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ÚLTIMOS DIAS DE ATLÂNTIDA


Autor
K. H. SCHEER

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização
VITÓRIO

Revisão
ARLINDO_SAN
A nave arcônida Tosoma trava sua luta final
— a quarta aventura de Atlan.

Atlan, o arcônida imortal, é o narrador.

Esteve presente, quando, depois de uma busca inesperada, o


couraçado Drusus finalmente conseguiu pousar em Peregrino, o
planeta da fonte da juventude.
Mesmo sem a interferência da misteriosa inteligência coletiva,
conhecida como Ele ou Aquilo, os terranos conseguiram pôr em
funcionamento a ducha revitalizadora. Perry teve a prioridade na
aplicação do tratamento revitalizante. A ele seguiu-se Bell... No
entanto, o inesperado acontece e faz Atlan rememorar os Últimos
Dias de Atlântida.

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Perry Rhodan — Administrador do Império Solar.
Reginald Bell — Que pretende matar-se antes de chegar ao estágio em
que se transformará num bebê.
Gucky — Um rato-castor que teme pela vida do amigo.
Homunk — Uma maravilha da tecnologia dos robôs.
Atlan — Que revive o passado.
Tarts, Inkar, Ursaf e Cunor — Arcônidas mortos há milênios, que são
“despertados” para uma nova vida pela memória fotográfica de
Atlan.
1

