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Revisitando "Os Donos do Poder" de Raymundo Faoro: uma abordagem historiográfica

Gunter Axt

O interesse dos historiadores profissionais brasileiros pelo campo da história do Direito e do


Poder Judiciário no Brasil vem sendo relativamente tímido, salvo manifestas exceções como a
de José Murilo de Carvalho ou Arno Wehlig. Todavia, o caminho inverso, ou seja, a contribuição
de juristas para a historiografia nacional, foi trilhado com propriedade e relevância. As teses
reunidas nas obras de pelo menos dois juristas, Victor Nunes Leal e Raymundo Faoro, podem
ser apontadas como referências fundamentais para a construção do conhecimento histórico no
País, ainda que tenham sido objeto de apropriações parciais, quando não polêmicas, e de
críticas pela tradição historiográfica posterior. O traço comum entre elas reside nas
considerações em torno da relação entre o estado e a sociedade.

Nesse artigo, propomo-nos a contribuir com algumas considerações para o esforço de


entendimento acerca das características da reflexão teórica conduzida por Raymundo Faoro,
em "Os Donos do Poder", bem como avaliar aspectos sintéticos do impacto das teses
desenvolvidas nessa obra sobre a produção historiográfica brasileira e gaúcha. O esforço
justifica-se não apenas em função da recente visibilidade do autor com sua posse na Academia
Brasileira de Letras, como ainda pelo fato de ter trilhado caminho de destaque entre os
acadêmicos nacionais: em 1998, uma enquête promovida entre diversos intelectuais pelo
Caderno Mais, da Folha de São Paulo, sobre quais as mais importantes obras de não-ficção
sobre o Brasil, colocou o livro de Faoro na sétima posição.

Raymundo Faoro partilhou de uma formação humanística interdisciplinar: "sou da turma de


1948 – disse – essa geração foi a última de uma Faculdade de Direito de Porto Alegre que era
também uma escola de literatura, uma escola de filosofia, uma escola de sociologia". Estreou
nas letras ainda jovem, quando integrou o grupo que editava a revista de literatura "Quixote",
ao final dos anos 1940. Sob a epígrafe - "vamos fazer uma barbaridade" – esse veículo teve
vida efêmera. A experiência, todavia, determinou a intimidade que o autor manifestaria ao longo
de sua trajetória pessoal com a literatura, mais tarde especificamente expressa na obra
"Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio", publicada em 1974 pela Companhia Editora
Nacional. Mas marcaria, sobretudo, o estilo de sua principal obra, "Os Donos do Poder", de
linguagem sóbria, erudita e imagética, abusando de metáforas audaciosas.

Publicado pela primeira vez em 1958, "Os Donos do Poder" não é apenas a principal obra
deste jurista gaúcho, mas é praticamente toda sua obra. Na primeira edição, o livro tinha 271
páginas. Relançado quase 20 anos mais tarde, em 1975, revisado e ampliado, alcançou 750
páginas, dispostas em dois volumes, ganhando dois novos capítulos sobre a República. Suas
dimensões foram portanto triplicadas. Contudo, como sublinha o autor no prefácio da segunda
edição, "a tese deste ensaio é a mesma de 1958, íntegra nas linhas fundamentais, invulnerável
a treze anos de dúvidas e meditações", mas a forma "está quase totalmente refundida".
Atualmente, o livro encontra-se na sétima edição.

Como lembra Iglesias, o destino desta obra poderia ser o mesmo que se abateu sobre tantos
textos cruciais para a historiografia brasileira, como os de Barbosa Lima Sobrinho ou Victor
Nunes Leal, entre outros, lançados nos anos 1930 e 1940 e que não alcançaram novas
reedições, distanciando-se do público, paradoxalmente incrementado com a dinamização dos
cursos de Ciências Sociais nas nossas universidades. Mas "Os Donos do Poder" trilhou
carreira entre os acadêmicos das Humanidades, que passaram a incluí-lo em suas leituras
básicas, especialmente após a atenção que o mesmo merecera de Carlos Guilherme Mota,
cuja tese de doutoramento, "Ideologia da Cultura Brasileira", defendida em 1975 e publicada
em 1977, teve em Faoro um dos autores analisados, bem como um dos membros da banca
examinadora.
Ora, segundo o próprio Mota, este desempenho encontra justificativa na ruptura operada pela
obra no momento de seu lançamento junto aos precários quadros teóricos que alimentavam a
produção intelectual brasileira. Faoro, com efeito, acrescentou uma alternativa interpretativa
aos matizes balizados pela visão dualista da realidade brasileira (Celso Furtado), pela rígida
mecânica da teoria das classes sociais, vertida pelo marxismo ortodoxo (Nelson Werneck
Sodré,), e pela perspectiva puramente estamental (Fernando de Azevedo). Para Mota, Faoro
introduz uma nova "constelação de conceitos", questionando as análises em torno da formação
da classe dominante brasileira e de seus métodos de expropriação social.

