferentes, ao reino da moda. É a era da
moda consumada, a extensão de seu processo a instâncias cada vez mais
vastas da vida coletiva. Ela não é mais tanto um setor específico e periférico
quanto uma forma geral em ação no todo social. Estamos imersos na moda,
um pouco em toda parte e cada vez mais se exerce a tripla operação que a
define propriamente: o efêmero, a sedução, a diferenciação marginal.
(LIPOVETSKY, 2009, p. 180).

Se por um lado é importante vermos a moda conquistando um lugar para reflexão dentro
espaços culturais, por outro é possível questionar essas escolhas, na medida em que vivemos
em um período onde as estratégias de obsolescência dos produtos têm promovido uma
transformação nas fases de criação, produção, distribuição da cadeia de moda (LIPOVETSKY e
CHARLES, 2004), transformando o consumo desenfreado em uma forma rápida para a “extinção
definitiva” do sofrimento humano, ou seja, um “nirvana” na busca da felicidade. E desta forma,
precisamos nos preocupar com os critérios utilizados pelos curadores dos museus para

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

selecionarem peças do mundo fashion que reflitam a sua importância dentro do design e
colaboram com o desenvolvimento desta área do saber.
Maria Claudia Bonadio no texto Moda é coisa de museu? (BONADIO, 2012), levanta
questões importantes sobre a exposição da moda em museus. Em seu texto duas indagações
ressaltam aos olhos. Primeiro a questão sobre se seria legítimo expor como objetos de arte
peças produzidas para o sistema fast-fashion, onde o principal objetivo da coleção está atrelado
aos aspectos econômicos e consumistas da comercialização em larga escala e, em segundo
lugar, sendo o produto de moda resultante de uma metodologia de design, as exposições
deveriam apresentar com a mesma relevância tanto o produto final, como os processos que
levaram a sua criação e execução.
Ao visitar as exposições e espaços culturais mencionados neste artigo, podemos observar
que a moda, juntamente com o design, a arte e a arquitetura, é uma área do saber que tem
fundamental importância na formação, compreensão e reflexão dentro do estudo dos usos e
costumes das sociedades, nos permitindo compreender o presente e conjeturar sobre o futuro.
Ao adentrar o espaço cultural, a moda amplia a produção de conhecimento na medida em que
ao “compreender como são as relações existentes, entre as roupas musealizadas e seu
processo de musealização, pode nos dar uma visualização, tanto de suas inter-relações no
universo dos objetos-vestuários quanto com o meio social” (Sant’Anna, 2008, p.8).

5. Considerações Finais

O conceito de museu na contemporaneidade tem procurado colocar o visitante em contato


direto com o objeto exposto, permitindo desta forma, além da contemplação, a reflexão dos
atributos intangíveis inerentes aos projetos desenvolvidos pelas várias áreas abrangidas pela
metodologia de design, onde a moda é uma delas.
O MUDE, ao ter como definição o status de museu “work in progress”, possibilita que a cada
visita, o espectador tenha um novo olhar e uma interpretação diferenciada do percurso anterior,
não porque o espaço e as peças foram modificadas, mas pelo simples fato de que a percepção
de cada momento é única e construída a partir da somatória de várias vivencias. Ao não ter
barreiras, o espaço museológico pertencente ao MUDE permite leituras e releituras a cada nova
visita, na medida em que a cada percurso nos é impossível repetir o primeiro, mas as memórias
afetivas das visitas anteriores são somadas a cada nova experiência.
Estamos vivendo em uma época onde a obsolescência tem alterado os modos de criação,
produção e da própria relação do produto com o consumidor, indicando que a própria sociedade

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

tem sofrido alterações em virtude destas ações, trazendo à discussão movimentos como o slow-
fashion que se preocupa com os recursos escassos da natureza, a ética da produção e a
qualidade da vida de seus compradores. Estas discussões fazem parte do cotidiano e, portanto,
estão associadas às relações do ser humano com seu modo de pensar e de estar na sociedade.
A moda está no museu, porque a moda está na rua, na cidade, no mundo, enfim, na vida
das pessoas, acolhendo o espaço físico, estruturando relações interpessoais e promovendo
novas analogias entre o corpo, o espaço e o tempo. Sendo a moda um reflexo de um grupo de
pessoas que têm um interesse em comum durante um determinado período, é natural que o
espaço do museu venha apresentar, questionar e refletir esse momento no passado, no agora e
no futuro.

Referências bibliográficas:

BONADIO, Maria Claudia ; Moda é coisa de museu?. In: 8o. Colóquio de Moda, 2012, Rio de
Janeiro. anais do 8o. Colóquio de Moda, 2012.
BRUMMER, Robert e EMERY, Stewart. Gestão Estratégica do Design: como um ótimo design
fará as pessoas amarem sua empresa. São Paulo: M. Brooks do Brasil editora ltda.2010.
CARTA, Patrícia. Arte na Moda: coleção MASP Rhodia. In Catálogo Arte na Moda: coleção
MASP Rhodia. São Paulo: MASP, 2015.
COUTINHO, Bárbara. Missão e Estratégia. Disponível em http:http://www.mude.pt/mude/missao-
estregia_5. Acesso em 17fev 2016.
COUTINHO, Bárbara. Entrevista para ESPAÇOS&CASAS nº35 2ªParte.mov. 2009.Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=CuR_1MQEoe4. Acesso em 17fev 2016.
CAPELO, Francisco. Entrevista para o Jornal Público em 21/05/2009. Disponível em
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/mude-finalmente-231910. Acesso em 17fev 2016
Dicionário Michaelis online disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.
php?lingua=portugues-portugues&palavra=museu. Acesso em 17fev 2016.
LIPOVETSKY,Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla,
2004.
LIPOVETSKY, Giles e SERROY,Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo
artista. São Paulo Companhia das Letras, 2015.
MATTAR, Denise. Exposição de Pierre Cardin conta com 70 looks do estilista. Entrevista site IG,
2011. Disponível em http://moda.ig.com.br/modanomundo/exposicao-de-pierre-cardin-conta-
com-70-looks-do-estilista/n1596856251144.html. Acesso em 17fev 2016.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

MERLO, Marcia; CASTILHO, Kathia. MIMO: O museu da indumentária e da moda. In: 8o.
Colóquio de Moda, 2012, Rio de Janeiro. anais do 8o. Colóquio de Moda, 2012.
SANT'ANNA, Patrícia. A moda no museu. I CONGRESO INTERNACIONAL DE MODA, CIM
2008, Madrid, 2008.

Fonte das imagens

Figura 1 Disponível em http://www.tudomudou.com/wp-content/uploads/2012/01/MudeMuseu.jpg


e http://convida.pt/images/POIs/Mude_2014_0100.jpg . Acesso em 17fev 2016

Figuras 2, 3, 4, acervo pessoal da autora.

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MODA, PATRIMÔNIO E CURADORIA DE ACERVOS MUSEOLÓGICO: UMA PERSPECTIVA


DA SEÇÃO MODA DA COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE

Fashion, Heritage and Collections Museum Collection Curation: A Perspective of


Section Fashion of the Amazoniana Art Collection

Resumo: Dada a importância dos elementos que constitui o sistema de moda como patrimônio
cultural, o artigo tem o intuito de apresentar as ações de curadorias então realizadas no Projeto
de extensão intitulado “Ações de Curadoria de Acervo na Seção Moda da Coleção Amazoniana
de Arte”, que visa a salvaguarda do acervo doado pelo estilista paraense André Lima.
Palavras Chaves: Moda, Patrimônio e Curadoria de Acervo

Abstract: Given the importance of the elements constituting the fashion system as cultural
heritage. This article aims to present the curatorial actions then performed on the extension project
entitled "Collection of Curatorial Shares in Section Fashion of the Amazoniana Collection Art ",
which aims to safeguard the collection donated by designer André Lima Pará.
Keywords: Fashion, Heritage and Colletion Curatorial

O presente artigo busca apresentar as ações de curadoria de acervo museológico a partir da


experiência dos trabalhos desenvolvidos na Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte da
Universidade Federal do Pará: Acervo André Lima. No ano de 2015 a Coleção recebeu em caráter
de doação do próprio estilista paraense André Lima, um acervo de moda que contempla
indumentária, espólio documental, fotografias, amostras de tecidos e aviamentos. Este acervo vem
sendo trabalhado dentro do Projeto de extensão denominado “Ações de Curadoria de Acervo na
Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte”. Estas ações têm por objetivo promover a
salvaguarda do acervo por meio da Documentação e Pesquisa, Conservação Preventiva e
Comunicação, ações básicas da curadoria de acervo. Neste artigo tratamos primeiramente dos
conceitos de Moda, Memória e Patrimônio relacionando-os aos conceitos e processo de
musealização e curadoria de acervo, mais especificamente de três ações curatoriais, a saber: a
Documentação, Pesquisa e Conservação. Em seguida apresentamos o estilista e a influência da
sua memória individual no seu processo de criação; localizamos o acervo dentro da Coleção
Amazoniana de Arte da UFPA, e por fim, apresentamos as ações desenvolvidas no acervo
contemplando as três primeiras ações de curadoria supracitadas e afirmamos a relevância deste
acervo para a o Patrimônio Cultural e para a Moda brasileira contemporânea.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

MODA E PATRIMÔNIO

Pensar a moda como patrimônio cultural envolve entender o seu papel não apenas em relação ao
corpo, mas também vinculada às questões sociais e indentitárias, pois a moda é um mecanismo
de produção simbólica. A roupa, assim como qualquer objeto de design, é resultante de um tempo
passado, fornecendo assim uma noção ideológica e cultural da sociedade que o criou, consumiu
e produziu (BENARUSH, 2012), uma vez que todos os objetos criados pelo ser humano buscam
atender uma determinada função, ainda que seja uma função simbólica, distintiva ou apenas
contemplativa. Vale apena observar que a moda tem contornos tanto na materialidade quanto na
imaterialidade, haja vista a sua dimensão simbólica na qual o material e o imaterial se
complementam.

Compreendendo indumentária como conjunto de acessórios os quais se inclui roupas, brincos,


anéis, pulseira, chapéus, etc., Stefani (2005) salienta que a moda é um conjunto de informações
expressa através de tudo que é denominado indumentária e quando apresentado em conjunto,
formam um sistema expressivo. Esse sistema expressivo comunica ideais e valores do indivíduo
para sociedade ou grupo social no qual está ou deseja ser inserido. Afinal, moda não é apenas o
ato de se vestir, mas também é uma das formas do ser humano produzir significados de caráter
social, uma vez que, a escolha de uma determinada peça vai além do modo meramente funcional.
Ao vestir-se, veste-se também a intenção de expressar uma identidade e valores para o mundo
através das roupas (STEFANI, 2005). Neste sentido, a moda funciona como um elemento
agregador, agrupando os indivíduos por identificação com aquilo que expressa.

Assim, a moda, mesmo reconhecida pelo seu caráter efêmero, é de grande relevância enquanto
registro histórico para a sociedade que a produziu. Por meio dos objetos e conceitos que a
compõem, dando-lhe uma amplitude material, carrega informações das mentalidades, dos
contextos e das questões em voga em um determinado tempo e lugar, podendo assim expressar
o pensamento e as relações de todo um sistema, chegando, algumas vezes, como dadas obras
das artes plásticas literatura e do cinema de ficção científica, antever cenários e fatos de impacto
para as sociedades de modo geral.

Embora a lógica do funcionamento da moda esteja comumente relacionada à efemeridade, a


estética e ao individualismo, notamos aqui que esta expressão, pode ser também compreendida
como refletora de marcas significativas do nosso tempo (MESQUITA, 2004 apud MAIA, 2013,
p.47) e esta perspectiva pode ser notada, a partir da observação do crescente número de acervos

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

museológicos na área da moda, pois segundo Diogo Ferreira “a roupa é um indicador de memória”
(FERREIRA, 2015, p. 01).

Neste cenário, a Museologia enquanto ciência que estuda “A relação profunda entre o homem –
sujeito conhecedor – e o objeto, parte da realidade sobre a qual o homem igualmente atua e pode
agir” (GUARNIERI, 2010, p.123), assim, a Museologia atua como mediadora na relação entre o
homem e o patrimônio (BELLAIGUE, 2000 apud. VICENTE, 2016).

O patrimônio cultural é um conjunto de bens materiais e imateriais, relacionados a memória e a


identidade, e é representativo da cultura de um grupo ou uma sociedade (NEVES, 2003, p.01).
Antes de refletir sobre este conceito, cabe pensarmos sobre o conceito de cultura. De acordo com
Berenice Neves (2003), a ideia cultura vai além do caráter elitista e domínios de conhecimentos e
habilidades eruditas, de uma forma mais ampla, a cultura consiste em um “conjunto de ações
desenvolvidas pelos humanos em busca de sua sobrevivência” (NEVES, 2003, p.01). Contudo
este conceito pode ainda ser ampliando a partir da concepção descritiva de cultura, na qual
Edward Taylor, entende cultura com “um todo complexo” que inclui uma serie de sistemas, tais
quais “conhecimento, crença, arte, moral, leis, costumes”, dentre os quais também se insere a
moda “[...] e toda as demais capacidades e hábitos adquiridos pelo homem em quanto membro de
uma sociedade [...]” (TAYLOR,1903 apud. THONPSON,1995), haja vista que todos os humanos
são capazes de desenvolver atividades complexas, ligadas ao saber fazer e aos seus modos
devida, e estão inseridos em uma sociedade, constroem e compartilham memórias e identidades,
podemos assegurar que todos os seres humanos são possuidores de cultura.

A memória, para além de ser um fenômeno individual, pode ser entendida como um fenômeno
coletivo e social (HALBWACHS, 2003). Deste modo a memória coletiva é um constructo social
dinâmico e sujeito a flutuações e imprecisões em determinados pontos, contudo, cabe notar que
existem acontecimentos invariantes que se tornam marcos referenciais desta memória coletiva
(POLLAK, 1992).

Assim, podemos relacionar o patrimônio cultural e a memória social a partir do seu papel de
fomentação do sentimento de pertencimento de um indivíduo em uma comunidade, como
mediador na formação das identidades coletivas, possibilitando um reconhecimento tanto de
ralações em comum quanto às diferenças que nos caracterizam dos demais. Deste modo,
tomamos o patrimônio no sentido de este ser um dos marcos que referencia a memória social.

Então, como pensar as indumentárias da moda, que são criadas para serem objetos de consumo,
que tem como uma de suas principais características a efemeridade, transfiguradas em objeto de

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museu, que de modo generalista, tende a pensar na permanência dos objetos para gerações
futuras? Isto exige um processo que nos leva a entender a indumentária como fonte ou suporte
de informação que contém registro histórico, carga simbólica, além do apelo estético, cabe dizer
que esta assume um papel representativo de uma identidade, de um indivíduo, de um grupo ou
de uma sociedade (BENARUSH, 2015).

Disto, podemos concluir que a moda se constitui enquanto patrimônio como uma produção
humana que se relaciona diretamente a uma série de elementos culturais como as memórias e as
identidades de diferentes grupos e indivíduos, e com isso se busca sua proteção e salvaguarda a
fim de permitir o conhecimento destas produções, juntamente com todas as informações possíveis
para as futuras gerações.

Uma das formas que garantem a salvaguarda dos objetos com tal status e possibilita a
recuperação das informações sobre este, é a documentação. De acordo com Paul Otlet,
considerado como “o pai da Documentação”, tudo é documento, pois qualquer objeto é passível
de ser uma fonte de conhecimento passando a ser usado como fonte de referência e estudo. A
definição mais funcional do documento foi proposta pela francesa Suzanne Briet que afirma “o
documento é uma evidência que apoia um fato”, ou seja, é a comprovação através do registro que
pode ser preservado. Assim o documento é caracterizado pela sua condição de registro da
informação e não mais limitado pela qualidade de suporte, o que leva a uma intencionalidade para
que haja o registro da informação (SMIT, 2008).

Portanto transfigurar um objeto de consumo para objeto documento é atribuir a ele um significado,
um discurso diferente do atribuído em sua produção inicial. Sendo assim, passam a ter agregado
uma nova identidade cultural e social. Com isso, podemos analisar as roupas e indumentárias
como documento, pois neste processo estas assumem um caráter indenitário, comunicacional,
simbólico e representacional, uma vez que a indumentária possibilita uma compreensão social,
estético, político e econômico de uma sociedade e de seus indivíduos.

Nesta perspectiva, quando o objeto é inserido em um contexto museológico, este passar ser,
segundo Rosana Nascimento (1993), representativo como suporte de informação, este objeto é
classificado, estudado e divulgado por meio de processos comunicacionais, tais como, exposição
e publicação. Com isso definimos significado cultural através do processo de musealização, no
qual conforme Marilia Xavier Cury (1999), consiste em um processo que inicia na aquisição, que
corresponde na inserção do objeto no contexto museológico, é submetido às ações da
documentação, da conservação e da pesquisa, e por fim aos processos comunicacionais.

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Portanto, os objetos de indumentária, uma vez tendo o seu valor documental reconhecido, são
selecionados, retirados do contexto de uso e recebem o status de objetos-documentos. Passam a
ser representantes de identidades, de grupos e sociedades, dado à sua significação cultural,
tornando-se patrimônio institucionalizado e ícone de uma memória social, musealizado.

MUSEALIZAÇÃO

A musealização ocorre quando se estabelece uma intencionalidade, na qual o objeto passa a ter
um caráter representacional, constituindo se um determinado recorte dentro da realidade para o
universo museal. Deste modo Mario Chagas destaca no seu artigo “No Museu com a Turma de
Charlie Brown” (1994) que potencialmente tudo pode ser museável, mas apenas um recorte da
realidade será de fato musealizado (CHAGAS, 1994, p. 54). Assim essa passagem da realidade
para o campo museal Chagas denomina de processo de musealização.

Ainda conforme Chagas (1994) a musealização se estabelece como uma construção de um


processo seletivo e político, devido a uma intencionalidade representacional ligada a uma
atribuição de valores. A partir disso, podemos analisar os objetos que constituem a moda enquanto
sistema no qual estão inseridos a princípio no campo comercial destinados ao consumo.
Entretanto quando esses objetos passam pelo processo de musealização, são postos fora da rota
do consumo, passando a ser bens culturais musealizado, portadores de significados, suporte de
informação e de representação de memória (CHAGAS, 1994).

Cury (1999) apresenta a musealização como atribuição de valores nos objetos, que passam por
um processo, em que a autora sistematiza, dividido em quatro momentos. O primeiro é a seleção
a partir dos critérios estabelecidos pela aquisição. O segundo momento é a inserção dos objetos
em contexto museológico, perdendo a sua função primária e ganhando novas funções,
transformando se em representações e suportes de informação. O terceiro é a seleção dos objetos
para a exposição construindo a forma conceitual dos objetos. O quarto consiste nos processos
comunicacionais. Tudo isso corresponde ao processo de musealização de acordo com Cury
(1999) que vai desde métodos iniciais como a seleção e aquisição até os processos de
documentação, pesquisa e comunicação.

Portanto a transformação do objeto em documento permeia todo o processo de musealização, no


qual Cristina Bruno (1991 apud. CURY, 1999) denomina como um conjunto de procedimentos que
através da comunicação visando a difusão e a salvaguarda do patrimônio cultural. Tais

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procedimentos são o principal objetivo do projeto intitulados projeto “Ações de Curadoria de Acervo
na Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte”. Este projeto tem o intuito de desenvolver ações
de documentação, conservação e pesquisa no acervo produzido e doado pelo estilista paraense
André Lima.

ANDRÉ LIMA

André Lima é um estilista paraense de projeção nacional, atualmente vive em São Paulo, após ter
encerrado sua marca em 2015, hoje desenvolve seus trabalhos em parcerias com outras marcas.
De acordo com seu biógrafo, o jornalista Eduardo Logullo, André Lima desde criança vivera em
uma casa dominada por mulheres fortes, sendo a sua avó costureira e seu pai, comerciante de
tecidos no município de Gurupá, localizado no nordeste do Pará. Desde de muito jovem, o estilista
acompanhava seu pai nas compras de tecidos nas lojas em Belém, este fato colocou o estilista
em contato direto com o mundo feminino das roupas, tecidos e toda a estética que o estilista
manifesta em suas peças (LOGULLO, 2008).

A partir disso, podemos observar que os processos de criação de André Lima são bastante
influenciados pela memória e as paisagens que o rodeia, pois, estas influências são reveladas
através das suas obras que apresentam características tanto da região norte, como o cheiro, as
cores e a cultura amazônica, quanto São Paulo e outros lugares (LOGULLO, 2008; MAIA, 2013).
O estilista transita também nos parâmetros da prêt-à-porter, pelos seus ícones e musas do século
XX. Em entrevista na Coleção Moda Brasileira, o estilista afirma que para instigar a sua inspiração,
ele absorve tudo a sua volta e se deixa levar por sua intuição, assim entrou para o São Paulo
Fashion Week em 2001, pois suas criações atraíram o público e os críticos de moda, com sua
sensualidade com as cores fortes e estampas, no qual de certa forma tornaram se sua marca
pessoal (HOLZMEISTER, 2008).

Ainda que André Lima tenha saído do Pará, com o intuito de expandir sua carreira, suas obras são
claramente inspiradas na fauna, flora e a cultura desta região. Estas influências, presentes em sua
produção, são expressas através das cores, das estampas e de formatos e estruturas também
influenciadas pela arquitetura. Sendo assim, suas obras, tanto do ponto de vista do conjunto
quanto individualmente, revelam a multiplicidade, diversidade e riqueza natural, social e cultural
da região amazônica, na qual André Lima leva em suas produções, a passarelas nacionais e
internacionais.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

O outro aspecto importante nos processos de criação do estilista, são os múltiplos registros e as
conexões não lineares que estão presentes nas suas produções. Na Dissertação de Mestrado da
professora Yorrana Maia, no qual, tem o intuito de analisar a cartografia dos processos de criação
do estilista, afirma que, André Lima costumava colecionar várias imagens de suas produções ao
longo da carreira, guardadas nas pastas de referências, ou seja, essas imagens são fragmentos
não lineares que narram todo o seu processo criativo, onde, muitas de suas coleções partem desse
acervo de imagens (MAIA, 2013).

Esses registros colecionados pelo estilista são fragmentos de uma multiplicidade de ingredientes
para a construções de outras coleções e dos processos criativos do próprio criador. A partir dessas
memórias arquivadas por André Lima, é importante ressaltar a mistura de tempos, uma vez que
essas roupas nos permitem conhecer o universo criativo do estilista, além de constituírem
fragmentos da história da moda do século XX (MAIA, 2013).

Tecidos, roupas e memórias habitam as coleções do estilista, como os


pedaços de tecidos que tinha guardado, as referências das rosas vermelha e
amarela da capa do disco da Gal Tropical, o Círio de Nazaré, as citações de
ciganas, seu próprio acervo de roupa da marca e das viagens pessoais, dentre
outras. Nesse sentido de resguarda os tecidos e referencias, como
documentos para possíveis usos futuros (MAIA, 2013, p. 63-64).

Deste modo, a roupa está repleta de elementos subjetivos que possibilita o estilista André Lima
utiliza os fragmentos de suas memórias para crias suas roupas, reativando esses fragmentos para
referencias futuras (MAIA, 2013).

De acordo com Maia (2013) através da sua narrativa de vida e reflexões do estilista André Lima,
nos permite notar suas preferências por mulheres fortes nas suas referências por meio das
criações fortemente influenciados por divas da música, como Maria Bethânia, Fafá de Belém, Clara
Nunes, Sandra Bréa, Madonna, dentre outras personalidades do mundo artístico; além de suas
viagens ao exterior e eventos que mostram a diversidade cultural e natural do Pará, como o
“Rainha das Rainhas1”, o “Círio de Nazaré2”, a “Festa da Chiquita3” e as fotografias de Pierre
Verger. Logo podemos observar dentre esses marcos, pessoas, lugares e manifestações do Brasil
e sobretudo a Amazônia.

1 Rainha das Rainhas é um concurso tradicional de fantasias de carnaval que acontece anualmente em Belém no
período do Carnaval, quando modelos são fantasiadas com indumentárias de específicas desta festividade
2 Círio de Nazaré é uma festa religiosa que acontece em Belém do Pará no mês de outubro.
3 Festa da Chiquita é um evento que ocorre no período da trasladação da imagem de Nossa Senhora de Nazaré na

Festa do Círio de Nazaré. (Dossiê de Tombamento do Círio de Nazaré, IPHAN, 2006)

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A produção do estilista André Lima traz no seu bojo a influência da cultura de sua terra a Amazônia,
pois a natureza da região é um dos pontos de inspiração desse artista, seu trabalho abre um leque
para que possamos refletir e discutir aspectos intimamente ligados ao seu lugar de origem, pois
não só as estampas, mas também a textura dos tecidos nos remete a fauna, a flora, aos festejos,
a arquitetura assim como outros elementos da expressão popular amazônica. Mas, o produto do
estilista não se resume ao regional, ele consegue fazer um link com elementos de outras culturas
indo do regional ao nacional e ao internacional. Por esta razão é justificada a incorporação das
suas obras na Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte da Universidade Federal do Pará.

A COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE DA UFPA


A Coleção Amazoniana é fruto de um percurso de trabalho que reúne obras de vários artistas
atuantes na Região Amazônica. Conforme Orlando Maneschy, curador da Coleção Amazoniana
de Arte, elucida que este trabalho tem o intuito de “ir além das imagens clichês difundidos sobre a
Amazônia, que apresenta uma história trincada e uma produção artística potente, que vem aos
poucos sendo conhecida. ” (MANESCHY, 2013, p.20). As obras que compõem esta coleção
buscam a reflexão sobre a história, a cultura e política desta região, com o compromisso de gerar
um pensamento crítico sobre esse território e fomentar novas pesquisas no âmbito das artes.
Busca, deste modo, promover e desenvolver o papel transformador que a arte possui na nossa
contemporaneidade (MANESCHY, 2013, p.13).

O ACERVO DO ANDRÉ LIMA


O acervo doado por André Lima vem compor a Seção Moda da Coleção Amazoniana e é formado
por peças de indumentárias, tais como roupas, bijuterias e adornos de cabeça, bem como
documentos em papel que apresentam o processo criativo de muitas peças, como croquis,
amostras de estampas em tecido para teste de cores, catálogos de coleções, fotografias e slides,
produzidos e doados por André Lima. Também constam, neste acervo, documentos que revelam
um pouco da trajetória do estilista no mundo da moda e sua repercussão no Pará, seu estado
natal. Atualmente, o acervo encontra-se arrolado e em processo de inventariação dentre outras
ações de curadoria de acervo.

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Fotos do acervo durante o arrolamento das peças


Fonte: Projeto de Curadoria da Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte

AS AÇÕES DE CURADORIA
Considerando o desenvolvimento e os aprimoramentos das ideias acerca do conceito de curadoria
de acervos museológicos, bem como a existência de diversas acepções que coexistem atualmente
em volta deste, para fins do trabalho desenvolvido pelo projeto em questão, busca-se pensar nas
ações integradas e interdisciplinares, com profissionais das áreas e especialidades que
demandam o acervo que forma a Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte da UFPA. Deste
modo, entende-se por curadoria de acervo museológico, conforme Maria Cristina Oliveira Bruno,
define:
Curadoria, a partir de um olhar permeado por noções museológicas, permite
perceber a importância da cadeia operatória de procedimentos de salvaguarda
(conservação e documentação) e comunicação (exposição e ação educativo-
cultural) que, uma vez articulados com os estudos essenciais relativos aos
campos de conhecimento responsáveis pela coleta, identificação e
interpretação das coleções e acervos, são fundamentais para o
desenvolvimento dos museus e das instituições congêneres. (BRUNO, sd. p.7)

Assim, a curadoria do acervo André Lima, é por hora desenvolvida e sustentada em quatro pilares
que têm como ações básicas a Documentação, Conservação, Pesquisa e comunicação de

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acervos museológicos. A Documentação de acervos é compreendida conforme Helena Dodd


Ferrez, como:
Conjunto de informações sobre cada um dos objetos que formam o acervo do
museu ou coleção, seguida da sua representação pela palavra e pela imagem
(fotografia). Também é um sistema de recuperação de informação capaz de
potencializar as coleções dos museus/coleções, transformando-as de meras
fontes de informações, em fontes de pesquisa científica ou em instrumentos
de transmissão de conhecimento a serviço do desenvolvimento da sociedade
(FERREZ, S/D).
Deste modo, no que diz respeito à documentação museológica o que se buscou na primeira etapa
do projeto foi desenvolver a documentação inicial do acervo, por meio do arrolamento, catalogação
e inventário. Que corresponde a quantificação e qualificação do acervo a partir da sua
organização, sistematização, armazenamento e disseminação das informações a ele referentes.

AÇÕES DE CONSERVAÇÃO
Por hora, as ações de curadoria dispensadas a este acervo, referentes à área da conservação,
vêm sendo desenvolvidas por meio da climatização e armazenamento do acervo, diagnóstico e
separação do acervo contaminado ou em risco.
Conforme Yacy-Ara Froner e Luiz Souza “A conservação dos bens culturais pode ser
compreendida como o conjunto de esforços para proteger ao máximo a existência dos objetos”
(FRONER e SOUZA, 2008. p.03). Por isso, a importância de um diagnóstico como primeiro passo
para conhecer as demandas do acervo em relação a sua conservação, com isso estabelecer os
critérios de conservação preventiva a serem adotados, levando em consideração os aspectos
físico e organizacional do acervo.
As medidas de conservação preventiva têm por objetivo reduzir a deterioração e os riscos de perda
ou degradação das peças, minimizando a necessidade de futuras intervenções, portanto conforme
a arquiteta Claudia Carvalho “A conservação preventiva pode ser definida como um conjunto de
ações para mitigar as forças responsáveis pela deterioração e pela perda de significâncias dos
bens culturais” (CARVALHO, 2007.p.37). Portanto destacamos a necessidade de criar medidas
de conservação preventivas que podem ser diretas ou indiretas. As medidas indiretas envolvem o
monitoramento da coleção, métodos de manuseio dos objetos para prevenir perdas e quaisquer
danos físicos, gerenciamento de riscos e sinistros, critérios de escolha dos meterias para
embalagem, controle do ambiente e microambientes, dentre outras ações referentes à área da
conservação preventiva. As medidas diretas têm como primeiro passo o diagnóstico que é uma
ferramenta para decidir os procedimentos adotados na salvaguarda do acervo como um todo,
como para a limpeza, armazenamento, intervenções diretas na peça (CARVALHO, 2007. p. 7).

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Logo, a conservação preventiva está relacionada aos aspectos técnicos e organizacionais,


voltados para promover o melhor ambiente físico e, consequentemente, minimizar a deterioração
do acervo.
Dada à situação em que o acervo se encontrava no momento do seu recebimento, em caixa de
papelão superlotadas de objetos diversos, sem sinalização do conteúdo e relação das peças
doadas. A partir disto, foram estabelecidos os seguintes critérios emergenciais para o
desenvolvimento das primeiras ações de conservação do Acervo André Lima, tais como, à
segurança, armazenamento e climatização: o acervo encontra-se no Laboratório de
Documentação e Conservação em Reserva Técnica do curso de Museologia da UFPA, sob
responsabilidade deste e do Museu da UFPA (MUFPA). Neste local foi adotado uma trava
eletrônica com chave e senha para garantir maior segurança do acervo; películas blackout foram
instaladas nas janelas com a finalidade de bloquear a incidência direta da luz natural na sala onde
as ações de curadoria são desenvolvidas; monitoramento climático por meio de duas centrais de
ar que possuem função de climatização e desumidificação, que se revezam de 24 em 24 horas
para promover uma constante temperatura de 22ºC.
O acondicionamento das roupas é realizado por meio de armários e mapotecas de aço, trancados
com chaves. Sendo que a maior deste material ainda se encontra provisoriamente acomodado
nas prateleiras dos armários, posteriormente serão recondicionados em mapotecas onde terão em
cada gaveta um forro de manta de espuma polietileno intercalados por cobertura de TNT, sendo
admitido somente uma sobreposição.

Imagem do acervo de vestuário na mapoteca


Imagem da etiqueta da mapoteca com a numeração provisória
Fonte: Projeto de Curadoria da Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte

Em relação ao acervo de espólio documental este está acondicionado em caixas-arquivos de


polionda e guardado em uma estante de aço. O material básico utilizado para o manuseio das

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peças é composto por um kit que inclui máscaras de TNT, luvas descartáveis de látex e aventais
de TNT ou jalecos em oxford.

AÇÕES DE PESQUISA
Paralelamente com o processo inicial de documentação são desenvolvidas as pesquisas sobre o
acervo e seu processo de concepção e produção, bem como aspectos sociais relevantes que
envolvam a produção de moda no estado do Pará, de forma a contemplar os objetivos da Coleção
Amazoniana de Arte, bem como as suas influências e processos de criação. Estas pesquisas têm
por intuito alimentar a documentação para posteriormente à divulgação das informações
coletadas, por meio de exposições e publicações. Outro ponto importante são os desafios de
identificação das peças, daí a importância da pesquisa como vetor de conhecimento dos objetos
a partir de um acervo tão rico e diverso que contempla tanto a perspectiva da forma quanto a
função do objeto, uma vez que existem peças que não são compreensíveis à primeira vista.

Assim, percebe-se que a pesquisa de acervo é fundamental para a produção de conhecimento


tanto do ponto de vista cientifico quanto prático, enquanto visa o desenvolvimento das informações
do acervo, a partir dos procedimentos metodológicos e com alguma originalidade no campo em
que a pesquisa está sendo realizada (CHAGAS, 2005, p. 56). Considerando a Universidade como
uma instituição incentivadora na produção de conhecimento e que apresenta uma tradição de
pesquisa (SEVERINO,1941, p.28), o presente projeto, através das ações de curadoria, fomenta
esta produção, por meio de pesquisas voltadas ao acervo, as quais sustenta o desenvolvimento
da Coleção Amazoniana na UFPA em suas ações curatoriais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tudo isso considerando, pontuamos o caráter patrimonial do Acervo André Lima que como tal
precisa ser preservado para conhecimento das futuras gerações. Haja vista que estes objetos são
constituídos como patrimônio, dada a sua importância como registro histórico da moda brasileira
no século XXI, além disto, a co-curadora da Seção Moda da Coleção Amazoniana, a professora
Yorrana Maia, em entrevista destinada a este trabalho, salienta a relevância deste acervo, pois
permite reflexões sobre aspectos da moda contemporânea, bem como questões relacionadas
sobre à percepção de um renomado estilista que fala através de um olhar amazônico numa
perspectiva local/global.

Vimos que a moda enquanto um sistema de reprodução simbólica, relaciona-se com as ideias de
cultura, no sentido de ser uma produção humana, e pertencente a um dos seus sistemas, assim,
a moda é entendida como um sistema cultural; patrimônio, uma vez que a indumentária, uma das

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formas de materialização da moda, evoca uma série de questões relacionadas à memória e à


identidade, elementos que legitimam o patrimônio, ainda consciente de que o patrimônio,
sobretudo o institucionalizado nem sempre atende a todos os grupos sociais e suas demandas,
ainda assim, destacamos que “A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade,
tanto individual como coletiva […]” (POLLAK, 1992), com base na qual formam-se os patrimônios.
A moda, enquanto uma forma de comunicação, se estabelece neste quadro como um elemento
que expressa identidades.

Deste modo, as ações iniciais de curadoria desenvolvidas nesse acervo a partir do Projeto de
extensão, buscou a salvaguarda deste patrimônio, superando muitos desafios proporcionados
pelo trabalho com um acervo tão rico e diverso, tanto do ponto de vista das várias formas e funções
dos objetos, quanto das expertises necessárias ao trabalho, uma vez que curadoria de acervo é
uma tarefa multidisciplinar, e no caso do Acervo André Lima, contou com a grata parceria
institucional da Universidade Federal do Pará – UFPA e a Universidade da Amazônia – UNAMA,
por meio do local de guarda, professores de Conservação, Documentação e a Pesquisa.

REFERÊNCIAS

Livros

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Janeiro. En Moda Escola de empreendedores, 2012.

BENARUCH, Michelle Cauffmann. Por uma Museologia do Vestuário: Patrimônio Memória e


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fevereiro de 2016.

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Disponível em: http://lasmic.unice.fr/PDF/candau-article-10.pdf
CHAGAS, M. S. No Museu com a turma do Charlie Brown. Meridies, Monte Redondo, v.
17/18, p. 133-148, 1993.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

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Teses e dissertações

SOUZA, Yorrana P. Maia . Cartografia de si: territórios particulares e compartilhados do


processo de criação do estilista André Lima. (Dissertação de Mestrado) – Unama, Belém, 2013.

STEFANI, Patrícia da Silva. Moda e comunicação: a indumentária como forma de expressão.


(Dissertação de Mestrado). UFJF 2005.

Thompson, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
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Entrevistas

SOUZA, Yorrana P. Maia. Entrevista concedida para este artigo. Belém: 17 de maio de 2015.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

Modateca e Documentação: a vestimenta como documento


Modateca and Documentation: the garment as document

Luciana de Sousa Santos Costa (UnB) / lucianasousasantos1994@gmail.com


Dra. Rita de Cássia do Vale Caribé (UnB)1 / rita.caribe@gmail.com

Resumo: Estudo preliminar sobre o conceito e fundamentos do termo modateca, partindo da afirmação
de que a moda é espelho de momentos históricos e que ela é documentada por meio da indumentária.
Busca um conceito de modateca e o analisa a partir das noções de arquivo, biblioteca, museu e centro
de documentação, norteando em qual desses segmentos a modateca está inserida.
Palavras-chave: Modateca. Documentação. Indumentária.

Abstract: Preliminary study on the concept and fundamentals of modateca border was from the claim
that fashion is mirror of historical moments and it is documented through clothing. Search a concept of
modateca and analyzes from the notions of archive, library, museum and documentation center, guiding
these segments in which the modateca operates.
Keywords: Modateca. Documentation. Clothing.

Introdução

A moda pode ser considerada como espelho de momentos históricos, refletindo o


desenvolvimento científico, tecnológico, econômico, político e cultural de uma sociedade. Por este
motivo é importante estudar as vestimentas que se constituem em objetos representativos de um
período, lugar e sociedade. Neste caso, as vestimentas passam a ser objeto de estudo, sendo tratados
como documentos, e como tais são descritos, preservados e disseminados. Documento entendido
como objeto informacional, que possibilita a informatividade de algo por ter caráter social, histórico e
simbólico. As instituições que tratam especificamente de vestimentas com fins documentais e outros
objetos relacionados à moda são denominadas modateca. O objetivo principal deste estudo é definir
em qual parte da Ciência da Informação a modateca está inserida, isto é, definir se ela está mais
próxima de um museu, arquivo, biblioteca ou centro de documentação.
O artigo está dividido em sete partes. A primeira, intitulada Moda: reflexo indumentário da
história, consiste em um apanhado geral sobre o conceito de moda e a história da moda ocidental a
partir da Revolução Francesa. A segunda parte trata do documento e como a vestimenta pode ser
entendida como documento. As cinco partes seguintes são dedicadas à breve conceituação e
caracterização de arquivo, biblioteca, museu e centro de documentação. Após a conceituação e

1 Professora Adjunta da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

caracterização dessas partes, tenta-se caracterizar modateca e indicar em qual dessas áreas ela se
insere.

Moda: reflexo indumentário da história

Inicialmente, é necessário esclarecer o significado de vestuário que consiste no conjunto de


roupas e acessórios e demais complementos que compõem o traje. Moda é uma palavra de origem
francesa (mode) entendida como um costume que está em voga em um determinado tempo e lugar,
tem um caráter efêmero nas variações; caracteriza-se como um fenômeno coletivo que age
coercitivamente sobre o indivíduo, com mudanças frequentes e introduz o problema das escolhas
pessoais. A moda é um fenômeno significativo para análise social (ALMEIDA, 1995).
Diversos autores afirmam que o vestuário é um sistema de comunicação e, portanto, possui
uma linguagem. Estudos de Barthes (1979 apud ALMEIDA, 1995) e Sahlins (1979 apud ALMEIDA,
1995) buscaram fundamentar um método para o estudo sistemático do vestuário como sistema de
comunicação baseados na semiologia. O estudo do vestuário permite identificar as categorias culturais,
espaços culturais, espaço público e privado, diferentes regiões geográficas, noções de tempo e classes
sociais, dentre outros aspectos. Fernandes (2004) argumenta que a moda consiste em um símbolo
diferenciador de classes sociais e um canal comunicador de ideias, e parafraseando Lipovetsky (1989,
p. 23 apud FERNANDES, 2004, p. 2) “a moda é formação essencialmente sócio histórica, circunscrita a
um tipo de sociedade”.
Não cabe neste texto reconstruir a história da moda desde a idade antiga, entretanto, junto à
Revolução Francesa (1789), a moda começou a constituir-se como indústria (DISITZER; VIEIRA,
2006). A moda ocidental teve seu apogeu na Europa. O apoio da corte real de Luís XIV e o
desenvolvimento da indústria da seda aliados a alta-costura iniciaram o mercado internacional da
moda, sendo a França a grande fornecedora (FRINGS, 2012).
A revolução industrial, final do século XVIII, marcou o início da evolução tecnológica e
consequentemente da indumentária. Causou também grandes mudanças socioeconômicas que deram
origem a classe média, classe econômica que podia despender quantias para o consumo de moda.
Assim, a “moda se transformou em um símbolo de status, uma forma visual de mostrar riqueza”
(FRINGS, 2012, p. 7).
Inicialmente, a América colonial importava todos os materiais da indústria têxtil, mesmo os
modelos de vestuário eram importados da capital da moda europeia, a França (FRINGS, 2012). No
entanto, a modernização da indústria da moda e o esforço de Samuel Slater, que memorizou os
detalhes de algumas máquinas têxteis inglesas, tornaram a Nova Inglaterra (atualmente os Estados

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

Unidos da América) o primeiro centro têxtil da América. Assim, os Estados Unidos passaram a produzir,
em território nacional, seu próprio tecido (DISITZER; VIEIRA, 2006).
O consumo da moda pela classe média criou uma espécie de consciência social sobre a
indumentária, gerando assim a necessidade de produção de roupas em massa, gerando uma moda
acessível ou democratização da moda (FRINGS, 2012). Dessa forma, os Estados Unidos foram o
berço do ready-to-wear (1880) e do varejo no mercado da moda.
A Itália, especificamente Milão, entrou no circuito da moda na década de 1980, tendo como
trendsetter principal, o estilista Giorgio Armani (FRINGS, 2012). A moda oriental também entrou no
circuito de moda mundial, o Japão tornou-se uma das capitais da moda (FRINGS, 2012) lançando as
silhuetas oversized ou extra grande.

Documento e Documentação

Documentação, de acordo com Cunha e Cavalcanti (2008, p. 131), é o “processo que consiste
em criação, coleta, organização, armazenamento, e disseminação de documentos ou informações”. A
documentação é extremamente abrangente, estuda tanto o material textual quanto o não textual,
trabalha com os “documentos de todos os gêneros de domínio da atividade humana” (COBLANS, 1957,
p. 11 tradução nossa). Para Coblans (1957) a documentação preocupa-se com objetos potencialmente
informativos. Complementando com Ortega e Lara (2010) a documentação ocupa-se do “documento
enquanto objeto informacional”, ou seja, tem o potencial de informar, transmitir algo, o que corrobora
com as palavras de Buckland (1997) de que a documentação se ocupa com textos, mas também com
acesso a evidências.
Para López Yepes (2011, p. 57) a documentação pode ser considerada uma ciência ou uma
disciplina, dependendo do referencial de análise. Define documentação a partir do seu objeto de
estudo, tomando o conceito de informação documental e o conceito de processo documental como
processo informativo de natureza peculiar por meio do qual são recuperadas mensagens informativas
emitidas em processos anteriores e que mediante sua conservação e processamento técnico, são
difundidas e transformadas de acordo com a finalidade da fonte de informação para a obtenção de
novo conhecimento ou para apoiar a tomada de decisão nas organizações, empresas e instituições.
Complementando, de acordo com López Yepes e Ros García (1993 apud HERNÁNDEZ
HERNÁNDEZ, 2011), documentação é um conjunto de disciplinas que se encontram relacionadas com
o estudo e análise de um documento, enquanto fonte de informação, que possibilita a obtenção de
novas informações. Inclui neste conjunto a arquivíistica, biblioteconomia, documentação e museologia.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

O objeto da documentação é o documento. Buckland (1997) resgata Paul Otlet e Suzane Briet,
e realiza uma análise do conceito de documento, na qual objetos tridimensionais são susceptíveis de
serem considerados documentos. Assim, não apenas os registros gráficos e escritos são
representações de ideias ou de objetos, mas os próprios objetos podem ser considerados documentos.
Para Paul Otlet, documento é qualquer expressão do pensamento humano.
O texto de Briet (1951) resgata conceitos de documento desde aqueles encontrados em
dicionários clássicos nos quais documento é uma prova em apoio a um fato, bem como o conceito
apresentado pela Union Française des Organismes de Documentation, que define documento como
todas as bases de conhecimento fixadas materialmente e suscetíveis de serem utilizadas para
consulta, estudo ou prova. Através da análise desse conceito ela propõe uma definição que considera
mais atualizada, porém abstrata: “tout índice concret ou symbolique, conservé ou enregistré, aux fins
de reprèsenter, de reconstituer ou de prouver um phénomène ou physique ou intellectuel” (BRIET,
1951, p. 7), ou seja, qualquer índice concreto ou simbólico, preservado ou gravado com a finalidade de
representar, reconstituir ou provar um fenômeno físico ou intelectual. Briet (1951) explica que um
animal vivo, por exemplo, não é um documento, mas quando ele é catalogado e faz parte do ‘acervo’
de um zoológico, ele se torna um documento. Nos tempos atuais, ate mesmo um animal livre na
natureza, porém que possua um chip, pode ser considerado um documento, pois por meio deste chip
ele pode ser localizado, está catalogado, assim o conceito de Briet pode ser ampliado.
Com base nos estudos realizados pode-se afirmar que o documento não necessariamente
nasce documento, mas torna-se de acordo com a função e o tratamento que lhe é dado (ORTEGA;
LARA, 2010).
[...] todo objeto pode tornar-se um documento. O desejo de obter uma informação é
um elemento necessário para que um objeto seja considerado como documento,
ainda que o desejo de seu criador tenha sido outro. O documento não é um dado,
mas o produto de uma vontade, aquela de informar ou de se informar, a segunda
sendo sempre necessária, já que o desejo de fornecer informação pode não ter
resposta do destinatário. É o usuário quem faz o documento. (MEYRIAT, 1981, p. 52-
54 apud LARA; ORTEGA, 2008, p. 4).

Ainda no exemplo de Briet (1951), quando um animal é fotografado, a foto é um documento.


No entanto, nesse exemplo, a foto nasceu com uma origem e função informacional, ou seja, a foto
nasceu como documento. Nesse caso, de acordo com Ortega e Lara (2010), o animal no zoológico
tornou-se documento por função atribuída e a foto do animal originou-se intencionalmente como
documento.
Retornando a Buckland (1997), após análise de textos de Briet ele infere que um documento
deve possuir as características:

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

a) Possuir materialidade – objetos físicos e apenas sinais físicos.


b) Ter intencionalidade – o objeto precisa ser tratado como evidência.
c) Os objetos precisam ser tratados, processados, registrados de forma que possam ser
recuperados posteriormente, ou seja, o objeto é descrito e referenciado.
d) O objeto é percebido como um documento, ou seja, há uma posição fenomenológica.

A partir do exemplo do animal de Briet (1951), é possível delinear outro exemplo que se
adequa aos objetivos deste trabalho. A vestimenta não nasce documento, sua função primária é vestir.
No entanto, as roupas “contêm e contam histórias” (FERREIRA, 2014, p. 40). Isto mostra que a roupa
não nasce como documento, mas torna-se. A indumentária representa períodos históricos, sociais e
culturais, tornando-se assim objeto de memória. Isto é, ela “atua, em parte, como vitrine de
comportamento de uma sociedade ou período” (FERREIRA, 2014, p. 43).
Exemplo concreto desta afirmativa está relatado no artigo Vestido de 1910: memória de um
passado de moda, de autoria de Gruber, Lopes e Beirão Filho (2009) sobre um vestido de 1910 que foi
recebido pela Modateca do Centro de Artes, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Segundo
eles os têxteis, “através de suas técnicas, formas e conteúdo, são objetos impregnados de
expressividades, de tendências, pensamentos, simbolismos e crenças de comunidades e culturas,
portanto, suporte de informações” (GRUBER; LOPES; BEIRÃO FILHO, 2009, p. 81).
Complementando com Roland Barthes (1988, p. 182 apud BUCKLAND, 1997), ao discutir a
semântica do objeto, ele analisa a função do objeto como um veículo de significado. O objeto serve
também para comunicar informações, ou seja, o objeto possui um sentido que extrapola o seu uso.

Arquivo

Para a arquivologia o conceito de documento possui algumas particularidades. De acordo com


Heredia Herrera (1991, p. 122), estudioso da área de arquivística, documento é, em um sentido amplo
e genérico,
[...] todo o registro de informação, independentemente de seu suporte físico. Abarca
tudo que pode transmitir o conhecimento humano: livros, revistas, fotografias, filmes,
microfilmes, microfichas, folhas, transparências, desenhos, mapas, informes,
normas técnicas, patentes, fitas gravadas, discos, partituras, cartões perfurados,
manuscritos, selos, medalhas, quadros, modelos, fac-símiles e, de maneira geral,
tudo que tenha um caráter representativo nas três dimensões e esteja submetido à
intervenção de uma inteligência ordenadora.

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Complementando com Romero Tallafigo (1994 apud RUIZ RODRIGUES, 2011), documento de
arquivo contém informação ou declaração, em qualquer suporte, formato, data, linguagem, que tenha
sido recebido ou expedido no exercício das funções legais ou transações de negócios por uma
instituição ou pessoa que é conservado para efeito de testemunho ou prova e continuidade de gestão
(RUIZ RODRIGUES, 2011).
O valor do documento de arquivo é um dos pontos que marca a diferença com outros tipos de
documentos. Ele tem valor administrativo, jurídico e histórico, os quais por sua vez podem ser
influenciados pelas variáveis tempo e lugar (RUIZ RODRIGUES, 2011).
Outra característica do documento de arquivo, refere-se ao seu tempo de vida definido de
acordo com a tabela de temporalidade desenvolvida pela instituição com base na legislação existente
sobre o assunto.
Para Rodrigues (2006, p. 105), o arquivo resulta dos processos de produção e recepção de
documentos, ou seja, resulta de “dois processos integrados”. Com base nessas afirmações, percebe-se
que uma das principais funções do arquivo é a prova documental (RABELLO; RODRIGUES, 2014). Isto
é, o arquivo guarda documentos com fins de comprovação funcional (CUNHA; CAVALCANTI, 2008), é
diretamente relacionado à produção e conservação dos documentos com os objetivos funcionais pré-
definidos.
Vieira (2014) afirma que um arquivo tem uma composição. Para tanto, tal composição é feita
de acordo com a seguinte hierarquia:
● Fundo: “conjunto de peças de qualquer natureza que qualquer entidade administrativa,
qualquer pessoa física ou jurídica, reuniu automática e organicamente, em razão de suas
funções ou de suas atividades” (AAF apud CUNHA; CAVALCANTI, 2008, p. 177).
● Série e subsérie: documentos organizados de acordo com critérios pré-estabelecidos (CUNHA.
CAVALCANTI, 2008).
● Unidade de instalação: local de arquivamento.
● Item documental: cada documento.
● Dado: “informação quantificável” (CUNHA; CAVALCANTI, 2008).

Existem três tipos de arquivo, de acordo com Rodrigues (2006): corrente (arquivo ativo ou em
formação), intermediário (arquivo em que os documentos aguardam avaliação tanto para eliminação
quanto para guarda permanente) e permanente (arquivo que não será eliminado).
Ao se pensar em documento de arquivo, este deve ser visto sob duas ópticas. Na primeira, o
documento é visto com um item único, isolado dos outros documentos, isto é, seu significado é único e
intransferível (JARDIM; FONSECA, 1998 apud RODRIGUES, 2006). Sob uma segunda óptica, o

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documento de arquivo deve ser visto como um todo, um item pertencente a um conjunto, isto é, o
conjunto arquivístico passa a narrar uma história e/ou contexto individual ou institucional (JARDIM;
FONSECA, 1998 apud RODRIGUES, 2006).

Museu

De acordo com o artigo 1° da Lei n. 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que estabelece o


Estatuto dos museus

Consideram-se museus, [...], as instituições sem fins lucrativos que conservam,


investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo,
pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico,
artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público,
a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento. (BRASIL, 2009, art. 1°)

A definição do International Council of Museums (ICOM), de acordo com Colin (2013), é


verossímil a da Lei n. 11.904 (BRASIL, 2009). No entanto, Deloche (2007 apud COLIN, 2013, p. 66)
discute que mesmo um museu tendo fins lucrativos, ele ainda será museu, não é o seu caráter lucrativo
ou não que o define como tal, mas a sua função de “transmissão da cultura”. Para tanto, Cunha e
Cavalcanti (2008, p. 255) defendem que museu é uma “instituição dedicada a buscar, cuidar, estudar,
documentar e expor objetos de interesse duradouro ou de valor”. Partindo do objetivo de preservar, o
museu desempenha funções: “coleta e estudo dos objetos e/ou espécimes da natureza; salvaguarda
das coleções e/ou referências patrimoniais (conservação, documentação e comunicação) [...]”
(BRUNO, 1997, p. 25). Estudo realizado por Hernández Hernández (2011) ressalta que os vestígios de
qualquer cultura material constituem a memoria coletiva e os objetos de um museu objetivam a
memória de uma comunidade.
O documento para a museologia é considerado todo objeto físico que contém uma
determinada informação. Quando um objeto entra no museu deixa sua condição ordinária para
converter-se em objeto de memória dentro da comunidade. Adquire um estatuto simbólico que o leva a
ser exposto e ao mesmo tempo consiste em um material que pode ser tratado documentalmente. O
objeto precisa ser situado em seu ambiente histórico e possuir valor de prova em relação a ele, pois
eles documentam, informam, provam e são testemunho de uma realidade. O documento pode estar em
qualquer suporte, mas deve conter conhecimento e informação e servir como meio para sua
transmissão. Além da sua dimensão física, o objeto possui uma dimensão imaterial que leva em conta
o seu valor histórico, científico, econômico e cultural (HERNÁNDEZ HERNÁNDEZ, 2011).