Era um mundo sem horizontes, um astro em cuja construção foram utilizados


recursos inimagináveis da tecnologia.
Seres de inteligência altamente desenvolvida haviam construído uma coisa que
desde o momento que ali cheguei me arrancaram palavras de admiração.
Bem acima de minha cabeça, perto do campo defensivo quase invisível, a bola
incandescente de um sol atômico artificial percorria a órbita previamente traçada. Em
Peregrino, nome dado por Perry Rhodan ao planeta artificial, reinava a perfeição técnica
e científica. Examinei as salas de várias centrais de comando. Depois tive a impressão de
que o saber e a capacidade de meu venerável povo eram paupérrimos e superados.
Um povo galático antiqüíssimo gravara para sempre, nesse mundo artificial, tudo
aquilo que nós, os arcônidas, esperávamos descobrir um dia.
Ao pensar em Árcon, meu mundo distante, mais uma vez me senti dominado pela
tristeza. Mas um auto-exame crítico revelou que as saudades que sentia pelos três
planetas já não eram tão intensas.
A menos de um quilômetro do lugar em que me encontrava, o gigantesco corpo de
aço de uma nave espacial erguia-se para o céu azul do mundo sintético, envolto por uma
gigantesca abóbada energética. Era a Drusus, um supercouraçado projetado por meu
povo, mas construído na Terra.
Não houve nada que me convencesse tanto do progresso da raça humana,
antigamente tão bárbara, como a construção dessa unidade mais moderna de sua frota. O
diâmetro da esfera era de mil e quinhentos metros.
Provavelmente havia sido essa nave espacial e outras de sua espécie que tornaram
menos ardente o desejo de regressar a meu mundo. Minha permanência prolongada no
planeta Terra apagara as impressões que me enchiam a mente. As recordações de Árcon
tomaram formas menos palpáveis.
Com os olhos semicerrados, fitei o astro rei artificial e fiquei refletindo sobre os
estratagemas técnicos que mantinham o sol atômico em sua órbita. Evidentemente,
encontrava-se dentro do campo energético abobadado que isolava o planeta Peregrino do
vazio do espaço.
Com grande desprazer, rememorei os últimos dias. Peregrino havia sido atingido por
uma interseção: o outro plano temporal. Os donos do espaço estranho fizeram o que
estava a seu alcance para evitar que o mundo artificial lhes escapasse. E foi por isso que o
ser coletivo recorreu à sua poderosa tecnologia, de que resultou um salto semelhante a
uma transição, que levou seu mundo para fora da dimensão temporal dos druufs.
Perry Rhodan e eu tivemos de enfrentar o problema da localização daquele mundo,
que já não se encontrava na dimensão normal. Na oportunidade, enfrentamos fenômenos
físicos que meu cérebro se recusava a assimilar.
Senti-me vazio e desolado. Muita coisa caíra sobre nós. Aquilo que enfrentamos no
espaço intermediário e instável, situado entre as dimensões compreensíveis, chegava a ser
sobre-humano. Só mesmo um acaso que não constatamos no devido tempo, nem havia
sido provocado por nós, fizera com que se preenchesse o conteúdo energético que, numa
realidade dificilmente inteligível, contribuíra para a estabilização do espaço.
A lembrança dos problemas matemáticos me causava vertigens. Quando despertei
do pesado sono tive de constatar que o Tenente Sikermann já pousara com a Drusus, que
se mantinha à espera no Universo einsteiniano.
Voltei a contemplar a montanha de aço arcônida e plástico blindado. Do ponto em
que me achava, a vista não abrangia toda a grandeza do couraçado. Tive a impressão de
encontrar-me ao pé de uma montanha, cujo cume ficava numa distância inatingível. Mas,
apesar do tamanho, aquele monstro de nave espacial voava cora uma espantosa
segurança.
A ligeira batida sentida no peito fez com que me lembrasse de meu ativador celular
que, durante o curso dos milênios, detivera o processo biológico de envelhecimento.
Quando fiquei sabendo que Perry Rhodan e alguns homens de sua equipe também
haviam sido submetidos a um processo bioquímico de conservação celular, senti-me
tomado por uma curiosidade angustiante. Ainda me lembrava do dia em que recebera o
presente inconcebível do desconhecido.
Fazia muito tempo — quase dez mil anos do calendário terrano. Durante minha
peregrinação pelos estágios da evolução da Terra quase me esqueci de pensar na origem
do ativador celular. Só o aparecimento de Perry Rhodan fez com que me ocupasse
novamente com o problema.
Havia estranhos paralelismos nos acontecimentos, que provavam sem dúvida que
meu pequeno aparelho só poderia provir do estranho ser que concedera certo tipo de
imortalidade a Rhodan.
Poucos dias antes, quando realizamos esforços desesperados para encontrar o
planeta artificial, convencemo-nos de que essa imortalidade era bastante relativa. Era só
nesse planeta que existia o chamado fisiotron, que poderia proporcionar ao organismo
humano a necessária ativação celular.
No caso de Rhodan, a ducha celular — nome dado ao complicado processo — tinha
uma eficácia de cerca de sessenta e dois anos. Uma vez decorrido esse prazo, as pessoas
submetidas ao tratamento viam-se obrigadas a voltar para junto do fisiotron, pois do
contrário seriam atingidas imediatamente pelo processo de envelhecimento.
Rhodan conseguira chegar ao planeta artificial no último instante. Ele e Reginald
Bell penetraram na câmara de recarregamento, em cujo campo de desmaterialização
verificou-se um fenômeno que não consegui compreender. De qualquer maneira, o
fenômeno não estava ligado a um ato de criação, mas constituía tão-somente o produto de
uma tecnologia bioquímica levada ao último estágio, e que se aproximara dos segredos da
vida até as fronteiras do possível.
Um fato me causava espanto: eu nunca fui obrigado a comparecer em intervalos
regulares ao planeta sintético a fim de receber a ducha celular. Apesar disso, não constatei
o menor sinal de envelhecimento; parei no estágio da existência em que me encontrara ao
receber o pequeno aparelho.
Era claro que procurava encontrar uma explicação para tudo isso. Viera na
esperança de que o ser que dominava o planeta Peregrino me desse informações mais
detalhadas. O problema puramente técnico despertara um interesse apenas secundário em
minha mente. O que me parecia mais importante era o por quê...
Por que motivo o ser espiritual me entregara uma coisa que me permitiria conservar
para sempre a juventude e a agilidade? Quando quis perguntar-lhe a este respeito, o
planeta estava “ocupado”. Precisávamos libertar Peregrino do chamado espaço
intermediário.
Uma vez libertado, Ele ou Aquilo não deu mais nenhum sinal de vida. O ser coletivo
mantinha-se num silêncio total; até parecia que nunca esteve interessado em conversar
com terranos e arcônidas.
As batidas em meu peito tornaram-se mais intensas. Um fluxo de impulsos
revitalizantes parecia percorrer meu corpo. Só havia uma explicação logicamente
plausível.
O ativador devia ser uma variante do grande fisiotron. Regulado para minhas
vibrações individuais, entrava em funcionamento sempre que a divisão dos núcleos
celulares e o metabolismo entrassem numa fase de instabilidade. Acontecia que nunca era
desmaterializado, como acontecia com aqueles que eram submetidos à grande ducha. Por
isso só podia tratar-se de uma série de impulsos-estímulo perfeitamente direcionados, que
controlavam e regulavam os processos vitais de meu organismo. Não encontrei outra
explicação.
Olhei para o relógio especial, inteiramente automático, que se encontrava em meu
pulso. Na parte exterior da caixa à prova de água, liam-se as palavras Made in Terra.
Made in Terra — como soava isso! Tudo que trazia no corpo fora produzido na
Terra. Até mesmo as platinas de almirante arcônida e o símbolo de minha família
venerável haviam saído das fábricas terranas, por mãos humanas.
Com isso, minha caminhada longa e cheia de desvios pelos labirintos das primeiras
fases da história da humanidade chegara ao fim. Rhodan, que há dois anos ainda
considerara meu inimigo, transformara-se num amigo. Só faltava consolidar os laços de
amizade e provar a Rhodan que desistira dos meus planos de fuga. Já sabia que nosso
velho Império Arcônida estava sendo governado por um computador. Evidentemente,
Rhodan sabia que em última análise eu pensava mais no meu povo que nos terranos, mas
isso não afetou nosso bom relacionamento.
Vivera cerca de dez mil anos no planeta Terra. Chegara a hora de voltar ao lugar de
nascimento. Rhodan me ajudaria; não havia a menor dúvida. Por isso mesmo, me cabia
apoiar o soberano do Império Solar com todo saber e capacidade de que dispunha, isso
naturalmente se ainda precisasse de auxílio. Já não podia contribuir muito para o
desenvolvimento da ciência terrana, embora os antepassados remotos dos homens de hoje
me tivessem venerado como se fosse um ser divino.
Encostei-me à parede compacta e lancei os olhos em direção à Drusus.
Os pequenos bárbaros do terceiro planeta do sistema solar se haviam tornado
grandes e poderosos. Assistira a seu despertar, notara suas angústias e alegrias, seus erros
e seu heroísmo silencioso. Mereciam que um homem clarividente os conduzisse pelo
caminho certo.
Um profundo trovejar arrancou-me das minhas meditações. Uma torre de
armamentos acabara de abrir-se no corpo gigantesco da nave.
Vi o raio energético ofuscante precipitar-se para o céu. Muito acima de minha
cabeça a energia térmica atingiu o campo energético superpotente que envolvia o planeta.
Antes que a onda de calor chegasse ao lugar em que me encontrava, procurei abrigar-me
no solo e tateei em busca do micro videofone.
Empurrei a chave para baixo e aguardei o sinal verde. No momento em que este se
acendeu, o rosto de Rhodan surgiu na tela, que era do tamanho de um selo do correio. Era
sinal de que estava sentado à frente da objetiva.
— Ei, bárbaro, o que houve? — perguntei, falando para dentro do microfone.
Rhodan sorriu. Sua resposta soou um pouco estridente.
— Não aconteceu absolutamente nada, arcônida. Não vi outra possibilidade de
lembrar-lhe que além de você existem outras pessoas...
Por um instante fiquei perplexo. Então esse terrano de olhos cinzentos mandara
disparar um canhão energético da Drusus, apenas para chamar minha atenção ao fato de
que havia ligado meu micro videofone.
— Esse método de chamar os amigos é bastante grosseiro — disse em tom
ligeiramente irritado.
O pequeno alto-falante vibrou sob o efeito de sua risada.
— Isso é uma questão de opinião — disse com a maior tranqüilidade. — Posso
saber onde você se encontra neste momento? Há quinze minutos tento entrar em contato
com você.
— Estou perto da Drusus. Dei uma olhada nos controles dos conversores. Alguém
teve a idéia de acoplar os projetores do campo defensivo com os computadores dos
rastreadores estruturais. O resultado é o seguinte: se num raio de dez anos-luz ocorrer um
abalo das fases, o dispositivo automático aumentará a potência do campo para cerca de
dez bilhões de kwh.
— Como?
Achei graça no rosto espantado de Rhodan.
— Dez bilhões de quilowats-hora — repeti. — Isso representará um consumo de
energia nada desprezível, não é? Não; não estou doido. O mundo em que nos
encontramos tem a aparência de um prato de bolo achatado com uma cobertura de
plástico... é um mundo dos inconcebíveis superlativos. Sinto muito se sua mente de
homem primitivo não conseguir raciocinar com estas grandezas.
Sorrimos um para o outro. As pequenas zombarias entre mim e Rhodan já se haviam
transformado num hábito. Muitas vezes não conseguia reprimir o desejo de lembrar-lhe
que, quando a civilização arcônida se encontrava no auge, seus antepassados ainda
moravam em cavernas.
— Foi a pé? — perguntou.
O tom de sua voz me surpreendeu. Rhodan devia ter visto em sua grande tela que eu
caminhava.
— Está bem. Mandarei um pequeno planador para trazê-lo a bordo da Drusus. Se
puder comparecer imediatamente ao pavilhão do fisiotron, ficarei muito agradecido a
“Vossa Excelência”.
— Ao lugar em que está a ducha? Por quê? — perguntei em tom curioso.
— Mandarei o planador — disse, esquivando-se à pergunta. — Até logo mais.
Desligo.
A tela de meu videofone de pulso apagou-se. Rhodan desaparecera.
Por alguns instantes, fiquei deitado no chão e lancei um olhar vazio para a Drusus.
O comportamento de Perry fora estranho. Alguma coisa havia acontecido; eu o sentia.
O nervosismo começou a martirizar-me. Lembrei-me do espaço intermediário com
seus efeitos surpreendentes e de Perry Rhodan, que entrara na ducha conversora celular
durante um deslocamento transitório do eixo. Não podíamos esperar mais. Se não
tivéssemos arriscado a renovação celular nessas condições, a esta hora Rhodan já seria
um ancião física e psiquicamente esgotado.
Bastante tenso, esperei pelo planador antigravitacional em forma de disco, cujo
piloto, sem dúvida, poderia dar-me informações mais detalhadas. Acontece que no
gigantesco envoltório de aço da supernave tudo permanecia quieto. Face à pequena
distância, não poderia deixar de ver a pequena mancha luminosa junto às comportas.
Levantei-me devagar, e comecei a sacudir o pó de meu uniforme terrano. Levei
alguns segundos para lembrar-me de que em Peregrino não havia poeira, ao menos nas
áreas das poucas cidades que Ele construíra segundo sua vontade e capricho. Não havia a
menor dificuldade em transformar as partículas de poeira em condutores de eletricidade.
E, uma vez feito isso, seria fácil sugá-las por meio de campos magnéticos direcionados.
Depois de mais alguns segundos de espera ansiosa, subitamente o ar começou a
tremer à minha frente. A menos de dez metros de distância um corpo surgira pouco acima
do solo.
O fenômeno parapsicológico da teleportação ainda costumava deixar-me um tanto
perplexo. Os princípios do transporte de matéria por meio das forças dirigidas do espírito
já eram conhecidos dos velhos cientistas arcônidas, mas nunca conseguimos realizar esse
tipo de coisa.
Entre os mutantes de Rhodan, essa paramecânica complicada e superdimensional,
no terreno da matemática, parecia ter-se transformado num esporte. Já travara
conhecimento com dois teleportadores humanos e um não-humano. Todos eles pareciam
ter em comum a alegria causada por aquilo que chamavam de saltar. Era uma maneira
cômoda de locomoção, ou de transferência, para alguém que soubesse fazer um uso
adequado das forças do espírito. Sem dúvida, eu mesmo nunca adquiriria essa faculdade.
Com uma indiferença propositada, olhei para a criatura de um metro que, tal qual
eu, não nascera na Terra.
Gucky, foi este o nome que Rhodan deu ao rato gigante com rabo de castor, isso por
causa de seus grandes olhos brilhantes. Aquela criatura inteligente equilibrava-se sobre
duas perninhas enfiadas em graciosas botas.
Além disso, Gucky estava usando o uniforme espacial verde-pálido do Império
Solar. Sobre o ombro esquerdo viam-se as insígnias de tenente do Exército de Mutantes.
Aquele ser engraçado era levado da breca. Travara conhecimento com ele, durante
minha fuga em Vênus, e desde então estávamos ligados por uma amizade um tanto
estranha, que se exprimia por meio de indiretas e discussões sutis.
— Olá, seu presunçoso! — disse a título de cumprimento. — Será que você é o
planador que Perry me prometeu?
O longo focinho de rato parecia rir. Lancei um olhar fascinado para o dente roedor
de Gucky, solitário, mas muito grande, que gostava de exibir sempre que havia
oportunidade para isso.
A risada estridente da criatura extraterrana doeu nos meus ouvidos. Quando cessou,
comecei a desconfiar. Quando em Vênus atirei um pedaço de madeira podre em Gucky,
fiquei sabendo que suas risadas costumam ser mais prolongadas e impetuosas. Os seres
de sua raça possuíam uma tendência quase incontrolável para as brincadeiras. E as risadas
e brincadeiras tolas faziam parte dessa tendência.
— Eu sou o planador! — afirmou o rato-castor com um gesto grandioso. — Dê-me
a mão, espião!
Franzi a testa e baixei os olhos para a pequena criatura que se aproximava
calmamente. Para Gucky, eu continuava a ser um espião de Árcon.
Abaixei-me e, sem dizer uma palavra, tomei-o nos braços. Era leve; quase chegava a
ser leve demais para seu tamanho. Provavelmente as inteligências do planeta Vagabundo
tinham uma ossatura muito delicada. Em compensação, seu cérebro era muito potente.
Gucky lançou-me um olhar indagador. O dente roedor já havia desaparecido no
interior da boca pontuda. Fitamo-nos por alguns segundos. Senti que o pequeno ser
tremia de tensão. Nem tentou penetrar em minha mente por meio dos seus dotes
telepáticos. Há anos me acostumara a recorrer a um monobloco para manter sob controle
os impulsos de meu cérebro.
— O que houve? — perguntei. — Você está tão esquisito! Desde quando você se
contenta em chamar-me apenas de espião? Em geral ainda há mais alguns comentários
malignos. Então?
Vi que suas mãozinhas delicadas se contorciam. De repente segurou meu braço.
— Você sabe como funciona a ducha celular? Pode calcular seus efeitos ou
modificar a máquina?
A voz de Gucky parecia mais estridente que de costume. A pressão das mãos tornou-
se mais intensa. O rato-castor estava muito nervoso.
— A estrutura técnica do aparelho é conhecida — respondi. — Mas o fato de
conhecer o funcionamento do campo de dissociação nem de longe significa que se
compreenda a série de processos bioquímicos seguintes. Na minha opinião...
— Segure-me; vamos saltar — disse, interrompendo-me. — Você tem de ir ao
pavilhão da ducha. Ora essa! Mal consigo concentrar-me.
Percebi que tinha muita dificuldade em concentrar-se. Voltei a perguntar qual era o
motivo de seu nervosismo.
— Bell... é Bell — respondeu com o corpo trêmulo. — Estava recebendo a ducha
celular quando começou o deslocamento das fases. Isso o afetou. Alguma coisa está
acontecendo com ele. Não; não pense tão intensamente. Você está irradiando impulsos de
interferência. Para um teleportador, é muito difícil transportar uma pessoa como você.
Procure não pensar em nada; reforce seu bloqueio mental.
Tive a impressão de que esse mundo maluco havia chegado ao fim. Rhodan
mandara um canhão pesado disparar para o alto, e o elemento que, sem dúvida, era a
maior capacidade do Exército de Mutantes, tremia de medo por causa de Reginald Bell.
Controlei o nervosismo e procurei isolar as irradiações de meu cérebro. Dali a
alguns segundos, senti uma ligeira dor. Gucky acabara de saltar comigo; era assim que
chamava o fenômeno complicado que envolvia a criação de um campo de manobra
individual na quinta dimensão.
Quando voltei a materializar-me, reconheci os contornos do aparelho em forma de
coluna; era o fisiotron.
Um homem alto e esbelto caminhou devagar em minha direção. Os olhos de Rhodan
irradiavam uma frieza apavorante. Eu o vira assim quando travamos uma luta de vida e
morte num mundo deserto.
Parou à minha frente. Nossos olhares encontraram-se.
— Sua capacidade de cálculo é boa, almirante? — perguntou. — Não sei mais o que
fazer.
Afastou-se um passo, permitindo que eu visse o conversor de ativação celular.
Junto à marca colorida que delimitava a área de segurança, vi um jovem oficial de
cabelos curtos, cor de ferrugem, e rosto liso. Tive de olhar melhor para convencer-me de
que a pessoa que estava à minha frente era Reginald Bell.
Alguma coisa apertou minha garganta. Com as pernas cambaleantes, aproximei-me
da zona de perigo. O homem de olhos azuis-claros não se movia.
Procurei localizar as rugas profundas que nos últimos anos se haviam gravado na
testa de Bell. As primeiras rugas haviam surgido depois do pouso lunar realizado em
1.971, quando acompanhara Perry Rhodan. No dia 14 de maio de 2.042 Bell completaria
104 anos de vida. E hoje era o dia 5 de maio do mesmo ano. Quer dizer que faltavam
poucos dias para seu aniversário.
Há sessenta e dois anos, ele e Rhodan receberam a primeira ducha no planeta
Peregrino. E, há cinco dias, entrara pela segunda vez no fisiotron, para submeter-se à
imprescindível reativação celular.
Arrisquei mais um passo e parei. Será que esse jovem de rosto liso e inexpressivo
realmente era Reginald Bell, o representante de Rhodan?
— Reginald, é o senhor? — perguntei em tom hesitante.
Quase não chegou a mover os lábios. Seu corpo mostrava menos gordura na altura
dos quadris do que estava acostumado a ver.
— Quando, em meados da década de sessenta, um certo General Pounder me
mandou à Academia Espacial recém-instalada, eu era assim — respondeu. Havia um
certo pavor em sua voz. — Naquela época estava com vinte e sete anos.
Senti que o pavor começava a encher minha mente. Ao mesmo tempo, meu segundo
cérebro, ativado há muitos milênios em Árcon, deu sinal de vida. A mensagem do setor
de lógica foi resumida:
“Atenção. Houve uma pane na segunda ducha. Verificou-se uma regressão. Está
ficando mais jovem!”
A idéia atingiu-me com a força de uma martelada. Tive de esforçar-me para
conservar o autodomínio. Meu sorriso devia parecer um pouco triste. Bell não reagiu ao
mesmo. Senti que esse homem ativo e arrojado já se conformara com o fato de que sua
vida chegara ao fim. Além de Rhodan, só se encontravam presentes os principais
cientistas e oficiais da Drusus. O Dr. Arnulf Sköldson, médico-chefe da nave, estava
parado junto ao Dr. Ali el Jagat, chefe da divisão matemática.
O rosto estreito de Jagat parecia indiferente, quando este me entregou uma fita-
diagrama de plástico.
Iniciou imediatamente suas explicações. Compreendi que não havia tempo a perder.
Seria insensato discutirmos demoradamente sobre o destino de Bell. Além disso,
correspondia ao gênio de Jagat ir diretamente aos fatos.
— É a primeira avaliação de resultados, almirante. Neste momento, Bell encontra-se
num estágio que corresponde ao trigésimo segundo ano de vida. O trecho em ângulo
agudo indica o início do processo de regressão. As curvas abertas encerram o tempo-
padrão, decorrido após a segunda ativação. Pelo que se depreende do diagrama, num
prosseguimento contínuo do processo por setenta e duas horas, chega-se a um estágio
inicial. Se o fenômeno não for detido, daqui a uns vinte dias estará transformado num
bebê.
A idéia de ver Bell transformado num bebê robusto e travesso desencadearia uma
série de risos, se a situação fosse menos trágica. Mas, naquele momento, ninguém moveu
um músculo da face.
O diagrama representava o resultado de um pequeno cálculo. Não se precisava
recorrer a fórmulas matemáticas complicadas para apurar a data aproximada em que
aconteceria o estágio crítico.
Lancei um olhar indagador para o médico. Sköldson limitou-se a espalmar as mãos,
num gesto de desamparo. Seu cabelo louro-claro pendia na testa enrugada.
— Não tem nenhuma solução, doutor? — perguntei.
— Nenhuma! Não tenho a menor compreensão do que se tenha passado no interior
deste aparelho. Não entendo os fenômenos puramente físicos. E, no que diz respeito às
modificações bioquímicas, não sei o que fazer. Para mim, o rejuvenescimento de um
adulto é um fenômeno inconcebível, que infringe todas as leis da natureza.
— É o que acontece com todas as coisas neste planeta artificial — observou Bell
com a voz débil. — Está bem. Não vamos perder mais tempo. Prefiro morrer a
transformar-me num bebê.
Fitou-nos sem esperança, sem a menor vontade de viver. Depois de algum tempo,
teve sua atenção atraída para uma figura alta e esbelta, que se mantinha nos fundos do
recinto. Olhei para lá.
Havíamos dado ao robô biopositrônico o nome de Homunk. Era o produto de uma
ciência que chegara ao fim de sua evolução. Não se poderia realizar uma construção mais
aperfeiçoada, a não ser que se quisesse interferir na atividade do Criador dos mundos.
O rosto biossintético de Homunk exibiu um sorriso cortês. Sob o revestimento
artificial de seu corpo havia um mecanismo que não tinha igual na Galáxia conhecida.
O microcérebro inteiramente positronizado revelava um desempenho que ainda não
vira nas melhores das nossas máquinas. Naquele complicado centro de computação, os
circuitos, que nós só poderíamos pôr para funcionar num espaço de pelo menos um metro
cúbico, haviam sido abrigados num setor que media menos de um centímetro cúbico. O
cérebro mecânico trabalhava com base em impulsos dirigidos, emitidos na base de oitenta
milhões de reflexos por segundo. Não sabíamos qual era a capacidade de seu setor de
memória. De qualquer maneira, Homunk era algo que poderia ser designado como
perfeito.
O seu aspecto externo fora feito à imagem do terrano ou do arcônida. Seu
mecanismo de fala era um trabalho em série de natureza biológica, dotado de um
vibrador positrônico, cujos impulsos eletromagnéticos eram transformados em palavras
audíveis e perfeitamente moduladas por meio de uma série de cordas vocais semi-
orgânicas. Homunk era uma verdadeira maravilha. Mas, naquele momento, parecia falhar
miseravelmente.
Rhodan fez um sinal para que o robô se aproximasse. Caminhou com passos
grandes e elásticos. Seu sorriso estereotipado me arrancou uma observação pouco gentil.
— Parece que seu mestre e senhor também chegou ao fim de sua capacidade. Onde
está o ser cuja gargalhada estrondosa costumava ser ouvida a cada instante?
Homunk parou. Seus olhos, que constituíam uma imitação perfeita, dirigiram-se
para mim. Deu-me o tratamento de Sir, tal qual fazia com qualquer outra pessoa.
— Desde o momento em que fugiu do espaço intermediário, Ele não deu mais sinal
de vida, Sir. Estou preocupado.
Um dos oficiais cosmonáuticos da Drusus soltou uma risada sem graça. Depois o
silêncio voltou a reinar no grande recinto.
Quanto a mim, compreendi naquele instante que mais uma catástrofe havia
acontecido. Aquilo estava desaparecido! Ao que parecia, o ser vivo, que reunia em si o
espírito de milhões de inteligências desmaterializadas para formar uma imensa potência
psíquica concentrada, parecia não ter resistido ao caos produzido pelo regresso do espaço
intermediário. Naquele instante, éramos praticamente os donos do planeta artificial
Peregrino.
Perry Rhodan limitou-se a fitar-me. Já formulara as perguntas decisivas antes de
minha chegada. Agora preferia que eu tomasse a iniciativa.
Senti-me invadido pelo desespero. Os homens de minha raça não transpiram. Em
compensação, senti que meus olhos se umedeciam. O setor lógico de meu cérebro
manteve-se num silêncio obstinado. Ao que parecia, o segundo cérebro não via nenhum
caminho viável.
Depois de um silêncio prolongado, Rhodan disse:
— Homunk sugere que repitamos a experiência. Há algumas semanas o planeta
Peregrino penetrou numa zona de superposição do plano temporal dos druufs. Ao sair
violentamente desse plano, o planeta foi parar numa dimensão intermediária instável. Se
penetrarmos conscientemente na muralha do tempo e arriscarmos nova fuga em
circunstâncias idênticas, deveremos acabar no espaço intermediário. Nesse caso, seria
possível que Bell pudesse receber novamente a ducha celular.
Do rosto de Rhodan, deduzi que ele não via muitas possibilidades de êxito nesse
plano.
— Isso é impossível — respondi em tom áspero. — Como é que você pretende fazer
a massa imensa deste planeta passar pelo campo de retração?
— As máquinas gigantescas deste mundo permitiriam a criação de uma lente de
tamanho suficiente.
Fiz um gesto negativo. Nem adiantava discutir sobre isso.
— De qualquer maneira, para mim seria tarde — disse Bell. — Atlan, o senhor tem
uma idéia melhor? Estou perfeitamente lembrado do trabalho que desenvolveu antes e
durante a ruptura temporal.
— Entre mais uma vez no conversor e arrisque tudo, para tentar deter o processo —
disse o Tenente Sikermann.
Sacudi a cabeça.
A solução não era esta. O problema resultava de nosso desconhecimento sobre a
maneira pela qual funcionava o fisiotron. Durante o tempo em que estivera submetido ao
processo de revitalização, Bell fora atingido por pouco tempo pela distorção resultante do
deslocamento das fases. Já sabíamos que a instabilidade do planeta no espaço
intermediário decorria do conteúdo energético. Não havia a menor dúvida de que o plano
intermediário guardava muito mais semelhança com a dimensão temporal dos druufs do
que com nosso Universo einsteiniano de quatro dimensões.
Só mais tarde, soube que durante mais de uma hora fiquei imóvel diante do robô
perfeito. Os homens da Drusus ainda se mantinham em silêncio, quando um impulso
repentino e doloroso do setor de lógica de meu cérebro me arrancou das meditações.
Encontrara uma solução provisória. Restava saber se era praticável.
— Você chegou a um resultado? — perguntou Rhodan. — O que podemos fazer?
Senti-me exausto. Até mesmo para um cérebro arcônida, os problemas matemáticos
assumiam dimensões excessivas. Por enquanto só pude dar algumas informações
genéricas.
Quando olhei em torno, percebi que meus olhos quase se recusavam a funcionar.
Rhodan aproximou-se. Seu rosto estava marcado pela preocupação.
— Você ainda está cansado dos esforços que fez — disse. — Será que pode
concentrar-se mais uma vez? Tenho uma vaga idéia do assunto. Vejamos o que você
“bolou”. Talvez nossas opiniões coincidam.
Sorri. Perguntei a mim mesmo por que já achara que este homem fora meu inimigo.
Em Hellgate, quase cheguei a matá-lo. Os homens que cercavam Rhodan lembravam-me
cada vez mais os velhos arcônidas comandados por mim, que há muitos milênios haviam
lutado e sofrido no sistema solar terrano.
Foram amigos admiráveis e soldados valentes; e eram tão estimáveis como os
terranos estavam ficando para mim. Reginald Bell, por exemplo, era o autodomínio em
pessoa. Há poucos minutos começara a fazer pouco do destino. Dava a impressão de um
combatente incapaz de demonstrar qualquer fraqueza. Evidentemente sabia que, se o
processo de regressão continuasse, fatalmente perderia seus dotes mentais. Não podia
suportar uma forte concentração ou aglomeração de suas células e combinações de
moléculas. Se isto acontecesse, seu corpo encolheria...
E Bell estava rejuvenescendo...
Eu era incapaz de compreender ou traduzir em símbolos matemáticos esse
fenômeno. Não sabia praticamente nada sobre o maior mistério do Universo, a vida em
si. Era engenheiro de formas energéticas elevadas e especialista em colonização cósmica,
e esta última especialidade incluía a área da cosmopsicologia. Mas não era capaz de
fornecer uma explicação para as modificações celulares que Bell estava sofrendo. Mas
ainda esperava um milagre que, segundo um cálculo superficial de probabilidades,
poderia ser provocado.
Contemplei o fisiotron relativamente pequeno.
Era um aparelho em forma de coluna, com uma grossa plataforma circular. Mais
atrás, reconheci alguns reatores de alta potência, do tipo daqueles que são encontrados em
todas as partes do planeta Peregrino. O suprimento energético da ducha celular era
realizado sem fios.
— Você está em condições de manejar corretamente o fisiotron? — perguntei a
Homunk.
Este disse que sim.
— Que fontes energéticas se tornam necessárias ao perfeito funcionamento do
aparelho? Quais são os circuitos especiais que teremos de levar?
— Levar? — repetiu Rhodan. — Até parece que nossas idéias são idênticas,
arcônida. Continue, que sou todo ouvidos.
Homunk explicou o funcionamento técnico. Era relativamente fácil de compreender,
até o momento em que chegou aos conversores de impulsos embutidos no suporte do
aparelho. Dali em diante, minha capacidade de compreensão entrou em pane. Para
exemplificar, não consegui obter uma idéia exata de como se formava o efeito
estabilizador mencionado pelo robô.
Mesmo um organismo vivo é formado por átomos que compõem as moléculas. O
princípio do fisiotron baseava-se num circuito catalisador, que mantinha estáveis por
cerca de sessenta e dois anos os aglomerados de átomos.
Dessa forma, em princípio, compreendi o que a máquina fazia. O processo da
decadência celular não era atingido no núcleo da célula, mas no elemento mais
fundamental: o átomo.
Homunk respondeu a numerosas perguntas que lhe formulei, e depois comecei a
enxergar mais claro. Olhei para o relógio. A seguir, aproximei-me de Reginald Bell.
— Bell, por enquanto apenas tenho uma idéia bastante vaga. Arrancaremos a ducha
celular com sua fonte de energia das bases, mediante um feixe de raios antigravitacionais.
Teremos que proceder com muito cuidado para não danificar a parte mecânica. O
conjunto, que deverá estar em condições de entrar em funcionamento, será transportado
numa grande plataforma de carga, que será equipada com um motor de vibrações
reforçado.
“A Drusus criará um campo de refração de quinhentos metros de diâmetro, e o
usaremos para sair do espaço normal. Penetraremos no plano temporal dos druufs e, uma
vez lá, procuraremos imitar a situação instável do espaço intermediário por meio de uma
concentração de energia. Esta será realizada no interior do campo defensivo, criado por
nós. Sabemos que o espaço intermediário constitui uma forma instável do espaço de
cinco dimensões. Forma que pode ser comparada com os isótopos inaproveitáveis de um
elemento. Poderemos alcançar uma situação aproximadamente igual a esta, mas para
realizar os respectivos cálculos preciso de todos os computadores da Drusus. Terei seu
consentimento para realizar a experiência?
Bell manteve-se frio ao perguntar:
— O processo deverá durar uns quatro ou cinco dias. De onde pretende conseguir a
energia de que precisará no espaço dos druufs, para preencher o contínuo?
Compreendera perfeitamente qual era o problema. Rhodan também já encontrara
uma solução para o retransporte.
— Pegaremos uma segunda plataforma antigravitacional para levar um dos grandes
geradores deste planeta. Homunk, será que você poderia cuidar disso? — perguntou o
bárbaro.
O robô efetuou um cálculo instantâneo. Respondeu sem a menor demora:
— Daqui a doze horas e quatorze minutos, um carregador de compritorm estará
pronto para ser transportado.
— Santo Deus, o que vem a ser um carregador de compritorm? — perguntou
Sikermann em tom admirado.
O robô apenas sorriu. Parecia ser incapaz de qualquer outra mímica.
— É um conversor destinado à supersaturação de um campo externo curvo e
fechado, que reflete seus efeitos na quarta dimensão.
Estas palavras bastaram para deixar-nos informados. Aos poucos, comecei a
compreender que a tecnologia do ser coletivo era muito mais avançada que a nossa.
— Poderemos dar conta do serviço dentro de cinco dias — disse Rhodan, depois de
realizar alguns cálculos mentais. — Major Forster, cuide do reforço dos mecanismos de
propulsão da plataforma antigravitacional. Homunk lhe explicará como desprender os
aparelhos de suas bases. Atlan, nós cuidaremos de conseguir circuitos perfeitos. Vamos
começar imediatamente.
O homem esbelto virou-se. Para Perry o assunto estava liquidado... por enquanto.
— E eu? — gritou Bell atrás dele.
O chefe do Império Solar parou. Deu-nos as costas.
— Já falei com o Dr. Sköldson. Você permanecerá na Divisão Médica, até que o
equipamento esteja preparado. Um sono bioquímico reduzirá as funções corporais em
cerca de oitenta por cento. É bem possível que o processo de rejuvenescimento seja
influenciado por isso. Sköldson cuidará do caso. Então, o que estamos esperando?
Sim, o que estávamos esperando? Não havia muita coisa a discutir. Gucky, o
estranho ser do planeta Vagabundo, pregou-se nos meus calcanhares.
— Quer que o leve até a Drusus? — perguntou a pequena criatura em tom triste.
Seus grandes olhos pareciam boiar num mar de lágrimas.
Abaixei-me e tomei-o nos braços. Sem dizer uma palavra, caminhamos em direção
aos grandes portões em arco do pavilhão do fisiotron.
Atrás de nós, uma atividade febril teve início. A voz potente de Sikermann era
inconfundível. Homunk, o robô perfeito, manteve-se imóvel — com um sorriso irritante
— entre os apressados tripulantes do supercouraçado terrano.
Quando saí do edifício, Rhodan estava abrindo a porta de um pequeno planador de
impulsos. Sem dizer uma palavra, apontou para o assento traseiro.
Parei à sua frente e fitei-o atentamente. Não; com ele não parecia ter havido
qualquer alteração. Parecia jovem, robusto e ágil como sempre.
Pelo seu sorriso deduzi que estava adivinhando meus pensamentos.
— Tive sorte — disse. — Minha ativação celular foi concluída no dia primeiro de
maio, às 17 horas e 24 minutos. Não fui atingido pelo deslocamento de fases. Bell só saiu
da máquina às 19 e 30. As energias deformadoras devem tê-lo atingido, enquanto se
encontrava no estado de desmaterialização total.
— Os fatos são conhecidos — respondi em tom pensativo. — O que me parece mais
importante é sabermos o que aconteceu com Ele. Onde está o ser coletivo?
A risada de Rhodan parecia um tanto forçada.
— Acho que isso é um problema de segunda ordem, Atlan. Você gostaria que Aquilo
lhe desse algumas informações, não é?
Fiz um gesto afirmativo. Naturalmente, gostaria de saber por que há dez mil anos do
calendário terrano me havia entregue um estranho aparelho. Apalpei instintivamente o
peito de meu uniforme. O ativador estava preso a uma corrente indestrutível.
— Vamos embora — disse Rhodan com uma voz desanimada, que pela primeira vez
ouvi de sua boca. — Não gostaria de perder um amigo. Seria muito interessante
conhecermos as características do processo de regressão. Onde ou como teria de acabar
isso? Na célula máter?
Senti tonturas só de pensar nessa possibilidade. Uma coisa era certa: a natureza
acabara de pregar uma peça à Biofísica.
2

Já conhecíamos melhor as leis físicas do universo dos druufs.