Em que pese ter sido o livro de Faoro trabalho de um jurista, e não de um historiador, é sem
dúvida um texto de história, tanto pela captação e tematização do processo evolutivo em tela,
quanto pela sensibilidade demonstrada na erudita articulação dos planos político, social e
econômico entre si. Mas, como bem lembra o próprio autor no prefácio da segunda edição,
investe-se o mesmo de um caráter ensaístico, o que se dá em parte pela sua profunda carga
interpretativa, mas também pelo seu ousado perfil sintetizador do processo histórico. É
somente neste contexto que se equaciona a ausência em sua obra de pesquisas junto às
fontes primárias. Faoro não perscruta seu próprio acervo documental, mas reinterpreta aquele
disponível na literatura corrente. Assim, mais ainda do que um livro de história política, "Os
Donos do Poder" converteu-se num ensaio acerca da cultura política brasileira.

Neste quadro, o domínio do Direito oferece um importante instrumento ao autor de acesso ao


seu objeto. A análise da evolução constitucional e jurídica, em cotejo permanente com a praxis
política, permite ao autor alcançar uma de suas teses fundamentais, a de que a cultura
brasileira carrega uma cisão histórica entre ideologia e realidade: "a legalidade teórica
apresenta conteúdo e estrutura diferentes dos costumes e da tradição populares". Conforme o
autor, seria este um efeito do drama da cultura brasileira, sufocada pelo fardo do "prolongado
domínio do patronato do estamento burocrático", pois "a nação como que se embalsamou com
o braço enregelado da carapaça administrativa", tornando-se insensível a estímulos rasteiros
do conjunto do tecido social.

A novidade sugerida pelo autor está na confecção do próprio objeto - não uma cadeia de
eventos políticos, mas a lógica cultural da estrutura burocrática e do estamento administrativo
brasileiros. Enfim, o sentido íntimo do Estado, subjacente a todas suas políticas públicas. Foi,
mais uma vez, Guilherme Mota quem consagrou a idéia de que o corpo conceitual
operacionalizado por Faoro inspirou-se em Max Weber, já que foi este cientista alemão quem
mais manipulou os conceitos de estamento e burocracia, em que pese a advertência
sustentada por Faoro no prefácio da segunda edição de que seu livro "não segue, apesar do
próximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber". De qualquer forma, Faoro
introduziu de fato um novo sujeito na historiografia brasileira: o estado. O registro compete a
Décio Saes, na introdução de A Formação do Estado Burguês no Brasil, publicado em 1985.

A eleição do processo de formação do Estado capitalista moderno no Brasil como objeto


"relativamente autônomo" de análise ainda pertence a uma perspectiva interpretativa recente,
como lembra, com efeito, Décio Saes. Para este autor, Faoro rompe com as formulações de
correntes teóricas anteriores que tenderam a enfatizar a resistência do poder privado dos
grandes proprietários rurais, da Colônia ao Estado Novo, "à formação e desenvolvimento do
Estado enquanto poder público" - aqui, a dificuldade de manifestação de uma relação
impessoal entre poder privado e público teria impedido a formação simultânea do cidadão e do
estado. Em tal campo interpretativo, portanto, o desenvolvimento do estado brasileiro resultaria
de um processo de incessante luta entre o poder público e o poder privado.

