Professional Documents
Culture Documents
Gunter Axt
Publicado pela primeira vez em 1958, "Os Donos do Poder" não é apenas a principal obra
deste jurista gaúcho, mas é praticamente toda sua obra. Na primeira edição, o livro tinha 271
páginas. Relançado quase 20 anos mais tarde, em 1975, revisado e ampliado, alcançou 750
páginas, dispostas em dois volumes, ganhando dois novos capítulos sobre a República. Suas
dimensões foram portanto triplicadas. Contudo, como sublinha o autor no prefácio da segunda
edição, "a tese deste ensaio é a mesma de 1958, íntegra nas linhas fundamentais, invulnerável
a treze anos de dúvidas e meditações", mas a forma "está quase totalmente refundida".
Atualmente, o livro encontra-se na sétima edição.
Como lembra Iglesias, o destino desta obra poderia ser o mesmo que se abateu sobre tantos
textos cruciais para a historiografia brasileira, como os de Barbosa Lima Sobrinho ou Victor
Nunes Leal, entre outros, lançados nos anos 1930 e 1940 e que não alcançaram novas
reedições, distanciando-se do público, paradoxalmente incrementado com a dinamização dos
cursos de Ciências Sociais nas nossas universidades. Mas "Os Donos do Poder" trilhou
carreira entre os acadêmicos das Humanidades, que passaram a incluí-lo em suas leituras
básicas, especialmente após a atenção que o mesmo merecera de Carlos Guilherme Mota,
cuja tese de doutoramento, "Ideologia da Cultura Brasileira", defendida em 1975 e publicada
em 1977, teve em Faoro um dos autores analisados, bem como um dos membros da banca
examinadora.
Ora, segundo o próprio Mota, este desempenho encontra justificativa na ruptura operada pela
obra no momento de seu lançamento junto aos precários quadros teóricos que alimentavam a
produção intelectual brasileira. Faoro, com efeito, acrescentou uma alternativa interpretativa
aos matizes balizados pela visão dualista da realidade brasileira (Celso Furtado), pela rígida
mecânica da teoria das classes sociais, vertida pelo marxismo ortodoxo (Nelson Werneck
Sodré,), e pela perspectiva puramente estamental (Fernando de Azevedo). Para Mota, Faoro
introduz uma nova "constelação de conceitos", questionando as análises em torno da formação
da classe dominante brasileira e de seus métodos de expropriação social.
Em que pese ter sido o livro de Faoro trabalho de um jurista, e não de um historiador, é sem
dúvida um texto de história, tanto pela captação e tematização do processo evolutivo em tela,
quanto pela sensibilidade demonstrada na erudita articulação dos planos político, social e
econômico entre si. Mas, como bem lembra o próprio autor no prefácio da segunda edição,
investe-se o mesmo de um caráter ensaístico, o que se dá em parte pela sua profunda carga
interpretativa, mas também pelo seu ousado perfil sintetizador do processo histórico. É
somente neste contexto que se equaciona a ausência em sua obra de pesquisas junto às
fontes primárias. Faoro não perscruta seu próprio acervo documental, mas reinterpreta aquele
disponível na literatura corrente. Assim, mais ainda do que um livro de história política, "Os
Donos do Poder" converteu-se num ensaio acerca da cultura política brasileira.
A novidade sugerida pelo autor está na confecção do próprio objeto - não uma cadeia de
eventos políticos, mas a lógica cultural da estrutura burocrática e do estamento administrativo
brasileiros. Enfim, o sentido íntimo do Estado, subjacente a todas suas políticas públicas. Foi,
mais uma vez, Guilherme Mota quem consagrou a idéia de que o corpo conceitual
operacionalizado por Faoro inspirou-se em Max Weber, já que foi este cientista alemão quem
mais manipulou os conceitos de estamento e burocracia, em que pese a advertência
sustentada por Faoro no prefácio da segunda edição de que seu livro "não segue, apesar do
próximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber". De qualquer forma, Faoro
introduziu de fato um novo sujeito na historiografia brasileira: o estado. O registro compete a
Décio Saes, na introdução de A Formação do Estado Burguês no Brasil, publicado em 1985.
Um "salto qualitativo" a esta linha argumentativa, conforme Saes, foi proporcionado por Faoro
na medida em que a formação estatal foi pela primeira vez tomada como objeto específico de
análise. Faoro consigna a supremacia do aparato estatal em toda a vida brasileira, desde a
dinastia portuguesa de Avis, que se entrega às navegações ultramarinas, fazendo do estado
"uma empresa do príncipe" e lançando "as bases do capitalismo de estado, politicamente
condicionado". Assim, para Faoro, o estado precede a iniciativa privada, e "o estamento de
feição burocrática se alimenta de uma classe comercial", consumindo-a senhorialmente.