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Biblioteca

A palavra biblioteca vem do grego βιβλιοϑήκη, composto de βιβλίον, biblion - "livro", e ϑήκη
theca - "depósito". Ao longo do tempo, o termo deixou de ter um significado de depósito, pois a coleção
não pode ser concebida como algo estático, adquirindo um sentido dinâmico, que vai ao encontro das
necessidades de informação dos usuários, antecipando a demanda ao oferecer serviços e produtos
informacionais, como os serviços de disseminação seletiva de informação (DSI). O conceito de
biblioteca precisa ser revisado periodicamente devido ao seu caráter evolutivo no qual são produzidas
mudanças significativas como a introdução de novos suportes e serviços decorrentes do
desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e o fenômeno da globalização
que provocaram profundas transformações na sociedade.
Para Cunha e Cavalcanti (2008, p. 48), biblioteca é uma “coleção de material impresso ou
manuscrito ordenado e organizado com o propósito de estudo e pesquisa ou de leitura geral ou
ambos”. Para Caribé e Brito (2015) bibliotecas, são unidades sociais caracterizadas pela organização
de conjuntos de objetos informacionais objetivando sua recuperação e disseminação em sintonia e
sincronia com as demandas efetivas e potenciais de sua clientela.
Existem diferentes tipos de bibliotecas, baseados em critérios definidos geralmente a partir do
grupo social ao qual se destina. Assim, tem-se biblioteca infantil, escolar, universitária, pública;
bibliotecas especializadas que atendem a uma área temática ou instituição específica ou a grupos
sociais específicos tais como médicos, advogados; bibliotecas especiais que atendem a deficientes
visuais e auditivos, doentes em hospitais, presídios, dentre outros.
Há ainda outro tipo de biblioteca, as nacionais criadas após a Revolução Francesa que
implantou o propósito de levar a cultura a todos os cidadãos, a partir da abertura das bibliotecas reais
para o público (CAMPELLO, 2006; ORERA ORERA, 2011). As bibliotecas nacionais foram criadas com
o intuito de preservar o patrimônio intelectual de cada cultura. Posteriormente receberam novas
funções, como a de fomentar a criação de bibliotecas públicas e de realizar o controle bibliográfico do
país. Em 1977, a Unesco (apud CAMPELLO, 2006, p. 22) propôs que uma biblioteca nacional “tem a
responsabilidade de controlar o depósito legal e de produzir a bibliografia nacional”.
De acordo com diferentes critérios existem outros tipos de biblioteca: biblioteca polimídia,
biblioteca interativa, biblioteca digital, biblioteca virtual, biblioteca eletrônica etc. A biblioteca híbrida
possibilita o acesso a “diversos tipos e formatos de informação” (GARCEZ; RADOS, 2002, p. 45), ela
permite a integração entre vários meios de divulgação de informação, eliminado assim problemas de
incompatibilidade entre mídias (GARCEZ; RADOS, 2002, p. 45).

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De forma bastante simplificada, o que mais caracteriza uma biblioteca é a prestação de


serviços e produtos de informação a um grupo de usuários, para isso ela constrói uma coleção e a
procede a descrição física e de conteúdo dos documentos que integram a coleção de forma que
possam estar disponíveis no momento em que o usuário solicita determinada informação. Portanto, o
tipo de documento e de serviços e produtos irão variar de conformidade com o tipo de usuário e de
necessidade informacional.

Centro de documentação

De acordo com Cunha e Cavalcanti (2008, p. 77), centro de documentação é “qualquer


entidade que tenha como função principal a aquisição, tratamento, armazenamento e divulgação de
livros, periódicos e/ou outros documentos”. Guinchat e Menou (1981 apud ROS GARCIA, 2011) e
Mijailov (1974 apud ROS GARCIA, 2011) afirmam que centro de documentação é sinônimo de
biblioteca especializada, o que é contestado por López Yepes, sob a argumentação que o centro de
documentação vai além do seu acervo, ao qual pode ser incorporado qualquer tipo de documento e
oferece serviços e produtos de informação, não apenas o documento primário, mas elabora relatórios,
informes com maior nível de análise e síntese. Já Tessitore (2003, p. 13) afirma que um centro de
documentação é uma “entidade híbrida” com foco em um acervo misto de uma temática específica.
Pensando na definição adotada por Cunha e Cavalcanti (2008), um arquivo, uma biblioteca e
um museu são, mesmo em sua individualidade, centros de documentação. No entanto, ao se
interpretar a afirmação de Tessitore (2003), entende-se que um centro de documentação integra, ao
mesmo tempo, as características de arquivo, biblioteca e museu. Ou seja, um centro de documentação
trata do documento tanto para fins funcionais quanto culturais e patrimoniais. Assim, o acervo de um
centro de documentação abrange acervos arquivísticos, biblioteconômicos e museológicos, portanto
um acervo misto.

A acumulação desse acervo possibilita aos Centros cumprirem suas funções de


preservação documental e apoio à pesquisa, no mais amplo sentido: não só
colocando à disposição do pesquisador referências para a localização das fontes de
seu interesse, mas também tornando-se um pólo de atração da produção documental
de pessoas e entidades que atuam ou atuaram no seu campo de especialização.
(TESSITORE, 2003, p. 15)

O acervo de um centro de documentação terá princípios, métodos e normas diferentes de


acordo com o documento a ser tratado. Assim como um documento arquivístico, um documento de um

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centro de documentação será visto de forma individual e como parte integrante do conjunto
(TESSITORE, 2003).
Ainda de acordo com Tessitore (2003, p. 14), um centro de documentação se caracteriza por

[...] possuir documentos arquivísticos, bibliográficos e/ou museológicos, constituindo


conjuntos orgânicos (fundos de arquivo) ou reunidos artificialmente, sob a forma de
coleções, em torno de seu conteúdo; ser um órgão colecionador e/ou referenciador;
ter acervo constituído por documentos únicos ou múltiplos, produzidos por diversas
fontes geradoras; possuir como finalidade o oferecimento da informação cultural,
científica ou social especializada; realizar o processamento técnico de seu acervo,
segundo a natureza do material que custodia.

Assim, um centro de documentação agrega características, tanto de função quanto de acervo,


de arquivo, biblioteca e museu. Além de ter como principal foco de atuação o uso e as necessidades de
informação e “a preservação da memória ou a pesquisa histórica” (TESSITORE, 2003, p. 18).

Modateca

A palavra modateca é composta de mode, palavra francesa que significa um costume que está
em voga em um determinado tempo e lugar. Esta palavra, no entanto tem sua origem do latim modus
que significa maneira, medida, e theca de origem grega que significa depósito.
A ideia de modateca despontou na década de 1990 (ROKICKI, 2013). De acordo com Rokicki
(2013), a modateca derivou da teciteca (biblioteca de tecidos ou deposito de tecidos se adotar a
etimologia da palavra). Ainda, de acordo com Rokicki (2013), o acervo de uma modateca é composto
por exemplares de figurinos, vestuários, chapéus, sapatos, diversos acessórios, amostras de tecidos,
cartelas de cores etc.
Uma modateca tem como objetivos, conforme Rokicki (2013), a guarda de memória da moda e
auxiliar em pesquisas acadêmicas focadas em indumentária, tendências e previsão de cenários em
moda. Mágno, Albuquerque e Ribeiro (2010) vão além ao afirmar que uma modateca ampara, também,
pesquisas industriais e de mercado de moda. Desta forma, uma modateca “visa disponibilizar um
acervo de informações técnico-científicas de moda que beneficiará empresas, estudantes, professores
e profissionais de moda [...]” (MÁGNO; ALBUQUERQUE; RIBEIRO, 2010, p. 2).
Para Andrade (2006 apud BEIRÃO FILHO; BALDESSAR, 2011) o acervo da modateca é
composto por artefatos têxteis, que possuem uma biografia, uma vida social, cultural, política e mantém
como consequência relação com outros objetos e pessoas. Esses objetos se constituem em fontes de
informação histórica, da ciência e tecnologia utilizadas para sua fabricação. Essas informações
precisam ser decodificadas e mapeadas de acordo com suas relações com o espaço, tempo, pessoas

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etc. Após esses estudos do objeto ele se transforma em um objeto singular que pode ser utilizado para
pesquisa, ensino e aprendizagem como recurso didático-pedagógico.
Do ponto de vista prático, a Modateca da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Caruaru tem
como objetivo fornecer informações técnico/científicas sobre tecnologia têxtil e tendências de moda
para a comunidade empresarial, acadêmicos e profissionais de moda que servirão de suporte ao
processo de criação e desenvolvimento de produtos de moda (BARROS, 2009). Atuará como espaço
para elaboração e disseminação do conhecimento e da produção acadêmica, a partir de ações
interdisciplinares entre pesquisa, ensino e extensão, podendo incentivar a criação de novos produtos
da moda, através da divulgação de projetos experimentais e dos projetos de extensão às empresas e à
sociedade em geral (BARROS, 2009).
Outro exemplo de modateca é a do curso de Graduação em Moda do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa Catarina, que consiste em espaço para preservação têxtil da
memória da moda, para ensino e pesquisa, com funções educativa, cultural e social (FERNANDES,
2004).
Ao comparar a indumentária para o museu e para modateca conclui-se que para museus,
quando uma peça de roupa é incorporada ao acervo ela se torna um “objeto de contemplação”
(FERREIRA, 2014, p. 40). Isto é, a roupa torna-se patrimônio de uma instituição. No entanto, para uma
modateca, quando uma peça é incorporada ao acervo, ela torna-se um objeto de estudo, além de
torna-se fonte de previsão de tendência e cenários em moda (ROKICKI, 2013).
Beirão Filho (2011, p. 80) define que moda é entendida como a

“[...] dinâmica sócio-histórica em que a aparência constitui a forma base de


articulação entre os sujeitos; portanto, a moda é um produto histórico, uma
instituição estruturada pelo efêmero e pela fantasia estética, característica do
Ocidente e da própria modernidade.”

Beirão Filho (2011, p. 80) considera a roupa como um objeto que funciona como uma
metalinguagem, transmitindo uma informação entre o indivíduo e o grupo, revela o que se foi ou
desejaria ser, reforça uma identidade, a ideia de que se pertence a um determinado grupo. Ele destaca
diversos aspectos que podem ser estudados a partir da análise de um objeto como a roupa: sua época,
quem a produziu, a matéria-prima utilizada, a técnica utilizada para sua fabricação, tipo de modelagem
utilizada, máquinas utilizadas, o seu uso, quem a usou, em que ocasião, o grupo social a que pertencia
e mais muitas outras informações podem ser extraídas. Ele conclui que a roupa deve ser administrada
como documento, de acordo com uma metodologia científica. Em levantamento realizado em 2011,
identificou mais de 40 instituições museológicas dedicadas às artes da moda e da indumentária e 7 são
no Brasil (BEIRÃO FILHO, 2011).

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Buckland (1997) afirma que o objeto pode transmitir informação sobre o mundo que o produziu,
pode já estar organizado de forma que seja acessível a quem necessita de tal evidência, porém pode
ser organizado para atender a um indivíduo ou grupo que seja capaz de fazer uso do objeto como uma
nova evidência para outros fins.

Considerações Finais

Tanto as bibliotecas quanto os arquivos e museus são instituições que têm como objetivo
comum a preservação da história humana, isto é, as três têm “perspectiva patrimonialista [que] volta-se
para os ‘tesouros’ que devem ser custodiados, ressaltando a importância da produção simbólica
humana” (ARAÚJO, 2014, p. 14). Por zelar pela produção humana, tais instituições têm como principal
objeto de trabalho os acervos, que são tratados de acordo com suas especificidades e dimensões
(ARAÚJO, 2014). Contudo, enquanto o arquivo tem como objetivo principal tratar os documentos para
fins de prova documental (RABELLO; RODRIGUES, 2015), as bibliotecas, para fins culturais e de
disseminação da informação (VIEIRA, 2014), o museu tem como objetivo básico preservar patrimônio
histórico, social e cultural (BRUNO, 1997).
Ao pensar centros de documentação como locais físicos, virtuais ou digitais que organizam
materiais com o objetivo de estudo e pesquisa, conclui-se que a modateca é um tipo de centro de
documentação em que o material tratado é principalmente o vestuário, incluindo também livros,
periódicos, folhetos e outros suportes. Sendo que, a roupa torna-se um documento por atribuição, ou
seja, ela não é criada como documento, mas torna-se.
Modateca é entendida como centro de documentação, pois o acervo, as pesquisas etc. são
focados em um assunto específico: a moda. Além de que a modateca tem como funções a preservação
de documentos, o apoio à pesquisa, tanto acadêmica quanto industrial e de mercado, e seu acervo é
misto (documentos arquivísticos, biblioteconômicos e museológicos).
Ao tratar da vestimenta como documento e da modateca como centro de documentação, essa
pesquisa deixa espaço para várias outras pesquisas. Tais como um estudo de caso comparativo entre
as modatecas brasileiras, estudo de usuários desses centros de documentação, como o ciclo
documentário é aplicado no tratamento da indumentária, a construção de diretrizes para a modatecas,
dentre outros.

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ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 567


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O acervo Rui Spohr: um breve relato sobre ações de conservação preventiva


The Rui Spohr collection: a brief expose about preventive conservation actions
Renata Fratton Noronha (PUCRS/CNPq)
Ana Reckziegel ( Reckziegel Acervos)

Resumo:
O presente artigo busca apresentar o acervo particular de Rui Spohr, costureiro gaúcho com
uma trajetória de mais de sessenta anos dedicados à moda. Dividido em quatro coleções, o
acervo testemunha a atuação de Rui através de um rico conjunto documental, o que possibilita a
ação de pesquisadores de diferentes áreas. Será apresentado o resultado da ação preventiva
que envolve a amostra documental que registra a participação do costureiro nos desfiles
promovidos pela empresa têxtil Rhodia, durante a Feira Nacional da Industria Têxtil (FENIT), nos
anos de 1962 a 1964.

Palavras-chave: Rui Spohr; Rhodia; Conservação preventiva

Abstract:
This article presents the private collection of Rui Spohr , couturier from South Brazil who has
been working into fashion formore than sixty years. Divided into four collections , the collections
witness Rui acting through a rich set of documents , which allows the action of researchers from
different areas . It will present the results of a preventive action, involving a documentary sample
that shows Rui´s particitpation into parades organized by Rhodia textile company during the
National Fair of Textile Industry ( FENIT ) in the years 1962-1964 .

Key words: Rui Spohr;Rhodia; Preventive action

A moda no museu e os acervos de moda

O Conselho Internacional de Museus (ICOM) define “museu” como: “uma instituição


permanente, sem fins lucrativos, à serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberto ao
público e que realiza pesquisas relativas aos testemunhos materiais dos homens seu ambiente,
adquire -os , conserva , comunica e expõe , para fins de estudo , ensino e lazer”.1
Etimologicamente, o termo “museu”, vem do latim “museion”, templo das musas, divindades das
artes.
                                                                                                                       
1
 Tradução nossa. Texto disponível em : http://icom.museum/definition_fr.html.

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Já a moda, que vem do latim “modus”, representa um fenômeno de mudança


permanente, fortemente associado ao vestir, representativo de um patrimônio cultural e estético.
As roupas, ultrapassando sua condição de objetos têxteis, permitem novas possibilidades de
atuação no mundo social: a alteração da hierarquia de valores modifica as relações sociais,
afetando a maneira como as pessoas se enxergam e se mostram aos demais. Assim, a
transformação da imagem de si mesmo e da sua conexão com o outro impulsionam também
uma nova forma de vestir e de produzir sentidos, reforçando laços com o meio social e com o
próprio corpo.
Portanto, podemos compreender que a moda é um fenômeno social relacionado à
cultura de um determinado período, sendo possível, através dela, a manifestação de valores e
de gostos relativos a determinado grupo social ou a determinado estilo de vida.
A presença das roupas nos acervos museológicos é relativamente recente: suas
origens datam do século XIX, tendo nascido do desejo de fornecer aos artistas e figurinistas da
época subsídios para que desenvolvessem as suas criações. Se, inicialmente, as roupas eram
conservadas em função de seus tecidos, as obras, que visam a traçar a história do vestir,
culminaram reforçando o papel da roupa como documento histórico, o qual se tornou digno de
ocupar espaço em museus. Entre os pioneiros, encontram-se Albert Racinet e Jules Quicherat,
que se esforçaram para realizar levantamentos históricos meticulosos, assim como de
colecionadores, como Maurice Leloir e François Boucher2, cujos esforços determinaram com que
o vestuário fosse tratado como patrimônio histórico (ROCHE, 2008; LAPORTE e WAQUET,
1999).
A conservação destas roupas é fundamental para a compreensão da cultura de moda
do espaço temporal onde circulam, pois é especialmente através delas que a moda - fenômeno
de caráter efêmero relacionado às mudanças de gostos ou estilo - se manifesta. Apesar disso,
moda e roupas - ou ainda vestuário, indumentária - são conceitos diferentes: a moda confere ao
vestuário certo valor adicional, porém estes valores fazem parte de um imaginário social3. Sendo
assim, a moda não corresponde apenas à materialidade das roupas, mas a estes valores cujos
elementos são culturais e não visíveis (KAWAMURA, 2005)
Nas últimas décadas, a moda vem ganhando espaço nos museus, seja através da
manutenção de acervos ou com a organização de exposições elaboradas.

                                                                                                                       
2
  Albert Racinet foi um desenhista e litografista interessado em estudos arqueológicos, que, a partir de 1850, começou a difundir os seus
estudos sobre o vestuário.
O arqueólogo Jules Quicherat publicou, em 1875, o livro Historie du Costume en France.
Por seu turno, Maurice Leloir e François Boucher trabalharam pela inserção do vestuário no acervo dos museus já no início do século XX. A
iniciativa levou à constituição, na década de 1950, do Musée Galliera – Musée de la mode de la ville de Paris (LAPORTE e WAQUET, 1999).

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Diana Crane sugere um processo de artificação, desenvolvido a partir das roupas de


alta-costura, onde a moda do passado acaba por ser considerada uma forma de arte:
Organizações culturais reconhecem as criações de moda como objetos de coleção, o
que tende a mostrar que adquiriram valor artístico como patrimônio. Assim os
museus de arte começaram a expor obras dos costureiros, enquanto nasciam
museus inteiramente consagrados a este setor. Há pouco as casas de leilões
descobriram o valor das roupas de coleção (...) Os principais compradores são os
museus da moda, as casas de costura 9 que compram de volta suas próprias
criações) e, por vezes, o governo francês, em favor de um museu de moda.
Numerosos livros celebram a história da costura e glorificam os estilistas, sobretudo
aqueles que desapareceram Ensina-se também a criação de moda em escolas
especializadas ou em escolas de arte. (CRANE, 2011,p.205)

Neste sentido, se tomarmos como exemplo as primeiras exposições organizadas


França por Maurice Leloir, fundador do Museu Galliera, esforçavam-se em mostrar a moda como
objeto arqueológico onde as roupas ilustram mudanças que obedecem a uma temporalidade
histórica, Olivier Saillard, atual diretor do museu, prefere “mostrar as roupas como os restos
sublimes de um criador, mas também de quem os vestiu.”4 Desta forma, os objetos de moda
executam uma espécie de performance própria, onde sua materialidade carrega a memória do
corpo. Serão os tecidos, os enfeites, as técnicas e até mesmo as pequenas curiosidades- que
acabam por reforçar a vida social deste objetos.
No Brasil, conforme observa a historiadora Maria Claudia Bonadio (2012),existem
importantes museus que abrigam acervos têxteis e de indumentária como: o Museu Histórico
Nacional (MHN), o Museu Paulista (MP), o Museu Imperial de Petrópolis, o Museu Carmem
Miranda e o Museu de Arte de São Paulo (MASP). Também já existem no Brasil dois museus
majoritariamente dedicados à moda e indumentária, o Museu do Traje e do Têxtil da Bahia e o
Museu de Hábitos e Costumes da Fundação Cultural de Blumenau.
Neste conjunto destaca-se a coleção Rhodia5 que integra o acervo do MASP e
recentemente exibida na exposição. “Arte na Moda: a exposição MASP-RODHIA (2015-2016)”.
Porém, cabe ressaltar que, apesar da intenção da mostra em dar visibilidade ao potencial criativo
da colaboração entre arte, moda design e indústria, a curadoria buscou valorizar o trabalho dos
artistas plásticos que tiveram suas obras estampadas nos tecidos da Rhodia, à convite de Livio
Rangan, responsável pelos desfiles show que ocorriam durante a Feira Nacional da Indústria

                                                                                                                       
4
 Nos referimos aqui à entrevista de Saillard ao jornal francês L´express, realizada em setembro de 2013 e disponível em
http://www.lexpress.fr/styles/mode/l-irresistible-ascension-d-olivier-saillard-directeur-du-musee-galliera-a-paris_1285548.html
5
  De acordo com o a curadoria da exposição, a coleção Rhodia é composta por 79 peças “selecionadas por Pietro Maria Bardi (1900-1999),
diretor-fundador do museu, foi doada em 1972 pela Rhodia. A indústria química francesa promovia seus fios sintéticos no Brasil por meio
de desfiles-show, editoriais e coleções de moda, numa estratégia desenvolvida por Lívio Rangan (1933-1984), visionário gerente de publicidade
da empresa. Os desfiles-show, realizados entre 1960 e 1970, pareciam mais espetáculos e reuniam profissionais do teatro, da dança, música e
das artes visuais.”. Texto disponível em : http://masp.art.br/masp2010/exposicoes_integra.php?id=239

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Têxtil (FENIT) ao longo dos anos 1960, restando poucas informações quanto aos costureiros
que realizaram as peças.
A partir deste cenário, o presente artigo busca chamar atenção para o acervo do
costureiro gaúcho Rui Spohr, com ênfase especial as ações de conservação preventiva que
estão sendo implementadas junto às coleções. Tomamos como exemplo exatamente os
registros da participação de Rui nas ações organizadas pela Rhodia

Rui Spohr e a constituição de seu acervo

“Acredito que só mesmo com vinte e poucos anos se tem audácia de fazer certas
coisas. Pois com 22, quase 23, em outubro de 1952 a gente de repente se encontra
zarpando para a Europa. Avião praticamente não se usava para cruzar o Atlântico;
viajava-se de navio. Viajei de segunda classe, mas com meu smoking na
bagagem.”(SPOHR, VIEGAS-FARIA, 1997 p.)

Assim se iniciava uma trajetória de 60 anos dedicados à moda: Rui, que nasceu Flávio
Spohr, no ano de 1929 em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, foi o primeiro brasileiro a
estudar moda em Paris nos anos 1950, na mesma escola em que Yves-Saint Laurent e Karl
Lagerfeld. Aprendeu a fazer chapéus no atelier de Jean Barthet, viu Simone de Beauvoir e Jean
Paul- Sartre no Café de Flore e, ao voltar para Porto Alegre, em 1955, dedicou-se a moda
incondicionalmente, inscrevendo seu nome entre os grandes da moda nacional.
Seu estilo simples, de linhas retas e cores contrastantes- ou “a sofisticada originalidade
do simples”, como prefere- representa uma elegância atemporal, sem exageros ou excessos: ao
contrário da maioria dos costureiros de sua época, Rui não buscava reproduzir fielmente os
modelos franceses dedicava-se a criação modelos de acordo com seu gosto e inspiração-
mesmo que fortemente influenciado pela moda de Paris.
O acervo particular de Rui Spohr transforma-se em um arquivo de fontes
diversificadas, onde a história de vida de Spohr se integra à história da sociedade em que vive e
atua- concentrada na cidade de Porto Alegre- tornando possível uma abordagem da moda como
representação cultural também à partir de sua visualidade.
O registro de sessenta anos de atividade profissional, inteiramente dedicados à moda,
constitui-se em rico conjunto documental acerca da prática da alta costura, dos costumes e,
sobre tudo, da rara variedade de matéria-prima utilizada em sua produção.
O acervo se divide em quatro coleções: coleção objetos, coleção textual, coleção
iconográfica e coleção têxtil. A coleção de objetos se constitui basicamente de materiais em
metal, madeira e tecido. A coleção textual se constitui de documentos em suporte papel de

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diversas origens, como por exemplo, recortes de jornal, livros, cadernos, revistas, folders, folhas
avulsas, pastas. A coleção iconográfica é composta basicamente por croquis em papel esboço
com lápis grafite e pastel além de fotografias preto e branco, bem como coloridas, abrangendo o
período que vai da década de 1940 até os dias atuais.
Atualmente estão sendo colocadas em prática no acervo particular de Rui Spohr
algumas medidas de conservação preventiva. O primeiro passo foi o levantamento quantitativo
que resultou em uma listagem simples do acervo, que podem ser verificada nas tabelas que
seguem.  
Figura 1: Tabela descritiva da Coleção Objetos
Denominação Descrição do conteúdo Descrição do suporte Quantidade
Troféus Placas e medalhas de Na sua grande maioria são 44
reconhecimento, agradecimento, compostos de metal, porém há
homenagens e destaques. Prêmio algum em madeira.
agulha de ouro – peças do atelier
premiadas.
Ferros de passar Ferros a brasa Metal 10
Formas para fazer Formas e moldes para confecção de Madeira 1
chapéu chapéus

Miniatura Santa Santa Catarina é a padroeira da Madeira e Metal 3


Catarina- Moda. Rui recebeu as miniaturas
como presente de clientes ao longo
da sua carreira, em diferentes
momentos.

Suportes para chapéus Grande Madeira 12


Médio 12
Pequeno 8
Painéis de tapeçaria Trabalho de tapeçaria da Maria Rita Tecido 2
Caminhos Culturais que Rui recebeu
de clientes.
Tesouras Tesouras antigas de alfaiate Metal 16
Fonte: elaborado pela equipe Rui Spohr em parceria com a bibliotecária Ana Reckziegel CRB10/2110.

A coleção de objetos é constituída por diversas peças museais relacionados ao trabalho


como, por exemplo: tesouras, máquinas de costura e troféus conquistados em prêmios de moda.

Figura 2: Tabela descritiva da Coleção Textual


Denominação Descrição Descrição do suporte Quantidade
conteúdo
Clipping notícias Reportagens Recortes de jornal 100
sobre a marca e o
estilista em jornais
e cadernos de
notícias. Dos anos
1950 à 2015.
Colunas em Publicações de Papel 200

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revistas e jornais Rui em revistas e


jornais.
Correspondências Correspondências Papel 80
de trocadas com
clientes e
familiares.
Folders Desfiles e Folders dos Diversos, na sua maioria em papel. 100
coleções desfiles que Rui
promoveu e
participou.
Fonte: elaborado pela equipe Rui Spohr em parceria com a bibliotecária Ana Reckziegel CRB10/2110.

A coleção documental textual contém correspondências, agendas, material de imprensa,


matérias em revistas, divulgação de coleções e desfiles.

Figura 3: Tabela descritiva da Coleção Iconográfica


Denominação Descrição conteúdo Descrição do suporte Quantidade
Fotografias Fotografias de manequins, desfiles, Coloridas e PeB, tamanhos 10x15, 1000
vestidos, clientes. 18x20, 25x30
Fotografias de Rui Spohr Quadros coloridos e PeB tamanhos 100
diversos
Croquis Pastas com croquis de toda a Croquis em papel esboço com lápis 2500
produção de Rui, desde vestidos de grafite e pastel
noivas e debutantes até demais
vestuários para alta costura ou prêt-à-
porter a partir de 1948 até os dias
atuais.
Audiovisual Entrevistas, desfiles, palestras, Fita cassete 63
programas de TV. VHS 94
DVD 30
Fonte: elaborado pela equipe Rui Spohr em parceria com a bibliotecária Ana Reckziegel CRB10/2110.

A coleção iconográfica é composta basicamente por croquis em papel esboço com lápis
grafite e pastel além de fotografias preto e branco, bem como coloridas, abrangendo o período
que vai da década de 1940 até os dias atuais.

Figura 4: Tabela descritiva da Coleção Têxtil

Denominação Descrição conteúdo Descrição do suporte Quantidade

Trajes Vestidos de noivas, debutantes, de Diversas materiais, tecidos únicos e 200


gala – feitos com técnicas da alta raros, matéria-prima rara, desde
costura parisiense e com bordados e algodão, seda pura, vanquis, tailleur
tecidos únicos. Vestidos de passeio, até rendas artesanais de produção
saias, camisas, blusas, casacos e Rui.
estola de pele, casacos de tear e com
trabalhos manuais, calças, conjuntos
de tailleur, entre outros mais.
Acessórios Pulseiras, colares, brincos, cintos, Metal, tecido, pérola, couro. 30
abotoaduras, tiaras.

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Sapatos Sapatos criados pelo atelier Rui, Couro 15


destinados a clientes e produções.
Chapéus Chapéus em diferentes formatos, com Em pena, palha, tecido, feltro, couro e 250
aba larga, pequena, sem aba, boinas, com ornamentos em pena, flores,
carapuças, cartolas, marombas. telas.

Fonte: elaborado pela equipe Rui Spohr em parceria com a bibliotecária Ana Reckziegel CRB10/2110.

O material têxtil e indumentário é formado por trajes femininos e acessórios, entre eles
estão bolsas, chapéus, sapatos, estolas e casacos de pele, vestidos de festa, trajes de passeio e
outras peças todas de autoria e produção da marca Rui.
Após realizar a listagem do acervo, selecionamos uma amostra para acondicionar e
digitalizar dentro das normas recomendadas pelo Projeto Conservação Preventiva em
Bibliotecas e Arquivos - Projeto CPBA do Arquivo Nacional em parceria com The Commission on
Preservation & Access. A amostra selecionada é de relevância histórica e estética: tratam-se das
revistas que veicularam as ações de moda promovidas pela Rhodia, onde se pode verifica a
atuação de Rui.
Todo o trabalho de acondicionamento foi precedido da higienização dos documentos. A
higinização visa à eliminação de sujidades generalizadas sobre os documentos, visando à
adequada conservação do acervo. No decorrer deste trabalho, foi realizada a retirada das fitas
durex e grampos existentes nas obras, pois estes danificam o papel acelerando sua degradação.

Rui na Rhodia: as características da amostra

Filial da empresa francesa Rhône-Poulen instalada no Brasil, desde 1919, na década de


1950 a Rhodia passa a fabricar aqui fios e fibras sintéticas. Visando a popularização desta
produção de sintéticos, a partir da década de 1960 a empresa implementa no país uma política
de publicidade “calcada na produção de editoriais de moda para revistas e desfiles, os quais
conjugavam elementos da cultura nacional (música, arte e pintura), a fim de associar o produto
da mutlinacional à criação de uma ‘moda brasileira’.” (BONADIO,2005,p.10)
Lançados anualmente durante a FENIT, entre os anos de 1960 e 1970, os desfiles-show
da Rhodia viajavam por todo o Brasil e também pelo exterior. Se a organização da Feira
privilegiava o intercâmbio com criadores internacionais para promover a indústria local, a Rhodia,
para promover seus fios sintéticos, reunia na mesma passarela os grandes nomes da moda
nacional, que, frequentemente, criavam peças em tecidos cujas estampas haviam sido
elaboradas por importantes artistas plásticos nacionais.

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Convidado a desfilar suas criações na passarela da Rhodia, o trabalho de Rui ganha


visibilidade nacional, ao participar das edições de 1962, 1963 e 1964 do evento.
A amostra Rhodia é composta basicamente por itens que integram a coleção
iconográfica, contendo: croquis, fotografias, catálogos e revistas.

A conservação de acervos: o exemplo dos documentos Rui Spohr para Rhodia

Os documentos, os livros, as obras de arte, possuem uma vida útil que depende dos
cuidados que lhes são dispensados.
De maneira geral podemos denominar a preservação de acervos como uma serie de
medidas capazes de salvaguardar os seus itens e documentos. A IFLA (International Federation
of Library Associations and Institutions) em seu Preservation and Conservation Strategic
Programme6 definiu preservação como a tomada de decisão gerencial e financeira a respeito
dos mecanismos de armazenamento, das políticas do acervo, das técnicas e métodos a serem
envolvidos no salvaguardo de materiais e informações neles contidas. Por outro lado, o termo
conservação foi estabelecido pela IFLA como sendo as políticas e práticas específicas
envolvidas na proteção de suportes contra a deterioração, contra os agentes danos, e contra o
manuseio inadequado.
Atualmente utiliza-se o tempo conservação preventiva, uma vez que ela previne futuros
danos aos objetos. Seguindo as definições da IFLA, e, atualizando a terminologia da área,
poderíamos então entender que o gerenciamento de acervos se divide em três etapas: a
preservação, a conservação preventiva e a restauração. A preservação é toda e qualquer
medida que visa prolongar a vida útil do acervo, desde decisões administrativas até o combate a
degradação física do acervo. Já a conservação preventiva é uma ação mais pontual e atua mais
especificamente nas condições ambientais e nas questões de guarda do acervo. Por fim, a
restauração é a intervenção física nas obras a fim de recuperar seu estado original após ter
sofrido alguma desestabilização.
Em nossa ação, nos concentramos na conservação preventiva, uma vez que é ela a
ação prática, propriamente dita, empregada na preservação de acervos. Uma boa conservação
preventiva sempre irá avaliar todos os agentes danosos para o acervo. (CASSARES, 2000, p.14)
Podemos dividir os agentes danosos em:
1. Extrínsecos ao acervo, que são:

                                                                                                                       
6 http://www.ifla.org/about-pac

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a) causas químico-físicas como agentes atmosféricos e circunstanciais (umidade,


temperatura, luz, poluição); e
b) os agentes biológicos (fungos, insetos, roedores e ação humana).
2. Intrínsecos ao acervo (originários da própria constituição do material de que é
composto), que se trata da energia radiante, dos aditivos da celulose para virar pasta de papel, e
demais gazes que, sob determinadas condições ambientais, são liberados pelos suportes dos
documentos.
Esses são os agentes danosos que mais contribuem para a deterioração dos
documentos. O monitoramento periódico dos agentes danosos ao acervo é uma ação
determinante para uma tomada de decisão no sentido de preservação do acervo.
Dentro dos agentes danosos extrínsecos dos quais a conservação preventiva se ocupa
destacamos os seguintes: exposição à luz, controle da temperatura, controle da umidade relativa
– responsáveis por problemas químicos como oxidação e deterioração dos suportes, problemas
biológicos: crescimento de fungos, bactérias e insetos, problemas físicos: alterações da
estabilidade dimensional dos objetos.
As condições de acondicionamento do acervo também são contempladas pela
conservação preventiva. Criar níveis de armazenamento como contato primário, secundário e
terciário, é a maneira mais indicada de proteger os documentos contra poeira, manuseio e
mudanças climáticas, por exemplo. É preciso ter muito cuidado com as especificações técnicas
dos materiais de guarda, sempre se deve utilizar material neutro e estável para a manufatura de
caixas e envelopes armazenadores.
A poeira, por exemplo, causa problemas de ordem estética e constitui-se em um meio
propício ao desenvolvimento de microrganismos. Como a preservação dos documentos está
diretamente relacionada às condições em que esses materiais estão guardados, resguardar o
Acervo de agentes danosos é uma tarefa que requer cuidados específicos e profissionais.
A reserva técnica de um acervo necessita de supervisão constante, referente ao espaço
físico e condições ambientais como oscilação de temperatura, limpeza e preservação contra
insetos. As peças necessitam de materiais específicos utilizados no seu acondicionamento,
como papéis, envelopes e pastas de material desacidificado/neutro, prevenindo assim sua
deterioração. (OGDEN, 2001a)
O acervo Rui Spohr foi composto ao longo dos últimos sessenta anos, período em que o
papel era produzido com polpa de celulose em meio ácido. Esse processo se estendeu até o
final dos anos 1990 gerando uma grande massa documental com papéis muito frágeis. Quando
somamos estes elementos: lignina da celulose e ácidos do processo de fabricação, temos como

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resultado reações ácidas que deterioram gradativamente o papel pela oxidação até um ponto de
irreversibilidade observado facilmente pelo seu aspecto quebradiço. A acidificação do papel é
potencializada pelas condições ambientais adversas gerando manchas e comprometendo a sua
durabilidade.
O armazenamento inadequado pode causar danos devido às forças físicas oriundas da
gravidade, causando assim riscos irreparáveis aos documentos. O principal agente agressor
que afeta a estrutura do material, na maioria das vezes, é o armazenamento impróprio,
causando rasgos, quebras e rupturas. Além dos elementos oxidantes característicos do papel
produzido em meio ácido, a incidência de luz e oscilações de temperatura e umidade contribuem
para aceleração da degradação química.

O acondicionamento da amostra

Dentro do projeto de acondicionamento físico das peças do acervo, a primeira etapa a


ser desenvolvida é o mapeamento da infraestrutura necessária para guarda do mesmo. O
mapeamento dos materiais necessários para guarda dos documentos da amostra previu a
aquisição dos seguintes materiais especializados para conservação dos documentos:
• Contato primário – envelopes a base de poliéster e de papel neutro
manufaturadas para envolver os documentos.
• Contato secundário – caixas a base de papel neutro capazes de proteger os
diferentes formatos de documentos dos agentes biológicos e ambientais.
• Nessa amostra não foi realizada a proteção de contato terciário (mobiliário,
arquivos e estantes).
O acondicionamento e o manuseio adequado são fatores decisivos para a preservação
dos documentos. O contato primário da guarda é a primeira barreira contra os agentes danosos
proporcionando uma proteção para a radiação ultravioleta, as oscilações de umidade e
temperatura e a poeira. (OGDEN, 2001b)
Tais ações vêm atuando na prevenção de agentes causadores de deterioração com o
objetivo de evitar danos irreversíveis ao acervo. A proposta para o acervo em questão é um
conjunto de ações capazes de retardar a degradação dos suportes e dos documentos, desde o
controle das condições ambientais nas áreas de guarda, bem como os materiais utilizados na
armazenagem, acondicionamento e manuseio das peças.

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Figuras 5 e 6 : Acondicionamento da amostra

Fonte: Reckziegel Acervos.

A digitalização da amostra

Digitalização significa a conversão em imagem, por dispositivo eletrônico (escâner ou


câmeras digitais), para o formato digital de um documento originalmente não digital.
Por que digitalizar?
• Contribuir para o amplo acesso e disseminação dos documentos por meio da
Tecnologia da Informação e Comunicação;
• Promover a difusão e reprodução dos acervos não digitais, em formatos e
apresentações diferenciados do formato original;
• Propiciar a preservação e segurança dos documentos originais que estão em outros
suportes não digitais, por restringir seu manuseio.
O processo de digitalização foi realizado nas instalações do Acervo.
Captura digital da imagem - Câmera digital
Recomenda-se o uso de câmeras de médio e grande formato para geração de
representantes digitais de alta qualidade, e para a captura digital de documentos em grandes
formatos. Foi utilizada mesa de reprodução, para a garantia do paralelismo necessário à uma
boa qualidade da imagem digital gerada. (OGDEN, 2001c)
O processo de captura digital da imagem foi realizado com o objetivo de garantir o
máximo de fidelidade entre o representante digital gerado e o documento original, levando em
consideração suas características físicas, estado de conservação e finalidade de uso. Para isso,

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seguiremos a TABELA do CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS – CONARQ sobre


recomendações para digitalização de documentos arquivísticos permanentes – 2010.7
Os equipamentos utilizados possibilitaram a captura digital dos documentos de forma a
garantir a geração de um representante digital que reproduza, no mínimo, a mesma dimensão
física e cores do original em escala 1:1, sem qualquer tipo de processamento posterior através
de softwares de tratamento de imagem.
A opção em não empregar estes equipamentos para captura digital de documentos com
sistemas de alimentação automática, também conhecidos como escâneres de produção, deve-
se ao risco potencial de danos físicos e de redução da longevidade de documentos originais, em
virtude do modo de operar de seus dispositivos mecânicos e ópticos, uma vez que é irreversível
o modo de operação no momento quando estão em contato com o documento original. Devido a
esses fatos, não optamos pela utilização desses equipamentos.

Fotografia: Processo de digitalização da amostra

Fonte: Reckziegel Acervos

Rui na Rhodia: a importância desta ação de conservação

O acervo particular de Rui Spohr traz um rico panorama histórico da moda e, pela sua
importância, merece e deve ser colocado à disposição do público em geral e de pesquisadores
                                                                                                                       
7
Tais recomendações estão disponíveis em:
http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/images/publicacoes_textos/Recomendacoes_digitalizacao_completa.pdf

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da área especializada. Atualmente, encontra-se sob a guarda da família, que por anos guardou e
organizou o acervo. Porém, sem receber os devidos cuidados técnicos, o conjunto documental
corre sério risco de se deteriorar mais do que já se deteriorou com o passar do tempo.
Ao longo dos anos muitas peças desse acervo passaram por danos físicos e perdas de
identificação, situação que necessita ser revertida o quanto antes. Do ponto de vista técnico,
foram identificados danos que acometem as coleções como: deformação por acondicionamento
inadequado, soltura de encadernações a base de cola, ferragens oxidadas, rasgos, uso incorreto
de fita adesiva, costuras rompidas, folhas dobradas, manchas de umidade, fadiga de elásticos
das pastas.
O trabalho de conservação preventiva deste acervo é fundamental para que ele possa
ser pesquisado assim como para que suas obras continuem em condições de serem expostas e
consultadas.
Apesar da escassez de recursos e políticas públicas que visam a conservação de
acervos- o que acaba por impactar diretamente nas instituições ligadas à memória e ao
patrimônio- o conjunto de documentos sob guarda da família Spohr merece atenção não apenas
por testemunhar as mudanças e evoluções da moda brasileira, mas por também por refletir, de
maneira singular, as transformações nas dinâmicas de usos, costumes e sociabilidade da cidade
de Porto Alegre. Além disso, devido a longa trajetória, construída por atuação marcante, Rui
acabou por tornar-se forte referência, ingressando, de certa forma, no imaginário social da moda
produzida no sul do Brasil.

Referências:

BONADIO, Maria Cláudia. O fio sintético é um show! Moda política e publicidade;


Rhodia 1960-1970.2005. 268 F. Tese (Doutorado em História)- Instituto de Filosofia e Ciências
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http://www.arqsp.org.br/arquivos/oficinas_colecao_como_fazer/cf5.pdf > Acesso em: 22 fev.
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Trad. Cristina Coimbra. São Paulo: Ed. Senac, 2009.

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Arquivo Nacional / TheCommission on Preservation & Access, 2001. (Caderno Técnico,
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Ofícios,1997.

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MODA DOCUMENTA

6º EDIÇÃO
ST 06. MEMÓRIA, MUSEU E MODA

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ESPAÇO PERFUME
VIAGEM AO MUNDO E À HISTÓRIA DA PERFUMARIA

ESPAÇO PERFUME
TRAVEL AROUND THE WORLD AND THE PERFUM HISTORY

SÃO PAULO
2016

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Resumo
O Espaço do Perfume – Arte+História, com iniciativa do Grupo O Boticário e Faculdade Santa
Marcelina, oferece visitação gratuita ao acervo em 3.000 a.C, ; mais de 5 mil anos de história.
São 500 peças históricas, entre objetos originais e réplicas, que ilustram e ajudam a entender a
composição de um perfume, conhecer suas matérias-primas e ver os frascos que acondicionam
o produto final – que também instigam a memória e provocam verdadeiras viagens no tempo.
Palavras Chaves Perfume, Moda e História.

Figura 1 Espaço Perfume

Fonte: Grupo O Boticário

Abstract
Espaço do Perfume – Arte+História, with the initiative of the O BoticárioGroup and Santa
Marcelina University, offers free visits to the collection in 3000 B.C,; more than 5000 years of
history. There are 500 historical pieces, including original objects and replicas, that illustrate and
help to understand the composition of a perfume, meet its raw materials and see the vials
contained therein the end product - which also instigate the memory and cause real time travel.
Key Words Perfum, Fashion and History.

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Introdução

Figura 2 Cinco mil anos de história

Fonte: Grupo O Boticário

Inaugurado em 2010 na cidade de São Paulo, o Espaço Perfume Arte + História, oferece
uma mostra dedicada à história da perfumaria nacional e internacional. O Espaço Perfume é
uma iniciativa do Grupo Boticário que, em parceria com a Faculdade Santa Marcelina (FASM), a
primeira instituição de ensino superior em Moda no Brasil, tem como objetivo registrar 5 mil anos
da história do perfume, sua relação com a moda e, ainda, curiosidades sobre sua produção,
oferecendo uma experiência única à seus visitantes.
Permanente, gratuito e aberto ao público de todas as idades, o Espaço ocupa
aproximadamente 210 m2 do piso térreo e mezanino de uma unidade anexa à faculdade, na
capital paulista, bairro Perdizes. No universo do Espaço Perfume Arte + História, olfato, visão e
audição são estimulados por um acervo rico em imagens, cores, sons, fragrâncias e muita
informação, começando em 3.000 a.C.
“É um orgulho oferecer à sociedade a oportunidade do contato interativo com a história
do perfume, uma viagem sensorial na descoberta desse fascinante universo. Temos certeza de

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que, com essa exposição, estamos colaborando com a formação de estudantes de todos os
níveis e com a cultura nacional, trazendo uma bagagem única e especial de conhecimento”, diz
Miguel Krigsner, presidente do Conselho de Administração do Grupo Boticário e fundador de O
Boticário.
Ao todo, mais de 500 peças históricas, entre objetos originais e réplicas, ilustram e
ajudam a entender a composição de um perfume, conhecer suas matérias-primas e ver os
frascos que acondicionam o produto final – que também instigam a memória e provocam
verdadeiras viagens no tempo. O acervo foi composto com a colaboração de mais de 100
marcas do segmento de perfumaria nacional e internacional que fazem parte dessa trajetória.
Fatos marcantes da história da humanidade também são mesclados às informações sobre a
perfumaria, tornando o passeio ainda mais rico e educativo.
O projeto expográfico do Espaço Perfume Arte + História, assinado pela Base 7 Projetos
Culturais, foi todo desenhado para atender de forma confortável e segura as pessoas portadoras
de necessidades especiais. Aberturas amplas e elevador garantem a circulação de cadeirantes.
Recursos especiais permitem que portadores de deficiência visual aproveitem ao máximo a
exposição – além das legendas em braile para viabilizar a interação nos aplicativos multimída, o
piso podotátil e um mapa tátil do espaço orientam sobre a disposição dos ambientes. Vale
lembrar que o audioguide (ou áudio guia) disponível em inglês e espanhol para visitantes
estrangeiros também está disponível em uma versão em português, especialmente para os
deficientes visuais. Vídeos legendados complementam os itens de acessibilidade, auxiliando os
portadores de deficiência auditiva nos materiais multimídia.
O Espaço Perfume Arte + História tem o apoio do Ministério da Cultura – por meio da Lei
de Incentivo à Cultura - e patrocínio da Givaudan do Brasil e Wheaton Brasil, além da
colaboração da SWAROVSKI ELEMENTS.

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Moda e Perfume
A instituição Faculdade Santa Marcelina como pioneira no Bacharelado de Desenho de
Moda, renomada por sua atuação e referência no segmento de criação e desenho de moda no
Brasil sentiu-se frente ao novo desafio de vislumbrar o cenário promissor que o mercado de
perfumaria projeta. A relação moda e perfume têm seu embasamento histórico relevante, de
mercado e sustentação. Uma vez que grandes grifes de moda a usam como forma de se manter
economicamente ativas.

Considerações
O cheiro como comportamento de moda

A Maison de Charles Frederick Worth foi a primeira casa de alta costura em solo francês,
especificamente em Paris a associar e estender o nome de um costureiro a uma marca de luxo
em moda em pleno século XIX .
Mas os fragrantes ganharam mesmo novos olhares na primeira década do século XX,
quando a perfumaria conectou-se à moda- as “fragrâncias de costureiros”, primeiramente pela
visão de Paul Poiret (1879-1943) ao vislumbrar em 1912 em conjunto com a maestria em forma
de obra de arte nas mãos de René Lalique.
A tendência pela identidade olfativa idealizada por Poiret antes da I Guerra Mundial
expandiu-se rapidamente. Posteriormente Gabrielle Coco Chanel, e renomados costureiros da
alta-costura assinariam pelo menos uma fragrância; Jean Lanvin, Elsa Schiaparelli e Jean Patou
apresentariam fragrâncias densas, pungentes, especiadas ou florais na busca do registro olfativo
da marca como forma de sofisticação e diferenciação social.
Identificamos que o vestuário, os envoltórios, os perfumes e seus sistemas discursivos
passaram a delinear padrões de comportamento, perfis e estilos de vida. O que desencadeou o
processo como parte essencial do guarda roupa das classes mais abastadas, assim como peças
de roupas sob medida, luvas de couros, bons sapatos e chapéus elegantes.

De acordo com a perspectiva de Oliveira (2006), as pessoas são capazes de se encontrar


nos discursos sobre as fragrâncias, já que eles podem dizer respeito aos atributos que os sujeitos
sociais possuem, pensam que possuem ou gostariam de possuir. Os discursos em torno dos
fragrantes formam um conjunto de pontos de apego para o consumidor. Entretanto, o usuário
pode se identificar apenas com alguma referência simbólica do perfume e não com todo o
conjunto discursivo.

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De acordo com Miller (2009), o consumo das coisas faz parte da construção das pessoas
e da percepção do “eu”, sendo capaz de influenciar a identidade e o comportamento dos sujeitos,
alterando seus pensamentos e modos de agir. Muito do que faz das pessoas serem aquilo que
são ou buscam ser, existe na materialidade externa a seu corpo.
A roupa é um dos principais meios de externar esta narrativa particular do “eu”. Após o
perfume entrar como viés na moda, a indústria da perfumaria incorporou de maneira pontual que
os fragrantes agem como uma roupa invisível, que seria capaz de refletir a personalidade e o
estilo de vida do usuário.
A roupa e o conceito do perfume, assim como outras mídias discursivas, interpelam os
sujeitos sociais a assumirem esses significados, investindo suas emoções neles para construírem
a si mesmos (HALL, 1997).
Chanel buscava vender não apenas novas silhuetas e fragrâncias às consumidoras, mas
um estilo de vida permeado por suas criações; assim, o eterno Chanel nº 5 torna-se um dos
grandes ícones do século XX ao aliar fragrâncias à maneira de viver das mulheres modernas. Já
os sabonetes, entre outros produtos que foram usados como perfumes, receberam uma
classificação à parte, propagando diferentes significados; indicados às questões práticas de
higiene além hidratação e maciez.Apesar dos perfumes terem sido utilizados durante muito tempo
como artigos de higiene, eles funcionam como um acessório, como o toque final de uma
produção, associando-se a termos usados no mundo da moda: elegantes, clássicos, sofisticados,
esportivos, glamourosos ou modernos.

Os cheiros trazem lembranças, emoções, definem estilos e gostos!

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Relevância do Espaço Perfume

Proporciona de maneira interdisciplinar refletir sobre o processo cultural através dos tempos pelo
enfoque de uma análise histórica linear dialogando com questões sociais, econômicas,
religiosas, estéticas o entendimento do universo da perfumação e suas inserções contextuais.
Valoriza e enaltece a conexão moda perfume com o surgimento da alta costura no fim do século
XIX na França e a cultura do perfume no Brasil; pontuando os aspectos culturais, folclóricos e
religiosos relacionados ao perfume. Assim como, a evolução da indústria brasileira de perfumaria
e estudo do mapeamento olfativo brasileiro e sua evolução.

FASM e Givaudan lançam Pós-Graduação em Perfumaria


02.12.2009

A Faculdade Santa Marcelina - FASM, Instituição de Ensino Superior Católica, mantida


pela Associação Santa Marcelina - ASM, antiga Associação Colégio dos Anjos, vem
desempenhando sua missão desde 1929. Concretiza sua missão formando profissionais
competentes para o desenvolvimento de atividades científicas, tecnológicas, artísticas, culturais,
políticas e sociais, nas áreas de Administração, Artes Plásticas, Educação Artística,
Enfermagem, Desenho de Moda, Música, Relações Internacionais e Tecnologia em Radiologia
Médica.Conta com duas Unidades, Perdizes e Itaquera, e mantém na Unidade de Ensino de
Perdizes:

 Licenciatura em Educação Artística com habilitações em Artes Plásticas e Música


 Bacharelado em Artes Plásticas, Desenho de Moda, Música e Relações Internacionais.
 Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto Sensu para Especialização em Artes Visuais,
Design para Criação e Desenvolvimento de Calçados e Acessórios de Moda, Moda e
Criação e em Negociações Internacionais.

Depois de oitenta anos fazendo história na Educação, sendo a pioneira em educação de


Moda e premiada em 2008 como a Melhor Universidade de Artes e Design do Brasil, a FASM
mais uma vez inova e lança seu Pós-Graduação Lato Sensu em Perfumaria a partir de março de
2010, o primeiro e único do gênero no Brasil, coordenado pela Ms. Andréia MirÓn.
Para esta iniciativa, a FASM buscou a parceria da conceituada e internacional Casa de
Fragrância Givaudan, que tem como um de seus principais pilares estratégicos promover a
Educação em Fragrâncias.

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A Givaudan é criadora de sucessos mundiais como Angel, Armani Code for Him, J’Adore,
L’AirduTemps, Le Male, Opium e Prada Infusion d’Iris. A partir do ínicio do século 20, a Givaudan
consolidou sua proximidade com o mundo da moda e desenvolveu os primeiros perfumes
dedesigners icônicos como Elza Schiaparelli, Balmain, Christian Dior, Nina Ricci, Givenchy, Paco
Rabanne, Pierre Cardin, Yves St Laurent, Lagerfeld, Giorgio Armani e Thierry Mugler entre
outros.
A FASM e a Givaudan têm como principal objetivo nesta parceria ajudar a formar os novos
talentos para a indústria de Cosméticos e Perfumaria que contribuirão para as inovações dos
futuros desenvolvimentos no Brasil, o maior mercado mundial em Perfumes e Colônias a partir
deste ano.

Programação Cultural
Todos os meses, o Espaço Perfume promove um Ciclo de Palestras relacionadas ao
perfume e à indústria cosmética, dentro da Faculdade Santa Marcelina, como forma de
disseminar conhecimento sobre perfumaria. As palestras abertas ao público e gratuitas
endossam e aproximam discentes pós-graduações ao conhecimento corporativo, ao serem
ministradas por perfumistas e profissionais renomados do mercado da indústria cosmética.

Figura 3 Ciclo de Palestra

Fonte: Grupo O Boticário

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Exposições temporárias
Além do acervo da exposição permanente, o Espaço Perfume recebe constantemente
exposições temporárias relacionadas aos temas de perfumaria, moda e arte.
Com isso, o espaço cultural sempre oferece novidades ao público, incrementando sua visitação.

Figura 4 Exposição Temporária 2016

Fonte: Grupo O Boticário

Figura 5 Exposição Temporária Lalique

Fonte: Grupo O Boticário

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Visitas Monitoradas
O espaço conta com monitores disponíveis ou agendados previamente em grupos
/individualmente, assim como visitas especiais guiadas por Renata Ashcar curadora do Espaço
e Andréia Miron coolhunter e coordenadora do curso A Cultura do Perfume, revelando a conexão
que a moda e o perfume delineiam com a história.

Figura 6 Curadora Renata Ashcar e convidados

Fonte: Grupo O Boticário

Centro de treinamento
Mais do que um espaço cultural, o Espaço Perfume Arte + História é um centro de
treinamento sobre perfumaria.
A equipe de profissionais e parceiros envolvidos no projeto é formada por especialistas
em perfumaria, embalagens, história e moda.
Constantemente são realizados no Espaço Perfume treinamentos especiais para equipes de
vendas e consultoras de diferentes marcas nacionais e importadas de perfume.