Um "salto qualitativo" a esta linha argumentativa, conforme Saes, foi proporcionado por Faoro
na medida em que a formação estatal foi pela primeira vez tomada como objeto específico de
análise. Faoro consigna a supremacia do aparato estatal em toda a vida brasileira, desde a
dinastia portuguesa de Avis, que se entrega às navegações ultramarinas, fazendo do estado
"uma empresa do príncipe" e lançando "as bases do capitalismo de estado, politicamente
condicionado". Assim, para Faoro, o estado precede a iniciativa privada, e "o estamento de
feição burocrática se alimenta de uma classe comercial", consumindo-a senhorialmente.
De um Brasil colônia como patrimônio do rei, dirigido pelo seu estamento burocrático, onde o
povo não contou nunca, tendo sido sempre uma ficção, precipita-se a independência com a
vinda de Dom João para o País, que traz consigo todo o conjunto administrativo do Reino, em
atenção às demandas parasitárias pelo preenchimento de sinecuras. Com a independência,
organiza-se a Nação a partir de uma Constituição liberal na teoria, mas profundamente
excludente e conservadora na prática. Ao longo de todo o Império, o poder continua sendo o
estado - "o governo tudo sabe, administra e provê". A República, trouxe um breve crepúsculo
do estamento através do federalismo e da desvirtuação do regime pelo coronelismo. Mas ainda
assim o estado permanece como o grande agente, especialmente no que se refere às questões
financeiras ou às políticas de sustentação do preço do café, que impulsionaram o
intervencionismo público na economia - "a iniciativa privada protegida é a modalidade brasileira
do liberalismo econômico". A ação pública torna-se cada vez mais nítida depois de 1930, com a
adoção de um modelo capitalista "politicamente orientado", em obediência à tradição
portuguesa firmada no século XV, transplantada para o Brasil colônia e sempre recorrente
durante o Império. De Dom Manuel a Getúlio Vargas, a história nacional teria sido marcada
pelo estado impondo-se sobranceiro às forças da sociedade civil.

O conceito-chave empregado pelo autor do início ao fim da obra é o de estamento burocrático.


Este é um dos diferenciais de Faoro na historiografia brasileira, pois ninguém utilizou este
conceito com tanta extensão, como aponta Iglesias, segundo o qual, o conceito está mais
explicitado na segunda edição de "Os Donos..." do que na primeira, diante da qual muitos
leitores teriam sentido-se confusos. No entanto, permanece ainda um tanto frouxo. Em primeiro
lugar, parece haver um abuso dele ao longo do texto, que deixa o entendimento deficiente.
Assim, qual o exato sentido de dizer que o parlamentarismo nativo é de caráter estamental, ou
que os partidos do Império são "estamentalmente autônomos", ou de que o Estado "se
reequipa para as funções de condutor da economia, com o quadro de atribuições concentradas
no estamento burocrático, armado em torno do Senado, dos partidos, do Conselho de Estado e
da política centralizadora"?

Como indica Iglesias, tais afirmações carecem de "poder explicativo". Por outro lado, o domínio
da magistratura na vida pública, intensamente registrado por Faoro, não necessariamente
exclui o dos proprietários de terra, como Faoro sugere, pois, afinal, os magistrados imperiais
muitas vezes também são fazendeiros ou proprietários. Também não ficam muito claras as
diferenciações entre estamento burocrático, estamento político, estamento governamental,
velho estamento, novo estamento... Não é, ainda, bem explicada a existência de níveis do
estamento burocrático: afinal, como pergunta Iglesias, o Exército faz parte do estamento?
Finalmente, se o autor indica que os donos do poder se reúnem no estamento, não se
esclarece como o mesmo se forma e quem compõe esse estamento.

A mesma crítica foi encampada por José Murilo de Carvalho, o qual chama ainda a atenção
para o fato de que a concepção de Faoro de um estamento que se torna árbitro da nação e das
classes sociais é diametralmente oposta àquela alinhavada por Joaquim Nabuco, em "Um
Estadista do Império", 85 anos antes do lançamento de "Os Donos...". Com efeito, segundo
Joaquim Nabuco havia um estreito relacionamento da elite econômica e política do Império
brasileiro com a burocracia estatal. O registro é importante, uma vez que Faoro utiliza
amplamente a obra de Nabuco em "Os Donos...", admitindo a influência daquele, o que se
desenha como inevitável contradição.

Além disso, para outros analistas, influenciados pelos conceitos utilizados por Faoro, o sentido
dado à burocracia foi oposto. Para Fernando Uricoechea, por exemplo, a burocracia, antes de
ser um vetor conservador do estado patrimonial e dos arcaísmos coloniais, foi a força social
capaz de promover a formação do estado moderno, racionalizando progressivamente a esfera
pública.

