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Poulantzas, Nicos (1978 [2000]) O Estado, o Poder, 0 Socialismo, Rio de Janeiro: Graal. SEGUNDA PARTE AS LUTAS POLITICAS: O ESTADO, CONDENSACAO DE UMA RELACAO DE FORGAS Consideramos até aqui a necessidade de relacionar 0 arcabou- ¢o institucional do Estado com as relagdes capitalistas de produgao e sua divisao social do trabalho. O estabelecimento dessa relagao ja era uma primeira aproximagio do Estado com as classes sociais ¢ a luta de classes. E esse tiltimo ponto que desenvolverei agora, fazendo uma and- lise do Estado em termos de dominagdo politica e de luta politica Uma teoria do Estado capitalista nao poderia construir seu objeto pela referéncia apenas as relagdes de produgdo, como se a luta de classes 86 interviesse nas formacées sociais como simples fator de variacio ou de concretizagaio desse Estado, tipo ideal, em tal ou qual Estado concreto. Se essa teoria nao for um simples percurso ou tragado da ge- nealogia do Estado capitalista, ela s6 € possfvel se explicar a reprodu- Gao histérica desse Estado: Estado de tal ou qual estégio ou fase do capitalismo (Estado liberal, Estado intervencionista, estatismo autori- tario atual), formas de Estado de excego (fascismos, ditaduras mili- tares, bonapartismos), formas de regime desse Estado. Uma teoria do Estado capitalista deve poder explicar as metamorfoses de seu objeto. Isso traz, inicialmente, & baila as transformagdes das relacdes de produgao. Estabelecer a relagio do Estado com essas relagdes significa desde j4 que as transformagdes do Estado em sua periodi- 125 zagao historica fundamental (estagios e fases do capitalismo: esté- gios concorrencial ¢ imperialista — capitalista monopolista, fases desse tiltimo) levam a substanciais modificagées das relagdes de produgao ¢ da divisdo social do trabalho capitalistas. Se seu nticleo persiste, que é 0 que faz com que o Estado continue capitalista, nao impede que eles passem por importantes transformag6es ao longo da reprodugao do capitalismo. Mas essas transformagdes sugerem entéo modificagdes na constituigéo e reprodugao das classes sociais, de sua luta e da do- minacio politica. Isso € vélido para a periodizagao fundamental do Estado segundo os estdgios e fases do capitalismo: essas transfor- mages implicam em importantes modificagées no campo da domi- hagao politica. Isso é vélido igualmente para as formas ¢ regimes precisos de que se reveste o Estado no seio de um mesmo estdgio ou de uma mesma fase do capitalismo, segundo as diversas forma- G6es sociais: tal ou qual forma de parlamentarismo, de presidencia- lismo, de fascismo ou de ditadura militar. As relag6es de classe estdo presentes assim tanto nas transformagdes do Estado segundo os estdgios ou fases do capitalismo, ou seja nas transformagGes das relagGes de producao/divisao social do trabalho que elas implicam, como nas formas diferenciais de que se reveste o Estado num esté- gio ou fase marcados pelas mesmas relagdes de produgao. Daf o problema: construir uma teoria do Estado capitalista que, a partir das relag6es de produgao, explique, pela prépria estrutura de seu objeto, sua teprodugio diferencial em fungdo da luta de clas- ses. Se dou tanta énfase a esses pontos, no é por acaso: € que 0 teo- ticismo formalista na teoria do Estado pode tomar diversas formas. Pelo momento afastamos uma delas; a que consiste em construir 0 objeto de uma teoria do Estado capitalista colocando-a em relagaio unicamente com as relagdes de produgao no sentido de uma estrutu- ra econémica, na qual a luta de classes e a dominagdo politica sé in- tervém a posteriori, para explicar as concretizagées — singularida- des secundérias dese Estado no real histérico. Concepgao que leva a negligenciar as formas especificas desse Estado. Mas 0 teoricismo formalista pode tomar igualmente uma forma diferente, que leva ao mesmo resultado. Esta forma nos inte- Tessa muito particularmente, pois ela envolve, desta vez, o relacio- namento do Estado com a dominacio politica. Ela trata as proposi- 126 gGes gerais dos classicos do marxismo sobre o Estado como uma “teoria geral” (a Teoria “marxista-leninista”) do Estado, e reduz 0 Estado capitalista a uma simples concretizagio do “Estado em geral”. No que se refere 4 dominacio politica, ela sé leva a banali- dades dogmaticas do género: todo Estado é um Estado de classe: toda dominagao politica é uma ditadura de classe; o Estado capita- lista € um Estado da burguesia; o Estado capitalista em geral, e todo Estado capitalista em particular, sio uma ditadura da burguesia. Isso foi observado ainda recentemente, no debate sobre a ditadura do Proletariado no seio do PCF e nos argumentos colocados por alguns dos defensores da “manutengiio” dessa nogao, especialmente E. Ba- libar em seu tiltimo livro, Sur la dictadure du prolétariat. E evidente que uma tal andlise nao poderia fazer a pesquisa avangar nem um passo. Ela é totalmente inoperante na andlise de si- tuages concretas, pois é incapaz de induzir a uma teoria do Estado capitalista que explique as formas diferenciais e as transformagdes historicas desse Estado, de maneira tautoldgica. As caréncias dessa andlise tém conseqiiéncias politicas incal- culdveis: resultado e efeito concomitante da simplificagdo-dogmati- zagao estaliniana sobre a questao do Estado, esta andlise conduziu a desastres politicos, especialmente no periodo do entre-guerras, quan- to a estratégia adotada em face da ascensao do fascismo. Ela se tra- duziu na estratégia do Komintern, dita do “social-fascismo”, funda- mentada exatamente nesta mesma concepgao do Estado, incapaz de distinguir entre a forma de Estado democratico-parlamentar e essa forma especifica de Estado que € 0 Estado fascista. Questao que ja tratei anteriormente, tanto que nao voltarei a ela, salvo para indicar incidentalmente que, a esse respeito, se poderia reconhecer esta con- Cepgao stalinista