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Crítica da multiplicidade

Com o argumento de que o texto é múltiplo, há um barateamento da ideia de diferença e reprime-se o


confronto necessário ao exercício crítico
REVISTA CULT, No. 182, dossiê

Fabio Akcelrud Durão

Talvez o maior lugar-comum da crítica literária no Brasil, hoje, seja o de que o texto é múltiplo.
Simples assim: a multiplicidade como algo quase dado, uma característica praticamente a priori das
obras, que a interpretação só precisaria atestar ou confirmar. Justamente por ser um lugar-comum, a
crença em uma multiplicidade essencial ou ontológica da literatura não precisa ser ferrenhamente
defendida; pelo contrário, ela funciona melhor quando permanece como uma espécie de pressuposto de
fundo, frequentemente não declarado, do processo interpretativo. A crença na multiplicidade está
presente em todas essas frases, que parecem não precisar de explicação: “esta obra presta-se a infinitas
leituras”; “são inúmeros os sentidos”; “há uma pluralidade de vozes”; ou até mesmo no nefasto “cada
um tem a sua interpretação”. Trata-se aqui, na realidade, de um barateamento brutal da ideia de
diferença, que, se por um lado está em consonância com tendências culturais e sociais mais amplas, por
outro, gera consequências bem determinadas para a prática da crítica no âmbito das Letras e das
Ciências Humanas. Dentre os múltiplos problemas da multiplicidade, vejamos seis deles, todos inter-
relacionados:

1. A multiplicidade como lugar-comum adequa-se ao espírito do nosso tempo: ela tem ares
democráticos. Se na tradição da filosofia ocidental, desde Platão, passando pela teologia medieval e
chegando às portas de nosso presente, o uno (a Ideia, Deus ou a Alma) era valorizado em detrimento do
múltiplo (as sensações e emoções, a matéria, os corpos), os vetores hoje se inverteram, e qualquer
reivindicação de singularidade parece incluir em si um aspecto excludente, quase imediatamente
autoritário. Valeria a pena investigar as causas sociais para essa nossa tendência de achar natural que o
múltiplo seja a priori, em si e por si só, superior ao uno; seria muito provável que ela estivesse de
alguma maneira relacionada ao mundo essencialmente múltiplo das mercadorias que nos rodeiam. A
representação que nossa sociedade tem da felicidade é a de um indivíduo solitário rodeado de um sem-
fim de objetos, que incluem as pessoas.

2. Ao se recusar por princípio a excluir quem e o que quer que seja, a crítica da multiplicidade reprime
o confronto. Se qualquer texto argumentativo necessariamente projeta um antagonista (você sempre
argumenta contra uma determinada posição), então a retórica da multiplicidade coloca o próprio
antagonismo na posição de antagonista. E como não há mais uma divisão intratextual clara entre
amigos e inimigos, é fácil que os embates saiam do espaço textual e migrem para o âmbito de acordos e
conchavos pessoais. Essa disposição para anular o conflito torna-se ainda mais grave quando
percebemos o quanto ele é constitutivo, tanto para a prática da crítica quanto para a vida da literatura
como um todo. Pense em primeiro lugar na relação entre obra e comentário. Diferentemente do que se
crê, ela não é pacífica ou harmoniosa: a crítica possui um desejo de potência; ela quer ser tão forte a
ponto de ter seus enunciados confundidos com o conteúdo do texto que analisa. A obra, por outro lado,
para continuar viva, tem que se colocar como algo que escapa, ao menos em parte, àquilo que se diz a
seu respeito. Um autor que nada tem de novo a dizer está morto, independentemente de quem for,
incluindo Shakespeare e Machado de Assis. Por fim, é sempre importante lembrar que as grandes obras
de arte possuem todas uma aversão profunda entre si. Com efeito, elas não seriam grandes sem esse
desejo absurdo, a pretensão de se equipararem ao próprio conceito de arte – algo a rigor impossível,
mas que por vezes conseguem atingir, quando as estamos lendo (por exemplo, quando você está lendo
Proust ou Joyce e se convence que isso, só isso e nada mais, é literatura). Vale aqui lembrar uma
história como ilustração: em 19 de maio de 1922, o casal Sydney e Violet Schiff consegue realizar a
proeza de colocar sob o mesmo teto Igor Stravinsky, Pablo Picasso, James Joyce e Marcel Proust. O
resultado, absolutamente frustrante, deveria ser esperado. Diálogo entre Proust e Stravinsky: [P]: Sem
dúvida o Sr. admira Beethoven./ [S]: Detesto-o./ [P]: Mas, cher maître, certamente as últimas sonatas e
quartetos…?/ [S]: Piores que os outros.// Diálogo entre Proust e Joyce: [P]: O Sr. gosta de trufas?/ [J]:
Sim.