Há algum tempo, Rhodan se vira perplexo na superfície intacta daquele estranho
planeta, onde tudo estava no seu devido lugar, com exceção da vida orgânica. Muito
tempo se passou até que a existência da segunda dimensão temporal pudesse ser
traduzida em símbolos matemáticos.
A essa hora já sabíamos que a penetração na outra dimensão temporal era apenas
uma questão de dispêndio de energia. Tratava-se de um plano paralelo ao nosso, com a
única diferença de que os dois universos possuíam dimensões temporais próprias.
Durante a última expedição foram descobertos estranhos seres, os druufs. Por
enquanto, não sabíamos quem eram eles. Os donos da outra dimensão temporal sempre se
mantiveram escondidos. E seus robôs e povos auxiliares não nos puderam dar qualquer
informação.
Estava convencido de que os acontecimentos de dez mil anos atrás mantinham
relação direta com os de hoje. A diferença nas dimensões temporais justificava essa
conclusão.
Mas, no momento, a única coisa que tinha importância para nós era a recém-
descoberta lei das relações recíprocas. Dela se deduzia, com uma probabilidade de 99,99
por cento, que um salto, através do campo de coordenação a ser criado, levaria a algum
planeta situado no plano dos druufs. O conteúdo de matéria da zona estranha — e sua
estabilidade — começava a desempenhar um papel decisivo.
A grande plataforma antigravitacional com o chamado carregador de compritorm já
havia desaparecido atrás do círculo luminoso. Três usinas de força da gigantesca Drusus
estavam acopladas ao gerador de campo de refração. A energia empregada no processo
seria suficiente para satisfazer as necessidades energéticas do sistema solar por dez anos.
Poucos metros acima da superfície do planeta Peregrino, via-se a luminosidade de
quinhentos metros de diâmetro, que designamos pela expressão simplificada de campo de
refração. Mais exata seria a designação carga periferial de superposição de planos e de
igualização dos campos; seria mais exata, muito embora nem ela atingisse o cerne do
fenômeno.
Encontrava-me junto à amurada baixa da maior das nossas plataformas
transportadoras, formada por uma chapa de metal leve, de quarenta metros de diâmetro,
com uma instalação antigravitacional montada no centro. Os dois propulsores de
radiações recém-instalados não tinham um empuxo suficiente para permitir uma
velocidade adequada. Mas tanto fazia atravessarmos o campo de coordenação a cinco
quilômetros por hora ou à velocidade supersônica.
A plataforma dava a impressão de um campo de brinquedo de crianças gigantes. As
máquinas estavam jogadas por todos os cantos; seus suportes maciços de pedra e plástico
haviam sido arrancados à força dos respectivos alicerces.
Não foi nada fácil estabilizar a superfície sobrecarregada. A massa sempre
continuava a ser massa, mesmo que em virtude do campo gravitacional perdesse o peso.
No último instante, mandei montar uma instalação centrífuga, para evitar que o estranho
veículo tombasse.
O fisiotron fora colocado no centro do disco. Junto ao mesmo, haviam sido
montados os dois reatores de alta potência, que forneceriam a energia necessária ao
funcionamento do aparelho.
Não foi possível levar os enormes e complicados aparelhos destinados à transmissão
sem fio da corrente de alta-tensão. O pavilhão da ducha celular já parecia ter sofrido os
efeitos de um bombardeio. Rodes Aurin, chefe de armamento do supercouraçado,
trabalhara com raios de tração superpotentes, depois que Homunk lhe mostrara onde as
respectivas energias deveriam ser colocadas em ação.
Ao pensar nos condutores provisórios destinados a produzir a necessária tensão de
três milhões de volts, minhas mãos tremiam. A energia destinada ao funcionamento da
ducha celular tinha de ser levada de alguma maneira aos respectivos projetores de campo.
E, como a transmissão sem fio não podia ser utilizada, tivemos de recorrer aos isoladores
de campo circular da Drusus.
Como engenheiro em energia de alto grau, cabia-me providenciar para que as
instalações de suprimento, compostas às pressas, fossem montadas de forma a poderem
entrar em funcionamento.
Homunk dissera que só o fisiotron precisava, para funcionar a plena força, de
seiscentos mil megawats. Era um consumo inacreditável para um aparelho pequeno como
este.
Não sabia se a corrente de alta-tensão seria transformada nos estranhos aparelhos
embutidos no pé do fisiotron. Os algarismos usados por Homunk eram de tal ordem que
meus cálculos relativos aos dispositivos de segurança, que se tornavam necessários, eram
puramente ilusórios.
Por tudo isso, não era de admirar que a plataforma antigravitacional desse a
impressão de um caos total. Reginald Bell olhou em torno. Seu desânimo crescera
assustadoramente. Apenas consegui esboçar um sorriso débil em meus lábios. Não havia
a menor dúvida de que não gostaria de estar na pele desse homem. Penetrar nessas
condições no interior de uma máquina que liberava todas essas energias, representava
mais que uma temeridade.
Rhodan pôs em funcionamento os estabilizadores centrífugos. Dentro de dois
minutos, o volante feito do melhor aço de Árcon atingiu duzentas mil rotações. Esperei
febrilmente que aquilo se desmanchasse, mas não aconteceu nada disso.
— Hum! — fez Crest, que se mantinha calado a meu lado.
Aquele ancião, esgotado e desanimado, sofria os efeitos da situação precária em que
nos encontrávamos. Levamos cinco dias para calcular todos os dados necessários ao
empreendimento.
Em meio às máquinas espalhadas por toda parte, Rhodan apareceu. Quando chegou
perto de nós, passou a mão pela testa coberta de suor.
— Apesar do sono profundo em que esteve mergulhado, Bell continuou a tornar-se
mais jovem — disse. — Não foi tão depressa como antes. Mas, de qualquer maneira, está
mais jovem. Está na hora! — seus dentes cravaram-se no lábio inferior. — Atlan, você
tem certeza de que isto agüentará?
Apontou para o conjunto caótico de aparelhos.
— Só penso nos condutores de eletricidade...! — respondi em tom inseguro.
Caminhou lentamente para o lugar em que estava o Capitão Rodes Aurin,
comandante de um pequeno destacamento especial ao qual caberia rechaçar eventuais
ataques. Além disso, quatro naves auxiliares da Drusus estavam de prontidão para
intervir, quando isso se tornasse necessário. Fiz questão de manter a massa considerável
das naves de sessenta metros no plano temporal dos druufs, enquanto isso fosse possível.
As radiações energéticas emitidas pelos propulsores e reatores dos armamentos eram
indesejáveis. Já se provara que a outra dimensão temporal, já por si instável, poderia ser
alterada rapidamente se surgisse qualquer influência estranha. Bastava termos de carregar
os reatores necessários ao nosso empreendimento.
Rhodan fez um sinal para que me aproximasse.
Limitei-me a acenar com a cabeça. Seria absurdo formular objeções a essa hora. Os
pequenos e arrojados selvagens do planeta Terra estavam prestes a demonstrar a um
antigo almirante da frota do Império de Árcon que possuíam melhores qualidades.
Nós, os arcônidas, sentimo-nos mal. Em Perry Rhodan não se notava nada daquilo
que se desenhava em nossos rostos. Afinal, o sistema nervoso dos terranos era mais
jovem que o dos indivíduos da minha espécie. Em compensação, os arcônidas — ao
menos os que haviam conservado a saúde espiritual — dispunham de outras qualidades...
Prestei atenção ao ruído dos dois mecanismos propulsores de radiações. Tudo que se
encontrava sobre a plataforma perdeu o peso. Apesar disso, os débeis aparelhos tiveram
de desenvolver o máximo de sua capacidade de empuxo para que pudéssemos entrar em
movimento.
Tive a impressão de que demorou uma eternidade até que atingíssemos a velocidade
ridícula de quarenta quilômetros por hora. A essa velocidade, a resistência do ar foi
maior, impedindo que o mecanismo conseguisse qualquer aceleração adicional.
Com uma lentidão martirizante, deslocamo-nos em direção ao campo de refração
tremeluzente. Antes de o atingirmos, olhei atentamente em torno. Quase todos os
membros do Exército de Mutantes haviam vindo conosco. Gucky já se encontrava do
outro lado. Fora destacado para servir de guarda do robô Homunk. Fizéramos uma
descoberta dolorosa: aquela máquina perfeita pensava menos na vida de Bell que no ser
espiritual que era seu senhor. O plano temporal dos druufs guardava maior afinidade com
a zona intermediária que o nosso Universo. Talvez Homunk acreditasse que por lá teria
uma possibilidade de descobri-lo.
A abertura tremeluzente, que enchia o espaço situado entre os dois universos, já não
podia ser vista em todo seu tamanho. Quando nos encontrávamos a dez metros dali,
Rhodan mandou que fechássemos os capacetes pressurizados dos nossos trajes espaciais.
Era bem possível que fôssemos sair num mundo em que reinava o vácuo, ou até
num planeta cuja atmosfera era venenosa. Quando surgia um fenômeno natural de
superposição que fazia desaparecer os seres que respiravam oxigênio, podia-se ter certeza
de que os mesmos encontrariam, na outra dimensão temporal, uma mistura gasosa
respirável.
Isto não acontecia a quem penetrava ao acaso no reino dos druufs. A lei da massa
continuava válida, mas esta também se aplicava a corpos celestes onde não havia vida.
A passagem de um plano a outro foi realizada sem o menor ruído. A parte dianteira
da plataforma desapareceu como se nunca tivesse existido.
No momento em que a carga energética aproximou-se de meu corpo, pus
instintivamente a mão na arma. Notei que Rhodan também segurava a coronha do
mortífero radiador térmico. Éramos tão parecidos, constatei com um sorriso...
contrariado.
A passagem de uma zona temporal a outra não provocou nenhuma dor. A
luminosidade transitória que vira diante dos meus olhos cessou. Quando voltei a enxergar
claramente, a parte dianteira da plataforma de carga tornara-se visível de novo. Ainda não
podíamos ver o que vinha atrás. Essa parte ainda se encontrava em nosso Universo
normal. Não pude deixar de confessar que foi a mais esquisita transição pela qual passei.
O mundo estranho estendia-se à nossa frente. Tive a impressão de que alguma força
estranha nos colocara de repente numa ilha deserta. Tratava-se de um pianeta de cloro,
cujos gases venenosos estavam sendo tangidos por uma violenta tempestade e atacavam
os vultos desajeitados dos geradores dos campos antigravitacionais.
As comunicações pelo videofone tornaram-se ruins.
Já não estávamos em casa.
A plataforma começou a balançar perigosamente. A uns trinta metros do lugar em
que estávamos, vimos o planador no qual Homunk e alguns dos nossos companheiros
haviam atravessado o campo de refração.
Rhodan saltou para os controles do estabilizador centrífugo. O número de rotações
podia ser aumentado, na melhor das hipóteses, em cinqüenta mil. Com isso, seria atingido
o limite de resistência do respectivo material.
Os volantes expostos produziram efeitos estranhos naquela nebulosidade
esverdeada. Olhei para minhas mãos: pareciam ter inchado e mudado de cor. O pequeno
sol do planeta era uma bola de fogo verde, de reduzida luminosidade, que se tornara
assimétrica pelos efeitos de campos de absorção.
— Que ambiente para um tratamento de saúde! — disse alguém pelo rádio de
capacete. Era Reginald Bell, que se mantinha de pé, com as pernas bem afastadas,
esforçando-se para conservar o equilíbrio. Não pôde deixar de soltar sua piada.
De repente, todos começaram a gritar!
Ninguém contara com tamanha turbulência da atmosfera!
Lutei para chegar ao engenheiro-chefe da nave. Gunter Forster esforçava-se para
conseguir um empenho ainda maior dos mecanismos de propulsão.
Vi seus olhos arregalados de susto atrás da grande lâmina de vidro blindado do
capacete, quando pus ambas as mãos nas chaves das turbinas axiais. Mesmo para
aumentar o efeito de radiação e apoio da máquina, Forster não se arriscara a utilizar a
atmosfera ali existente. Provavelmente, pensara nos efeitos corrosivos dos compostos de
cloro e também na viagem de volta.
Naquele momento, nem me interessei em saber se o material, não preparado para ser
aquecido num ambiente de cloro, iria agüentar ou não. Antes que Forster pudesse dizer
qualquer coisa, as turbinas de sucção começaram a uivar. Liguei toda a força do
minirreator dos dois propulsores para o aquecedor de arco voltaico e comprimi a chave
reguladora das câmaras de compressão para baixo.
Dali a alguns segundos, partículas de cloro, que se expandiam à razão de
aproximadamente quatro mil metros por segundo, saíram ruidosamente dos bocais
suplementares do propulsor de vibração.
Alguns homens procuraram abrigar-se apressadamente. Mas a força de empuxo e o
avanço estabilizaram rapidamente a plataforma antigravitacional balouçante.
Rhodan fez um sinal em minha direção. A forte interferência sofrida por seu rádio de
capacete e o uivo dos dois propulsores não permitiram que eu entendesse suas palavras.
Um inferno verde parecia abrir sua boca voraz!
Dentro de poucos segundos, nossa velocidade, antes muito reduzida, cresceu
assustadoramente. A plataforma de Homunk surgiu nitidamente à nossa frente. Quando
nos encontrávamos a pouco menos de cinqüenta metros desta, desliguei os propulsores
suplementares.
Apesar disso, nossa velocidade foi tamanha que nos fez passar para além da
plataforma de transporte já pousada no solo.
A queda súbita da gravitação obrigou-me a dobrar os joelhos e fez a plataforma cair
com tamanha rapidez. Rhodan agiu com uma rapidez extraordinária. Começou a deter a
queda pouco acima do solo, mas apesar disso o pouso pôde ser tudo menos modelar. Ouvi
o rangido do material que se quebrava e rompia. Os suportes hidráulicos altamente
estáveis estavam dobrados ou quebrados como palitos de fósforos.
Quando finalmente a plataforma se imobilizou, a centrífuga estabilizadora parou de
girar. Apenas o uivo da tormenta continuava a martirizar-me o ouvido. Nossa plataforma
estava ligeiramente inclinada. Mas, ao que parecia, as máquinas instaladas na mesma não
haviam sido danificadas.
— Sinto muito. O dispêndio de energia me obrigou a chegar ao solo perto de
Homunk — disse a voz de Rhodan, que saía debilmente e entremeada de ruídos de
interferência do alto-falante. — Alguém está ferido?
Sim, ao que parecia um dos tripulantes quebrara uma perna. Estava deitado bem a
meu lado. Vi seu rosto contorcido pela dor. Mas foi o primeiro a responder em voz alta:
— Aqui fala o Sargento Tomenski, Sir. Tudo bem; ninguém sofreu um arranhão.
Fez um gesto de súplica para mim. Sorri para ele e ajudei-o a colocar a perna
quebrada numa posição mais confortável. Experimentei um sentimento de simpatia, e não
o dirigi exclusivamente ao sargento, mas a toda a Humanidade. Esses pequenos bárbaros
sabiam ser formidáveis à sua maneira.
O único ser que apesar da atmosfera impregnada de cloro não usava traje espacial
era Homunk, o robô. Tive uma sensação desagradável ao ver o sorriso estereotipado em
seu rosto de bioplástico. Naquele ambiente, que obrigava todos a se refugiarem num traje
protetor, aquela máquina aparentemente tão humana parecia transformada num monstro.
Rhodan saltou da plataforma. A gravitação era de 0,95G, o que facilitava nossos
movimentos. Fiquei espantado ao ver a marca de seus pés, que penetraram
profundamente na vegetação de musgos. De início, admirei-me de que num ambiente
venenoso como este pudesse haver vida, mas subitamente reconheci, com imenso pavor,
o verdadeiro motivo de meu súbito interesse.
Como é que as solas das botas de Rhodan penetraram tão profundamente no solo? E
como era possível que as nuvens tangidas pela tormenta passassem tão depressa?
Pelo que tínhamos visto até então, nos mundos situados no plano temporal dos
druufs todos os fenômenos se processavam 72 mil vezes mais devagar que em nosso
Universo. Nessas condições, o ar deveria estar praticamente parado e a vegetação seria
dura como aço.
Senti-me chocado ao recordar essa circunstância. Rhodan parecia ter feito as
mesmas reflexões. Pareceu-me estarrecido. Um humor fúnebre me fez soltar esta
observação.
— Agora até o entendido se espanta, não é, bárbaro? A dimensão temporal reinante
neste planeta é quase idêntica à nossa. Todos os fenômenos se processam
aproximadamente na mesma velocidade. Como é que isso pode combinar com suas
teorias?
Sua resposta consistiu numa expressão não publicável, que os homens muitas vezes
costumam soltar nas situações críticas.
Alguém soltou uma risada estridente. Foi Bell. No momento em que virei o rosto
para ele, já estava abrindo a comporta transparente do fisiotron.
Crest, um ancião pertencente a minha raça, bateu com os dedos em meu ombro.
Parecia apavorado. Fiz-lhe um sinal, pois sabia perfeitamente o que queria dizer.
De repente, a situação se tornara ainda mais crítica. Se houvesse um ataque, não
poderíamos deslocar-nos sob a proteção de uma dimensão temporal mais rápida. Se o
inimigo desconhecido fosse capaz de desenvolver metade da nossa velocidade, as coisas
poderiam tornar-se perigosas.
Rhodan não perdeu uma única palavra. Todos já haviam percebido o fenômeno com
que nos defrontávamos. Crest já se retirara para junto do computador eletrônico que
leváramos na plataforma. Quanto a mim, confiava nesse cientista altamente competente,
que era um dos homens ainda sadios de nosso povo. No entanto, dificilmente seria capaz
de desenvolver a iniciativa pessoal que há milênios tanto nos distinguira dos outros seres.
Quando me lembrava dos comandantes de meus cruzadores...!
As memórias ameaçavam empolgar minha mente. Tive de realizar um enorme
esforço para afastá-las. O tempo de esplendor dos arcônidas chegara ao fim. Eu mesmo
era um remanescente misterioso dos tempos antigos, enquanto Crest, que na minha
opinião era fraco e dotado de pouca vitalidade, constituía um exemplar do “novo” tipo de
arcônida. E era um dos representantes mais capazes do Grande Império.
O Capitão Rodes Aurin não perdeu um segundo. Seus comandos, transmitidos com
a voz potente, soaram em nossos alto-falantes de capacete. Trinta homens pesadamente
armados saltaram para o chão e desapareceram que nem fantasmas em meio aos vapores
esverdeados.
Três homens correram em direção ao campo de refração, que continuava
nitidamente perceptível. Sua luminosidade, perturbada somente na periferia por certos
fenômenos de refração, sobressaía em meio à atmosfera corrosiva de cloro. Os três
soldados receberam ordem de, em caso de perigo, saltar imediatamente através da zona
intermediária por meio de máquinas voadoras individuais, a fim de colocar em alarma os
comandantes dos girinos, que se mantinham em estado de prontidão.
Em virtude da perturbação causada pelo campo de refração, tivemos de operar a
uma distância mínima de trezentos metros.
Os trinta minutos seguintes foram consumidos nos preparativos indispensáveis.
Cuidei do suprimento energético do fisiotron, enquanto Rhodan ficava de olho no robô
perfeito. As plataformas estavam tão perto uma da outra que suas extremidades se
tocavam.
Lancei um olhar nervoso para os dois projetores energéticos em forma de canhão,
que serviriam para envolver nosso veículo transportador num campo defensivo. Os dados
numéricos já haviam sido fixados. Apenas se tornava necessário ter cuidado para que o
estado de espaço intermediário a ser intimado não se deslocasse de um estado próximo à
totalidade para uma realidade de cem por cento.
Bell já se encontrava na “jaula” da ducha celular. Seu aspecto era o de calma e
autocontrole, mas quem o conhecesse melhor perceberia o nervosismo que o dominava.
Dentro de quarenta minutos, aproximadamente, concluí a verificação dos controles.
Nem agora tive coragem de pensar nos miseráveis condutores de energia. Conforme as
circunstâncias, a atmosfera de cloro poderia dar origem a processos químicos que
inutilizassem o isolamento dos condutores de energia. Num esforço extremo, efetuei um
reforço adicional de quinhentos ampères. Se durante o tempo de carga máxima os