do Estado em A. Glucksmann, que, em seu texto Le facisme qui vient d’en haut," identificava 0 Estado francés em 1972 com um fascismo de tipo novo; Glucksmann que, como se sabe, passou do neo-estalinismo para o antimarxismo mais barato, pen- sando provavelmente que suas elucubragdes de agora fossem “o que faltava em Marx”. Eu observaria entretanto que a necessidade de uma teoria do Estado capitalista que conseguisse explicar suas for- mas diferenciais nao vale apenas para essas grandes diferencas que sao 0 Estado democratico-parlamentar e o Estado de excegdo, mas vai ainda mais longe. E necessério explicar as diferencas no proprio 127 seio do Estado capitalista de excegio: tentei mostrar, em A crise das ditaduras, que as diferengas entre fascismo e ditadura militar so de- cisivas quanto a estratégia politica a seguir. Questao que foi capital para a Espanha, Portugal e Grécia ¢ que nao é de menor importén- cia, como 0 testemunha a discussao na esquerda sul-americana, para certos regimes atuais na América Latina. Mas é necessério estabele- cer igualmente as diferencas entre as proprias formas democrdticas — parlamentares desse Estado: quem nao se lembra das derrotas po- Mfticas as quais conduziu, durante algum tempo, a impossibilidade de compreender a especificidade do Estado gaullista na Franca? Aurgéncia tedrica ¢ entdo a seguinte: compreender a inscrigdo da luta de classes, muito particularmente da luta e da dominagaéo politica, na ossatura institucional do Estado (no caso a da burgue- sia no arcabougo material do Estado capitalista) de maneira tal que ela consiga explicar as formas diferenciais e as transformacées his- toricas desse Estado. Aqui também, o Estado tem um Papel organi co na luta e na dominagao politicas: 0 Estado capitalista constitui a burguesia como classe politicamente dominante, Certamente a luta de classes detém 0 primado sobre os aparelhos, no caso sobre o apa- relho de Estado: mas no se trata de uma burguesia jA instituida como classe politicamente dominante fora ou antes de um Estado que ela criaria para conveniéncia prépria, e que funcionaria apenas como simples apéndice dessa dominacao. Essa fungio do Estado esta igualmente inscrita na sua materialidade institucional: trata-se da natureza de classe do Estado. Para estud4-la seriamente € preci- so ter clareza dessa fungao do Estado tanto a respeito das classes do- minantes como das classes dominadas, : E o que tentarei fazer permanecendo sempre num plano bas- tante geral: as consideracdes que se seguem serio destacadas, quan- do da andlise da atual forma do Estado, 0 estatismo autoritario, em seu devido tempo. I. O ESTADO E AS CLASSES DOMINANTES Em relagdo principalmente as classes dominantes, em particu- lar a burguesia, o Estado tem um papel principal de organizagao. Ele Tepresenta e organiza a ou as classes dominantes, em suma represen- 128 ta, organiza 0 interesse politico a longo prazo do bloco no poder, composto de varias fragdes de classe burguesas (pois a burguesia é dividida em fragGes de classe), do qual participam em certas cir- cunstancias as classes dominantes provenientes de outros modos de producdo, presentes na formagao social capitalista: caso classico, ainda hoje em dia, nos paises dominados e dependentes, dos gran- des proprietérios de terra. Organizagao, na perspectiva do Estado, da unidade conflitual da alianga de poder e do equilfbrio instavel dos compromissos entre seus componentes, 0 que se faz sob a hegemo- nia e diregao, nesse bloco, de uma de suas classes ou fracdes, a clas- se ou fragdo hegeménica. O Estado constitui portanto a unidade politica das classes do- minantes: ele instaura essas classes como classes dominantes. Esse papel fundamental de organizagio nao conceme alids a um tinico aparelho ou ramo do Estado (0s partidos politicos), mas, em diferen- tes graus e géneros, ao conjunto de seus aparelhos, inclusive seus aparelhos repressivos por exceléncia (exército, policia etc.) que, também eles, desempenham essa fungdio. O Estado pode preencher essa fungdo de organizacio e unificacao da burguesia ¢ do bloco no poder, na medida em que detém uma aufonomia relativa em relagao a tal ou qual frago e componente desse bloco, em relagdo a tais ou quais interesses particulares. Autonomia constitutiva do Estado ca- pitalista: remete a materialidade desse Estado em sua separagao re- lativa das relagdes de produgio, e a especificidade das classes e da luta de classes sob 0 capitalismo que essa separagao implica. Anélises que jé fiz anteriormente ¢ as quais nao retomarei. Lembraria simplesmente que essas andlises nao se aplicam apenas como algumas vezes se pode pensar, a uma determinada forma do Estado capitalista, particularmente o “Estado liberal” do capitalismo concorrencial. Elas abrangem o nticleo estrutural desse Estado, e portanto também sua forma na presente fase do capitalismo mono- polista. Esse Estado, agora como no passado, deve representar 0 in- teresse politico a longo prazo no conjunto da burguesia (hipotetica- mente o capitalista coletivo) sob a hegemonia de uma de suas fragdes, atualmente o capital monopolista. a) A burguesia se apresenta sempre como que constitutivamen- te dividida em fragdes de classe: capital monopolista e capital nao- 129 monopolista (pois o capital monopolista ndo é uma entidade integra- da, mas designa um proceso contraditério e desigual de “fusao” entre diversas fragdes do capital), fracionamentos desdobrados se se consideram as atuais coordenadas de internacionalizagao do capital; +b) Essas fragdes burguesas em seu conjunto, se situam, se bem que em graus cada vez mais desiguais, no terreno da dominaco po- litica, fazendo parte portanto do bloco do poder. Indo de encontro a determinadas andlises do PCF sobre o Capitalismo Monopolista de Estado, no € apenas o capital monopolista que ocupa o terreno da dominagao politica. c) O Estado detém sempre uma autonomia