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Figura 7 Registro Fitas Olfativas

Fonte: Grupo O Boticário

Cheirinho de história
O Espaço Perfume é dividido em sete núcleos no térreo e três no mezanino, tendo mais
de 20 vitrines. A primeira surpresa está logo na entrada, onde os visitantes encontram um teto
com cristais SWAROVSKI ELEMENTS iluminados por fibra ótica. No acervo, o percurso começa
em 3.000 a.C., quando os egípcios faziam suas cerimônias e acreditavam que a fumaça
perfumada subiria ao céu para agradar aos deuses. Esse ritual marcou o primeiro passo para o
desenvolvimento do perfume na humanidade. Ainda nessa etapa, dois objetos originais
surpreendem os visitantes por seu valor histórico – um frasco de vidro datado de 1500 a.C. e um
exemplar da célebre Eau de CologneRoyale – Jean Marie Farina, a famosa Água de Colônia,
que se tornou a favorita de Napoleão Bonaparte, a ponto de o francês carregar um frasco dentro
de sua bota. Continuando o passeio, é possível saber em que época o perfume chegou ao Brasil
e sua forte relação com a moda, entre as décadas de 1900 e 2000. Para ilustrar o núcleo
Perfumaria e Moda, sete croquis desenhados por alunos da Faculdade Santa Marcelina retratam
as celebridades que foram destaque em suas épocas, como Audrey Hepburn eternizada como
protagonista do filme "Bonequinha de Luxo" de 1961, até a polêmica Lady Gaga representando
os dias de hoje.
A interatividade da Exposição, no núcleo Pirâmide Olfativa, fica por conta de um equipamento
importado da França exclusivamente para compor a exposição – chamado Scentys – que

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proporciona aos visitantes um resgate da memória olfativa, estimulando três sentidos: audição,
visão e olfato. Em uma tela vertical, é exibido um vídeo explicativo sobre as três partes ou
movimentos que compõem um perfume – notas de saída, corpo e fundo, até o perfume
completo. Enquanto o vídeo é exibido, as fragrâncias são exaladas. Única no Brasil, a peça foi
doada pela Givaudan do Brasil – indústria química de origem Suíça, líder mundial no segmento
de aromas e fragrâncias. As fragrâncias exaladas durante o vídeo foram desenvolvidas pela
própria Givaudan.
Os métodos da extração de matérias-primas e os ingredientes da perfumaria também
são apresentados ao público em tela presente em um espaço multimídia, onde é possível sentir
suas fragrâncias.
Também por meio de equipamentos multimídia, anúncios e comerciais antigos de
perfumes veiculados em TV, rádio e mídia impressa brincam com a memória do público,
resgatando lembranças associadas às peças publicitárias.
No mezanino, o destaque é o Espaço Wheaton, que reforça a importância do frasco para a
composição final do perfume. Com experiência de mais de um século na produção de
embalagens de vidro e presente no país desde 1952, o Grupo Wheaton Brasil apresenta a
história e tecnologia empregada na produção dos vidros de perfumes. Frascos clássicos e
premiados da perfumaria nacional compõem a mostra da empresa, incluindo as famosas
ânforas, que se tornaram símbolo do Boticário. O Espaço Wheaton ainda proporciona um
momento interativo para estimular a criatividade dos visitantes. Um aplicativo multimídia permite,
entre outras atividades, criar um vidro de perfume com tampa, cor e dar nome ao produto.
Temas ligados ao design, matéria-prima, decoração e sustentabilidade, além de um vídeo sobre
o processo de fabricação dos vidros, complementam o espaço.
A curadoria dos núcleos do piso térreo do Espaço Perfume é de Renata Ashcar. Já
Cecília Soares e Marta Oliveira Bagolin são as curadoras da exposição da Wheaton Brasil,
presente no mezanino. Ainda no mezanino, artistas e marcas que têm a Perfumaria e a Moda
como fonte de inspiração também podem mostrar seus trabalhos ao público em um local
exclusivamente reservado para exposições temporárias. Entre as exposições que o espaço já
recebeu, estão: “Celebrando 100 anos de beleza”, que contava a trajetória de Elizabeth Arden;
“Vidro e Fantasia – O Lúdico na Perfumaria” da Wheaton; “Cristais de Lalique” da Lalique;
“Frascos de Arte, Perfume Eterno” de Debora Muszkat; “Jornada ao Coração da Lavanda” da
Givaudan; “Cheiro de Gol – Perfume e Futebol em Campos” do Grupo Boticário em parceria com
a Givaudan, Wheaton e FASM; e “Segredos da Alma”, pela Swarovski.

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Dossiê Espaço Perfume Arte & Historia


15/ 07/2004
Inauguração do Espaço Perfume Arte &Históriano Shopping Estação, Curitiba / PR.
O Espaço Perfume Arte & História tem por objetivo divulgar a história e a cultura do perfume.
Abriga cerca de 900 peças que contam mais de cinco mil anos de história, além de
equipamentos interativos que permitem aos visitantes sentir aromas que completam esta incrível
viagem ao universo da perfumaria.
88.000 pessoas se encantaram com o universo da perfumaria em Curitiba

Mostrar a história do perfume e sua relação com a história da moda, conceitos importantes para
a fabricação do perfume e possibilitar o estímulo sensorial (olfativo) dos visitantes, valorizando o
acervo de forma atrativa para públicos técnicos e também outros interessados.
2009 - 2010
Transferência do Espaço Perfume Arte & História para um novo espaço em São Paulo, em
parceria com a Faculdade Santa Marcelina, visando potencializar a visitação, ampliando o
acesso ao acervo.
A mudança visa ainda potencializar o propósito de pesquisa e educação do Espaço, cujo acervo
será aproveitado como ferramenta de estudo pelos cursos ministrados na Faculdade Santa
Marcelina.
Serviço:
ESPAÇO PERFUME ARTE +
HISTÓRIA
Entrada gratuita
Endereço: Rua Dr. Emílio Ribas, 110 – bairro Perdizes – São Paulo – SP
(Em frente à Faculdade Santa Marcelina)
Horários de visitação:
- De terça-feira a sábado – das 10 às 18 horas
- Quinta-feira: das 10 às 20 horas
- Domingo: das 12 às 18 horas
(Última entrada em todos os dias – 40 minutos antes do fechamento)
Site: www.espacoperfume.com.br

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Referências Bibliográficas
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cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp, 2008.
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FORTY, Adrian. Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac Naify,
2007.
FRANÇA, MaureenSchaefer. Design & Cultura: representações sociais nos frascos de perfume
do início do século XXI. 2011. 251 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia) - Universidade
Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, 2011.
Giddens, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002
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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

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Museu de Arte Dica Frazão: um guardião da criação em processo na Amazônia

Dica Frazão Art Museum: a guardian of creation in process in the Amazon

Susanne Pinheiro Dias (Universidade da Amazônia)1 / susannepinheiro@gmail.com

Resumo: Fundado em 1999, o Museu de Arte Dica Frazão, espaço idealizado pela modista Raimunda
Rodrigues Frazão, é um dos poucos museus brasileiros com acervo majoritariamente de indumentária.
Desde os anos 1940, Dica desenvolve peças que enfatizam o manual e o uso das fibras vegetais
encontradas na floresta amazônica. Este trabalho se propõe a refletir sobre a articulação entre o
processo criativo da modista, a musealização de seu acervo de indumentária e os entrelaçamentos que
se apresentam entre o espaço público do museu e o espaço privado de sua casa e ateliê.
Palavras chave: 1. Raimunda Rodrigues Frazão 2. Museu 3. Processo de criação

Abstract: The Dica Frazão Art Museum, one of the few costume-focused museums in Brazil, was
founded in 1999 in Santarém, in the state of Pará, and conceived by dressmaker Raimunda Rodrigues
Frazão. Since the 1940s, Frazão has been creating pieces that privilege craftsmanship and the use of
Amazonian plant fibers. This paper aims to discuss the relationship between the dressmaker's creative
process, the musealization of her costume collection and the entanglements between the public space
of her museum and the private space of her home and atelier.
Keywords: 1. Raimunda Rodrigues Frazão 2. Museum 3. Creative process

Introdução

Entre o Rio Tapajós e o Rio Amazonas, mais precisamente na Rua Floriano Peixoto, no 281, na
cidade de Santarém, oeste do Estado do Pará, encontramos o espaço que abriga costuras de uma
relação que começou a ser desenhada em 1920. Quem adentra o antigo casarão se depara com três
portas. À direita, museu. À esquerda, ateliê. Mais à frente, cozinha. Aos fundos, o quintal. Lá
encontramos Raimunda Rodrigues Frazão, considerada por muitos uma das maiores modistas/artesãs
do Pará.2

                                                                                                                       
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia
(UNAMA). Bolsista da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (CAPES).
2 Ver Fonseca (2006); Maia (2007); Amorim (2013).

 
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Morando no casarão há 72 anos, Raimunda Rodrigues Frazão nasceu no dia 20 de setembro


de 1920, em Capanema – munícipio do Pará a cerca de 1472 km de Santarém. Conhecida
popularmente como Dona Dica Frazão, a modista desenvolve, desde os anos 1940, um trabalho cuja
principal potência é a valorização do manual e o uso das fibras vegetais encontradas na floresta
amazônica.

Pioneira no uso da raiz do patchouli na confecção de moda3, Dona Dica Frazão transforma as
fibras vegetais encontradas na Amazônia, tais como tucum, buriti e malva, além de entrecascas de
árvores diversas, em entrelaçados que se configuram em vestidos, leques, chapéus e buquês de flores.
A delicadeza das peças produzidas pela modista paraense, aliada ao pioneirismo de seu trabalho, fez
com que Dona Dica não só ganhasse projeção local, mas também internacional. Foi assim que, em
1999, o casarão no centro santareno, também sua residência e ateliê, tornou-se museu. Sendo um dos
únicos museus brasileiros com acervo majoritariamente de indumentária, o Museu de Arte Dica Frazão
surgiu de uma parceria entre o Ministério da Cultura e Educação e a Prefeitura de Santarém, na
ocasião da comemoração dos 338 anos da cidade de Santarém.4

Atualmente, o Museu de Arte Dica Frazão conta com um acervo de cerca de 150 peças e se
encontra imbricado ao espaço da casa e do ateliê da modista. Nesse sentido, se o museu é um espaço
institucionalizado e público, a casa é um espaço privado e o ateliê é um espaço tradicionalmente
particular do artista, perguntamo-nos até que ponto é possível delimitar fronteiras entre o Museu de
Arte Dica Frazão, o espaço doméstico da modista e seu ateliê. Como seu processo de criação se
relaciona com esses territórios? Qual(is) lugar(es) o Museu de Arte Dica Frazão ocupa nessa relação?
Em que medida é possível estabelecer distinções entre o estatuto dos objetos musealizados e dos
objetos cotidianos que coabitam o mesmo endereço?

Partindo fundamentalmente de depoimentos da própria modista e de pesquisas de


historiadores da cultura santarena, o presente artigo se ocupa primeiramente de fazer uma análise do
processo criativo de Dona Dica Frazão, para a partir disso discutir de que maneira o Museu de Arte
Dica Frazão se insere nessa rede de relações entre público e privado, entre território de criação e
território de exposição, entre memória individual e memória coletiva, entre objetos da casa e objetos
musealizados.

                                                                                                                       
3 Secretaria Municipal de Turismo – SEMTUR (2013)  
4 Ver Amorim (2013).
2

 
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“Pego a natureza e transformo em roupa, faço fibra virar pano”5

No dia 20 de setembro de 1920, no município de Capanema, Estado do Pará, nasceu a


modista6 Raimunda Rodrigues Frazão, conhecida popularmente como Dona Dica Frazão. Irmã
primogênita de 7 irmãos, perdeu a mãe aos 12 anos e foi abandonada pelo pai. No início de sua
adolescência, Raimunda Frazão assumiu a criação de seus irmãos e começou a trabalhar na roça
durante o dia e costurar à noite para sustentar a família. Nunca teve oportunidade de estudo formal,
mas foi na floresta amazônica que encontrou sua maior fonte do saber:

Eu comecei a colher as flores do jardim, despetaladas, para poder aprender a fazer


flores com a natureza, a própria flor. Enquanto eu não fazia uma igual, eu não
sossegava, aí eu comecei a trabalhar. Comecei a fazer flores, comecei a costurar.
(...) trabalhando, consegui desmanchar a roupa do meu pai. (...) conseguia fazer as
roupas dos noivos, das noivas, os ternos.7

De forma intuitiva e já nos primeiros momentos de sua trajetória como modista, Dona Dica
Frazão adotou a floresta amazônica como sua “mestra criativa”. Ao colher as flores do jardim e “tirar
seus moldes”, quando tinha por volta de 14 anos de idade, começou-se a desenhar uma relação na
qual a floresta ocuparia um papel de fonte de matéria prima para a produção de suas peças, mas
principalmente de fonte de aprendizado. Despetalando para aprender a florir, a jovem Dica Frazão
enxergou uma floresta co-criadora, mas também criativa por si só. Nesse sentido, o processo criativo
de Dona Dica Frazão aponta para uma relação não dicotômica entre natureza e cultura, entre humano
e não humano, entre sujeito e objeto.

                                                                                                                       
5 Excerto de entrevista concedida por Dona Dica Frazão à FASCOM/IBRAM (2014).
6 De acordo com o Dicionário Informal, modista é a “profissional que desenvolve trabalho de alta costura marcado pelo
glamour e excelente acabamento, em geral roupas femininas para festas, como vestidos de noiva, madrinhas, debutantes, e
também trajes sociais como taiers, ternos femininos e outros. Utilizam tecidos diferenciados de alta qualidade, rendas,
bordados, pedrarias, a fim de enriquecer e conferir sofisticação aos modelos criados e confeccionados, diferenciados pela
elegância e distinção. Une o que hoje é a atribuição do estilista ou designer de moda com a da costureira”. Disponível em
http://www.dicionarioinformal.com.br/modista/. Acesso em 08 fev. 2016.
7 Trecho extraído da entrevista concedida à emissora de TV Record News Santarém por Dica Frazão (2012). Os dados

biográficos da modista são apresentados na mesma entrevista e mencionados também em outras fontes (Maia, 2007;
Amorim, 2013; Fonseca, 2006). Ver referências.
3

 
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Raimunda Rodrigues Frazão, 2014. Fonte: Portal Cultura Amazônica8

Miller (2013) observa que o humano não existe sem os agentes não humanos envolvidos na
relação; na medida em que são feitos por nós, esses agentes também nos fazem. Articulando essa
colocação com o que Dona Dica nos apresenta, poderíamos dizer que ela considera a floresta
amazônica como algo não exógeno a ela, ou seja, como algo que também a constitui. Desse modo, a
floresta seria não um repositório cujo propósito seria meramente o de fornecer recursos para a criação
da modista, mas sim uma agente simetricamente criativa.

Esse posicionamento também aparece quando Dona Dica denomina uma das fibras vegetais
encontradas na região como “roupa da árvore”9. Essa “roupa” se refere à entrecasca10 que, ao lado da
raiz do patchouli11, das fibras do tucum12, do buriti13, da juta14, da malva15 e do cipó escada de jabuti16,

                                                                                                                       
8 Disponível em http://www.culturaamazonica.com.br/2014/10/01/dedicacao-e-carinho-pela-arte-representam-o-museu-dica-

frazao-em-santarempa/#prettyPhoto. Acesso em 09 fev. 2016.


9 Termo utilizado pela modista em entrevista concedida a emissora TV Record News Santarém (2012). Ver referências.
10 Entrecasca é a “parte mais interna da casca da árvore, líber, ou da casca de certos frutos”. (PRIBERAM, 2013).
11 Patchouli é “uma herbácea da família das gramíneas. Suas folhas são utilizadas para confeccionar chapéus, mas é nas

raízes que está seu grande atrativo. Dotadas de um perfume peculiar, quando secas, as raízes são utilizadas para a
confecção de leques, bonecas, rendas e, ainda, no preparo de ‘garrafadas’. Misturadas a outras raízes e cascas de árvores
igualmente perfumadas, as raízes dão origem ao ‘Cheiro do Pará’”. (PATCHOULI, [201-?])
12 “O Tucum é uma palmeira nativa do norte e oeste da região Amazônica, podendo ser encontrada no Brasil, Peru,

Equador, Colômbia e Venezuela. (...) [S]eus frutos comestíveis e as folhas novas, de onde se podem extrair fibras para a
elaboração de linhas usadas na confecção de redes para dormir e pescar, linha de pesca e de amarrio, além de roupas e
outros utensílios, como bolsas e chapéus” (LINHA DO TUCUM, 2007). Disponível em
http://www.linhadotucum.art.br/index.php/otucum.html>. Acesso em 10 fev. 2016.  
13 “O buriti (Mauritia flexuosa) é uma planta tipicamente da floresta Amazônica e cerrado e é considerada uma das

palmeiras mais abundantes do país. Ocorrem em toda a Amazônia, Brasil Central, Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais,
Piauí e São Paulo nas áreas baixas de florestas abertas e fechadas, sobre solos mal drenados, brejosos ou inundados”
(SARAIVA, 2009 apud BARBOSA, 201, p.21).  
14 Segundo Maia (p.17, 2009), a juta é uma fibra vegetal “cujo nome científico é Corchurus capsularis, é uma planta têxtil

pertencente à família das Tiláceas, que exige solo fértil e bem drenado, assim como clima quente e úmido. (...) As espécies
do gênero Corchurus são: Corchurus L., (...) e a Corchurus olitorius L. (...), sendo a primeira mais importante do ponto de
vista têxtil.”
4

 
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está entre os materiais mais utilizados pela modista para confeccionar suas peças17 a partir da
biodiversidade que compõe a Floresta Amazônica. Vale lembrar que além das fibras vegetais, Dona
Dica Frazão também utiliza uma série de sementes e penas que caem de gansos e patos que cria em
seu quintal.

Algumas fibras vegetais utilizadas por Dica Frazão. Fonte: Portal UOL18

A primeira peça de sucesso da modista foi um leque de penas de pássaros confeccionado logo
após sua mudança para Santarém, em 1943. Ao se estabelecer em seu novo endereço, Dona Dica viu
sua vida mudar quando as senhoras da cidade mostraram se identificar com suas produções únicas,
que valorizavam o mundo amazônico. Na ocasião da Semana de Santarém (1972), promovida pelo
maestro Waldemar Henrique no Teatro da Paz (em Belém), Dona Dica Frazão foi uma das trinta
personalidades mocorongas19 selecionadas para participar do evento. No ambiente do teatro, a
modista fez um desfile com algumas de suas peças e atraiu olhares de um casal belga que adquiriu um
mantô de entrecasca para dar de presente para a Rainha Fabíola da Bélgica (FONSECA, 2006).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
15 Malva é uma “planta nativa da região amazônica da família das Malváceas, que apresenta uma fibra de maior resistência
que a da juta, porém menos sedosa e brilhosa” (MAIA, p.23, 2009).
16 “É uma planta nativa, encontrada abundantemente na mata atlântica de diversas regiões do Brasil, sendo conhecida

como ‘cipó-unha-de-boi’, ‘escada-de-macaco’ ou ‘escada-de-jabuti’, devido à peculiaridade de sua casca, muito similar a
uma escada” (FILHO, p.2, 1999).  
17
 Sobre o uso das fibras vegetais na Amazônia para fins têxteis, Anawalt (2011, p.484) relata que desde os tempos mais
remotos, os grupos indígenas da floresta produziam “entrelaçados, enredados, atados ou tecidos a dedo para confeccionar
objetos essenciais: bolsas, redes, cordas, além da rede [de dormir]”.  
18 Disponível em http://viagem.uol.com.br/guia/brasil/santarem/atracoes/museu-dica-frazao/. Acesso em 10 fev. 2016.
19 A palavra “mocorongo” denomina os habitantes que vivem na região do Rio Tapajós.

 
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Mantô de entrecasca presenteado à Rainha Fabíola da Bélgica, em 1972. Fonte: Divulgação/Dica Frazão20

Além do mantô de entrecasca, as peças da modista que ganharam mais destaque incluem também três
figurinos para o Boi Garantido (1988), uma toalha de entrecasca presenteada ao ex-presidente
Juscelino Kubitschek, uma toalha de mesa de fibra de buriti bordada com motivo floral feita para o Papa
João Paulo II, além da capa da coletânea “Meu baú Mocorongo” (2006) do maestro e escritor santareno
Wilson Fonseca, ilustrada com leques seus. Hoje, as réplicas dessas peças fazem parte do acervo de
aproximadamente 150 objetos do Museu de Arte Dica Frazão, em sua maioria classificados como
vestuário e acessórios.

"Minha casa toda já é um museu”21

Fachada do Museu de Arte Dica Frazão. Fonte: Tripadvisor22

                                                                                                                       
20 Disponível em http://migre.me/t5Xb1. Acesso em 20 fev. 2016.
21 Excerto da entrevista concedida por Dona Dica Frazão à Oliveira (2006). Ver referências.
6

 
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Com um acervo composto por vestidos, leques, bolsas, ventarolas, chapéus, toalhas de mesa,
buquês de flores e objetos de decoração, o Museu de Arte Dica Frazão compartilha espaço com a casa
e o ateliê de Dona Dica Frazão. Em uma exposição de longa duração, os objetos musealizados estão
dispostos em manequins dentro de vitrines de vidro e ocupam dois compartimentos do casarão
localizado em Santarém.

Diferentemente de casas-museus brasileiros como o Museu Casa de Rui Barbosa (RJ), Museu
Casa de Portinari (SP) e o Museu Lasar Segall (SP), o Museu de Arte Dica Frazão não se encaixa
precisamente nessa classificação, já que de acordo com Ponte (2007, p.25), uma casa-museu busca
manifestar a

vivência de determinada pessoa que, de alguma forma, se distinguiu dos seus


contemporâneos, devendo este espaço preservar, o mais fielmente possível, a
forma original da casa, os objectos e o ambiente em que o patrono viveu, ou no qual
decorreu qualquer acontecimento de relevância, nacional ou local.

Se por um lado o Museu de Arte Dica Frazão se assemelha às casas-museus no que tange a
tensão entre o público e o privado, por outro, o museu santareno se justapõe à casa e ao ateliê de uma
criadora viva, com produção ativa. Como diz a modista, “crio, produzo, faço arte o dia todo. Recebo
visitas, conheço pessoas novas, pois sou considerada como ‘memória viva’”.23

Assim, o Museu de Arte Dica Frazão não tenta refazer um ambiente do passado, pois a própria
“homenageada” mora e trabalha no espaço. Além disso, os objetos pessoais de Dona Dica que
compõem especificamente os espaços que correspondem à casa e ao ateliê, tais como cama,
utensílios domésticos, máquina de costura e roupas pessoais, não foram musealizados, apesar de se
confundirem de alguma forma com o acervo do museu, já que ocupam ambientes muito próximos.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
22 Disponível em https://media-cdn.tripadvisor.com/media/photo-s/05/67/79/64/museu-dica-frazao.jpg. Acesso em 05 fev.
2016.
23 Trecho de entrevista concedida a Jeso Carneiro. Disponível em http://www.jesocarneiro.com.br/arte/dica-frazao-90-anos-

de-arte.html. Acesso em 06 fev. 2016.


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Vitrine no Museu de Arte Dica Frazão, 2014. Fonte: Museu Dica Frazão/Divulgação24

De acordo com Desvallées e Mairesse (2013, p.57), o processo de musealização envolve uma
“operação de extração, física e conceitual, de uma coisa de seu meio natural ou cultural de origem,
conferindo a ela um estatuto museal – isto é, transformando-a em musealium ou musealia, em um
‘objeto de museu’ que se integre no campo museal.”

Quando analisamos o processo de musealização dos objetos do acervo do Museu de Arte Dica
Frazão e sua respectiva tipologia, questionamo-nos acerca do meio natural ou cultural original dessas
peças. Se por um lado a indumentária musealizada não pode mais ser vestida, pois agora é
considerada documento, e se, por outro lado, os objetos em questão foram confeccionados por Dona
Dica, vestiram ou não um determinado corpo e agora, musealizados, voltam ao espaço onde foram
“concebidos”, qual(is) seria(m) o(s) seu(s) meio(s) natural(is) ou cultural(is) de origem?

Percebe-se que a partir do momento em que o espaço doméstico da modista passa a receber
visitação sob a denominação de museu de arte, novos desafios se apresentam: além da necessidade
de gerenciamento museológico de aspectos como a conservação e a sua devida catalogação, passa a
haver de alguma forma uma sobreposição entre os objetos pessoais e a coleção musealizada. O
prosaico e o familiar que habitam esses espaços marcados pela confluência de privado e público se
encontram lado a lado em um local expositivo pouco convencional.

Se a tensão entre o privado e o público e entre memória individual e a memória coletiva se


configura como característica comum aos museus-casa em geral, o caso do Museu de Arte Dica
Frazão – e essa reflexão pode ser avaliada em relação a outros museus de indumentária – adquire

                                                                                                                       
24 Disponível em https://www.museus.gov.br/aos-94-anos-dona-dica-mantem-museu-em-sua-casa-no-para/>. Acesso em 05

fev. 2016.
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contornos específicos, visto que a memória do vestuário e dos objetos-roupa se vincula à construção
de significações sobre os indivíduos e corpos para quem foram pensados e concebidos, assim como
sobre a trajetória da própria modista, de seu processo criativo e de seu resultado museal.

Assim, se o Museu de Arte Dica Frazão é um museu de interesse estético, é também um


museu de interesse biográfico, atributos que se refletem tanto em seu caráter de "casa" – um espaço
"privado, pessoal, de refúgio e intimidade" – quanto em seu caráter de museu - "criado para receber
pessoas, transmitir conhecimentos e interagir com o público, a que se associa a função de conservar,
estudar e divulgar coleções" (PONTE, 2007, p.2).

Olhando essa rede de relações sob outro viés, podemos dizer também que a instituição do
Museu de Arte Dica Frazão desestabiliza a noção de ateliê como abrigo particular do artista, além de
questionar as tradicionais oposições entre espaço de criação e exposição. Nesse sentido, o território de
criação de Dona Dica Frazão perpassa os espaços do museu, da casa e do ateliê, sendo
compartilhado com os visitantes do local, que têm uma oportunidade de viver uma experiência museal
que se aproxima do ato e do processo criativo da modista paraense.

Dessa forma, o espaço do Museu de Arte Dica Frazão, mais do que um guardião da memória,
comtemplando a materialidade de um imaginário amazônico, paraense e mocorongo do vestir a partir
da obra de Dona Dica Frazão, se configura também como um guardião da criação em processo, ao
reter e expressar registros físicos de uma vivência pessoal cotidiana.

Considerações finais

Vivendo na Amazônia – maior floresta tropical do mundo –, onde infelizmente presencia, quase
todos os dias, notícias de exploração ilegal de madeira, e onde a construção de hidrelétricas como Belo
Monte e São Luiz do Tapajós tem sido motivo de desespero da população impactada, a modista
paraense Raimunda Rodrigues Frazão lança, a partir de seu processo criativo, a possibilidade de uma
relação na qual a floresta não é tratada como mero instrumento a serviço do humano. Ao considerar a
floresta como sua “mestra”, sua principal fonte do saber, Dona Dica Frazão enxerga a Amazônia como
uma agente simetricamente criativa e abre a possibilidade de que a floresta ocupe um espaço de
destaque dentro de sua rede de relações.

 
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Tendo nascido em 1920, a modista Dica Frazão é não só testemunha viva das transformações
pelas quais a floresta amazônica vem passando ao longo dos últimos 100 anos, mas também das
mudanças nos modos de vestir na região. Fazendo moda desde os anos 1940, vem deixando marcas
importantes na cultura paraense com seu trabalho manual e a valorização das fibras vegetais
encontradas na Amazônia.

Conforme vimos neste trabalho, o Museu de Arte Dica Frazão convida seus visitantes a
transitarem por um espaço onde as fronteiras entre casa, ateliê e museu se confundem, o que
proporciona uma experiência de proximidade não só com o processo de criação da modista paraense,
mas com a história e o cotidiano da população santarena.

Apesar de o acervo do Museu de Arte Dica Frazão ser considerado pequeno no que diz
respeito ao número de objetos, a especificidade dos materiais e os processos envolvidos na concepção
de suas peças revelam uma produção rara e autêntica no cenário brasileiro, importante para a
historicização tanto da moda paraense quanto da brasileira. Nesse sentido, atentamos para a
necessidade de um registro mais detalhado acerca do trabalho desenvolvido por Dona Dica Frazão
para que suas histórias não se percam no tempo.

Referências

Artigos
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Amazônia: o caso da "linha do tucum". In Horizontes antropológicos. v. 18, n. 38, p. 15-43, Dez.
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Livros
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Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus: Pinacoteca do Estado de São Paulo:
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11

 
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12

 
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REGISTRO DE ENTRADAS DE ACERVO E SEUS IMPACTOS NA DOCUMENTAÇÃO


MUSEOLÓGICA DO MUSEU HERING

Protocols of receiving collections and the impacts in Museum Hering documentations


processes

Daniel Philipi Knop (Museu Hering)

Gustavo Nascimento Paes (Museu Hering)

gustavo.paes@ciahering.com.br

daniel.knop@ciahering.com.br

Resumo: O artigo descreve os processos institucionais observados no recebimento e


processamento técnico para musealização do Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering,
especificamente da marca de moda intitulada “DZARM.”, pertencente ao portfolio da indústria
têxtil Cia. Hering. O objeto deste estudo reflete a aplicação prática do processo de Registro de
Entradas, seguindo a metodologia de documentação híbrida - em vigor na instituição desde 2014
– e seus resultados e observações.
Palavras-chave: Acervo DZARM, Museu Hering, documentação híbrida.

Abstract: The text reveals institutional processes analyzed in reception and processing of
collections in the department of Historical Collections Cia. Hering/Museum Hering, specifically in
materials from a fashion brand named Dzarm., belonging to textile industry Cia. Hering. This
study reveals e the development and application of Protocols of receiving collections, following an
hybrid methodology - current since 2014 - and their results and observations.

Keywords : Dzarm Collections, Museum Hering, hybrid documentation

INTRODUÇÃO

A Cia. Hering - empresa do ramo do vestuário - foi fundada no ano de 1880, sob o nome
Trikotwaaren-Lager von Gebrüder Hering1 pelos imigrantes alemães Hermann e Bruno Hering.
Irmãos unidos em prol de um negócio estabeleceram-se na cidade de Blumenau, Santa
Catarina, no final do século XIX e especializaram-se no desenvolvimento, produção e
comercialização de artigos em malha. Muitas décadas, transformações e reinvenções da própria
história nas gerações seguintes, levaram à consolidação nacional como empresa brasileira, uma
                                                                                                                       
1
 Traduzido  do  alemão,  significa  “Malharia  dos  Irmãos  Hering”,  fazendo  alusão  aos  fundadores  da  marca,  
Hermann  e  Bruno  Hering.  (CAMPREGHER,  2012.)  
 

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das pioneiras no ramo da malharia, e a reconhecimentos de títulos como estando entre “As
empresas mais admiradas do Brasil”2. Na própria necessidade de comunicar a sua história, foi
criado o Museu Hering.

As raízes da constituição do Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering, e


especialmente; a ideia de um “Museu Hering”; foram idealizadas já em 1980, quando; no ano
comemorativo do centenário da empresa, o então presidente da empresa - Ingo Hering3 - redigiu
uma carta, expressando nela o seu desejo de que a memória e o legado da Cia. Hering fossem
devidamente preservados.

Entende-se que a carta em questão, intitulada: “Constituição do acervo do futuro museu


da Cia. Hering4” (HERING, 1980); representa a instigação de Ingo em despertar o pensamento
de colaboradores da Cia. Hering em torno do que seria considerada “a memória da empresa”. A
carta cita ainda a Sra. Inge Vera Von Hertwig5 como à disposição para cuidar do assunto, com
auxílio do Sr. Otto Alfredo Flattau, colaborador da empresa na época.

O documento em questão representa a primeira declaração oficial em torno de um -


possível - Museu Hering e também diz respeito à constituição de um acervo, onde “[...] A Cia.
Hering se sentirá particularmente feliz se pudéssemos juntos (texto sublinhado na carta)
reconstruir com a maior riqueza possível de documentos, objetos e máquinas, a memória da
empresa [...]” e ainda, que “[...]todo documento, fotografia ou objeto considerado de valor para a
memória da empresa receberá, se necessário, o devido trabalho de restauração e fará parte do
acervo em constituição do futuro Museu Hering ” (HERING, 1980).

A criação do Museu Hering em 2010 e a compreensão do sentido de existência do


museu quanto às suas finalidades básicas (pesquisa, salvaguarda e comunicação) ocasionou na
contratação de profissional de museologia no ano de 2013, desencadeando a estruturação
básica de um Setor de Museologia. “[...] assim, o Museu Hering, que possuía desde sua abertura
o Setor Educativo e a consultoria museológica, passa a ampliar seus trabalhos inserindo o Setor

                                                                                                                       
2
  Premiação   organizada   pela   revista   Carta   Capital,   com   o   objetivo   de   homenagear   as   empresas   e   os  
empresários   que   mais   se   destacam   e   contribuem   para   o   desenvolvimento   nacional.   A   Cia.   Hering   foi  
premiada  na   categoria   Vestuário   e   Confecção.   Ano   2014.   Disponível   em:  
http://ciahering.com.br/novo/pt/premios  (Acessado  em:  29/04/2015)  
3
  Conforme   a   “Árvore   Genealógica   130   anos   Cia.   Hering”   (Documento   Interno),  Ingo   Wolfgang   Hering,  
nascido  em  1907.  E,  segundo  Machado  (2013),  exerceu  o  cargo  de  Diretor  Presidente  da  Cia.  Hering  de  
1971  a  1989.  
4
 Carta  escrita  por  Ingo  Hering  em  25  de  junho  de  1980.  
5
  Membro   da   família   Hering,   bisneta   de   Hermann   Hering.   (Árvore   Genealógica   130   anos   Cia.   Hering  
(Documento  Interno))  
 

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de Museologia” (PAES, 2014, p. 234), e gerou a redefinição do próprio nome do espaço, que
passou a ser denominado Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering.

Desde as primeiras ações de obtenção ou guarda de qualquer documento ou objeto


referente à memória da Cia. Hering, é declarada a pergunta: o que se guarda como memória da
empresa? O que, de fato, representa a atuação institucional e de mercado, que represente as
pessoas que por ali passaram? Como salvaguardar o tempo presente enquanto memória?

Existe ainda, por trás de todas as discussões conceituais sobre a existência do Museu, as
questões práticas da existência e da geração constante de acervos, pois todas as atuais
unidades industriais6 da Cia. Hering, sendo administrativas e/ou de distribuição de produtos,
podem gerar acervos físicos e/ou digitais em tempo real. Até mesmo antigas unidades, cujos
serviços foram interrompidos igualmente podem continuar a gerar acervos, visto que
documentos e objetos relacionados a estas unidades podem estar armazenados por acúmulo
e/ou registro temporários (por exemplo, documentos com prazos de validade). Basta ter sido
doado/recolhido/referido a qualquer uma das unidades Cia. Hering, para que o registro aponte a
fonte de origem do objeto ou documento.

O trabalho aqui apresentado trata-se de um piloto, ou seja; um teste de viabilidade de


uma metodologia, a ser aplicado em trabalhos de documentação museológica7 referente aos
objetos e documentos pertencentes à marca DZARM.8. Aqui, detalha-se a importância do
processo de Registro de Entradas para este acervo institucional.

O ACERVO EM DISCUSSÃO

O acervo Cia. Hering/Museu Hering é composto por documentos históricos antigos e atuais,
que refletem a trajetória da empresa desde a sua fundação até os dias de hoje. Contêm
exemplares documentais dos fundadores e sua família, bem como documentos, objetos e

                                                                                                                       
6
  São   elas:   Matriz   (SC);   Bom   Retiro   (SC);   Itororó   (SC);   Encano   (SC),   Ibirama   (SC);   Escritório   (SP);   CD  
Anápolis  (GO);  Daia  (GO);  Paraúna  (GO);  Goianésia  (GO);  Santa  Helena  (GO),  São  Luiz  (GO),  Parnamirim  
(RN).  (Comunicação  Institucional  Cia.  Hering,  março  de  2015.  (Documento  Interno)).  
7
 [...]  podemos  afirmar  que  a  documentação  de  acervos  museológicos  é  procedimento  essencial  dentro  
de   um   museu,   representando   o   conjunto   de   informações   sobre   os   objetos   por   meio   da   palavra  
(documentação  textual)  e  da  imagem  (documentação  iconográfica).  Trata-­‐se,  ao  mesmo  tempo,  de  um  
sistema  de   recuperação  de  informação  capaz  de  transformar  acervos  em  fontes  de  pesquisa  científica  
e/ou   em   agentes   de   transmissão   de   conhecimento,   o   que   exige   a   aplicação   de   conceitos   e   técnicas  
próprios,  além  de  algumas  convenções,  visando  à  padronização  de  conteúdos  e  linguagens.  (CÂNDIDO,  
2006,  p.  34)  
8
 Marca  do  atual  portfólio  da  Cia.  Hering,  adquirida  do  grupo  M.Officer  em  1998.  (BILSLAND,  1999,  p.67)  

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maquinários históricos da empresa; gerando suas relações e vínculos não só com a cidade de
Blumenau, mas com o Brasil e o mundo.

Os trabalhos de processamento do acervo do Museu Hering - antecessores à criação Setor


de Museologia - consideravam e classificavam tais objetos e documentos em dois grandes
grupos: Grupo Família e Grupo Cia. Hering. Atualmente, o setor mapeia e identifica que existem
documentos plausíveis a formar um terceiro grupo, “Grupo Externos”, cujo conteúdo "se
relacionem ou não com a empresa Cia. Hering e que não tenham ligação direta com o ramo
têxtil, vestuário ou reflitam ações da empresa”.9

Com um olhar macro sobre a empresa e a sua estrutura, o Setor de Museologia definiu o
termo “acervos dispersos” para nominar os acervos que tenham potencial de musealização.

Todo material pode ser potencialmente um objeto museológico, porém o que o levará
a essa categoria é a análise que a instituição fará no momento em que ele for
adquirido. Ressalta-se a necessidade e o objeto possuir semelhança com o tipo de
acervo salvaguardado pelo museu e de dialogar com a sua missão e com os seus
objetivos. Assim, sua aquisição será vista como autêntica ao propósito institucional.
(PADILHA, 2014, p.19)

Acervos dispersos - para o Museu Hering - são os acervos considerados “dispersos” nas
unidades da Cia. Hering, que não possuem local de guarda pré-determinados, e/ou não estão
mapeados em sua totalidade. São os materiais e objetos que por ventura tornaram-se
esquecidos, e em alguns casos; inclusive, não se sabe da existência dos mesmos, sendo
necessário interpretá-los um a um para compreender sua importância. Normalmente se tratam
de objetos e documentos representativos, de valor histórico ou simbólico grande, cujo conteúdo
completa “quebra-cabeças” de informações existentes.

Vê-se que o “resgate” destes acervos é um trabalho complexo, realizado conjuntamente


entre o Setor de Museologia do Museu Hering, Fundação Hermann Hering e o setor de
Comunicação Institucional da Cia. Hering, que discute a importância dos mesmos e sua guarda
ou não para a posteridade.

Por outro lado, historicamente, a formação do Acervo Histórico da empresa ocorreu e ainda
ocorre em sua maioria de forma espontânea, através do envio de documentos - por parte de
colaboradores da Cia. Hering - ao Setor de Museologia, de forma não documentada ou mesmo
prevista. Percebe-se que esta prática era comum antes mesmo do setor ter se estabelecido, e

                                                                                                                       
9
  Guia   para   Registro,   inventário   e   catalogação   –   Acervo   do   Museu   Hering.   Coordenação   de   Gustavo  
Nascimento  Paes.  Fundação  Hermann  Hering.  Museu  Hering.  1ª  Edição.  2015,  p.17.  (Documento  Interno  
em  elaboração)  

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entende-se essa característica como sinal de que existem intenções de preservação de


memórias por parte de colaboradores da Cia. Hering.

Visando organizar e registrar os créditos aos respectivos doadores, e mesmo direcionar


doações sadias; em 2014 foram estabelecidos documentos de práticas administrativas
específicas, tais como Proposta e Certificado de Doação para o caso das doações.

Estas doações são efetuadas ao Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering e registradas
através de um Certificado de Doação10, documento que cita os itens doados e contempla
maiores informações, facilitando o trabalho de documentação e catalogação posterior.

Assim, o Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering recebeu no 1º semestre do ano de


2014, uma caixa de materiais destinados a se tornarem acervo da marca DZARM. Não existem
registros do recebimento da caixa pelo Setor de Museologia, pois na época o modelo de
documentação estava em processo de aprovação pelo setor Jurídico da empresa; entretanto,
sabe-se que a caixa com documentos foi despachada do escritório de São Paulo (local de
atuação dos setores de marketing, estilo, planejamento, comercial, etc.) com destino à
Comunicação Institucional da empresa (localizada a cidade de Blumenau, SC), e que esta
repassou a caixa para o Setor de Museologia.

Em prol de minimizar os impactos de ocorrências como estas – não previstas -, o setor vem
realizando de forma pontual conversas de conscientização com outras áreas da empresa (como,
por exemplo, Estilo e Marketing11), direcionando as pessoas como proceder e identificar alguns
acervos potenciais. Neste sentido, é salientada a importância do pensamento de preservação
institucional, o que consequentemente torna o acervo existente mais conhecido e acessível.

O ACERVO HISTÓRICO DZARM.

Sob o ponto de vista do Acervo Histórico Cia. Hering /Museu Hering, considera-se Acervo
“DZARM.” todo objeto tridimensional ou documento, salvaguardado no edifício do Acervo
Histórico Cia. Hering/Museu Hering, doado oficialmente ou recebido (até então) de forma não
oficial, estando já documentado ou em processo de documentação, contendo informações
                                                                                                                       
10
 Documento  elaborado  pelo  setor  de  Museologia  do  Museu  Hering,  que  lista/inventaria  os  objetos  que    
estão  na  intenção  de  doação  ao  Acervo  Histórico.  Resume  de  forma  objetiva  do  que  se  trata  a  coleção,  
com  a  maior  quantidade  de  informações  possíveis.    
11
 Estilo:  Define  o  desenho  das  peças,  a  partir  da  análise  de  tendências  e  posicionamento  das  marcas,  e  
desenvolve   as   coleções.   Marketing:   Cria   as   estratégias   de   comunicação   das   marcas   para   os  
consumidores  e  formadores  de  opinião.  (Relatório  Anual  Cia.  Hering  -­‐  2014)  

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antigas e/ou atuais sobre a marca do vestuário registrada sob o nome de DZARM., pertencente a
empresa Cia. Hering desde o ano de 1998, quando foi adquirida. Não existem os registros
antecessores da marca ao ano em que foi adquirida pela Cia. Hering, quando a mesma ainda
pertencia à outra empresa. A imagem a seguir representa logomarca atual da DZARM.:

Figura 1: Logomarca DZARM., criada e veiculada em 2014.

Fonte:  Manual  básico  de  aplicação  da  marca  Dzarm.  2014  (Documento  Interno)  

Segundo a definição de Ogilvy, marca é:

A soma intangível dos atributos do produto [desenvolvido pela empresa], de seu


nome, seu preço, sua embalagem, sua história, sua fama e a forma como é feita a
sua publicidade. Uma marca é também definida pelas impressões dos consumidores
sobre pessoas que a usam, tanto quanto pela sua própria experiência. (OGILVY
apud COBRA, 2007, p. 39)

A marca DZARM.12 está em constante lançamento de coleções, e disponibiliza ao seu


público consumidor artigos do vestuário e acessórios complementares (tais como sapatos,
bijuterias, etc.). Para entender-se a dimensão de conteúdo e volume do que a DZARM. produz
atualmente, é fundamental entender a marca, sua frequência de lançamentos e seu
posicionamento de mercado. Enquanto local de guarda de informações físicas e digitais, o
Acervo Historico do Museu Hering deve considerar que estas frequências de lançamentos de
conteúdo, pois as mesmas se refletem no volume de material que é armazenado física ou
digitalmente enquanto acervo:

A cada ano, a DZARM. lança cinco coleções seguindo o seguinte ciclo de estações:
Primavera, Verão, Alto Verão, Outono e Inverno13; gerando a cada coleção uma média de 300

                                                                                                                       
12
 Voltada  para  o  público  feminino  de  18  a  34  anos,  a  DZARM...  A  marca  possui  divisão  do  portfólio  em  
produtos  por  categorias  Day  (dia-­‐a-­‐dia),  Work  (trabalho)  e  Party  (festa),  além  de  linhas  de  alfaiataria  e  
acessórios.   Outro   grande   diferencial   da   marca   está   na   curadoria   de   estilo   como   uma   prestação   de  
serviço   às   clientes   em   todos   os   pontos   de   contato.   Atualmente,   está   presente   em   lojas   multimarcas  
espalhadas   por   todo   o   Brasil,   com   maior   capilaridade   em   cidades   do   interior   do   país.   (Fonte:   site   Cia.  
Hering  e  Intranet  da  Cia.  Hering)
13
 Informação  obtida  com  analista  de  Comunicação  e  Marketing  DZARM.,  em  04  de  maio  de  2015.  

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modelos de roupas, totalizando 380 variantes de cores14. Salienta-se que este número
representa uma média quantitativa baseado nas últimas coleções, e que o mesmo pode sofrer
alterações para mais ou menos modelos e variantes, conforme definições da marca. Partindo
desses dados, pode-se prever um montante aproximado da quantidade de peças lançadas em
01 ano: aproximadamente 1500 modelos de peças de roupa. E ainda, que serão lançados 05
catálogos ao ano (se esta frequência existente se mantiver sem alterações).

No sentido de preservar mesmo que ainda não haja uma Politica de Aquisição de
Acervos definida pelo Museu Hering; algumas práticas que incitam à salvaguarda de
informações e exemplares originais ocorrem, como por exemplo, a recepção e a guarda
sequencial de documentos tais como os Catálogos de Coleções e também materiais publicitários
que, se perdida, afeta a periodicidade e evolução do todo que é a comunicação da marca. Ao se
perder uma edição dos catálogos, por exemplo; perde-se um “relatório visual”, ou seja, uma lista
ilustrada e completa contendo todas as peças elaboradas para aquela coleção específica de
moda da estação.

Com menos frequência, percebe-se que existiu uma tentativa de introdução à guarda de
materiais que se enquadram na tipologia indumentária, mas esta se restringiu a uma ação
específica referente ao lançamento de uma coleção da marca, por exemplo, podendo ter sido
eleita uma peça considerada representativa do DNA da marca. Aqui, chamamos ainda a atenção
para a inviabilidade da guarda completa de 1500 peças de roupa por ano apenas referente à
marca DZARM. (e isto que, a Cia. Hering tem mais outras quatro marcas e seu próprio fluxo de
informações); no presente momento não é musealizada nenhuma peça de roupa da marca. Isto
é uma discussão que exige um estudo e preparo maior, cuja infraestrutura e apoio de equipe de
trabalho não possuem respostas; demandando um diálogo interdisciplinar e até mesmo
consultorias direcionadas para o assunto.

O PROCESSO DE REGISTRO DE ENTRADAS

Gestão de acervos “é o termo aplicado aos vários métodos legais, éticos, técnicos e
práticos pelos quais as coleções do museu são formadas, organizadas, recolhidas, interpretadas
e preservadas.” (LADKIN apud PADILHA, 2014, p.23 ).

O registro de entradas é um documento de gestão do acervo, que serve para registrar as


informações básicas do objeto bem como criar uma enumeração sequencial corrida em relação
                                                                                                                       
14
 Informação  obtida  juntamente  com  analista  de  Merchandising  DZARM.,  em  03  de  agosto  de  2015.  

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aos objetos doados. Teoricamente deve ser feito no ato do recebimento de doações no Museu.
Essa etapa se justifica uma vez que o Setor de Museologia vem se estruturando, e aos poucos
tenta introduzir a rotina documental e processual referente ao acervo.

No caso do Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering, o acervo DZARM. recebido, objeto
de estudo deste artigo - como já citado anteriormente - foi doado de forma não documentada, ou
seja; não há Termo de Doação nem Proposta de Intenção de Doação oficializados, que validem
as informações obtidas no conteúdo do mesmo.

Devido à visível inconsistência de informações intrínsecas e extrínsecas, o acervo DZARM.,


recebido em 2014 somente foi organizado e processado posteriormente, no início do ano de
2015. Durante cerca de 30 dias de trabalho, foi registrada/documentada a entrada física de
objetos e documentos ao Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering, na intenção de se
somarem aos acervos existentes como complemento.

A principal intenção deste registro foi a de identificar os itens do acervo e torná-los


localizáveis quando armazenados.

Foi previamente estabelecido pelo Setor de Museologia que seria registrada a entrada dos
objetos, onde se aplicaria uma numeração provisória (sequencial corrida) ao invés de uma
enumeração oficial. Entretanto, quanto à aceitação total ou parcial de itens como pertencentes
ao Acervo Histórico ou até mesmo à não-aceitação, ficou definido que dependeria da avaliação
técnica de uma comissão conjunta do Museu Hering, Fundação Hermann Hering e Cia. Hering.
Aqui, chama-se atenção da importância das três instituições participarem nas decisões, visto que
qualquer decisão afetaria ao todo.

Foi estabelecida uma relação de informações consideradas básicas, para o preenchimento


de dados dos itens de acervo, durante o Registro de Entradas. Veja, a seguir:

Quadro 1 – Registro de Entrada Museu Hering

CAMPOS EXPLICAÇÃO
NÚMERO DE
ENTRADA Número de caráter provisório para o registro de entrada
DATA DE ENTRADA Data de registro de entrada
CORRESPONDENTE
A: ( ) Acervo Família Hering ( ) Acervo Cia. Hering
DOADO POR Nome da pessoa física, jurídica ou setor da Cia. Hering que doou.
Data em que o objeto/documento foi doado.
Observação: nem sempre DATA DE ENTRADA e DATA DE DOAÇÃO
DATA DOAÇÃO correspondem à mesma data, pois podem ocorrer atrasos no início dos

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

trabalhos de registro.
QUANTIDADE Quantidade de cópias mesmo objeto
DOAÇÃO INTERNA Doação realizada por colaboradores, setores e/ou unidades da Cia. Hering
Doação da sociedade civil, pessoa física ou jurídica e inclui também ex-
DOAÇÃO EXTERNA colaboradores
TÍTULO Título oficial. Na falta de títulos, é utilizada a sigla S/R (sem referências).
Atribuir quando houver atribuição à uma das marcas pertencentes ao
MARCA portfolio da Cia. Hering (atuais ou antigas)
formato em que se encontra o documento (livro, pasta, folha avulsa, cartaz
FORMATO publicitário, etc.)
SUPORTE material de composição
DESCRIÇÃO
SUMÁRIA Descrição breve quando necessário
DIMENSÕES medidas em centímetros
DURAÇÃO tempo de duração (para mídias digitais)
PÁGINAS quantidade de páginas quando houver
ESTADO DE Estado em que se encontra o item no momento da doação Bom, Ruim ou
CONSERVAÇÃO Regular - estados padronizados pelo Setor de Museologia
Fonte:  Elaborado  pelos  autores  (2015).    

Ao realizar os trabalhos de identificação, percebeu-se imediatamente que o acervo em


questão era composto por uma miscelânea de formatos editoriais, diferentes suportes (papel,
têxtil, CD, etc) e terminologias, unindo todos os materiais com um significado em comum: todos
representavam a marca DZARM., com uma grande quantidade de materiais atuais (datados de
cerca 3 a 5 anos passados); e alguns poucos itens mais antigos (do ano de 1998 em diante).

As dificuldades relacionadas á identificação estão principalmente ligadas a respeitar e


preservar somente a informação original do objeto; e não atribuir informações incongruentes.

Para sanar qualquer dúvida e manter a informação original dos documentos, o Registro de
Entradas considerou apenas as informações intrínsecas dos documentos, ou seja: títulos,
subtítulos e/ou qualquer informação “deduzida por meio do próprio objeto, ou seja, pela análise
de suas propriedades físicas.” (PADILHA, 2014, p.13)

Em relação às informações extrínsecas, aquelas “[...] obtidas por meio de outras fontes que
não o objeto e que permitem compreender o contexto no qual o objeto existiu, funcionou e
adquiriu significado [...]” (PADILHA, 2014, p.13), durante o registro de entradas o cuidado em
preservar uma informação como esta foi mantida como campo denominado “observação”. No
caso, qualquer uma destas informações dependem de pesquisa para validação do conteúdo.

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 618


Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

Definiu-se o termo “atribuído” para informações extrínsecas que estejam acrescidas ao


documento original, sendo obtidas por fonte de anotações, bilhetes, ou títulos concedidos
posteriormente ao documento original (escritos à caneta, por exemplo), etc. No caso, estas
informações foram atribuídas por qualquer pessoa que trabalhou, utilizou, criou e/ou identificou o
documento que se tornou acervo, e por isso podem ajudar na identificação do acervo quando as
informações intrínsecas não o permitem.

As etapas de trabalho com acervos a serem registrados foram:

• Triagem inicial
• Identificação Individualizada
• Identificação da origem
• Identificação da Finalidade
• Identificação do Público
• Identificação da possível existência de complementos/pares e cópias entre os objetos
• Estados de conservação
• Análise e Quantificação
Cada etapa possui suas peculiaridades e objetivam tornar a informação mais acessível e
prática, tanto para o próprio museu quanto para os consulentes; almejando uma gestão do
acervo e prevendo necessidades de guarda, espaço de guarda, acondicionamento, etc. A partir
do momento que deu entrada, o documento/objeto deve ser avaliado periodicamente,
idealizando estar sempre nas melhores condições, sem alterações que o degradem, colocando
em risco a vida útil do mesmo.

APONTAMENTOS FINAIS

O principal motivo de existir um Registro de Entradas de objetos é formalizar os registros


iniciais ao processo de documentação museológica: ou seja, é buscar a informação mínima
necessária para que o objeto/documento permaneça como acervo e tenha quantidade de
informações suficientes para sua identificação se comparado a outros itens similares. Isso gera
um sentido de identidade, conteúdo e interpretações da unicidade de cada objeto/documento
enquanto acervo e enquanto registro da passagem do tempo.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

O registro serve ainda para fins de quantificação e controle de cópias, bem como gerar o
cruzamento de todas as informações, revelando as relações entre os objetos de um mesmo
acervo, e seus complementos.

Percebeu-se, através de registros existentes que a documentação do acervo DZARM.


ocorre pelo menos desde o período em que o espaço de salvaguarda era chamado de Arquivo
Histórico. Não se sabe ao certo quando o processo de documentação deste acervo foi iniciado,
entretanto o acervo da marca compreende o período de 1998 até a atualidade.

Com a estruturação do Setor de Museologia, fez-se uma análise da documentação já


existente, e percebeu-se que a documentação do acervo em um todo, não atendia às
necessidades da museologia, pois seguindo os padrões que haviam da arquivologia, a
documentação gerava apenas um único número que representava toda a coleção. Por exemplo,
toda a coleção de catálogos da marca DZARM., possuía o mesmo número de registro:
2.1.9.2.1.1.4

Com a geração de apenas um número representante da coleção, a documentação não


quantificava os itens (não havia o registro de possíveis cópias, e não havia expressado
oficialmente em qualquer documento a quantidade de itens deste acervo). Não gerava um
número individual para cada item, e quando necessárias, as buscas ao acervo físico poderiam
conter equívocos.