autômatos queimassem, Bell estaria irremediavelmente perdido. Durante o estado
temporário de desmaterialização do paciente, não se pode arriscar uma interrupção no
fornecimento de energia, por mais breve que seja.
— Pronto — disse com a maior tranqüilidade possível pelo rádio de capacete. —
Como estão as cargas do compritorm?
— Também estão prontas; esperamos que funcionem — respondeu Perry Rhodan
com a voz rouca. — Podemos começar, Bell?
— Não deveríamos interferir demais nos desígnios do Criador — respondeu Bell em
voz baixa e com uma seriedade extraordinária. — Haja o que houver, agradeço a todos
pelo trabalho e pelas preocupações. Gucky, meu amiguinho, não chore!
Homunk fez um sinal. As luzes verdes dos dois reatores acenderam-se. Liguei-os a
toda potência. O choque inicial foi violento.
Fitei os fluxos energéticos branco-azulados que se formaram dentro dos campos de
isolamento protetores e limitadores. Não deixava de ser uma transmissão de energia sem
fio. Apenas não era tão avançada como a que costumava ser realizada pelo ser coletivo
desaparecido.
Meus campos isoladores suportaram a carga, embora os dois conversores termais
trabalhassem com uma tensão inicial de três milhões de volts. Aquilo que acontecia no pé
do fisiotron ficava muito além de minha capacidade de imaginação. Nos pólos de entrada,
apenas encontrei alguns fios pequenos, motivo por que com a maior boa vontade não
teria arriscado submetê-los a uma carga superior a mil volts com uma intensidade
máxima de oitenta ampères.
O que esses fios estavam recebendo e, ao que parecia, levando adiante sem maiores
problemas, eram verdadeiras forças primitivas face às dimensões do aparelho.
Bell, que ainda há pouco víamos nitidamente, transformou-se de uma hora para
outra numa figura sem contornos nítidos. Dali a um milésimo de segundo só vimos uma
espiral energética que pulsava numa luminosidade vermelha e se mantinha no centro das
linhas de força criadas no interior do fisiotron.
Fui o último a saltar da plataforma. Com mais alguns saltos, coloquei-me ao lado de
Rhodan. No momento em que cheguei, o robô efetuou sua ligação.
Um forte ribombo me fez estremecer. Quando olhei para a ducha celular, esta estava
praticamente irreconhecível. Um campo abobadado pálido envolvia completamente a
plataforma antigravitacional.
Levamos cinco minutos para encontrar a regulagem adequada. No momento em que
atingimos o valor máximo para o isolamento na quarta dimensão, um espaço
intermediário instável e quase natural devia reinar no interior do campo de deflexão.
Rhodan acompanhou tranqüilamente o ponteiro dos segundos de seu relógio.
— Se as coisas derem certo, deveremos observar um deslocamento de fases.
Provavelmente o fenômeno se estenderá no tempo.
Dali em diante, formou-se um silêncio carregado de tensão. Os homens do comando
especial mantinham-se à espreita de qualquer perigo que pudesse surgir de uma hora para
outra, enquanto nós nos esforçávamos para reprimir o nervosismo que ameaçava dominar
o ambiente.
Bell teria de permanecer uns noventa minutos na ducha. Era sua única chance.
No momento em que os contornos começaram a apagar-se para aqueles lados, ouvi a
respiração rápida e pesada de Rhodan no alto-falante. Homunk controlava os comandos
do fisiotron.
Dali a trinta minutos, parecia que a enorme ducha celular era formada apenas por
um tecido finíssimo. Visto de lado, o aparelho parecia muito mais largo. Não havia
dúvida de que se tratava do espaço intermediário que poucos dias antes havíamos sentido
tão nitidamente em nosso próprio corpo.
Crest, em cujo rosto se viam nitidamente os sinais do cansaço e da tensão das
últimas horas, juntou-se ao grupo. Parecia nervoso. Ouvimos sua voz nos capacetes
pressurizados, em cujas lâminas de visão surgiam constantemente os vapores
cristalizados. Apalpei nervosamente as peças metálicas de meu traje espacial. Não era
nenhum prazer permanecer numa atmosfera de cloro.
Crest leu o diagrama da calculadora portátil. De acordo com o mesmo, a diferença
entre as dimensões temporais era apenas de um para 4,26374. Essa cifra deixou-me ainda
mais preocupado. Nossos movimentos seriam apenas quatro vezes mais rápidos que os de
algum eventual inimigo.
Uma vez apurados esses dados, começamos a imaginar qual devia ser a verdadeira
fúria da tormenta que sentíamos. A velocidade do vento que, segundo nossas medições,
era de cerca de setenta e um quilômetros por hora, devia corresponder, na dimensão
temporal desse planeta, a aproximadamente duzentos e oitenta e cinco km/h. Conforme
ensinava a experiência, nosso organismo tende para o ajuste. Ainda não se sabia
perfeitamente por que era assim. O que causava uma perplexidade ainda maior era o fato
incontestável de que havia um planeta do plano dos druufs em que a relação era de um
para quatro. Dali poderiam resultar importantes problemas matemáticos, de que no
momento não poderíamos ocupar-nos.
Quando Rhodan acabou de examinar o diagrama elaborado por Crest, o alarma
surgiu de um instante para outro. Isso aconteceu exatamente cinqüenta e seis minutos
depois do momento em que Bell entrara no fisiotron.
Rhodan parecia estarrecido. Fitamo-nos por alguns segundos, antes que alguém
rompesse o silêncio.
— O que acha, almirante? Já esteve numa situação como esta?
Meu segundo cérebro, que praticamente se identificava com minha memória
fotográfica, anunciou sua presença com uma dolorosa nitidez. A tendência anormal e
doentia de contar histórias surgiu em minha mente.
Recorri a todo o poder de autocontrole de que dispunha, para reprimir essa
tendência. Em palavras apressadas comuniquei a Rhodan que, dez mil anos antes, me vira
numa situação muito semelhante a esta, e disse que providências tomara.
— Rodes Aurin! — chamou Rhodan.
Seu rosto apareceu nas minúsculas telas dos videofones de pulso, cujas saídas de
alto-falantes haviam sido acopladas aos capacetes.
— Localização do rastreador estrutural, Sir — anunciou o oficial de combate da
Drusus. — Cinco ondas de choque simultâneas. Mas a amplitude não é variável como
acontece numa penetração normal no espaço einsteiniano. Trata-se de unidades
energéticas remanescentes, praticamente constantes. Parece que alguém está saindo sem
interrupção do hiperespaço, não num salto, mas tranqüila e uniformemente. Não se trata
de um abalo estrutural como qualquer outro.
Perry Rhodan fitou-me com uma expressão de perplexidade. Lembrei-me
perfeitamente de um acontecimento que representara o começo de nosso fim.
— Atacar; atacar imediatamente — disse em tom apressado. — Não percam tempo.
As medições do rastreador são corretas, por mais estranhas que possam parecer. Os seres,
que vocês chamam de druufs, dominam a navegação espacial à velocidade superior à da
luz de outra forma que vocês. Não pulam pela quinta dimensão como nós, mas voam
através da mesma. Será que me fiz entendido?
— Não inteiramente. Voam como?
— Porque não saltam no verdadeiro sentido da palavra — respondi em tom nervoso.
— Daquela vez isso também foi um mistério para mim, até que de repente houve um
estouro. Vencem o hiperespaço num vôo extenso realizado numa velocidade alguns
milhões de vezes superior à da luz. Face à alteração das leis físicas que se verifica no
paraespaço e do plano de referência que ali prevalece, isso parece uma coisa corriqueira.
Com esse sistema de deslocamento, à velocidade superior à da luz, a estrela-referência
sempre permanece visível.
“Além disso, esse processo não causa nenhuma desmaterialização, ao contrário da
modalidade violenta do salto por nós utilizada. Os druufs se vêem, por exemplo, de uma
distância definida. Esta serve de base ao cálculo do excedente de velocidade na quinta
dimensão e à determinação da velocidade. Trata-se de um vôo como qualquer outro,
apenas alguns milhões de vezes mais rápido que o permitido pelas leis do espaço
einsteiniano.
“Na quinta dimensão, a velocidade atingível é bilhões de vezes superior à do nosso
Universo. Não sabemos como os druufs saem do hiperespaço. Acredito que eles o façam
por meio de um salto-choque brevíssimo que, nem de longe, pode ser comparado com as
nossas transições. Limitam-se a penetrar no mesmo, orientam-se e saem correndo. Os
trechos pontudos do diagrama dos nossos rastreadores estruturais indicam a ocorrência de
ondas de choque. A linha em que se verifica uma ondulação constante corresponde à
velocidade de aproximação. Daqui a pouco, haverá mais um choque quase imperceptível,
mas quando isso acontecer já estarão aqui.”
— Aurin, isso é exato? O senhor notou uma curva íngreme no trajeto inicial? —
perguntou Rhodan pelo rádio.
— Sim senhor; é exatamente isso — respondeu o capitão em tom nervoso. — Acho
que uma luz está nascendo em meu espírito. Tem alguma ordem, Sir?
Rhodan voltou a fitar-me. Percebeu como minha mente fervilhava. As recordações
penetravam cada vez mais intensamente em meu espírito. Meu segundo cérebro, ativado
em Árcon, não conhecia compaixão. Num gesto de simpatia, Crest bateu no meu ombro.
Pertencia a uma das famílias dominantes e, por isso, evidentemente também tivera a
vantagem duvidosa da ativação cerebral, realizada com permissão do Estado. Um
arcônida normal nunca era submetido a esse processo. A vitalização dos setores ociosos
do cérebro só era permitida a pessoas de grandes méritos ou àquelas que ocupavam
posições elevadas.
Rhodan não perdeu tempo. E quando um terrano toma uma decisão, muita coisa
costuma acontecer...
Antes que recuperasse o autocontrole, alguns monstros azuis brilhantes saíram do
campo de refração. Pensei se tratar de quatro unidades que estivessem em condições de
decolar. Mas, de repente, surgiram as quarenta unidades que a Drusus trazia a bordo.
Notei um sorriso feliz no rosto de Rhodan. Ao que parecia, nem mesmo ele sabia
que seu representante, o Tenente Sikermann, tivera a cautela de desembarcar os quarenta
girinos.
Atrás das potentes naves de sessenta metros, uma verdadeira “matilha” de
destróieres de três tripulantes, capazes de desenvolver a velocidade da luz, atravessaram o
campo. As coisas ainda poderiam ficar “divertidas”.
As tripulações recém-chegadas ainda dispunham da vantagem de sua dimensão
temporal. Com isso, desenvolveriam, pelo menos durante uma hora, velocidade quatro
vezes superior à da nave mais moderna dos druufs.
Abriguei-me ao notar que os pilotos, que aparentemente haviam enlouquecido,
seguiam em direção ao alvo com uma enorme aceleração.
Ouvia-se um forte ribombo. Assim deverá ser o fim do mundo. Constantemente
novas levas de destróieres cruzavam à baixa velocidade o campo de refração. Para nosso
azar, ficávamos bem abaixo da linha obrigatória de saída. Os arrojados rapazes dirigiam
suas máquinas para o alto no momento exato em que chegavam ao lugar onde nos
encontrávamos.
Rhodan havia lançado pelo menos duas esquadrilhas de combate. Assim que o
cortejo tresloucado havia passado, Aurin perguntou preocupado:
— Será que isso basta, Sir?
Respirei profundamente.
A risada de Rhodan deixou-me nervoso. Ao que parecia não acreditava que os
misteriosos druufs fossem invencíveis. Dali a pouco dirigiu-se a mim.
— Muito bem, arcônida, seguimos seu conselho. Bell precisará de mais vinte e nove
minutos. Até lá teremos de manter o front. Quais são nossas chances?
Procurei um lugar para sentar. Quando os bárbaros terranos acordavam, um homem
do meu tipo sempre levava um choque nervoso.
Mantive-me em silêncio até que estivesse montado o aparelho de hipercomunicação,
vindo do outro lado. A tela estava dividida em quatro setores. Dali a alguns segundos,
vimos os rostos dos oficiais que comandavam a operação. Era claro que os tenentes
Stepan Potkin, David Stern e Marcel Rous estavam entre eles. Ao que parecia, dirigiam
os grupos de destróieres.
— Nós os localizamos, Sir — anunciou Potkin com a maior tranqüilidade. — Os
rastreadores estruturais estão funcionando. Para chegarem aqui, terão de sair do
hiperespaço. Devemos agir, assim que puserem o nariz para fora?
— Claro que sim — respondeu Rhodan. — Face aos acontecimentos mais recentes,
o estado de guerra existe entre nós e os druufs. Não existe a menor dúvida de que fomos
localizados pelos desconhecidos. Ao que parece inventaram um método que lhes permite
constatar imediatamente a presença de um campo de refração. Provavelmente a criação
deste produz uma forte onda de choque na quinta dimensão. Avance para o espaço e entre
em formação de leque. As unidades que penetrarem em nosso espaço devem ser detidas,
custe o que custar. Ainda preciso de exatamente vinte e cinco minutos.
A essa hora já recuperara o autocontrole. Estava perfeitamente familiarizado com a
situação. Com a maior calma, observei:
— Preste atenção, bárbaro! Diga a seus homens que, se necessário, sigam o inimigo
bem de perto, para que, livres de corpúsculos, as ondas geradas pelo mecanismo de
propulsão possam ser utilizadas como canais dos raios energéticos disparados pelas
armas. Se os campos defensivos dos druufs ainda forem os mesmos, sua reação a uma
forte corrente de impulsos será bastante débil.
Rhodan não perdeu tempo. Da minha parte, tive mais uma oportunidade de colocar à
disposição dos terranos as experiências que colhera dez mil anos atrás.
Dali a três minutos, as unidades terra-nas entraram em combate. Os aparelhos de
hipercomunicação emitiam estrondos e estalos, como se duas frotas gigantescas se
encontrassem. Os microfones das naves auxiliares e dos destróieres transmitiam
fielmente os ruídos, que no interior das naves, que vibravam sob o efeito dos mesmos,
deviam ser quase insuportáveis.
Já conhecia o retumbar igual ao badalar de um sino que se seguia aos tiros de
costado e aos bombardeios prolongados. As células circulares dos girinos eram corpos de
ressonância que produziam um efeito mais desagradável que os outros.
Olhamos para cima, mas a olho nu não se via nada. O combate era travado nas
profundezas do espaço. Vez por outra, vinham notícias transmitidas por algum
comandante. Segundo essas notícias, até então só havia sido constatada a presença de seis
unidades inimigas.
...quatro das naves longas e finas já foram destruídas. Não foram encontrados
sobreviventes; as naves inimigas eram tripuladas por robôs. Os dois telepatas a bordo
das naves auxiliares K-18 e K-6 não conseguiram captar qualquer impulso mental.
— Tanto melhor — disse Rhodan, olhando para o relógio. — Só faltam quatro
minutos.
Estávamos impacientes. Vivia perguntando a mim mesmo o que Bell, no interior do
fisiotron, estaria sentindo nesse momento. Provavelmente nada.
Quando o tempo de aplicação chegou ao fim e Homunk desligou a ducha celular,
olhamos ansiosamente para a plataforma antigravitacional. O campo defensivo
desapareceu. Os contornos voltaram a surgir nitidamente diante dos nossos olhos.
Subitamente Gucky, que se encontrava a meu lado e segurava minha mão esquerda,
soltou um grito agudo:
— Está vivo — gritou o rato-castor. — Estou captando seus pensamentos. Ele
acredita que só esteve um segundo no interior do aparelho.
Recuei diante da luminosidade à minha frente. Gucky desapareceu de um momento
para outro, mas logo reapareceu dentro do fisiotron desligado, onde abraçou o homem
obeso.
Rhodan limitou-se a olhar-me. Nós nos entendíamos perfeitamente, mesmo sem
palavras. De qualquer maneira, havíamos conseguido alguma coisa, pois Bell parecia são
e salvo. Mas ainda não sabíamos quais os efeitos que a ducha celular poderia ter
produzido sobre o estranho processo de rejuvenescimento.
Rhodan parecia escutar para dentro de si mesmo. Como soubesse que o mesmo
possuísse dons telepáticos reduzidos, preferi não perturbá-lo. Depois de alguns segundos,
disse com uma ligeira exaltação na voz:
— Segundo a mensagem transmitida por Gucky, Bell está perfeitamente bem. O
rosto de menino voltou a transformar-se no que era antes. Você é capaz de compreender
uma coisa dessas?
Não tive tempo de exprimir em palavras minha incompreensão total do fenômeno.
Bem acima de nossas cabeças, um monstro mergulhou na densa atmosfera de cloro do
planeta. No mesmo instante, ouvimos a mensagem do chefe da esquadrilha.
Vi o rosto liso e bem cuidado de Van Aafen surgir na tela. O major era frio, um tanto
reservado e pedante como sempre. Era um excelente cosmonauta, e parecia nem ter
nervos.
— Cuidado, Sir — anunciou. — Uma nave pesada do inimigo conseguiu romper
nossas linhas. Vou atrás dela com oito girinos. Talvez seja conveniente procurar um
abrigo.
Ele o disse no tom de quem se entretém numa conversa domingueira.
Abrigamo-nos.
A aproximadamente um quilômetro do lugar em que nos encontrávamos, um traço
ofuscante cortou a atmosfera esverdeada. Um forte ribombo atingiu-nos. A onda de
compressão me atirou a alguns metros no chão liso da plataforma.
Ouvimos um trovão infernal. Após isso, houve outro furacão, que me levantou
violentamente. Havíamos sido atingidos pela periferia do vácuo produzido por uma nave
espacial que se deslocava em alta velocidade.
Os acontecimentos foram tão rápidos que meu cérebro não conseguiu acompanhá-
los. Alguns vultos apagados passaram a grande altitude. Uma forte luminosidade rompeu
a semi-escuridão. Subitamente um sol atômico abriu-se à grande distância.
Senti-me ofuscado e fechei os olhos. Esperei pelo que estava para vir. Alguém
segurou meus tornozelos, em busca de apoio. Estávamos com o corpo comprimido contra
a plataforma, quando a frente escaldante nos atingiu. O fim do mundo não poderia ser
pior. Dali a alguns minutos, não saberia dizer como resisti ao inferno.
Um tanto confuso, levantei-me e ajudei Rhodan a erguer-se do chão. Nossos
veículos antigravitacionais estavam quase tombados. A tormenta atômica atingira-os e os
atirara a mais de cinqüenta metros pelo terreno pouco acidentado.
— Foram pelo menos cem megatons — constatou Rhodan com um gemido. Parecia
ter luxado o pulso esquerdo. — Será que isso ainda voa?
— Pelo amor de Deus, Sir — disse um dos tripulantes. — Os aparelhos precisam ser
levados de volta, especialmente o fisiotron.
Procuramos localizar Bell. Estava na outra plataforma e abanava os braços para nós.
Ao que parecia, por lá as coisas estavam em ordem.
Quando já estávamos examinando o mecanismo de propulsão, recebemos a
mensagem do major. De início ouvi Rhodan praguejar, e depois ouvi as palavras de Van
Aafen.
— Sinto muito; parece que foi perto demais. Não pudemos evitar a explosão da nave
robotizada. Solicito novas instruções.
— Quero que o diabo o carregue aos pedacinhos — respondeu Rhodan. — O senhor
poderia ter esperado dois minutos para abrir fogo contra o inimigo. Nesse caso, já se
encontraria a mais alguns milhares de quilômetros. Está bem; esqueça. Espere até que as
duas plataformas de carga estejam em segurança. Depois siga-nos com toda a
esquadrilha. Os destróieres protegerão a retaguarda. As pequenas naves poderão
atravessar o campo de refração bem mais depressa que seus girinos. Entendido?
— Perfeitamente, Sir. Permite que pergunte como vai Mr. Bell?
— Permito — respondeu Rhodan em tom irônico. — Está satisfeitíssimo com a
onda de compressão causada pelo senhor. Quanto ao mais está passando bem. Transmita
esta notícia aos tripulantes das outras naves.
— Queira transmitir minhas congratulações, Sir — disse Aafen no tom formalista
que lhe era peculiar.
Rhodan deu uma risada e prometeu atender ao pedido.
Mais uma vez, constatei que, a bordo dessas naves, havia homens admiráveis e
ótimos amigos. Dali a dez minutos, nossa plataforma levantou-se do solo. Fi-la atravessar
o campo de refração à velocidade máxima e só desliguei os propulsores suplementares
quando o gigantesco abaulamento do corpo da Drusus surgiu à nossa frente.
Dali a pouco, Rhodan apareceu com a outra plataforma. Sua mensagem radiofônica
ainda atingira a esquadrilha de combate. Os primeiros girinos estavam voltando ao
Universo normal no momento em que suspirei aliviado e tirei o capacete pressurizado.
O planeta de cloro fora um lugar nada agradável.
3