relativa em relagdo a essa ou aquela fragao do bloco no poder (inclusive em relagao a tal Ou qual fra¢do do préprio capital monopolista) a fim de assegurar a organizagao do interesse geral da burguesia sob a hegemonia de uma de suas fragdes. De encontro ainda a certas andlises do Capitalismo Monopolista de Estado, nao se trata aqui nem de uma “fusdo” do Es- tado e dos monopélios (andlise abandonada pelo PCF), nem tam- bém, e no sentido rigoroso da palavra, de sua “reunido” (mesmo contradit6ria) num “mecanismo nico”; d) Tudo isso ainda é verdadeiro mesmo se as formas atuais do Process de monopolizacao e a hegemonia particular do capital mo- nopolista sobre o conjunto da burguesia impéem incontestavelmen- te uma restrico da autonomia do Estado em relagdo ao capital mo- nopolista e do campo de compromissos deste com as outras fragdes da burguesia. Como se estabelece concretamente essa politica do Estado em favor do bloco burgués no poder? Ao precisar algumas de minhas formulagées anteriores, diria que 0 Estado, no caso capitalista, ndo deve ser considerado como uma entidade intrinseca mas, como alids € 0 caso do “capital”, como uma relagdo, mais exatamente como a condensagdo material de uma relacdo de forgas entre classes e fracées de classe, tal como ele ex- pressa, de maneira sempre especifica, no seio do Estado2 Todos os termos da formulagio precedente tém uma importan- cia prépria, e devem ser examinados. Principalmente no aspecto do Estado como condensagiio de uma relacao: compreender o Estado desse modo é evitar os impasses do eterno pseudodilema da discus- 130 sao sobre o Estado, entre o Estado concebido como Coisa-instru- mento e o Estado concebido como Sujeito. O Estado como Coisa: a velha concepcao instrumentalista do Estado, instrumento passivo, sendo neutro, totalmente manipulado por uma Unica classe ou fra- Go, caso em que nenhuma autonomia é reconhecida ao Estado. O Estado como Sujeito: a autonomia do Estado, considerada aqui como absoluta, é submetida a sua vontade como instncia racionali- zante da sociedade civil. Concepgo que remonta a Hegel, retoma- da por Max Weber e a corrente dominante da sociologia politica (a corrente “institucionalista-funcionalista”). Ela relaciona esta auto- nomia ao poder préprio que o Estado passa por deter e com os por- tadores desse poder e da racionalidade estatal: a burocracia e as eli- tes politicas especialmente. Mas o Estado nfo é pura e simplesmente uma relaciio, ou a condensagiio de uma relacio; é a condensagao material e especifica de uma relacao de forgas entre classes e fragdes de classe. A questao € de importncia e merece ser examinada, pois refe- re-se a recentes evolugées teérico-politicas do Partido Comunista francés. Essa anlise do Estado como condensagao material de uma relagdo de classe, eu a opunha A concepgo do Estado nas anélises comunistas da época em referéncia ao CMB, Capitalismo Monopo- lista de Estado. O que eu criticava no essencial nesta concepgao era que levava a uma visio do Estado “fundido” ao capital monopolis- ta, Estado que nao possuiria nenhuma autonomia prépria e estaria a servigo exclusivo dos monopélios, em suma de participar da con- cepcao instrumentalista do Estado. Mas fazia igualmente uma outra critica: tentava mostrar que essa visio de um Estado manipulavel, no limite, & vontade pelos monopélios, podia articular-se perfeita- mente com uma visdo descurada da materialidade prépria do Esta- do. A materialidade de um Estado entendida como ferramenta ou instrumento nao tem pertinéncia politica propria: reduz-se ao poder de Estado, ou seja, a classe que manipula esse instrumento. O que implica, enfim, que esse mesmo instrumento (que passa por diver- sas modificagdes, embora secundédrias) poderia ser utilizado de outra maneira mediante uma mudanga do poder do Estado, pela classe operdria numa transigao para o socialismo. Nesse primeiro ponto, as andlises do PCF evoluiram. Esse en- caminhamento pode ser constatado na obra coletiva de J. Fabre, Fr. 131 Hincker e L. Séve, Les communistes et I Etat, assim como numa série de artigos, em La Nouvelle Critique, de Fr. Hincker. Essas posigdes apresentam uma evolugio considerdvel pois Tompem, apés um encaminhamento perseguido hd muito tempo, com a concepgao instrumentalista do Estado legada pelo dogmatis- mo stalinista. © Estado é compreendido como condensagao de uma relagao: “O Estado, sua politica, suas formas, suas estruturas, tra- duzem portanto os interesses da classe dominante ndo de modo me- cAnico, mas através de uma relagdo de forgas que faz dele uma expresso condensada da luta de classes em desenvolvimento”! Destacando a importancia dessa evolugao, é no entanto preciso con- siderar que em seu segundo ponto as andlises do PCF persistem ainda em negligenciar a materialidade propria do Estado como apa- relho “especial” precisamente. Isso se manifesta na série de artigos de Fr. Hincker* que encer- ram consideragées teéricas mais aprofundadas: refiro-me a esses ar- tigos guisa de exemplo, pois eles tratam de quest6es que esto no centro do debate no seio do comunismo europeu (tanto na Itdlia como na Espanha ou na Gra-Bretanha). Hincker refere-se a duas concepgdes do Estado que, segundo ele, se entrecruzam em toda hist6ria do movimento marxista. Uma concep¢ao “estreita”, que considera que o Estado é em sua esséncia um aparelho, e uma con- cepgaio “ampla”, que é aceita como justa por Hincker, que conside- ra 0 Estado simplesmente como a expresso de uma relaciio de clas- se. Ora, a oposi¢do entre as duas concepgées nao é colocada de maneira exata. Nao se trata de opor uma concepgdo que considera o Estado como um aparelho a uma outra que o tem como uma sim- ples relagao de classe, mas de opor uma concepgao instrumentalis- ta do Estado-Coisa Aquela que o considera como a condensagiio ma- terial de uma relagdo de forgas entre classes. O aspecto material do Estado como aparelho