3. Mas há uma versão do louvor à multiplicidade que não é avessa à oposição. Porque a rebeldia
também é uma forma de comportamento comum, quase normativa, na nossa sociedade. A crítica da
multiplicidade ultraja-se diante da razão ocidental, vista como inescapavelmente binária e redutora; do
Iluminismo, tido como sufocante e repressor; e daquilo que chama de cânone literário, considerado
como excludente e opressor. Esses ataques tendem a fazer uma caricatura do seu objeto – como no caso
do pobre Descartes, figura predileta para exemplificar a razão ocidental. O adjetivo cartesiano
praticamente tornou-se um insulto. A consolidação de seu sentido negativo só pôde ocorrer por meio de
uma redução radical do pensamento do filósofo. Ora, este não é um todo absolutamente homogêneo,
pois contém momentos de hesitação, de tensões, fissuras, pontos cego, becos sem saída, contradições…
Em suma, na obra de Descartes é possível detectar fortes indícios de que o texto não é plenamente
idêntico a si próprio, algo que a interpretação pode revelar. Quando usado como o outro do múltiplo, o
adjetivo “cartesiano” leva a um achatamento. Algo semelhante acontece com o Iluminismo, um
movimento historicamente repleto de idas e vindas, avanços e retrocessos, que é barbaramente
homogeneizado quando nos referimos, sem mais, a uma suposta razão iluminista una e unitária. Por
fim, a ideia de um cânone literário como algo repressor beira o delírio ao projetar uma ideia de
autoritarismo presente talvez nas ditaduras de Nicolae Ceausescu ou Chiang Kai-shek. De fato, seria
lícito perguntar se a crítica ao cânone não tem um caráter mais canônico que ele. Mas ao menos uma
coisa é certa: a crítica da multiplicidade ao binarismo é ela mesma muito mais binária do que o objeto
que ela está criticando.

4. A prática da crítica da multiplicidade tende a facilitar a produção acadêmica – e isso sem dúvida faz
com que as limitações que venho apontando tornem-se mais difíceis de ser vistas. Como o texto já é
múltiplo de antemão, como, por assim dizer, há um lastro de abundância já garantido, tudo o que se faz
necessário na interpretação é mostrar alguma ambiguidade aqui e ali para que esteja pronta a
comunicação, a monografia ou a tese. A multiplicidade funciona assim como um óleo lubrificante, não
só para a maquinaria universitária, como para a indústria da cultura como um todo. O paradoxo não
deixa de ser interessante: o pressuposto da multiplicidade é aquilo que faz com que todos os textos
(porque, afinal de contas, todos eles já são múltiplos mesmo) assemelhem-se, com que todos se tornem
iguais em sua suposta diferença. Também é digna de nota a distinção que se torna aparente neste caso
entre produtivismo e trabalho, se este último é concebido em seu sentido enfático como algo
transformador. Os infinitos artigos múltiplos são resultado do dispêndio de tempo, papel e tinta, mas
não atestam labor, o olhar atento e demorado sobre a coisa, o cuidado com a escrita, a preocupação
com a formulação mais adequada para o caráter do artefato, em suma, um desejo pelo objeto.

5. Contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, o credo da multiplicidade não exclui uma
concepção de autor como fonte absoluta de sentido. Como a pluralidade não é discutida
filosoficamente (e nem precisaria ser, porque esta não é a função primordial da crítica literária, que
deveria antes de mais nada dar conta dos seus objetos), ela pode ter sua origem em um potencial
intrínseco da língua, da ficcionalidade, ou da mestria do autor, que conseguiu articular tantos sentidos
em uma obra só. Por mais que possa fazer disso uma profissão de fé, a retórica da multiplicidade não é
sinônimo de descentramento do sujeito.