Sendo assim, a partir de 2014 passou-se a desenvolver e utilizar uma metodologia de


trabalho de documentação híbrida15. Com este tipo de documentação, passou-se a conceder 01
número para cada catálogo – por exemplo:

80 Catálogo DZARM. Inverno 99


80.1 Catálogo DZARM. Inverno 99 (cópia 01)
80.2 Catálogo DZARM. Inverno 99 (cópia 02)

Assim, pode-se fazer a soma do total, e teríamos:

Total de catálogos físicos: 3 unidades

Total de edições: 1 unidades

                                                                                                                       
15
 Documentação  de  caráter  híbrida  [neste  caso]  (arquivologia  +  museologia).  (PAES,  2014,p.  246)  
 

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Além disso, pensando na salvaguarda e na acessibilidade ao acervo, o registro dos


dados de cada item passou a conter a informação de localização atual do acervo. Ou seja, no
caso do Catálogo DZARM. Inverno 99, a localização do mesmo passou a ser:

CAIXA ESTANTE PRATELEIRA LADO


09 E8 P2 LC

Na análise do que existe de registros de trabalhos de documentação antigos, apostilas


indicavam a presença de cerca de 70 edições de catálogos entre 1998 a 2014, sem revelar,
portanto a existência de cópias. Tendo como base este mesmo período, após trabalhos de
documentação híbrida, verificou-se ao total - correto - equivale a 109 edições lançadas. Este
número só tornou-se possível porque em 2015, foi iniciado o arrolamento16 total do acervo de
catálogos DZARM. (processo que ainda ocorre). Assim verificou-se a existência de diversas
edições e diversas cópias antes não mapeadas.

Marca DZARM.
Número de Edições 109
Total de cópias 119
Total de Catálogos 228

Com este processo foi também possível identificar pela frequência de lançamentos, que
havia catálogos e demais itens faltantes no acervo (seja por estarem perdidos, em locais errados
ou por não terem sido musealizados na época de sua circulação).

Ainda, fica expressado que, a não existência de um Registro de Entrada, ou mesmo, falta
de uma documentação própria como o Termo de Doação, representa uma problemática no que
diz respeito à identificação da origem do acervo, e isto pode se agravar quando é desconhecia a
utilidade de itens doados. O registro de entradas é uma forma documentada de prevenir a perda
de informações de um acervo recente, e que se reflete em sua trajetória como acervo
institucional musealizado.

O Acervo Histórico Cia. Hering/Museu Hering em consonância com a diretoria da


Fundação Hermann Hering, e ainda, com a diretoria da empresa Cia. Hering; tem o papel de
instigar e fazer refletir, questionando sobre o que se preserva atualmente para uma memória
                                                                                                                       
16
 Arrolamento  é  o  ato  por  meio  do  qual  se  realiza  a  contagem  de  todos  os  objetos  que  fazem  parte  do  
museu,  sendo  criada  uma  lista  numerada  para  controle  e  identificação  geral  do  acervo  museológico.  
(PADILHA,  2014,  p.  41)  

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empresarial mais consistente, mais coesa, com uma seleção sadia de objetos realmente
importantes do total gerado, especialmente quando se reflete sobre a atuação das marcas de
vestuário. Compete também atuar no recebimento, na guarda e na documentação dos dados de
seu acervo, para que o mesmo permaneça preservado e disponível às demandas de pesquisas
e consultas da própria empresa ou a membros da sociedade civil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Árvore Genealógica 130 anos Cia. Hering (Documento Interno)

BILSLAND, DAVID C. M. T. Transições estratégicas numa empresa tradicional: As mudanças


estratégicas mais recentes na Cia. Hering. 1999. 121 f. Dissertação ( Mestrado em
Administração: Gestão Moderna de Negócios do Centro de Ciências Sociais da Universidade
Regional de Blumenau).

CAMPREGHER. Hanelore Sandner. A imigração alemã em Blumenau. In: Museu Hering –


Temáticas Educativas. Caderno do Professor Explorando o Museu Hering e a exposição Tempo
ao Tempo. Museu Hering. Fundação Hermann Hering. Blumenau. 2012.

CÂNDIDO, Maria Inez. Documentação Museológica. In: CADERNO de diretrizes museológicas 1.


Brasília: Ministério da Cultura / Instituto do Patrimônio Historico e Artístico Nacional/
Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/
Superintendência de Museus, 2006. 2º Edição , p.31 – 90

COBRA, Marcos. Marketing & Moda. Editora SENAC, 2007

Guia para Registro, inventário e catalogação – Acervo do Museu Hering. Coordenação de


Gustavo Nascimento Paes. Fundação Hermann Hering. Museu Hering. 1ª Edição. 2015
(Documento Interno em elaboração)

HERING, Ingo. Constituição do Acervo do Futuro Museu da Cia. Hering. Blumenau, 25 de junho
de 1980. (Documento Interno)

MACHADO, Franciele. Relação de Presidentes Cia. Ano 2013. (Documento Interno)

Manual básico de aplicação da marca Dzarm. 2014 (Documento Interno)

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

PADILHA, Renata Cardozo. Documentação Museológica e Gestão de Acervo. Florianópolis:


FCC, 2014 (Coleção Estudos Museológicos, v.2)

PAES, Gustavo Nascimento. O Museu Hering – A gestão documental de um processo híbrido.


In: Fronteiras regionais e perspectivas nacionais (anais): Coordenação de Marília Xavier Cury.
Blumenau: Museu Hering: Fundação Hermann Hering, 2014, p..231 – 253.

Prêmios e reconhecimentos conquistados pela Cia. Hering.. Disponível em:


http://ciahering.com.br/novo/pt/premios (Acessado em 29/04/2015)

Relatório Anual Cia. Hering 2014 (Documento Interno)

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Sessão Temática 07
Os trajes e suas diversas expressões

Coordenação: Profa. Dra. Maria de Fátima Mattos | CUML Ribeirão Preto


Local: Unidade de dança UFPR - Prédio Histórico

Dia 13/05

Análise de aspectos pictóricos das pinturas pertencentes à série Estudo de Trajes


Italianos do artista Victor Meirelles
Mara Rúbia Sant’Anna / Universidade do Estado de Santa Catarina / sant.anna.udesc@gmail.com ou
modaesociedade@gmail.com

O presente artigo tem por objetivo descrever a análise realizada por meio de elementos da
composição pictórica de vinte e seis obras pertencentes ao Estudo de Trajes Italianos realizados
por Victor Meirelles, na Itália, no século XIX. Observa-se seus componentes e se analisa o que
há em comum entre elas; conjuntamente, se faz estudos da vida do artista, movimentos
artísticos e do contexto histórico em que essas obras foram produzidas.
Palavras-chave: Arte; Moda; Victor Meirelles

As benesses de um arquivo teatral em ordem: Casa Assombrada


Fausto Viana / Universidade de São Paulo / faustoviana@usp.br

O artigo busca revelar como um arquivo pessoal, do Dr. Alfredo Mesquita, pertencente ao
Arquivo Público do Estado de São Paulo, pode ser fonte abundante de informações para o
pesquisador da área teatral, e nesse caso específico, de cenografia e traje de cena. Apresenta-
se também um estudo de caso a partir do material encontrado no acervo, sobre o espetáculo
Casa assombrada, revelando procedimentos de produção teatral na São Paulo dos anos 1930.
Palavras-chave: Cenografia; acervos teatrais; Alfredo Mesquita.

O vestuário construtivista da artista Varvara Stepanova


Tatiane Rebelatto / UDESC / tatirebelatto@hotmail.com

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Mara Rubia Sant’Anna / UDESC / sant.anna.udesc@gmail.com

O estudo tem por objetivo observar as produções vestíveis da artista construtivista Varvara
Stepanova, suas roupas esportivas, figurino para teatro, projetos para estamparia e também
uniformes de produção. Considera-se que a partir desses projetos de roupas Varvara foi se
afirmando como uma artista construtora. Utilizou da linguagem do movimento de vanguarda
construtivista também em suas produções de vestuário. Com isso, demonstrou domínio nas
formas e técnicas do movimento e seu engajamento com o projeto de trabalho artístico utilitário.
Palavras-chave: vestuário, construtivismo, Varvara Stepanova.

Trajes funerários de Paracas: mantos para a vida depois da vida


Isabel C. Italiano / Universidade de São Paulo / isabel.italiano@usp.br
Fausto R. P. Viana / Universidade de São Paulo / faustoviana@uol.com.br

O clima seco foi o grande agente climático de preservação de uma coleção de fardos funerários
hoje pertencentes ao Museu Nacional de Arqueologia, Antropologia e História do Peru. Os fardos
são compostos por camadas de mantos, que abrigam em seu interior múmias de figuras
importantes da comunidade em que atuaram, entre 100 a.C. e 200 d.C. Este estudo mostra a
riqueza e qualidade dos sofisticados têxteis bordados pelos artesãos de Paracas, registros
documentais importantes sobre a cultura e história desse povo.
Palavras-chave: trajes funerários, têxteis, Paracas.

Dia 14/05

Moda e traje de cena tropicalistas


Sandra Regina Facioli Pestana / Universidade de São Paulo / sandra@teatrodesenhoritas.com.br

O texto traça um panorama das transformações que o conceito de identidade cultural brasileira
sofreu entre os séculos XIX e XX, alcançando a década de 1960 e o movimento Tropicalista.
Observa as influencias entre a moda internacional e nacional do período e o traje de cena em
produções de cultura de massa e em obras como o filme Terra em Transe e a peça O Rei da
Vela, refletindo sobre como os trajes criticaram e corroboraram com as noções de identidade
cultural vigentes.
Palavras-chave: Figurino, Moda, Tropicalismo

O Design de Moda na narrativa do filme O Grande Hotel Budapeste: o papel das cores no
figurino
Taciane Biehl Duarte / Faculdade de Tecnologia SENAI Curitiba / tcnebiehl@gmail.com
Andréa Schieferdecker (Faculdade de Tecnologia SENAI Curitiba / schiefer.andrea@gmail.com

O presente estudo investiga a cor como elemento constituído de comunicação no figurino do

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 625


Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

filme o Grande Hotel Budapeste (2014) do diretor Wes Anderson, em busca de entender como
as cores atreladas ao figurino no cinema narram e discursam. A metodologia aqui é composta
por uma pesquisa qualitativa do Grupo Focal, que contribuiu para que se verificasse como o
discurso do filme é entendido através das cores em especial das cores das roupas de seus
personagens.
Palavras-chave: Figurino, Cor, Cinema.

Relações entre cenário e figurino em Almodóvar


Ligia Cristina Battezzati / IFPR
Lindsay Jemima Cresto / UTFPR / lincresto@hotmail.com

Este trabalho tem como principal objetivo analisar as relações existentes entre a moda e a
decoração em um dos filmes do consagrado diretor espanhol Pedro Almodóvar. Considerando
que tanto figurino quanto cenário são elementos importantes para a construção de uma narrativa
cinematográfica, busca-se identificar em que medida as roupas e acessórios apresentam
proximidades com os objetos que compõem a cena, em uma obra em que a estética kitsch é
predominante.
Palavras-chave: Moda. Cenografia. Pedro Almodóvar. Kitsch

Trajes para cena: a abordagem dos trajes no cinema de Almodóvar e da indumentária de


Frida Kahlo no processo de criação de figurinos do Cruor Arte Contemporânea
Surama Sulamita Rodrigues de Lemos / UFRN / surama-rodrigues@hotmail.com

Este artigo apresenta uma investigação acerca dos processos de criação em figurino da
coligação Cruor Arte Contemporânea e como são pesquisadas e criadas as vestimentas da
prática cênica, sendo desenvolvida através de um processo colaborativo, a partir das principais
referências estéticas como a vida e obra plástica de Frida Kahlo, a cinematografia de Pedro
Almodóvar, a estética da loucura de Antonin Artaud e como essas referências dialogam com a
moda e com a construção de trajes para a cena.
Palavras-chave: investigação; processos de criação; figurino; Cruor Arte Contemporânea;
Moda.

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Análise de Aspectos Pictóricos das Pinturas pertencentes à série Estudo De Trajes


Italianos do Artista Victor Meirelles
Pictorial Aspects of Analysis of Paintings Belonging to the Italian Costumes Study Series Artist
Victor Meirelles

SANT’ANNA, Mara Rúbia (UDESC)1


sant.anna.udesc@gmail.com
modaesociedade@gmail.com

Resumo: O presente artigo tem por objetivo descrever a análise realizada a elementos da
composição pictórica de vinte e seis obras pertencentes ao Estudo de Trajes Italianos realizados
por Victor Meirelles na Itália no século XIX. Mediante esta se explicita seus componentes e se
reúne o que há em comum entre elas, conjuntamente se faz estudos da vida do artista,
movimentos artísticos e do contexto histórico em que essas obras foram produzidas.
Palavras-chave: Arte; Moda; Victor Meirelles

Abstract: This article aims to describe the analysis elements of pictorial composition of twenty-
six works belonging to the Italian Costumes study conducted by Victor Meirelles in Italy in the
nineteenth century. By this is made explicit its components and meets what is in common
between them together is done studies of the artist's life, art movements and historical context in
which these works were produced.
Keywords: art; fashion; Victor Meirelles.

Introdução

No ramo da moda e da arte, apesar de ter mudado bastante ao longo dos anos, sempre
houve nítida interação entre ambas, podendo ser observado em diversas composições que uma
exerce influência ou serve como estímulo para a outra, seja em questões de linhas, cores,
formas, texturas, materiais, volumes ou até de temas, pois esta e aquela bebem das mesmas
fontes e são frutos diretos da sociedade em que são produzidas, sofrendo, portanto, influxo dos
acontecimentos históricos, movimentos artísticos e progressos científicos, evidenciando dessa
forma tendências de determinada época de modo que a moda e arte passam a dialogar
paralelamente. Hollander (1996 apud PIAZZA) definiu claramente um ponto de vista sobre um
contexto temporal, onde a moda e a arte nascem de um contexto social e seus conceitos vão
mudando conforme passa o tempo. O fato é que a moda e a arte por vezes caminham lado a

                                                                                                                       
1Professora efetiva do Centro de Artes, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Doutora em História
(UFRGS, 2005). Este artigo contou com a colaboração da bolsista de iniciação científca Bruna Torino.

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lado e para seus estudos há a necessidade de compreender seu autor, a sociedade, a cultura, o
comportamento e o contexto histórico em que foram produzidas.

A moda e as vestimentas de uma época quase sempre fazerem parte das composições
artísticas, e além de às vezes se apresentarem apenas como forma de cobrir o corpo humano
também podem se manifestar como pretexto para a pintura, ou seja, a representação da moda
como sendo o propósito principal da composição de maneira a impor a ela, assim como a
natureza faz, suas formas e cores. Esta última situação exposta, em que o foco da produção
artística do pintor se encontra nas roupas de um determinado período é evidenciada no caso da
serie Estudo de Trajes Italianos que será analisada nesse artigo. Porém para poder ser feita esta
análise e obter as informações que se almeja é necessário antes obter conhecimento do artista
que produziu essas obras, o movimento artístico do período e, sobretudo o contexto histórico e
local onde foram feitas.

1.1 VICTOR MEIRELLES

Victor Meirelles foi um pintor brasileiro nascido no dia 18 de agosto de 1832 na cidade
de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, de condições de vida razoáveis, filho
primogênito do português comerciante Antônio Meirelles de Lima e de Maria da Conceição.
Desde pequeno Victor despertava a admiração de todos com os desenhos que executava, até
que quando tinha 7 anos seus pais contrataram um professor argentino de desenho, D. Mariano
Moreno, para ensiná-lo técnicas e orientar sua vocação artística. Aos 15 anos, graças o
intermédio do Conselheiro do Império Jerônimo Francisco Coelho que mostrou os desenhos do
promissor artista ao Diretor da Academia Imperial de Belas Artes, Victor foi admitido como aluno
na Academia Imperial de Belas Artes, indo morar no Rio de Janeiro em 1847 na casa de
parentes paternos (FRANZ, 2014).

Em 1852, Victor conquistou o Prêmio de Viagem em um concurso, vencendo com a tela


São João Batista no cárcere. O prémio do concurso era uma bolsa de estudos de três anos na
Itália como pensionista para poder visitar museus, entrar em contato com obras de grandes
mestres do passado, além de estudar e aprender com os pintores da época. Aos 21 anos
incompletos embarcou para Europa, estabelecendo-se em Roma, primeiramente matriculando-
se na classe de Tomasso Minardi (1787-1871), com quem estudou pouco tempo porque este
não concordava que os alunos fizessem trabalhos originais, conforme era exigido pela Academia
Imperial como obrigação dos pensionistas na Europa. Depois Victor entra no ateliê de Nicolau
Couronni (1814-1884) onde muito aprendeu sobre o estudo do modelo vivo, de costumes e

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sobre o refinamento do desenho anatômico da figura humana, pois além de ser o elemento
essencial no gênero da pintura histórica, que era a mais prestigiada no sistema acadêmico,
também esses estudos o auxiliaram bastante na produção das pinturas pertencentes a serie
Estudo de Trajes Italianos. (Idem)

Victor, devido a sua obrigação como pensionista da Academia, constantemente enviava


ao Brasil trabalhos como cópias de quadros famosos, estudos da natureza e corpo humano e até
composições originais, para ser avaliado por seus mestres e pelo próprio Imperador de como
estava o andamento de seus aprendizados na Europa, sendo considerado o pensionista mais
esforçado e o pintor mais estimado do período imperial. Com a mudança do regime da
Academia, empreendida na administração de Porto-Alegre que nutria grande simpatia por Victor,
seu estágio na Europa foi prorrogado três vezes, permanecendo na Europa por oito anos
seguidos (1853-1861) sendo incluído em seu itinerário a França, onde permaneceu de 1856 até
1861. Em Paris foi orientado por Léon Cogniet, pintor romântico da Escola de Belas Artes de
Paris e por André Gastaldi que lhe deu instrução principalmente sobre cores. Sua rotina,
segundo relatos, era totalmente dedicada à arte e estudos, e de 1858 a 1861 dedicou-se a
produção de sua criação mais famosa, o quadro A Primeira Missa no Brasil, que lhe rendeu
elogios e espaço na exposição do Salão de Paris em 1861, algo inédito para um artista
brasileiro. (ROSA, 1989).

Após o Salão, o pintor retorna ao Brasil em 1861, uma vez que sua bolsa havia
terminado. Ao chegar recebeu muitas homenagens, entre elas o grau de cavalheiro da Ordem da
Rosa concedida pelo Imperador Dom Pedro II, e neste mesmo ano foi nomeado Professor
Honorário da Academia, passando posteriormente a professor titular de pintura histórica. Em
1866 recebeu do Ministro da Marinha Afonso Celso de Assis Figueiredo a encomenda para
pintar dois quadros históricos: Combate Naval do Riachuelo e Passagem de Humaitá, que se
tornaram posteriormente obras renomadas deste artista e também em anos posteriores recebeu
diversas encomendas da família imperial. Victor Meirelles em 1886 casou-se com Rozália
Ferreira França, porém não teve filhos, apenas criando o filho que sua mulher tivera em outro
casamento. (TURAZZI, 2009)

Em 1889 com a Proclamação da República ocorreu perseguição aos artistas da


monarquia e Victor não recebeu mais patrocínio do Império, sendo demitido da Academia. Em
1891 instalou seu Panorama do Rio no Paço Imperial, cobrando as visitas e sucessivamente em
1896 fez outro panorama representando a Esquadra Legal na baía de Guanabara. Sem trabalho

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fixo e vivendo apenas da renda das visitações aos panoramas, ficou em sérias dificuldades
financeiras quando foi obrigado pelo governo a desmontar a exposição dos panoramas,
passando a sobreviver da ajuda de amigos. Sua última tentativa foi expor em 1900 o inacabado
Panorama do Descobrimento do Brasil, entretanto não rendeu frutos. Desiludido e pobre, Victor
Meirelles morreu em um domingo de carnaval no Rio de Janeiro, dia 22 de fevereiro de 1903,
aos 71 anos (ROSA, 1982).

1.2 CONTEXTO HISTÓRICO

A série de desenhos pertencentes ao Estudo de Trajes Italianos de Victor Meirelles foi


realizada na Itália no período entre 1853 a 1856. Nessa época o contexto histórico em que Victor
se encontrava inserido era da unificação italiana, já que no início do século XIX ocorreram
grandes modificações politicas e econômicas na Europa. Devido a guerras napoleônicas, a Itália
viu-se dividida em oito estados soberanos, sem se importar com a opinião dos povos a eles
submetidos, sendo esse povo pessoas pobres, sem nenhum poder politico, sendo que apenas
algumas pessoas ricas tinham privilégios, fazendo com que surgisse dessa maneira o
movimento de unificação, exigindo liberdade e justiça a todos. Muitas batalhas foram travadas e
a unificação só foi obtida em 1870, só que ao invés do sonho de paz e liberdade a Itália se
encontrou em meio a milhares de desempregados e camponeses sem terras.

1.3 A SÉRIE ESTUDO DE TRAJES ITALIANOS

O Estudo de Trajes Italianos trata-se de um conjunto de obras realizadas por Victor


Meirelles entre os anos de 1853 a 1856 enquanto estava estudando na Itália, graças à bolsa de
estudos que ganhou como prêmio de um concurso. As obras buscam retratar aspectos da vida
de pessoas comuns, que provavelmente se encontravam na Itália naquele mesmo período de
Victor, podendo ser pessoas presentes em seu cotidiano italiano, ou indivíduos que ele via
passar rapidamente por ele, expressando e dando ênfase a objetos de uso e trajes para
apresentar o comportamento e movimentos culturais desse povo. Nesta época provavelmente
estavam passando por difíceis situações devido às guerras pela busca da unificação italiana,
sendo evidenciado nas obras condições de pobreza e desilusão, tanto nas expressões, cores e
vestimentas.

Segundo Charles Narloch,

Se em alguns estudos de trajes italianos a expressividade é valorizada


pelas vestimentas e adereços, que parecem portar ou anular a
personalidade oculta de seus donos, em outros, o detalhamento dos
trajes é compartilhado com expressões subjetivas, tão lívidas ou

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lânguidas quanto as sinuosas ou volumosas roupagens. Assim, a


contemporaneidade de Victor Meirelles ou antecipação de seu próprio
tempo, nesses estudos, dá-se pelo caráter antropológico dos mesmos.
Mais do que simples representações de usos e costumes de uma
época fato que por si só seria significativo, levando em consideração
que, além de nobres e religiosos, há cidadãos urbanos e camponeses
comuns os estudos permitem um raro e curioso registro
comportamental. (NARLOCH apud CATÁLOGO MVM, 2006).

No Estudo de Trajes Italianos ocorre junção dos estilos artísticos vigentes na Itália na
época em que foram produzidas, sendo estes movimentos o realismo e romantismo, como
descrito anteriormente. Isso ocorreu devido às obras terem sido realizadas na fase em que Victor
estava em aprendizado em pensionato na Itália e tendo contado com essas novas tendências,
sendo considerado, portanto esses desenhos um trabalho paradoxo, pois constitui-se de um
artista de formação neoclássica produzindo estudos, dando ênfase aos desenhos e as linhas,
retratando pessoas em primeiro plano, com pinceladas tênues, entretanto colocando como
temática central os usos e costumes do homem comum da época, como era de praxe aos
realistas e também adicionou cores, posições e expressões nas figuras imbuídas de carga
emotiva, o que era habitual dos românticos.

As obras dessa série não foram todas produzidas com os mesmos materiais, sendo em
sua grande maioria pinturas feitas de aquarela sobre papel, contudo há algumas realizadas com
diversos outros materiais diferentes, contendo obras feitas com grafite, a óleo, em papel colado
sobre madeira, entre outros. Não há um número exato de quantas produções ao todo compõe a
coleção de Estudo de Trajes Italianos, já que algumas se perderam ao longo dos anos e muitas
fazem parte de coleções particulares, mas se estima serem em torno de 200 pinturas, estando
apenas uma parte em acervo de museus, sendo esses museus o Museu Victor Meirelles e o
Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro.

2. ANÁLISE

A fim de melhor compreender os elementos pictóricos, os trajes e comportamentos das


figuras retratadas, assim como a relevância dessas obras para compreender o contexto em que
foram produzidas e o propósito geral que Victor Meirelles pretendeu dar a esse estudo de trajes
italianos, reuniu-se vinte e seis pinturas para serem analisadas. O acesso a essas obras deu-se
através do acervo e documentação presentes no Museu Victor Meirelles, em Florianópolis,
sendo que dezesseis dessas pinturas analisadas são do próprio acervo do museu, obtendo
acesso a elas por meio de cópias digitalizadas das obras originais, fornecidas pelo museu. As

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dez restantes fazem parte de uma coleção particular que foi emprestada ao museu
temporariamente em 2006 para a realização de uma exposição em comemoração aos 174 anos
do nascimento do artista e 150 anos de criação do conjunto dessas obras, tendo sido feito um
catálogo desta exposição com as obras que fizeram parte dela e, portanto, o acesso às obras da
coleção particular foi permitido em razão do museu Victor Meirelles ter cedido um destes
catálogos a análise ser realizada.

As vinte e seis obras analisadas pertencentes ao conjunto de Estudo de trajes Italianos


apresentam, cada uma delas, apenas uma figura humana desenhada, não contendo em uma
mesma obra mais de um indivíduo. O formato das pinturas é retangular, quase todas com
tamanho em torno de 30 cm por 20 cm, tendo alguns cm de variações, mas não foge muito desta
média. Os personagens dos quadros, ou seja, as pessoas representadas nas pinturas não se
sabem quem são e o motivo de terem sido tais escolhidas para serem retratadas, contudo
aparentam ser cidadãos comuns que se podia encontrar nas ruas da Itália no século XIX, sendo
das vinte e seis produções seis homens e vinte mulheres. Dentre os homens há três
trabalhadores camponeses, um músico, um nobre e um padre. Já dentre as vinte mulheres
retratadas há uma pertencente a nobreza, duas freiras e o restante são camponesas. Para
facilitar e obter maior eficiência no estudo dos aspectos formais dessas obras foram escolhidas e
separadas seis categorias, sendo elas: ambiência, posição, corpo, traje, cores e formas.

2.1 CORPO

Por seguinte, no que diz respeito à categoria corpo foram averiguados nas obras quais
eram as cores e comprimentos dos cabelos, cor dos olhos, tons de pele e expressões faciais. Os
cabelos em todas as composições estavam ou presos em coques ou sob panos colocados como
toucas e véus na cabeça, no caso das mulheres, e no caso dos homens sob chapéus, de modo
que não foi possível analisar o comprimento de nenhum dos cabelos das moças e de algumas
nem se pode identificar a cor por estarem totalmente debaixo do véu.

Nas mulheres em que se pode ver a cor dos cabelos, todos eles eram ou pretos ou
castanhos escuros, não sendo nenhuma delas loira, e entre os homens todos possuíam cabelos
de comprimento até abaixo da orelha, sendo que os três camponeses tinham cabelos pretos, o
músico possuía cabelo, bigode e cavanhaque castanho claros e o nobre tinha cabelo, bigode e
cavanhaque grisalhos.

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Dentre os olhos, em quatro obras o artista não pintou seu interior, apenas fazendo o
esboço externo deles, talvez por falta de tempo ou por não considerar relevante; outros três se
apresentavam de olhos fechados e o restante em que os olhos foram pintados eram todos de cor
preta. Não há muita variação entre os tons de pele, sendo todas tonalidades de pele branca,
algumas um pouco mais pálidas, parecendo até não terem sido pintadas e outras mais coradas,
entretanto em sua generalidade são todos brancos, como era de costume na Europa do século
XIX.

E por fim as expressões faciais das pessoas representadas em geral eram iguais porque
todos os que tinham olhos e estavam com eles abertos possuíam olhares vagos, perdidos no
horizonte, como que refletindo a respeito da vida e da situação econômica e politica que estavam
vivendo, e seus rostos estão como que sem expressão definida, apáticos, nem sorrindo, nem
tristes, apenas pensativos, com exceção dos nobres que foram representados de cabeça erguida
e olhar para sua frente, como que despreocupados. De certo, Victor reproduziu-os dessa forma
devido a ser a maneira como via essas pessoas ou por ser o que via normalmente quando
andava nas ruas italianas, ou seja, pessoas de cabelos escuros, presos em penteados com
enfeites ou mulheres com os cabelos todo cobertos por tecidos na cabeça e os homens com
pouco de seus cabelos aparecendo, pois os chapéus cobriam-lhes o resto, de olhos escuros,
tons de pele branca e com expressão pensativa e olhar vago em virtude do contexto histórico de
guerras que estavam inseridos, como se esses trabalhadores estivessem desiludidos com a
situação em que se encontravam e buscando em seus pensamentos modos de alterá-la, a não
ser os nobres que possuíam boas condições de vida e aparentavam tranquilidade.

2.2 TRAJES

Estudar os trajes dessas obras é a parte complexa desta análise, dado que as roupas
desenhadas possuem muitos elementos que não podem ser observados em sua totalidade ou
não foram desenhados com minuciosidades, de forma que é muito complicado descrever
detalhadamente esses trajes em palavras, sendo assim, atentou-se apenas para os seus
componentes mais evidentes e comuns entre eles. A análise foi feita descrevendo as peças que
constituíam os trajes desde a cabeça inicialmente até os pés.

Na cabeça todas as mulheres utilizavam algum tipo de acessório, algumas utilizavam


véus, assim como as freiras, que eram chamados de toucado, muito tradicional no século XIX,
cobrindo seus cabelos e parte anterior da cabeça, sendo esses feitos de tecidos colocados de
modo particular na cabeça, ou usavam cabelos presos em coques, às vezes enfeitados com fitas

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e faixas ao redor da cabeça. Por sua vez os homens utilizavam chapéus, variado o tamanho e
modelo entre as figuras representadas, sendo exceção apenas o padre que usa um capuz de
seu manto sobre a cabeça.

As roupas das camponesas se assemelham em seus aspectos gerais, havendo algumas


variações entre suas roupas típicas, com pequenos detalhes diferentes. A maioria das
camponesas retratadas por Victor possuía na parte superior uma camisa branca, da qual
aparecia normalmente apenas as mangas compridas e bufantes e o resto ficava escondida por
baixo de outras peças de roupa; as peças de roupa que apareciam por cima das camisas eram
os corseletes, sendo que alguns desses eram grudados nas saias, formando espécies de vestido
e outros eram separados, sendo possível distinguir se eram separados ou juntos pelas suas
cores; na parte inferior elas possuíam, mesmo quando grudados nos corseletes, saias bastante
volumosas e de tecidos aparentemente pesados, por vezes possuindo até mais de uma; quase
todas continham aventais amarrados na altura da cintura, sendo que alguns eram apenas da
cintura até o final das saias e outros eram amarrados além de na cintura, também no pescoço,
sendo alguns lisos, outros enfeitados com flores e desenhos no seu todo ou apenas em seus
barrados. Há algumas exceções entre as camponesas representadas, havendo algumas com
roupas diferentes das descritas acimas, existindo uma delas que está de vestido de manga
comprida; outra que possui por debaixo do corselete uma camisa de manga comprida vermelha
e não branca como as demais; e duas em que se pode observar apenas que estão de casaco,
sendo o de uma delas curto, na altura da cintura e da outra longo, de comprimento até abaixo do
joelho, sendo ambos de manga comprida e em suas partes inferiores usavam saias. As freiras o
artista representou com hábitos de mangas compridas, dado que é a roupa característica usada
pelas freiras. A roupa da mulher pertencente a aristocracia é a que mais se diferencia das
demais mulheres, tanto no modelo quanto no tecido, porque sua roupa é constituída na parte de
baixo por um vestido de manga comprida de tecido nobre cintilante com listras em vertical de
largura média, em branco e creme, e em cima do vestido há o que aparenta ser uma capa feita
de veludo carmim constituída por um corselete de manga curta com detalhes de recortes
vazados nas mangas e no busto e uma saia comprida até o pé, aberta na parte da frente de
forma a mostrar o tecido do vestido inferior. Não aparecem os pés de todas as mulheres, sendo
alguns cobertos pelas saias delas que tem todas comprimento até o chão, mas nas mulheres em
que aparece um pouco dos pés elas apresentam sapatos fechados de cor marrom.

Assim como na roupa das mulheres camponesas, na roupa dos três homens
trabalhadores também estava presente a camisa branca, e suas roupas se assemelham,

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contendo pequenas diferenças no restante. O primeiro camponês analisado, além da camisa,


apresentava um colete de botões marrom fechado por cima dela e mais dois casacos abertos,
ambos de manga comprida, sendo um curto na altura da cintura e outro comprido até os joelhos,
e sua calça era larga e de tecido com pelos; já outro camponês tinha por cima de sua camisa
branca um colete vermelho aberto e um poncho jogado sobre um dos ombros e parte do braço,
tendo na cintura um cinto largo e na parte inferior uma calça justa ao corpo, e o último
apresentava por cima de sua camisa um colete vermelho, fechado com botões, um avental de
tamanho indeterminado amarrado em sua cintura e calça justa ao corpo. Todos os três
apresentam no pé botinas de altura até abaixo do joelho. A roupa com que o padre está ilustrado
é assim como as freiras a típica roupa dos homens religiosos, com uma batina e um manto preto
com capuz por cima, tendo nos pés uma sandália de tiras aberta. Por fim, a roupa do fidalgo é
bastante diferente da dos homens trabalhadores, sendo todas as peças da mesma cor,
vermelhas, com tecido nobre, e seu traje composto por uma túnica de manga comprida, de
comprimento até o meio da coxa, cinto de corda amarrado na cintura, calça justa fechada nos
pés e uma capa aberta, de manga comprida, sendo esta presa apenas no pescoço e de
comprimento até o tornozelo, possuindo nos pés uma sapatilha preta com detalhe de uma fivela
vermelha em cima.

Ao final da observação dos trajes desenhados por Victor pode-se verificar que não há
grandes distinções de roupas entre membros da mesma classe na sociedade, como visto entre
as roupas das camponesas entre si ou entre os camponeses, assim como também dos
religiosos, tendo apenas alguns pequenos detalhes diferentes, contudo é extremamente evidente
a diferença entre as roupas de cidadãos trabalhadores e de indivíduos pertencentes à nobreza,
mudando tanto o modelo dos trajes como a qualidade dos tecidos empregados.

2.3 CORES

Analisando-se as cores presentes nas obras a conclusão que se obtém é a de que Victor
não utilizou muitas cores distintas, talvez porque não possuísse a seu alcance na hora em que
produzia essas pinturas ou porque simplesmente não queria utilizar muita variedade de cores. É
perceptível uma palheta de cores limitada entre tons neutros, como o branco, preto, tons de
bege, de marrom e de cinza, como também variações de claros e escuros apenas das cores
vermelha e azul. Victor combinava em suas obras apenas cores neutras ou cores neutras
juntamente a uma totalidade de tons apenas quentes ou somente frios, acrescentando de vez
em quando alguns detalhes nas roupas ou nos enfeites de cabeça de cores diferentes em cores
quentes se a pintura possuía predomínio de cores frias e vice-versa. No que se refere as formas

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empregadas por Victor Meirelles em suas composições do Estudo de trajes italianos, através de
suas pinceladas suaves, advindas do estilo neoclássico ao qual era adepto, ele utilizava formas
arredondadas e linhas curvas para expressar o volume dos tecidos nas peças de roupa e para
dar os efeitos de panejamento desejado nos trajes, que era uma de suas principais
preocupações ao elaborar essas pinturas, porque para ele esses desenhos eram sobretudo um
estudo do caimento dos tecidos nas roupas e de seus delineamentos.

Considerações Finais

Após ter sido feita a análise e reunir os dados acima apresentados é possível
compreender que o objetivo geral de Victor Meirelles ao produzir o conjunto de desenhos
pertencentes ao Estudo de Trajes Italianos era, sobretudo, aprimorar suas técnicas em relação à
retratação da figura humana e dos trajes usado por essas, visto que nas composições há apenas
as ilustrações das pessoas com suas roupas, sendo dada extrema atenção as sombras,
perspectivas, formas, anatomia e sem haver cenários ou outros elementos a sua volta. As
exceções a isto ocorrem nos casos dos nobres, onde foram colocadas em suas representações
objetos ao seu redor, para, de certo, enaltecer seu status social e mostrar a sua condição de
posse de riquezas e coisas. Já no caso dos camponeses e religiosos, o artista os retrata em
fundos neutros, pois para ele o importante era desenhar e ressaltar a posição em que seus
corpos se encontravam e o modo como eram seus trajes e ficam dispostos os tecidos e
panejamentos de acordo com as posições em que estas figuras estavam. Victor, talvez
intencionalmente ou por ser o modo como os observou, retratou cada uma das pessoas
desenhadas em suas obras em posições que parecem personificar suas funções na sociedade,
ou seja, em situações cotidianas daquele povo, de modo que não parecem estar posando para o
artista ou ao menos sabiam estar sendo observadas. Para exemplificar esse aspecto pode-se
ser citado o camponês segurando uma pá em ação de cavar o chão, mostrando ser um
trabalhador do campo ou a freira ajoelhada com as mãos juntas em posição de reza, revelando-
se ser uma mulher religiosa.

O Estudo de Trajes Italianos não somente serviu como estudos para Victor Meirelles,
mas também como forma dele documentar e fazer um registro histórico daqueles comuns
cidadãos italianos do século XIX que estavam vivendo um contexto de crise econômica e
política. Através das obras desse conjunto, em que aparecem diversos trabalhadores e
camponesas com roupas simples e humildes, sem qualquer destaque de cor ou luz, pode-se

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obter conhecimento da situação de pobreza e tempos de crise que estavam passando, sendo
isto reforçado pela expressão apática que o artista representou em suas faces, como que
desiludidos com suas vidas. Não apenas os aspectos da vida da classe trabalhadora foram alvo
dos registros de Victor, mas também suas pinturas da nobreza mostram através de elementos ao
seu redor, das roupas chiques, das joias e das poses de altivez, arrogância e olhares
despreocupados como eram boas as condições de vida dessa classe, com muitas riquezas e
sem preocupações, assim como as pinturas da vida dos religiosos, que aparecem de batinas ou
hábitos, sem quaisquer bens matérias, a não ser terços e bíblias, em posições de reza como se
fossem indiferentes ao resto do mundo, de modo a mostrar que se dedicam apenas a Deus e
valorizam a riqueza espiritual. Assim essas obras de Victor Meirelles acabam por constituir
fontes de registro de usos, costumes, comportamentos, feições e, sobretudo da moda de uma
época. Isto posto, as produções da série Estudo de Trajes Italianos podem ser consideradas
registros do fato de que moda e personalidade formam um conjunto quase sempre indissociável,
de modo que o ser humano não veste apenas o que lhe cabe, mas o que de alguma forma
reflete sua personalidade, seu modo de viver e ver a vida.

Referências
FRANZ, Teresinha Sueli. Victor Meirelles: biografia e legado artístico. Florianópolis: Caminho
de Dentro, 2014.

MARTINS, Carini Piazza. Arte e moda: expressão da arte através da roupa. 2010. 73f. Trabalho
de conclusão de curso( Graduação em Artes Visuais) - Universidade do Extremo Sul
Catarinense, Criciúma. Disponível em: <
http://www.bib.unesc.net/biblioteca/sumario/000043/000043BD.pdf>. Acesso 16 jan. 2016.

MUSEU VICTOR MEIRELLES. Catálogo - Estudo de trajes italianos. Florianópolis: Museu


Victor Meirelles, 2006.

PEZZOLO, Dinah Bueno. Moda e arte: releitura no processo de criação. Ed. SENAC. 2013.

ROSA, Angelo de Proença. Victor Meirelles de Lima: 1832-1903 . Rio de Janeiro: Pinakotheke,
1982.

SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. 255 p. Originalmente apresentada como tese da autora
(Doutorado-Universidade de São Paulo), 1950, sob o titulo: A moda no século XIX.

TURAZZI, Maria Inez. Victor Meirelles: novas leituras. São Paulo: Studio Nobel Museu Victor
Meirelles, 2009.

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As benesses de um arquivo teatral em ordem: Casa assombrada


The benefits of an organized theatrical archive: Haunted House
Fausto Viana1 (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo)
faustoviana@usp.br

Resumo
O artigo busca revelar como um arquivo pessoal, do Dr. Alfredo Mesquita, pertencente ao
Arquivo Público do Estado de São Paulo, pode ser fonte abundante de informações para o
pesquisador da área teatral, e nesse caso específico, de cenografia e traje de cena. Apresenta-
se também um estudo de caso a partir do material encontrado no acervo, sobre o espetáculo
Casa assombrada, revelando procedimentos de produção teatral na São Paulo dos anos 1930.

Palavras-chave:
Cenografia; acervos teatrais; Alfredo Mesquita.

Abstract
This article aims to show how a personal archive, the one of Dr. Alfredo Mesquita, belonging to
the Public Archive of the State of São Paulo, may be and abundant source of information for the
researcher in the theatrical field, and in this specific case, scenography and theatrical costumes.
There is also a case study based on the material found in the archive, about the show Haunted
House, showing the procedures of the theatrical production in São Paulo in the 1930’s.

Key-words:
Set design; theatrical archives; Alfredo Mesquita.

Introdução
Aquela gente teria mesmo existido?2 Dr. Alfredo, a família Mesquita, Franco Zampari, o
Teatro Brasileiro de Comédia (T.B.C.)... A Companhia de Cinema Vera Cruz! Fazenda em
Louveira, em Itatiba, louças combinando com os motivos das toalhas, cristais, pratarias,
escultura de Rodin...
Não fosse o Arquivo Pessoal de Alfredo Mesquita, guardado no Arquivo Público do
Estado de São Paulo (Rua Voluntários da Pátria, 596), este artigo não sairia de sua primeira
linha mais poética e flutuaria nos planos das suposições.
O Arquivo, que foi recebido pelo Arquivo do Estado, veio do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo (IHGSP) por ordem judicial em 2008. O fundo está dividido em 5
grupos: 1) Trabalho; 2) Viagens; 3) Família e Amigos; 4) Particular e 5) Biblioteca. O arranjo

1
Pesquisador de indumentária, moda e trajes de cena. É professor de cenografia e indumentária na
Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
É autor de diversos livros, entre eles Dos cadernos de Sophia Jobim... Desenhos e estudos de história da
moda e da indumentária.
2 Primeira frase do conto As cerejas, de Lygia Fagundes Tellles, in Um coração ardente. São Paulo:

Companhia das Letras, 2012, p.81.

1
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inicial foi organizado pelo próprio Alfredo Mesquita, depois passou por arranjo no IHGSP e agora
está aberto para consulta no Arquivo do Estado.
Contém cartas pessoais, trocadas entre membros da família, cartas de cunho mais
empresarial, tratando de situações financeiras que abalaram o empresário Franco Zampari e
seus empreendimentos artísticas, como o T.B.C. e a Vera Cruz. Há relatos dos visitantes às
fazendas, textos escritos pelo “Dr. Alfredo” nas mais diferentes fases de sua vida: textos
pessoais, textos teatrais, contos, discursos, críticas. Tudo bem organizado e tratado.
Documentos tornados símbolos perenes da história do teatro na cidade de São Paulo e, por sua
abrangência, o Brasil como um todo.
Aquela gente existiu. Dentre todas as possibilidades de pesquisa, está disponível a
documentação ligada à fase amadora de Alfredo Mesquita. São inventários dos espetáculos
Noite de São Paulo (1936), Casa Assombrada (1938) e Dona Branca (1939).

Apresentando Alfredo Mesquita


Alfredo Mesquita (1907-1986) era paulistano, filho de Júlio Mesquita e Lucilla Cerqueira
César Mesquita. Eram ambos descendentes de famílias tradicionais, os Mesquita e os Cerqueira
César. Acima de tudo, eram donos de O Estado de São Paulo, jornal de maior tiragem nacional
durante muitas décadas.
Estudou em boas escolas: no Externato Elvira Brandão, no Ginásio do Estado e,
finalmente, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. A mãe teve doze filhos, e ele
ficou órfão aos nove anos. A relação com os irmãos homens nunca foi boa: eles eram mais
velhos, com mais direitos relativos a primogenitura, e muitos, como Góes (2007) dizem que ele
foi criado com excesso de zelo pelas irmãs, notadamente a mais velha, Esther Mesquita, que
seria também uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Cultura Artística.

2
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Figura 1- Alfredo Mesquita e um amigo, na década de 1930, conforme informa Góes, 2007:38.

Parte das irmãs casou com outros sobrenomes igualmente famosos. Alfredo Mesquita
dispunha de muitas amizades entre as famílias mais ricas da cidade, o que lhe granjearia grande
apoio nas questões teatrais que desenvolveria ao longo da vida- e foram tantas e tão
significativas que muitos o consideram uma das figuras mais importantes do teatro nacional.
Fez aulas na Sorbonne, no Collège de France, esteve nas temporadas das melhores
companhias teatrais em Paris e em São Paulo. Sua história pessoal precisa ser descrita de
forma a associar sua trajetória com os trajes de cena que criou e que foram o resultado de todas
estas experiências, pois seu modo de criação influenciou uma enorme rede de profissionais. Em
Paris, aos cinco anos, fez sua estreia na plateia de um espetáculo teatral: “era uma montagem
de Miguel Stroff em que os olhos do protagonista são queimados com uma espada. (...) No
Brasil, assistiu ao Barbeiro de Sevilha, de Rossini, no Teatro Municipal, quando tinha dez anos”
(Góes, 2007: 115).
O décorateur Alfredo Mesquita apareceria muito cedo, desde a influência das escolhas
feitas pelas irmãs ao trajarem-se às decorações para festas e bailes da alta sociedade que
frequentava. O dramaturgo surgiu cedo, também, em 1935, quando o já veterano Procópio
Ferreira estreou A esperança da família, de autoria de Mesquita. O diretor também surgiria logo,
com Noites de São Paulo, em 1936.
Foi dono de um famoso estabelecimento, a Livraria Jaraguá, em que os intelectuais da
cidade se reuniam- e comiam, pois havia uma cafeteria com quitutes preparados pelas irmãs ou
pelas funcionárias da fazenda de Louveira. Eram tempos de crise- a Revolução de 32, o Estado

3
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Novo, e outros que iriam se refletir nas posses da Família Mesquita- e nos laços afetivos da
família.
O Arquivo do Estado possui a documentação de toda esta jornada bem sucedida, mas
não sem grandes conflitos. A fortuna nem sempre é garantia de uma vida sem contrariedades.
Alfredo Mesquita ficou muito interessado, e Marta Góes aponta que “um espetáculo diferente dos
que vira até então o impressionou e acabou se tornando um marco em sua formação. Era O
contratador de diamantes, de Afonso Arinos. Punha em cena, pela primeira vez, uma dança
popular como a congada dançada ‘por pretos de verdade’, como enfatizou a imprensa”. (Góes,
2007:116) O ano era 1919 e ele tinha 12 anos, mas registrou profundamente aquele espetáculo
que era de caráter beneficente, feito para ajudar um estabelecimento carente e protagonizado
por todos os elegantes da sociedade paulistana que se reuniam para fazer caridade. E se divertir
também, claro.
Em 1936, Alfredo Mesquita começaria sua aventura amadora, conforme será visto
adiante. Mais adiante fundaria o Grupo de Teatro Experimental, entre 1942 e 1948, que se fundiu
com outros dois grupos para fundarem o Teatro Brasileiro de Comédia, em 1948. Alfredo
Mesquita fundou, também, em 1948, a EAD, a Escola de Arte Dramática, que transferida para a
Universidade de São Paulo em 1969, existe até hoje. Lá, ele continuou a ser chamado de Dr.
Alfredo. Porque “Dr. Alfredo”? Era formado em direito, mas Góes também esclarece que:
O motivo mais difundido e aceito para tamanha cerimônia (Nota: ser
chamado de doutor) é a intenção de impor uma certa distância à comunidade
heterogênea e nervosa da escola, onde lhe cabia criar e manter as regras de
conduta. Uma aura de solenidade era mais útil do que estar em pé de
igualdade com alunos e professores. (2007:37).

Através do acervo deste homem – “um homem a quem o teatro brasileiro deve muito, o zangado,
aborrecido, honesto, limpo, correto, digno Alfredo Mesquita, um homem que seguindo seus
princípios deu sua fortuna ao teatro”, nas palavras de Paschoal Carlos Magno3- é que artigo se
desenvolve, através do material do espetáculo Casa Assombrada.

A documentação de Casa Assombrada


O espetáculo Casa Assombrada, conforme o texto que foi encontrado no arquivo (figura
2),é “um espetáculo com canto e dança,inspirado em velhas tradições paulistas, interpretado por
jovens da alta sociedade, com criações de nomes consagrados. A música era do maestro Souza
Lima, fundador da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo”. (Góes, 2007: 126)

3Ver Depoimentos II, uma publicação do Ministério da Educação e Cultura através do Serviço Nacional
de Teatro, de 19977, p.160.

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Um grupo de jovens, na atualidade (1938) entra em um casarão abandonado na fazenda


Ouro Velho, hipotecada há anos por conta de dívidas. A sala do casarão, no entanto, está muito
bem arranjada, como se tivesse sido arrumada ontem. Nos primeiros quadros do espetáculo, os
fantasmas do passado aparecem e habitam a sala. Depois, os jovens entram e aos poucos vai
se desenrolando a história, com números musicais e danças. Os jovens decidem fazer um baile
à moda de 1886, data do retrato da Baronesa de Rio Claro, que está na parede do fundo.
Uma das jovens, neta da baronesa, têm uma visão, representada no palco, de uma
invasão do casarão por um grupo de negros em pré-liberdade pela abolição da escravatura. A
moça entende então que o avô foi assassinado ali, naquela sala, e que a avó havia escondido
um baú com joias em um dos móveis da casa. A avó se movimenta no retrato (truque velho em
teatro) e mostra onde as joias estão. Pagas as contas, a família continuará na fazenda e a jovem
poderá envelhecer na fazenda, como a nova Baronesa de Rio Claro.

Figuras 2 e 3 - O texto original do espetáculo e a descrição do cenário. Acervo: Arquivo do Estado. Foto do
autor.

O cenário é descrito como


a sala grande de uma casa de fazenda antiga, no interior de São Paulo. Duas
portas à direita; à esquerda, simétrica e fundas na parede, uma porta, que dá
para fora e uma janela. Ao fundo outras duas portas, entre elas, um móvel
encimado por um retrato a óleo, representando uma mulher vestida à moda
de 1886. Móveis antigos, pratas, porcelanas, cristais. Primeiro plano, à
esquerda, uma marquesa, à direita, um piano. (Texto do espetáculo. Ver
Figura 3)

As personagens dão informações sobre os trajes que vestem, como por exemplo:
“Tenho um vestido que foi de minha avó e que está guardado numa mala”. O texto também traz
indicações gerais, como “Ao levantar o pano, moças e rapazes, vestidos à moda de 1886,
dançam uma mazurca. É a festa planejada no ato anterior.” E outras bem específicas, como
“Maria Lucilla envolta numa grande capa ‘Couleur de Muraille’”. Ou seja, cinza.

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O texto era bem simples, na verdade, e a combinação das músicas para os bailados era
ainda mais versátil: foram 12 músicas, entre elas Coração Santo (!), prelúdios sinfônicos,
cançonetas francesas, uma rumba, uma mazurca e um samba de Ary Barroso: No tabuleiro da
baiana!

Figura 4- Os jovens fazem festa, enquanto a baronesa-fantasma borda, à esquerda, com uma negra sentada
a seus pés. Fonte: Arquivo do Estado.

No acervo, encontrou-se também o programa do espetáculo (ver figura 5). E muitas


informações.

Figura 5- O programa luxuoso de Casa Assombrada. Foram encontrados mais dois modelos, um simples, de
provável distribuição gratuita, outro mais elaborado e este, encadernado, com fotos, desenhos, textos, e
que traz: dia 13 de dezembro de 1938- Noite de Gala. Toda a renda era em prol do Asilo Santa Terezinha.
Acervo do Arquivo do Estado. Foto do autor.

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Eram 51 atores no elenco, além do grupo que fazia os romeiros: mais 30 atores. O nome
de todos estes membros de famílias ricas, juntos, daria uma boa coleção de nomes de rua de
São Paulo: Lacerda, Pacheco e Silva, Rubião, Salles de Oliveira, Matarazzo, Pacheco e Silva,
Mesquita, Machado de Campos, Andrade e Silva, Scavone, Amaral, Arruda Botelho...
O programa do espetáculo apresenta os técnicos:
Scenario desenhado por José Wasth Rodrigues e executado por Romulo
Lombardi e Léo Rosseti.
Mise-en-sène de Alfredo Mesquita.
Os móveis e objetos foram gentilmente oferecidos pelas famílias dos Condes
de Prates e Arnaldo Vieira de Carvalho.
Efeitos de luz de Jorge Moraes, Joaquim Pesce e Americo Viola.

Figura 6- Estudo para cenário de Casa Assombrada, feito por José Wasth Rodrigues. Acervo: Arquivo
Alfredo Mesquita, CCSP.

Se todas estas informações já eram curiosas e interessantes, encontrou-se uma rica


fonte de pesquisa que pode informar muito sobre o fazer teatral na cidade de São Paulo neste
período: o caderno de contabilidade do espetáculo Casa Assombrada.
E aqui se faz necessária uma explicação.
Décio de Almeida Prado escreveu o seguinte texto no prefácio do seu livro O teatro
brasileiro moderno:
Quero confessar, para desencargo de consciência, que me dói um pouco a
ausência, nesta minha sinopse crítica, de cenógrafos e críticos, duas
categorias que, no afã de cingir-me ao essencial, acabei deixando de lado.
Incluí-las agora, no entanto, representaria um esforço de pesquisa que me
intimida, além de importar numa modificação considerável do meu plano
inicial, elaborado em torno de autores, com referências ocasionais a atores e
encenadores, dos quais os cenógrafos (e figurinistas: outra ausência) são
tributários.

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O respeitável professor, no mesmo texto, um pouco mais adiante, deseja “que outros- é
o meu voto- corrijam tal falha, escrevendo aquela história completa e definitiva de que esta não
passa de um esboço”. Pois bem. Ultimamente, tem sido cada vez mais constante a publicação
de artigos e entrevistas de cenógrafos de grande influência no país que afirmam que não havia
teatro significativo antes de 1943, com a estreia de Vestido de Noiva, de Os Comediantes,
dirigidos por Ziembinski.
Não se sabe exatamente se as afirmações são fruto de má formação histórica; ou falta
de boas fontes de pesquisa já prontas (para facilitar a pesquisa destes autores); ou ainda se é
uma autovalorização do próprio trabalho. Ao tratarem-se como precursores, o que de fato não é
verdadeiro, estariam valorizando sua própria obra. Só que isso é feito em detrimento de todos
aqueles que vieram antes de nós e construíram o fazer cenográfico na cidade de São Paulo e no
Brasil- até mesmo para que estes autores pudessem exercer sua atividade cenográfica com
qualidade.
Foi com grande alegria, portanto, que encontramos os balancetes do espetáculo Casa
Assombrada, feitos com esmero pelo senhor Constantino Montesano- que não se sabe quem foi,
mas ficam os créditos para que algum contador um dia faça justiça.