nao desaparece absolutamente na concepgio do Estado como condensagao de uma relagao entre classes, em opo- sigao ao que parece implicar as andlises de Fr. Hincker. E a relagao do Estado com as relagdes de produgio e a divisdo social do traba- tho, concentrada na separacao capitalista do Estado e dessas rela- ges, que constitui a ossatura material de suas instituigdes: tentei demonstré-lo na primeira parte desse texto. O Estado nao se reduz a relagdo de forgas, ele apresenta uma opacidade e uma resisténcia 132 proprias. Uma mudanga na relagao de forgas entre classes certa- mente tem sempre efeitos no Estado, mas nao se expressa de ma- neira direta e imediata: ela esgota a materialidade de seus diversos aparelhos e s6 se cristaliza no Estado sob sua forma refratada e di- ferencial segundo seus aparelhos. Uma mudanga de poder do Esta- do nao basta nunca para transformar a materialidade do aparelho de Estado: essa transformagao provém, sabemos, de uma operacio e agao especificas. Voltemos a relacao entre o Estado e as classes sociais. Tanto na concepeao do Estado como Coisa e do Estado como Sujeito, a saber portanto, do Estado como entidade intrinseca, a relagao Estado-clas- ses sociais e, em particular, Estado-classes ¢ fracdes dominantes, é compreendida como relacao de exterioridade. Ora as classes domi- nantes se submetem ao Estado (Coisa) por um jogo de “influéncias” e de grupos de pressdo, ora o Estado (Sujeito) se submete as classes dominantes. Nessa relago de exterioridade, Estado e classes domi- nantes sao considerados sempre como entidades intrinsecas “con- frontadas” entre si, uma em “face” da outra, e assim uma possuiria tanto poder que a outra nada deteria, conforme uma tradicional con- cepgio de poder como quantidade dada numa sociedade: a concep- ¢4o do poder soma-zero. Ora a classe dominante absorve o Estado esvaziando-o de seu proprio poder (0 Estado-Coisa), ora 0 Estado re- siste & classe dominante e Ihe retira seu poder em seu proprio bene- ficio (0 Estado-Sujeito e arbitro entre as classes sociais, concepgao cara a social-democracia). Mais ainda: segundo a primeira tese, a do Estado-Coisa, a po- litica do Estado em favor da burguesia se estabelece pelo simples controle exercido sobre o Estado-instrumento, de uma tinica frago da burguesia, atualmente o capital monopolista, passando ela mes- ma por comportar uma unidade politica em qualquer sentido prévia 4 aco estatal. O Estado nao desempenha uma fragdo propria na or- ganizacao do bloco de poder burgués, e ndo possui nenhuma auto- nomia em relagio 2 classe ou fracdo dominante ou hegeménica. Na tese do Estado-Sujeito, em troca, é o Estado dotado de uma vontade racionalizante, de poder préprio ¢ de uma autonomia tendencial- mente absoluta em relagio as classes sociais, sempre exterior a elas, que imporia “sua” politica, a da burocracia ou das elites politicas, aos interesses divergentes e concorrentes da sociedade civil. 133 Essas duas teses no podem assim explicar o estabelecimento da politica do Estado em favor das classes dominantes, e nao levam igualmente a compreensio de um problema decisivo, o das contra- dicdes internas do Estado, Em sua perspectiva comum de uma rela- 40 de exterioridade entre Estado e classes sociais, o Estado apare- ce forgosamente como um bloco monolitico sem fissuras. No caso do Estado-Coisa, onde o Estado parece dotado de uma unidade ins- trumental intrinseca, as contradigdes em seu seio existem apenas como contrafagées extemas (influéncias, presses) de pecas e en- grenagens do Estado-méquina ou instrumento, em que cada fragao dominante ou grupo de interesses Particulares ficam com a melhor parte para si. Portanto contradigdes claramente secundérias, simples falhas da unidade quase metafisica do Estado, nao influindo na de- finigdo de sua politica, Elas so consideradas mesmo como elemen- tos que perturbam, ainda que provisoriamente, o centralismo instru- mental do Estado, devido ao controle exercido sobre ele de uma Classe ou fracdo, que se reativa sempre, é 0 caso dizer, de maneira mecfnica. No caso do Estado-Sujeito, a unidade do Estado € a ex- Pressdo necessdria de sua vontade racionalizante, faz parte de sua esséncia em face dos fracionamentos da sociedade civil, As contra- digdes internas do Estado mantém-se manifestagdes secundarias, acidentais e episédicas, devido no essencial as friegdes ou antago- nismos entre diversas elites politicas ou grupos burocraticos que en- carnam sua vontade unificadora. Ld, as contradigdes de classe sao exteriores ao Estado; c4, as contradigdes do Estado sao exteriores as classes sociais, Ora, 0 estabelecimento da politica do Estado em favor do bloco no poder, o funcionamento concreto de sua autonomia relati- va € seu papel de organizacao sao organicamente ligados a essas fis- suras, divisGes e contradigdes internas do Estado que nao podem re- presentar simples acidentes disfuncionais. O estabelecimento da politica do Estado deve ser considerado como a resultante das con- tradig6es de classe inseridas na Prépria estrutura do Estado (0 Es- tado-relaco). Compreender 0 Estado como a condensago de uma relacdo de forgas entre classes e fragdes de classe tais como elas se expressam, sempre de maneira especifica, no seio do Estado, signi- fica que o Estado € constituido-dividido de lado a lado pelas contra- dicdes de classe. Isso significa que uma instituigdo, 0 Estado, desti- 134 nado a reproduzir as divisdes de classe, nfo é, no pode ser jamais, como nas concepgées do Estado-Coisa ou Sujeito, um bloco mono- Iitico sem fissuras, cuja politica se instaura de qualquer maneira a despeito de suas contradigdes, mas é ele mesmo dividido. Nao basta simplesmente dizer que as contradig6es e as lutas atravessam o Es- tado, como se se tratasse de manifestar uma substancia jé constitu(- da ou de percorrer um terreno vazio. As contradigdes de classe cons- tituem o Estado, presentes na