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6. ALGUNS ASPECTOS DO CONTO 147 fe relativa tranglilidade que sempre dé sabermo-nos pre- cedidos pela tarefa cumprida ao longo dos anos. Eo fato de me sentir como um fantasma deve ser j per- ‘ceptivel em mim, porque hé alguns dias uma senhora argentina me assegurou no hotel Riviera que eu nio era Julio Cortézar, ¢ diante de minha estupefacio agregou que o auténtico Julio Cortézar € um senhor de cabelos brancos, muito amigo de um parente dela, © que munca arredou pé de Buenos Aires, Como ié faz doze anos que resido em Paris, os senhores compreen- detio que minha qualidade espectral se tenha intensifi- cado notavelmente depois desta revelacio. Se de repente eu desaparecer na metade de uma frase, nfo me sur- preeaderei demais; e no m{nimo sairemos todos ga- nhando. Afirma-se que o desejo mais ardeate de um fon- tasme 6 recobrar pelo menos um sinal de corporeidade, algo tangivel que o devolva por um momento a vida de carne © osso, Para conseguir um pouco de tangibi- lidade diante dos senhores, vou dizer em pouces pala- ‘ras qual 6 a direglo © 0 sentido dos meus contos. Nao © fago por mero prazer informativo, porque neahuma resenha te6rica pode substituir a obra em si; minhas razes so mais importantes do que essa. Uma vez que me vou ocupar de alguns aspectos do conto como gé- io, © € possivel que algumas das minhas ow choquem quem as escutar, pa- rece-me de uma elementar honradez definir 0 tipo de narrago que me interessa, assinalando minba especial maneira de entender o mundo, Quase todos os contos que escrevi pertencem ao género chamado fantéstico por falta de nome melhor, e se opdem a esse falso realismo que consiste em rér que todas as coisas podem ser desctitas ¢ explicadas como dava por otimismo filoséfico © cientifico do século X 6, dentro de um mundo regido mais ou men nlosamente por um sistema de leis, de nero literé a fecunda descoberta de Alfred Jarry, para verdadeiro estudo da realidade nfo residia nas leis, has excegdes a essas leis, foram alguns dos principios orientadores da minha busca pessoal de uma literatura 148 A margem de todo realismo. demasiado ingénuo. Por isso, se nas idéias que seguem, os senbor cional, quer se trate dos temas ou mesmo das formas expressivas, creio que esta apresevfacéo de minha prépria maneira de entender o mundo explicaré minha tomada de posigéo ¢ meu enfoque do problema. yn ‘iltimo caso se poderd dizer que 36 falet do conto tal qual eu 0 pratico, E, contudo, no creio que seja assim. Teaho a certeza de que existem certas constantes, certos se aplicam a todos os contos, fantésticos , draméticos ou bumorfsticos. E penso que Possfvel mostrar aqui esses elementos inva- ridveis que do a um bom conto a atmosfera peculiar ea qualidade de obra de arte, A oportunidade de trocar idéias acerea do conto me interessa por diversas razBes. Moro num pais — Franga — onde este género tem pouca vigéncia, embora nos tltimos anos se note entre escritores ¢ leitores um interesse crescente por essa forma de expresséo. De qualquer modo, enquanto os criticos continuam acumu- Jando teorias e mantendo exasperadas polémicas acerca ninguém se interessa pela problemé- como contista num pais onde esta tum produto quase exttico, obriga que ali falta. Pouco a pouco, em textos originals ou mediante tredugdes, vamos acumulando quase que ran- corosamente uma enorme quantidade de contos do ppassado e do presente, e chega o dia em que podemos fazer um balango, tentar uma aproximagio apreciadora a esse género de tho dificil definicfo, to esquivo nos seus miltiplos e antaginicos espectos, e, em sltima anflise, to secreto ¢ voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmio misterioso da poesia em outra dimenséo do tempo literério. todos os paises ameri dando ao conto uma