De um Brasil colônia como patrimônio do rei, dirigido pelo seu estamento burocrático, onde o
povo não contou nunca, tendo sido sempre uma ficção, precipita-se a independência com a
vinda de Dom João para o País, que traz consigo todo o conjunto administrativo do Reino, em
atenção às demandas parasitárias pelo preenchimento de sinecuras. Com a independência,
organiza-se a Nação a partir de uma Constituição liberal na teoria, mas profundamente
excludente e conservadora na prática. Ao longo de todo o Império, o poder continua sendo o
estado - "o governo tudo sabe, administra e provê". A República, trouxe um breve crepúsculo
do estamento através do federalismo e da desvirtuação do regime pelo coronelismo. Mas ainda
assim o estado permanece como o grande agente, especialmente no que se refere às questões
financeiras ou às políticas de sustentação do preço do café, que impulsionaram o
intervencionismo público na economia - "a iniciativa privada protegida é a modalidade brasileira
do liberalismo econômico". A ação pública torna-se cada vez mais nítida depois de 1930, com a
adoção de um modelo capitalista "politicamente orientado", em obediência à tradição
portuguesa firmada no século XV, transplantada para o Brasil colônia e sempre recorrente
durante o Império. De Dom Manuel a Getúlio Vargas, a história nacional teria sido marcada
pelo estado impondo-se sobranceiro às forças da sociedade civil.
Como indica Iglesias, tais afirmações carecem de "poder explicativo". Por outro lado, o domínio
da magistratura na vida pública, intensamente registrado por Faoro, não necessariamente
exclui o dos proprietários de terra, como Faoro sugere, pois, afinal, os magistrados imperiais
muitas vezes também são fazendeiros ou proprietários. Também não ficam muito claras as
diferenciações entre estamento burocrático, estamento político, estamento governamental,
velho estamento, novo estamento... Não é, ainda, bem explicada a existência de níveis do
estamento burocrático: afinal, como pergunta Iglesias, o Exército faz parte do estamento?
Finalmente, se o autor indica que os donos do poder se reúnem no estamento, não se
esclarece como o mesmo se forma e quem compõe esse estamento.
A mesma crítica foi encampada por José Murilo de Carvalho, o qual chama ainda a atenção
para o fato de que a concepção de Faoro de um estamento que se torna árbitro da nação e das
classes sociais é diametralmente oposta àquela alinhavada por Joaquim Nabuco, em "Um
Estadista do Império", 85 anos antes do lançamento de "Os Donos...". Com efeito, segundo
Joaquim Nabuco havia um estreito relacionamento da elite econômica e política do Império
brasileiro com a burocracia estatal. O registro é importante, uma vez que Faoro utiliza
amplamente a obra de Nabuco em "Os Donos...", admitindo a influência daquele, o que se
desenha como inevitável contradição.
Além disso, para outros analistas, influenciados pelos conceitos utilizados por Faoro, o sentido
dado à burocracia foi oposto. Para Fernando Uricoechea, por exemplo, a burocracia, antes de
ser um vetor conservador do estado patrimonial e dos arcaísmos coloniais, foi a força social
capaz de promover a formação do estado moderno, racionalizando progressivamente a esfera
pública.
As interpretações até então correntes sobre o Rio Grande do Sul investiram em temas como a
glorificação da figura do gaúcho e da chamada "democracia sulina"; destacaram o alto nível do
debate político-institucional, a firmeza doutrinária dos políticos e dos partidos, a disciplina
partidária, a honra dos políticos e guerreiros e a violência político-partidária. O Rio Grande do
Sul foi aqui invariavelmente apresentado como um ente à parte dentro do Brasil. Assim, embora
os gaúchos consignassem acendrado amor à Pátria, assumindo a vanguarda na defesa das
fronteiras nacionais, eram descritos como encarnação de uma cidadania superior, produto de
uma politização mais sólida do que os demais brasileiros. No Rio Grande do Sul, desse modo,
os ideais políticos estariam acima dos interesses econômicos e a política parecia ser exercida
como um sacerdócio, livre do comércio de prebendas copiosas. Segundo tais intérpretes, o
espírito público, a honra e a lisura ali sempre falaram mais alto, enquanto o Brasil era entregue
à corrupção e à confusão de princípios, em detrimento do bem comum. Esses autores dividem-
se, basicamente, entre castilhistas-borgistas, liberais-gasparistas e, ainda, um punhado de
simpatizantes da Monarquia. Mas o aspecto comum a todos é a centralidade na percepção da
cizânia política, protagonizada por sujeitos históricos antagônicos: republicanos de um lado e
federalistas de outro.