sua ossatura material, e armam assim sua organizagdo: a politica do Estado € 0 efeito de seu funcionamen- to no seio do Estado. As contradi¢ées de classe, examinadas momentaneamente ape- nas as que existem entre as fragdes do bloco no poder, assumem no seio do Estado a forma de contradigdes internas entre os diversos ramos e aparelhos do Estado, e no seio de cada um deles, conforme as linhas de dire¢o ao mesmo tempo horizontais ¢ verticais. Se isso acontece dessa maneira, é porque as diversas classes e fracées do bloco no poder s6 participam da dominacao politica na medida em que esto presentes no Estado. Cada ramo ou aparelho de Estado, cada face, de alto a baixo, de cada um deles (pois eles so muitas vezes, sob sua unidade centralizada, desdobrados e obscurecidos), cada patamar de cada um deles constitui muitas vezes a sede do poder, e 0 representante privilegiado, desta ou daquela fragdo do bloco no poder, ou de uma alianga conflitual de algumas dessas fra- gGes contra as outras, em suma a concentracao-cristalizagao especi- fica de tal ou qual interesse ou alianga de interesses particulares. Executivo e parlamento, exército, magistratura, diferentes ministé- rios, aparelhos regionais municipais e aparelho central, aparelhos ideoldgicos, eles mesmos divididos em circuitos, redes e trincheiras diferentes, representam com freqiiéncia, conforme as diversas for- magoes sociais, interesses absolutamente divergentes de cada um ou de alguns componentes do bloco no poder: grandes proprietarios de terra (caso de numerosas formagées sociais dominadas e dependen- tes), capital ndo-monopolista (e uma ou outra fragdo deste: comer- cial, industrial ou bancério), capital monopolista (e uma ou outra fragdo deste: capital monopolista com dominancia bancéria ou in- dustrial), burguesia internacionalizada ou burguesia interna. As contribuigdes no seio das classes e fragdes dominantes, as relagdes de forcas no seio do bloco no poder, que incitam precisa- 135 mente a organizacao da unidade desse bloco na perspectiva do Esta- do, existem portanto como relagGes contraditérias estabelecidas no seio do Estado. O Estado, condensagio material de uma relagao con- tradit6ria, nao organiza a unidade do bloco politico no poder desde © exterior, como que resolvesse pela sua simples existéncia, e a dis- tancia, as contradi¢gées de classe. Bem ao contrério, € 0 jogo dessas contradi¢des na materialidade do Estado que torna possivel, por mais paradoxal que possa parecer, a fungao de organizacao do Estado. Dessa maneira € preciso abandonar definitivamente uma visio do Estado como um dispositivo unitério de alto a baixo, fundamen- tado numa reparticao hierérquica homogénea dos centros de poder, em escala uniforme, a partir do épice da piramide para a base. A ho- mogeneidade e a uniformidade do exercfcio do poder estariam ga- Tantidas pela regulamentacao jurfdica intema ao Estado, pela lei constitucional ou administrativa que estabeleceria os limites desse dominio de competéncia e de ago dos diversos aparelhos. Imagem inteiramente falsa: 0 que nao quer dizer, certamente, que o Estado atual nao possua uma trama hierdrquica e burocratica, nem também que nao apresente essa caracteristica de centralismo, mas que essa nao se assemelha em nada A sua imagem juridica (tanto na Franga, Pais do jacobinismo centralizador na tradigo da monarquia absolu- tista, quanto alhures). Entende-se assim por que o estabelecimento pelo Estado atual do interesse politico geral e a longo prazo do bloco no poder (sua funcdo de organizacao no equilibrio instavel dos compromissos) sob a hegemonia de tal ou qual fragdo do capital monopolista, o funcio- namento concreto de sua autonomia relativa e também dos limites desta diante do capital monopolista, em suma, a politica atual do Es- tado, é a resultante dessas contradigGes interestatais entre setores e aparelhos de Estado e no seio de cada um deles. Portanto trata-se exatamente de: 1. Um mecanismo de seletividade estrutural da informagao dada por parte de um aparelho e de medidas tomadas, pelos outros. Seletividade implicada pela materialidade e historia prdpria de cada aparelho (exército, aparelho escolar, magistratura etc.) e pela repre- sentagdo especifica em seu seio de tal ou qual interesse particular, em suma por seu lugar na configuracao da relagao de forgas; 136 2. Um trabalho contraditério de decisdes, mas também de “‘nao- decis6es” por parte dos setores e segmentos de Estado. Essas nao de- cisdes, ou seja um certo grau de auséncia sistematica de agao do Es- tado, que no so um dado conjuntural porém esto inseridas em sua estrutura contraditéria e constituem uma das resultantes dessas con- tradig6es, so igualmente necessdrias 4 unidade ¢ & organizagao do bloco no poder assim como as medidas positivas que ele toma; 3. Uma determinacao presente na ossatura organizacional de tal ou qual aparelho ou setor do Estado segundo sua materialidade propria e tais ou quais interesses que eles representam, prioridades mas também contraprioridades. Ordem diferente, para cada apare- Iho e setor, rede ou patamar de cada um deles segundo seu lugar na configuracao da relagao de forcas: séries de prioridades e contra- prioridades contraditérias entre si; 4. Uma filtragem escalonada por cada ramo e aparelho, no pro- cesso de tomada de decisdes, de medidas propostas pelos outros ou de execugao efetiva, em suas diversas modalidades, de medidas to- madas pelos outros. 