mais tivera em outros a Espanha. Entre nbs, c jovens, a criagdo espontinea precede quase sempre 0 149 cexame critico, e € bom que seja assim. Ninguém pode pretender que s6 se devam escrever contos aps serem conhecidas suas leis. Em primeiro lugar, nfo ba tais leis; no méximo cabe falar de pontos de vista, de certas onstantes que dio uma estrutura a esse género tio J; em segundo lugar, 08 te6ricos ¢ os criticos nfo tém por que serem os proprios contstas, ¢ € natural que aqueles 36 entrem em cena quando exista ‘uma boa quantidade de literatura que ermita indagar ¢ esclarecer o seu desenvolvimento 48 suas qualidades. Na América, tanto em Cuba como ‘ou no Chile ou na Argentine, uma grande le de contistas trabalha desde 0% comegos do sm se conhecerem muito entre si, descobrindo- vezes de maneira quase que péstuma. Em face esse panorama sem coeréncia suficiente, no qual pow- cos conhecem a fundo 0 trabalho dos demais, creio que é til falar do conto por cima das particularidades na- cionais ¢ internacionais, porque 6 um género que entre 16s tem uma importfincia e uma vitalidade que crescem dia a dia, Alguma vez faremos as antologias definitivas — como fazem os pafses anglo-saxdes, por exemplo — © se saberd até onde fomos chegar. Por ora ingtil falar abstrato, como . Se tivermos ia convincente des- xpressio li poderé contribuir para estabelecer uma escala de valores Togia ideal rgem das pessoas ¢ 0 chegarmos a ter uma idéia viva do que 6 0 & sempre dificil na medida fem que as idéias tendem para o abstrato, para a desvi- talizago do seu contetido, enquanto que, por sua vez, 8 vida rejeita esse lago que a conceptualizacao Ihe quer atirar para fixé- aio tivermos um: escrita dessa vide travam ume mal, se me for permitido o termo; ¢ o resultado dessa batalha € 0 réprio conto, uma sintese viva ao mesmo tempo que ‘wma vida sintetizada, algo assim como um tremor de 150 gua dentro de um cristal, uma fugacidade numa per- manéneia. S6 com imagens se pode transmitir essa al- quimia secreta que explica @ profunda ressondncia que lum grande conto tem em nés, e que expjica também por (que hd tio poucos contos verdadeiramente grandes, Para se entender o caréter peculiar do conto, cose tuma-se comparé-lo com 0 romance, género muito popular, sobre 0 qual abundam as preceptistc nala-se, por exemplo, que o romance se desenvolve no , portanto, no tempo de leitura, sem its qu agoento de malta romencrada vez, 0 conto parte da nogio de limite, ¢, em pri lugar, de limite fisico, de tal modo que, na quando um conto ultrapassa as vinte péginas, toma jd co nome de nouvelle, género a cavaleiro entre conto € © romance propriamente dito. Nesse sentido,{o romance eo muitos aspectos. FotSgrafos Bresion ou de um Bras d aparente paradoxo: o de recortar um fragmento da rea- lidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que ease recorte atue como ume explosio que Que néo s6 valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma 1st tT espécie de abertura, de fermento que projete a inteli- sgéncia e a sensibilidade em diregdo a algo que vai muito além do nto visual ou literdtio contide na foto nando jé as resistincias mais Tomem os qualquer gr sua preferéncia, ¢ anal o; seu tnico recurso 6 trabalhar em profundidade, Lcalmente, seja para cima ou para baixo do espego Werérioc JE isto que assim expresso parece uma met fora,'exprime, contudo, o essencial do método. 