Se as idéias de onipresença e onipotência do Estado e do estamento burocrático, bem como a


valoração negativa da burocracia, são objeto de crítica em sua obra, outras há que, como
indica Iglesias, merecem ainda realce. Uma delas é a afirmativa de que os partidos políticos no
Império tinham fisionomia própria, o que, conforme Iglesias, costumava ser negado. Faoro
relaciona o partido Conservador aos interesses urbanos e o Liberal aos interesses agrários.
Segundo José Murilo de Carvalho, esta tomada de posição efetivamente representa um avanço
em relação à corrente – integrada por Caio Parado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Nestor
Duarte, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Vicente Licínio Cardoso – que não admitia qualquer
distinção entre os partidos monárquicos. Entretanto, José Murilo vai mais adiante e sugere
deslocar a discussão da correspondência mecânica entre interesses partidários e de classe,
fortemente marcada pela determinação das clivagens regionais, para um debate que proponha
o entendimento da representação das frações de classe junto às formações político-partidárias.

Outra contribuição pontual de Faoro, segundo Iglesias, está em enquadrar o parlamentarismo


monárquico brasileiro no âmbito da tradição francesa, ao invés da inglesa, contrariamente ao
que era feito até então pelos estudiosos. Finalmente, de grande contribuição é também a
análise comparada que o autor conduz do papel das províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e
Rio Grande do Sul, especialmente no que se refere aos processos de desagregação da
monarquia e de composição do sistema político na República Velha. Com efeito, o resgate da
importância das forças políticas regionais no transcurso da história nacional é um aspecto
particularmente bem vindo na obra de Faoro.

Ao avaliar a especificidade da trajetória histórica sul-rio-grandense, Faoro distancia-se em


alguns pontos da tradição historiográfica regional, anterior e posterior a ele, mas aproxima-se
em outros. A principal inovação reside na tentativa de minimizar a ruptura com os parâmetros
da cultura política imperial através do advento da República e do domínio de Júlio de Castilhos
e do PRR sobre o Estado. Por outro lado, Faoro alinha-se aos matizes dominantes na
historiografia gaúcha ao continuar insistindo, por outros argumentos, na tese da especificidade
do modelo político gaúcho em relação ao resto do País.

As interpretações até então correntes sobre o Rio Grande do Sul investiram em temas como a
glorificação da figura do gaúcho e da chamada "democracia sulina"; destacaram o alto nível do
debate político-institucional, a firmeza doutrinária dos políticos e dos partidos, a disciplina
partidária, a honra dos políticos e guerreiros e a violência político-partidária. O Rio Grande do
Sul foi aqui invariavelmente apresentado como um ente à parte dentro do Brasil. Assim, embora
os gaúchos consignassem acendrado amor à Pátria, assumindo a vanguarda na defesa das
fronteiras nacionais, eram descritos como encarnação de uma cidadania superior, produto de
uma politização mais sólida do que os demais brasileiros. No Rio Grande do Sul, desse modo,
os ideais políticos estariam acima dos interesses econômicos e a política parecia ser exercida
como um sacerdócio, livre do comércio de prebendas copiosas. Segundo tais intérpretes, o
espírito público, a honra e a lisura ali sempre falaram mais alto, enquanto o Brasil era entregue
à corrupção e à confusão de princípios, em detrimento do bem comum. Esses autores dividem-
se, basicamente, entre castilhistas-borgistas, liberais-gasparistas e, ainda, um punhado de
simpatizantes da Monarquia. Mas o aspecto comum a todos é a centralidade na percepção da
cizânia política, protagonizada por sujeitos históricos antagônicos: republicanos de um lado e
federalistas de outro.

De um modo geral, os modernos estudiosos do Rio Grande do Sul mostraram-se herdeiros,


ainda que não declarados, dessa tradição. Apesar de estarem sob o influxo da epistemologia
marxista e compartilhando da recente tradição científica acadêmica, veicularam de forma
subliminar os efeitos de sentido acima resumidos. Prova disso é a insistência na tese de que o
Rio Grande do Sul não foi atingido pelas práticas do sistema coronelista de poder que vigeu
durante a assim chamada República Velha (1889-1930). Além disso, continuou-se insistindo da
tese da suposta bi-polaridade político-ideológica, inviabilizando a percepção da diversidade de
projetos políticos alternativos e, sobretudo, desvinculando as bandeiras políticas dos interesses
econômicos, mobilizados efetivamente de forma fracionada no interior das classes sociais.