5. Um conjunto de medidas pontuais, conflituais e compensa- torias em face dos problemas do momento. A politica do Estado se estabelece assim por um processo efe- tivo de contradigdes interestatais, e é precisamente por isso que, num primeiro nivel e a curto prazo, em suma do ponto de vista da fisiologia micropolitica, ela parece prodigiosamente incoerente e caética. Se uma determinada coeréncia se estabelece ao fim do pro- cesso, a fungdo de organizago que cabe ao Estado é bem marcada por limites estruturais. Esses demonstram 0 cardter especialmente ilus6rio das concepgées de um atual capitalismo “organizado”, ou seja que consegue superar suas contradi¢des na perspectiva do Esta do; ilusées que se embricam com as referentes as possibilidades reais de uma planificacao capitalista. Esses limites do papel organi- zacional do Estado ndo Ihe sao impostos somente do exterior. Eles nao se referem unicamente as contradigGes inerentes ao processo de reprodugdo e acumulagao do capital, mas igualmente a estrutura e ossatura material do Estado que, ao mesmo tempo, fazem dele o lugar de organizacio do bloco no poder e lhe permitem uma autono- mia relativa em relagdo a tal ou qual de suas fragdes. 137 Essa autonomia nao é, assim, uma autonomia do Estado Sren- te as frages do bloco no poder, ela nao advém da capacidade do Es- tado de se manter exterior a elas, mas a resultante do que se passa dentro do Estado, Essa autonomia se manifesta concretamente pelas diversas medidas contraditérias que cada uma dessas classes e fra- ges, pela estratégia especifica de sua presenga no Estado e pelo Jogo de contradigdes que resulta disso, consegue introduzir na poli- tica estatal, mesmo que sob a forma de medidas negativas: a saber, Por meio de oposigdes e resisténcias 4 tomada ou execugao efetiva de medidas em favor de outras fragdes do bloco no poder (é particu- larmente 0 caso, hoje em dia, das resistencias do capital ndo-mono- polista frente ao capital monopolista). Essa autonomia do Estado em telacdo a tal ou qual fraco do bloco no poder existe pois concreta- mente como autonomia relativa de tal ou qual setor, aparelho ou rede do Estado em relagdo aos outros. Certamente isso nio significa que nao existam Projetos politi- Cos coerentes por parte dos representantes e do pessoal politico das classes dominantes, nem que a burocracia de Estado nao desempe- nhe um papel préprio na orientagao da politica do Estado. Mas as contradig6es no seio.do bloco no poder atravessam, segundo as li- nhas de clivagem complexas ¢ segundo os diversos ramos e apare- Thos de Estado (exército, administragao, magistratura, partidos poli- ticos, igreja etc.), a burocracia e o pessoal de Estado. Muito mais que com um corpo de funciondrios € de pessoal de estado unitario e cimentado em torno de uma vontade Politica univoca, lida-se com feudos, clas, diferentes facgdes, em suma com uma multidao de mi- cropoliticas diversificadas. Essas, por coerentes que possam pare- cer consideradas isoladamente, nao sao menos contraditérias entre si, consistindo a politica do Estado no essencial na resultante de seu entrechoque e néo na aplicagao — mais ou menos perfeita— de um esbogo global de objetivos do Estado. O fenémeno espantoso, ¢ constante, de reviravoltas da politica governamental, feita de ace- leragGes € freadas, de recuos, de hesitagées, de permanentes mu- dangas, nao € devido a uma incapacidade de qualquer maneira ca- racteristica dos representantes e do alto pessoal burgués, mas é a expresso necessdria da estrutura do Estado. Resumindo, entender o Estado como condensago material de uma relagio de forgas, significa entendé-lo como um campo e um 138 processo estratégicos, onde se entrecruzam nticleos e redes de poder que ao mesmo tempo se articulam e apresentam contradigdes e deca- lagens uns em relagdo aos outros. Emanam daf taticas movedigas e contraditérias, cujo objetivo geral ou cristalizacao institucional se corporificam nos aparelhos estatais. Esse campo estratégico é trans- passado por taticas muitas vezes bastante explicitas ao nivel restrito onde se inserem no Estado, téticas que se entrecruzam, se combatem, encontram pontos de impacto em determinados aparelhos, provocam curto-circuito em outros e configuram o que se chama “a politica” do Estado, linha de forga geral que atravessa os confrontos no seio do Es- tado. Nesse nivel, essa politica é certamente decifravel como célcu- lo estratégico, embora mais como resultante de uma coordenago con- flitual de micropoliticas e taticas explicitas e divergentes que como formulagao racional de um projeto global e coerente. O Estado nao constitui no entanto um simples conjunto de pecas descartaveis: ele apresenta uma unidade de aparelho, isso que se designa comumente pelo termo de centralizagao ou centralismo, ligada desta vez A unidade, através de suas fissuras, do poder de Es- tado. Isso se traduz, por sua politica global e maciga em favor da classe ou fra¢ao hegeménica, atualmente o capital monopolista. Mas essa unidade de poder nio se estabelece por uma penhora fisica dos donos do capital monopolista sobre o Estado e por sua vontade coe- rente. Essa unidade-centralizagao est inscrita na ossatura hierarqui- ca-burocratizada do Estado capitalista, efeito da reprodugdo no seio do Estado da divisao social do trabalho (inclusive sob a forma tra- balho manual — trabalho intelectual) e de sua separagio especifica das relagées de produgao. Ela resulta também de sua estrutura de condensagao de uma relagaio de for¢as, logo do lugar preponderante em seu seio da classe ou fragiio hegeménica sobre as outras classes € fragdes do bloco no poder. Nao apenas essa hegemonia na relagdo de forgas esta presente no seio do Estado, mas, da mesma maneira que 0 bloco no poder s6 pode funcionar a longo prazo sob a hege- monia ¢ diregdo de um de seus componentes que 0 unifique diante do inimigo de classe, o Estado reflete essa situagdo. Sua organiza- ao estratégica leva-o a funcionar sob a hegemonia de uma classe ou fragdo em seu proprio seio. O lugar privilegiado dessa classe ou fra- 40 €, ao mesmo tempo, um elemento constitutivo de sua hegemo- nia na constelacao da relagdo de forgas. 