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Mensagem

Post Mortem
por Pôncio Arrupe
(Ficção muito curta)
Mensagem Post Mortem

Já cá não estou! Melhor, já aí não estou... Sim, não estou


nessa caixa de… madeira, suponho. Ora batam lá a ver se
eu respondo...
Isso! Não se acanhem, batam com força!...
Vá lá, atrevam-se, façam noc noc...
Se obtiverem alguma resposta – eu vos garanto! – não fui
eu… Lamento…
Batam lá outra vez… Isso… Vêem?
Como podem constatar, eu já não estou aqui. Quero dizer,
e corrijo de novo, já não estou aí.
Não sei onde estou... Mesmo que soubesse, não teria
forma de vos dizer. Mas estou bem, acreditem, não vos
apoquenteis. Isto posso assegurar-vos porque o sei desde o
tempo em que todos convivíamos presencialmente e de viva
voz.
Espero bem que não vos tenha dado muito trabalho
enquanto entre vós estive. Desejo que a minha partida tenha
sido para todos suave e ligeira. E para mim também! É que
não tenho forma de me lembrar. Por isso escrevo este texto
em antecipação. Vale o que vale.
Se calhar, se pudesse, e com o que já sei a mais neste
vosso preciso terreno momento, dir-vos-ia algo bem diverso.
Mas não tenho forma de vos dizer. Imaginem tudo o que
quiserem. Sois livres! Não tenho forma de vos dizer...

Não sei se estou em algum paraíso... Se calhar não (mas,


lá está, não teria forma de vos dizer).
Mas também não sinto a temperatura a aumentar! Isso
deve ser bom augúrio... É que os meus pecados capitais, dos
quais nunca me confessei, nem a mim próprio, não são um,
nem dois, nem se calhar só três. Mas há dois que são os
primeiros porque incorri neles com mais frequência.
Demasiadas vezes, confesso.
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O primeiro, o que os outros mais notavam, foi o da Ira. O
segundo, o que, penso, melhor disfarcei, foi o da Preguiça.
Acontece a particularidade de que a maior parte dos meus
desregrados acessos de ira tinham origem, precisamente, em
pecados cometidos, por mim ou por outros, contra a
preguiça. Eu explico este aparente absurdo: Falo de pecados
contra a minha preguiça; Contra, por assim dizer, o meu
direito à preguiça. Bem sei que isto toca as raias da
blasfémia. Mas que posso eu contra esta minha mente ímpia!
Por negligência, incúria, imprudência, irresponsabilidade,
desinteresse, esquecimento... – não sei se deste rol se
aproveitará algo para mais um pecadilho capital – acabava
por muitas vezes desembocar em circunstâncias em que era
forçado a trabalhar muito mais do que queria e em alturas
que não queria. Daí os acessos de ira tão frequentes...
Contra mim e contra os outros, contra o que quer que fosse
que me impedisse de usar o meu tempo da forma que mais
me aprouvesse. Depois, extenuado, requeria períodos, mais
longos do que seria desejável, de puro remanso... E por esta
via cheguei a uma condição perversa de pescadinha de rabo
na boca.
De tal forma isto era assim que todo o meu planeamento e
organização, desde cedo, se subordinou à necessidade de
proteger os meus momentos de exercício da minha preguiça.
No entanto, se me permitem amenizar a questão em defesa
própria, estes não eram momentos de pura inatividade.
Eram, tão só, aqueles momentos em que eu desenvolvia
tarefas e projetos, a maior parte mal os confessei a alguém,
sem qualquer finalidade imediata, sem prever ou desejar
resultados concretos, apenas porque por eles me sentia
estimulado intelectual, emocional e espiritualmente. Ou
somente porque por via deles fugia a… não sei bem o quê…
Enfim, sei que esta argumentação não será boa desculpa
para muitos de vós; Sei que alguns considerarão este meu

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hábito pura e elementar inconsequência; Bem sei que só por
alguns serei encarado benevolamente.
E as minhas relações com os outros em trabalho também
se subordinavam, em grande parte, a esse meu desiderato
da conquista desses meus momentos a sós e
inconsequentes. E sobre isto muito teria a dizer, muito haverá
a dizer...
No entanto, aqui fica: a Inconsequência... Deixo deste
modo o meu contributo para uma possível adenda à listagem
dos pecados capitais. Fica à vossa consideração...
De qualquer modo, voltando ao assunto central, penso que
quando a referida listagem foi elaborada ainda não se falava
em sinergias prá-qui, sinergias prá-li. Logo, primeiro, uma vez
que esta sinergia perversa entre a Preguiça e a Ira que em
mim se alojou não podia estar prevista pelos ancestrais
mestres, segundo, que o seu efeito mutuamente aumentativo
é inegável, e terceiro, que não me podem ser assacadas
responsabilidades porque, precisamente, não me estava
dado prever, pelo menos no início do círculo vicioso que em
mim se gerou, as consequências de tão daninha conjunção
de pecados capitais, concluo, pelos motivos apontados, que
devo ser julgado com bem mais benevolência do que a
ferocidade dos meus muitos ataques de ira poderia justificar
e recomendar. Acrescento ainda que, que me lembre, nunca
cheguei a “vias de facto”.
Sendo assim, espero justiça menos capital.

E - nem de propósito… -, não é que o ambiente por aqui


continua agradável...