Com efeito, para Faoro, que enxerga a precedência do aparato estatal sobre a iniciativa privada
e sobre o tecido social, a República Velha caracterizou-se por um interregno liberal, espelhando
um crepúsculo temporário da cultura estamental e patrimonial, cujo resgate se daria justamente
com a Revolução de 1930 e a implantação do Estado Novo, possibilitado em grande medida
graças à sobrevivência do estamento patrimonial no coração do estado providencial e
autoritário cunhado sob a égide do castilhismo. Assim, se por um lado Faoro relativiza a
inovação do republicanismo gaúcho em face da Monarquia, de outro reafirma o descompasso
do estado sulino em relação ao resto do País ao localizar nele vigência de um quadro mental e
institucional diverso.
Faoro acredita que o impacto sobre a trajetória gaúcha da falta de correspondência entre
discurso e prática, característica da experiência histórica brasileira, foi parcialmente
amortecido, na medida em que o autor parece admitir que a centralização autoritária castilhista
conviveu com níveis menos expressivos de coronelismo, graças à menor preponderância dos
poderes locais sobre o governo regional, fator, este, que parece ter sido determinante no
processo de gestação de um modelo de sociedade burguesa onde o capitalismo passa a ser
promovido e orientado pelo aparato estatal. Assim, a principal armadilha da reflexão de Faoro,
consubstanciada na aceitação da existência de uma elite dirigente estrutural e diacronicamente
autônoma em relação aos interesses do tecido social, foi, no caso da análise do Rio Grande do
Sul, ainda reforçada.
Uma apreensão contemporânea desta tese pode ser encontrada em Alfredo Bosi, para quem o
"positivismo social foi transferido em estado puro para o contexto republicano gaúcho",
enquanto no resto do País cedia terreno ao laissez-faire. Isto permitiu a difusão de um "estado
mental" próprio, que moldou a arquitetura estatal para a promoção do progresso civilizacional e
econômico através da noção de missão providencial do estamento burocrático. Desse modo, "o
ideário reformista, comum aos tenentes e aos líderes do PRR, irá fundamentar o programa da
Aliança Liberal vitoriosa em outubro de 1930", promovendo a renovação das estruturas
políticas e econômicas da Nação. A diferença entre Bosi e Faoro está em que o primeiro, mais
próximo, talvez, da obra de Uricoechea, identificou no estamento burocrático a alavanca
propulsora do progresso social e da modernidade, enquanto o segundo viu ali o ranço colonial
e arcaico. Neste aspecto, Bosi aproxima-se bastante do matiz acadêmico com influência
pseudofuncionalista, que a partir dos anos 1970 se tornará dominante na historiografia sobre o
Rio Grande do Sul.
Poucos foram os trabalhos no Rio Grande do Sul que seguiram o matiz interpretativo
patrimonial de Faoro na íntegra, especialmente no que tange ao emprego dos conceitos de
inspiração weberiana. Temos o caso isolado e recente oferecido por Luiz Roberto Targa. O
autor diferencia a trajetória histórica paulista e gaúcha, sustentando que a primeira foi " um
produto da ordem econômica", ao passo que a segunda foi "conduzida pelo primado do
político". Esta tese, que se coloca na inteira contramão do marxismo, leva a extremos a idéia
da especificidade do Rio Grande do Sul em relação ao resto do Brasil. A insistência no
descolamento do estado das injunções de ordem econômica que fermentam o tecido social,
investe o estamento burocrático de uma capa sacerdotal única, capaz de converter a política
em algo quase divino, na medida em que o discurso político é captado como transformador da
ordem social por si só. Mais uma vez, a divergência com Faoro está na convicção do potencial
reformista e progressista do estamento burocrático. Mas Targa vai além: enquanto Faoro
acredita que o patrimonialismo estatista foi preservado no Rio Grande do Sul, na medida em
que o mesmo vivia um crepúsculo em função do predomínio do laissez-faire no resto do País,
Targa inverte os pólos, atribuindo a "irracionalidade" da "dominação baseada na autoridade
patrimonial e tradicional" aos maragatos – opositores do regime de Júlio de Castilhos e Borges
de Medeiros – e aos paulistas, cujas políticas públicas apenas teriam feito aprofundar o fosso
da dominação e da desigualdade, enquanto a prática administrativa borgista teria permitido a
incorporação de segmentos populares à sociedade e à cidadania. A mudança de foco traduz o
contingenciamento ideológico de cada autor: se Faoro tem uma opção nitidamente liberal e
contrária à intervenção do estado na economia, Targa revela-se um vigoroso paladino da
missão renovadora do poder público em face dos malefícios do mercado.