Teldje van Aafen perguntou-me em tom muito cortês como os velhos comandantes
de cruzadores da frota arcônida costumavam redigir os comentários de suas experiências.
No início, senti-me um tanto espantado, mas acabei dando a informação solicitada.
Ao que parecia, nem mesmo Perry Rhodan estava disposto a dispensar a guerra de papéis,
embora por experiência fizesse o possível para em cada caso liquidar o mais depressa
possível esse problema enfadonho de qualquer estadista ou comandante. O imediato da
nave Drusus também parecia sentir-se um tanto chateado por ter de elaborar um relatório
detalhado das experiências colhidas em combate.
Não sofremos nenhuma perda, fato que provava a extrema precisão revelada pelos
pilotos terranos durante o ataque. É claro que foram favorecidos pela dimensão temporal.
Naquele momento, estava ocupado na interpretação dos dados reunidos por Crest.
Rhodan retardou o regresso do supercouraçado, uma vez que nos sentimos obrigados a
reparar os danos causados ao pavilhão onde estava instalada a ducha celular.
Cerca de vinte e quatro horas se haviam passado desde o momento em que
regressamos do plano temporal dos druufs. Um exército de robôs estava montando o
fisiotron e os reatores.
Antes da decolagem da nave, seria realizado um teste com o equipamento.
Compreendia a disposição psíquica de Rhodan. As dúvidas eram imensas. Sabia tão
bem quanto eu que o problema surgido com os druufs teria de ser resolvido imediata e
totalmente.
Algumas mensagens de hiper-rádio, expedidas pelos serviços terranos de segurança,
eram alarmantes. Em alguns mundos estranhos voltaram a acontecer coisas terríveis que
não podíamos impedir. Raças inteligentes da Galáxia haviam desaparecido da noite para
o dia. Grandes planetas foram praticamente despovoados. Já conhecíamos esse tipo de
acontecimento, mas ainda não compreendíamos a finalidade daquilo. O que se poderia
ganhar com o seqüestro de milhões e mesmo bilhões de seres pensantes?
Há várias semanas refletia sobre isso. A solução já se desenhava em minha mente,
mas ainda não sabia se minhas suposições eram corretas. A súbita modificação da
dimensão temporal de um dos planetas dos druufs parecia indicar que por lá fora atingido
um estágio decisivo. Alguém parecia estar empenhado em igualizar as leis que regiam as
duas dimensões. Será que para isso precisavam de matéria orgânica viva? Seria este o
motivo do seqüestro de inúmeras inteligências humanóides?
Rhodan soltara um assobio forte e desafinado quando há poucas horas lhe submeti o
resultado de minhas reflexões. Agora voltara a ficar só no grande centro de computação
do supercouraçado.
Tudo indicava que com Reginald Bell tudo estava bem. Quem contemplasse
atentamente seu rosto, ainda notaria os sinais de um pequeno rejuvenescimento. Mas, de
qualquer maneira, o estranho processo fora detido. Em seu tecido celular acontecera
alguma coisa que não conseguíamos compreender. Sem dúvida chegara a um estado de
verdadeira estabilidade, que também se verificava em Perry Rhodan.
Pelas doze horas, dirigi-me à grande cantina dos oficiais da Drusus. Homunk, o robô
perfeito, mandara abastecer-nos com legumes frescos. Estava tudo na mais perfeita
ordem, ainda mais que os druufs não haviam encontrado um meio de penetrar em nossa
dimensão temporal. Provavelmente a adaptação estrutural por meio de um campo de
retração se tornaria muito mais difícil do outro lado.
Mas havia um acontecimento que me deixava preocupado. Ficaria satisfeito se no
mesmo instante tivéssemos abandonado o planeta Peregrino.
Sentei no lugar de costume e aguardei a chegada dos oficiais da nave. Foram vindo
um após o outro; Rhodan e Bell foram os últimos a chegar.
Rhodan parecia distraído. Com gestos mecânicos foi consumindo sua refeição. No
momento em que a transportadora automática retirou a sobremesa do poço central e a
distribuiu pelos lugares da mesa, disse de repente, em voz alta:
— Gucky diz que há cerca de duas horas captou impulsos telepáticos muito fracos,
impulsos estes que só podem ter sido irradiados pelo ser coletivo. John Marshall
confirmou a informação.
De repente, um silêncio total passou a reinar na cantina. Lancei os olhos para o rato-
castor, que estava sentado sobre uma cadeira especial, junto a Rhodan.
— É verdade! — confirmou com sua voz chilreante. — O Ser deu sinal de vida.
— Qual foi a mensagem? — perguntei em tom curioso.
Gucky parecia extremamente sério. Seu grande dente roedor não apareceu.
— Não consegui ouvi-lo. Até mesmo para mim, a mensagem telepática foi
praticamente incompreensível. Disse que desejava retirar-se por alguns dias de seu
tempo.
— Seu tempo? Santo Deus! — disse Bell. — Vocês têm uma idéia de quanto poderá
demorar isso? Pelo que dizem, o Ser vive mais tempo que o sol. Se Ele fala em alguns
dias e acrescenta expressamente que se trata de dias de sua contagem de tempo, podemos
sair tranqüilamente e voltar dentro de cinqüenta anos no mínimo. Segundo seus padrões,
isso talvez represente três minutos. Aos poucos começo a compreender o verdadeiro
significado do termo relativo.
Senti-me dominado por um profundo desânimo. Ainda desta vez, minha curiosidade
não seria satisfeita. Aliás, a curiosidade não representava um simples desejo de saber, mas
exprimia uma necessidade premente de acalmar meu sistema nervoso ultra-sensível.
Senti-me atraído pelos grandes olhos de Gucky. Com um sorriso distraído, disse em
voz baixa:
— Não, meu filho, não tente. Não sou suscetível a qualquer tipo de influência
sugestiva. Ele lhe disse ou pediu mais alguma coisa?
— Foi justamente por isso que eu o olhei. Ele disse que a volta do planeta da zona
intermediária para nosso plano temporal lhe causou certas dificuldades. Perdeu grande
parte de sua substância psíquica. Nossa experiência com Bell transferiu parte do mundo
artificial para a mesma dimensão. Dessa forma, conseguiu regressar, mas por enquanto
não está em condições de entrar em contato conosco. Você compreende o que significa
isso?
Sim, compreendia mais ou menos. A expressão substância psíquica designava o
volume espiritual do ser coletivo. Provavelmente o choque da irrupção produzira uma
redução de sua vontade e energias mentais, que, em última análise, constituíam o
fundamento do poderio imenso daquele ser misterioso.
Limitei-me a fazer um gesto afirmativo. Não tinha mais nada a dizer.
— Foi só isso?
O rato-castor lançou um olhar inseguro para John Marshall, que era o chefe do
Exército de Mutantes.
— Sabemos perfeitamente que o senhor está muito interessado em obter um
esclarecimento — disse o homem esbelto e louro. — Pelo que entendi, a mensagem
ligeira, que dava sinais evidentes de esgotamento, não incluía qualquer informação
específica para o senhor, a não ser que uma frase, que para mim representa um enigma,
tivesse essa finalidade.
— Que frase foi essa? — perguntei em tom exaltado.
O telepata estabeleceu um contato silencioso com o rato-castor. Após isso, ouvi o
teor exato da frase. Era uma manifestação típica de um ser do qual apenas sabíamos que
era feito de uma aglomeração misteriosa de inúmeras inteligências. Marshall disse em
tom pensativo:
— O presente do robô não foi apenas um ato de altruísmo, pois minha existência
também dependia do poder de um homem que encontrara a arma.
Assim que Marshall silenciou, tive a impressão de afundar no chão duro.
Ele sabia que eu estava esperando uma informação. Apesar de seu enorme cansaço,
não se esquecera de fornecer uma indicação aos telepatas de Rhodan. Perry lançou-me
um olhar indagador.
— Você sabe o que vem a ser isso?
Um choque elétrico parecia martirizar meu cérebro. Senti que não poderia resistir
por muito tempo aos impulsos poderosos de meu segundo cérebro. As lembranças
tomaram conta de mim. De repente, tive a impressão de não estar a bordo do couraçado
terrano, mas num continente que há muito deixara de existir.
Senti uma súbita fraqueza. Marshall acabara de proferir a palavra-chave que ativara
minha memória fotográfica.
Lancei as mãos em torno, à procura de apoio, até que alguém me segurou
fortemente pelo braço.
— Está começando de novo? — perguntou uma voz preocupada. — O que houve,
Atlan? Se você acha que tem de contar alguma coisa, fale logo. O que significa essa
mensagem?
— Meu ativador celular — disse com um gemido. A dor de cabeça me torturava. —
Ele me concedeu a imortalidade relativa para proteger-se a si mesmo. Já vejo claro.
Empenhei tudo que me restava para defender a Terra. Naquela época, eu já sabia que esse
planeta se transformaria num centro dos acontecimentos. Havia uma identidade com a
constelação cósmica que deu causa a uma superposição das duas dimensões temporais.
Esta superposição adquiriu uma estabilidade provisória. Para Ele aquela situação deveria
revestir-se de uma importância extraordinária. Não foi por acaso que obtive a vida eterna.
É uma vergonha!
A mão de Rhodan cingiu mais fortemente o meu braço.
— Conte — ouvi-o dizer com a voz tão fraca como se estivesse a alguns metros de
distância. — Será um alívio para você e uma lição para nós. Relate tudo; ligarei você com
os alto-falantes de todos os setores da nave.
No momento em que desisti da resistência, consciente aos impulsos expedidos por
meu segundo cérebro, as dores de cabeça desapareceram como que por encanto. Senti-me
libertado de algo que me oprimia; tive a impressão de que minha caixa craniana se
dilatava.
O rosto marcante de Rhodan desmanchou-se. À minha frente surgiram anéis
vermelhos, entre os quais foi surgindo aos poucos a cabeça branca do velho Tarts. Em seu
rosto havia um sorriso tranqüilizador, que fez desaparecer todas as dores.
Minha inteligência consciente acabara de ser desligada. Pensava e agia
exclusivamente sob o comando de meu setor de memória, que registrara e gravara todas
as experiências de minha vida.
Usei a língua inglesa, motivo por que mais uma vez preferi não traduzir em
concepções arcônidas os dados técnicos, a graduação dos oficiais e as indicações cosmo
náuticas de tempo e distância. Muitos dos tripulantes não os entenderiam, pois só os
dirigentes terranos dominavam a língua ar-cônida.
Pouco importava que um comandante de nave de primeira classe fosse designado
como vere’athor ou como capitão.
Ainda ouvi Rhodan dizer o seguinte:
— Estamos ansiosos para saber por que você está tão bem informado sobre a
tecnologia da navegação hiperespacial dos druufs. Como soube que não transitam, mas
voam na verdadeira acepção da palavra? Atlan, você ainda ouve o que estou dizendo?
Marshall, chame o Dr. Sköldson. Ele está pálido como cera. Ande depressa. Atlan, o que
houve...?
Esforcei-me para esboçar um sorriso tranqüilizador. Minha palidez era perfeitamente
natural, já que a ativação do setor lógico de meu cérebro causava uma grave perturbação
na circulação sangüínea da pele do rosto.
Iniciei meu relato. O presente desapareceu diante de mim. Para meu segundo
cérebro só existia o passado.
Alguém aproximou-se. Era Inkar, comandante do cruzador imperial Paito...
4