Figura 7- O caderno de contas. O texto na capa diz; “Constantino Montesano. Contador. Contas dos
Festivais Pró-Asilo Santa Terezinha (Nota do autor: que atendia filhos de hansenianos pobres) realizados no
Teatro Municipal, em dezembro de 1938, com a representação da peça ‘Casa Assombrada’, de Alfredo
Mesquita. Acervo Arquivo do Estado. Foto do autor.

Nos balancetes, cada dia recebeu o nome de “Festival”, e foram em número de quatro:

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• 13 de dezembro (do qual pode-se ver o programa na Figura 5), Festival de Gala.
Foi a maior arrecadação de bilheteria: 45 contos de réis. Com a venda dos programas,
mais 4 contos de réis.
• 15 de dezembro, Festival Sarau. Bilheteria: 8 contos de réis. Programas: 470 mil
réis. (O que comprova que segundo dia é sempre uma tragédia!)
• 18 de dezembro, Vesperal. Bilheteria: 12 contos de réis. Programas: 940 mil
réis.
• dia 19, Festival Cultura. A venda dos programas trouxe 853 mil réis e a
Sociedade Cultura Artística doou 13 contos de réis.

Ester Mesquita entregou um cheque da “venda” de um programa para uma senhora,


Florisa Loureiro de Almeida: 500 mil réis. Para que se tenha uma ideia do valor, foi a quantia
paga ao cenógrafo José Wasth Rodrigues pelos desenhos.
A cenografia – e os figurinos - apresentam informações muito preciosas.

Figura 8- Recibo assinado pelo cenógrafo José Figura 9- Cartão de visitas de José Wasth Rodrigues,
Wasth Rodrigues, no valor de 500 contos de réis. usado como recibo: “Retirou duas poltronas” e
Fonte: Arquivo do Estado. Foto do autor. assinatura do mesmo. Fonte: Arquivo do Estado. Foto
do autor.

Figura 10- O montador de cenários Léo Rossetti Figura 11- Representação esquemática feita por um
assinou o recibo de quatro contos e oitocentos mil dos cenógrafos, sem assinatura, especificando as
réis da sua parte e de Romolo Lombardi. Fonte: medidas dos cenários. Fonte: Arquivo do Estado.
Arquivo do Estado. Foto do autor. Foto do autor.

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A Figura 10 mostra o recibo assinado pelo cenógrafo José Wasth Rodrigues e a figura
11 mostra um cartão de visitas, com endereço pessoal dele naquele período. Este cartão estava
no dossiê do espetáculo Noites de São Paulo. Quanto aos executores da cenografia, além do
recibo (Figura 12) referentes à montagem do cenário (um conto e seiscentos mil réis) e da
execução do cenário (três contos e duzentos mil réis), há uma representação esquemática feita
por um dos cenógrafos, como mostra a Figura 13.
O “scenographo” Romolo Lombardi, conhecido como O Mago da Cenografia Brasileira,
emitiu a nota da Figura 14. O verbete sobre ele na Enciclopédia Itaú Cultural é o seguinte:
Romolo Lombardi (São Paulo SP 1891 - idem 1957). Pintor, cenógrafo e
decorador. Estuda pintura com Guilherme Pangella, em 1903. A partir de
1916, ingressa na Companhia Sebastião Arruda e dedica-se à cenografia.
Realiza cenários para o Teatro Municipal de São Paulo e para várias
companhias teatrais da época, dentre elas: Companhia Nacional Zaira
Medici, Clara Weiss, Associação Ópera Lírica Nacional, Companhia Procópio
Ferreira. É conhecido como O Mago da Cenografia Brasileira. Em paralelo a
esses trabalhos, executa a decoração dos carros alegóricos do Lygia Club
(1923) e os salões do Hotel Terminus para o carnaval de 1934. Em 1943,
abandona a atividade de cenógrafo para dedicar-se à pintura de telas,
realizando sua primeira mostra em 1945, em São Paulo. Falece no auge da
carreira, preparando-se para uma grande exposição individual4.

A nota mostra que seu local de trabalho- que tinha que ser enorme, porque os telões
eram gigantescos, com 16mts por 15mts ou maiores- era bem central na cidade, na Rua da
Glória. Mas um recorte de jornal, colado no final do caderno, mostra que os telões foram
pintados na Sala de Cenografia, amplo espaço na cobertura do próprio Theatro Municipal de São
Paulo. A notícia foi publicada em O Estado de São Paulo, no dia 2 de dezembro de 1938.
O repórter diz que “ninguém mais indicado para desenhá-los (Nota do autor: os cenários)
que Wasth Rodrigues, perfeito conhecedor de hábitos, costumes e tradições da gente paulista, o
que se revela através de seus inúmeros quadros a óleo e aquarelas, notadamente nos os que se
encontram expostos no Museu do Ipiranga” (Estado de São Paulo, 2/12/1938). Além de
esclarecer também que a paisagem da segunda tela era uma antiga vista de Pirapora, com a
Serra de Voturuna ao fundo, tendo no centro a “milagrosa igreja da histórica localidade” (idem) é
graças a curiosidade do repórter que uma questão sobre as portas fica resolvida: “Como não

4 In < http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9117/romolo-lombardi>. Acesso em 16 jan 2016.

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víssemos nas telas a pintura imitando as portas, explicou-nos o nosso entrevistado que as portas
com as respectivas bandeiras são reais” (idem).
Juntando as informações da descrição da figura 13 e a das Figuras 14 e 15, seria
possível remontar este cenário, entendendo seus mecanismos de funcionamento e montagem. A
nota de Romolo Lombardi diz:
Feitio de um cenário de “Sala Gabinete” estilo “Colonial”, sobre papel a ser
executada conforme croqui apresentado e aprovado como porta de 2 laterais
e 1 fundo nas medidas de 9,00x8,00x11,000.

1 fundo cortina representando uma paisagem conforme croqui apresentado


nas medidas de 13,000x10,00 sobre algodãozinho5.

A de Léo Rossetti diz:


Ilustríssimo Sr. Dr. Alfredo Mesquita
Orçamento
1 teto armado na medida de 13,00x10,00
1 fundo armado na medida de 11,00x7,50mts com uma porta de madeira estilo “colonial”.
1 (?) lateral armada como 3 portas e uma janela, sendo a porta que é feita com duas faces e a janela que
dão para a rua serão feitas a caixão.
Nas respectivas portas e janelas serão colocados vidros naturais.
1 americana ou 12,00mts para o funcionamento da cortina.
O presente orçamento será para a montagem de dois ensaios gerais e um espetáculo.
Pelo preço de 1:600$000
São Paulo, 8 de dezembro de 1938

O pesquisador que desejar saber como foi a montagem do cenário encontra aqui os
principais itens. Juntando aos outros documentos do acervo, será possível investigar com
bastante proximidade o fazer cenográfico deste período. E atenção: havia um teto cenográfico
fechando o gabinete!
Com relação aos trajes de cena, há muito material!
Os trajes de cena foram feitos pelo próprio Alfredo Mesquita. O curioso é a execução
dos trajes: A “Mappin Stores!” Assim informa o programa: “As vestimentas foram feitas por
‘Mappin Stores’ segundo ‘croquis’ do autor.” E ainda, em página exclusiva para isso, o seguinte
dizer: “Mappin Stores veste todos os artistas que tomam parte na Casa Assombrada”.

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Figura 12- Nota fiscal do cenógrafo Romolo Figura 13- Orçamento de montagem do cenário por
Lombardi. Fonte: Arquivo do Estado. Foto do autor. Léo Rossetti. Fonte: Arquivo do Estado. Foto do
autor

No jornal O Estado de São Paulo, edição de 15 de dezembro de 1938, em artigo


chamado “Festa de arte e caridade”, o autor não poupa elogios para a montagem e os atores. Os
figurinos merecem destaque:
Novamente, em mais esta noite de gala, os amadores que interpretam “Casa
Assombrada” envergarão os seus trajes passadistas: elas, as moças lindas da
nossa sociedade, com vestidos riquíssimos, de cores variadas e compridas
caudas rastejantes; e eles, os rapazes paulistas, de austeras casacas e
desmesurados colarinhos.

Essa revivência histórica, que nos desloca no tempo, para o São Paulo de há
cinquenta anos, cm seus nobres, as suas fazendas de café, os seus escravos
e o romantismo próprio da sua época, - merece ser assistida por todos os
paulistas, para quem um espetáculo dessa natureza constitui, sempre, motivo
de legítimo orgulho e sincera comoção. (Estado de São Paulo, dia 15/12/1938)

Figura 14- A página das Mappin Stores. Figura 15- Foto de cena de Casa Assombrada, de Alfredo
Acervo: Arquivo do Estado. Foto do autor. Mesquita. Direção e figurinos do próprio. Cenografia de José
Wasth Rodrigues. Fonte: Arquivo do Estado.

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No mesmo jornal O Estado de São Paulo, mas na edição de 12 de dezembro de 1938,


outro artigo já havia sido publicado. O articulista estava “encantado” com o que viu:
O aspecto que ontem apresentava a caixa do teatro era mais o de uma reunião
social. Movimentavam-se nela, com graça e desembaraço, dezenas de moças e
rapazes. Elas traziam finíssimos vestidos decotados, de tufos, rendas, babados,
laçarotes de fitas, longas caudas e anquinhas, tudo das mais variadas cores, aliás
artisticamente combinadas. Ademais, traziam como adorno lindos broches e brincos
e riquíssimos leques, uns de rendas outros de plumas, que hoje só se veem em
museus ou em casas de colecionadores. Os rapazes vestiam casacas pretas, as
calças estreitas, os colarinhos desmesuradamente altos, calçavam luvas e traziam
flor à lapela. (O Estado, dia 12/12/1938)

Por outro lado, não foi nada elegante o que escreveu na sequencia da notícia, ainda que
ofereça pistas sobre o figurino:
Coisa estranha numa sala de reunião social, que pelos modos devia ser do último
quartel do século passado, era ver-se, imiscuídos entre toda aquela gente elegante,
pretos e pretas de pés descalços, vestidos de grosseiro algodão; e rapazes e moças
do povo, de lenço ao pescoço e outros jovens ainda, vestindo com distinção roupas
próprias do campo. (idem)

Os atores e cantores “brancos” tiveram que contribuir com sua parte na execução dos
figurinos: o valor de todos juntos, somados, chegou aos cinco contos de réis. Os negros que
participaram do espetáculo foram remunerados, conforme consta no recibo da figura 16, e seu
transporte e alimentação foram pagos, conforme débitos no balancete.
O programa indicava que todos os trajes foram criados na Mappin Stores, mas há
recibos que mostram que não: o fornecimento de várias calças, por exemplo, veio de outra loja, a
Casa Victoria (ver figura 17).

Figura 16- O recibo que indica o pagamento feito aos Figura 17- Recibo de calças e camisas da Casa
negros que participaram do espetáculo. Acervo Victória. Acervo Arquivo do Estado. Foto do autor.
Arquivo do Estado. Foto do autor.

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Ao que tudo indica, pois não se encontrou ainda os figurinos desenhados por Alfredo
Mesquita para este espetáculo, os trajes estavam numerados e assim aparecem na nota fiscal
da Mappin Stores (Fig.19). Eram 23 vestidos diferentes e outros 14 iguais, do mesmo modelo. E
um grande número de lenços, sapatos, camisas, colarinhos, pares de luvas...

Figura 18- Recibo oficial de pagamento da Figura 19- A lista de trajes que foram executados na Mappin
Mappin Stores. Acervo Arquivo do Estado. Stores e seus preços. Acervo Arquivo do Estado. Foto do
Foto do autor. autor.

Alfredo Mesquita foi entrevistado para O Estado de São Paulo, em 13 de dezembro de


1938. Mesquita, respondendo a uma pergunta, dizia que “em síntese, digo-lhes que ‘Casa
Assombrada’ se compõe de cenas modernas com evocações dos tempos antigos”. O repórter
diz: “Fantasias, naturalmente?”. Alfredo Mesquita responde com algum espanto: “Não. Nem tudo
nessas evocações é produto de minha imaginação. Há na peça fatos, nomes e situações
autênticas”. Na sequencia, fornece pistas de onde veio parte de sua inspiração para os trajes de
cena: “Autênticas também são as vestimentas, confeccionadas segundo fotografias ou
descrições transmitidas de geração em geração.

Apontamentos finais
Seria o complemento perfeito encontrar em outro acervo os trajes usados neste
espetáculo, o que até este momento não aconteceu. Pode ser pouco provável, mas não
impossível. Há alguns anos, por exemplo um descendente de Affonso Arinos, autor de O

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contratador de diamantes, de 1919, uma das obras que estimulou Alfredo Mesquita, doou um
dos trajes do espetáculo que estava sob sua guarda ao Museu Paulista da USP.
Há outra parte no acervo do Centro Cultural São Paulo. Lá no CCSP também estão os
telões pintados que estavam no Theatro Municipal de São Paulo e que foram transferidos para
lá. Os telões de Romolo Lombardi ainda estarão lá? Unir estes acervos em uma pesquisa só, ou
ainda disponibilizar suas informações online para que pesquisadores tenham acesso só amplia
nossas possibilidades de pesquisa e valorização da cultura brasileira, nos seus mais diversos
patamares.
Para concluir, uma informação muito importante: a renda do espetáculo, entregue ao
Asilo Santa Terezinha, chegou aos vinte e um mil contos de réis. Como curiosidade, em 1938,
Alfredo Mesquita pagou 60 mil réis pelo aluguel do Municipal por dia. Hoje, o custo é de 100 mil
reais por dia.

Referências:
GÓES, Marta. Alfredo Mesquita, um grã-fino na contramão. São Paulo: Editora Terceiro Nome:
Loqui Editora: Albatroz Editora, 2007.
Lima, Mariângela Muraro Alves de. Imagens do teatro paulista. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado: CCSP, 1985.
PRADO, Décio de. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: EDUSP: Perspectiva, 1988.

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O vestuário construtivista da artista Varvara Stepanova

Constructivist clothing of Varvara Stepanova

REBELATTO, Tatiane (UDESC)


tatirebelatto@hotmail.com

SANT’ANNA, Mara Rubia (UDESC)


sant.anna.udesc@gmail.com

Resumo: O estudo tem por objetivo observar as produções vestíveis da artista construtivista
Varvara Stepanova. Suas roupas esportivas, figurino para teatro, projetos para estamparia e
também uniformes de produção. Considera-se que a partir desses projetos de roupas Varvara foi
se afirmando como uma artista construtora. Utilizou da linguagem do movimento de vanguarda
construtivista para projetar um vestuário diferente do convencional. Com isso, demonstrou
domínio nas formas e técnicas do movimento e engajamento com um fazer artístico utilitário.

Palavras-chave: vestuário, construtivismo, Varvara Stepanova.

Abstract: The study aims to observe the wearable productions by constructivist artist Varvara
Stepanova, her sports clothes, theater costumes, projects for stamping and also uniform
production. It is considered that from these clothing projects Varvara was being affirmed as a
construction artist. She also used the avant-garde constructivist movement language in her
clothing production, demonstrating her talent in shape and movement techniques and her
engagement with the artwork design utility.

Keywords: clothing, constructivism, Varvara Stepanova.

Introdução

O final do século XIX e as primeiras décadas do século XX foram caracterizados pela


formação de grupos de artistas que estavam dispostos a elaborar um novo modo de
representação. Foi um período de muitas experimentações em diferentes suportes, técnicas e
temas. Na Rússia isso também ocorreu e dentre os vários grupos que surgiram um deles se
destacou por seu pensamento racional e seu fazer artístico aliado à produção: O construtivismo.
Mudou o fazer artístico para o fazer artístico utilitário. Um movimento que empregou a arte em

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outro meio e deu a ela outra função. O artista a partir daquele momento tornou-se um construtor
e produzia construções funcionais e utilitárias. A forma dos objetos dependia da função que iria
ter. Uma das artistas que participou ativamente desse movimento de vanguarda foi Varvara
Stepanova (1894 – Lituânia; 1958 Russia). A artista passa por diferentes grupos como
Impressionismo, Primitivismo, Cubismo, Futurismo e por final o Construtivismo, onde mais atua.
Por influência desses grupos e em especial do Cubo-Futurismo russo que usavam ou tentavam
unir palavras, Stepanova produziu poesias Não-Objetivas e suas respectivas ilustrações.
Já por volta de 1919 á 1921, a artista se dedica a concepção da figura humana.
Desenvolve um sistema simplificado, porém pautado em uma análise anatômica. Era a figura
humana recomposta, representada através de formas geométricas. Mas foi após 1921 que mais
se percebe a compreensão que a artista tem sobre o fazer construtivista, seu papel de artista
construtor e o domínio das técnicas. Nesse período desenvolveu projetos para o vestuário,
demonstrando a rigidez da linha e formas padronizadas. Varvara usa do trabalho têxtil, que na
maioria das vezes era destinado as mulheres, para repensar o papel da mulher, questionar seus
valores e planejar um futuro diferente. Suas peças recusavam o erotismo e a mulher como
objeto sexual, desfazendo a visão romântica. Atuou ativamente na área têxtil e nela soube
utilizar o que o movimento construtivista defendia. Suas construções vestíveis demonstram o
quanto engajada estava com o seu movimento e com o projeto político, social e cultural.

Construções e construções vestíveis de Varvara Stepanova

Os artistas de vanguarda e o vestuário se mantiveram sempre muito próximos. Para


alguns desses artistas o tecido serviu de suporte para suas experimentações, passando as
pinturas e desenhos para o tecido ou ainda através da roupa provocar sentidos diferentes do
convencional. Usavam suportes e materiais comuns para aplicar em outro contexto e assim ter
significados diferentes dos tradicionais. Para Crane (2011, p. 59) “O termo “vanguarda” revela
que este foi aplicado quanto há três tipos de mudança: no conteúdo estético da arte, no
conteúdo social da arte e nas regras que cercam a produção e a distribuição das obras de arte”.
É a partir desses três aspectos destacados pela autora que se percebe na produção artística da
artista construtivista Varvara Stepanova, como atua dentro do movimento e emprega em seus
projetos de vestuário a linguagem da construção.
O movimento construtivista o qual ela pertence se firmou após a Revolução de 1917,
mais especificadamente, em 1921, mas antes disso os artistas que formavam esse grupo já
debatiam sobre os novos rumos do fazer artístico e já produziam “construções”. Discutiam e

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produziam no instituto Inkhuk – Instituto de Cultura Artística de Moscou – um lugar de pesquisa e


discussão sobre a arte em Moscou. Era um centro de pesquisa formado, em grande número, por
artistas construtivistas, sendo neste centro o lugar onde o grupo pode amadurecer suas ideias.
Foi também, a partir das atividades nesse centro que realizaram uma das exposições que
marcou o início dos construtivistas. Foi a exposição 5x5=25 que era composta de cinco artistas e
foi divida em duas partes, na primeira parte eram expostas pinturas e na segunda que ocorreu
alguns dias após, eram expostos desenhos gráficos. Além de Stepanova os artistas que
expuseram foram Aleksandr Rodchenko – um dos líderes do movimento e marido de Varvara –
Luibov Popova, Alexandra Exter e Vesnir.
Dentre esses artistas Varvara Stepanova atuou ativamente na área têxtil e nela utilizou
principalmente a geometria e a abstração que eram característicos da arte moderna do
construtivismo. Por influência de outras vanguardas, mas em especial do Cubo-Futurismo russo
que se deteve em fazer poesias, trabalhando com palavras e seus sons, Stepanova também
produziu poesias Não-Objetivas e suas respectivas ilustrações. Nesse período por volta de 1918,
considerado início de sua carreira, demonstrou estar ainda muito vinculada as formas
convencionais de representação. Percebe-se nas ilustrações um traço diferente do traço que a
artista é hoje conhecida. Era um traço espontâneo e possuía um movimento orgânico que se
integrava com algumas formas abstratas. As poesias Não-Objetivas exigia que o escritor/artista
prestasse a atenção no som, pois era ele o componente principal que dava o ritmo das
composições. Tanto nas poesias quanto nas ilustrações, feitas geralmente com aquarela e
colagens com papéis de diferentes cores, eram usadas combinações de letras e números que
geravam novas palavras, palavras que não tinham um significado, como pode ser visto na Figura
1. Estes trabalhos foram influenciados pelo contato com outros artistas e movimentos que
proporcionaram a Varvara a experimentação de técnicas e formas diferentes do Construtivismo.
Stepanova resolutamente seguiu o estilo de futuristas, dos livros manuscritos, particularmente o
trabalho de Olga Rozanova1 (SARABIANOV, 2014).

                                                                                                                       
1(1886-1918) Artista de vanguarda, realiza obras Não-Objetivas, possui em seus trabalhos características Neo-
primitivistas e Cubo-futuristas.

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Figura 1 - Ilustration for the poem “Zigra Ar”, 1918


Fonte: CATÁLOGO  AMAZONS  DO  AVANT-­‐GARDE,  1999

Já por volta de 1919 á 1921, a artista se dedica a concepção da figura humana.


Desenvolveu um sistema simplificado de corpo, porém pautado em uma análise anatômica. Era
a figura humana recomposta, representada através de formas geométricas. A cabeça era
sempre um círculo, os braços e pernas eram retângulos, mãos e pés eram representados por um
traço. Nessa forma de representação que se tornou sua característica, já era possível perceber
alguns aspectos do movimento que em 1921 passou a seguir. A técnica que utilizou também
começava a se diferenciar. Nas poesias pelo que pode ser visto nas obras, faz o uso normal do
pincel, era possível perceber a maneira como o manipulava, já nessas composições da figura
humana ela utilizou outra técnica com o pincel. De acordo com Lavrentiev (1999) usava a técnica
do pincel semi-seca, algo que gerava uma textura de cor homogênea como se fosse de um
pulverizador.
Além disso, “Stepanova falava de “faturas mecanizadas”, em que a pistola de pintura ou
o rolo mediavam a mão do artista” (BRIONY, BATCHELOR, WOOD, 1998, p. 114). Em pintura
fatura significava empasto, vitrificação, que depois foi substituída por ferramentas mecânicas
como o rolo e a prensa. Essa técnica que escondia a mão do artista era um meio para fazer as
formas despersonificadas. Os construtivistas consideravam necessário que o artista recusasse o
“eu” individual. Pois o individual se remetia a cultura burguesa e as formas tradicionais de
representação. Essa recusa era feita através da técnica das faturas mecanizadas, mas também
e principalmente pelas formas abstratas e geométricas. Para a vanguarda construtivista, “a aura
do artista individual, expressivo, era repelida – como sendo um tipo burguês anacrônico – em
favor dos novos modelos” (ibid., p. 127). Eles consideravam que “a displicência de uma “linha
trêmula”, desenhada pela mão do artista, é considerada menos precisa e, portanto, de valor

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menor que uma linha traçada com o auxílio do esquadro, como se a mão não participasse” (ibid.,
p. 113).

Figura 2 - Billiard Players, 1920


Fonte: CATÁLOGO AMAZONS DO AVANT-GARDE, 1999

A linha rígida, o desenho técnico e essa ideia de despersonificação fizeram parte dos
projetos de Stepanova. Essas características que formam a linguagem construtivista estão
presentes no esquema simplificado do corpo humano e também nas produções de vestuário.
Todas essas produções, desde as poesias e as ilustrações serviram para que a artista
experimentasse e amadurecesse seu fazer artístico até aderir o modo de representação dos
construtivistas.
Além dessas características o meio em que o grupo se encontrava também influenciou
nas suas produções. O movimento construtivista passou do trabalho artístico para o trabalho
artístico utilitário, ou seja, a partir da Revolução Russa de 1917, em um contexto que todas as
artes estavam sendo incentivadas, os artistas passam a se engajar no projeto socialista
soviético. A arte não deveria ser reflexo da sociedade, mas deveria estimular a pensar e fazer
uma nova sociedade soviética, com novas pessoas. As obras não representam o mundo por
“significação convencional”, supondo ser este o modelo utilizado na arte figurativa, mas contem
alusões ao mundo no qual são produzidas por meio de associações de materiais e métodos
(BRIONY;BATCHELOR;WOOD,1998). Argan (1992) também comenta que o mundo quer ser
moderno e os artistas passam a admitir que as técnicas industriais constituam uma grande força
criativa.

O tempo de artista- artesão terminou; o tempo de artista-intelectual é uma


ficção da cultura burguesa, [...]. Num mundo apenas de coisas as imagens
também são coisas e o artista as fabrica. Não as inventa, constrói-as: dá a
elas a força para competir, impor-se como mais do que a própria realidade
(ARGAN, 1992, p. 34).

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O construtivismo se pautou em uma construção que continha racionalidade, disciplina,


precisão, clareza e abandono da arte romântica, mística e subjetiva. Todas essas
especificidades do trabalho artístico utilitário mostravam-se também no vestuário que Varvara
projetou. Com a implantação de fábricas, Stepanova, por exemplo, pôde trabalhar na área têxtil.
Trabalhou na primeira fábrica estatal de estampas em tecidos e também trabalhou como
professora na Faculdade de Têxteis no Vkhutemas2. A área têxtil na maioria das vezes era
destinada as mulheres, ou a elas se remetiam as pinturas figurativas realistas, mas no caso de
Varvara isso não ocorreu. As construções construtivistas eram vistas como opostas as
produções realistas que também eram feitas nesse período de surgimento das várias
vanguardas.

O construtivismo provou ser um campo no qual as mulheres artistas de


vanguarda podiam trabalhar produtivamente. Isso não ocorria pelo fato de
que a abstração as havia libertado dos constrangimentos da condição
feminina, embora, em certa medida, seu trabalho com a forma abstrata
pudesse funcionar como resistência as expectativas convencionais acerca de
o que e como uma mulher deveria pintar. (BRIONY, BATCHELOR, WOOD,
1998, p. 136).

Porém, o movimento que comparado a outras vanguardas continha mais mulheres


artistas, defendia as formas despersonificadas, a recusa do artista, ou seja, nessa neutralidade
recusava-se também a mulher artista. Para os autores Briony, Batchelor, Wood (1998, p. 134)
“adotar o papel do construtor implicava rejeitar o papel tradicional do “artista”, para uma mulher,
adotar esse papel significava, além disso, uma recusa em atender as expectativas convencionais
em relação à “mulher artista.”
Mas Stepanova estando no meio têxtil e também como professora de têxteis elaborou
peças bem diferentes do que se tinha na época. Projetou peças que não remetiam a diferenças
sexuais. “Atitudes particulares em relação ao corpo foram expressas em formas geométricas, as
quais buscavam simbolizar uma nova geração soviética que não apoiaria estereótipos de
gênero” (BRIONY, BATCHELOR, WOOD, 1998, p. 136). Seus projetos eram unissex, em peça
única, nada justo ao corpo, sem adornos, tinham algumas listras mais largas outras mais finas
sendo estampadas em um sentido que acompanhavam o movimento do corpo como podem ser
vistos na Figura 3 e 4. Eram produções geométricas, simples, mas que estavam pautadas no
                                                                                                                       
2“(Ateliês Superiores Técnico-Artísticos Estatais) acabou sendo uma instituição chave, por sintetizar todo o
pensamento, as dúvidas, os equívocos e mitos sobre a arte (plástica, escultórica, arquitetônica e design) soviética”
(MIGUEL, 2006, p. 6).

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conforto, no livre movimento do corpo e recusavam o erotismo. Pode se pensar que o


afastamento das pernas, como demonstra as imagens abaixo, é um sinal de independência, a
recusa da mulher como objeto sexual, a recusa da visão romântica sobre a mulher, a liberdade,
uma nova forma de vida. Nos figurinos de teatro também não havia distinção de sexo, as roupas
às vezes não estavam com o nome dos personagens ou atores, mas numerados. Essa ordem e
disciplina também eram vistas nos cenários geométricos e os movimentos dos personagens
também eram mecânicos e rígidos.

Figura 3 - Design for Sports Clothing, 1924

Fonte: CATÁLOGO AMAZONS DO AVANT-GARDE, 1999

Figura 4 - Figurino de teatro, A morte de Tarelkin, 1922

Fonte: MONOSKOP, 2016

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A maioria das estampas foi desenvolvida na fábrica onde Varvara e Luibov Popova3
trabalhavam. As duas eram companheiras de movimento e de trabalho na fábrica e nos ateliês
do Vkhutemas. Produziam arranjos geométricos e abstratos que demonstravam linhas rígidas e
um desenho técnico aparentando ser feito com régua e esquadro Figura 5. Para Lima (2014) os
temas geométricos representavam os registros sensoriais de forças físicas, como impulsos
elétricos, e forças pressóricas, centrífuga. Ele também comenta que de acordo como era
organizado o desenho, criava-se ilusão óptica [...]. A utilização de cores e efeitos ópticos são
uma das características do trabalho de Stepanova, e lança as sementes da Op-Art (LIMA, 2014).
As formas geométricas também poderiam se remeter ao mundo fabril, como as engrenagens das
máquinas, os movimentos mecanizados, a ordem, a disciplina, a arquitetura e os trilhos do trem.
Desde o início do seu trabalho com padrões, Stepanova pretendia que o objetivo do design era
familiarizar todo o cidadão com a linguagem da arte, das linhas que projetavam a vida prática,
fosse um trem ou um estudo astronômico (LIMA, 2014).

Figura 5 – Design Têxtil, 1925


Fonte: LIMA, 2015

Os temas, porém não se limitavam a somente estes, tanto Varvara quanto Luibov
Popova, usavam como referência os bordados de camponeses russos. Utilizavam as formas
geométricas dos bordados ou até encomendavam bordados já com desenhos abstratos e
geométricos. Para os autores Briony, Batchelor, Wood (1998, p.134) “os elementos geométricos
de arte popular formam assimilados pelos artistas abstratos e reafirmados nas estampas para

                                                                                                                       
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 (1889-1914) Artista construtivista assim como Varvara Stepanova, se destaca também por suas produções
Cubistas e Cubo-futuristas.    
 

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tecidos.” Partiam da desconstrução do artesanal, colocando-os na linguagem abstrata e


geométrica, da técnica e da produção em série.
Varvara usou do trabalho têxtil, que na maioria das vezes era destinado as mulheres, e o
vocabulário geométrico, para criar algo que fosse além do vestir. Eram roupas que transgrediam
com o comum, com o que era convencional. Comparada a outras artistas de vanguarda como
Alexandra Exter4 e Luibov Popova, que também trabalham na área têxtil, Stepanova inovou, as
duas artistas citadas, fazem algumas mudanças em seus projetos de vestuário, mas não como
Varvara que atribui um novo sentido ao vestível.
Outro aspecto a ser destacado é sobre seu marido Alexander Rodchenko. No catálogo
de uma exposição de título Amazons of the Avant-Garde: Alexandra Exter, Natalia Goncharova,
Liubov Popova, Olga Rozanova, Varvara Stepanova, e Nadezhda Udaltsova, o qual fala sobre a
arte de vanguarda de Moscou através das produções de artistas mulheres. Neste, cada uma das
artistas contém um capítulo, que são abordados temas diferentes sobre as artistas e também é
criado de certa forma um perfil diferente para cada uma delas. No caso de Stepanova, o perfil é
de uma aprendiza. Uma aprendiza que transita entre diferentes movimentos de vanguarda e que
tem como seu maior mestre Alexander Rodchenko.
O autor do ensaio do capítulo sobre Varvara, Alexander Lavrentiev (1999) diz que não é
possível compreender Varvara sem Rodchenko e vice-versa. Entre eles havia uma troca, mas a
imagem que às vezes se mostra dele, é de mestre e a dela é de aprendiz, por vezes a artista
parece atuar na sombra de Alexander. Porém, deve-se também levar em consideração que ele
teve mais reconhecimento que Varvara e até mesmo sua produção parece ser maior e mais
acessível. As obras que estão no catálogo são a maioria de coleção privada, e comparada a
outras artistas, Stepanova não é tão conhecida quanto elas. Além disso, Rodchenko
permaneceu por um tempo na França, onde pode ter contato com outros artistas e estar mais
envolvido nas discussões do próprio Construtivismo. Talvez, esses aspectos tenham contribuído
para que o marido da artista tivesse maior visibilidade. Como citado por Lavrentiev (1999) eram
uma equipe criativa, embora Stepanova pode ser considerada estudante de Rodchenko, ela
guardava sua independência e ciúmes. No catálogo aparecem duas caricaturas de palhaços
uma dele e outra dela, as quais demonstram que Varvara brincava com a relação deles.
Depois que foram para Moscou passaram a dividir a mesma casa e compartilhar das
mesmas ideias sobre arte. Ambos foram professores no Vkhutemas, Rodchenko foi professor no
Ateliê de Madeira. Hoje algumas obras do casal encontram-se no Puskin Museu do Estado de
                                                                                                                       
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 (1882-1949) Artista de vanguarda que passa pelos movimentos: Cubista, Suprematista, Futurismo e também
Construtivista.

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Belas Artes/Coleção Privada em Moscou. Esse lugar foi anteriormente Museum of Painterly
Culture, que em 1920 Rodchenko tinha sido nomeado curador da coleção de arte
contemporânea, tendo Stepanova como assistente (LAVRENTIEV, 1999). Rodchenko morre dois
anos antes que Varvara em 1956. As trocas que ocorriam com o seu marido e todas essas
mudanças que ocorreram no modo de representação da artista contribuíram para seu papel
como artista construtora.

Considerações Finais

No todo de sua produção, assim como o próprio movimento construtivista, percebe-se a


desconstrução, seja das formas, das técnicas, do olhar do artista e do próprio artista, que agora
é artista-construtor. Nota-se uma preocupação em desconstruir um passado de formas
convencionais, da arte figurativa, subjetiva, mística e o artista iluminado. Esse grupo pensa em
uma reelaboração da arte, no sonho de uma nova sociedade e no futuro. É em meio a essa
desaparição do artista, das formas despersonificadas que Varvara acaba formando seu próprio
modo de fazer. Apesar de o Construtivismo recusar a personalidade do artista e o seu gesto
biográfico permitiu, de certa maneira, que também se formasse o fazer artístico individual.
Nas imagens percebe-se que Varvara não se limitou em projetar o que era mais fácil, o
convencional, o que já se tinha, mas foi um pouco além, pensou no novo e contribuiu para uma
nova forma de vestir que continha a estética da arte moderna. Suas construções vestíveis
demonstram o quanto engajada estava com o seu movimento e com o projeto político, social e
cultural soviético. Em suas roupas construtivistas, assim como em suas pinturas, desenhos e
xilogravuras possibilitaram a artista que ela fosse uma construtora. Em todas essas produções e
com o decorrer da passagem em outros movimentos Varvara criou seu próprio modo de fazer
artístico utilitário individual dentro de um projeto coletivo. Seu modo de fazer ficou caracterizado
como “Varvarismo” e “Arte da Varvara”.

Referências

BRIONY, Fer. BATCHELOR, David. WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: A


arte no Entre-Guerras. Tradução de Cristina Fino. São Paulo: Cosac&Naify Edições Ltda, 1998.

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11  
 

CATÁLOGO DE EXPOSIÇÃO. Amazons of the Avant-Garde: Alexandra Exter, Natalia


Goncharova, Liubov Popova, Olga Rozanova, Varvara Stepanova, and Nadezhda
Udaltsova. New York: Guggenheim Museum Publications, 1999. Disponível em: <
http://www.guggenheim.org/new-york/exhibitions/publications/from-the-archives/items/view/166>
Acesso em: 04 Fev. 2016.

CRANE, Diana. Ensaios sobre moda, arte e globalização cultural. Tradução de Camila
Fialho, Carlos Szlak, Renata S. Laureano. (org. Maria Lucia Bueno) São Paulo: Senac, 2011.

LAVRENTIEV, Alexander. The frenzied Stepanova between analysis an synthesis. In: The
“Frenzied” Stepanova: between analysis and synthesis. In: Catálogo Amazons of the Avant-
Garde: Alexandra Exter, Natalia Goncharova, Liubov Popova, Olga Rozanova, Varvara
Stepanova, and Nadezhda Udaltsova. New York: Guggenheim Museum Publications, 1999.
Disponível em: < http://www.guggenheim.org/new-york/exhibitions/publications/from-the-
archives/items/view/166> Acesso em: 04 Fev. 2016.

LIMA, Celso. Varvara Stepanova e um desenho soviético. Celso Lima Estamparia. Disponível
em: < http://celsolima.zip.net/> Acesso em: 20 Jan. 2016.

MIGUEL, D. Jair. Arte, Ensino, Utopia e Revolução. Os ateliês Artísticos Vkhutemas/


Vkhutein (Rússia/URSS, 1920-1930). 2006. 148 f. Tese (Doutorado em História Social)
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo
2006.

MONOSKOP. Varvara Stepanova. Disponível em: <http://monoskop.org/Varvara_Stepanova >


Acesso em: 04 Fev. 2016.

SARABIANOV, D. Andrei. Varvara Fyodorovna Stepanova. Encyclopedia Britannica.


Disponível em <http://www.britannica.com/biography/Varvara-Fyodorovna-Stepanova> Acesso
em 25 Jan. 2016.

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Trajes funerários de Paracas: mantos para a vida depois da vida


Paracas funerary costumes: mantles to life after life
Isabel C. Italiano (Universidade de São Paulo)

Fausto R. P. Viana (Universidade de São Paulo)

isabel.italiano@usp.br

faustoviana@uol.com.br

Resumo
O clima seco foi o grande agente climático de preservação de uma coleção de fardos funerários
hoje pertencentes ao Museu Nacional de Arqueologia, Antropologia e História do Peru. Os
fardos são compostos por camadas de mantos, que abrigam em seu interior múmias de figuras
importantes da comunidade em que atuaram, entre 100 a.C. e 200 d.C. Este estudo mostra a
riqueza e qualidade dos sofisticados têxteis bordados pelos artesãos de Paracas, registros
documentais importantes sobre a cultura e história desse povo.
Palavras chave: trajes funerários, têxteis, Paracas.

Abstract
The dry weather was the main agent in the preservation of a collection of funerary bundles that
nowadays belong to the National Museum of Archaeology, Anthropology and History in Peru. The
bundles are made of layers of mantles that host in their interior mummies of important members
of the community in which they acted, from 100 BC to 200 AD. This paper shows the richness
and quality of sophisticated embroidered textiles made by the artisans of Paracas, important
documental highlights of the culture and history of those people.
Keyworkds:funerary mantles, textiles, Paracas.

1. Introdução

Escavações e pesquisas realizadas no último século indicam que há mais de 4000 anos
os habitantes da costa oeste e regiões altas da América do Sul já produziam tecidos. Os mais
antigos têxteis recuperados são de algodão e fibras liberianas1, mas, posteriormente, foram
usados também lã de camelídeos (lhama, alpaca, vicunha e guanaco), com algumas fibras
liberianas e cabelo, usados para propósitos especiais (VANSTAN, 1966).
Em 1925, o arqueólogo peruano Julio Tello, considerado o pai da arqueologia peruana,
organizou a sua primeira expedição, junto ao Museu de Arqueologia Peruana, para explorar a
península de Paracas, a 250 quilômetros ao sul de Lima, capital do peru. (TELLO, 1959). Foi em
1927 que encontrou os fardos funerários na necrópole de Paracas. As datas, apuradas por

                                                                                                                       
1 Conforme o dicionário Priberam da Língua Portuguesa (online): [Botânica] Diz-se de feixe de certos tubos da
estrutura das plantas.  

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radiocarbono, mostram que a necrópole foi utilizada entre 100 a.C. e 200 d.C. (RODRÍGUEZ;
AGUIRRE, 2015).
Nas expedições seguintes, em número de quatro até 1930, foram descobertos 429
fardos funerários de diversos tamanhos e categorias (TELLO, 1959). As mudanças políticas no
país fizeram com que as expedições fossem encerradas e os sítios abandonados.
Os fardos foram trasladados ao Museu Nacional, em Lima, e centenas deles foram
abertos entre 1930 e 1960. Foi possível conhecer centenas de artefatos têxteis, bordados ou
tecidos, além das inúmeras “oferendas feitas em cerâmica, metais nobres, pedra, penas e outros
materiais orgânicos” (RODRIGUEZ; AGUIRRE, 2015, p.16, tradução nossa). A Figura 1 mostra o
desenho de um fardo funerário (1,10m de altura e 3,75m de circunferência na base) de Paracas,
em seu local de escavação. Tello nos dá uma visão geral dos fardos funerários:

Cada fardo contém o cadáver de algum chefe ou sacerdote de alta hierarquia da


velha sociedade aborígene adornado com suntuosas oferendas têxteis etc. Cada
fardo funerário é habitação e armazenamento, tumba e arquivo; valiosa herança
deixada aos peruanos de hoje como expoente de seus esforços e êxitos, para
aproveitar os ensinamentos que encerra e transmiti-las às gerações futuras
acrescentadas e enriquecidas. (TELLO, 1959, contracapa, tradução nossa)

Figura 1 – Visão exterior do fardo Funerário nº 451, necrópole de Wari Kayán (ou Cerro Colorado) em Paracas.

Fonte: Tello (1959, lâmina XI).


Uma vez que os antigos ancestrais peruanos não deixaram registros escritos, grande
parte do conhecimento sobre sua cultura pode ser obtida, quase que exclusivamente, a partir
dos artefatos que sobreviveram ao tempo e ao poder destrutivo do homem. Os têxteis, por serem
parte dos materiais menos duráveis, foram preservados devido às circunstâncias favoráveis, pois
na costa do Peru, as condições climáticas se assemelham muito às do Egito antigo,
praticamente nenhuma chuva ocorre e, principalmente, às práticas funerárias realizadas
(VANSTAN, 1966).

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De acordo com Tello e Xesspe (1979), muitas coleções particulares e fundos culturais de
universidades e museus do país de do exterior, de acordo com contratos e subvenções
previamente estabelecidos, contém têxteis de Paracas, ainda que muito material tenha sido
perdido nos ataques de vândalos realizados na década de 1930
Conforme Engel (1966), Paracas é, indiscutivelmente, um importante foco cultural, não
somente para o Peru, mas, também, para a história da humanidade. O autor indica duas razões
para justificar tal importância: 1) o nível de preservação dos artefatos, ajudado pelo clima, como
já visto e 2) a cultura desenvolvida em Paracas, cuja grande riqueza está refletida na produção
dos artefatos têxteis de alta complexidade e qualidade, consideradas verdadeiras obras de arte.
Neste sentido, todo o material têxtil encontrado em Paracas adquire o status de
documento muito importante, dada a falta de registros documentais textuais. Rodriguez e Aguirre
(2015) afirmam que:

Na sociedade Paracas, os têxteis tiveram um papel importante na comunicação


visual, e especialmente em transmitir ideias religiosas e crenças. Enquanto alguns
motivos bordados são abstratos, outros formam metáforas visuais complexas que
aludem ao meio ambiente, sociedade e rituais. Eles também aludem aos poderes e
atributos cósmicos, que são representados metaforicamente através dos elementos
da flora e da fauna (p. 25).

Para os Paracas, o traje funerário não é a marca do fim: é a abertura da vida, depois
da... vida.

2. Os Paracas e seus fardos funerários

Paracas, “Para-ako” no idioma dos aborígenes, significa “chuva de areia”, conforme


Yacovleff e Muelle (1934 apud ENGEL, 1966, p.17). De fato, Engel (1966) afirma que na região
de Paracas sopram ventos muito fortes, que chegam a levantar nuvens de pó e de areia.
Com a denominação Paracas são designadas diversas culturas do Centro Andino
relacionadas entre si, por apresentarem características similares, “como se correspondessem a
diversos aspectos de uma mesma civilização, ou às diversas etapas pelas quais esta civilização
tenha passado em seu longo desenvolvimento” (TELLO, 1959, p.58, tradução nossa). Ainda
conforme Tello (1959), em direção à costa estão as culturas: Paracas, Nasca, Chanka e Chincha
e em direção à serra: Wari (ou Wanka), Rukaestsacar (ou Sub-Chanka) e Chukurpu.
É importante destacar que o sítio arqueológico foi denominado de necrópole (uma
cidade dos mortos), mas por vários milênios Paracas foi uma área onde viveram grandes

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aglomerações humanas, com milhares de pescadores. Existem mortos em Paracas, como


existem em qualquer outro lugar do mundo onde o homem viveu (ENGEL, 1966).
De acordo com Rodríguez e Aguirre (2015), a população de Paracas vivia nos vales da
costa sul do Peru. Viviam do cultivo de milho, batata doce, feijão, mandioca e outras culturas
similares, além de pesca, mariscos, algas e outros produtos do mar e caça de mamíferos
marinhos.
O descobrimento de Paracas (ver localização na Figura 2) mostrou uma civilização
adiantada e abriu um novo horizonte para os estudos arqueológicos. Foram encontradas
elevadas manifestações de arte aborígene, como a arte lítica (de pedras), por exemplo, mas no
contexto do presente trabalho destaca-se a arte têxtil, representada por cestos e cordões
trançados artisticamente, além dos tecidos bordados que “não encontram rival na arte têxtil
americana” (TELLO, 1959, p.57, tradução nossa).

Figura 2 – Localização geográfica de Paracas


 

Fonte: Rodríguez e Aguirre (2015, p.13)


Os Paracas também desenvolveram a arte da cura, como se pode perceber com base
nas análises dos tratamentos aplicados aos cadáveres encontrados, que revelaram o domínio
daquela civilização dos processos de mumificação. Tello (1959) relatou que os cadáveres foram

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submetidos a um complexo processo que garantiu a conservação das partes anatômicas apesar
do longo tempo transcorrido e da ação dos agentes destrutores do terreno
Dos cadáveres eram extraídas as vísceras e grande parte dos músculos. A massa
encefálica era provavelmente removida pela inserção de um objeto pontiagudo, de metal ou não,
que entrava pelo nariz ou pelo céu da boca, reduzindo-a a uma mistura líquida que escorria pelo
mesmo orifício de entrada. Este não é o único método de remoção cerebral, naturalmente. O fato
é que muitas múmias de Paracas estavam decapitadas, o que representa uma honra para
ambos os guerreiros: o que decapita, pois fica com a força do que falece e o que morre, que tem
o orgulho de ver sua força de guerreiro ser absorvida por alguém mais forte que ele. Há outras
vertentes: uma delas, por exemplo, entende que manter a cabeça do morto não era uma honra
mas, sim, uma precaução, que impediria a vingança do falecido.
Cortes feitos no tórax e no abdômen possibilitavam a retirada dos órgãos internos. O
processo de mumificação era, então, realizado com uso do fogo e, talvez, diversas substâncias
químicas. Muitos dos corpos examinados eram de homens em idade madura, altos e com o
crânio deformado, alongado e quase cilíndrico (TELLO, 1959). Mais uma vez, é necessário
entender que nem todas as múmias do necrotério foram mumificadas da mesma forma – os
processos variam – e muitos arqueólogos, como apontado por Virginia e Michael Telembach em
Mummies of the world (WIECZOREK; ROSENDAHL, 2010, p.101), discordam da mumificação
descrita por Tello, que revela que houve extração de órgãos. Para eles, o procedimento seria
desnecessário em condições climáticas tão extremas, a mumificação ocorreria independente da
extração.
Para serem empacotados em fardos, era necessário reduzir ao máximo o volume dos
cadáveres. Assim, com os membros bem dobrados junto ao corpo e a cabeça flexionada e
apoiada no abdômen, o corpo era fortemente amarrado. Os espaços vazios recebiam pequenas
peças de roupas de modo a formar um pacote arredondado ou ovoide, colocado, então, dentro
de um cesto. A partir daí, eram colocadas, em volta do cadáver, diversas camadas sucessivas
de peças de uso habitual ou de luxo, de sua rica indumentária. Alguns destes cadáveres eram
adornados por diversos ornamentos, como colares de conchas, diademas, narigueiras e outros
objetos de ouro. Muitas vezes foram encontradas peças de roupas posicionadas dos lados do
corpo (idem).
Os “pacotes” eram então embrulhados em duas ou mais camadas de algodão grosso
(algumas com mais de 20 metros de comprimento por 4 metros de largura, formadas por dois
panos de 20 metros por 2 metros, tecidos em uma só peça). Outras camadas iam compondo o
fardo, panos simples alternados com mantos bordados e outras pequenas peças de roupa.

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Diversos mantos cerimoniais, em lã e algodão, recobriam os fardos, nas suas diversas


camadas. Para se ter ideia da riqueza de detalhes que eram incorporados ao fardo, seja por
meio da própria tecelagem, seja por meio de bordados, a Figura 3 mostra um dos mantos
encontrados nos fardos, confeccionado em fibra de camelídios e algodão, com 2,51m por 1,37m.

Figura 3 – Manto funerário em tecido plano e bordados.

Fonte: Museo Chileno de Arte Precolombino (20015, p. 90-91)


A Figura 4 mostra o corte de um fardo funerário, onde se pode ver o morto, as camadas
que envolvem o fardo, bem como as oferendas mortuárias.

Figura 4 – Partes de um fardo funerário (“enxoval funerário”).

Fonte: Adaptado de Peters (2009 apud RODRÍGUEZ; AGUIRRE, 2015, p. 18).

3. Os fardos em detalhe

Todo o trabalho de abertura dos fardos por Julio Tello e sua equipe foi registrado por
meio de pinturas, diagramas e fotografias. Para cada múmia, a equipe registrou diversos
aspectos sobre conservação, forma, volume e dimensões, objetos encontrados, além dos

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detalhes da posição do corpo dentro do fardo. Tello documentou, também, as características das
camadas que envolviam o cadáver, do cesto funerário e toda a sequência do processo de
enfardamento.
Em seus dois livros intitulados Paracas, parte um (TELLO, 1959) e parte dois (TELLO,
XESSPE, 1979), o arqueólogo descreve, com todos os detalhes, os fardos de número 451, 310 e
290 da necrópole de Cerro Colorado de Paracas.
Com uma grande riqueza, por meio de pinturas e diagramas, Tello descreve, nas duas
obras citadas, as figuras bordadas, pintadas ou estampadas em diversos dos mantos e vestes
presentes nos fardos. Os detalhes da múmia numerada como 451 são apresentados a seguir,
com foco nos objetos têxteis encontrados nos fardos. Mencionam-se outros artefatos
encontrados entre as camadas de tecido apenas quando necessário.

3.1. O fardo de número 451

Esta foi a última múmia do conjunto de 429 fardos funerários descoberta na necrópole
de Wari Kayán, em Paracas. O fardo mede 1,10m de altura central, 1,30m de largura (lateral),
3,74m de circunferência na base e 0,60m de circunferência na cúspide (ou cabeça artificial do
fardo funerário). O fardo tem peso aproximado de 150 kg.
A camada mais externa do fardo consiste de um tecido grosseiro de algodão, de cor
bege claro, com manchas de carbonização e costuras com pontos grandes feitos com fios
grossos de algodão. Este tecido envolve completamente o fardo de baixo para cima, com as
extremidades dobradas, formando pregas diagonais que estão costuradas no alto do fardo.
Abaixo desta camada, encontra-se outro tecido grosseiro de algodão, que envolve o fardo em
sua parte média e inferior, compondo, portanto, uma primeira camada protetora composta por
dois tecidos. O primeiro mede 5,20m de comprimento por 2,90m de largura, em uma só peça. O
segundo mede 4,85m de comprimento por 3,15 de largura. Esses tecidos apresentam fios bem
torcidos no urdume e um pouco soltos e desiguais na trama, resultando em uma textura grossa e
compacta. As medidas destes dois tecidos indicam o uso de teares grandes, com mais de 3,00m
de largura. A Figura 5 (a) mostra uma imagem destas camadas protetoras.
Por baixo das camadas de algodão, é encontrada uma camada de oferendas
cerimoniais, composta por adornos de cabeça, uma túnica ou casula e mantos cerimoniais. A
colocação destes objetos determina a frente, a parte traseira e as laterais da múmia, pois o
primeiro manto cerimonial envolve a manta e suas pontas superiores se entrecruzam na frente,
debaixo dos ornamentos de cabeça.

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Os adornos de cabeça são: 1) gorro, feito de cabelo humano negro ornamentado com
borlas e penas, 2) adereço de cabeça, feito por uma tira trançada de lã, colorida e com desenhos
geométricas, medindo 3,50m de comprimento total por 2cm de largura e 3) uma funda. Na Figura
5 (b) pode-se ver os adornos de cabeça no fardo funerário 451.
Figura 5 – Sequência da retirada das capas do fardo funerário n 451 da necrópole de Cerro Colorado de Paracas.

(a)   (b)   (c)  

(d)   (e)   (f)  

(g)   (h)   (i)  

Fonte: Tello (1959, lâminas XII, XIII, XIV XV, XVI, XVII, XVIII, XX e XXI).

A túnica ou casula protege o contorno da cúspide. É um tecido retangular, de lã azul,


com abertura central no sentido transversal. Esta túnica pode ser vista na Figura 6. O apêndice
central na frente da túnica tem as mesmas características do tecido da túnica, porém é uma peça
à parte, costurada. O apêndice traseiro é feito de um tecido simples de algodão branco adornado
por uma série de tiras. A túnica é adornada com franjas de penas amarelas. A túnica mede
1,80m de comprimento por 0,68m de largura.

Figura 6 – Túnica cerimonial de lã azul encontrada no fardo funerário n⁰ 451 de Paracas.

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Fonte: Tello (1959, lâmina XXII).


Compondo a primeira camada de oferendas cerimoniais, sob a túnica se encontram
cinco mantos cerimoniais coloridos, feitos de lã e bordados com figuras mitológicas:

1. Manto de lã vermelha (2,40m por 1,38): tecido de forma simples, com urdume e trama
entrecruzados para servir de base para o rico bordado usado como decoração. É feito em
uma só peça, aparentemente para ser usado por um adulto. A ornamentação é feita por um
barrado verde escuro, com diversas figuras bordadas em toda a volta. Outras figuras
similares ornamentam a parte vermelha central do manto, dispostas em posições parecidas
a um tabuleiro de xadrez. A combinação cromática é harmoniosa e revela refinamento
artístico. O manto pode ser visto na Figura 5 (b). As figuras do manto representam um ser
mitológico de origem humana, com uma máscara mítica, com traços felinos, carregado de
atributos serpentiformes cujo corpo é coberto por espinhos e que seguram cabeças
humanas como troféus. São todas similares: na cabeça, em forma de diadema, um ser
zoomorfo. O corpo é humano e porta uma túnica com mangas curtas e cabeças em forma de
troféu também aparecem nas tornozeleiras. Três desenhos dos seres mitológicos deste
manto são apresentados na Figura 7. Estas imagens são bordadas com um tipo de ponto
atrás, de modo que se distingue o avesso e o direito. O manto não apresenta forro.

Figura 7 – Seres mitológicos bordados em manto cerimonial do fardo funerário nº 451 de Paracas.

Fonte: Tello (1959, lâminas XXXI, XXXV e XXXIII).


Os bordados são, na maioria, de execução simples, mas que produzem resultados bem
elaborados e desenhos sofisticados.