Com efeito, para Faoro, que enxerga a precedência do aparato estatal sobre a iniciativa privada
e sobre o tecido social, a República Velha caracterizou-se por um interregno liberal, espelhando
um crepúsculo temporário da cultura estamental e patrimonial, cujo resgate se daria justamente
com a Revolução de 1930 e a implantação do Estado Novo, possibilitado em grande medida
graças à sobrevivência do estamento patrimonial no coração do estado providencial e
autoritário cunhado sob a égide do castilhismo. Assim, se por um lado Faoro relativiza a
inovação do republicanismo gaúcho em face da Monarquia, de outro reafirma o descompasso
do estado sulino em relação ao resto do País ao localizar nele vigência de um quadro mental e
institucional diverso.

Faoro acredita que o impacto sobre a trajetória gaúcha da falta de correspondência entre
discurso e prática, característica da experiência histórica brasileira, foi parcialmente
amortecido, na medida em que o autor parece admitir que a centralização autoritária castilhista
conviveu com níveis menos expressivos de coronelismo, graças à menor preponderância dos
poderes locais sobre o governo regional, fator, este, que parece ter sido determinante no
processo de gestação de um modelo de sociedade burguesa onde o capitalismo passa a ser
promovido e orientado pelo aparato estatal. Assim, a principal armadilha da reflexão de Faoro,
consubstanciada na aceitação da existência de uma elite dirigente estrutural e diacronicamente
autônoma em relação aos interesses do tecido social, foi, no caso da análise do Rio Grande do
Sul, ainda reforçada.

Uma apreensão contemporânea desta tese pode ser encontrada em Alfredo Bosi, para quem o
"positivismo social foi transferido em estado puro para o contexto republicano gaúcho",
enquanto no resto do País cedia terreno ao laissez-faire. Isto permitiu a difusão de um "estado
mental" próprio, que moldou a arquitetura estatal para a promoção do progresso civilizacional e
econômico através da noção de missão providencial do estamento burocrático. Desse modo, "o
ideário reformista, comum aos tenentes e aos líderes do PRR, irá fundamentar o programa da
Aliança Liberal vitoriosa em outubro de 1930", promovendo a renovação das estruturas
políticas e econômicas da Nação. A diferença entre Bosi e Faoro está em que o primeiro, mais
próximo, talvez, da obra de Uricoechea, identificou no estamento burocrático a alavanca
propulsora do progresso social e da modernidade, enquanto o segundo viu ali o ranço colonial
e arcaico. Neste aspecto, Bosi aproxima-se bastante do matiz acadêmico com influência
pseudofuncionalista, que a partir dos anos 1970 se tornará dominante na historiografia sobre o
Rio Grande do Sul.

Poucos foram os trabalhos no Rio Grande do Sul que seguiram o matiz interpretativo
patrimonial de Faoro na íntegra, especialmente no que tange ao emprego dos conceitos de
inspiração weberiana. Temos o caso isolado e recente oferecido por Luiz Roberto Targa. O
autor diferencia a trajetória histórica paulista e gaúcha, sustentando que a primeira foi " um
produto da ordem econômica", ao passo que a segunda foi "conduzida pelo primado do
político". Esta tese, que se coloca na inteira contramão do marxismo, leva a extremos a idéia
da especificidade do Rio Grande do Sul em relação ao resto do Brasil. A insistência no
descolamento do estado das injunções de ordem econômica que fermentam o tecido social,
investe o estamento burocrático de uma capa sacerdotal única, capaz de converter a política
em algo quase divino, na medida em que o discurso político é captado como transformador da
ordem social por si só. Mais uma vez, a divergência com Faoro está na convicção do potencial
reformista e progressista do estamento burocrático. Mas Targa vai além: enquanto Faoro
acredita que o patrimonialismo estatista foi preservado no Rio Grande do Sul, na medida em
que o mesmo vivia um crepúsculo em função do predomínio do laissez-faire no resto do País,
Targa inverte os pólos, atribuindo a "irracionalidade" da "dominação baseada na autoridade
patrimonial e tradicional" aos maragatos – opositores do regime de Júlio de Castilhos e Borges
de Medeiros – e aos paulistas, cujas políticas públicas apenas teriam feito aprofundar o fosso
da dominação e da desigualdade, enquanto a prática administrativa borgista teria permitido a
incorporação de segmentos populares à sociedade e à cidadania. A mudança de foco traduz o
contingenciamento ideológico de cada autor: se Faoro tem uma opção nitidamente liberal e
contrária à intervenção do estado na economia, Targa revela-se um vigoroso paladino da
missão renovadora do poder público em face dos malefícios do mercado.