0 € 0 espaco do conto tém de sados, submetidos a uma al ‘mal para provocar essa “aberture” antes, Basta perguntar por que determinado conto é ‘uim. Néo é ruim pelo tems, porque em literatura nflo ‘hd temas bons nem temas ruins, hé somente um trata- mento bom ou ruim do tema, Tembém néo é ruim por ‘que 08 personagens caregam de interesse, j4 que até uma Diziamos que o contista trabalha com um material ‘que qualificamos de significativo, O elentento significe- tivo do conto pareceria residir principalmente no seu tema, no fato de se escolher um acontecimento real ou 452 ficticio que possua essa misteriosa propriedade de irra diar alguma coisa para além dele mesmo, de modo que ‘um vulgar episédio doméstico, como o¢orre em tantas admiréveis narrativas de uma'Katherjne Mansfield ou de um Sherwood Anderson, se converta no resumo im- placével de uma certa condi¢ao humana, ot no simb candente de uma ordem social ow histérica. Um con 6 signifcativo quando quebra seus prOprios limites com ‘essa explostio de energia espiritual que ilumina brusca- mente algo que vai muito além da pequena e as vezes miserdvel histéria que conta. Penso, tema da mai admin Tehecov. Que hi ali que néo medfoere, muitas vezes conformista ou inutilmente re- belde? O que se conta nessas narrativas € quase 0 que, quando criangas, nas enfadonhas tertilias que deviamos compartilhar com os mais velhos, escutévamos nossas alguma coisa estala neles enquanto do-nos uma espécie de ruptura do muito além do argumento. Os senhor entre © bom ¢ o mau contista. Por isso teremos de nos deter com todo © cuidado possivel nesta encruzilhada, para tratar de entender um pouco mais essa estranha forma de vide que é um conto bem realizado, e ver por que estd vivo enquanto outros que, apareniemente, a le se assemelham, no passam de tinta sobre 0 papel, alimento para o esquecimento. ‘Vejamos 2 questo do Angulo do contista e, neste caso, obrigatoriamente, da minha prOpria versio do as sunto, Um contista é um homem que de repente, rodea- 4153 do pela imensa algaravia do mundo, comprometido em maior ou menor grau com a realidade hist6rica que o 0 mesmo tempo um bom tema tem algo de atémico, de ntcleo em toro do qual giram os iss0, afinal, no € j6 como uma propo- lagbes mais mais belo? Muites vezes tenho-me pergun- tado qual seré a virtude de certos contos inesqueciveis. Na ocasiéo os lemos junto com muitos outros que in- lusive podiam ser dos mesmos autores. E eis que 05 154 ances patsrtme viveos e esquecemos tanto; mas muenos, insignificantes contos, esses gros de mia bo ‘mar da literatura continuam al, palpi- tando em nés. N&o & verdade que cada’ préptia colegdo de contos? Eu tenho a gi poderam esquecer ¢ vero que todos eles tm a mesma ‘caracteristica:(640 aglutinantes de uma realidade infini- ‘tamente mais Vasta que a do seu mero argumento, e pot insereveré seu nome em nossa meméria. , & preciso aclarar melhor esta nogio de temas signifeativos. es ee cee esas teoa nba coaaeetaa mas que nfo adquiriu ainda sua forma definitiva, Para tle case tema tem sentido, tem significagio, Mas se cesperando o leitor, o elo final camprimento ou 0 facaso temente um tema que os comoveu, para comover por seu. turno os leitores. Incorram na’ ingenuidade daquele mos 0 corardo do rams, sssindo ao cumprimento implacével de uma vinganga. “Os Asiassinos”, de He- 157 mingway, 6 outro exemplo de intensidade obtida me- ago de tudo 0 que nfo convirje essen- tole prepara, salam Wore ats 6 ae agua ea roca, numa narrativa demorada ¢ caudalosa de Henry James — “A Liglo do Mestre”, por exemplo — sente-se cde imediato que os fatos em si carecem de importincia, ‘Argentina como aqui os bons contos tém sido escritos pelos que dominam o offcio no sentido jé indicado. ‘Um exemplo argentino esclareceré melhor isto. Em nossas provincias eentrais e do Norte existe uma longs radio de conte oa, qu os ences rans ‘mos como que uma anulagdo do tempo, e pensamos aque também os aedos gregos contavam assim as faga- 158 para que um conto seja eficaz, faga alvo no leitor e crave esse escritor, responsével ¢ Icido, decide escrever lite- dade cultural que confere o pleno dominio do offciS7Se 160 161

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