2. Manto de algodão vermelho escuro (2,64m por 1,35m): tecido em uma só peça. Este
manto tem barrado lateral verde escuro, feito de lã, com 15cm de largura, bordado com

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figuras decorativas de personagens humanos, bordados com fios bem coloridos. O manto é
mostrado na Figura 5 (c). Em toda a borda existe uma franja estreita de fios multicoloridos.
Apesar de apresentar partes bem carbonizadas, o manto apresenta outras figuras
ornamentais antropomórficas (total de 21 figuras dispostas em formato de xadrez). As figuras
são muito similares entre si, representando um humano em posição vertical, vestido com
peças de vestuário comum (um adereço de cabeça de tecido retangular e uma túnica
associada a uma saia com adornos de cabeças troféus e adornos nos braços e pernas,
feitos de tecido bordado). A Figura 8 mostra dois destes ornamentos.

Figura 8 – Representações humanas bordadas em manto cerimonial do fardo funerário nº 451 de Paracas.

Fonte: Tello (1959, lâmina XXXIV).

3. Manto de lã verde escuro (2,52m por 1,36m). À semelhança dos anteriores, esse manto
apresenta um barrado, nesse caso, vermelho escuro, com 16cm de largura e franjas
estreitas multicoloridas. O manto pode ser visto na Figura 5 (d). No barrado estão dispostas
vinte figuras mitológicas, carregadas com atributos simbólicos de serpentes, aves e
macacos. A parte central do manto apresenta figuras similares (total de 29), disposta em
xadrez. Estas figuras portam um cocar, em formato semilunar, e existem diversas
representações de serpentes e outros animais. A figura representada usa uma túnica de
manga curta e saia (ou tanga). Alguns dos exemplares destas representações são
mostrados na Figura 9.

Figura 9 – Seres mitológicos bordados em manto cerimonial do fardo funerário nº 451 de Paracas.

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Fonte: Tello (1959, lâmina XXXIV).

4. Manto de algodão verde escuro (2,48m por 1,12m): adornado com barrado amarelo de
16cm de largura. Em toda a borda existem franjas estreitas multicoloridas. O manto é
mostrado na Figura 5 (e). Os seres bordados neste manto são figuras mitológicas de origem
ornitomorfa, com caudas e asas que emergem de um tronco humano. As cabeças destes
seres são formadas por três apêndices em figura de serpente e de ave. Desta forma, são
onze aves mitológicas em cada barrado e 49 no centro do manto, distribuídas
escalonadamente. O desenho de uma delas pode ser visto na Figura 10.

Figura 10 - Ave mitológica bordada em manto cerimonial do fardo funerário nº 451 de Paracas.

Fonte: Tello (1959, lâmina XLI).

5. Manto de lã azul escuro (2,58m por 1,30m): apresenta um barrado de 15cm de largura,
totalmente bordado com fios de lã vermelha. Na borda, uma franja estreita multicolorida. O
manto pode ser visto, ainda em seu fardo, na Figura 5 (f). Em cada lado do barrado estão
onze figuras bordadas (total de vinte e duas) e na parte central do manto, estão 39 figuras,
dispostas em forma de xadrez. Todas elas são bordadas em fios coloridos de lã, de forma
similar aos outros mantos. As figuras são basicamente humanas, com a cabeça voltada para
um lado, conferindo a aparência de voo em posição horizontal. Existem adornos realistas e
simbólicos, alguns como apêndices em formato de serpentes. Portam um chapéu
trapezoidal, uma túnica com saia e diversos acessórios (colares, brincos, tiara, penachos de
penas, leques). Duas das figuras bordadas no manto podem ser vistas na Figura 11.

Figura 11 - Figuras bordadas em manto cerimonial do fardo funerário nº 451 de Paracas.

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Fonte: Tello (1959, lâmina XLVII).


Logo abaixo destes cinco mantos cerimoniais, surge a segunda camada protetora,
composta por dez pedaços de tecidos grosseiros, colocados uns sobre os outros, alguns
costurados, de modo a envolver o cesto que contém a múmia. Esta camada pode ser vista na
Figura 5 (g). Os tecidos desta camada são arrematados no extremo superior, por um tipo de
coque, amarrados por cordões ou fios grossos. Cinco destes tecidos são colocados como
enchimento, para obter a forma cônica do fardo. Dos tecidos que compõem esta capa protetoras,
alguns são feitos em uma só parte e outros são formados por duas peças longitudinais de tecido,
com dimensões que variam entre 4 e 9 metros de comprimento por 2 a 3 metros de largura.
Todos são tecidos rústicos, semelhantes aos que compõem a primeira capa protetora do fardo,
feitos de algodão, na cor branca ou bege.
Sob esta segunda camada protetora, encontra-se uma nova camada de objetos
cerimoniais. Os textos de Tello descrevem detalhes dos dez objetos cerimoniais desta camada,
mas não mostram, em figuras, sua disposição no fardo, como as camadas anteriores. Assim,
para os próximos objetos cerimoniais, esta pesquisa oferece apenas uma breve descrição de
suas características. Esta camada contém dez peças de vestuário, provavelmente de uso
corrente ou doméstico. Na sua maioria são mantos com barrados laterais e centrais, que são
enumerados a seguir:
1. Manto de algodão cor café claro (1,04m por 1,04m), com uma parte central plana e bordas
com uma barrado de lã bordado na cor roxa, com figuras de serpentes bicéfalas;
2. Manto de algodão alaranjado (2,79m por 1,43m), ornado com um barrado na cor cereja, com
15cm de largura. O manto tem na borda externa uma franja estreita e multicolorida. Está
ornado, como os outros mantos já descritos, com figuras mitológicas, também bordadas na
parte central e no barrado;
3. Manto de algodão verde escuro de forma retangular (sem medidas, deteriorado). É possível
identificar um barrado central, bordado com fios de lã, ostentando figuras coloridas de seres
mitológicos, com atributos serpentiformes. Tem uma borda feita em crochê, na forma de
triângulos;

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4. Manto cerimonial de algodão verde escuro (2,56m por 1,06m), tem um barrado central com
16cm de largura, bordado com lã marrom escura sobre a trama básica. É decorado com
figuras mitológicas antropomórficas multicoloridas, bordadas, com atributos serpentiformes;
5. Manto cerimonial de algodão cor café claro (2,60m por 1,05m). Tem um barrado central e
longitudinal com 16cm de largura, bordado com fios de lã vermelho escuro e com figuras
mitológicas multicoloridas bordadas. Estava dobrado em quatro partes, sobre o peito da
múmia;
6. Xale cerimonial de algodão na cor café claro (1,04m por 1,04m), adornado em toda a volta
com uma barrado bordado e um arremate externo em crochê. No barrado, estão bordadas
figuras bicéfalas multicoloridas, representando seres mitológicos;
7. Manto cerimonial de algodão verde escuro (2,57m). Possui um barrado central, com 8cm de
largura, todo bordado com fio roxo e com figuras mitológicas antropomórficas, com atributos
serpentiformes e coloridas. Também possui uma borda feita em crochê;
8. Manto cerimonial de algodão verde escuro (2,37m por 1,22m). Tem um barrado central e
longitudinal com 17cm de largura, feito com lã na cor vermelho escuro e bordado com figuras
mitológicas com características humanas. Estava dobrado em oito partes, colocado sob as
costas da múmia;
9. Manto cerimonial de algodão cor café escuro (2,73m por 1,05m). Apresenta um barrado
central e longitudinal na cor vermelho carmesim, com 16cm de largura, com figuras
mitológicas bordadas e com atributos serpentiformes, que emergem da boca e do corpo;
10. Túnica cerimonial, espécie de pequeno poncho de algodão, na cor creme (0,60m por 0,50m),
com abertura central e longitudinal, adornada com figuras realistas de felinos e aves.

Poucos detalhes sobre estes dez objetos estão desenhados nos textos de Tello. A
Figura 12, originalmente em preto e branco, mostra alguns desses detalhes. Em (a), barrado
bordado no xale descrito no item 6 (acima); em (b), diagrama da forma do manto de algodão,
com barrado central e bordas de crochê, descrito no item 4 (acima); em (c), figura mitológica que
adorna o manto descrito no item 5 (acima) e (d) barrado bordado do xale (item 6 acima), sendo
que a borda é tecida em crochê, na forma dentada.

Figura 12 – Detalhes dos objetos cerimoniais da segunda camada do fardo funerário nº 451 de Paracas.

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(a) (b) (c) (d)


Fonte: Tello (1979, p. 355).

Sob estes objetos cerimoniais, encontra-se a terceira e última camada protetora da


múmia. Ali se encontram diversos materiais, sendo os principais: cesto, pele curtida e pedaços
de tecidos simples. A pele curtida é de veado e fica estendida no fundo do cesto. Os fragmentos
têxteis de algodão de diversas qualidades estão colocados no cesto, como um tipo de
enchimento e como proteção da múmia. Além disso, diferentes tipos de oferendas rituais existem
dentro do cesto, dentre elas alguns pedaços pequenos de tecido e meadas de fios coloridos.
Estas últimas camadas do fardo podem ser vistas na Figura 5 (h) e (i), quando, por fim, surge a
múmia dentro do cesto.
O traje funerário em contato com o corpo estava fragmentado, não sendo possível
precisar seu formato - se era uma túnica, como aconteceu em outros fardos necrológicos de
Paracas, ou um outro sistema, de amarrações, por exemplo.

Considerações finais

Na presente investigação, descreveu-se apenas um dentre as centenas de fardos


funerários encontrados em Paracas. Pode-se afirmar que o traje funerário em si, neste fardo, era
o traje do qual restam apenas os fragmentos têxteis de algodão: um manto simples? Uma
túnica? Faixas? Não há como afirmar.
Se o traje funerário foi destruído, todos os outros trajes no fardo adquiriram o status de
adereço funerário. São roupas, paramentos que envolviam o conjunto funerário em camadas e,
em si, traziam importantes informações, como visto, daquela civilização tão antiga. Seu estudo
revela características sociais, culturais e permite formar um panorama da história dos têxteis
nesta região. As análises realizadas por Tello, tendo como base os objetos que compõem o
fardo funerário, podem ajudar a definir as características da pessoa ou da comunidade, quando
em vida, seus hábitos, posição social, entre outras. A riqueza e sofisticação dos bordados e dos
tecidos usados nos mantos exaltam a qualidade dos artesãos locais e seu estudo permite o
entendimento de diversas técnicas milenares de tecelagem, tingimento e de confecção e
bordados.

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Junto aos adereços não têxteis, e também como oferendas, aparecem outros itens,
como um leque de plumas, que sempre aparece em imagens que representam figuras
mitológicas ou xamãs. Cada material presente no fardo e fora dele, na célula sepulcral, marcada
por um bastão em muitos casos para identificação do sepulcro, tem um significado simbólico,
ainda que não estejam ainda todos muito claros. Rodríguez e Aguirre informam que esta questão
das oferendas, nas quais se incluem todos os têxteis, “traz um a possibilidade intrigante de que
se pensava que os indivíduos que foram enterrados com aqueles objetos teriam se transformado
em ancestrais míticos e, como tal, os objetos que os acompanhavam não eram nada mais do
que símbolos e emblemas de seu novo status” (2015, p. 26, tradução nossa).
Diante da monumentalidade adquirida por um simples fardo funerário, Rodrigues e
Aguirre abrem um espaço poético para uma reflexão, que se emprega aqui como epílogo:

Na imensa beleza da morte dos Paracas, os defuntos seguramente eram


concebidos como sementes, os fardos como bulbos de uma planta e os cemitérios
como pomares. A mensagem do rito mortuário era que a vida seguia para mais além
desta vida para dar origem a uma nova existência (2015, p. 18, tradução nossa).

Referências bibliográficas

ENGEL, Frederic. Paracas: Cien siglos de cultura peruana. Lima: Juan Mejía Baca, 1966.
PETERS, Ann. El cementerio de Paracas Necrópolis: Um mapa social complejo. Em Mantos
para la eternidad: Textiles Paracas del antiguo Perú, Ana Verde Casanova et al., pp. 27-36,
Ministerio de Cultura, Madrid, 2009.
RODRÍGUEZ, José Berenguer e AGUIRRE, Carole Sinclaire Mantos Funerarios de Paracas:
Ofrendas para la vida: catálogo da exposição. Santiago: Museo Chileno de Arte Precolombino,
2015, 96p.
TELLO, Julio C. Paracas. Primera parte. Lima: Institute of Andean Research de New York,1959,
309p.
TELLO, Julio C., XESSPE, Toribio M. Paracas. Segunda parte: Cavernas y Necrópolis. Lima:
Institute of Andean Research de New York, 1979, 523p.
VANSTAN, Ina. The fabrics of Peru. Leigh-on-sea: F. Lewis, 1966.
YACOVLEFF, Eugenio, MUELLE, Jorge C. Un fardo funerario de Paracas. Revista del Museo
Nacional v.3 (1-2): pp.62-138, 1934.
WIECZOREK, Alfried, ROSENDAHL, Wilfried. Mummies of the world. New York: Prestel
Publishing, 2010.

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Moda e traje de cena Tropicalistas

Tropicalist fashion and costumes

Sandra Regina Facioli Pestana


Escola de Comunicação e Artes – Universidade de São Paulo
sandra@teatrodesenhoritas.com.br

Resumo
O texto traça um panorama das transformações que o conceito de identidade cultural
brasileira sofreu entre os século XIX e XX, alcançando a década de 1960 e o movimento
Tropicalista. Observa as relações entre a moda internacional e nacional do período e o traje de
cena (figurino) de músicos tropicalistas e programas de comunicação em massa, refletindo sobre
como os trajes criticaram e corroboraram com as noções de identidade cultural vigentes.

Palabras-chave: Figurino – Moda - Tropicalismo

Abstratc
El texto delinea un panorama de las transformaciones que el concepto de identidad
cultural brasilera sufrió entre los siglo XIX y XX, llegando a la década de 1960 y al movimiento
Tropicalista. Observa relaciones entre la moda internacional y nacional del período y los
vestuários de músicos tropicalistas y programas televisivos de comunicación en masa,
reflexionando sobre como los vestuários criticaran y corroboraran con las nociones de idendidad
cultural vigentes.

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Introdução

O artigo deriva da pesquisa de mestrado Identidade cultural brasileira nos figurinos de


O Rei da Vela, realizada na ECA/USP sob orientação do Prof. Dr. Fausto Viana. Optou-se por
utilizar o termo “traje de cena” por se tratar de uma denominação mais ampla do que figurino que
tem sua origem nas gravuras do século XIX publicadas em revistas de moda. Assim, traje de
cena é a indumentária das artes cênicas e “pode abranger trajes de teatro, dança, circo, mímica,
performance (...), shows e espetáculos” (VIANA e BASSI, 2014, p.27). Essa mudança possibilita
ampliar a noção de figurino para além das vestes, levando à compreensão do traje de cena
como todo e qualquer material utilizado sobre o corpo do ator/performer durante uma
apresentação, bem como sua própria pele e as marcas que carrega, ou seja, leva ao
entendimento de que o “material recobrindo o corpo do performer não necessita ser tecido para
compor um traje” (VIANA e BASSI, 2014, p. 101).
O texto traça um panorama das transformações que o conceito de identidade cultural
brasileira sofreu no decorrer do século XIX ao XXI, desde as teorias evolucionistas e racistas,
sua reelaboração baseando-se no conceito de cultura híbrida, alcançando a década de 1960 e o
movimento Tropicalista.
Aborda a moda internacional e nacional dos 1960, especialmente as iniciativas da
empresa francesa Rhodia, suas estratégias de marketing e o diálogo com artistas tropicalistas
para a introdução de tecidos sintéticos e artificiais no mercado brasileiro.
Observa os usos de trajes sociais e trajes de cena como ferramentas de transgressão
para músicos tropicalistas, bem como a utilização desses trajes em produções de cultura de
massa, como os Festivais da Canção e o programa televisivo Discoteca do Chacrinha, refletindo
sobre como os trajes criticaram e corroboraram com as noções de identidade cultural vigentes.

Identidade Cultural – transformações conforme ideologias da cultura


Anos 1930 - construção da noção de Identidade Cultural

A noção de uma identidade cultural de abrangência nacional é uma ideia forjada por
intelectuais e políticos desde meados do século XIX. O “Tratado de Comércio” firmado com a
Inglaterra exigia a extinção da escravidão (AZEVEDO, 1987, p.39), o que a princípio gerou
apenas questões ligadas à falta de braços para o trabalho e ao medo de rebeliões da população
negra. Porém, posteriormente, a elite do país viu a necessidade de formar uma nação com uma
população identificada com a ideia de pátria, de sociedade brasileira (idem, p.252).

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Bases denominadas “científicas”, forjadas por teorias de evolucionismo social, foram


formuladas na Europa e influenciaram políticos e precursores das ciências sociais no Brasil. As
disciplinas tinham em comum um aspecto: a evolução histórica dos povos: “o ‘simples’ (povos
primitivos) evolui naturalmente para o mais ‘complexo’ (povos ocidentais)” (ORTIZ, 1985, p.14), o
que legitimava a supremacia da Europa, colocando-a como meta a ser alcançada.
Diversos reformadores sociais propuseram que a formação da sociedade brasileira fosse
baseada na substituição física do negro pelo imigrante europeu (AZEVEDO, 1987, p. 60). Assim,
políticos e intelectuais se engajaram na criação da imagem - encorajadora para os imigrantes -
de paraíso racial, mestiço e sem preconceitos, criando a metáfora do “Brasil cadinho” constituído
pela fusão de três “raças”: o índio, o europeu e o negro (ORTIZ, 1985, p. 21).
Porém, foi preciso transcorrer as primeiras décadas do século XX, marcadas pela forte
urbanização e industrialização, a consolidação da classe média, o surgimento do proletariado
urbano e a passagem das políticas imigrantistas de projetos para ações efetivas, para que
mudanças profundas na cultura e na sociedade pudessem ocorrer.
Nesse período, artistas brasileiros e imigrantes europeus residentes no Brasil, através do
Modernismo1 e da Vanguarda Antropofágica2, celebraram todas as rápidas transformações e
festejaram o caráter mestiço com Macunaíma3 e a Antropofagia4 - vista enquanto valorização da
mestiçagem, como uma tentativa de afirmação da alteridade brasileira.
A década de 1920 terminou com a quebra da bolsa de Nova York e os anos 1930
iniciam com a ditadura de Getúlio Vargas. O Estado passou a definir diretrizes culturais e uma
nova interpretação do Brasil fazia-se necessária, o que se consolidou com o livro Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freyre. Esta obra transformou a metáfora do Brasil cadinho5 em “mito
plausível”, o que não somente encobriu os conflitos raciais como possibilitou a todos se
reconhecerem como nacionais (ORTIZ, 1985, p.44).

1 O Movimento Modernista desdobrou-se no decorrer da década de 1920 em diferentes grupos, extrapolando o


campo de propostas de renovações estéticas atingindo reivindicações de transformações sociais - alguns grupos
orientaram-se à esquerda, como o que tinha à frente Oswald de Andrade, outros à direita, como o grupo Verde-
Amarelo, liderado por Plínio Salgado, também fundador da Aliança Integralista Brasileira, movimento com
tendências fascista.
2 A Vanguarda Antropofágica derivou-se dos Modernistas e radicalizou suas ações, desenvolvendo-se entre 1928 e

1930, podendo ser representada pela segunda fase da Revista de Antropofagia (BOAVENTURA, 1985, p.5)
3 Livro de Mário de Andrade, escrito em 1926, inspirado na obra Vom Roraima zum Orinoco, do etnógrafo alemão

Koch-Grünberg, que colheu na Amazônia (Brasil e Venezuela), um ciclo de lendas dos índios taulipangues e
arecunás. Mário fez algumas modificações na lenda original (PARRA, Publicações IEL, s/data, p.4)
4 Reelaboração do conceito de antropofagia (canibalismo) que transformou a visão eurocêntrica negativa do

selvagem americano, adepto do canibalismo, através da visão positiva e inovadora de Oswald de Andrade que
entendia que exatamente a índole canibal permitiria, na esfera da cultura, a assimilação crítica das ideias e modelos
europeus, deglutindo as formas importadas para produzir algo genuinamente nacional.
5
Vaso de material resistente ao fogo geramente com o formato de um tronco de cone, usado para fundir ('derreter',
'reunir, misturar') ou calcinar minérios e minerais (especialmente metais) ou para realizar certas operações químicas
ou fisioquímicas que exigem altas temperaturas; crisol (HOUAISS, 2001, s/p).

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Na mesma década e na seguinte, outros dois sociólogos contribuíram para a construção


da identidade cultural brasileira no imaginário nacional: Sérgio Buarque de Holanda6 e Caio
Prado Júnior7 que, ao lado Gilberto Freyre tornaram-se uma espécie de “santíssima trindade” da
formação social do Brasil. Os traços que definem o país, apontados pelos três intelectuais, ora
são encarados como conceitos que sobreviveram apesar das diretrizes do Estado Novo, ora
como contribuintes delas (ORTIZ, 1985, p.44). De qualquer forma, estenderam-se para além da
ditadura de Vargas, atravessando o governo de Kubitschek através do ISEB - Instituto Superior
de Estudos Brasileiros8, repercutindo nos intelectuais dos anos 1960.

Anos 1960 - Desconstrução da Identidade Cultural Brasileira

O ISEB remodelou o conceito de cultura analisando a questão do ponto de vista


filosófico e sociológico, não mais da perspectiva antropológica como haviam feito Silvio Romero9
ou Gilberto Freyre (idem, p. 45). O instituto erigiu a nação como categoria central de reflexão
encobrindo, assim, as diferenças de classes, levando a “uma noção de ‘povo’ apologética e
sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpenzinato, a
intelligenzia, os magnatas nacionais e o exército” (SCHWARZ, 1978, p.65)10. Entretanto, no
período consolidou-se no Brasil a sociedade de consumo, o mercado cultural e o sistema
televisivo em rede nacional. Essa consolidação do mercado brasileiro de bens culturais foi um
dos principais fatores a contribuir com a noção de identidade cultural forjada no período.
Após o golpe de 64, o governo militar não adotou apenas uma política de repressão,
mas também de “integração nacional”. O Estado militar percebe a eficácia dos meios de

6 Jornalista e escritor, autor de Raízes do Brasil, buscava um “instrumental conceitual flexível para entender melhor
o Brasil em sua gênese” (KONDER, Revista Espaço Acadêmico)
7 Autor de Formação do Brasil Contemporâneo desenvolveu teorias grandemente difundidas no Brasil, como os

conceitos de colônia de exploração e colônia de povoamento, através da “nacionalização do marxismo’, a tradução


dessa teoria para as condições de uma realidade específica, a brasileira”. (RICUPERO In BOTELHO/SCHWARCZ,
2009, p. 230/231)
8 Fundado no início do governo de Juscelino Kubitschek manteve-se ativo até 13 de abril de 1964. Teve como um

dos principais idealizadores o sociólogo Hélio Jaguaribe, mas em seu quadro contava também com Sérgio Buarque
de Holanda e Gilberto Freyre, entre outros relevantes pensadores. Dentro do Instituto, vinculado ao Ministério da
Educação, conviviam intelectuais das mais diversas ideologias: liberais, comunistas, socialdemocratas e
remanescentes do integralismo, que tinham como meta “formular um projeto ideológico comum para o Brasil”
(TOLEDO, 2005). O ISEB foi uma das instituições mais influentes do desenvolvimentismo, atingindo diversos
setores da economia e da cultura brasileira, a tal ponto que organizações expressivas do período pautaram suas
práticas pelas teorias desenvolvidas ali (ORTIZ, 1998, p. 48).
9 Sílvio Romero, o crítico literário sergipano, ao lado do médico baiano Nina Rodrigues e o jornalista fluminense

Euclides da Cunha abriram caminho para os estudos das ciências sociais no Brasil e iniciaram a longa discussão
sobre a identidade cultural brasileira.
10 Para compreender como se desenvolveu este pensamento pode-se consultar Cadernos Brasileiros, Quem é o

Povo no Brasil? De Nelson Werneck Sodré. Para visualizar uma crítica às consequências desse pensamento assistir
Terra em Transe, de Glauber Rocha.

ISSN: 2358-5269 Ano4


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comunicação de massa nesse sentido e cria diversas instituições11, formadas somente por
intelectuais conservadores, dando continuidade ao pensamento desenvolvido no final do século
XIX (ORTIZ, 1985, p. 91)12. Cria o Sistema Nacional de Telecomunicações (1967), mas,
principalmente, firma parcerias com a iniciativa privada, consolidando os grandes conglomerados
que controlam esses meios ainda hoje, como a Rede Globo e a Editora Abril (ORTIZ, 1988,
p.83).
Essa união era entendida pelo Estado como “unificação política das consciências”
(ORTIZ, 1988, p. 118), enquanto que os empresários entendiam como desenvolvimento de
mercado (idem), levando à ilusão de que a identidade brasileira se efetivava (ibidem, p. 181).
Porém, o que de fato se efetivou foi a indústria cultural, bem como o reflexo da sociedade criado
pela sua perspectiva.
A reafirmação do mito do Brasil cadinho criou no imaginário nacional a ideia de
aculturação pacífica, em que a cultura do “branco” entrou em contato com a cultura do “negro”,
subentendendo uma forma pacata de contato, sem levar em consideração as mazelas e a
violência do sistema escravista. Desta forma, o Estado autoritário travestiu-se em democracia
através do conceito de harmonia entre partes heterogenias, e a cultura brasileira concretizou-se
como espontânea, sincrética e plural (ORTIZ, 1985, p.91-96).

Tropicalismo

Nos anos 1960, uma série e ações espontâneas e independentes foram realizadas por
jovens artistas que, embora de forma isolada, tinham a mesma percepção sobre a realidade
nacional em termos políticos, culturais e artísticos: a existência concomitante da miséria, do
subdesenvolvimento e das aristocracias arcaicas ao lado das vanguardas artísticas, das
inovações eletrônicas, da industrialização e modernização das cidades.
Desta forma, o que depois recebeu o nome de Tropicalismo, como sintetiza Roberto
Schwarz, “apropriou-se de aspectos arcaicos da cultura para, jogando-os com os recursos mais
modernos da era eletrônica, fazer a ‘alegoria do Brasil’” (1978, p. 45).
Neste período circulava no Brasil, entre os intelectuais, os conceitos de esquerda que
valorizavam muito mais uma postura anti-imperialista do que anticapitalista (idem, p.35), com

11Conselhos (como o Federal de Cultura - CFC) e Comissões (como a de Cultura Popular).


12Este argumento é desenvolvido por Ortiz da seguinte forma: ao mencionar Casa Grande & Senzala, de Gilberto
Freyre, editada em 1930, o autor coloca a obra como continuísta dos trabalhos de Romero (realizados na virada do
século XIX para o XX), afirmando que Freyre apenas fizera a troca do conceito de raça por de cultura;
posteriormente Ortiz esclarece que Freyre foi um dos integrantes do CFC - Conselho Federal de Cultura criado
durante a ditadura militar (ORTIZ, 1985, p. 93, nota nº 28).

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aquela formulação de “povo” que abrangia desde as massas trabalhadoras aos magnatas. Além
disso, efervescia no país influências estrangeiras, como a música pop e a eletrônica, os Beatles,
Bob Dylan, o movimento hippie e o cinema de Goddard (LONTRA In CYNTRÃO, 2000, p. 39).
Assim, em 1967 artistas de diversas áreas buscaram insubordinar os valores vigentes,
romper com as linguagens institucionalizadas e interromper o tal discurso mítico-nacionalista
(idem, p. 40). Porém, após 1968, com o AI-5, as redes de comunicação passaram a reforçar a
divulgação do “milagre econômico” e da imagem do “Brasil Potência” (ibidem, p. 39), podando
qualquer manifestação oposta.
O movimento teve um momento de forte efervescência e posteriormente se extinguiu
tal como era, mas deixou marcas profundas na cultura brasileira. Pode-se dizer que o
Tropicalismo teve um período embrionário sintetizado nas ideias do trio Rogério Duarte (designer
gráfico), Hélio Oiticica (artista plástico, responsável pela revolucionária instalação Tropicália) e
Luis Carlos Saldanha (fotógrafo).
A influência dos três marcou toda uma geração de artistas: Glauber Rocha que com o
filme Terra em Transe provocou total identificação no elenco do Teatro Oficina, ao ponto de a
companhia dedicar ao cineasta a estreia de O Rei da Vela, peça que por sua vez, foi assistida
por Caetano Veloso antes de compor Tropicália (CORRÊA, 1972, In STAAL, 1998, p. 163). A
música recebeu tal título de Luís Carlos Barreto, também integrante do Cinema Novo, a partir da
obra de Oiticica.
Entretanto, um artigo de Nelson Motta (1968) mostrou-se como um dos fortes
elementos que aglutinou as ações individuais como movimento artístico, além de trazer em si
alguns estereótipos que seriam amplamente associados a este, à moda e à vida em países
tropicais, como relata Caetano Veloso:

A ideia de que se tratava de um movimento ganhou corpo, e a imprensa, naturalmente,


necessitava de um rótulo. O poder de pregnância da palavra tropicália colocou-a nas
manchetes e nas conversas. O inevitável ismo se lhe ajuntou quase imediatamente. Nelson
Motta, um letrista carioca da nossa geração, amigo querido nosso e de toda a turma da
segunda geração da bossa nova no Rio, iniciando-se então no jornalismo (e na TV), escreveu
um texto em que batizava o movimento com esse nome de "tropicalismo" e, extraindo da
própria palavra um repertório de atitudes e um guarda-roupa folclórico - calcado no estereótipo
do homem brasileiro de antigamente, sempre de terno branco e chapéu de palhinha, tomando
xaropes de nomes esquisitos contra a tosse, languescendo sob uma palmeira -, inaugurou
ingênua e despretensiosamente o que viria a ser uma longa série de interpretações das
características do movimento.
Era na verdade uma declaração de adesão por parte de Nelsinho a uma onda a que se
opunham, entre indignados e desconfiados, todos os seus (e nossos) colegas do Rio. Eu, que
me resignara a "Tropicália" por falta de opções que surgissem a tempo - e que julgara que a
canção afinal não seria tão afetada pelo título -, engolia mal esse xarope tropicalista. As

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imagens passadistas e folclorizantes me desgostavam - o "astronauta"13 do titulo de Marcos


Vasconcellos estaria mais próximo da minha ideia de roupa ligada à nossa onda do que os
ternos brancos, embora esses fossem bonitos e pudessem, mais tarde, ser incluídos
(VELOSO, 1997, p. 131)

O relato de Caetano Veloso sobre o texto de Nelson Motta demonstra como moda, arte
e traje de cena estavam intimamente relacionados no contexto das transformações culturais
brasileiras do período, marcadas pela forte industrialização da cultura e dos meios de produção,
bem como pela busca (de uma parcela da sociedade, dos intelectuais e artistas) e pela
imposição (por parte do regime militar integralista) de uma identidade nacional. A seguir será
visto como a indústria cultural e da moda operaram nesse sentido, bem como algumas iniciativas
que tentaram desconstruir essa imagem ufanista, folclórica e apologética.

Moda Tropicalista

Na década de 1960, consolidava-se no Brasil a indústria cultural, a indústria da moda e


o prêt-à-porter. Os tecidos artificiais e sintéticos e os vestidos com silhueta em ‘A’, que podiam
ser feitos dentro de medidas padronizadas e em massa, barateavam imensamente o custo final,
acompanhando a aceleração do ritmo de vida do pós-guerra (SANTANNA, 2000, p. 82).
A pop art criticou e rompeu as barreiras entre a cultura de massa, o consumo e arte. A
moda internacional nos anos 1960 foi marcada pelos vestidos Mondrian e pela coleção Pop Art,
de Yves Saint Laurent; pela série Vestidos-sopa de Andy Warhol, composta por peças
descartáveis confeccionadas no pioneiro TNT (tecido-não-tecido); ou ainda criações futuristas de
Pierre Cardin influenciadas pela corrida espacial.
Outra vertente, derivada do movimento hippie, negava as novidades tecnológicas e os
tecidos sintéticos, valorizando elementos naturais e peças de segunda mão, inspirando-se em
culturas orientais como a Índia e o Marrocos, tais como as criações de Emilio Pucci (idem, p. 86).
Na moda nacional, as iniciativas da empresa francesa Rhodia buscavam dialogar com
as tendências mundiais criando uma moda brasileira, inspirada em produtos e elementos da
cultura nacional. As coleções Rhodia, que atualmente pertencem ao acervo do MASP, foram
produzidas como estratégia de marketing para introduzir o filamento sintético no país (ibidem, p.
134).

13
Música de Marcos Vasconcellos e Pingarrilho, compositor e violonista, que a achavam “totalmente dentro da
temática moderna e futurística” do então novo repertório de Caetano Veloso que, apesar do título da canção,
descordou e não a gravou (VELOSO, 1997, p.130).

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A Rhodia buscou juntar alta cultura e cultura popular tanto na construção das vestes
quanto da estrutura dos desfiles-shows, consolidando a “liberdade de escolha de materiais e
referências para processos criativos” (BUENO, 1999, p. 219 apud SANTANNA, 2000, p. 158).
Patrícia Santanna observa o apelo da empresa na utilização de elementos ‘tipicamente
brasileiros’ como estratégia simbólica para conquistar o ‘povo brasileiro’ e coloca-lo na lógica da
moda industrial, ao mesmo tempo em que o convencia do consumo e uso do têxtil sintético.
Assim foram criadas coleções como a linha Café, de 1960, ou como Brazilian Style de
1964/1965, que contava com “brasilidade autenticada” pela passagem de costureiros, modelos e
coleções por locais como Ouro Preto, Salvador e Brasília (2010, p. 106), ou ainda o desfile-show
Momento 68 que apresentou uma coleção inspirada no Tropicalismo e contava com a
participação de Caetano Veloso e Gilberto Gil14 (VELOSO, 1997, p. 141).
Lívio Rangan, gerente de marketing da Rhodia, partia de estratégias que aliavam a
mídia (como a Bloch Editores, através da revista Manchete), empresas têxteis nacionais e a
Alcântara Machado (organizadora da FENIT - Feira Nacional da Indústria Têxtil), empresas
internacionais (como Air France) e até mesmo o poder público, através do Ministério das
Relações Exteriores. As instituições eram parte de uma rede de relações e de arranjos que viam
na moda industrial um bem cultural a ser desenvolvido e promovido junto à população brasileira
e que colaborava, também, para a construção de uma imagem do Brasil fora do país
(SANTANNA, 2010, p. 117).
Do mesmo modo, tais associações operavam na transformação do gosto do vestir-se
(substituindo o têxtil natural, especialmente de algodão, de ampla produção no país, pelos têxteis
sintéticos e artificiais) e na consolidação do imaginário nacional do que se entendia como
tipicamente brasileiro. Para isso, além das parcerias citadas a Rhodia patrocinava programas de
TV, como o I Festival de Música Popular Brasileira, da TV Excelsior (1965) e realizava os
desfiles-shows, primeiramente na Europa, depois em São Paulo e no Rio de Janeiro, para então
realizar versões itinerantes em quase todo o país (idem).
A Rhodia aglutinou as suas ações em eventos que

14 Participaram também dos desfiles-show músicos como Rogério Duprat, Rita Lee, a banda Brazilian Octopus,
entre outros (SANTANNA, 2010, p. 118). Alceu Penna atuava como figurinista, estilista e ilustrador, Licínio de
Almeida como diretor de arte. Cyro del Nero participou de forma constante como cenógrafo. Dener Pamplona,
Clodovil, Guilherme Guimarães, Jorge Farré, Ugo Castellana e José Ronaldo como estilistas/confeccionistas. Os
roteiros dos desfiles eram de autoria de Millôr Fernandes, Flávio Rangel, Torquato Neto e Carlos Drummond de
Andrade. Os desfiles eram geralmente coreografados por bailarinos como Lennie Dale (coreógrafo da Broadway). E
as trilhas sonoras eram feitas por Gilberto Gil, Tim Maia, Jorge Ben (hoje Jorge Benjor), Caetano Veloso, Tom Zé,
Júlio Medaglia, Rogério Duprat, Diogo Pacheco e pelas bandas Mutantes e Brazilian Octopus e eram executadas ao
vivo. Além de uma série de artistas plásticos que desenvolveram estampas para as coleções (SANTANNA, 2010, p.
124).

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proporcionavam não só a disseminação da informação de moda, mas a expressão


genuína de um país que acabara de ser inserido no processo mais amplo do capitalismo
industrial mundial, mas que não desejava perder suas referências artístico-culturais, isto é, os
elementos que o grande público identifica como caracterizadores do que vem a ser o Brasil. Os
desfiles-show da Rhodia possuem o mesmo tipo de força e impacto que os shows musicais do
movimento tropicalista, afinal, as contradições e tensões socioculturais existentes no país são
matéria criativa para se produzir uma expressão plástico-performática-musical-poética que se
alimentava tanto das informações internacionais quanto dos costumes e gostos locais, criando
uma amálgama antropofágica que fundiu tudo isso e criou algo novo: a coleção Rhodia
(ibidem, p. 160).

Traje Tropicalista e Comunicação de Massa

Os desfiles-show da Rhodia tinham como meta alcançar todo o país, o que foi possível
graças à associação que Lívio Rangan fez entre a empresa, os meios de comunicação de massa
e os artistas tropicalistas, especialmente os músicos.
Segundo Caetano Veloso sua participação e a de Gilberto Gil no desfile-show
Momento 68 se deram a partir de uma promessa da Rhodia de patrocinar um possível programa
tropicalista na TV e pelo fato do evento ser integrado também por um balé dirigido por Lennie
Dale, por contar com o escritor Millôr Fernandes e “com um diretor de teatro respeitado e com
dois grandes atores” (VELOSO, 1997, p.141). Entretanto, Veloso relata que os dois cantores
quando iniciaram os ensaios acharam que
o negócio era estranho. Não apenas os nossos números eram entreatos dos desfiles, como os textos
eram de uma assintonia atroz com nosso estilo e com tudo o que nos interessava. Os figurinos que
tínhamos que usar eram horrivelmente estilizados (sem que faltassem os ternos brancos "tropicalistas")
e as piadas ditas pelos dois atores eram caretas. No entanto, tínhamos assinado os contratos e, embora
achássemos tudo aquilo ridículo, contávamos com a camaradagem dos bailarinos, do coreógrafo, dos
atores e, apesar das limitações impostas pelo produtor, das modelos. O diretor não tinha tempo para
conversas, mas era gentil e flexível.
Achávamos jeito de ir aguentando. Mas eu me assombrava com o absurdo da situação: os
temas da "contracultura” eram abordados em tom de piada de clube social, e nós dois estávamos ali,
sobre aquele palco. Era a visão jornalística superficial das marcas do período – um aspecto grotesco do
que se poderia chamar de um "narcisismo de época". (...) Como esse show pretendia ser uma síntese
do que vinha sendo o ano de 1968, e como ele tentava realizar essa pretensão de modo alheio e falso, a
lembrança desse evento é débil em minha mente, mas parece um outro (sic) ano de 68, virtual e
paralelo, fantasmagórico, uma realidade esquálida mas coerentemente fechada em si mesma (idem).

Talvez o desfile, dialogasse mais com a imagem projetada pelo citado artigo de Nelson
Motta, escrito em 1968 em tom de manifesto irreverente, que incitava o leitor a “assumir
completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem
cogitar de cafonice ou mal gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela
encerra ainda desconhecido” (MOTTA, 1968, s/p). Motta, cita uma “moda tropicalista” que inclui
além do terno de linho branco referido anteriormente por Veloso, camisas de nylon, gravatas de

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rayon e “calças idênticas às de Renato Borghi em O Rei da Vela, as calças pansexuais15”(idem).


Além do uso de cores como “turquesa, laranja, maravilha e verde-amarelo” (ibidem), uso
excessivo de laque para mulheres e tintura de cabelo para homens, sapatos bicolores
masculinos, sapatos femininos de cetim, comemorações ao livre “com fritada de vagem e
garrafas de guaraná com leite dentro, rolhas de papel de pão” (ibidem). Tudo “por um mundo
tropical! Pelo sol! Pela ginga do brasileiro! Viva o trópico! Viva o trópico! Viva o trópico!” (ibidem).
O texto, apesar de repleto de imagens passadistas e folclorizantes que desgostavam o
cantor baiano, inaugurou as interpretações do movimento tropicalista. Com uma dubiedade
característica das ações da tropicália, o artigo-manifesto evidencia o movimento de difusão dos
tecidos sintéticos e artificiais e de exaltação do que era tido como “tipicamente brasileiro”, feito
pela indústria nacional da moda e pela mídia. Bem como apresenta uma série de materiais,
cores e justaposição de elementos que tangenciaram a estética dos artistas tropicalistas.
Os Festivais da Canção16 em que se apresentavam os músicos tropicalistas foram
palco não somente para uma nova música, mas também para uma nova postura do artista frente
ao público. As apresentações, aos poucos, se tornaram happenings e os artistas foram
estruturando uma linguagem visual através de sua indumentária (FAVARETTO, 1979, p. 34).
As roupas fundiam as novas tecnologias têxteis da era industrial, como o vinil, com
peles animais, fios e tomadas elétricas, agregando ainda colares e elementos da Umbanda e do
Candomblé, ou trajes caipiras; ou então, principalmente no caso de Gilberto Gil, batas com
estampas marroquinas, além de acessórios que remetiam às culturas africanas. Tais fusões
operavam como um “lembrete do nosso subdesenvolvimento” como observou Veloso em
entrevista para Revista Veja (VELOSO, 1968, p.55).
Foi nesse contexto que Regina Boni – então, já divorciada do diretor de TV José
Bonifácio Sobrinho, o Boni - iniciou sua carreira como figurinista e estilista. Exerceu a profissão
até pouco depois do AI-5, quando migrou para artes plásticas, posteriormente tornou-se
marchand e consultora de arte para colecionadores (SANCHES, 2010, s/p).
Os passos iniciais de trajes de cena tropicalistas nos Festivais da Canção foram dados
por Caetano Veloso, que rompeu com a tradição do uso de smoking, entrando no palco para
cantar Alegria Alegria usando um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê (sic) laranja-

15
Renato Borghi (e outros atores) tinha um triângulo de tecido igual ao da calça, utilizado por cima desta, tal como
as braguettes ou codpieces medievais, “uma seta de pano, apontando o sexo” (CORRÊA In CENTRO CULTURAL
CORREIOS, 2006, p.18), que simbolizava a “franca camaradagem sexual”, única forma de estabilidade no país
(ANDRADE, 1976, p. 55) e caracterizava o personagem como “autêntico” brasileiro, um homem de excessos,
principalmente de paixões sexuais, um senhor da Casa Grande de Gilberto Freyre (PESTANA, 2012, p. 73).
16
Festivais organizados e transmitidos ao vivo pela TV Record. Em outubro 1967 Edu Lobo, Caetano Veloso,
Gilberto Gil e Os Mutantes, e Roberto Carlos foram vencedores (NIGRI, 2010, p. 26).

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vivo, acompanhado da banda argentina Beat Boys, cujos integrantes surpreenderam a plateia
com seus cabelos longos, suas roupas cor-de-rosa e suas guitarras elétricas de madeira maciça
(VELOSO, 1997, p.118).
Se observadas as proporções alcançadas futuramente pelos trajes do cantor, pode-se
afirmar que o debut deu-se de forma discreta. Posteriormente, quando das preparações para
apresentação de É Proibido Proibir, Regina Boni, então amiga do casal Caetano e Dedé Veloso,
chamou a atenção de ambos para o impacto que as roupas poderiam causar, extrapolando a
simples troca de smokings por ternos coloridos.
O casal Veloso incumbiu Regina Boni de criar trajes de cena capazes de alcançar o
efeito sugerido. Assim, em um determinado momento, Caetano Veloso vestia-se com “roupa de
plástico verde e preta, o peito coberto de colares feitos de fios elétricos com tomadas nas
pontas, correntes grossas e dentes de animais grandes” (idem, p. 208).
A relação do casal com as possibilidades transgressoras dos trajes ultrapassou o
âmbito da cena, como é perceptível no relato de Veloso sobre as roupas escolhidas para seu
casamento com Dedé, realizado em fevereiro de1967: ela usava um vestido curto cor-de-rosa
com um capuz da mesma cor e Caetano um terno e a camisa de gola rolê e levava uma grande
flor amarela nas mãos (ibidem, p.132).
Regina Boni criou também figurinos para o apresentador de TV Abelardo Barbosa, o
Chacrinha. Originário do rádio, iniciou a carreira com “Cassino do Chacrinha”, programa em que
ele criava, através da sonorização, o ambiente de um cassino, com direito a simulados
“parabéns à você” cantados ao fundo (BARBOSA, 1969, p.88). Posteriormente, quando seu
programa foi transferido para televisão, a confusão que antes era produzida pelos sons foi
transferida para o visual, especialmente para as roupas do apresentador (idem, p. 126).
Inicialmente o Chacrinha usava smoking e gravatinha borboleta, uma buzina, um
enorme disco de telefone e um boné de jóquei, fazendo alusão jocosa ao disc-jockey (ibidem,
p.126). Com a participação de Regina Boni na construção do traje de cena, sem abandonar a
buzina ou o disco de telefone, a caracterização do apresentador transformou-se em fraques de
lamê com calças de chitão e ampla cartola, que lhe conferiam um aspecto de Tio Sam
tupiniquim.
Abelardo Barbosa lançou artistas como Agnaldo Ryol, Roberto Carlos, Elis Regina e
contribuiu para “criar a atmosfera tropicalista que deu condições para o aparecimento de talentos
como os de Caetano Veloso, Jorge Bem Jor, Gilberto Gil, Wilson Simonal, Gal Costa, Geraldo
Vandré, Os Mutantes, Macalé, Capinam” (idem, p.138). O apresentador chegava a duvidar se
antes do chacrismo estes artistas seriam aceitos tão completamente (idem).

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Regina Boni passou, então, a criar trajes para Roberto Carlos, Erasmo Carlos e
Wanderléia. A repercussão na mídia foi enorme levando-a a abrir uma loja em São Paulo,
inaugurada com o nome de Ao Dromedário Elegante, cujas roupas:
(...) procuravam romper com a prisão que era a roupa naquele tempo, que obrigava a pessoa a
ter uma determinada postura para sentar, pra levantar, pra se mexer. E trabalhava com materiais fora do
sistema de distribuição. [Eu] Comprava em bazar antigo no Brás, na Mooca, vinham os tecidos, os botões
de época, eu usava tudo. Fazia casacos de pele de coelho, que hoje em dia está na moda, mas fazia em
rosa-choque, amarelo, verde. E também minhas roupas eram baratas. Era uma política de democratização
da moda. (SANCHES, 2011, s/p.)

Compreende-se que Boni se refere à alta costura e não ao prêt-à-porter ao falar sobre
diminuição de custos e democratização da moda. Seus dialogaram com as criações nacionais e
internacionais da moda e das artes da década de 60 e para alguns músicos tropicalistas
operaram como instrumento transgressor de estereotipias criadas pela indústria cultural e pela
mídia sobre o que era “tipicamente brasileiro” ou o que era “tipicamente baiano”, regionalista,
folclórico. Outro relato de Caetano Veloso, referente ao início da carreira de sua irmã Maria
Bethânia17, oferece elementos que contribuem para essa reflexão.
Veloso conta como as primeiras experiências vividas por Bethânia na substituição de
Nara Leão no show Opinião, em 1965, foram perpassadas por estratégias de marketing e de
alteração/construção da figura da cantora. Caetano observa que “Nara era uma moça típica da
Zona Sul do Rio de Janeiro - branca, bonitinha e moderna” (1997, p. 49) e acredita que foi difícil
para o diretor Augusto Boal, os autores e produtores Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar,
Paulo Pontes e Armando Costa encontrar um modo de apresentar Bethânia, que não era uma
típica menina branca de classe média, ao público acostumado com a figura de Nara de Leão
(idem):
(...) para todos que só começaram a conhecê-la então, Bethânia chegou com uma marca de
regionalismo que para nós foi motivo, a princípio de surpresa curiosa e, em breve, de
embaraços e mal-entendidos que, na verdade, nunca se desfizeram de todo. (...) o cabelo
preso atrás num penteado que neutralizava as questões racial, etária e de beleza pessoal, e
dava um ar de seriedade digna e um tanto dessexualizada, foi uma criação da equipe do show,
mas passou a ser visto como algo que tinha vindo da Bahia com ela. Durante muito tempo
Bethânia teve dificuldades de se desvencilhar publicamente desse penteado (e da imagem de
cantora de protesto nordestina) e, ao voltar ao Rio depois de uma temporada em São Paulo,
onde trabalhou em outros espetáculos dirigidos pelo mesmo Augusto Boal do Opinião - e de
um período de respiração na Bahia -, ela usou, em shows, uma peruca de longos cabelos lisos,
e foi, pela primeira vez (porque isso se repetiu em diversas ocasiões ao longo dos anos),
criticada por deixar as canções revolucionárias de "sua" região por um punhado de sambas-
canções, boleros e baladas sentimentais (VELOSO, 1997, p. 49).

17
Maria Bethânia foi indicada por Nara Leão para substitui-la no show Opinião. Caetano Veloso, ainda
desconhecido do grande público, foi a Rio de Janeiro a pedido do pai apenas para acompanhar a irmã, então menor
de idade (VELOSO, 1997, p. 49).

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Considerações finais

A noção unificadora de identidade cultural brasileira - forjada desde meados do século


XIX com o mito de paraíso racial, respaldada nos anos 1930 pelo mito de aculturação pacífica, e
nos anos 1960 pela disseminação nos meios de comunicação em massa de ideais integralistas
de direita, bem como pela aproximação seletiva da burguesia progressista com o proletariado -
foi alvo da crítica tropicalista, que buscou interromper o discurso mítico-nacionalista rompendo
com as linguagens institucionalizadas, através da liberdade criativa proporcionada pela fusão de
linguagens.
Os trajes de cena tropicalistas buscaram operar de forma crítica quanto ao populismo e
à ânsia de construção de uma cultura brasileira unificadora e apaziguadora das diferenças
sociais e raciais, que não acarretava em um envolvimento real das elites, mas levava à diluição
do que antes se restringia a determinados setores e lhes conferia identidade dentro de inúmeras
divisões que marcam a sociedade brasileira.
Porém, nos anos 70 e 80, a aparência tropicalista, antes crítica enquanto traje de cena,
ao passar a ter modelos disponíveis para consumo em peças exclusivas - como as de Ao
Dromedário Elegante, onde algumas pessoas podiam consumir “um traje protesto”, adquirido em
loja de bairro nobre paulistano18 - e ao serem produzidos no prêt-à-porter, com materiais
artificiais e sintéticos de baixo custo, deixou de ser uma contravenção e passou a corroborar com
a ideia do mau gosto como caráter nacional, retroalimentando a imagem de exóticos seres
tropicais. De exóticos, pois tropicais. É a ambiguidade que marca a justaposição das
disparidades operadas pelo tropicalismo, parafraseando Ismail Xavier.
A indústria da moda e os meios de comunicação de massa, no processo de forja de
unidade nacional em que se engajaram, visando criar uma unidade de mercado com aparência
de unidade de nação apropriaram-se do movimento tropicalista utilizando suas críticas como
características nacionais, contribuindo para manutenção da imagem do país como local de
“contrastes pitorescos, onde nenhum dos termos é negativo” (SCHWARZ, 1987, p. 21).
Isso se evidencia ainda hoje na desconcertante existência dos mercados de alto luxo,
do turismo sexual e do favela tour. Também, em fatos como o registrado nos debates sobre os
trinta anos do Tropicalismo em que o maestro Júlio Medaglia, responsável pelo arranjo da
música Tropicália, de Caetano Veloso, absurdamente afirmou não haver antagonismos raciais no
Brasil (CYNTRÃO, 2000, p.223).

18A loja localizava-se na Rua Bela Cintra, no bairro Jardins, em São Paulo, onde atualmente é a loja do estilista
Reinaldo Lourenço. (BONI - http://www.vice.com/pt_br/read/regina-boni-v2n3?Contentpage=1)

ISSN: 2358-5269 Ano13


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ISSN: 2358-5269 Ano14


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O Design de moda na narrativa do filme O Grande Hotel Budapeste: o papel das cores no
figurino

The Fashion Design in the narrative of the film The Grand Budapest Hotel: the role of
colors in the costume

Taciane Biehl Duarte (Faculdade de Tecnologia SENAI Curitiba)


tcnebiehl@gmail.com
Andréa Schieferdecker (Faculdade de Tecnologia SENAI Curitiba)
schiefer.andrea@gmail.com

Resumo: O presente estudo investiga a cor como elemento constituído de comunicação no


figurino do filme o Grande Hotel Budapeste (2014) do diretor Wes Anderson, a fim de entender
como as cores atreladas ao figurino no cinema narram e discursam. A metodologia aqui é
composta por uma pesquisa qualitativa do Grupo Focal, que contribuiu para que se verificasse
como o discurso do filme é entendido através das cores em especial das cores das roupas de
seus personagens.

Palavras-chave: Figurino; Cor; Cinema

Abstract: This study investigates the colour as communication element in the costumes of the
film The Grand Budapest Hotel (2014) from the director Wes Anderson, seeking to understand
how the colours linked to the costumes narrate and speeches in the film. The methodology here
is composed from a qualitative study using the focus groups, which contributed to verify how the
film's speech is understood through it’s colours, specially of its character’s clothes.

Keywords: Costume Design; Color; Cinema

Introdução

É o figurino do filme que oferece informações específicas acerca dos personagens


apresentados nestas histórias. O filme pode, em especial, explorar conceitos ou qualidades
visuais do figurino e do cenário, oferecendo determinada experiência de padrões imagéticos que
envolvem as mentes e emoções dos espectadores. O figurino possui a qualidade de sustentar o
enredo ao mesmo nível das iluminações que os diálogos e a própria ilusão do movimento são
capazes de nos proporcionar. Por isso sua construção não se limita apenas aos detalhes das

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 694


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roupas e acessórios, mas sim, de um conjunto de elementos essenciais em sua composição. Um


desses elementos é a cor.
Graças a seu caráter subjetivo, a cor atua de diferentes formas em sua relação com o
contexto em que se insere. Por isso entender o significado das cores é uma tarefa difícil se o seu
entorno, a forma que a contém, não é explorada. A cor, segundo Heller (2013), é determinada
pela percepção da sua relação com o contexto e, somente ao observar o todo é que se torna
possível compreender a necessidade do seu emprego, se uma cor será percebida como
agradável, adequada ou não e destituída de bom gosto em determinado projeto.
O estudo da cor se compromete, por isso, não só com as disciplinas da física, mas
também com as questões do comportamento e da subjetividade da mente humana. Como
explica Peter (2014), a precisão física das cores é diferente das cores como a interpretamos. De
acordo com Schwendler (2015), apesar da cor ser altamente subjetiva, o espectador irá entender
facilmente o emprego das cores pelo diretor, desde que esteja clara a participação dela na
narrativa do filme e o seu significado e hierarquia nas cenas.