— ...de forma que Sua Majestade, o Imperador Gonozal VII de Árcon, houve por
bem fazer do sistema da estrela Larsaf uma base avançada da frota do Grande Império.
Pelo presente ordena-se ao Almirante Atlan, chefe do grupo de cruzadores do setor das
nebulosas, Príncipe de Cristal da estirpe majestosa de Gonozal, que defenda a estrela
Larsaf com todos os meios que estão ao seu alcance e procure evitar que o inimigo não-
arcônida penetre no sistema. Além disso, Sua Majestade ordena pessoalmente ao
Almirante Atlan que promova o desenvolvimento da jovem colônia, na medida em que as
inteligências primitivas estejam dispostas a receber esse tipo de apoio e sempre que as
necessidades bélicas não exijam um tratamento especial. Assinado: Umtar, Chefe do
Planejamento Colonial do Grande Conselho de Árcon.
O comandante do cruzador, muito jovem — na verdade, jovem demais para uma
posição militar tão elevada — deixou cair a faixa de plástico. Acabara de ler em voz alta
as instruções por ele trazidas.
Lá fora, no novo espaçoporto de Atlântida, o cruzador ligeiro Matoni, utilizado no
serviço de correios, já estava sendo preparado para a decolagem. O Capitão Ursaf
recebera ordens de regressar assim que tivesse entregue a mensagem.
Estava de pé atrás de minha escrivaninha, duro como uma estátua. Minha garganta
estava ressequida. O estilo empolado das ordens demonstrava que estas haviam sido
elaboradas no laboratório de matrizes do planeta de cristal. O teor da mensagem atingiu-
me com a força de uma pancada.
O Capitão Tarts — meu mestre, já idoso, que exercia as funções de comandante da
Tosoma, nave capitania da esquadrilha — manifestou sua opinião por meio de um sorriso
malicioso.
— “...na medida em que as inteligências primitivas estejam dispostas a receber esse
tipo de apoio e sempre que as necessidades bélicas não exijam um tratamento especial”
— repetiu em tom zombeteiro. — Será que não têm mais nada a dizer? Onde está o
reforço de naves de guerra e material, solicitado há muito tempo? E o que é feito dos
canhões de conversão, cuja construção só se tornou possível em virtude dos planos
conseguidos pelo Almirante Atlan? Ao que parece, em Árcon já se esqueceram de que a
célebre esquadrilha comandada por Atlan consiste apenas em duas naves e que nem se
pode cogitar da penetração dos metanianos, não-arcônidas, no sistema de Larsaf. “Afinal,
estamos a trinta e quatro mil anos-luz do centro dos combates. Os metanianos têm coisa
mais importante a fazer; não irão interessar-se por esta estrelinha minúscula, cujos
planetas não oferecem o menor interesse científico ou econômico. Os custos do
transporte seriam mais elevados que o valor das mercadorias que poderiam ser retiradas
daqui. Sob o ponto de vista estratégico, a construção de uma base da frota neste setor
representaria um verdadeiro absurdo. Por aqui não há nada para conquistar ou defender.
Além do mais, não dispomos de recursos que nos permitam transformar o terceiro planeta
e especialmente a Atlântida num espaçoporto de reparos. O material de que dispomos mal
e mal é suficiente para a manutenção das poucas máquinas agrícolas que nos restam.
“Como podemos harmonizar estes fatos com a mensagem rebuscada de alguns
membros do Conselho, que dificilmente estão informados sobre as condições aqui
reinantes? Ao que parece, as coisas não andam bem no Grande Império.”
Não fiz nada para aplacar a cólera plenamente justificada de Tarts. Na verdade, em
Árcon já havíamos sido registrados como uma perda. Bastava contemplar atentamente o
jovem Capitão Ursaf para convencer-me de quanto as coisas haviam mudado no império
estelar.
Já pertencia à geração da guerra. Corporificava o tipo do comandante formado às
pressas, do qual se esperava que conseguisse sair são e salvo das primeiras batalhas, a fim
de colher experiências.
Segundo as estatísticas, menos de oito por cento desses homens resistiam ao batismo
de fogo. No entanto, o Império já não se podia dar ao luxo de submeter os tripulantes e os
comandantes das naves à necessária aprendizagem. Isso exigia muito tempo, e o tempo
era escasso.
O número enorme de naves de todos os tipos, perdidas nas lutas, podia ser
substituído pela produção inteiramente robotizada dos Sistemas Solares Unidos. Mas os
seres pensantes, que conduziriam as naves recém-construídas durante o combate, teriam
de nascer e ser treinados depois de atingida a maturidade psíquica e orgânica.
Nossas perdas deviam ser terríveis. A guerra contra os respiradores de metano,
monstruosos seres não-arcônidas vindos das profundezas da Via Láctea, enfraquecera
consideravelmente o Grande Império.
Há cinco anos o grupo de cruzadores por mim comandado participara ativamente
dos combates. Depois de algum tempo, recebi instruções para manter a ordem num
minúsculo sistema solar, situado a trinta e quatro mil anos-luz de distância. Um
funcionário inescrupuloso foi demitido por mim e enviado para Árcon, onde seria
julgado.
Pouco depois, recebi novamente ordens para dirigir-me ao sistema da estrela de
Larsaf, uma vez que os colonos do planeta número II haviam enviado um pedido de
socorro.
Quando cheguei ao sistema e minhas tripulações, experimentadas em muitas lutas,
tiveram de combater um inimigo invisível e irreal, o quartel-general da frota espacial
quase já se havia esquecido de que eu existia.
Antigamente, isso nunca poderia ter acontecido. Mas hoje em dia, tinham de cuidar
de coisas mais importantes. Mandei evacuar o segundo planeta, uma vez que nossos
colonos desapareciam pura e simplesmente. Até então sempre fomos derrotados nas lutas
de defesa que travamos.
Seres terríveis, que não tinham qualquer relação com os respiradores de metano,
aproveitavam um fenômeno tremendo da natureza para atingir seus objetivos. No curso
dos meses, descobrimos que neste setor espacial estava ocorrendo um fato extremamente
raro. Dois universos diferentes, o nosso e um outro, começavam a sobrepor-se nas áreas
periféricas. A diferença entre os dois universos consistia na diversidade das dimensões
temporais. Era um fenômeno tão relativista que mal podia ser interpretado em termos
matemáticos.
Mandei os colonos para casa. Meu grupo de cruzadores foi destruído. Estávamos
diante de uma difícil situação.
Caminhei lentamente em direção às amplas janelas de meu gabinete e lancei os
olhos para a capital de Atlântida. Meu mestre, Tarts, designara o Continente por nós
colonizado pelo meu nome.
Esforcei-me para afastar o gosto amargo que sentia na boca. Não consegui. Os
oficiais de meu grupo de combate que se encontravam presentes mantiveram-se em
silêncio. Imaginavam o que se passava dentro de mim.
O mensageiro sentiu-se obrigado a acrescentar o seguinte:
— Alteza, o Império luta pela sua existência. Ninguém imagina o que está
acontecendo em todos os planetas do Império. A frota está sendo destruída. Já nos vemos
obrigados a colocar povos colonizados a bordo das naves, o que certamente contribui
para baixar o nível do pessoal. Recebi ordens de transmitir-lhe verbalmente que o envio
dos cruzadores ligeiros e pesados e couraçados solicitados é impossível. Temos
necessidade premente de todas as unidades no setor das nebulosas. Talvez possamos
conseguir dez cruzadores ligeiros, mas o senhor mesmo teria de conseguir as respectivas
tripulações. Os homens treinados incumbidos do transporte das unidades teriam de voltar
imediatamente para Árcon.
Virei-me lentamente. O rosto enrugado de Tarts estava estarrecido. Inkar, o
comandante jovem e esquentado do cruzador pesado Paito, trazia uma resposta áspera na
ponta da língua. Fiz um gesto para que se calasse.
— Será que terei de colocar os bárbaros da idade da pedra que habitam este planeta
diante dos controles de artilharia? — perguntei em tom cansado e deprimido. — Ainda
disponho da nave capitania Tosoma e do cruzador pesado Paito. O poder de combate das
duas unidades é bastante restrito, já que as circunstâncias nos obrigaram a retirar alguns
dos mecanismos propulsores das mesmas. Transformamos estes em armas, já que nosso
inimigo não pode ser combatido com canhões comuns. Está na hora de Árcon
compreender que nos vemos diante de uma interseção de duas dimensões temporais
diferentes. E, na outra dimensão, também existem seres inteligentes.
“O perigo representado pelos metanianos é real e compreensível pela inteligência. O
que está acontecendo no setor de Larsaf poderá, um dia destes, atingir toda a Via Láctea.
As forças da natureza estão do lado dos desconhecidos. Dentro de uns trinta dias do
tempo local, o planeta número três estará em oposição ao de número dois. Quando isso
acontecer, estaremos na chamada zona de superposição. Mandei transformar Atlântida
numa fortaleza. Temos boas possibilidades de êxito, desde que recebamos o necessário
apoio.
O comandante do cruzador manteve-se calado. Evidentemente não podia emitir
qualquer pronunciamento sobre o assunto. Era mesmo absurdo apresentar-lhe meus
argumentos. Não poderia modificar os fatos.
Tomei uma decisão.
— Decole imediatamente, Ursaf. Meu relatório dirigido ao Imperador está pronto.
Ordeno-lhe que a mensagem seja entregue a Sua Majestade em pessoa. Não estou
interessado em que uma nota de importância vital seja engavetada por algum funcionário
subalterno. Se dentro de quinze dias, tempo-padrão, não receber nenhuma resposta de
meu venerável tio, abandonarei a colônia Atlântida e retornarei ao sistema de Árcon com
as duas naves que me restam.
No seio da frota, a disciplina era tão rígida que Ursaf nunca se atreveria a ponderar
que estava recusando o cumprimento de uma ordem. Mas não era difícil imaginar o que
estava pensando.
Um brilho sinistro surgiu nos olhos avermelhados de Tarts. Compreendera
perfeitamente. É claro que nunca abandonaria Atlântida, mas na situação em que nos
encontrávamos o único recurso que nos restava era uma ameaça frontal. Ursaf inclinou a
cabeça e colocou a mão direita sobre o peito.
De meu gabinete via a imensidão do mar. O Capitão Feltif, nosso competente
engenheiro, mandara construir a sede de meu governo nas encostas de uma cordilheira
litorânea. Bem abaixo do lugar em que me encontrava, grandes veleiros entravam no
amplo porto por nós construído. Os nativos do terceiro planeta estavam criando uma
civilização própria.
Fiz um sinal para que o mensageiro se aproximasse e chamei sua atenção para o
cenário distante.
— Convém informar o Imperador de que seria uma lástima abandonarmos os frutos
de nosso trabalho. Larsa II, o segundo planeta, teve de ser evacuado às pressas. Cerca de
quatorze mil arcônidas encontram-se neste continente, incluídos os tripulantes de minhas
naves. Fiz o que estava a meu alcance para enfrentar a catástrofe que se aproxima.
Mandem as naves e o armamento solicitados por mim. Dentro de trinta dias, o caso estará
liquidado. Logo após, estarei à disposição do Império com um poderoso grupo de
combate.
Mais uma vez, Ursaf manteve-se calado. Apesar de ser muito jovem; parecia saber
exatamente o que estava sendo planejado no planeta de cristal.
— Até poderei concordar em não lhe tirar seu cruzador novinho em folha —
acrescentei em tom irônico.
O mensageiro esboçou um sorriso de embaraço, e o velho Tarts fungou de surpresa.
— Que idéia! — disse em tom entusiasmado. — Resta saber como é que ele poderia
voltar.
— É justamente isso — disse Inkar em tom indignado. — É uma vergonha! Estamos
aqui com os motores gastos, estaleiros insuficientes e um montão de sucata retirada dos
depósitos de um mundo colonial evacuado. Quando os depósitos de lá foram
reabastecidos, ninguém se lembrou das unidades da frota. Vemo-nos obrigados a realizar
os reparos mais urgentes, em condições extremamente difíceis. Faça o favor de explicar
isso a Sua Majestade.
Ursaf espalmou as mãos, num gesto de submissão. Seria inútil continuar a amontoar
sugestões e recriminações sobre ele.
Tarts entregou-lhe a mensagem destinada a meu venerável tio. Tive um
pressentimento doloroso: provavelmente Ursaf seria o último soldado que Árcon nos
enviaria.
Pouco menos de uma hora depois dessa cena, encontrava-me com meus oficiais no
grande espaçoporto, assistindo à decolagem da Matoni. Era uma nave de cem metros e
possuía um excelente armamento.
Com um rugido, a nave esférica desapareceu no céu azul do terceiro planeta. Mais
uma vez, os nativos radicados em Atlântida cairiam de joelhos e estenderiam as mãos ao
céu, entoando cânticos. Para eles, éramos deuses. Mas tornava-se bastante duvidoso que
esses deuses fossem capazes de defender Atlântida.
Passei os olhos pelos meus oficiais. Assim que tive conhecimento da chegada do
mensageiro, mandei convocá-los.
Seria supérfluo perguntar qual a opinião deles. Já tinha conhecimento de seus
desapontamentos. Eram os velhos rostos, já conhecidos, embora muitos dos meus antigos
companheiros já não estivessem ali.
O Capitão Cerbus, chefe do meu grupo de cruzadores, fora morto durante a primeira
batalha de defesa, há mais de um ano. Com ele, mais de quarenta comandantes e dez mil
especialistas altamente qualificados haviam perdido a vida.
Será que valeria a pena defender esse pequeno sistema solar? Não sabíamos nem
quem seriam os terríveis inimigos!
Ainda havia outras coisas, que nos deixaram mais que perplexos. Depois das duras
lutas travadas no segundo planeta, um robô me entregara um aparelho do tamanho de um
ovo que, segundo suas instruções, deveria trazer constantemente no peito, junto ao
coração.
Não conseguira descobrir de onde viera essa nave dirigida por robôs. Pelo que
diziam, os misteriosos impulsos estimulantes do chamado ativador celular me
confeririam a imortalidade relativa. Não acreditei muito nas informações fornecidas pelo
complicado mecanismo, cujo construtor só deu sinal de sua presença por meio de uma
estrondosa gargalhada. Apesar disso, passei a trazer o objeto metálico no peito. Face ao
reduzido tempo até então decorrido, ainda não pudera constatar se realmente detinha ou
retardava o processo de envelhecimento. De qualquer maneira, sentia-me jovem, ágil e
disposto como antes.
Mas meus problemas pessoais assumiam importância secundária. O que estava em
jogo era a existência de quatorze mil arcônidas, alguns milhões de nativos e uma colônia
jovem, mas admirável.
Atlântida era um continente ilhado, com cerca de dois mil quilômetros de
comprimento. Apreciávamos bastante o clima tropical e o ar puro das regiões mais
elevadas. No espaço de quatro anos, havíamos criado uma colônia-modelo, e chegamos a
transmitir alguns conhecimentos às aldeias situadas ao leste e ao oeste de Atlântida.
Inkar fora por mim designado como chefe das terras do ocidente. Com um sorriso,
comunicou-me que os nativos daquelas bandas fizeram dele uma espécie de rei divino.
Era chamado simplesmente de Inka. E o emblema solar de minha venerável família foi
eleito como sinal da divindade.
No último ano, mais de quinhentos dos meus soldados e colonos haviam solicitado
permissão de casamento. Concedi a permissão, pois vi que aqueles homens deviam
sentir-se abandonados e solitários. Mais do que a situação exigia.
Ao que tudo indicava, os casamentos eram bem feitos, embora Tarts me tivesse dito
várias vezes que, na verdade, eu infringira a lei. Os seres inteligentes do nível B não
deveriam misturar-se com os arcônidas. Fiz referência expressa à cláusula que previa o
estado de necessidade e mandei que as mulheres nativas fossem avisadas dos dispositivos
relativos ao divórcio. Segundo resolução da Divisão de Colonização, qualquer casamento
entre um arcônida e uma mulher terrana perdia a validade jurídica assim que os cônjuges
tivessem que deixar o respectivo planeta.
Tive esperanças de rechaçar o inimigo medonho vindo das profundezas de outra
dimensão temporal e conservar a nova pátria dos meus colonos. Nesse caso, a mistura
com os nativos semelhantes aos arcônidas era permitida e mesmo recomendável. Caberia
aos nossos homens transmitir os necessários ensinamentos às esposas e educar os
eventuais descendentes para a elevada cultura e tecnologia de nosso povo. Dessa maneira,
surgia uma nova raça. Tinha certeza absoluta de que, um dia, essa visão generosa traria
seus frutos.
Se um almirante experimentado era incumbido da administração de todo um
planeta, deveria gozar da maior liberdade de ação.
Um forte uivo trouxe-me de volta à realidade. Uma nave auxiliar do couraçado
Tosoma, de sessenta metros de diâmetro, preparava-se para pousar.
— Acho que esse sujeito ficou louco! — exclamou Tarts em tom de perplexidade.
No mesmo instante, eu e meus oficiais atiramo-nos ao chão, em busca de abrigo.
Esperei até que a onda quente passasse por cima de nós.
Ao levantar a cabeça, vi que a nave caía numa rota insegura e cambaleante, para
bater no solo junto à imensa Tosoma. Era a TO-4, cujo comandante recebera ordens de
realizar um vôo de reconhecimento próximo à órbita do segundo planeta.
Três dos grossos suportes quebraram-se durante a aterrissagem. Era um sinal de que
as instalações antigravitacionais da nave auxiliar não se encontravam em bom estado.
Pousara à maneira antiga, apoiada sobre o próprio raio de partículas, se é que essa quase-
queda ainda poderia merecer o nome de pouso. A TO-4 encontrava-se a pouco menos de
um quilômetro do lugar em que estávamos.
Muito chocado, olhei para o local de impacto.
Usei um planador antigravitacional, para entrar em atividade.
Tarts e Inkar já estavam sentados no veiculo aberto. Sem dizer uma palavra,
levantei-me e entrei. O motorista agiu imediatamente. Antes que pudéssemos dizer uma
palavra, o veículo já corria em direção do local da queda.
O rosto de Tarts estava circunspecto. Quando vimos a gigantesca abertura no corpo
da nave, com as bordas infladas em forma de bolha, compreendemos por que sua
tripulação realizara um pouso tão maluco.
Da comporta de carga inferior da Tosoma, uma nave de oitocentos metros de
diâmetro, já saíam os corpos de aço dos robôs de salvamento. No interior da nave
auxiliar, parecia haver fogo. Era ao menos o que indicavam as nuvens de fumaça negra.
Inkar falou em tom indiferente:
— A nave foi atingida por uma arma térmica; não resta a menor dúvida. Quem a
deixou nesse estado?
Corri em direção da nave. Robôs ágeis penetravam pelas comportas abertas. Apesar
disso, demorou alguns minutos até que aparecessem os primeiros sobreviventes. A
tripulação da TO-4 era de quinze homens.
Aguardamos em silêncio que as máquinas completassem seu trabalho. O
equipamento de extinção de fogo da Tosoma também foi colocado em ação. O incêndio,
que grassava na segunda sala de geradores da nave, foi sufocado.
Só onze dos tripulantes foram resgatados. Três deles estavam mortos, e os outros
haviam sofrido ferimentos leves ou graves.
Esperei até que o médico-chefe da Tosoma me desse um sinal. O Tenente Kehene,
comandante da nave auxiliar, sofrerá queimaduras graves, mas já não estava sentindo
dores. Um banho de plasma logo curaria seus ferimentos. Podia arriscar-me a submetê-lo
a um ligeiro interrogatório.
Ajoelhei ao lado da maça em que estava deitado e deixei cair a capa que embaraçava
meus movimentos. Não era a primeira vez que me via diante de um homem nesse estado.
As queimaduras de seu corpo não eram produzidas pelas armas energéticas.
— TO-4 de volta do vôo de patrulhamento, Alteza — disse Kehene, respirando com
dificuldade. — Mais uma vez, uma frente relativa de energia cobria o segundo planeta.
Mantive a distância de segurança indicada e limitei-me a observar o que estava
acontecendo. Desta vez, o outro plano temporal desenvolvia uma velocidade de quase
cinqüenta quilômetros por segundo, o que representa muito mais do que aquilo a que nos
acostumamos. Estava medindo as diversas fases, quando de repente apareceu a abertura
no espaço.
Um médico aplicou mais uma injeção calmante. A massa plástica do uniforme
estava colada à pele queimada.
Fiquei espantado.
— Uma abertura no espaço...?
— Foi isso mesmo, Alteza — asseverou o jovem comandante. — Parecia um
gigantesco funil cuja abertura se ampliava cada vez mais. O fenômeno se processava
aproximadamente a dez por cento da velocidade da luz. Nos lugares em que se verificava
a ampliação do funil, as estrelas se apagavam. Ficavam encobertas por uma luminosidade
vermelho-escura, que, vez por outra, passava para o preto. Nossos medidores de ondas de
choque registraram ligeiros abalos estruturais, e de repente apareceram.
— Quem? — perguntou Tarts em voz alta e respirando pesadamente.
— Quatro naves espaciais desconhecidas, de formato longo e cilíndrico. Os
rastreadores energéticos registraram a presença de mecanismos de propulsão na base de
impulsos. Obtivemos hiperecos bem nítidos. Isso prova que desta vez não se tratava de
sombras imateriais. As quatro unidades saíram da abertura do funil a que já me referi.
Retirei-me imediatamente a toda velocidade, mas eram rápidas demais... No momento em
que as observei, desenvolviam metade da velocidade da luz, enquanto eu me encontrava
praticamente imóvel, em posição de espera. Abriram fogo com seus canhões térmicos,
que produziram um efeito semelhante ao dos nossos radiadores de impulsos.
“Realizei as manobras de desvio em conformidade com os cálculos de probabilidade
de impacto realizados pelo computador positrônico acoplado aos localizadores
energéticos. Por três vezes consegui desviar-me de suas salvas. Porém atingiram-me num
disparo em ângulo, em plena curva de manobra. A TO-4 ficou avariada na área da
protuberância equatorial. O antígravo e o equipamento de rádio foram inutilizados, tal
qual os propulsores três e um.
“Só escapei porque as três unidades restantes se retiraram subitamente para o
interior do funil. No momento em que batia em retirada, o fenômeno estava
desaparecendo. O vôo de regresso e o pouso foram muito difíceis, Alteza. Metade dos
tripulantes morreu.”
Kehene chegara ao fim das suas forças. Fechou os olhos; parecia esgotado. Foi
levado imediatamente à clínica de bordo da Tosoma. Nossos olhos acompanharam os
robôs médicos, até o momento em que estes desapareceram com o ferido na comporta
inferior da nave-couraçado.
A equipe técnica da nave capitania já se encontrava diante do que sobrara da nave
auxiliar tão preciosa. A Tosoma só levara a bordo quatro naves desse tipo. A TO-4 era a
única que ainda estava intacta.
Lembrei-me de Grun, um físico e matemático genial, que há cerca de um ano
mandara para Árcon documentos extremamente importantes, relativos a uma nova arma.
Naquela oportunidade, manifestara a opinião de que haveria de chegar o dia em que
seriam verificadas uma estabilização temporária e uma superposição constante das áreas
periféricas dos campos temporais.
Não julguei necessário esperar pelos técnicos, pois imaginava perfeitamente o que
estes encontrariam nos instrumentos da pequena nave. As suposições de Grun se haviam
confirmado. E agora tínhamos de conformarmo-nos com esse fato. Foi justamente por
isso que solicitei os reforços.
Se, daqui em diante, o inimigo estivesse em condições de penetrar no nosso
Universo sem recorrer a qualquer dispositivo técnico especial, poderia perfeitamente
haver uma batalha regular. Minha nave, a Tosoma, pertencia às unidades mais antigas de
sua classe. Durante as batalhas no setor das nebulosas recebera maior número de
impactos do que uma nave geralmente pode suportar.
O cruzador pesado de Inkar era de construção recente. Pertencia à grande classe dos
quinhentos metros da série Fusuf. Essas naves me permitiriam derrotar povos inteiros,
desde que estes não se encontrassem em nível intelectual superior ao grau G.
Mas agora via-me com os restos de uma esquadrilha diante de um inimigo cuja
técnica espacial apresentava várias novidades. Era engenheiro de energia de alto grau.
Por isso podia imaginar perfeitamente o que significava o fenômeno observado pelo
Tenente Kehene. Se as naves desconhecidas conseguiam sair do hiperespaço
superdimensional sem provocar grandes abalos estruturais, seus construtores possuíam
uma tecnologia de vôos à velocidade superior à da luz bem mais simples que a nossa.
Mas ainda restava conhecer a interpretação dos dados colhidos na TO-4.
Tarts mantinha-se rígido à minha frente. Seu rosto estava transformado numa
máscara.
— Tem alguma ordem, Alteza?
— Para você continuo a ser Atlan, amigo — disse em tom distraído. A seguir,
contemplei meu corpo de oficiais. Todos estavam presentes, e apresentavam aquele brilho
peculiar nos olhos.
Mais à esquerda, a gigantesca Paito repousava sobre as colunas de suporte que antes
pareciam torres. Era um verdadeiro milagre eu ter ficado justamente com as duas
unidades mais poderosas de minha esquadrilha. Não poderíamos contar com qualquer
auxílio de Árcon; teríamos de agir imediatamente. Meus experimentados oficiais
aguardavam ordens.
Meu olhar caiu sobre Kosol, o novo chefe da divisão matemática. Ao lado dele, vi o
Capitão Feltif, elaborador de projetos de colonização. Fora ele quem criara as oito
posições de defesa em Atlântida. Os propulsores retirados dos cruzadores Titsina e Volop
haviam sido transformados em armas estacionárias de impulsos da quinta dimensão.
Nos grandes continentes situados a leste e oeste de Atlântida, os especialistas
haviam construído castelos de pedra, silos em forma de pirâmide e outros alojamentos de
emergência. Se houvesse um ataque, os nativos inteligentes seriam evacuados da zona
equatorial.
Os veículos aéreos estavam de prontidão para, se necessário, retirar as guarnições
das posições de artilharia das zonas que, segundo se esperava, seriam atingidas pela
superposição dos planos temporais. Uma cúpula submarina fora construída para os
colonos arcônidas de Atlântida. Lá, se necessário, dez mil pessoas poderiam ser abrigadas
por um breve espaço de tempo. No segundo planeta do sistema de Larsaf, constatamos
que os peixes e outros animais aquáticos não foram atingidos pela frente relativista, desde
que se encontrassem a grande profundidade. Para nós, essa descoberta era muito valiosa.
Mas os preparativos previam apenas uma passagem normal da frente de ondulações.
Se o inimigo desconhecido conseguisse penetrar em nosso espaço, a situação seria bem
mais grave. Nesse caso, ocorreria uma luta de vida e morte.
Voltei a contemplar a parede parcialmente derretida da nave auxiliar. Depois dirigi-
me às pessoas que me cercavam.
— A Tosoma e a Paito ficarão de prontidão, com os comandantes a bordo.
Realizaremos um vôo armado de reconhecimento nas proximidades da órbita de Larsa II.
Feltif, envie seus comandos de superfície às respectivas posições de combate. Ligue os
canhões de impulso em ponto morto. Tarts, prepare o envio de uma mensagem dirigida a
Sua Majestade; o texto será fornecido oportunamente. Os nativos serão evacuados.
Infelizmente, as famílias terão de ser separadas, sempre que os cônjuges arcônidas sejam
tripulantes das naves ou pertençam às guarnições de artilharia.
Vi Inkar, o jovem comandante, estremecer quase imperceptivelmente. Vivia num
casamento feliz, motivo por que a ordem que acabara de receber constituía uma dura
provação para ele.
— Os colonos arcônidas devem ser avisados a fim de que se preparem para uma
fuga que os levará a zonas desertas. O quartel-general será transferido imediatamente
para a cúpula pressurizada submarina que será preparada pela equipe de engenharia.
Olhei para o relógio. Passava do meio-dia. Sobre o amplo espaçoporto, o sol branco-
amarelado do sistema estava no zênite. Era um belo mundo, semelhante a Árcon, que
reunia todas as condições para um belo desenvolvimento. Naquele instante, estava
decidido a defender o terceiro planeta com todos os meios a meu alcance.
— Decolaremos dentro de uma hora — ordenei. — Os resultados das medições
realizadas pelos instrumentos da TO-4 me serão apresentados imediatamente.
Levantei a mão a título de cumprimento. Os oficiais limitaram-se a inclinar a
cabeça. Já fora dito — tudo que pode ser dito — numa ocasião como esta.
Tarts, que também era chefie do estado-maior, acompanhou-me até o carro. Aquela
figura alta parecia um símbolo de força e determinação. Depois de ter recebido o
tratamento biológico de rejuvenescimento seu passo voltara a ser firme e elástico.
No momento em que pretendia entrar no veículo, disse:
— Nossas chances estão num ataque rápido e fulminante, Atlan! Se esperarmos até
que saiam do funil de superposição, estaremos perdidos. Será fácil desviarmo-nos de uma
frente temporal normal, face à sua reduzida velocidade.
— Foi justamente por isso que dei ordem para decolar — confirmei. — Apenas
receio que ambos os fenômenos se verifiquem ao mesmo tempo. De qualquer maneira, as
naves insubstituíveis deverão estar nas profundezas do espaço, caso durante a oposição
dos dois planetas se verificar uma superposição. Por enquanto, estou interessado em ver
os resultados das medições realizadas pela nave auxiliar. Aguardemos.
Quando decolamos, sabíamos que estávamos indo de encontro ao destino. Estava
decidido a avançar pelo anel de estabilização, houvesse o que houvesse, e lançar um
ataque devastador do lado oposto.
Os maravilhosos edifícios de Atlópolis, capital de Atlântida, erguiam-se à nossa
frente. A cidade era um centro comercial e cultural dos colonos espalhados por uma vasta
área.
Nossos veículos soaram as sirenas para abrir caminho. Os nativos, que vestiam
roupas coloridas, feitas à mão, ajoelharam-se. Senti-me constrangido ao ver as criaturas
inteligentes deste mundo numa posição de devotamento exagerado.
Tarts e os homens do comando de colonização também não gostavam do modo
devoto dos nativos.
O velho comandante disse em tom contrariado:
— Devíamos tentar aperfeiçoar os indivíduos mais inteligentes dessa raça por meio
de um treinamento hipnótico rápido. Dessa forma, ficaremos sabendo se o volume
espiritual dos mesmos já é suficiente para compreender nossa tecnologia.
Limitei-me a fazer um gesto irônico. Meu velho espadachim parecia transformar-se
num homem pacato. Tarts já pertencera à classe dos arcônidas que, ao pousarem num
mundo estranho, mandavam preparar os canhões antes de dizer bom dia.
— Isso já foi providenciado — respondi.
— Ah!
Diverti-me com o rosto perplexo de Tarts. Enquanto subíamos a larga estrada em
espiral que levava ao meu palácio administrativo, notei que examinava atentamente os
nativos que trabalhavam nas plantações. Aqueles homens altos e morenos eram
fisicamente robustos e ágeis. Só os primeiros ensaios com o aparelhamento ultra-secreto
de ensino hipnótico rápido diriam se seus cérebros também eram bem desenvolvidos.
No espaçoporto, que já ficava longe, ouviu-se um trovejar. Os mecanismos de
propulsão da gigantesca Tosoma produziam um anel fogoso representado pelas massas de
ar superaquecido. Se possuísse dez naves desse tipo, eu me sentiria mais à vontade.
Dali a quarenta minutos, os resultados das medições efetuadas pela nave do Tenente
Kehene me seriam transmitidos pelo videofone. O computador positrônico da nave
capitania realizara um trabalho rápido e preciso.
Kosol, o novo matemático-chefe, estava no aparelho.
— Alteza, é um fenômeno natural que deve repetir-se a cada cinco bilhões de anos.
As duas dimensões temporais tendem para uma estabilização recíproca. Daí resulta uma
descarga energética dos volumes dimensionais submetidos a uma tensão mais intensa. Os
funis de saída representam campos energéticos instáveis de grande extensão. Através
deles, atinge-se uma igualização dos vários fluxos. Na prática, exercem as funções de
condutor. É bem possível que os desconhecidos tenham conseguido a interpretação
matemática dos fatos e os aproveitado para as finalidades que têm em vista. O rápido
avanço das quatro naves espaciais prova que o momento adequado foi perfeitamente
determinado. E, ao que parece, sabiam quando estava na hora de voltar.
— Quais são as perspectivas para o futuro? — perguntei.
— Para nós, não são nada boas, Alteza. Dentro de quinze dias, aproximadamente,
será atingido o estágio de estabilização total. Devemos contar com o fato de que a
situação, ainda instável, se manterá constante durante várias semanas ou até meses.
Foi só o que Kosol tinha a informar. Agradeci e desliguei. Tarts manteve-se
pensativo junto às grandes janelas de meu gabinete. Estávamos a sós.
— Temos duas possibilidades — disse com a voz pausada. — Se fugirmos
imediatamente, neste mundo não acontecerá um inferno atômico, mas os seres que vivem
aqui desaparecerão por completo. Com isso, a evolução natural sofrerá uma interrupção.
Se resistirmos, o resultado talvez seja favorável. Talvez, veja bem! Mas, conforme as
circunstâncias, o número três se transformará numa fornalha.
Quando dei minha resposta, fitou-me em atitude pensativa:
— Era o que eu estava pensando, Tarts. Assumirei o risco. Mesmo que metade deste
mundo seja destruída, ainda sobrará espaço vital para salvar as inteligências deste planeta
da destruição. Faremos o possível para rechaçar o inimigo.
Tarts manteve-se em silêncio. Sua mão pesada bateu ruidosamente no lado esquerdo
do peito. Em atitude rígida e com o radiocapacete de comandante enfeitado com os
símbolos planetários sob o braço, caminhou em direção à porta.
Dali a vinte minutos, anunciou, de bordo da Tosoma, que a nave capitania estava
pronta para decolar.
Quando saí do edifício-sede do governo, a Pai to já subia ruidosamente ao céu azul
de Atlântida. Lá embaixo, no grande porto natural do continente, os pescadores e
mercadores nativos recolheram apressadamente as velas coloridas de seus navios de
madeira. Já haviam feito experiências nada agradáveis com as ondas de compressão
provocadas pela subida das grandes naves espaciais.
Na comporta inferior da Tosoma fui recepcionado com todo o cerimonial da frota.
Tarts fazia muita questão do formalismo. Dali a três minutos, os conversores de impulsos
dos quinze propulsores que nos restavam foram acionados cautelosamente. Ao
decolarmos, provocamos o ruído de uma irrupção vulcânica.
À nossa frente, abria-se o espaço livre. O terceiro planeta foi recuando e logo se
transformou numa bola reluzente.
Em virtude da transformação de três unidades propulsoras em armas
superdimensionais, levamos quase treze minutos para atingir a velocidade da luz. Com
isso, a velha Tosoma já não tinha o desempenho que seria de esperar de uma moderna
nave espacial.
Seguimos diretamente para Larsa II, o segundo planeta do sistema. Pelas
informações que me haviam sido fornecidas, aquele mundo selvático não fora privado
apenas da vida humana, mas também de boa parte da vida animal. Durante as repetidas
passagens da frente relativista, esses seres foram arrastados para a outra dimensão
temporal.
Não estávamos interessados em assistir à repetição de tal fenômeno em Larsa III.
5