6. A poética da multiplicidade encontra sua forma mais apurada na aplicação de teorias. Como tudo é
plural, como todo antagonismo foi suprimido (fora, como já dito, o antagonismo contra o antagonismo,
ou antibinarismo binário), qualquer texto pode ser lido segundo qualquer teoria. Como tudo é
dialógico, não importa se você usa Badiou, Barthes, Bataille, Baudrillard, Bhabha, Bourdieu ou Butler
(para ficar só no “B”), para o drama renascentista, a épica do século 17, ou o verso livre do 20. No
fundo, o verbo “usar” já diz tudo, porque esse tipo de relação entre literatura e teoria é essencialmente
utilitária. Determinados autores, como Bakhtin e Benjamin, são tão explorados, são inseridos em
debates tão absolutamente díspares, que vale a pena perguntar se ainda faz algum sentido mencionar
seus nomes. E é um fenômeno curioso que, se por um lado, a crítica da multiplicidade vem
questionando o cânone literário, desafiando seu fechamento e reivindicando a inserção de novas vozes,
por outro, a teoria vem testemunhando a formação de um cânone próprio, um rol de autores que se
tornaram referência obrigatória (inclusive para as novas vozes), cujos conceitos podem, sim, ser
problematizados, mas não sua posição a priori como grandes nomes.

Com efeito, trata-se aqui de uma adição que resulta em uma subtração. A teoria sai empobrecida,
porque ela fica reduzida a um instrumento; seu caráter expressivo, seus momentos de incerteza ou
vacilo, perdem-se na homogeneidade, na identidade consigo mesmo, do conceito aplicado. O mesmo
ocorre com o texto, que não fará senão corroborar o sentido pré-moldado que lhe é imposto. A obra de
valor tem uma grande capacidade de responder às perguntas que lhe são feitas (é por isso que é de
valor); no processo de aplicação não há senão a transferência do conteúdo simplificado da teoria para o
texto, mesmo que este venha a discordar da teoria ou mesmo questionar-lhe o sentido. Ocorre assim
uma divisão, abissal e estanque, entre o conceito, a ferramenta, e a representação, o material bruto a ser
trabalhado. Com isso, a aplicação de teoria espelha a divisão internacional do trabalho, porque as
tecnologias interpretativas via de regra vêm da Europa e dos Estados Unidos, enquanto a matéria prima
de análise é geralmente nacional, ou lusófona. Obras literárias ou manifestações culturais passam a
assemelhar-se ao café ou à bauxita.

7. O resultado da tendência social ampla de um favorecimento moral da multiplicidade; do recalque do


confronto; da explosão da máquina acadêmica e da indústria da cultura; da instrumentalização da teoria
e a paralela imobilização das obras – o resultado de tudo isso é a desobjetivação dos objetos, a perda de
seus contornos específicos, de seu caráter formal. O pluri-, multi-, trans-, prefixos tão em voga
ultimamente, deixam isso claro. Para dizer com outras palavras, a consequência final da disseminação
da multiplicidade como lugar-comum é a aniquilação da diferença de verdade em uma indistinção
generalizada. A escrita da multiplicidade insere-se assim na crise mais ampla da cultura, que há algum
tempo estamos testemunhando: o fato de que está cada vez mais difícil ligar cultura e valor, cultura e
utopia, cultura e oposição. Segundo um sentido mais antigo, sem dúvida excludente e ideológico, a
cultura seria tudo aquilo que se furta à mera reprodução do existente: seria um reino de liberdade. A
crítica ao que há de falso nessa representação levou à consolidação de um conceito antropológico de
cultura, o conjunto de práticas de significação de um grupo determinado. Mas se cada conjunto de
pessoas tem a sua cultura, se ela é imanente a qualquer produção coletiva e coerente de sentido, então
não há nada no conceito que impeça que se fale da cultura dos carcereiros ou dos torturadores. Assim
como a multiplicidade, a cultura parece não ter alteridade, porque seu verdadeiro outro, a barbárie, só
pode aparecer em um contexto valorativo, que a cultura da multiplicidade de antemão impossibilita.

No entanto, veja bem: o genitivo presente na expressão “crítica da multiplicidade” é inerentemente


ambíguo, pois pode referir-se tanto a uma crítica que louva a pluralidade, quanto à prática que a
questiona. Essa proximidade nos faz pensar em uma saída: e se a forma de vislumbrar uma verdadeira
multiplicidade, de honrar o conceito, se desse de maneira negativa, a partir da crítica de sua
banalização?

Fabio Akcelrud Durão é professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp

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