Percepção e criação - a cor no Figurino

Para entender como a cor narra e discursa e apoia a própria narrativa do filme O Grande
Hotel Budapeste, foi desenvolvida uma pesquisa de cunho qualitativo utilizando a técnica Grupo
Focal. Os grupos focais, conforme Lupton (2013), podem ser utilizados para planejar e definir os
objetivos de um projeto, assim como avaliar sua eficácia. Foram consultados nove espectadores
a fim de entender como estes compreendem as cores escolhidas para a construção da narrativa
através do figurino do filme. Para esta análise, foram feitos recortes das cenas onde a cor
oferece uma grande influência visual no figurino, que se revelam fundamentais para a construção
imagética do personagem no desenvolvimento da narrativa. Conforme Lupton (2013) a maneira
mais fácil para testar a eficácia de um projeto de design, é perguntando ao público-alvo sua
opinião sobre determinado produto/projeto. Para esse tipo de pesquisa, é possível adaptar o
método da publicidade do Grupo Focal ao organizar uma parcela de indivíduos para uma
conversa organizada. A metodologia do Grupo Focal pode ser utilizada para projetar e definir os
objetivos de um projeto, assim como analisar os resultados.
A partir dos resultados da pesquisa com o Grupo Focal, pretendeu-se discutir sobre a
percepção do espectador das cores utilizadas em especifico no figurino do filme O Grande Hotel
Budapeste com as expectativas da criação do figurino do filme. O diretor, Wes Anderson, em
entrevista a Seitz (2015) afirma que seu objetivo não era de que as cores fossem informações

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historiográficas intrínsecas às décadas apresentadas no filme, como por exemplo o verde


utilizado em uniformes militares da Segunda Guerra Mundial. Por isso, afim de enquadrar as
diferentes fases apresentadas no enredo e entender o papel da cor neste, foram selecionados
para a análise do Grupo Focal, as roupas dos personagens M. Gustave, Madame D., Dmitri e
suas irmãs, J. G. Jopling, os oficiais militares, Agatha e os concierges membros da sociedade
das Chaves Cruzadas.
O objetivo foi entender como os espectadores compreendem as cores escolhidas pelo
diretor Wes Anderson e pela figurinista Milena Canonero. E como as informações trazidas pelas
cores contribuem para a construção da narrativa do filme. As constatações a partir da percepção
subjetiva de cada participante foram relacionadas com os conceitos sobre as referidas cores que
são apresentados em A Psicologia das Cores de Eva Heller (2013). Este livro apresenta
diferentes percepções das associações entre as cores e os sentimentos enquanto experiências
consolidadas na nossa linguagem e pensamento. Eva Heller compilou pesquisas, saberes
populares e aplicações das cores em outras áreas do conhecimento. As informações sobre as
cores apresentadas neste livro são diversificados e discutem profundamente a universalidade da
percepção das cores e se apresentaram como ferramentas ideais para autenticar as relações
entre o que o expectador interpreta e percebe do figurino e o que desejava comunicar a
figurinista com o projeto.

O figurino, suas cores e a narrativa

A narrativa do filme O Grande Hotel Budapeste é dividida em três diferentes momentos


que representam fases distintas da vida dos principais personagens e das décadas em questão,
que são explicitamente apresentadas, sendo: 1930, 1960 e 1980. A trama do filme se passa em
um país imaginário chamado Zubrowka, conceitualmente inspirado em países reais como a
Hungria, a Polônia e a Checolosváquia. A locação para as filmagens foi a cidade de Görlitz,
localizada no extremo leste da Alemanha.
O longa-metragem é constituído pela narrativa da persona de um escritor, a história
conta sobre os tempos em que este se hospedou no Grande Hotel Budapeste e, como ele veio a
conhecer o então dono deste hotel. Apesar da presença do narrador, a figura central da trama é
o personagem do concierge, gerente e responsável pelo hotel, chamado de M. Gustave. Na
trama, este concierge acaba por aproximar-se do jovem lobby boy, mensageiro, empregado do
hotel, Moustafa Zero. Suas características são de um refugiado aparentemente indiano que é
perseguido pela polícia por ser imigrante ilegal. Os dois acabam tornando-se amigos. Moustafa

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Zero, por sua vez conhece a personagem Agatha, empregada confeiteira da Mendl’s, por quem
se apaixona.
O concierge M. Gustave envolve-se amorosamente com uma hóspede do Grande Hotel
Budapeste, a personagem Madame D., uma senhora excêntrica que falece no decorrer da
história. M. Gustave é seu herdeiro escolhido e presenteado com um quadro renascentista no
valor de milhões. Contrariados, os familiares e, principalmente, o personagem do filho de
Madame D., Dmitri, se organizam para que o concierge não fique com a herança. Gustave no
decorrer da narrativa é perseguido pelo personagem assassino J. G. Jopling e posteriormente
preso por tomar o quadro renascentista. Escapa da prisão com ajuda de seus amigos
prisioneiros e de um grupo organizado de concierges chamado de sociedade das Chaves
Cruzadas. Quando este retorna ao hotel, percebe que o mesmo foi invadido por oficiais militares
de guerra.
Ao final da narrativa, Madame D. deixa um segundo testamento, concedendo toda a sua
fortuna e bens a M. Gustave, inclusive, surpreendentemente, o Hotel Budapeste. Em uma
viagem com Moustafa Zero e Agatha, Gustave acaba sendo morto por oficiais da fictícia
Segunda Guerra Mundial por defender seu amigo imigrante.
A história narrada no filme se passa em três décadas diferentes, cada uma delas
marcada por uma paleta de cores específica. Os períodos são, 1930 com o drama de Gustave
no Grande Hotel Budapeste; em 1960, com o jovem escritor que conhece Moustafa Zero quando
este já era dono do hotel; e por fim, 1980, quando o escritor, já idoso, narra suas experiências,
como conheceu o dono do hotel e suas histórias.
Costa (2002) por sua vez afirma que, a composição do personagem dá-se por meio de
seu figurino e para isso aponta três categorias de figurino seguindo a classificação adotada por
Marcel Martin e Gérard Betton: o figurino realista, o figurino simbólico, e o figurino para-realista.
O design do figurino do Hotel Budapeste se classifica como para-realista, que segundo o Costa,
é inspirado na moda da época porém carregado de estilização. Aqui, a estilização se apresenta
justamente nas cores, a partir delas são compostas novas interpretações das roupas de época.
Para a pesquisa de Heller sobre as cores, foram consultadas duas mil pessoas de
diversas profissões, na Alemanha. Elas foram questionadas sobre suas predileções pelas cores,
sobre todos os efeitos psicológicos de cada uma delas e sobre as cores típicas de cada
sentimento. Embasada nesta pesquisa Heller (2013) afirma que não existe cor destituída de
significado. Além disto, a impressão que cada cor causa é determinada pelo contexto em que ela
se encontra, ou seja, pelo entrelaçamento de significados do que percebemos. O contexto é

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quem irá dar suporte que irá revelar se uma cor será percebida como agradável ou
desagradável, correta ou errada e destituída de bom gosto.

Cor, figurino e narrativa - 1930

Para o Grupo Focal, o rosa (figura 1) predomina nos momentos do filme que se passam
na década de 1930. Para os espectadores do Grupo Focal, este rosa representa fantasia, é uma
cor artificial e lúdica. Afirmam ainda, que o rosa predominante nesta década, expressa um lugar
utópico onde era mais confortável de se viver e, eram explícitos o luxo e a ostentação. A fantasia
para Heller (2013), é um “[...] estado em que as pessoas flutuam em nuvens cor-de-rosa e
enxergam tudo através de lentes rosadas; o sétimo céu é rosa” (HELLER, 2013, p. 218). Heller
se utiliza de uma gíria para explicar a conotação do rosa: Think pink, em português pensar rosa,
significa pensar de maneira otimista o cotidiano cinzento. Essa afirmação da autora coincide
com a noção do cotidiano em que a história do Hotel está inserido, em 1930 às vésperas da
Segunda Guerra Mundial. Heller (2013) diz que o rosa se encontra onde os sonhos estão, este, é
o tom irrealista.
FIGURA 1 - NARRATIVA EM 1930

FONTE: Fotogramas do filme

O personagem M. Gustave e Moustafa Zero usam o púrpura em toda a narrativa, tanto


quando são funcionários do Grande Hotel Budapeste em 1930 (figura 2) quanto mais tarde
quando se tornam proprietários do mesmo (figura 3). Pode-se afirmar, portanto, que a cor
púrpura define estes personagens. Para os espectadores envolvidos no Grupo Focal, o estado
de espirito de M. Gustave, durante toda a trama nunca se alterou. O personagem sempre deteve
o controle e sua personalidade nunca se apresenta de outra forma. Apesar de sua mudança de
status, ele continua fazendo parte do hotel. A partir das informações coletadas da percepção
deste aspecto pelo Grupo Focal, concluiu-se que a cor púrpura significa a riqueza, para os
participantes da pesquisa. Este personagem sempre é apresentado no contexto luxuoso do

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Hotel, característica esta que foi identificada e significada como suntuosa, perceptível pelo
espectador através da paleta de cores que vai desde o vermelho do cenário ao púrpura dos
uniformes.

FIGURA 2 – M. GUSTAVE E MOUSTAFA ZERO FUNCIONÁRIOS DO HOTEL EM 1930

FONTE: Fotograma do filme

FIGURA 3 – M. GUSTAVE E MOUSTAFA ZERO QUANDO DONOS DO HOTEL

FONTE: Fotomontagem pelos autores

Para Heller, a cor púrpura significa a cor do poder. Indício disto encontra-se no velho
testamento da Bíblia, onde esta cor é mencionada como a cor do alto preço. Por volta do ano
300 [...] o imperador Diocleciano decretou a tinturaria da púrpura um monopólio imperial; a
púrpura era por lei, a cor imperial” (HELLER, 2014, p. 200).
O Grupo Focal levantou a vaidade como sendo uma das principais características
psicológicas do personagem de M. Gustave. Ela se apresenta na história, pois o personagem
está sempre usando o perfume L’air de Panach. A designer do figurino Milena Canonero, afirma

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que este personagem deveria transmitir por completo, do cabelo ao dedo do pé a ideia de
controle e perfeição. Este personagem deveria se mover com elegância e liberdade,
características muito similares às constatadas pelo Grupo Focal na análise das cores de seu
figurino. Sobre o púrpura e a vaidade, Heller (2013) afirma ainda que esta cor é também a cor da
vaidade e de todos os pecados ligados à beleza. “Como a vaidade hoje em dia é pouco vista
como pecado, isso se demonstra no acorde da vaidade violeta-rosa-ouro” (HELLER, 2013, p.
201). Este personagem, inserido no contexto do hotel, onde o rosa predomina, em conjunto com
elementos dourados do lobby, completam a sensação de poder e vaidade. Para Heller a cor
simboliza um lado sinistro da fantasia, a busca do relativo, tornar possível o impossível.
A indumentária de cada um dos hotéis no filme é caracterizada por uma cor específica, e se
apresentam como hotéis de luxo. Foi constatado no Grupo Focal, que nas cores dos figurinos
dos concierges de outros hotéis da sociedade das Chaves Cruzadas, predominavam outras
matizes como: o vermelho, o azul, o verde e o marrom. A cor púrpura escolhida para os
uniformes do Hotel Budapeste apresenta a suntuosidade diferenciada, característica singular em
relação a essas outras cores. Heller (2013) relata que o púrpura é a cor mais singular e
extravagante de todas as cores, pois denuncia que a escolha foi “[...] conscientemente
direcionada para uma cor especial; ninguém usa o violeta de uma forma impensada; quem veste
o violeta quer chamar a atenção, se distinguir da massa.” (HELLER, 2013, p. 200).
Para o figurino da personagem de 84 anos de Madame D., foi projetada uma capa
vermelha de veludo (figura 4). Os espectadores do Grupo Focal indicaram que esta cor remete
ao luxo, a riqueza, o exagero, o sexo, a sedução, a cor do poder e também da morte. Todas
características e fatos recorrentes à personagem na narrativa de Anderson. Heller (2013) explica
que o vermelho é a cor dos nobres e dos ricos. O vermelho de um casaco, um vestido ou um
terno antigamente não estabelecia conexões com preferências de cores, mas sim um simbolismo
de status. “Até a Revolução Francesa, existiam por toda parte códigos de vestimentas que
determinavam quem deveria usar o quê. Existiam cores condizentes [...]” (HELLER, 2013, p. 61).

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FIGURA 4 – MADAME D. COM CASACO DE VELUDO VERMELHO

FONTE: Fotograma do filme

A cor vermelha aparece também, segundo os espectadores, em toda a estrutura do hotel


na sua década de luxo em 1930 e no suéter de Moustafa Zero em 1960 quando este está
contando sua história para o autor (figura 3). Para eles, este vermelho no suéter de Zero, quando
dono do hotel, traz a sensação de riqueza, de posse e também, hierarquia. O Hotel pertencia
antes a Madame D., que usava vermelho. Mais tarde Zero herda o Hotel e também o vermelho
em suas roupas.
A matiz amarela do vestido usado pela personagem Madame D., inspirado na obra “O
Beijo” de Gustav Klimt (figura 5), apresentou sensações relativas à jovialidade, e ao mesmo
tempo à velhice. A cor da roupa da personagem foi para o grupo também moderna e étnica,
falando sobre vulnerabilidade e mudança. Para Heller (2013) esta cor significa a cor da
maturidade, da idade realizada como dourada. “Os trovadores, que apreciavam comparar as
mudanças nos sentimentos com os ciclos da natureza, consideravam a cor da maturidade na cor
do amor sensual” (HELLER, 2013, p. 88). A cor amarela, significa a cor da sensualidade, que
expressa de forma poética “a recompensa do amor”. Ao lado do cinza, esta cor se torna símbolo
da insegurança, o amarelo velho é também chamado de amarelo envelhecido, do mesmo modo
que o papel amarelece, o amarelecimento é a marca da idade, segundo Heller (2013).

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FIGURA 5 – MADAME D. COM VESTIDO AMARELO INSPIRADO NO PINTOR GUSTAV KLIMT

FONTE: Fotograma do filme

O rosa é a cor do figurino da personagem Agatha (figura 6), funcionária de uma loja
Patisserie e amor de Zero. Para o Grupo Focal, esta cor significa, neste contexto, pureza,
inocência, doçura e apego. Heller contatou em sua pesquisa que o rosa significa a cor do
charme e da gentileza. As características empregadas a essa cor são tipicamente femininas.
Também simboliza a cor dos fracos, além do charme e da amabilidade. O rosa é suave, a cor do
carinho. A autora ainda explica que o rosa é a cor dos confeitos, e não existe cor que combine
melhor com sobremesas.

FIGURA 6 – PERSONAGEM AGATHA COM FIGURINO INSPIRADO NA PINTURA DE ESTILO


ART DÈCO “THE PINK SHIRT” DE TAMARA DE LEMPICKA

FONTE: Fotograma do filme

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Quando a personagem encontra-se em seu ambiente de trabalho, cores menos


saturadas predominam suas roupas (figura 7). “[...] numa época em que as roupas de cores
luminosas eram símbolo de status, as roupas não tingidas denotavam claramente uma condição
de inferior.” (HELLER, 2013, p. 258). Para os espectadores, isso significa sua condição de
trabalho, a cor do uniforme e da pobreza.

FIGURA 7 – AGATHA EM SEU AMBIENTE DE TRABALHO

FONTE: Fotograma do filme

O contexto em que o azul aparece na narrativa, é um momento avançado da trama,


quando Zero e Gustave retornam ao hotel depois de uma fuga da prisão e quando ainda tentam
resgatar um valioso quadro (figura 8) confiado a M. Gustave. Zero o ajudou a fugir da prisão,
depois de ter tomado posse de sua herança, este ato pode ser caracterizado como um ato de
fidelidade à seu amigo Gustave. Quando o gerente estava na cadeia, seu uniforme dentro da
prisão era também o azul onde, fez amigos que o ajudaram a escapar. Para os espectadores, o
azul que aparece em certas cenas da narrativa de 1930, não desempenha nenhum papel
importante. Heller (2013) afirma porém, que a cor azul é a cor do irreal e da fidelidade. “Na
Inglaterra, o azul é ainda muito mais frequentemente citado como cor da fidelidade e da
confiabilidade; em inglês, o azul está estreitamente associado à fidelidade true blue” (HELLER,
2013, p. 24). As características intrínsecas à este personagem reforçadas pelas cores de suas
roupas contribui para o entendimento da história, a fidelidade entre os companheiros tornada
visível por meio do azul da indumentária.

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FIGURA 8 – O AZUL NA NARRATIVA

FONTE: Fotogramas do filme

Para os espectadores, a cor tradicionalmente concedida aos uniformes militares é o verde.


No entanto como já mencionado anteriormente foi empregada outra matiz para os uniformes dos
oficias militares no filme. O cinza (figura 9) é relacionado com os uniformes nazistas, uma cor
cujas características contrariam às outras cores da narrativa do filme, para um dos participantes
do Grupo Focal “uma cor que não é uma cor”. Para o Grupo Focal, o diretor quis transmitir um ar
de seriedade, autoridade e imposição com esta cor. Os expectadores do grupo perceberam que
personagens militares não desempenham papel importante na trama, eles seguem as ordens,
são personagens dentro de um grande personagem, por isso o cinza significou para os
participantes o desagradável, mas não que os soldados realmente sejam malvados.

FIGURA 9 – MILITARES DO GRANDE HOTEL BUDAPESTE

FONTE: Fotogramas do filme

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Encontramos nos textos de Heller características psicológicas da percepção do cinza,


que reforçam as impressões que causaram os uniformes cinzas para os expectadores no filme,
para ela esta cor é insensível, pois não é nem branco nem preto; os sentimentos assim como as
cores, são destruídos pelo cinza: por isso o cinza é cruel. Ela justifica que o cinza é a cor sem
caráter, a cor de todos os sentimentos sombrios, a cor “[...] de todas as adversidades que
destroem a alegria de viver.” (HELLER, 2013, p. 270). A autora ainda afirma que o cinza é a cor
do hostil, do antipático, do mau quando misturada com o preto e também, a cor do grosseiro e do
bruto. Em alemão “[...] a própria língua denota os aspectos malévolos do cinza: o cinza (Grau)
para Grauen (o terror, o horror) e Grausen (cruel).” (HELLER, 2013, p. 271).
Nas discussões do Grupo Focal, as características conferidas aos personagens da
família de Madame D. foram o interesse, a morte, a maldade e assassinato. No figurino da
família todos vestem preto, estes personagens entram em cena quando Madame D. morre e se
inicia uma disputa por sua rica herança, surpreendentemente concedida a M. Gustave. Outro
personagem relacionado com o preto foi o assassino J G Jopling (figura 10), contratado pela
família de Madame D. para perseguir injustamente M. Gustave a fim de tomar posse dos bens da
família, que foram concedidos a ele em testamento por ela. Em todos os momentos em que o
preto se faz presente, a cor está relacionada à morte e ao assassinato. Para Heller (2013) esta
cor significa a cor da dor, são regras para os trajes de luto. “Na simbologia cromática cristã, o
preto é a tristeza pela morte terrena, por isso a cor dos trajes que estão enlutados é o preto”
(HELLER, 2013, p. 130). Esta é a matiz da negação, o preto transforma o amor em ódio, é a cor
da sujeira e do mal, o preto dos fascistas e da brutalidade. Esta cor apareceu como cor de um
movimento fascista em 1919, pela primeira vez na Itália. Os uniformes pretos, segundo a autora,
proporcionam a impressão de que, na história, os que vestiam preto, pertenciam a uma grande
organização.

FIGURA 10 – FILHO DMITRI DE MADAME D., SUAS IRMÃS E O ASSASSINO J. G. JOPLING

FONTE: Fotogramas do filme

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Cor, figurino e narrativa - 1960

Para os espectadores do Grupo Focal, a cor laranja (figura 11) que predomina no lobby do
hotel, já não “empolga” tanto quanto o rosa presente na época de 1930, não é mais “mágico”
como o rosa. Para o Grupo Focal, o laranja pertence a década de 1960. Mostra a passagem do
tempo. Para eles o laranja e o rosa são as cores das décadas de referência, que falam sobre o
design contemporâneo ao período em questão. O laranja presente nas imagens de 1960,
representa a decadência do hotel, e pode ser percebido como hostil.

FIGURA 11 – NARRATIVA EM 1960

FONTE: Fotogramas do filme

Da mesma forma que levantado pelo Grupo Focal, para Heller, esta foi a cor caracteristica
dos materiais plásticos durante muitos anos, “[...] nos anos setenta, as pessoas sentiam orgulho
de seus materiais sintéticos; como não existia nenhum material na cor laranja, essa cor foi
estabelecida para identificar tudo quanto fosse artificial” (HELLER, 2013, p. 185). Tudo o que
fosse plástico, era laranja, fosse um balde, um espremedor de limão, sempre era apresentado ao
consumidor na cor laranja. A princípio, esta cor era a representação do design moderno porém,
com o decorrer dos anos, ela se tornou símbolo do design ultrapassado. Para ela o laranja é a
cor mais controversa de todas.
Os significados atribuídos pelos espectadores ao marrom em que aparece no terno do
autor tanto em 1960 quanto em 1980 (figura 12), foram os de realidade, seriedade, banal/comum
e de tédio. Na Psicologia das Cores, a cor marrom transmite o que está se definhando. Na
natureza, esta é a cor do que está murchando. “Os que usam marrom não querer aparecer, e
sim se adaptar.” (HELLER, 2013, p. 258). Goethe (apud Heller, 2013) afirma que pessoas cultas

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sentem certa aversão às cores. São todas características que combinam muito bem com as
constatações do grupo sobre o marrom na narrativa e na característica do personagem narrador.

FIGURA 12 – O AUTOR COM PALETÓ NORFOLK EM 1960 E EM 1980

FONTE: Fotogramas do filme

Os espectadores participantes do Grupo Focal relatam que a cor que predomina nos
figurinos da década de 1930 é o rosa, que representa uma fase gloriosa e promissora do Hotel,
neste momento as cores são mais vibrantes, ou cores pastel com intermédio de cores saturadas,
que transmitem uma sensação de bem estar e felicidade. A cor laranja predominante na década
de 1960, significa para os espectadores, a decadência e a hostilidade do hotel.

Conclusão

A cor possui um poder de narrativa, propondo características que são inerentes aos
personagens nela retratados. Para comprovar os objetivos no emprego de cada cor no projeto de
design do figurino, a pesquisa qualitativa de Grupo Focal apresentou a percepção dos
espectadores das cores, em específico no figurino do filme O Grande Hotel Budapeste que em
muito coincidem com os objetivos do design do figurino e com conceitos científicos das cores.
A pesquisa com o Grupo Focal mostrou que, de fato, a cor utilizada no figurino do filme O
Grande Hotel Budapeste detém um papel importante na narrativa, na construção do figurino e no
entendimento das características dos personagens do filme. Mesmo sendo subjetiva,
conseguimos contextualizar a cor na narrativa. Pelo emprego consciente da cor a figurinista
Milena Canonero, pôde dotar de realismo ou ficcionalidade o discurso do filme e elevar a
qualidade estética ao status de moda, ao nível de importantes marcas que buscam atrelar esta

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forma de contar histórias à moda que produzem, na construção de campanhas e coleções que
são inspiradas na estética visual do filme.

A partir deste estudo, foi possível perceber que o emprego bem-sucedido das cores no
figurino e na montagem fílmica como um todo, com a intenção de expressar sentimentos e
construir uma história é uma das maiores contribuições da obra de Wes Anderson para a moda.

Referências
Livros
HELLER, Eva. A Psicologia das Cores. Tradução: Maria Lúcia Lopes da Silva. Gustavo Gilli: São
Paulo, 2013.
LUPTON, Ellen. Intuição, ação, criação. Tradução: Mariana Bandarra. Editora G. Gilli: São Paulo,
2013.
PETER, Cris. O uso das cores. Marsupial: Rio de Janeiro, 2014.
SEITZ, Matt Zoller. The Wes Anderson Collection: The Grand Budapest Hotel. Abrams: New
York, 2015.

Teses ou Dissertações
SCHWENDLER, Bruna Luíza. As Cores e o Cinema: uma análise do filme Moonrise Kingdom (2012),
de Wes Anderson, 2015. 67 f. Dissertação (Bacharelado em Comunicação) – Departamento de
Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível
em:http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/122682/000971471.pdf?sequence=1. Acesso em: 05
jun. 2015.

Sites
COSTA, F. A. de. Análise Fílmica: O Figurino Como elemento Essencial da Narrativa. Porto Alegre, n. 8, p. 38-
41, ago. 2002. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/775/8973>
Acesso em: 07 jun. 2015.

Filmes
BUDAPEST HOTEL, The Grand. Direção West Anderson. [DVD] USA, GER, GBR: Fox
Searchlight Pictures Ltd. 2014.

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RELAÇÕES ENTRE CENÁRIO E FIGURINO EM ALMODÓVAR


RELATIONS BETWEEN SCENERY AND COSTUMES IN ALMODOVAR

Ligia Cristina Battezzati (IFPR)


ligiabattezzati@gmail.com
Lindsay Jemima Cresto (UTFPR)1
lincresto@hotmail.com

Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo analisar as relações existentes entre a moda e a
decoração em um dos filmes do consagrado diretor espanhol Pedro Almodóvar. Considerando que
tanto figurino quanto cenário são elementos importantes para a construção de uma narrativa
cinematográfica, busca-se identificar em que medida as roupas e acessórios apresentam proximidades
com os objetos que compõem a cena, em uma obra em que a estética kitsch é predominante.
Palavras-chave: Moda. Cenografia. Pedro Almodóvar. Kitsch.

Abstract: This work aims to analyze the relationships between fashion and decoration in one of the
renowned spanish director Pedro Almodovar films. Whereas both costume as scenario are important
elements for the construction of a cinematic narrative, it seeks to identify to what extent the clothes and
accessories have close to objects that compose the scene in a work where the kitsch aesthetic is
predominant.
Keywords: Fashion. Scenography. Pedro Almodovar. Kitsch.

INTRODUÇÃO

Este artigo aborda o estudo da estética kitsch e discute a aproximação que pode existir entre
moda e decoração. Nesta abordagem, observaram-se proximidades entre as características de
vestuário e acessórios com aqueles que compõem um arranjo doméstico, aqui observado em forma de
cenário, ambos atuando como estratégias de personalização e constituição de identidades.
Este trabalho foi desenvolvido a partir de temas de pesquisa da graduação e do mestrado. O
trabalho de graduação trata da análise dos cenários dos filmes de Pedro Almodóvar, um dos diretores
espanhóis mais destacados na história do cinema contemporâneo, sob a perspectiva da estética kitsch;
a dissertação de mestrado apresenta, em um dos subcapítulos, as relações existentes entre moda e
decoração.
Na pesquisa desenvolvida na graduação, foram pré-selecionados 9 filmes de Almodóvar, que
passaram por uma triagem, realizada com a utilização de um quadro para avaliação e cruzamento de
dados, que levantou quantitativamente as vezes em que as tipologias kitsch eram observadas nas
cenas. Como algumas das tipologias se repetiam na maioria dos filmes, o que é característico da obra

                                                                                                                       
1 Orientadora - Professora do DADIN – Departamento Acadêmico de Desenho Industrial – UTFPR Campus Curitiba.

 
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de Almodóvar, foi realizada uma nova seleção de 5 obras, priorizando imagens que agrupam maior
diversidade de tipologias em um mesmo ambiente.  
No presente artigo, focamos na análise do filme Kika (1993), que além de apresentar
características da estética kitsch, traz cenas que foram selecionadas por apresentar, nos mesmos
quadros, cenários e figurinos que podem ser analisados juntamente. Além disso, a narrativa se constrói
de forma mais evidente numa relação próxima entre figurinos e cenários.
Os filmes de Almodóvar apresentam uma multiplicidade de referências em relação ao uso das
cores e harmonias cromáticas, aos mobiliários e ícones da história do design, ao uso de texturas
diversas, de objetos artesanais e industriais, artefatos em diferentes contextos para os quais foram
projetados. A combinação dessas características em conjunto destaca a presença do kitsch, uma
estética que faz parte da sociedade de consumo. Este estilo pode estar presente em todos os setores e
classes, com a tentativa de traduzir emoções, tradições culturais, locais e apresentar ecletismo. Essas
tipologias kitsch são categorizadas por Abraham Moles (1971) e poderão ser melhor compreendidas na
análise das cenas do filme, na sequência.
É necessário enfatizar que o estudo dos figurinos e dos cenários é um modo de perceber as
relações entre as pessoas e os objetos, entre o design e a cultura nas representações de usos e de
consumo dos artefatos, entre a arte e a indústria de massas. Na realidade, assim como nas obras de
ficção, as coisas que nos cercam são capazes de influenciar nossos comportamentos. Daniel Miller
(2013, p. 83) descreve:

Coisas [...] fazem de nós as pessoas que somos. Elas são exemplares em sua
humildade, sem nunca chamar atenção para o quanto devemos a elas. Apenas
seguem adiante em sua empreitada. Porém, a lição de cultura material é que,
quanto mais deixamos de notá-la, mais poderosa e determinante ela se mostra. Isso
propicia uma teoria da cultura material que dá aos trecos muito mais significado do
que se podia esperar. Acima de tudo, a cultura vem dos trecos.

No contexto das obras cinematográficas, as “coisas” ajudam a compor a narrativa. Cenários e


figurinos dão suporte, realismo e veracidade às histórias vividas por seus personagens. Miller acredita
na ideia de que não há separação entre sujeito e objeto, e esta estreita relação é o que ele chama de
cultura material. Para o autor (2007), compreender o consumo através das lentes dos estudos de
cultura material contribui para a construção das relações entre as pessoas e as coisas, ajuda na
compreensão do comportamento humano e suas práticas de consumo.
O objetivo da análise proposta é investigar como a narrativa e os personagens se apropriam de
artefatos que formam os arranjos cenográficos e identificar a presença do estilo kitsch, para
compreender o uso das referências culturais e estéticas do diretor, as formas de apropriação desses

 
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elementos nas ambientações dos espaços cenográficos e na composição dos personagens da


narrativa. A abordagem de análise é qualitativa, de natureza interpretativa, examinando os discursos
das cenas.

MODA E DECORAÇÃO EM CENA

O conceito de cenografia revela a sua importância em uma composição de ambientes. A


cenografia deve ser um instrumento reflexivo, que dá significado à ação em uma cena, seja ela teatral,
cinematográfica ou televisiva. Ela deve estar integrada ao espetáculo, “a cenografia não ornamenta,
instrumentaliza” (DEL NERO, 2008, p. 19).   Conforme Mantovani (1989, p. 06), o cenógrafo, além de
seu conhecimento técnico-cultural, precisa ter envolvimento no texto e compreensão do mesmo,
concebendo plasticamente a temática do espetáculo. Não se pode separar cenário, figurino,
movimentação dos atores na interpretação de seus personagens.
No contexto espanhol, o cinema passa por um período de estagnação, devido à censura
ditatorial. No período de transição política, iniciou um estilo de cinema sobre a Guerra Civil, o pós-
guerra e a vida durante o franquismo, no qual se misturam a sátira e a nostalgia. La movida madrileña
foi o marco de transição para a nova vida social e política. Hidalgo (2009, p. 02) relata que a Espanha
passava por um renascimento criativo através das artes visuais, da música, da fotografia, da pintura, do
teatro e do cinema, após 40 anos de ditadura.
A partir de então, surge um cinema novo e provocador, no qual se destacou Pedro Almodóvar
(1951-). Todos os seus filmes desenvolvem narrativas sinuosas em que o amor e o desejo se perdem e
se aventuram com total liberdade. O diretor moldou uma linguagem que é um dialeto único: narrativas
prismáticas, repuxos de melodrama, iconografia pop, canções bregas num contexto intelectual, com
humor debochado, cores intensas, figurinos e cenários espalhafatosos (NOGUEIRA, 2010).
O kitsch em sua obra é inspirado pelo exagero da própria cultura espanhola, pela celebração
do desejo e da liberdade como sentimentos supremos, por ícones da comunicação de massa, religião,
movimento Punk e a Pop Art. As cores fortes também são intensamente utilizadas em seus filmes,”
sobretudo primárias e secundárias, e um gosto peculiar pela complementaridade natural entre elas
também são evidências do kitsch” (BELTRÃO, 2005, p. 53).
Ao procurar compreender por quais processos a moda é constituída, é possível mapear como
as maneiras de ser e agir dos indivíduos operam dentro de um regime cultural estabelecido, e que
constantemente sofre alterações. Portanto, como descreve Svendsen (2010), a moda não é estável,
nem é definitiva, mas está sempre em um processo de rompimento com determinadas tradições, e/ou
com ideias de retomada de um ‘estilo’, reinterpretando-se com ‘novos’ materiais, ‘novos’ processos,

 
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‘novos’ formatos. A moda, caracterizada por seu movimento cíclico, busca constantemente ser e
parecer algo ‘novo’.
Com base no referido autor, pensar em moda é pensar além do consumo de artefatos
materiais, mas pensar nas estratégias dos indivíduos para se constituírem e se compreenderem, não
só como eles mesmos, mas como parte de uma sociedade. A moda é um elemento de consumo que
está relacionado à expressão de individualidade. O discurso da moda funciona como um sistema de
significados culturais que, assim como as identidades, não é fixo e estável, mas sofre alterações e
interferências a todo momento.
Conforme Lipovetski (2009), o sistema de significados culturais, do qual a moda e as
identidades participam, está inserido dentro de estruturas sociais. É a partir delas que os indivíduos
baseiam sua percepção do que consideram como apropriado, belo, requintado, exótico, feio, vulgar,
etc. Estas escolhas e ações imaginadas como individuais são, em alguns contextos, fortemente
influenciadas por estas estruturas sociais.
As nossas escolhas e nossas identidades se constituem mutuamente e se revelam o tempo
todo. Kathryn Woodward (apud HALL, 1997) defende que a representação é um símbolo que classifica
o mundo e as nossas relações com o seu interior. Desta forma, os significados reproduzidos pelas
representações dão sentido àquilo que somos. “A representação do que somos se revela por meio do
nosso comportamento, e este depende da situação em que estamos envolvidos, do ambiente e das
pessoas que nos cercam” (BATTEZZATI, 2013).

O KITSCH

O kitsch não é uma estética ou um movimento artístico, muito menos uma forma negativa de
se referir a alguma coisa para depreciá-la. É definido como uma atitude. A primeira fase é representada
pela ascensão da sociedade burguesa (MOLES, 1971). Os burgueses, em posse de elevado poder
aquisitivo, desejavam os objetos de arte que a aristocracia tanto ostentava, mas a um preço mais justo.
Nesta fase, cada objeto revestia-se de um grande valor sentimental (BELTRÃO, 2005). A segunda
grande fase é impulsionada pelo surgimento das grandes lojas de departamento. É o momento dos
grandes centros comerciais, onde os preços são padronizados e os produtos são adquiridos pelo
simples prazer do consumo. Moles (1971) afirma que o grande momento do kitsch coincide com a
expansão do mercado e com a emergência da sociedade de massa.
O autor (1971, p. 21) argumenta que:

 
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O fenômeno kitsch baseia-se em uma civilização consumidora que produz para


consumir e cria para produzir, em um ciclo cultural onde a noção fundamental é a de
aceleração. Digamos que o homem consumidor está ligado aos elementos materiais
de seu ambiente e que o valor de todas as coisas altera-se em virtude desta
sujeição.

Esta relação de consumo apresentada pelo autor tem relação com o movimento cíclico
característico da moda, e que também acontece na decoração.
Frequentemente associado ao brega, o kitsch remete a objetos imitados, reproduzidos com
facilidade, banalizados ou de gosto deteriorado, com preços acessíveis. Conforme Ludwing Giesz (apud
Moles, 1971) é uma arte onde se produz réplicas de obras famosas em série, peças decorativas que imitam as
originais, mas feitas com materiais inferiores. O estudo do kitsch é o estudo dos reflexos mais visíveis da
sociedade contemporânea em sua alienação ao objeto. Para Moles (1971, p. 29), por detrás do kitsch, há
um novo tipo de relação entre o ser e as coisas, do sentimento que este tem para com estas. Trata-se do
imediato, do aspecto dominante da vida estética cotidiana. Para o autor, “o kitsch é a arte da felicidade e
qualquer chantagem à felicidade da civilização será também uma chantagem ao kitsch”.
Em sua obra, Moles (1971) propôs várias categorias que compõem uma tipologia do kitsch.
Segundo o autor (1971, p. 48-49), existem dois aspectos fundamentais do kitsch aos quais se podem aplicar
uma tipologia: os objetos que reúnem características kitsch como formas, cores, dimensões, natureza, entre
outras estéticas; e os conjuntos de objetos que constituem um sistema kitsch, ainda que os elementos não
tenham características kitsch individualmente. Para compreender melhor, Moles sugere que se faça a distinção
de situações kitsch, atos kitsch e objetos kitsch. As avaliações tipológicas dos objetos revelam ou não sua
qualidade de kitsch, desde que o objeto seja analisado dentro do seu contexto.

ANÁLISE DO FILME KIKA, 1993

Na análise deste filme são observadas as relações entre os personagens, os objetos e os


figurinos em cena, de acordo com as tipologias kitsch. Kika é um filme franco-espanhol de 1993, do
gênero drama. Estrelado por Verónica Forqué, Peter Coyote, Victoria Abril, Álex Casanovas, Rossy de
Palma, Santiago Lajusticia, Anabel Alonso e Bibí Andersen.

Sinopse: A maquiadora Kika (Verónica Forqué), é contratada pelo escritor Nicholas (Peter Coyote) para
maquiar o corpo de seu genro Ramón (Álex Casanovas) que, aparentemente, está morto (Figura 1).
Porém, Ramón não está morto, ele sofre de catalepsia, e acaba despertando durante a maquiagem.
Kika e Ramón acabam se apaixonando e, a partir daí, começam um relacionamento amoroso e vão

 
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morar juntos. Kika também tem um caso com o padrasto de Ramón, Nicholas. Ramón é um homem
traumatizado com a morte de sua mãe, que se suicidou, ainda antes de ele conhecer Kika, o que faz
dele uma pessoa introspectiva. O fato de Ramón não expor seus sentimentos faz com que ele e Kika
não se entendam, apesar de se amarem. Após o retorno de uma longa viagem, Nicholas, sem dinheiro
e desempregado, se instala no estúdio do enteado, a apenas um andar de distância do apartamento de
Ramón e Kika, que acaba se envolvendo com o escritor, formando assim, um triângulo amoroso.

Figura 1 – Cena em que Kika prepara-se para maquiar Ramón


Fonte - KIKA, 1993

O irmão de Juana (Rossy de Palma), Pablo/Paul Bazzo (Santiago Lajusticia), ex-ator pornô, é
um tarado sexual que foge da prisão e aparece de surpresa no apartamento de Kika. Juana, que
trabalha na casa de Kika, pede para que ele vá embora, porém ele quer dinheiro. Ela então sugere a
simulação de um assalto, para que assim ele leve alguns objetos do apartamento e suma dali. Pablo
aceita a sugestão, amarra e amordaça Juana numa cadeira da cozinha, para livrá-la de qualquer
envolvimento no assalto, e também dá uma pancada em sua cabeça, para dar mais veracidade na
história. Com Juana presa e desmaiada na cozinha, Pablo vai ao quarto de Kika, que está dormindo.
Ele a observa e, não resistindo, acaba violentando-a sexualmente.
Toda a cena do estupro é observada de longe e um voyeur2 avisa a polícia. Pablo consegue
escapar da polícia pulando da sacada do quarto e fugindo com a moto de Andrea “Caracortada”
(Victoria Abril), ex-psicóloga e apresentadora do programa de reality show “O pior do dia” (Lo peor del
dia). Andrea, que também é ex-namorada de Ramón, viola intimidades a troco de notícias

                                                                                                                       
2 Voyeur – Excitação sexual apenas pela observação de cópula praticada por outros ou pela observação dos órgãos
genitais de outrem; mixoscopia (DICIONÁRIO MICHAELIS, 2015).

 
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sensacionalistas. Ela desconfia que Nicholas seja um serial killer3 e começa a espionar a vida de todos
os que se relacionam com ele, em busca de um furo jornalístico.

Descrição dos personagens: Verónica Forqué é Kika, maquiadora de aproximadamente 35 anos. Kika,
uma mulher alegre e de bem com a vida, é casada com Ramón (Álex Casanovas), com quem divide
um apartamento em Madri. Ela também tem um relacionamento extraconjugal com o padrasto de
Ramón, o escritor Nicholas (Peter Coyote), devido à frieza com que é tratada por seu marido.
Álex Casanovas é Ramón, fotógrafo e artista plástico, também tem aproximadamente 35 anos.
Ramón é um homem reservado e misterioso, casado com Kika, por quem não consegue demonstrar
seu amor, apesar de senti-lo. A morte de sua mãe, ocorrida alguns anos antes, acarretou um trauma
em sua vida.

Descrição das cenas: O kitsch está visivelmente marcado na decoração da sala do apartamento de
Kika e Ramón. A composição de cenário e figurino envolve o observador provocando uma sensação de
impacto. No universo das personagens que habitam este lar, a decoração e as roupas exaltam suas
personalidades. Kika é uma pessoa extravagante e alegre, e Ramón, um artista introspectivo que
demonstra suas emoções através de sua arte, presente neste ambiente.

Figura 2 – Sala de Kika e Ramón


Fonte - KIKA, 1993

Na parte da sala de Kika e Ramón (Figura2), existem dois sofás, um à direita em veludo
vermelho e outro à esquerda, com estampa xadrez colorida. Pode-se notar a distinção entre as cores

                                                                                                                       
3Serial Killer - São indivíduos que cometem uma série de homicídios com um intervalo entre eles, durante meses ou anos,
até que seja preso ou morto. As vítimas têm o mesmo perfil e mesma faixa etária, sexo, raça etc. As vítimas são escolhidas
ao acaso dentro deste perfil e mortas sem razão aparente; ela é objeto da fantasia do serial killer. (SERIAL KILLER, 2010).  

 
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do sofá xadrez que representa a tipologia kitsch de “contraste de cores” claras brilhantes,
metamerismo4 de luminosidade. Esta tipologia compreende cores “puras, complementares, tonalidades
de branco ou a combinação de todas as cores do arco-íris”. O colorido é uma característica frequente
na estética kitsch (BATTEZZATI; DIAS, 2010).
Sobre os dois sofás há almofadas revestidas com um tecido que imita couro de vaca,
apontando o “ersatz”, tipologia que, para Moles (1971), remete a materiais mais simples disfarçados de
materiais de maior qualidade. Ainda nesta cena, destaca-se a roupa usada pelos personagens. A blusa
de Kika também é de cor vermelha e a saia é vermelha estampada com bolinhas brancas. Já a camisa
de Ramón tem a superfície estampada em preto e branco, e a calça é branca. O preto e o branco,
ausência de cores vibrantes, ajuda a afirmar uma personalidade retraída, enquanto o vermelho,
presente até mesmo nos cabelos de Kika, reforça o discurso de sua personagem extrovertida.
Na Figura 3 pode-se observar uma luminária que simboliza situações kitsch de “arte de
apartamento e decoração”, pois é um objeto comum apresentado de uma forma mais descontraída que
a convencional.

Figura 3 – Destaque para a luminária na sala de Kika e Ramón


Fonte - KIKA, 1993

As paredes no fundo da cena apontam a tipologia de “contraste de cores” mesclando as


temperaturas quentes e frias, contrastando com amarelo, vermelho e lilás. Ramón aparece novamente
vestido com cores sóbrias, de calça bege claro e camisa azul marinho, denotando o comportamento
contido do personagem. Kika usa um par de brincos de cores amarela e preta, saia com estampas
coloridas e blusa de cor escura, igualmente estampada, mas bastante decotada, o que também pode

                                                                                                                       
4Uma mesma cor pode mudar muito seu aspecto visual dependendo da cor na qual se encontrar embutida. Este efeito dá
mudança de aparência de uma cor dependendo da incidente sobre ela, do material de que está formado ou da diferente cor
que lhe sirva de fundo recebe o nome de metamerismo (CRIARWEB, 2010).

 
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ser um discurso de sua personalidade expansiva, característica das mulheres da obra de Almodóvar.
Juana também usa brincos de cor laranja, um vestido bastante estampado e, sobre ele, um avental
verde, com acabamento bordado em vermelho. Os figurinos, assim como o cenário, indicam a
predominância da tipologia “contraste de cores”. No agrupamento destes elementos observa-se o
“critério de heterogeneidade”, já que os objetos agrupados não têm relação direta entre si, mas juntas
compõem um arranjo cenográfico.

Figura 4 – Destaque para os objetos na sala de Kika e Ramón


Fonte - KIKA, 1993

Na cena da Figura 4 há um quadro com moldura dourada ornamentada, e na tela a imagem de


uma mulher nua deitada que, neste contexto, simboliza o “kitsch erótico ou sexual” devido à uma
conotação sexual explícita. Abaixo do quadro há um cachorro de brinquedo em formas geométricas,
relacionado à tipologia dos “objetos doces”, que transmitem uma sensação agradável, e atos kitsch de
“desenho Industrial”, pois é uma peça que faz referência a uma pintura do artista gráfico Keith Haring5
(Figura 5), um dos ícones da cultura underground da Nova York dos anos 1980.

                                                                                                                       
5 O artista plástico norte-americano Keith Haring (1958-90) deixou um legado de ícones famosos: pinturas, esculturas,

colagens, desenhos no metrô, em camisetas etc. Sempre preocupado que suas obras alcançassem o grande público,
preferia "expor" nas ruas, lojas, boates – as exposições em museus e galerias vieram bem depois. Ele queria um tipo de
arte que fosse realmente pública. Para Haring, era inconcebível pensá-la separada da vida real: “Para quê pintar se não se
é transformado por seu próprio trabalho?”. Seus desenhos, que têm na primazia da linha sua maior força, sobrevivem até
hoje (COSAC NAIFY, 2010).

 
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Figura 5 – “Icons 2”, 1990 de Keith Haring


Fonte - Haring, 2010

À esquerda da Figura 4, há um abajur com duas cúpulas estampadas que imitam pele de onça,
representando, mais uma vez, o “ersatz” e também a tipologia de “arte de apartamento ou decoração”.
Abaixo da tela, há uma lareira que tem um acabamento quadriculado nas cores preto e rosa em
contraste de luminosidade, que juntamente com a parede em dois tons de azul compondo um contraste
simultâneo de brilho, simbolizam a tipologia kitsch de “contraste de cores”. Vista como um todo, esta
cena apresenta também o “critério de heterogeneidade”.

Figura 6 – Bar da sala de Kika e Ramón


Fonte - KIKA, 1993

Na Figura 6 pode-se visualizar o bar da sala. À primeira vista, o impacto se dá pelo excesso de
informações visuais, cores e estampas contidas neste espaço, que assinala nitidamente o “contraste de
cores”. Analisando detalhadamente, à direita da cena (Figura 6) há um quadro com uma imagem
abstrata nas cores preta, branca, laranja e amarela. As paredes apresentam três tonalidades de azul e,
sobre a parede à esquerda, há alguns pequenos quadros e outros dois maiores, com a imagem de
paisagem, que indica a presença da tipologia kitsch de “lugares”, pois representa uma praia. Ao lado

 
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esquerdo destes quadros há uma cortina com fundo cinza e desenhos estampados nas cores verde,
azul, vermelho e branco.
O balcão do bar é revestido com ladrilhos nas cores bege, preto, amarelo, branco, tons de azul,
roxo, laranja, vermelho e com o tampo na cor verde, combinação que resulta novamente na tipologia
kitsch de “contraste de cores”. Sobre o balcão, há algumas esculturas de mulheres negras e japonesas
simbolizando a tipologia kitsch de “lugares” e objetos kitsch “sedimentares, empilhados através do
tempo”. Ao lado, há um vaso de cerâmica rosa com flores artificiais, apontando a existência do “ersatz”.
O figurino da personagem Kika é uma composição carregada de estampas, tanto na blusa, em
que predomina a cor azul marinho, quanto na saia, de cor amarela, reforçando uma cena saturada de
informações e afirmando a presença da tipologia kitsch de “contraste de cores”.
A composição da decoração da sala de Kika e Ramón, observada por totalidade, apresenta o
“princípio de inadequação”, porque a combinação desenfreada de elementos não se adéqua a um só
estilo; e objetos kitsch “sedimentares, empilhados através do tempo” devido ao acúmulo de elementos
em cena; “contraste de cores”; “critério de heterogeneidade”, pois as coisas não têm necessariamente
uma relação entre si; “critério de antifuncionalidade”, já que muitos artefatos não estão na cena para
executar alguma função; e “critério de autenticidade kitsch”, por se tratar de um arranjo distinto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O kitsch de Almodóvar é autêntico, único e criativo. Exerce uma função simbólica na cultura e
na sociedade. Cada indivíduo imagina uma forma diferente de se relacionar com aquilo que possui,
reinventa funções, ou até mesmo deixa de se importar com elas. Esta função simbólica pode revelar
uma sensação de afeto, estima, aconchego das pessoas com relação às coisas, pois a relação de
consumo tem uma conformidade com valores sociais e culturais. Para Ono (2006), uma pessoa se
relaciona com determinado objeto conforme o contexto e experiência vivenciados, considerando a
memória de emoções, sentimentos, construindo significados simbólicos. Desta forma, as estruturas
sociais, representadas pelos personagens, formam um complexo sistema de significação que ordena e
classifica a sociedade utilizando vários artifícios para promover determinada identidade em detrimento
de outra.
A aproximação da ambientação de espaços cenográficos e dos figurinos nos filmes do diretor
com o kitsch se dá pelo fato de a obra de Almodóvar ser categorizada como objeto de valor estético
distorcido ou exagerado, com presença de cores quentes e intensas e riqueza de detalhes. Almodóvar
utiliza o kitsch nas suas variadas formas de aplicação e, sobretudo, na composição estética de seus
cenários. O diretor direciona a composição dos ambientes e dos trajes de modo que reflitam a

 
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personalidade de seus personagens. Tanto a moda quanto o arranjo cenográfico são compostos por
artefatos que constroem e traduzem as preferências, personalidades e identidades.
Percebe-se a importância de estudar o kitsch, presente nos objetos em cena e nos figurinos,
para compreender o cotidiano das pessoas, o uso das coisas e os modos de colocação no ambiente, a
responsabilidade de um projeto para traduzir não só questões técnicas, mas também desejos, sonhos,
sentimentos que transformam o dia-a-dia, valorizam as experiências vividas e permitem apropriações,
significações e reinvenções de arranjos por parte dos usuários.

REFERÊNCIAS

Trabalhos de conclusão de curso e dissertações

BATTEZZATI, Ligia Cristina. A personalização dos ambientes domésticos através do uso dos
estilos vintage e retrô na decoração contemporânea. 181f. Dissertação de mestrado. Programa de
Pós-Graduação em Tecnologia. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 2013.

BATTEZZATI, Ligia Cristina; DIAS, Luciane Cristina. O kitsch na cenografia de Almodóvar. 169 f.
Trabalho de Conclusão de Curso. Tecnologia em Design de Móveis. Universidade Tecnológica Federal
do Paraná, Curitiba, 2010.

BELTRÃO, Hallina. Eu amo kitsch: Uma análise da atitude kitsch na obra de Pedro Almodóvar. 84 f.
Trabalho de Conclusão de Curso. Bacharel em Design – Programação Visual. Universidade Federal de
Pernambuco, 2005. Disponível em:
<http://sdogma.uclm.es/uclm/html/tesis/descarga/Eu%20amo%20kitsch.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2010.

Livros

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Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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Zahar, 2013.

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ONO, Maristela. Design e cultura: uma sintonia essencial. Curitiba: Edição da autora, 2006.

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

 
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SERIAL KILLER. Serial Killers. Disponível em: <http://serialkiller.com.br/?page_id=14>. Acesso em: 25


ago. 2010.

Filme

KIKA. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Agustín Almodóvar, Esther García. Madri (Espanha). El
Deseo S.A, 1993, 1 DVD.

Woodward
Ono

 
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Trajes para cena: A abordagem dos trajes no cinema de Almodóvar e da indumentária de


Frida Kahlo no processo de criação de figurinos do Cruor Arte Contemporânea

Costumes for scene : The approach of the costumes in the film Almodóvar and Frida Kahlo's
clothing in the creation of the costumes Cruor Contemporary Art process

Surama Sulamita Rodrigues de Lemos (UFRN)


surama-rodrigues@hotmail.com

Resumo: Este artigo apresenta uma investigação acerca dos processos de criação em figurino
da coligação Cruor Arte Contemporânea e como são pesquisadas e criadas as vestimentas da
prática cênica, sendo desenvolvida através de um processo colaborativo, a partir das principais
referências estéticas como a vida e obra plástica de Frida Kahlo, a cinematografia de Pedro
Almodóvar, a estética da loucura de Antonin Artaud e como essas referências dialogam com a
moda e com a construção de trajes para a cena.
Palavras-chave: investigação; processos de criação; figurino; Cruor Arte Contemporânea; Moda.