Foi tudo muito diferente do que imaginávamos. Os fenômenos de descarga


energética, que o matemático Kosol chamara de funis de saída, eram imprevisíveis.
Quando surgia um fenômeno desse tipo, nunca sabíamos exatamente qual era sua direção.
O computador positrônico de bordo era uma das unidades mais modernas e
avançadas do Grande Império. No entanto, não conseguiu estabelecer intervalos
determinados ou obter dados aproximados sobre a constância dos fenômenos de descarga
energética.
Precisaríamos de dados que abrangessem um período mais prolongado; só assim
poderíamos obter resultados fundamentais, mais exatos.
A matemática a que estávamos habituados, e que jogava com os dados da quarta
dimensão, não nos levava a lugar algum. Um aumento proporcional ao quadrado da
superposição total, que se aproximava, era facilmente programável no computador
positrônico; no entanto, os resultados nunca coincidiam com a realidade.
Procuramos valer-nos do setor de hipercomputação do cérebro positrônico. Os
resultados foram tão extravagantes que nem valeria a pena discuti-los.
Ultimamente, havíamos apurado que os funis de saída eram um fenômeno de
descarga semelhante a um relâmpago, que se processava de maneira diferente e estava
submetido a leis totalmente diversas.
Não estávamos lidando com as unidades do plano da quinta dimensão, mas com as
que se baseavam no Universo normal. Os fatores variáveis só poderiam corresponder a
um deslocamento de tempo relativista e incompreensível no âmbito de nosso sistema, que
se realizava no curso de um processo de igualização e sempre assumia um caráter mais
ou menos instável.
O inimigo desconhecido dispunha de uma vantagem natural: conhecia as leis da
dimensão temporal em que vivia.
E nós tateávamos no escuro.
Depois de termos permanecido no espaço durante oito dias, quando nos limitamos a
fazer observações, suas naves espaciais saíram pela segunda vez do estranho campo de
descarga energética.
No último instante, resolvi não iniciar as hostilidades.
Ficamos a uma boa distância, observando um acontecimento que nos proporcionou
uma lição muito importante.
Quando as naves desconhecidas surgiam repentinamente quase nunca havia os
abalos estruturais que acompanhavam inevitavelmente nossa técnica de vôo à velocidade
superior à da luz. Minha divisão matemática calculara que os desconhecidos voavam pela
quinta dimensão, na verdadeira acepção da palavra. Havia uma diferença considerável
entre essa técnica e o método de saltos por nós praticado, também conhecido como
transição.
Além disso, as naves espaciais que avistamos nunca desenvolveram mais de
cinqüenta por cento da velocidade da luz, muito embora nossos rastreadores energéticos
houvessem constatado que unidades propulsoras deles trabalhavam a plena potência.
Ainda se constatara que os seres misteriosos só apareciam quando um funil de saída
de sua dimensão temporal se mantinha estável ao menos por três horas.
Provavelmente esta foi a descoberta mais importante que já fizéramos. O inimigo
sabia perfeitamente quando podia confiar nesse fenômeno energético e quando não podia.
Nesses oito dias, havíamos colhido experiências muito proveitosas. Ao que tudo
indicava, em nosso espaço o inimigo conseguia desenvolver apenas metade da velocidade
da luz. Além disso, dispunha de uma técnica de hipervôo linear, e sabia calcular a duração
dos campos de força afunilados.
Eram três dados fundamentais em que poderíamos basear nossos planos. Se
dispusesse de uma boa frota arcônida, tudo aquilo terminaria dentro de poucos dias.
Poderia arriscar-me a mandar alguns couraçados, dirigidos por robôs, atravessarem o
primeiro canal de descarga energética que aparecesse. Nesse caso, poderíamos verificar o
desempenho de nossas armas do outro lado.

***

Desde o momento em que realizamos a decolagem de emergência, onze dias de


Atlântida já se haviam passado. Minhas duas unidades mantinham-se a dez milhões de
quilômetros do segundo planeta. Os excelentes dispositivos de ampliação de nossos
televisores permitiam uma visão clara através da densa camada de nuvens do mundo
selvático.
A vida orgânica praticamente desaparecera lá embaixo.
O centro de computação, construído ao tempo da minha regência e instalado em
Larsa II, não parecia ter sofrido o menor dano. Seus relatórios eram enviados pelo hiper-
rádio assim que o solicitávamos. Mas os resultados das medições não traziam nenhuma
novidade. As fortalezas, que mandaram construir para proteger a grande unidade de
computação, ainda não haviam entrado em atividade.
— Por falta de massa! — disse Tarts em tom zangado ao receber essa informação.
Até então, o terceiro planeta não fora atingido pelos estranhos fenômenos. Mas os
mundos dois e três aproximavam-se a cada dia que passava. A posição de oposição
integral estava iminente. E, durante esta, seríamos atingidos pelo menos pela periferia da
parede do tempo.
Em atitude pensativa, contemplei as gigantescas telas da galeria panorâmica. A Paito
encontrava-se a menos de cem quilômetros. Podíamos perfeitamente manter contato pelo
rádio comum. A velocidade desenvolvida por nós era de apenas dez mil quilômetros por
segundo. No entanto, os postos de manobra da sala de máquinas contavam com uma
tripulação dobrada.
Aguardávamos o surgimento do próximo funil de saída. Meu plano já fora
estabelecido. Assim que localizássemos unidades inimigas, realizaríamos uma transição
de curta distância para avançar até a periferia do campo de descarga energética. Então
penetraríamos de surpresa no campo. Em hipótese alguma, deveríamos permanecer na
outra dimensão temporal por mais de uma hora, tempo-padrão. A suposição de que,
depois do desaparecimento do funil, o retorno à nossa dimensão temporal seria
impossível, tinha bons fundamentos. Ao que tudo indicava, os desconhecidos
enfrentavam as mesmas dificuldades, pois também mudavam de rumo e batiam em
retirada assim que se aproximavam do tempo-limite.
Com uma sensação de saudade, fitei o pontinho luminoso distante e praticamente
irreconhecível, que na verdade representava um grupo de estrelas. Era lá que ficava
Árcon, nosso mundo. E lá se travava uma luta encarniçada pela existência do povo
arcônida e do Grande Império.
Há muito tempo não recebíamos notícias. A mensagem que mandei expedir pelo
rádio, ficara sem resposta. Há muito abandonara a esperança de receber reforços em
naves e material de reposição. Assim que estivesse resolvida a questão dos
desconhecidos, eu me colocaria à disposição do comando da frota. Mas, para isso, seria
necessário que recebesse ao menos uma nave de grandes dimensões. Não poderia arriscar
novas perdas, pois isso poderia impedir para sempre nossa volta a Árcon.
Estava a ponto de discutir com Tarts as várias alternativas, quando o operador de
rádio entrou na sala de comando. Segurava uma faixa de plástico com séries de
algarismos decodificados.
O Capitão Masal me prestou as devidas honras, sem dizer uma palavra.
— Novos problemas, Alteza — disse em tom hesitante. — São notícias de Feltif. Os
colonos recusam-se a abandonar suas fazendas. Fundamentam a recusa no argumento de
estarem submetidos à legislação civil da Divisão de Colonização, não às ordens de um
almirante da esquadra. Além disso, Feltif informa que nossos colonos tomaram
providências para, no caso de um ataque, reforçar as posições de artilharia cujas
guarnições estão desfalcadas em número.
Respirei profundamente. Aqueles homens eram arcônidas de segunda categoria.
Vinham do Planeta Zakreb V, que fora colonizado por genuínos arcônidas. Seus
descendentes tiveram de emigrar de novo, porque esse mundo colonial começava a sofrer
os efeitos da superpovoação.
— Eles se recusam a abrigar-se na cúpula pressurizada submarina? — perguntou
Tarts em tom de perplexidade.
— Isso mesmo. Sentem uma profunda repugnância pela água e pela carência de
espaço.
Peguei a mensagem decodificada. O texto era claro. Ao dar minhas ordens, não me
lembrara de que os colonos provinham de um mundo de terra. Sob o ponto de vista da
psicologia colonial, fora um erro mandar que se recolhessem à cúpula submarina.
— Você vai ceder?
Fitei Tarts com a frieza que se impunha. A decisão teria de ficar por minha conta.
— Quer que toque os zakrebenses à força para baixo do nível do mar? Em caso
afirmativo, de que meios disponho para fazê-lo? Os tripulantes de nossas naves, ou os
trezentos soldados das forças de superfície?
O comandante estreitou os lábios. A cólera brilhava em seus olhos. Para Tarts,
aquilo não passava de alta traição. Ignorava nossa fraqueza.
Face ao reduzido grau de automação, a Tosoma precisava de uma tripulação de três
mil homens. A Paito, que era mais moderna, podia operar com seiscentos especialistas. O
resto dos meus soldados ocupava as posições atlântidas. Seria insensato procurar forçar
os colonos obstinados.
Dirigi-me ao Capitão Masal.
— Expedir mensagem ao Capitão Feltif, código A-13-BQ condensado. Os colonos
devem ser informados de que no caso de um ataque a evacuação já não será possível.
Face às tarefas de importância vital que estou executando, e que visam em última análise
à salvação de um mundo, não poderei conceder qualquer auxílio. Os colonos poderão agir
da forma que melhor lhes aprouver. Mas ressalvo, desde logo, que não assumo a menor
responsabilidade pelo que venha a acontecer.
Dali a alguns minutos, foi irradiada a mensagem condensada. O Capitão Feltif
confirmou o recebimento. A seguir, recebemos a notícia de que o Conselho dos Colonos
aceitara minha proposta com a maior satisfação.
Entreguei a mensagem ao imediato do couraçado. Meu sorriso devia representar um
sorriso de esfinge para os tripulantes.
— Arquivar e armazenar na memória do computador positrônico. É bem possível
que, mais tarde, alguém queira saber por que dez mil colonos zakrebenses morreram.
— São campônios! — disse Tarts com um pouco de desprezo. — São camponeses
tolos e atrevidos, desajeitados e arrogantes, cujo horizonte mental não vai além do reator
atômico mais próximo.
Com isso, o caso ficou encerrado para o velho capitão. Estava certo de que Tarts não
mexeria um dedo para ajudar os colonos. Quanto a mim, não tinha tempo nem vontade
para ocupar-me com assuntos internos.
Os nativos de Larsa III foram muito mais inteligentes. Talvez isso fosse devido à sua
condição primitiva, que fazia com que vissem, nas minhas ordens, um comando a que
não poderiam escapar. De qualquer maneira, o fato poderia representar a salvação de
muitos deles; talvez de todos. Tinha uma simpatia especial para aqueles seres altos e
robustos, de pele de veludo e comportamento calmo, jamais turbulento. Não me lembrava
de qualquer povo colonial com o qual me tivesse dado tão bem. Um belo dia, aqueles
seres seriam grandes e poderosos. Não me cabia apressar a evolução natural, mas
competia-me defender o mundo dessa gente.
Pedi ao imediato que me apresentasse o respectivo artigo da lei colonial. De acordo
com tal parâmetro, eu estava obrigado a dispensar a proteção do Império a qualquer raça
amiga.
No curso das minhas reflexões, ainda decidi avisar o inimigo desconhecido sobre as
minhas intenções, segundo todas as regras do protocolo.
Masal apareceu na gigantesca sala de comando. Ditei a declaração de guerra, nos
termos do artigo 16, volume 2 da legislação de emergência, aplicável aos comandantes de
frota que operassem fora dos limites do Império.
Mandei expedir a mensagem, em texto não codificado, a intervalos de dez minutos.
No momento em que o próximo funil de saída apareceu numa distância de apenas cinco
milhões de quilômetros, mandei que a mesma comunicação fosse irradiada pelas antenas
direcionais da Tosoma para o centro da zona de descarga energética. Com isso, fizera
tudo que estava a meu alcance. Além disso, o ataque à nave auxiliar comandada por
Kehene só podia ser interpretado como um ato de guerra.
O campo de descarga desapareceu dentro de quatorze minutos. Pertencia à classe
dos fenômenos instáveis de curta duração, cujo tempo de vida não podíamos calcular.
Lancei um olhar para o relógio e refleti sobre se não seria conveniente suspender
por uma hora o regime de prontidão. Meus homens estavam exaustos.
Foi quando aconteceu o inesperado. Um segundo funil de saída surgiu menos de
cinco minutos depois do desaparecimento do primeiro.
Apesar do perigo ligado ao fenômeno, fiquei fascinado. A figura surgiu em pleno
espaço vazio, e a extremidade menor devia começar na área onde se verificava a
superposição dos dois universos.
O funil era, ou ao menos parecia ser, comprido e estreito. As medições,
imediatamente iniciadas, revelaram que, no ponto mais estreito este ainda media seus seis
milhões de quilômetros de diâmetro.
Tornou-se cada vez mais nítido, à medida que ia sendo carregado de energia vinda
do outro plano temporal. Alargava-se na parte superior, onde o diâmetro da abertura
chegava a mais de trinta milhões de quilômetros. A luminosidade vermelha do funil
destacava-se nitidamente contra o negrume do espaço interestelar. Parecia possuir certo
grau de materialização, pois encobria as estrelas distantes e absorvia ou refletia a
luminosidade das mesmas.
A abertura do funil apontava em nossa direção, num ângulo de 43,7463°.
Estava mais ou menos coberta por uma luminosidade vermelha. Dali a alguns
segundos, o alarma começou a soar. Estremeci.
As telas acopladas aos rastreadores de matéria mostravam sete pontinhos verdes.
Uma curva-diagrama iluminou-se, fornecendo dados sobre a composição química dos
objetos localizados.
Dali a dez segundos, tínhamos certeza: as naves espaciais do inimigo acabavam de
aparecer.
Dali a mais dez segundos, nossa viagem de observação foi suspensa e as unidades
propulsoras começaram a trabalhar a plena potência.
Bati violentamente na chave que desencadeava o alarma de primeiro grau. No
momento em que as sereias começaram a uivar, os três mil homens que se encontravam a
bordo da Tosoma sabiam que chegara o momento de luta, para o qual haviam sido
treinados milhares de vezes.
Se desta vez os desconhecidos resolveram enviar sete unidades ao nosso espaço, não
poderia haver a menor dúvida de que o funil de descarga, que tínhamos à nossa frente, era
estável.
Dali em diante, o trabalho passou a ser feito pelos autômatos. Ouvi o ruído forte das
unidades propulsoras, examinei as luzes de controle dos postos de armamentos e
verifiquei o volume de energia dos campos de absorção, que trabalhavam a plena
potência.
Uma vez que três das nossas unidades propulsoras não podiam ser utilizadas,
mandei as quinze restantes trabalharem em regime de emergência. Os tanques do material
de funcionamento haviam sido completados em Atlântida. Trabalhávamos com o
bismuto, substância encontrada em grandes quantidades em Larsa III. Dessa forma,
conseguimos, apesar de tudo, alcançar uma aceleração de 500 km/seg 2, no campo de
velocidade sub-relativista.
A periferia do funil ficava a menos de dezenove milhões de quilômetros. Onze
minutos e três segundos depois da primeira localização, já dispúnhamos dos resultados do
cálculo-relâmpago, que seriam introduzidos no dispositivo automático incumbido da
transição a curta distância.
No momento em que dei o impulso, as naves desconhecidas nos localizaram.
Registramos o impacto das hiperondas, que seriam captadas pela nave emissora sob a
forma de ecos.
Ao que tudo indicava, o inimigo usava outro processo, menos satisfatório, ou então,
a demora decorria de algum efeito físico-relativista causado pelo deslocamento das
dimensões temporais. De qualquer maneira, nossa localização foi imediata. E, só agora,
os desconhecidos ficaram sabendo que nas imediações havia duas naves de guerra de
grandes dimensões, cujas armas ofensivas e defensivas eram de tamanho desproporcional
face às da pequena nave auxiliar.
— ...e agradecemos ao Imperador por ter-nos proporcionado esta dádiva! — disse
Tarts, recitando uma fórmula.
Segundo uma tradição vetusta, antes de qualquer combate o comandante dizia estas
palavras para dentro do microfone do sistema de intercomunicação. Era tudo muito
solene e estimulante. Se Tarts não tivesse dito estas palavras, todos sentiriam falta de
alguma coisa.
No momento em que o hipercomputador positrônico transmitiu o impulso para o
salto, desenvolvíamos oitenta e dois por cento da velocidade da luz. Face a seu maior
poder de aceleração, a Paito já se havia aproximado a vinte mil quilômetros.
Seguiu-se a ligeira dor de desmaterialização provocada pela transição. Ainda ouvi o
uivo característico dos geradores de campo estrutural.
Depois perdi os sentidos.
6