139 A unidade-centralizagao do Estado, em favor atualmente do capital monopolista, se estabelece portanto por um complexo pro- cesso: por transformagées institucionais do Estado de tal forma que alguns centros de decisio, dispositivos e micleos dominantes 6 podem ser permedveis aos interesses monopolistas instaurando-se como centros de orientagao da politica de Estado e como pontos de estrangulamento de medidas tomadas “alhures” (porém dentro do Estado) em favor de outras fragdes do capital. A relagao de causali- dade tem alias aqui duplo sentido: a classe ou fragdo hegeménica nao instaura apenas como aparelho dominante aquele que j4 tenha cristalizado por exceléncia seus interesses, mas também todo apare- Tho dominante de Estado (dominagao, que pode advir de muitas ra- Z6es, e corresponde particularmente a relagées de hegemonia prece- dentes e a hist6ria concreta em questio) tende a longo prazo a sera sede privilegiada dos interesses da fra¢do hegeménica e a encarnar as modificagdes da hegemonia. Essa unidade se estabelece por toda uma cadeia de subordinagao de determinados aparelhos a outros, ¢ pela dominagao de um aparelho ou setor do Estado (0 Exército, um partido politico, um ministério etc.), o que cristaliza Por exceléncia os interesses da fragdo hegeménica sobre outros setores ou apare- Ihos, centros de resisténcia de outras fragdes do bloco no poder. Esse Processo pode tomar assim a forma de toda uma série de subdeter- minagGes e de dissimulagdes de alguns aparelhos em outros: deslo- camento das fungdes e esferas de competéncia entre aparelhos e de- calagens constantes entre poder real e poder formal; a forma de uma efetiva rede transestatal que sobrepuja e Provoca curto-circuito em todos os niveis, os diversos aparelhos ¢ setores do Estado (€ 0 caso da DATAR na Franga atualmente), rede que cristaliza por excelén- Cia, € por sua natureza, os interesses monopolistas; enfim pela sub- versio da organizagao hierdrquica tradicional da administracao de Estado, a dos circuitos de formagdo e de funcionamento de corpos- destacamentos especiais de altos funciondrios de Estado, dotados de um alto grau de mobilidade nao apenas interestatal mas igualmente entre o Estado e os negécios monopolistas (X, ENA) e que, sempre pela estratégia de importantes transformacées institucionais (atual fungao dos famosos gabinetes ministeriais, do Comissariado de Pla- nificagao etc.), so encarregados de (e levados a) colocar em aco a politica e em favor do capital monopolista. 140 Essas andlises permitem colocar agora um importante proble- ma referente & ascensio das massas populares e de suas organiza- g6es politicas ao poder, numa perspectiva de transigao para 0 socia- lismo. Certamente esse processo niio pode se deter na tomada do poder de Estado e deve se estender & transformacao dos aparelhos de Estado: mas isso supde sempre a tomada do poder de Estado. a) Dada a complexidade de articulagio dos diversos aparelhos de Estado e de seus setores, 0 que com freqiiéncia se traduz em uma distingao entre poder real e poder formal (este, aparente, da cena po- litica), 0 fato de a esquerda ocupar 0 governo nao significa forgosa nem automaticamente que a esquerda controle realmente os, ou mesmo alguns, aparelhos de Estado. Tanto mais que essa organiza- ¢4o institucional do Estado permite a burguesia, no caso do acesso das massas populares ao poder, permutar os lugares do poder real e poder formal. b) Mesmo no caso em que a esquerda no poder, além de ocu- par o governo, controle realmente os setores ¢ aparelhos de Estado, nem por isso ela controla forgosamente aqueles, ou um entre eles, que detém o papel dominante no Estado, que constituem o pivé cen- tral do poder real. A unidade centralizada do Estado nao reside numa piramide na qual bastaria ocupar o cume para garantir seu controle. HA mais: a organizagio institucional do Estado torna possivel 4 bur- guesia permutar o papel dominante de um aparelho por outro, no caso em que a esquerda ocupando o governo conseguisse controlar © aparelho que, até entdo, desempenhasse o papel dominante. De outra maneira, essa organizagio do Estado burgués Ihe permite fun- cionar por deslocamentos ¢ substituigées sucessivas, dando condi- gdes para o deslocamento do poder da burguesia de um aparelho para outro: o Estado no é um bloco monolitico, mas um campo es- tratégico. Essa permutagao do papel dominante entre os aparelhos dada a rigidez dos aparelhos de Estado que os torna refratdrios & uma simples manipulacao por parte da burguesia, ndo se faz certa- mente do dia para a noite mas acompanha um processo mais ou menos longo: essa rigidez e auséncia de maleabilidade também podem assumir um papel desfavordvel burguesia e deixar um es- pago para a esquerda no poder. Mas esta permutagdo nao tende a reorganizar a unidade centralizada do Estado em torno do novo apa- 141 relho dominante, centro-reftigio por exceléncia do poder burgués no seio do Estado, mecanismo constantemente em marcha ao longo de uma situagdo na qual a esquerda tenha o poder. Mecanismo comple- xo que pode encobrir vérias formas algumas das quais aparentemen- te paradoxais: particularmente a fungao decisiva que assumem re- pentinamente aparelhos-instituigdes que até entao tinham um papel perfeitamente secunddrio senao simplesmente decorativo; a Camara dos Lordes na Inglaterra derrotando recentemente os Pprojetos de na- cionalizagao por parte do governo trabalhista, magistratura-tribunais onde se descobrem repentinamente vocagées irrepreensiveis de ga- rantia da “legalidade” (Allende), diferentes conselhos constitucio- nais etc. c) Isso nao é tudo: as contradigdes internas e os deslocamentos entre poder real e poder formal nao se situam unicamente entre os diferentes aparelhos e setores do Estado, mais igualmente no seio de cada um deles, no sentido em que o centro real de poder em torno do qual cada aparelho se organiza ndo se situa igualmente no cume de sua hierarquia tal como se apresenta na cena da funcdo piiblica: isso vale tanto para a administragio, policia ou exército. Do mesmo modo, senao mais, que em termos de