Apesar do matiz patrimonial ter-se difundido relativamente pouco na historiografia sobre o Rio
Grande do Sul posterior a "Os Donos do Poder", diversos aspectos de sua análise foram
compartilhados por outros matizes e tendências historiográficas. De um modo geral, os estudos
que se seguiram permaneceram tributários da idéia do estado enquanto objeto sempre
embalado por uma elite autônoma em relação à sociedade civil. Solidificou-se aos poucos para
o Rio Grande do Sul a tese de que ali o estado republicano nascera, sob o influxo da missão
providencial, comprometido genericamente com o projeto civilizacional burguês e
modernizante. Mas, ao contrário de Faoro, estabeleceu-se o consenso em torno da suposição
de ruptura profunda com a cultura política do Império. Nesse sentido, de um modo ou de outro,
prevaleceu a tese da especificidade do Rio Grande do Sul em relação ao resto do Brasil, bem
como a da excelência e superioridade da política praticada no estado sulino. Reiterou-se
sucessivamente o mito da politização do gaúcho diante da alienação reinante na Nação
brasileira. Por seu turno, a historiografia continuou esvaziando a importância dos interesses
econômicos na origem dos conflitos e na orientação das opções governativas implementadas.
O grande problema aqui foi a falta de uma crítica ao discurso político e governativo, realizada a
partir do contraponto com a prática política, a exemplo da que Faoro aplicou para o caso
brasileiro, de um modo amplo, ainda que tenha se descuidado de fazer o mesmo para com o
Rio Grande do Sul.
Recentemente, alguns trabalhos têm reperpectivado questões propostas por Faoro. Loiva
Otero Félix, por exemplo, aplicou também para o Rio Grande do Sul a reflexão que alude ao
descompasso entre discurso e prática política na tradição brasileira, esquecida pela maior parte
da historiografia, demonstrando que as estruturas institucionais acharam-se também aqui
permeadas por uma cultura sub-reptícia, que confundia as instâncias pública e privada. Loiva
Félix contestou o difundido conceito de "coronel burocrata", fartamente difundido, para concluir,
a partir de pesquisa documental sobre um estudo de caso, a existência recorrente também no
Rio Grande do Sul de uma rede de compromissos coronelista que dava apoio à situação
política, ao mesmo tempo que dela se alimentava.
Por outro lado, tem se revelado efetivamente de rasa utilidade o conceito de estamento
burocrático assustadoramente coeso e autônomo cunhado por Faoro: é difícil admitir que,
mesmo nos casos mais autoritários, a elite dirigente goze de autonomia completa em relação à
sociedade, isto é, de total controle sobre a determinação, implementação e sobre os resultados
absolutos das políticas públicas. Enfim, a noção de Estado autônomo, acalentada pelo autor,
articulado a um estamento perene com uma lógica funcional interna coesa e homogênea, é
insustentável. O Estado não pode, definitivamente, ser interpretado como algo descolado da
sociedade. A historiografia brasileira, com efeito, tem demonstrado, através de excelentes
estudos empíricos, que, mesmo nos momentos de extremo fechamento do Poder Executivo
pelo guante do autoritarismo, torna-se impossível falar de um estado autônomo em relação à
sociedade civil.
Junto aos estudos sobre o Rio Grande do Sul, Faoro alcançou pouca influência formal, já que
raros são os textos que operam citações estruturais de "Os Donos...", e, quando o fazem,
empregam os conceitos desenvolvidos pelo autor de forma a inverter o significado original a
eles intrínseco. Além disso, reflexões fundamentais tracejadas pelo jurista-historiador
permanecem ainda à margem do grosso da historiografia regional, como a necessidade de
crítica à retórica oficial dos governantes, o descompasso freqüente entre superestrutura
ideológica e prática política propriamente dita, a minimização da ruptura com as instituições
mentais da Monarquia havida com a assunção do PRR de Júlio de Castilhos ao poder, e,
finalmente, a significativa contribuição dos magistrados, em certas condições, para a
formatação do aparato estatal, e, inclusive, para a implementação de políticas públicas. Por
outro lado, ainda que não tenha havido referências explícitas a Faoro, a maior parte da
historiografia sobre a trajetória gaúcha compartilhou do conceito de um estado
assustadoramente coeso e autônomo, sobredeterminando livremente a sociedade civil, que
dele se torna eterna refém.
A narrativa de Faoro, seria diacrônica, pautando-se pelo senso de continuidade estrutural. Este
resultado seria inerente a uma hipótese contextualista de mundo, onde os elementos adquirem
coerência no âmbito de suas inter-relações funcionais. Ideologicamente, seria, numa primeira
instância, liberal, por aparentemente desacreditar da chance de competência do estado para
equacionar as distorções provocadas pela economia de mercado. Mas, para além disso, ainda
segundo os conceitos de White, o texto de Faoro seria quase anarquista, pois não indica
confiança no aperfeiçoamento progressivo das instituições, não propõe e nem desaconselha
uma ação revolucionária; apenas admite a inexorabilidade de um sistema do qual a única saída
parece ser o evasionismo romântico.