Apesar do matiz patrimonial ter-se difundido relativamente pouco na historiografia sobre o Rio
Grande do Sul posterior a "Os Donos do Poder", diversos aspectos de sua análise foram
compartilhados por outros matizes e tendências historiográficas. De um modo geral, os estudos
que se seguiram permaneceram tributários da idéia do estado enquanto objeto sempre
embalado por uma elite autônoma em relação à sociedade civil. Solidificou-se aos poucos para
o Rio Grande do Sul a tese de que ali o estado republicano nascera, sob o influxo da missão
providencial, comprometido genericamente com o projeto civilizacional burguês e
modernizante. Mas, ao contrário de Faoro, estabeleceu-se o consenso em torno da suposição
de ruptura profunda com a cultura política do Império. Nesse sentido, de um modo ou de outro,
prevaleceu a tese da especificidade do Rio Grande do Sul em relação ao resto do Brasil, bem
como a da excelência e superioridade da política praticada no estado sulino. Reiterou-se
sucessivamente o mito da politização do gaúcho diante da alienação reinante na Nação
brasileira. Por seu turno, a historiografia continuou esvaziando a importância dos interesses
econômicos na origem dos conflitos e na orientação das opções governativas implementadas.
O grande problema aqui foi a falta de uma crítica ao discurso político e governativo, realizada a
partir do contraponto com a prática política, a exemplo da que Faoro aplicou para o caso
brasileiro, de um modo amplo, ainda que tenha se descuidado de fazer o mesmo para com o
Rio Grande do Sul.

Recentemente, alguns trabalhos têm reperpectivado questões propostas por Faoro. Loiva
Otero Félix, por exemplo, aplicou também para o Rio Grande do Sul a reflexão que alude ao
descompasso entre discurso e prática política na tradição brasileira, esquecida pela maior parte
da historiografia, demonstrando que as estruturas institucionais acharam-se também aqui
permeadas por uma cultura sub-reptícia, que confundia as instâncias pública e privada. Loiva
Félix contestou o difundido conceito de "coronel burocrata", fartamente difundido, para concluir,
a partir de pesquisa documental sobre um estudo de caso, a existência recorrente também no
Rio Grande do Sul de uma rede de compromissos coronelista que dava apoio à situação
política, ao mesmo tempo que dela se alimentava.

Enfim, em nosso entender, o potencial explicativo da teoria de Faoro começa no esforço de


compreensão da lógica cultural da burocracia e do estado brasileiros. Reside, especificamente,
na percepção da existência de uma cultura clientelística e patronal subjacente a todo edifício
estatal brasileiro. Neste sentido, Faoro se filia a uma corrente interpretativa desencadeada,
talvez, por Victor Nunes Leal e que também encontra eco em Emília Viotti da Costa. Faoro
contribui com relevo ao trazer o tema do Direito, especialmente público e constitucional, para a
historiografia brasileira, relacionando sua formatação e aplicação também às injunções das
forças políticas em ação no cenário nacional. A conclusão do autor é importante para
demonstrar que as idéias no Brasil dificilmente alcançam correspondência fiel na prática, pois
são sempre filtradas por esta cultura informal das relações políticas. Mas mais do que isto,
Faoro demonstra que os agentes políticos têm consciência desta disparidade, deste
descompasso. Dentre esses, Faoro destaca a própria magistratura como um sujeito engajado
na construção do edifício burocrático e estatal e, portanto, co-partícipe no processo político,
proposição essa que foi posteriormente incorporada e aprofundada, sob outro enfoque teórico,
por José Murilo de Carvalho.

Por outro lado, tem se revelado efetivamente de rasa utilidade o conceito de estamento
burocrático assustadoramente coeso e autônomo cunhado por Faoro: é difícil admitir que,
mesmo nos casos mais autoritários, a elite dirigente goze de autonomia completa em relação à
sociedade, isto é, de total controle sobre a determinação, implementação e sobre os resultados
absolutos das políticas públicas. Enfim, a noção de Estado autônomo, acalentada pelo autor,
articulado a um estamento perene com uma lógica funcional interna coesa e homogênea, é
insustentável. O Estado não pode, definitivamente, ser interpretado como algo descolado da
sociedade. A historiografia brasileira, com efeito, tem demonstrado, através de excelentes
estudos empíricos, que, mesmo nos momentos de extremo fechamento do Poder Executivo
pelo guante do autoritarismo, torna-se impossível falar de um estado autônomo em relação à
sociedade civil.