aparelhos verticalmente cen- tralizados, é preciso raciocinar aqui em termos de niicleos e focos de poder real situados em lugares estratégicos dos diversos setores aparelhos de Estado. Mesmo quando a esquerda no poder consegue controlar, em sua hierarquia formal, os devidos cumes, ou aparelhos dominantes do Estado, resta saber se ela controla realmente seus nii- cleos de poder real. I O ESTADO E AS LUTAS POPULARES As divisdes internas do Estado, o funcionamento concreto de sua autonomia € 0 estabelecimento de sua politica através das fissu- ras que caracterizam-no, nao se reduzem as contradigées entre as Classes e fragdes do bloco no poder: dependem da mesma maneira, € mesmo principalmente, do papel do Estado frente as classes domi- nadas. Os aparelhos de Estado consagram e reproduzem a hegemo- nia ao estabelecer um jogo (varidvel) de compromissos provisérios entre o bloco no poder e determinadas classes dominadas. Os apare- 142 Ihos de Estado organizam-unificam 0 bloco no poder ao desorgani- zar-dividir continuamente as classes dominadas, polarizando-as para 0 bloco no poder e ao curto-circuitar suas organizagées politicas es- pecfficas. A autonomia relativa do Estado diante de tal ou qual fra- ¢&o do bloco no poder € necesséria igualmente para a organizacio da hegemonia, a longo termo e de conjunto, do bloco no poder em relagdo as classes dominadas, sendo imposto muitas vezes ao bloco no poder, ou a uma ou outra de suas fracdes, os compromissos ma- teriais indispensaveis a essa hegemonia. Mas esse papel do Estado diante das classes dominadas, tanto como seu papel frente ao bloco no poder, nao deriva de sua raciona- lidade intrinseca como entidade “exterior” as classes dominada: Ele est igualmente inscrito na ossatura organizacional do Estado como condensagao material de uma relagao de forcas entre classes. O Estado concentra nao apenas a relagdo de forcas entre fragdes do bloco no poder, mas também a relacdo de forcas entre estas e as classes dominadas. Se as andlises precedentes que se referem A relacdo do Estado e classes dominantes parecem facilmente aceitaveis, existe em ge- ral, € na esmagadora maioria dos casos, a tendéncia de considerar que o Estado constitui, em relagao as classes dominadas, um bloco mo- nolitico que lhes é imposto de fora, e sobre o qual elas s6 atuam cer- cando-o e assediando-o de fora, como uma fortaleza impermedvel isolada delas. As contradigdes entre classes dominantes e classes do- minadas permaneceriam contradigGes entre o Estado e as massas po- pulares exteriores ao Estado. As contradigées internas do Estado nao passariam de decorréncias das contradigdes entre classes e fragdes dominantes, a luta das classes dominadas ndo seria uma luta presen- te no Estado, consistindo simplesmente em pressGes sobre o Estado. Na realidade, as lutas populares atravessam 0 Estado de lado a lado, € isso nao acontece porque uma entidade intrinseca penetra-o do ex- terior. Se as lutas politicas que ocorrem no Estado atravessam seus aparelhos, é porque essas lutas esto desde jd inscritas na trama do Estado do qual elas esbogam a configuragao estratégica. Certamen- te, as lutas populares, e mais geralmente os poderes, ultrapassam de longo o Estado: mas por mais que elas sejam (e elas 0 so) propria- mente politicas, nao lhe sao realmente exteriores. Rigorosamente fa- lando, se as lutas populares esto inscritas no Estado, nao é porque 143 sejam absorvidas por uma incluso num Estado-Moloch totalizante, mas sim antes porque é o Estado que est imerso nas lutas que o sub- mergem constantemente. Fica entendido no entanto que até as lutas (© nao apenas as de classe) que extrapolam o Estado nao esto no entanto “fora do poder”, mas sempre inscritas nos aparelhos de poder que as materializam e que, também eles, condensam uma re- lagdo de forgas (as fabricas-empresas, a familia numa certa medida etc.). Em razio do encadeamento complexo do Estado com o con- junto de dispositivos do poder, essas lutas mesmas tém sempre efei- tos, “a distancia” desta feita, no Estado. Assim a estrutura material do Estado em sua relagdo com as re- lagdes de produgao, sua organizacao hierérquica-burocratica, repro- ducao em seu seio da divisao social do trabalho, traduzem a presen- a especifica, em sua estrutura, das classes dominadas e sua luta. Elas nao tém por simples objetivo afrontar, cara a cara, as classes dominadas, mas manter e reproduzir no seio do Estado a relagio do- mina¢do-subordinagao: o inimigo de classe esté sempre no Estado. A configuragao precisa do conjunto dos aparelhos de Estado, a or- ganizacao deste ou daquele aparelho ou ramo de um Estado concre- to (exército, justica, administragdo, escola, i igreja etc.) dependem nao apenas da relagao de forgas interma no bloco no poder, mas igual- mente da relagao de forgas entre este e as massas populares, logo da fungdo que eles devem exercer diante das classes dominadas. O que explica a organizagdo diferencial do exército, da policia, da igreja, nos diversos Estados e que funciona como a historia de cada um deles, historia que € também a marca impressa em seu arcabouco pelas lutas populares. Tanto € assim que o Estado, trabalhando para a organizacao da hegemonia, logo para a divisfio e desorganizagio das massas popu- lares, faz de algumas delas, especialmente a pequena burguesia ¢ as classes populares camponesas, verdadeiras classes-de-apoio do bloco no poder e curto-circuita sua alianga com a classe operdria. Essas aliangas-compromissos, essa relagdo de foreas, incorporam-se ho arcabougo de tal ou qual aparelho de Estado que desempenha exatamente essa fungao. O aparelho escolar na Franca, por exemplo, nao pode ser compreendido sem essa relago, nele concentrada, da burguesia ¢ da pequena burguesia, nem o exército sem a relagao entre burguesia e classes populares do interior. Enfim, se tal ou qual 144

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