A coligação Cruor Arte Contemporânea surgiu com esse nome em 2012 fruto do projeto
de ações integradas “Processos de criação em arte: vivenciando e apreendendo cinema, dança
flamenca, cultura espanhola e teatro”, idealizado pela Profa Dra Nara Salles dentro da UFRN1.
Desde 2013 o Cruor continua articulando ações nas dimensões de extensão, ensino e pesquisa
através de um novo projeto de ações integradas intitulado “Arte Contemporânea e Cultura
Investigadas Para Conhecer, Apreender e Transformar”, que ainda está em andamento,
proporcionando ações em diversas linguagens artísticas como cinema, artes visuais,
performance, teatro e dança, mantendo relação com cursos de graduação e pós-graduação do
DEART2, propondo desenvolver, através dessas linguagens artísticas, questões pertinentes ao
campo do fazer artístico, estético e cultural do instaurador.
A coligação Cruor trabalha partindo do viés da instauração que se configura numa
produção cênica híbrida resultante da relação de algumas linguagens artísticas, mais
especificamente a instalação e a performance. O Cruor surgiu trazendo esse conceito através

                                                                                                                       
1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte
2 Departamento de Artes

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dos estudos desenvolvidos pela coordenadora do grupo já mencionada3, que adotou esse novo
estilo de fazer cênico a partir de suas descobertas:

Comecei a experimentar a justaposição e interação do teatro e da dança com a


música e as artes visuais, buscando dessa forma uma abrangência maior entre
as linguagens artísticas, para a prática da cena, gerando o que começamos a
nomear como environment, o que hoje denomino como instauração cênica, na
minha prática. Havia finalmente encontrado um estilo de fazer cênico que me
extasiava e onde poderia ter a dança, o movimento, não como uma coreografia
ilustrativa, narrativa ou demonstrativa, mas como parte constitutiva da
persona(gem) e da encenação. (SALLES, 2004, p. 34)

O Cruor tem como referências norteadoras a estética da vida e obra da artista plástica
mexicana Frida Kahlo e a obra cinematográfica do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, além do
embasamento teórico e também estético permeado pelas vias abordadas no Teatro da
Crueldade do autor Antonin Artaud, e sua relação com o surrealismo, trazendo a discussão da
estética da loucura.
Enquanto aluna do curso de artes visuais da UFRN, entrei na coligação Cruor no
segundo semestre de 2012, inicialmente fazendo parte da cena durante o processo de criação
da encenação “Carmin”, participando dos encontros nos laboratórios de criação, com processos
ligados ao corpo, voz e movimentação cênica. Dentro desta perspectiva a construção das
movimentações cênicas refletem as sensações, sentimentos, pensamentos, atitudes e
realidades trazidas no corpo e na voz de cada membro do grupo, aliadas à estética do figurino,
da maquiagem, da iluminação e da cenografia.
Durante esses encontros de laboratórios e apresentações foi desenvolvido um
procedimento metodológico que consiste na criação de pequenos núcleos a fim de uma melhor
estrutura organizacional, e assim alguns núcleos foram desenvolvidos, entre eles o núcleo de
figurino, do qual eu sou uma das integrantes por interesse próprio, já que neste momento eu
também estava frequentando alguns cursos relacionados à área de figurino/moda como o curso
Desenho de Moda e o curso Estilista de Confecção do Vestuário4. Desta maneira, além de
participar da cena como instauradora, agora estava participando dos bastidores da pesquisa e
criação de figurinos, me introduzindo como monitora voluntária na disciplina de Figurino e
Maquiagem do curso de dança do DEART, que tem como docente a Profa Dra Nara Salles, esta
propõe uma ação ligada ao Cruor já que o núcleo de figurino conta com estudos e pesquisas
frequentes associado ao Laboratório de Criação, Execução e Manutenção de Trajes para a
Cena, sob a coordenação da professora citada, em execução desde 2014.
                                                                                                                       
3 Profa Dra Nara Salles.
4 ambos no SENAI Clovis Motta em Natal/RN.  

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O Laboratório de Criação, Execução e Manutenção de Trajes para a Cena teve seu


princípio enquanto projeto a partir das aulas da disciplina de Figurino e Maquiagem do curso de
dança no DEART da UFRN, que tem como docente e coordenadora do projeto a professora já
mencionada, e se configura no espaço onde atuo como monitora voluntária e cumpro estágio
docência. No decorrer das aulas, notamos que a disciplina necessitava de um espaço onde
possibilitasse uma ambientação propícia para o desenvolvimento de aulas mais práticas e com
contato direto com esses dois pilares da disciplina que é o figurino e a maquiagem, pois essa
disciplina se articula com outros componentes curriculares dos cursos de dança e teatro do
DEART, por isso a necessidade de se ter um espaço onde fosse possível criar, executar e
manter em acervo os figurinos usados nas produções artísticas ligadas ao Departamento de
Artes, mantendo figurinos catalogados com um sistema de empréstimo para alunos do próprio
departamento, bem como para pessoas interessadas da comunidade externa.
Esse projeto gerou desdobramentos e se entrelaçou ao Cruor Arte Contemporânea,
tendo o núcleo de figurino diretamente ligado ao Laboratório de Criação, logo, eu enquanto
integrante do núcleo de figurino do Cruor, monitora voluntária da disciplina de Figurino e
Maquiagem, me tornei consequentemente monitora voluntária também do Laboratório de
Criação, Execução e Manutenção de Trajes para a Cena, o que me deu mais aporte teórico e
prático para desenvolver esta pesquisa e aperfeiçoar a minha prática através de aulas que
envolvem modelagem, corte e costura como pode ser observado na imagem a seguir:

Figura 1: As monitoras do Laboratório de Criação Jéssica Cerejeira e Surama Rodrigues durante a aula
prática de corte e costura de figurinos feitos para a instauração cênica “Tai” do Cruor Arte Contemporânea na
disciplina de Figurino e Maquiagem

Fonte: Acervo Pessoal

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O laboratório de criação enquanto espaço físico funciona desde 2014 sempre atendendo
as demandas das disciplinas já mencionadas, como também gerando uma programação extra de
minicursos, oficinas, palestras, grupos de estudos, entre outras diversas ações na áreas de
moda/figurino, incentivando a pesquisa, o pensar e o fazer artístico, além de abrigar um
nanocine que fomenta o projeto CineCruor, onde é exibido uma vez por semana filmes que
servem de referências inspiradoras que funcionam como estímulo criativo para os trabalhos do
grupo contando sempre com uma conversa ao final da sessão, o que possibilita a análise e a
discussão sobre os figurinos dos filmes, entre eles as películas do cineasta espanhol Pedro
Almodóvar.
O desenvolvimento do processo de criação dos figurinos se configura em quatro etapas:
1- A observação durante as vivências nos laboratórios de criação da coligação Cruor,
observando e analisando as movimentações dos corpos no espaço. 2- A investigação de fato,
onde estarei inserida no processo criativo, participando, junto à coligação, dos laboratórios de
criação, percebendo as movimentações corporais e a troca com o espaço cênico. Como também
a troca através de conversas com os integrantes e pesquisa visual refletindo sobre as
referências estéticas do Cruor já citadas. 3- A experimentação de ideias de formas que
resultarão em trajes para a cena. 4- A realização, que se pauta no momento de estruturação e
configuração da encenação ‘loucure-se”, a mais recente produção, ainda em andamento.
O processo de criação tem três enfoques na construção do figurino: 1- o meu olhar
enquanto instauradora, 2- o de figurinista e 3- a relação forma-conteúdo da obra na sua relação
com o contexto histórico-cultural-social que permeia e determina essa obra. Esta estrutura está
permeada às vivências e olhares dos demais integrantes do processo, numa proposta de
apropriação colaborativa pelo grupo. Esses enfoques visam a abordagem da indumentária de
Frida Kahlo e dos trajes no cinema de Almodóvar. É uma referência que reverbera muito
fortemente na concepção dos figurinos com as aspirações imagéticas dos seus filmes, através
de pesquisas de vestimentas construídas para essas produções cinematográficas, as cores, as
formas e os movimentos, que contribuem para uma fluidez da narrativa fílmica, por este viés
surge o seu contato com a moda através de estilistas e designers de moda, que criaram figurinos
para os filmes como por exemplo o emblemático estilista Jean-Paul Gaultier que criou o figurino
da personagem Andréa Caracortada no filme “Kika” (1993), como pode ser observado na
imagem a seguir:

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Figura 2: Montagem de cenas do filme “Kika” com a personagem Andrea Caracortada


Fonte: Site GNT/Globo

Essa parceria entre o cinema de Almodóvar e a moda de Gaultier continua nas próximas
produções cinematográficas como “Má Educação” (2003), onde Ignacio Rodriguez interpretado
por Gael García Bernal vive também uma travesti chamada Zahara e usa um figurino assinado
por Gaultier como pode ser notado na imagem abaixo:

Figura 3: Montagem de cenas do filme “Má Educação” com a caracterização da personagem travesti Zahara,
interpretada por Gael Garcia Bernal e com o croqui ao meio do figurino feito pelo estilista Jean Paul Gaultier
Fonte: Site GNT/Globo

Por fim, a parceria entre o estilista e o cineasta mencionados termina no filme “A Pele
Que Habito” (2011), com um figurino bem divergente dos anteriores, enquanto nos filmes
anteriores as personagens usavam figurinos mais extravagantes, nesta produção o figurino conta
com trajes em formas minimalistas e cores variando entre tons neutros que habitam todo o corpo
da personagem Vera, interpretada por Elena Anaya, como mostra a imagem a seguir:

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Figura 4: Montagem de cenas do filme “A Pele Que Habito” com a caracterização da personagem Vera em seu
figurino minimalista
Fonte: Site GNT/Globo

Outra marca de moda que aparece com frequência participando das produções dos
figurinos dos filmes de Almodóvar é a grife Chanel, principalmente no filme “De Salto Alto”
(1993), onde a personagem protagonista Rebeca, vivida por Victoria Abril, tem todo o seu
figurino desenvolvido pela marca nos tailleur de tweed que é um ícone da grife, a clássica bolsa
com alça de correntes, o colar de pérolas símbolo da fundadora da marca a estilista Coco
Chanel, e os óculos com o emblema da marca na lateral, como podemos analisar na imagem
abaixo:

Figura 5: Montagem de cenas do filme “De Salto Alto” com a personagem Rebeca
Fonte: Site GNT/Globo

Além desse filme, a marca Chanel continuou integrando a produção dos figurinos dos
filmes "Tudo sobre minha mãe" (1999) e "Abraços Partidos" (2009), do mesmo cineasta, sempre
trazendo cores fortes e formas chamativas contrastando com o cenário e a fotografia, a todo
momento abordando a estética do Kitsch, do exagero, do extravagante, e é essa abordagem
estética com esses elementos que inspiram o processo de criação dos figurinos do Cruor, além
de trazer temas como sexualidade e gênero que permeia a pesquisa do grupo. Em “Tudo sobre
minha mãe” a grife Chanel está mais uma vez presente com a peça ícone da marca: o tailleur

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que faz parte da personagem Agrado, interpretada por Antonia San Juan que pode ser notada na
imagem abaixo:

Figura 6: Cena do filme “Tudo Sobre Minha Mãe”, onde a personagem Agrado usa o tailleur de cor forte da Chanel
como figurino
Fonte: Site Missowl

Em “Abraços Partidos” o figurino em sua grande parte é produzido também pela grife
Chanel sob a direção criativa do estilista Karl Lagerfeld, que está no comando da marca desde
1983. O filme traz a atriz Penélope Cruz como Lena usando trajes Chanel durante toda a
narrativa fílmica como pode ser observado a seguir:

Figura 7: Cena do filme “Abraços Partidos”, onde a personagem Lena usa trajes da Chanel para compor o figurino
Fonte: Site Lilian Pacce

Por fim, outro filme que não faz parte da cadeia de filmes de Almodóvar, mas que traz
referências estéticas no figurino é o filme “Quinto Elemento”, que apresenta um traje criado pelo
estilista Jean Paul Gaultier como mostra a imagem abaixo:

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Figura 8: Montagem com a capa e cena do filme “Quinto Elemento”, onde a personagem usa um traje inspirado em
Frida Kahlo para compor o figurino
Fonte: Site Sigbol Fashion

O figurino representado na imagem apresenta uma clara referência à obra de arte “A


Coluna Partida” da artista mexicana Frida Kahlo, que inspira e norteia a estética dos trabalhos do
Cruor, a obra está retratada na imagem a seguir:

Figura 9: Obra de arte “A Coluna Partida” (1944) de Frida Kahlo


Fonte: Site FFW

Essa artista foi e é considerada até hoje um ícone de estilo ressaltado por várias revistas
de moda, inclusive a revista Vogue, umas das mais influentes nesse segmento, como mostra a
imagem abaixo:

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Figura 10: Revista de moda “Vogue”, que traz Frida Kahlo na capa
Fonte: Site da Vogue México

Frida Kahlo atravessa os trabalhos do Cruor a partir do diagnóstico da sua vida pessoal
com sua personalidade forte e extremamente peculiar em suas vestimentas, e também a partir
da análise da sua vida profissional devido a influência da grandiosa cultura mexicana além das
cores e formas traduzidas em suas obras de artes visuais, que vão influenciar seu
comportamento e consequentemente inspirar os trabalhos do cruor, somada a outra importante
referência estética que é o cineasta espanhol Pedro Almodóvar com sua filmografia.
A partir dessas referências, quando entro para o Cruor, me aproprio dessa estética e a
primeira instauração cênica que tive a oportunidade de participar como instauradora e como
figurinista foi “Experimento Água”, que pode ser observada na imagem abaixo:

Figura 11: Apresentação da instauração cênica “Água” na Praça Vermelha em Natal/RN no evento “Feira
Anarquista” em 2012.2
Fonte: Acervo pessoal

No decorrer dos laboratórios de criação para essa instauração cênica, além de contribuir
cenicamente, tive a possibilidade de fazer parte do processo de criação do próprio figurino da
minha persona, entendendo aqui a palavra persona na acepção de Jung significando máscara.

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Este termo provém do teatro grego, pois cada personagem utilizava uma máscara para construir
o seu personagem. A palavra personagem, por sua vez, surgiu da palavra persona. Em latim,
persona quer dizer através do som. A persona é como se fosse um papel para interpretarmos
para sermos vistos pelos outros. Jung percebeu que nós agimos de maneira diferente em cada
ambiente social, em que precisamos ser aceitos para pertencer a esse grupo específico, assim
temos que nos adaptar dependendo da circunstância. Ou seja, isola-se uma persona que se
apresenta para viver aquela ação de forma sensório e somática em relação as proposições
encontradas no desenrolar da ação e de forma relacional.
Para o desenvolvimento desse processo me debrucei sobre a pesquisa da vida da artista
Frida Kahlo que está presente em todas as suas obras plásticas e as cores empregadas na
maioria dos filmes de Pedro Almodóvar, e pude constatar que a cor primária vermelha é um
elemento forte e bastante utilizado pela direção de arte dos filmes, logo a minha escolha por
essa cor na construção do figurino da minha persona, além disso diagnostiquei a partir da
análise das obras plásticas a modelagem das vestimentas da Frida, mais especificamente suas
saias, e optei por uma saia que traz a ideia da mesma modelagem em “A” com aplicação de
babado na barra. Aos poucos esse mesmo figurino foi sofrendo algumas pequenas
modificações, como por exemplo o acréscimo do salto alto muito utilizado nos figurinos das
obras cinematográficas de Almodóvar a partir de mais pesquisas das referências estéticas que
norteiam o Cruor e dos laboratórios de criação cênica. Desta forma, com essa bagagem estética,
pude contribuir também com sugestões nos figurinos dos outros integrantes
A minha atuação nos processos de criação dos figurinos de outros trabalhos cênicos
ocorre inicialmente a partir da análise das películas de Almodóvar, através dos figurinos
utilizados a cada cena, vou percebendo os elementos com maior evidência, por exemplo, na
maioria dos filmes desse cineasta percebo figurinos muito coloridos, com fortes contrastes. Já
reparando na modelagem identifico o uso frequente de meia-calça, de leggings, de calças justas,
da fibra sintética da lycra e do salto alto sempre presente. Um dos filmes intitulado “De Salto
Alto”, exemplifica o uso de todos esses elementos juntos, como mostrado a seguir:

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Figura 12: Capa do filme “De Salto Alto” do cineasta Pedro Almodóvar.
Fonte: site ciudaddemexicodf

Esses elementos contribuem como referências para o processo de criação e constituem


os trajes utilizados em algumas produções cênicas do Cruor, como nas instaurações “Exposição
Peitos” e “No Me Kahlo”. Durante o processo criativo, pelo viés da construção colaborativa entre
o grupo, cada instaurador teve a liberdade de escolher a cor que gostaria de vestir através das
características que envolvem a sua persona, trazendo esse contraste de cores entre a meia-
calça e o sapato de salto alto, esse jogo cromático presente nos filmes exemplificadas nas
imagens a seguir:

Figura 13: Instauração cênica “Exposição Peitos


Fonte: Acervo Pessoal

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Figura 14: Instauração cênica “No Me Kahlo”


Fonte: Acervo Pessoal

Por fim, a outra principal referência é o embasamento teórico e também estético


permeado pelas teorias do autor Antonin Artaud, com seus escritos e seus desenhos abordando
o tema da sua vida e obra: a loucura, como mostra a imagem a seguir:

Figura 15: Representação imagética de autoria de Artaud intitulada “La projection du veritable corps” de 1948
Fonte: Texto “ O Teatro da Cura Real” de Ana Teixeira

A obra de Artaud aborda a discussão da estética da loucura e suas vias surrealistas,


servindo como fontes de inspiração para o desenvolvimento de instaurações cênicas. Abordando
esse viés da relação Arte x Vida, que atravessa essas três referências, presentes no mais
recente trabalho “Loucure-se” em desenvolvimento pelo grupo a partir de laboratórios constantes
no Hospital Psiquiátrico João Machado, vivenciando essa troca artística com os pacientes do
hospital.

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A coligação Cruor trabalha em sua essência com processos colaborativos, não existindo
uma hierarquia de papeis, nem mesmo pela coordenação, ou seja, todos os membros da
coligação têm total autonomia para criar, propor, contribuir, contagiando todos os membros a
construírem e criarem juntos, mesmo com a divisão de núcleos, o essencial é que o trabalho
aconteça junto com participação efetiva de todos. O núcleo funciona para dar um suporte ao
processo e não para impor algo, e é como funciona o núcleo de figurino por exemplo, pois são
colocadas ideias que vão sendo moldadas pelo restante dos membros, tudo em comum acordo
entre as partes envolvidas. Cada um colaborando e propondo suas ideias e essas sendo
discutidas e transformadas colaborativamente, é uma dinâmica de troca, de compartilhamento,
logo, o meu trabalho enquanto figurinista é somado à vivência com os demais integrantes da
coligação Cruor, durante os laboratórios de criação.
Por meio desse relato, mantenho a relação investigador-investigado como condição para
o desenvolvimento desta pesquisa, enfatizando a questão da interação entre o sujeito e seu
objeto de pesquisa, tendo em vista essa conexão, diante desta minha ação enquanto artista-
pesquisadora, se faz necessário a utilização do método da investigação-ação, que segundo
Florentino (2012, p. 134) “é aquele indicado quando o pesquisador quer conhecer uma
determinada realidade, mas, sobretudo, quer intervir, participando como coinvestigador em todas
as etapas do processo da pesquisa.” A seguir apresento a representação imagética destas
etapas:

Figura 14: Esquema ilustrativo do ciclo da investigação-ação


Fonte: TRIPP, 2005, p. 446.

A partir deste viés de imergir no meu próprio objeto de estudo e através também da
vivência de criação colaborativa dentro da coligação Cruor Arte Contemporânea, trago um aporte
metodológico que envolve toda a minha pesquisa, que é a Pesquisa-ação, entendida como um

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 734


Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

tipo de investigação-ação, é uma metodologia considerada participativa, que vem acompanhada


de outros termos como pesquisa participante, pesquisa empírica, pesquisa-diagnóstico, pesquisa
experimental, entre outros. Entendo que a

Pesquisa-ação é uma forma de investigação baseada em uma autorreflexão


coletiva empreendida pelos participantes de um grupo social de maneira a
melhorar a racionalidade e a justiça de suas próprias práticas sociais e
educacionais, como também o seu entendimento dessas práticas e de
situações onde essas práticas acontecem... (KEMMIS e MC TAGGART,1988,
apud Elia e Sampaio, 2001, p.248).

Nesta perspectiva, a pesquisa além de ser uma investigação sobre o que já existe, é
também uma proposição de novas práticas que possam contribuir de forma positiva para o
processo de criação na área de trajes para a cena. Na prática essa metodologia vem sendo
adotada desde o início dos trabalhos junto à coligação Cruor Arte Contemporânea, em processo
de criação das instaurações cênicas durante os encontros e vivências dos laboratórios de
criação, havendo um mapeamento e reconhecimento adotando a metodologia da pesquisa-ação.

REFERÊNCIAS

Livros

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KAHLO, Frida. O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo. Trad. Mário Pontes. 3 ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2012.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2008.

Teses ou Dissertações

SALLES, Nara. Sentidos: Uma instauração cênica – Processos criativos a partir da poética de
Antonin Artaud. Tese, UFBA, Salvador, 2004.

Revistas ou Periódicos

TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Revista Educação e Pesquisa. São
Paulo: USP, n. 3, set/dez 2005.

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 735


Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2016

FLORENTINO, Adilson. A pesquisa qualitativa em artes cênicas: romper os fios, desarmar as


tramas. In: Narciso Telles. (Org.). Pesquisa em artes cênicas. 01ed.Rio de Janeiro: E-papers,
2012, v. 01, p. 05-138.

NASCIMENTO, D. M.; SAMPAIO, M. L. P.; NETO, P. F. O.; Educação, Cultura e Diversidade:


pesquisa e prática educativa dos espaços escolares e não-escolares. In: IV Semana de estudos,
teorias e práticas educativas – SETEPE. 2012, Pau dos Ferros. Anais... Mossoró: Queima-
Bucha, 2012. P. 164 – 165.

Sites

BRADFORD, Mariana. No aniversário de Almodóvar, relembre figurinos marcantes de sua


carreira. Listamos os figurinos mais marcantes dos filmes do cineasta espanhol Pedro
Almodóvar. Disponível em: < http://gnt.globo.com/moda/materias/no-aniversario-de-almodovar-
relembre-figurinos-marcantes-de-sua-carreira.htm> Acesso em: 18 de out de 2015.

DUARTE, Marcela. Dez razões para amar Frida Kahlo e ver a exposição em são Paulo.
Disponível em: <http://ffw.com.br/lifestyle/cultura/dez-razoes-para-amar-frida-kahlo-e-ver-a-
exposicao-em-sao-paulo-789/> Acesso em: 18 de out de 2015.

GUIMARÃES, Fernanda. Tudo Sobre Minha Mãe – Almodóvar. Disponível em:


<http://missowl.com/pt-br/tudo-sobre-minha-mae/> Acesso em: 18 de out de 2015.

PACCE, Lilian. 9 destaques no primeiro dia da Mostra. Disponível em: <


http://www.lilianpacce.com.br/moda/destaques-mostra-internacional-cinema-estreia/> Acesso
em: 18 de out de 2015.

TALAMA, kelly. Desvelamos las claves del enigma de la artista mexicana. Disponível em:
<http://www.vogue.mx/especiales/frida-kahlo/articulos/carta-vogue/1669> Acesso em: 30 de
Junho de 2015.

ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016 736


Os Fantasmas se Vestem: uma análise da visão morte
retratada por Tim Burton
Ana Claudia Alcantara, Fundação Universitária Regional de Blumenau
Maio 2016 Orientadora: Profa. Juliana de Mello Moraes  
Introdução
A partir do filme Os Fantasmas se Divertem (1988), essa pesquisa analisa as Na história o casal Maitland falecidos no início do filme representa o pós morte, pois
relações entre o figurino, os comportamentos dos personagens e as representações da não são compostos de carne, não obedecem às leis da gravidade, entretanto não
morte. O cinema enquanto ferramenta de criação proporciona possibilidades para constituem puros espíritos que não possam ser vistos nem ouvidos (Ariès, 1982). São
abordar diferentes temáticas em virtude da sua interdisciplinaridade. É nesse sentido chamados de fantasmas e logo após sua morte preservam sua última imagem deixada na
que o cinema oferece uma diversidade de material para desenvolver ideias, conceitos e terra, tanto na aparência referente a idade quanto nas roupas (figura1).
conexões com diversas áreas do conhecimento. Já o casal Deetz, novos moradores da casa assombrada, são provenientes da
No que se refere ao filme Os Fantasmas se Divertem, observa-se que o estilo metrópole, porém mesmo mudando-se para o campo permanece com seus antigos
mais representativo é o gótico. Este expressa na trama criada por Tim Burton as costumes, entre os quais predomina a personalidade de descaso pelo próximo e o
relações intrínsecas entre esses dois universos. O estilo gótico aparece inicialmente no excesso de preocupação consigo próprio (figura 2). Paralelamente, Lydia a filha do casal,
Reino Unido, na década de 1980, e expressava o sentimento de inadequação dos seus carrega as características góticas que transparecem com clareza no seu modo sombrio de
adeptos aquela realidade, indicando também suas crenças e anseios em relação a viver a vida. Expresso pelos seus trajes com predominação preta em contraste com a pele
morte. Nesse contexto, o cineasta Tim Burton em sua obra mostra essas correlações branca, que demonstra seu isolamento com o mundo exterior (figura 3).
entre a vida e a morte.
Objetivos
O objetivo desta pesquisa consiste em analisar, as conexões entre os figurinos
e os comportamentos dos personagens, em relação a morte no filme Os Fantasmas se
Divertem. No intuito de compreender como o figurino estabelece uma representação
das relações entre a vida e a morte.
Materiais e Métodos
O filme Os Fantasmas se Divertem foi selecionado para analisar as conexões
entre a vida e a morte a partir da construção do estilo manifesta no figurino e a suas Figura 1. Casal Maitlad Figura 2. Casal Deitz Figura 3. Lydia
vinculações com o comportamento dos personagens. Foram selecionados três
personalidades distintas para demonstrar a aproximação e distanciamento com a Fonte: http://www.imdb.com/title/tt0094721/?ref_=rvi_tt
Conclusões
morte. Utilizou-se de livros e artigos científicos sobre a história do cinema, a Conforme proposto pela pesquisa, percebe-se como o figurino dos personagens
representação da morte e da moda, no intuito de fundamentar teoricamente o demonstra sua personalidade. Deixando claro as aproximações e distanciamentos entre
assunto.
Resultados e Discussões a vida e a morte.
A morte sempre foi uma situação difícil de ser descrita, dessa maneira ela abre
E como a cultura gótica representada na personagem Lydia mantém o vinculo
uma amplo espaço para a imaginação de quem lhe conduz em um conto. No caso do
desses dois mundos paralelos, por meio de suas roupas com ar fúnebre e sombrio.
cineasta sua percepção pós morte foi construída pela sua solitária infância, juntamente
com suas leituras de Edgar Allan Poe (1809-1849) e inspiração de Vicent Price Referências Bibliográficas
(1911-1993), os quais contribuíram para formação da sua visão sombria. ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro : F. Alves, 1981-1982. 2v.
No universo criado em seu filme Os Fantasmas se Divertem, ele aproxima dois (Ciências sociais).
mundos em paralelo: dos vivos e dos mortos. A partir da análise dos personagens e as MACKENZIE, Mairi. -Ismos: para entender a moda. São Paulo : Globo, 2011. 159 p, il.
conexões com seus figurinos, observa-se que a sua relação é um dos elementos MURACA, Márcio Henrique: Tim Burton e o Burtonesque: A invenção do contos de
fundamentais para expressar esses mundos, por meio das suas texturas, cores e fadas. Disponível em: <http://apl.unisuam.edu.br/semioses/pdf/n7/n7_art_12.pdf>
modelagens. Esses elementos possibilitam separar os personagens do filme em três Acessado em 11 fev. 2016.
estilos distintos de acordo com suas peculiaridades. XAVIER, Ismael. O cinema no século. Rio de Janeiro : Imago, 1996. 382p, il.
Memórias, modas e fotografias - Exercício de investigação em um blog de moda
CAMILA ANTUNES VILLANOVA – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ, UFPR

maio 2016
O blog THE SARTORIALIST é um projeto de SCOTT SCHUMAN, fotógrafo 2010 PERIODICIDADE DAS POSTAGENS
2011 ANUAL E SEMANAL
de moda, que tem como tema moda e street style. A rua é o plano 2012 3%
de fundo e local de registro de famosos e anônimos. 2013 2%
quarta 10%
2014 0
Foi realizada uma pesquisa 2015
sexta 4%
quantitativa para caracterizar coleções virtuais de imagens.

32
32
A coleção VINTAGE PHOTOS foi selecionada por sua relação entre 47%

moda e vida cotidiana. A maioria das postagens é composta por fotos


– provenientes de diferentes acervos pessoais – e textos
(depoimentos dos cedentes das fotografias, comentários de 34%

Schuman, ou ambos). Foi feito o registro de 100 postagens desta


coleção.
fonte_a autora fonte_a autora
GRUPO DE PESSOAS RETRATADAS
mulheres
A metodologia de pesquisa foi dividida em QUATRO etapas:
grupo 2 7 1ª_estudo exploratório do blog
duplas 3 4 2ª_levantamento das informações contidas nas postagens
sozinhas/os 21 23 3ª_registro das postagens
casais

família

casais 18 4ª_construção de gráficos das informações mais relevantes.


crianças 1
filhas/os 4
MAPEAMENTO DOS PAÍSES
amigas/os 5
Alemanha
homens Brasil O primeiro objetivo foi analisar a forma de organização das
fonte_a autora 19 Japão postagens da coleção VINTAGE PHOTOS no blog THE SARTORIALIST.
postagens

Como resultados, obtivemos dados sistematizados em 4 EUA Espanha Já o principal propósito da pesquisa foi entender as temáticas
gráficos sobre as categorias: mapeamento dos países (quando predominantes nas postagens em relação as questões de
Austrália identidade e estilo de vida das pessoas retratadas associadas à
identificados), periodicidade das postagens e grupos de pessoas
retratados. A maior reflexão é pensar em como as coleções de Inglaterra noção de moda e modos de vestir.
França
imagens podem ser caracterizadas. Itália Há a predominância de uma narrativa que exalta ideias de estilo
fonte_a autora
e senso estético pessoal, ora associadas com à juventude, ora
The Sartorialist http://thesartorialist.com com a herança familiar, a classe social, ao comportamento, à
GURAN, Milton. Considerações sobre a constituição e a utilização de um corpus etnia, ao país.
fotográfico na pesquisa antropológica. Discursos fotográficos. V.7, n.10. Londrina: UEL,
janeiro-julho 2011.

* ORIENTADOR: PROF. DR. RONALDO DE OLIVEIRA CORRÊA


“ARTE NA MODA: COLEÇÃO MASP RHODIA”.
O retorno do vestuário para o Museu de Arte de São Paulo – MASP.
maio 2016 Flávia Scandar Soares (Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP)
Durante toda a década de 60 a Rhodia, indústria MATERIAIS E MÉTODOS    
química francesa, promoveu seus fios sintéticos no CONCLUSÕES PRELIMINARES
O desafio metodológico atravessa a antropologia, afinal a
Brasil por meio de desfiles-show, coleções e editoriais (pesquisa em andamento)
intenção não é estudar apenas as peças como objetos
que foram responsáveis por revolucionar a história da Já é possível perceber a partir das escolhas de
de museu, e sim, entender o que são essas peças e qual
moda nacional alem de apresentarem uma nova postura expografia e dos materiais auxiliares utilizados que as
a relação desses vestuários na instituição e com o
para as mulheres do país. Em 1972 a Rhodia doou 79 peças foram expostas como objetos de arte valorizando
público, não esquecendo que as roupas são as
dessas peças, selecionadas por Pietro Maria Bardi, muito mais as estamparias e os artistas do que as
protagonistas da pesquisa. Para isso realizei uma análise
diretor-fundador do museu, para o MASP, formando uma modelagens e os estilistas. Essa descontextualização
expografica, para compreender o que é a Coleção
coleção de roupas criadas com a colaboração de prejudica a compreensão da importância desse
Rhodia em sua totalidade e qual as intenções da
artistas e estilistas e sendo o único conjunto momento da moda como movimento cultural, deixando
instituição com esse acervo em exposição. Alem disso
remanescente dessa produção. evidente a fragilidade que permanece arraigada na
acompanhei os impactos na imprensa, para entender
A coleção Rhodia já foi estudada anteriormente por relação do homem com o vestuário e na sua
como a temática repercute. Nesse momento utilizarei da
Maria Claudia Bonadio e Patrícia Sant’Anna que valorização como cultura material.
impressa para voltar ao passado e buscar a trajetória
levantaram os principais aspectos sobre a musealização dessas roupas enquanto coleção. Com esse movimento
e a relevância dessas peças como cultura material, pretendo compreender qual é a leitura que se faz, quais BIBLIOGRAFIA
porem um novo fator foi acrescentado à essa trajetória, as informações que circularam e como elas repercutem BRAGA, João. Reflexões sobre a moda. Volume I.
o retorno ao salão de exposição do MASP, onde as 78 para a sociedade. São Paulo : Editora Anhembi Morumbi, 2005.
peças ficaram expostas ao publico reinaugurando uma BONADIO, Maria Claudia. Moda é coisa de museu?
mudança de mentalidade dentro da política de curadoria RESULTADOS PRELIMINARES (pesquisa em andamento) _________. Moda   e   publicidade   no   Brasil   nos  
com o retorno a ideais originais da instituição, sendo de —  Valorização das peças apenas no seu contexto anos   1960.   1ª   Ed.   São   Paulo   :   nVersos.  
extrema importância para compreendermos a relação do artístico (estampas criadas por artistas de renome)
—  Deslocamento das peças do seu contexto histórico 2014.  
homem com a materialidade e pensarmos que atributos _________. O fio sintético é um show: Moda,
desvalorizando-as como vestuários e como primeira
dessas peças retornam ao interesse da instituição e do manifestação de construção de uma moda nacional política e publicidade (Rhodia S.A.
público, e que processos históricos influenciaram essa 1960-1970). Tese de doutorado em História.
ruptura no interesse pelo vestuário como cultura IFCH, UNICAMP, 2005.
material. LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda
e seu destino nas sociedades modernas. São
OBJETIVO
Paulo : Companhia das letras. 1989.
—  Compreender a Coleção Rhodia e a inserção SANT’ANNA, Patrícia. Coleção Rhodia: arte e design
dessas peças no MASP; de moda nos anos sessenta no Brasil.
—  Analisar a exposição e o discurso curatorial Campinas, SP : [s.n.], 2010.
construído em torno da Coleção _____________. A moda no museu. I Congresso
1- Artista: Fernando Martins / Estilistas: Alceu Penna e Ugo Castellana,
—  Discutir os processos de musealização do década de 1960 internacional de moda, CIM 2008, Madrid, 22 a
vestuário e sua relação enquanto uma 2- Artista: Aldemir Martins / Estilista: Jorge Farré, 1966 24 de outubro de 2008.
expressão da cultura material. 3- Artista: Nelson Leirner / Estilistas: Alceu Penna e Ugo Castellana,
1968 ORIENTADOR: Profº Dr. Odair da Cruz Paiva
(UNIFESP)
Intervenção Urbana – O crochê como forma de expressão

Jeniffer Eurica Becker Padilha (UFPR); Valéria Faria dos Santos Tessari (UFPR)

maio 2016

OBJETIVOS  
O termo intervenção, no campo das artes, pode não ter O objetivo que pretende-se atingir é entender

INTRODUÇÃO  
uma única definição. Segundo BRAUN (2013), a como as pessoas veem a relação do crochê
intervenção pode ser considerada uma vertente da arte como forma de expressão exposto na cidade
urbana, ambiental ou pública, direcionada a interferir no formato de intervenção; bem como, se
IiNT sobre uma dada situação para promover alguma levantar questionamentos com relação a
transformação ou reação, tanto no plano físico, genêro e arte.
intelectual ou sensorial.O crochê pode ser

MATERIAIS/  MÉTODOS  
caracterizado como um material alternativo para a
realização de intervenções. O presente trabalho Para tal , foi realizado um questionário on line
tem como objetivos apresentar o perfil de um grupo de com as participantes mais assíduas, além de
voluntárias que se propuseram a ajudar na produção observações e questionamentos levantados
Grupo reunido – desenvolvendo os projetos para a intervenção de peças que farão parte do cenário da cidade de durante os encontros que são realizados em
Foto: Valéria Tessari Curitiba durante a realização do evento do Moda média duas vezes por mês, desde a formação
Documenta em maio de 2016. do grupo de novembro de 2015 até fevereiro
de 2016. A faixa etária dos entrevistados foi de
25 à 60 anos.

A grande discussão que se pôde perceber é a falta de pessoas do sexo masculino que praticam a
RESULTADOS/  

CONCLUSÕES  
técnica seja por preconceito social, por ser uma arte aplicada de cunho feminino além do medo de
DISCUSSÕES/

fazer algo e ser comparado a uma senhora idosa. Observou-se no grupo a questão de ser formado
apenas por mulheres e muitas serem idosas, apesar de algumas das integrantes trabalharem com o
crochê como meio de renda sofrem com a desvalorização do trabalho, que por vezes é relacionado a
algo sem valor que somente é praticado como um hobby. Buscou-se entender a relação do crochê
com as participantes que se envolveram no projeto e o que essa intervenção representa pra elas,
constatou-se que além de ser uma técnica que elas querem divulgar, para algumas é uma forma de
fazer novas amizades, de participar de um projeto em conjunto dentro da cidade mostrando o que
pode ser feito com essa técnica e como podemos embelezar a cidade. O crochê deixa de ser mero
Trabalho realizado por uma das integrantes do grupo. objeto de decoração e passa a ser considerado como obra de arte.
Foto: Valéria Tessari

Referências:
BRAUN, S. M. A. H. Intervenção Urbana com Fios: O Tricô e o Crochê na arte contemporânea em uma perspectiva educativa. 2013, f96. Monografia (Graduação em Artes
Visuais) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2013.
PRECIOSO, Karla. O crochê pode ser um grande aliado para o bem estar. Revista Mtrends; Publicado em 05.05.2015. Acesso em 23 fev. 2016 Disponível em
http://mdemulher.abril.com.br/estilo-de-vida/m-trends/o-croche-pode-ser-um-grande-aliado-para-o-bem-estar
Tesauro de Moda (TeMo): vestuário e calçados

Josina da Silva Vieira (UnB); Larissa Nogueira de Sousa Rocha (UnB);
Luciana de Sousa Santos Costa (UnB)
maio 2016
Resumo Materiais e métodos
Conclusões
O Tesauro de moda (TeMo) : vestuário e Constitui pesquisa bibliográfica de tipo descritiva,
A adoção do tesauro é de grande importância
calçados foi apresentado como trabalho final da tendo por base a análise e levantamento dos termos
para auxiliar revistas, editoras, centros de
disciplina Linguagens Documentárias do curso de em dicionários especializados da área, sites e
documentação e informação especializadas em moda
Biblioteconomia da Universidade de Brasília (UnB). O revistas de moda utilizados como referência para a
para que possam atuar como ferramentas na
trabalho final da disciplina é a construção de um conceituação dos termos adotados no Tesauro. O
representação de assuntos dos arquivos e materiais
tesauro, sem especificação da área temática. trabalho apresenta também, Ficha terminológica e
de informação para sua posterior recuperação sejam
Palavras-chave: Tesauro de Moda; Vestuário; Calçado. Questões gramaticais adotadas para a apresentação
esses materiais registrados em bases de dados,
do TeMo. Por fim, para a construção do TeMo
catálogos e entre outros meios de organização de
Introdução utilizou-se o software livre THEW32.
recursos informacionais.
O tesauro tem como função auxiliar na Em suma, a atualização dos termos do
representação dos assuntos de um documento e Resultados e Discussões
Tesauro é contínua e crescente de acordo com a
permitir a busca e recuperação desse documento necessidade temática da área de moda em que serão
posteriormente (SALES; CAFÉ, 2009). Categorias:
adotados. A imagem de fundo foi retirado da rede social
Diante do presente desafio, as autoras Os termos do tesauro são agrupados de
Flickr do perfil Rubbermaid Products uma empresa
decidiram abordar o tema de interesse mútuo para tal acordo com sua categoria. Para esse tesauro as
americana que realiza a fabricação de objetos para
construção: moda. No entanto, o termo moda agrega categorias adotas são:
organização doméstica.
diversos significados, isto é, estilo, vestuário, técnicas • Roupas;
de produção têxtil etc. O TeMo é um microtesauro • Calçados;
monolíngue. Isto é, os descritores tem conceitos muito • Materiais; Referências
específicos e a delimitação temática é extremamente • Estampas; GOMES, H. E. (coord.). Manual de elaboração de
definida. trata apenas de vestuário e calçados (tipos, • Adereços. tesauros monolíngues. Brasília: Ministério da
tecidos, modelos, etc.) femininos e adultos, pois, em (Podem aparecer categorias não previstas.) Educação, Ministério da Ciência e Tecnologia, 1990.
tese, o tesauro atenderá a indexação de revistas de Termos diferentes que possuem o mesmo Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/
moda mensais e semanais. significado foram adotados como iguais, e o termo download/texto/me002423.pdf>. Acesso em: abr.
Contudo, o TeMo tem sua construção mais usado na literatura atual é definido como termo 2015.
fundamentada na Teoria do conceito da Dahlberg a ser usado.  
NEWMAN, A.; SHARIFF, Z. Dicionário ilustrado:
(1978) e no Manual de elaboração de tesauros Alguns dos termos adotados para do TeMo: moda de A a Z. São Paulo: Publifolha, 2011. SALES,
monolíngues, coordenado por Gomes (1990). ESPARTILHO  
SALES, R.; CAFÉ, L. Diferenças entre tesauros e
NE Veste feminina justa para modelar o corpo. ontologias. Perspectivas em Ciência da
Objetivo UP CORSELET Informação, v. 14, n. 1, p. 99-116, jan./abr. 2009.
Demostrar o estudo dos termos de vestuário CORSET Disponível em: <http://www.brapci.inf.br/_repositorio/
e calçados, no tesauro criado que poderá ter TG BLUSA 2011/03/pdf_5fec1d68ca_0015064.pdf >. Acesso em:
atualizações que serão incluídas áreas como abr. 2015.
acessórios, bolsas e tipos de tecidos, e podendo ser CORSELET FLIC.KR. Rubbermaid Products. Disponível em:
ampliado para masculino e infantil. USE ESPARTILHO <https://flic.kr/p/bYx12b > Acesso em: 05 jan. 2016
• 
A nova roupa da presidente:

uma análise de comunicação pelas vestes

Karla Beatriz Barbosa de Oliveira ( Universidade de Brasília)
maio 2016
Introdução Percebeu-se também que a cor vermelha, típica das vestes e comunicação da presidente
Este trabalho pretende, a partir da moda e da política, estudar como a indumentária durante sua busca pelo poder e tão ligada a sua identidade política, deu espaço para
desenvolve uma narrativa e formas de expressão da presidente da República Dilma outros tons ou apareceu de forma coadjuvante em alguns contextos. Com estas escolhas
Rousseff na sociedade, além de discursos associados à construção de uma identidade, é perceptível que a presidente deseja emitir ao mesmo tempo uma ideia de
especificamente no ambiente político. A história da moda e determinados códigos da profissionalismo, segurança, força e retidão, mas com abertura e simplicidade junto ao
indumentária desenvolvem sistemas de estruturação de um diálogo pelo simbolismo e seu eleitorado. Ao optar pela ausência de estampas, a presidente afasta a imagem
recortes dentro de contextos sociais. Esses recortes temporais tornam capazes as feminina, frágil e de submissão. As cores quase sempre neutras mostram a centralização
percepções e transformações dos acontecimentos como interferências nas escolhas de objetivos
individuais de fala da presidente, mas com a perpetuação de uma comunicação coletiva.
Conclusão
Objetivos Reconhece-se dentro da pesquisa, que a função da roupa é permitir que o indivíduo,
Neste estudo houve a tentativa de explicar e sintetizar a escolha da vestimenta como neste caso a presidente, se coloque dentro de todas as possibilidades de representação
fenômeno profundamente individual e ao mesmo tempo coletivo, aproximando-a da social com as diversas molduras, a partir do sistema de classificação e as formas como
objetivação da comunicação, essencialmente a de compartilhar informações de forma elas se atualizam. Cada escolha e alteração resultam na forma como se processa as
clara aos receptores. interações sociais, com sua exterioridade, na comunicação e na linguagem, na aparência,
nos papéis sociais, no jogo, no rito e na dramatização e assimilação do cotidiano. Assim,
Materiais e métodos ao analisarmos todos os aspectos que influenciam na construção de uma identidade e de
reconhecimento do grupo, pode-se concluir que as escolhas das vestes da presidente
Este trabalho realizou uma análise de como a roupa se articula como meio de
Dilma Rousseff são agentes na sua comunicação com os outros, expondo suas
comunicação, sem utilizar as palavras. A reflexão se concentrou na problemática da
mensagens de forma clara e sem grandes interferências. Inclusive o ato de repetir suas
participação da presidente Dilma Rousseff, observando a escolha de suas vestes para a
peças, a modelagem das peças e a ausência ou presença de determinados acessórios
construção de um diálogo e a concretização da comunicação dentro de recortes sociais.
ou cores em alguns períodos, são formas explícitas de que as mensagens são
Nesse processo, acompanhamos como a presidente se comportou em cada um dos sete
intencionais e tem como consequência sua formação de imagem política.
contextos que podem ser apontados como relevantes na constituição de seu governo.
Foram selecionadas 29 imagens entre 01 de janeiro de 2011 e 08 de março de 2015, que
compõem a amostra deste estudo. Referências
BARNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. BELMAÑA,
Resultados Macarena. La construcción de la imagen del poder a través del vestuário: Cristina
Fernández de Kirchner. Monografia de graduação. Universidad de Palermo, Argentina,
Dentro do cenário político é praticamente impossível assumir totalmente sua feminilidade
2012.
pelas vestes. A presidente Dilma Rousseff consegue mostrar por suas escolhas vestuais
uma personalidade de pessoa integrada ao meio político, de pulso firme e distante da ideia ECO, Umberto. O hábito fala pelo monge. In: ---. Psicologia do Vestir. 3. ed. Lisboa:
de identidade feminina e frágil. O resultado da observação ainda faz inferência de que o Assírio e Alvim, 1989.
visual da presidente é bem delimitado e constante, ficando as mudanças mais marcantes FISCHER-MIRKIN, Toby. O código do vestir: os significados ocultos da roupa feminina.
e a comunicação a cargo das cores. Dentro da análise da indumentária foi percebido, Tradução de Angela Melim. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
ainda, que existe uma constância no uso de duas peças, sempre com linhas retas.. Esta HELLER, Eva. A psicologia das cores. São Paulo: Gustavo Gili, 2013. LURIE, Alison. A
combinação de peças com características andrógenas mostra a adoção de peças do Linguagem das roupas. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1997. MORATORI, Deborah Marques
universo masculino, não deixando o corpo em evidência, afastando a ideia de feminilidade. Lopes. O hábito fala pelo monge. Monografia graduação. UFJF, 2002.
A nova roupa da presidente:

uma análise de comunicação pelas vestes

Karla Beatriz Barbosa de Oliveira ( Universidade de Brasília)
maio 2016
Introdução Percebeu-se também que a cor vermelha, típica das vestes e comunicação da presidente
Este trabalho pretende, a partir da moda e da política, estudar como a indumentária durante sua busca pelo poder e tão ligada a sua identidade política, deu espaço para
desenvolve uma narrativa e formas de expressão da presidente da República Dilma outros tons ou apareceu de forma coadjuvante em alguns contextos. Com estas escolhas
Rousseff na sociedade, além de discursos associados à construção de uma identidade, é perceptível que a presidente deseja emitir ao mesmo tempo uma ideia de
especificamente no ambiente político. A história da moda e determinados códigos da profissionalismo, segurança, força e retidão, mas com abertura e simplicidade junto ao
indumentária desenvolvem sistemas de estruturação de um diálogo pelo simbolismo e seu eleitorado. Ao optar pela ausência de estampas, a presidente afasta a imagem
recortes dentro de contextos sociais. Esses recortes temporais tornam capazes as feminina, frágil e de submissão. As cores quase sempre neutras mostram a centralização
percepções e transformações dos acontecimentos como interferências nas escolhas de objetivos
individuais de fala da presidente, mas com a perpetuação de uma comunicação coletiva.
Conclusão
Objetivos Reconhece-se dentro da pesquisa, que a função da roupa é permitir que o indivíduo,
Neste estudo houve a tentativa de explicar e sintetizar a escolha da vestimenta como neste caso a presidente, se coloque dentro de todas as possibilidades de representação
fenômeno profundamente individual e ao mesmo tempo coletivo, aproximando-a da social com as diversas molduras, a partir do sistema de classificação e as formas como
objetivação da comunicação, essencialmente a de compartilhar informações de forma elas se atualizam. Cada escolha e alteração resultam na forma como se processa as
clara aos receptores. interações sociais, com sua exterioridade, na comunicação e na linguagem, na aparência,
nos papéis sociais, no jogo, no rito e na dramatização e assimilação do cotidiano. Assim,
Materiais e métodos ao analisarmos todos os aspectos que influenciam na construção de uma identidade e de
reconhecimento do grupo, pode-se concluir que as escolhas das vestes da presidente
Este trabalho realizou uma análise de como a roupa se articula como meio de
Dilma Rousseff são agentes na sua comunicação com os outros, expondo suas
comunicação, sem utilizar as palavras. A reflexão se concentrou na problemática da
mensagens de forma clara e sem grandes interferências. Inclusive o ato de repetir suas
participação da presidente Dilma Rousseff, observando a escolha de suas vestes para a
peças, a modelagem das peças e a ausência ou presença de determinados acessórios
construção de um diálogo e a concretização da comunicação dentro de recortes sociais.
ou cores em alguns períodos, são formas explícitas de que as mensagens são
Nesse processo, acompanhamos como a presidente se comportou em cada um dos sete
intencionais e tem como consequência sua formação de imagem política.
contextos que podem ser apontados como relevantes na constituição de seu governo.
Foram selecionadas 29 imagens entre 01 de janeiro de 2011 e 08 de março de 2015, que
compõem a amostra deste estudo. Referências
BARNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. BELMAÑA,
Resultados Macarena. La construcción de la imagen del poder a través del vestuário: Cristina
Fernández de Kirchner. Monografia de graduação. Universidad de Palermo, Argentina,
Dentro do cenário político é praticamente impossível assumir totalmente sua feminilidade
2012.
pelas vestes. A presidente Dilma Rousseff consegue mostrar por suas escolhas vestuais
uma personalidade de pessoa integrada ao meio político, de pulso firme e distante da ideia ECO, Umberto. O hábito fala pelo monge. In: ---. Psicologia do Vestir. 3. ed. Lisboa:
de identidade feminina e frágil. O resultado da observação ainda faz inferência de que o Assírio e Alvim, 1989.
visual da presidente é bem delimitado e constante, ficando as mudanças mais marcantes FISCHER-MIRKIN, Toby. O código do vestir: os significados ocultos da roupa feminina.
e a comunicação a cargo das cores. Dentro da análise da indumentária foi percebido, Tradução de Angela Melim. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
ainda, que existe uma constância no uso de duas peças, sempre com linhas retas.. Esta HELLER, Eva. A psicologia das cores. São Paulo: Gustavo Gili, 2013. LURIE, Alison. A
combinação de peças com características andrógenas mostra a adoção de peças do Linguagem das roupas. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1997. MORATORI, Deborah Marques
universo masculino, não deixando o corpo em evidência, afastando a ideia de feminilidade. Lopes. O hábito fala pelo monge. Monografia graduação. UFJF, 2002.
ERGONOMIA NO VESTUÁRIO DE UNIFORMES PROFISSIONAIS
Luciana Yukie Shimizu Ikeda Orikasa - UNINTER
maio 2016
INTRODUÇÃO | Esta pesquisa aborda as relações entre que é necessário usar (vestir) dentro de uma cozinha molhe facilmente em contato direto com pias e alimento
homem, vestimenta e ambiente de trabalho, mais industrial. Pouco se conhece ou é regulamentado em líquidos. 4) Calça em tecido 100% algodão. Tecido em
especificamente o ambiente de cozinha industrial. Neste relação ao assunto. O que se encontra na maioria das brim pesado ou leve. 5) Sapatos com solado
contexto, foram considerados os aspectos ergonômicos, vezes são apenas recomendações como: o uso de antiderrapante para evitar quedas com partes do piso
antropométricos e de segurança do trabalho, a fim de vestimenta de cores claras, toucas ou gorros, aventais e, molhado.
prevenir acidentes causados por vestimentas botas ou sapatos antiderrapantes. Qual seria o melhor
inadequadas. Conforme Sabrá (2009), parte-se do modelo de vestimenta ou qual seria o tecido ideal para CONCLUSÕES | A partir do estudo constatou-se uma
pressuposto que o vestuário é intrínseco à vida humana determinado uso? carência de instruções normativas relativas ao vestuário
e, portanto, neste caso a ergonomia exerce a função de Para um ambiente como os de cozinha industrial onde as de uma cozinha industrial. E, através da revisão de
adaptar as roupas às suas necessidades, de modo que temperaturas podem ser bem elevadas devido aos fornos literatura juntamente com a análise do ambiente e dos
essas ofereçam conforto, mobilidade, bom caimento, e fogões instalados no ambiente. Os tecidos mais movimentos praticados pelo labutador durante o período
segurança ao usuário. indicados para estes ambientes estão relacionados aos de trabalho, foi possível definir um modelo de uniforme.
tecidos de fibras naturais como as de algodão, pois O uniforme foi criado para não comprometer a qualidade
OBJETIVOS | O estudo tinha como objetivo geral o possibilitam a respiração da pele e não impedem a do serviço realizado. Como também para preencher os
levantamento de aspectos ergonômicos para uniformes transpiração do corpo. Esse tipo de tecido é absorvente e requisitos necessários para a manutenção da higiene,
profissionais adequados no setor de alimentos. Para é um bom condutor de calor. Além de não propagarem segurança e a qualidade de vida dos trabalhadores.
tanto, foram definidos os aspectos relevantes à chama em casos de contato com o fogo e suas faíscas. O
ergonomia, antropometria, segurança no trabalho, algodão apresenta resistência mesmo quando molhado, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS |
acidentes de trabalho, vestuário de proteção, uniformes, sua origem é vegetal e popularmente conhecida no IEA Internationa Ergonomics Association
tecidos e seus tratamentos. Posteriormente, foram mundo todo. http://iea.cc/whats/index.html em 08 de novembro de 2015 ás
apontadas as características mais adequadas para A partir da analise dos movimentos corporais o modelo 12:25.
uniformes de cozinha de acordo com os aspectos proposto de uniforme para a cozinha industrial seria IIDA, Itiro. Ergonomia: Projeto e Produção. 4° reimpressão.
São Paulo: Ed. Blucher, 2012.
ergonômicos e considerando outros requisitos, como composto de: 1) Touca de cabeça para evitar que fios de
MENEGUCCI, Franciele. Vestuário de Proteção, Materiais
higiene, movimentos corporais e praticidade. cabelos caiam sobre a comida. Tecido proposto em 100% Têxteis e Conforto Térmico: Uma Análise com Aplicadores de
algodão (e.g. brim leve ou tricoline. 2) Jaleco com manga Agrotóxicos, EPI e Ambiente Agrícola. Dissertação (Mestrado
MATERIAIS E MÉTODOS | O método utilizado consiste curta para evitar que esbarros em alimentos, molhos ou em Design) - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação,
em uma revisão de literatura e as palavras-chave líquidos e sujem facilmente. Tecido proposto 100% Universidade Estadual Paulista, Bauru, São Paulo, 2012.
buscadas foram: “ergonomia”, “uniformes”, “segurança do algodão (e.g. brim leve, tricoline e gabardine), com SABRÁ, Flávio. Modelagem Tecnologia em Produção de
trabalho”, “tecidos”. Após a revisão de literatura, foi indicação de tratamento microbiano ou impermeável e Vestuário. 2. Ed. São Paulo: Estação das Letras e Cores,
realizada uma compilação de dados referente aos tecidos, respirável, inibindo a formação do odor do suor. 3) 2014.
tratamento dos tecidos e movimentos corporais, que Avental de cintura, em tecido 100% algodão, SZABÓ JÚNIOR, Adalberto Mohai. Manual de Segurança,
culminaram nas recomendações, mais adequadas, para a comprimento de 45 cm, pois evita que arraste no chão, Higiene e Medicina do Trabalho. 9 ed. São Paulo: Rideel,
fabricação de uniformes para cozinha industrial. nos casos em que o trabalhador fique ajoelhado para 2015.
UDALE, Jenny. Fundamentos de design de moda: tecidos
verificar a temperatura do forno de cozinha. Além disso, o
e moda; tradução Edson Furmankiewicz. Porto Alegre.
RESULTADO E DISCUSSÕES | Algumas perguntas são avental é indicado à proteção contra possíveis esbarros
Bookman, 2009.
frequentemente questionadas em relação ao que é em alimentos. Tecido indicado brim leve e gabardine, com Orientadora: Profa. Me. Elizabeth Zanetti
permitido usar (vestir), ao que se deve usar (vestir) e ao tratamento para repelência a água, a fim de evitar que

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