É possível que esta supervalorização do papel e do poder intervencionista estatal em Faoro se


explique parcialmente em função do momento histórico em que a obra foi produzida, sob os
efeitos do eclipse então recente do Estado Novo varguista e dos resultados da política de
incentivos ao desenvolvimento capitalista desencadeada por Juscelino Kubitscheck. Da mesma
forma, o momento da revisão da obra, colheu o autor em pleno regime militar. Todas estas
conjunturas destacaram-se por uma sensível ampliação da máquina estatal e do seu papel na
economia. Tudo indica, assim, que o autor está dirigindo uma crítica a este estado
intervencionista e planificador, incapaz de solucionar o problema da exclusão social, por ser
herdeiro de uma tendência que historicamente teria corrompido e abafado a verdadeira
expressão da cultura brasileira.
De fato, Faoro concede tal importância ao Estado Novo que chega a sustentar ter sido o
mesmo responsável pela formação da sociedade burguesa no Brasil. Assim, a Proclamação da
República apenas teria operado uma transformação do estado patrimonial aristocrático para a
versão patrimonial burocrática. A tese é bastante discutida pelos estudiosos, que em geral
entendem ter a sociedade burguesa se formatado entes do golpe de 1937.

Junto aos estudos sobre o Rio Grande do Sul, Faoro alcançou pouca influência formal, já que
raros são os textos que operam citações estruturais de "Os Donos...", e, quando o fazem,
empregam os conceitos desenvolvidos pelo autor de forma a inverter o significado original a
eles intrínseco. Além disso, reflexões fundamentais tracejadas pelo jurista-historiador
permanecem ainda à margem do grosso da historiografia regional, como a necessidade de
crítica à retórica oficial dos governantes, o descompasso freqüente entre superestrutura
ideológica e prática política propriamente dita, a minimização da ruptura com as instituições
mentais da Monarquia havida com a assunção do PRR de Júlio de Castilhos ao poder, e,
finalmente, a significativa contribuição dos magistrados, em certas condições, para a
formatação do aparato estatal, e, inclusive, para a implementação de políticas públicas. Por
outro lado, ainda que não tenha havido referências explícitas a Faoro, a maior parte da
historiografia sobre a trajetória gaúcha compartilhou do conceito de um estado
assustadoramente coeso e autônomo, sobredeterminando livremente a sociedade civil, que
dele se torna eterna refém.

Esta sobre-determinância recorrente do estado e do estamento burocrático sobre o tecido


social na obra de Faoro sugere, se empregarmos os conceitos da crítica historiográfica de
Hyden White, a forma de um drama vertido no modo satírico. O arquétipo da sátira pode aqui
ser definido como o de um drama de disjunção, dominado pelo temor de um sujeito cativo do
mundo, cuja consciência e vontade são inadequados para a tarefa de sobrepujar o
obscurantismo, sujeito este definido pela alteridade em relação à onipresença estamental. Este
sujeito, em Faoro, certamente é o povo brasileiro. O enredo dessa narrativa, sempre segundo
os conceitos de White, leva o conflito intrínseco a sério, mas não indica possibilidades de
reconciliação ocasional das forças interagentes. As restrições que estabelece às possíveis
esperanças são de tal ordem que chega propugnar um repúdio às conceptualizações
rebuscadas do mundo e antevê um retorno a uma percepção mítica de seus processos.

A narrativa de Faoro, seria diacrônica, pautando-se pelo senso de continuidade estrutural. Este
resultado seria inerente a uma hipótese contextualista de mundo, onde os elementos adquirem
coerência no âmbito de suas inter-relações funcionais. Ideologicamente, seria, numa primeira
instância, liberal, por aparentemente desacreditar da chance de competência do estado para
equacionar as distorções provocadas pela economia de mercado. Mas, para além disso, ainda
segundo os conceitos de White, o texto de Faoro seria quase anarquista, pois não indica
confiança no aperfeiçoamento progressivo das instituições, não propõe e nem desaconselha
uma ação revolucionária; apenas admite a inexorabilidade de um sistema do qual a única saída
parece ser o evasionismo romântico.

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