Não tenho forma de vos dizer, queridos irmãos, mas foi


uma longa e rica vida! Diferente, diversificada, com altos e
baixos, muito, também, por mãos dos nossos queridos pais.
Com sobressaltos vários, alguns bem inesperados, como se
impõe a qualquer vida interessante. Obrigado!

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Espero, meus caros cunhados, cunhados que já não o sois
e cunhados que haveis de sê-lo…, que não vos tenha sido
excessivamente penoso. Refiro-me à vida de sobressaltos,
uma vez que eu, sei-o, terei sido certamente demasiado...
qualquer coisa!
Espero, meus inúmeros queridos sobrinhos, e queridos
sobrinhos-netos, que estes sobressaltos vos tenham dado
trunfos para as vossas vidas. Perdoem-me a pretensão,
quiçá aproprio-me abusivamente, mas a minha
descendência, o meu legado, também sois vós. Aqueles que
ainda tendes condições, ide e espalhai os meus genes! Sim,
vós também, e não só os meus filhos, tendes muitos genes
igualzinhos aos meus. (Podeis rir à-vontade, é caso para
isso, mas espalhai, espalhai...). Desse modo os avós Pedro e
Beatriz continuam em vós, e eu também. Não tenho forma de
vos dizer, mas sois um orgulho para mim; Orgulho enorme,
da dimensão de como quão feliz, enlevado e elevado fico
quando vos contemplo.

Não tenho forma de lhe dizer, Amélia, como sempre a


menina me encantou; Como desajeitado a provocava só para
que a menina preenchesse o espaço entre nós os dois;
Como a sua rebeldia impertinente coloria os meus dias;
Como a sua doçura e afeto me tranquilizavam quanto ao seu
futuro.
Não tenho forma de te dizer, Pedrinho, como desde muito
cedo respeitei o teu modo diferente de olhar a vida e o
mundo; Como foi bom ver a tua alegria e vivacidade de
menino espantoso transformarem-se em esperança e
desejos de rapaz admirável. O teu futuro também o será.
Usufrui sem medo. Vai ser bom.
Não tenho forma de te dizer, Margarida, como sempre
foste o meu orgulho; Como sempre, de mote próprio, sem
alarido e sem grandes sobressaltos que eu visse, superaste
as expectativas mais arrojadas; Como sempre foste

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excelente, reta e bondosa; Como sempre o serás, as
expressões do teu lindo rosto não enganam. Dá um beijo à
tua mãe.

Não tenho forma de te dizer, Teresa, como nunca deixei de


me espantar e maravilhar, uma vez que já estava algo
adiantada quando nela entraste, por teres virado a minha
vida do avesso, teres-te transformado no meu norte, no meu
enquadramento, no meu fundo, no meu berço. Talvez não te
tenhas apercebido, mas tu és para mim o fresco e puro ar
que se respira e se não vê e mal se sente. E como eu gosto
de cheirar, agarrar, abraçar, sorver, morder e engolir o ar
fresco! Tu és o meu contexto, digo, tu és os meus contextos,
quer estejas presente, quer não. Tu tens sido
quotidianamente a alegria de uma visão repetida centos de
vezes e que é sempre por mim desejada como se fosse de
novo a segunda vez. Tu foste a maior parte dos meus
sorrisos, tu foste a minha saúde e bem-estar. Tudo isto só foi
possível graças ao teu coração pleno de candura e alegria.
Obrigado!
Teresa, já não tenho forma de te dizer. Por isso, digo-o em
antecipação. E, escuta-me, o que conta é a última palavra, e
esta só o é quando ouvida pela primeira vez.
Agora.
Levo para o infinito essa tua doçura e bondade. E levo o
teu sorrir. Esse teu sorrir... E essas tuas lindas mãos...
Alcança-me...
Não sei no que isto vai dar. Espero que possa desfrutar
mais ainda do que até aqui.
Mas não sei. Nem teria forma de te dizer, Teresa. Por isso
digo agora em antecipação. Digo-o com o peso da
eternidade do derradeiro instante, daquele que nunca acaba,
que foi interrompido, que fica para sempre em suspenso,
agora: Amo-te! Adoro-te!

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Aos demais digo que alijei carga para esta viagem, que
levo só o que de bom tivemos em comum. E foi muito! Peço-
vos, por favor, que fiquem junto dos meus. Obrigado. Eu
ficarei junto de todos, se for esse o vosso desejo. Não sei
como, nem terei forma de vos dizer.

Está dito. Nada mais acrescentarei. A-deus (passe este


meu absurdo contrassenso).

Post Scriptum
Que o teor em alguns momentos irreverente – talvez, até,
desrespeitoso - deste meu pequeno obituário não seja um
óbice ao que vos peço no penúltimo parágrafo do mesmo.
Sei que posso ter sido desconcertante - e muito
inconveniente!, dada a ocasião… –, mas, no entanto, espero
continuar a contar convosco para os meus. (É que ele não
existe. Se existisse, bem mereceria o que acabei de
escrever. E muitas outras coisas teria vontade de lhe dizer!
Mas quem merece ouvir isto não pode ser ele. Logo, ele não
existe. Ou se ele existe, se algo existe, não é certamente
aquilo - e sublinho a expressão “aquilo” - em que as pessoas
acreditam, ou querem acreditar, ou querem fazer-vos
acreditar. Será outra coisa qualquer! Espero que com esta
minha variante sobre o assunto – sobre ele - possa ter-me
acomodado um pouco melhor às vossas mentes e anseios.
Sim assim foi, ficarei mais contente por vós. Mas não sei se
terei forma de ficar a saber…)

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