Minha poltrona de comando estava sendo sacudida violentamente. Depois de alguns


segundos, recuperei os sentidos. Movi uma chave que fez parar o vibrador automático.
Na sala de comando da Tosoma uma centena de violentas trovoadas parecia rugir ao
mesmo tempo. As armas do costado verde disparavam num ritmo alucinante.
Naturalmente, a computação positrônica de direção de fogo, automaticamente ajustada,
percebera os alvos muito mais depressa que nós e iniciara o compasso das salvas.
Quando voltei a enxergar claramente, m notei que saltáramos para o centro do grupo
inimigo. As sete unidades foram tomadas de surpresa.
Antes que pudesse gritar minhas ordens para dentro dos microfones, a bateria do
costado verde já iniciara o bombardeio de destruição. Os raios energéticos de vários
metros de diâmetro não puderam ser vistos no espaço, em virtude da falta de um
elemento de apoio. Mas ouvia os sinais acústicos da localização energética que
funcionava em velocidade superior à da luz, e que anunciou uma irrupção nas imediações
do lugar em que estávamos. Dali a alguns segundos, a luz nos atingiu.
Nas telas panorâmicas, dois sóis atômicos apareceram simultaneamente. Os
pontinhos transformaram-se em bolas de dez centímetros e estas incharam,
transformando-se em gigantescas esferas incandescentes.
— Alvo 1 atingido, alvo 4 atingido — anunciou a voz metálica do autômato da
direção de fogo.
Pelos indicadores luminosos vi que as torres de canhões estavam girando.
Disparamos com todas as peças de que dispunha a nave. Mais uma nave inimiga
dissolveu-se em poeira fluorescente sob o efeito dissociativo de moléculas produzido
pelos canhões de desintegração. A tela do rastreador registrou o fenômeno apenas sob a
forma de uma impressão em relevo.
Tarts ligou o controle manual. Os acontecimentos se sucediam com tamanha rapidez
que o olho humano não conseguia acompanhá-los.
Em velocidade vertiginosa atravessamos a formação inimiga. À nossa frente abria-
se o funil vermelho. Não tivemos tempo de combater outras unidades inimigas. Nossas
rotas eram opostas, motivo por que a batalha não poderia durar mais que alguns
segundos.
Notei mais duas explosões, sem dúvida provocadas pela Paito, que encontrava-se
por perto. Concluía-se que, num único ataque fulminante, o inimigo perdera cinco
unidades de um total de sete.
Percebi que, em matéria de técnica estratégica, os desconhecidos ficavam muito
atrás dos arcônidas. Talvez, mais tarde, aprenderiam conosco, da mesma forma que todos
os nossos inimigos haviam aprendido...
A localização de disparos emitiu um sinal. Ouvimos um ligeiro estalo, que quase
chegou a ser superado pelo ruído trovejante das nossas unidades propulsoras, que
continuavam a funcionar a plena potência. Os instrumentos mostravam que nosso campo
defensivo triplicado acabara de ser atingido por um raio térmico. O resultado foi
praticamente nulo. Com uma arma desse tipo, não se poderia lutar contra uma nave de
grandes dimensões como a Tosoma.
Tarts soltou uma estrondosa gargalhada e disse:
— Eles têm campos defensivos fraquíssimos e armas ainda piores. Eu...!
Suas palavras mergulharam num terrível rugido. Acabáramos de penetrar naquilo
que Kosol chamara de campo de descarga. Nossos campos defensivos magnéticos,
hipergravitacionais e gravomecânicos começaram a chispar fogo. Podíamos observar o
fenômeno nas telas de visão ótica comum; era um sinal de que lá fora havia partículas de
matéria.
À medida que nos aproximávamos do ponto mais estreito do funil, o ruído
aumentou. As unidades energéticas da Tosoma funcionavam a toda capacidade.
O dispositivo automático desligou todo o aparelhamento que não fosse essencial à
defesa da nave.
Nas telas, só se notava uma ondulação vermelha. Estávamos assumindo um risco
imenso ao penetrar nessa área terrível a uma velocidade próxima à da luz. Não se via
mais as duas naves inimigas que haviam escapado ao ataque. A esta hora, talvez estariam
realizando a manobra de frenagem. Provavelmente, o susto ainda paralisava os membros
dos comandantes, desde que estes possuíssem membros.
As informações vindas dos diversos setores da nave atropelavam-se. Perto de mim,
Tarts estava sentado na poltrona de comando. Movia os lábios, mas o ruído incessante
não permitia que eu compreendesse suas palavras. Houve descargas desagradáveis nos
campos defensivos, que abalaram a Tosoma até a última junta soldada.
O dispositivo automático de nossos trajes espaciais colocou o capacete sobre nossas
cabeças e fechou os protetores de ruído, acolchoados, em cima de nossos ouvidos. Ao
mesmo tempo, a comunicação de rádio foi ligada.
Já pensava que arriscara demais ao penetrar no nada, quando o ruído cessou de um
instante para outro. A incandescência dos campos defensivos desapareceu
instantaneamente e um grande sol vermelho surgiu à nossa frente.
Até parecia que depois de uma transição estávamos saindo do hiperespaço, nas
proximidades do sistema desconhecido; mas a impressão era ilusória. Logo notei a falta
do profundo negrume que costuma impregnar nosso Universo. Ali tudo parecia envolto
numa luminosidade vermelho-escura. As constelações estelares eram totalmente
estranhas e, nesse plano temporal, o deslocamento à velocidade da luz parecia ter algo de
assustador.
Voávamos muito mais depressa em direção ao sol vermelho do que era de esperar.
Ouvi os comandos de Tarts. Cabia-lhe levar o couraçado para fora da zona de
perigo. Nossos rastreadores de matéria indicaram a existência de três planetas situados
nas imediações. A interpretação foi realizada com uma rapidez que nem mesmo nosso
excelente computador positrônico jamais havia demonstrado.
O ruído das nossas unidades propulsoras cresceu ao infinito. Ao que tudo indicava,
Tarts lançara mão das últimas reservas. Para realizar a manobra de desvio, lançamos mão
dos combustores adicionais de plasma, que proporcionaram um empuxo suplementar de
oitenta mil toneladas.
A Paito aproximou-se velozmente, vinda de trás. Vi que também estava sendo
arrancada da rota perigosa pela potência máxima de suas máquinas. Quando passamos
pela estrela vermelha, notamos mais uma vez as violentas descargas em nossos campos
defensivos bem abertos.
O contato de hiper-rádio com a Paito foi conseguido com tamanha rapidez que logo
me dei conta de que nossa teoria sobre as diversas dimensões temporais fora confirmada.
Durante essa manobra arriscada, havíamos levado algo que só poderia ser avaliado por
um padrão relativista: nossa dimensão temporal estável.
Pelas experiências já colhidas, concluí que nossa velocidade equivalia ao dobro de
qualquer objeto que se movesse neste Universo.
Bem à nossa frente, surgiu um planeta que também emitia uma luminosidade
vermelha. Nossa velocidade era tão elevada que, subitamente, tive a impressão de voar
mil vezes mais rápido que a luz.
O tempo de agir chegou. A interpretação dos dados estava em pleno andamento.
Aquele mundo envolto numa densa atmosfera era um planeta de oxigênio.
Por estranho que pudesse parecer, era o planeta número três do sistema
desconhecido! Parecia na situação paralela à nossa.
Mandei que a declaração oficial de guerra fosse irradiada mais uma vez pela antena
direcional. A essa hora, já nos havíamos aproximado tanto do segundo planeta que, mais
uma vez, tivemos de realizar uma manobra de desvio.
A Paito, comandada pelo Capitão Inkar, continuava a aproximar-se. Ainda o via
perfeitamente na tela de comunicação audiovisual. Tarts lançou-me um olhar provocador.
Havia um traço duro em seu rosto enrugado e seus lábios se estreitaram.
Peguei o microfone de ligação global.
— Chefe de grupo dirigindo-se a todos. Medição energética do planeta número três,
que temos à nossa frente, demonstra que lá se encontram bases espaciais, gigantescas
usinas energéticas e outras instalações, emitindo impulsos. Ao que suponho, este mundo é
uma base cuidadosamente escolhida do inimigo, que se prepara para lançar seus ataques
de uma posição favorável, assim que surgirem os fenômenos de descarga que, para ele,
são previsíveis. Atacaremos segundo o plano “setor das nebulosas”, usando
simultaneamente todas as armas. Realizaremos um contorno duplo.
“A Paito voará de pólo a pólo, enquanto a Tosoma se deslocará ao norte e ao sul da
linha equatorial. A seguir, nos afastaremos com a aceleração máxima, nos reuniremos
junto ao setor de imersão e atravessaremos separadamente a entrada do funil. Nenhuma
das naves esperará pela outra. Pelo menos, uma delas deve romper o campo de descarga.
Depois de retornar ao espaço normal, não haverá mais qualquer ação bélica. Voaremos
para Larsa III e prepararemos a defesa contra as unidades inimigas que romperem o funil.
Devemos contar com a perseguição. Solicito confirmação.”
Os comandantes estavam informados e agiram de acordo com as ordens. O plano
“setor das nebulosas” previa um fulminante ataque-relâmpago do tipo dos que já
havíamos realizado tantas vezes.
Neste ponto, o grau de experiência arcônida era atingido, quando muito, pelos
respiradores de metano. Porém, nunca por esses desconhecidos que cometem a
leviandade de despovoar planetas inteiros.
Não correspondia ao espírito da legislação de minha venerável raça que, numa
hipótese como esta, se perdesse muito tempo. No curso de uma política galáctica de cinco
mil anos, já aprendêramos que a melhor defesa é o ataque. Depois de nós, muitos povos
formularam esse princípio e passaram a segui-lo. Estava decidido a dominar o perigo, ou
ao menos mostrar os dentes aos desconhecidos.
Dali a três minutos, passamos a desacelerar para a manobra de frenagem. Ao
chegarmos, nossa velocidade era tamanha que nem mesmo nós conseguiríamos atingir
um alvo predeterminado.
Como chefe de esquadrilha dispunha, para minha informação, de inúmeros
aparelhos de controle, que me mantinham informado diretamente — sem a participação
dos respectivos chefes — sobre as medidas que estavam sendo adotadas. Foi assim que vi
e ouvi que Eseka, nosso oficial de armamentos, mandou preparar os lançadores
gravitacionais, que poderiam colocar em ação a mais perigosa de nossas armas: as
bombas arcônidas. Estas eram ajustadas para o alvo por meio de mísseis autodirigidos,
capazes de desenvolver a velocidade da luz. O poderoso impulso energético lhe conferiria
uma velocidade inicial de dez mil quilômetros por segundo.
A respectiva carga desencadearia um incêndio atômico inextinguível, que atingiria
os elementos acima do número de ordem dez. Nem mesmo nós conhecíamos qualquer
meio de deter um incêndio desse tipo.
Não me arrisquei a utilizar nesse Universo nossa nova arma, a bomba gravitacional,
já que normalmente esta deve ser vista como uma arma energética da quinta dimensão.
Quando nos aproximávamos do planeta pela rota prevista, constatamos a presença
de mais de uma centena de grandes objetos, que evidentemente pretendiam realizar uma
decolagem de emergência para penetrar no espaço.
Voltei a segurar o microfone global.
— Chefe de esquadrilha dirigindo-se a todos. Unidades inimigas decolando para o
vôo de interceptação. Apesar disso, toda a energia disponível deverá ser conduzida aos
campos energéticos de proa para repelir as moléculas de ar. Abrir fogo com constância,
dirigido por robôs, espalhando-o de maneira a desenvolver o equivalente de cinco
quilotons de TNT por quilômetro quadrado. Pronto? Vamos começar!
Numa ação desse tipo não se costumavam gastar muitas palavras. Meus homens
estavam tão bem adaptados uns aos outros que não havia necessidade de explicações
demoradas.
A Paito desapareceu atrás da curvatura do planeta. Nossa gigantesca nave capitania
passou por um grupo quase imperceptível de naves espaciais. Naquele instante,
percebemos o uivo terrível das massas de ar deslocadas.
Mantivemo-nos nas camadas superiores da atmosfera. Nosso centro de computação
informou que nossa reduzida velocidade ainda correspondia ao dobro da provável
velocidade-limite da dimensão temporal em que nos encontrávamos.
Naquele momento, não me interessava pelos prováveis efeitos dessa situação.
Apesar dos grossos protetores, meu ouvido foi martirizado. O corpo da Tosoma repicava
que nem um gigantesco sino. Logo teve início o fogo intermitente das armas automáticas.
O dispositivo de mira inteiramente positrônico calculava, baseado na velocidade que
desenvolvíamos e na distância do alvo, o intervalo com que deviam ser feitos os disparos,
para se verificar a superposição das respectivas áreas periféricas.
Não havia ninguém que pudesse preocupar-se com aquilo que acontecia lá embaixo.
Tínhamos trabalho de sobra para manter a nave, que desenvolvia velocidade muito
superior à do valor de fuga, na órbita prevista para o ataque, já que as imensas forças
centrífugas provocadas por seu deslocamento tendiam a arremessar-nos em linha reta
para o espaço.
Tarts mandou que as unidades energéticas inaproveitáveis fossem empregadas para
reforçar o campo de repulsão da proa. Apesar de sua densidade extremamente baixa, a
atmosfera inflamou-se à frente da nave.
Em pouco menos de cinco minutos e trinta segundos, demos uma volta completa em
torno do planeta. As manobras de correção tornavam-se cada vez mais perigosas. As
máquinas não resistiriam por muito tempo à sobrecarga a que estavam expostas.
Quando voltamos ao ponto de saída, ocasião em que fizemos um desvio de dez
graus para o norte, notei que nas telas só apareciam paisagens incendiadas e gigantescos
cogumelos atômicos, provocados pela explosão de materiais. Talvez alguns deles
tivessem sido produzidos pelas naves cilíndricas longas e escuras, atingidas por nosso
fogo.
Uma vez completada a segunda circunavegação tática do alvo, mandei que a
Tosoma modificasse a rota. O Major Eseka disparara um total de dez bombas arcônidas,
que atingiram os respectivos alvos, onde detonaram.
O rugido das armas de impulso e de desintegração cessou. Voltamos a ouvir o ruído
forte e uniforme das unidades propulsoras e dos reatores. O corpo da nave ainda vibrava.
Mesmo agora, não podíamos arriscar-nos a tirar os abafadores de ruído.
— Onde está a Paito? — gritei em tom nervoso para dentro do microfone global.
O Capitão Masal, que se encontrava na central de localização, respondeu:
— Está saindo da curvatura polar da face norte, Alteza. Está disparando mais uma
vez à distância, acaba de aumentar a velocidade e dispara os canhões térmicos para o
setor vertical vermelho. Divisão em feixes. Ao que parece, constataram a presença de
unidades pequenas. O fogo está sendo suspenso. Apenas estamos localizando as ondas de
corpúsculos das unidades propulsoras. Pelo volume energético conclui-se que as
máquinas estão intactas. Desligo.
Senti um enorme peso cair dos meus ombros. Virei o rosto para Tarts. O comandante
de minha nave capitania sorriu. O rádio transmitiu sua voz grave:
— Essa gente não voltará a seqüestrar colonos inofensivos e atirar contra naves-
patrulha. Por Árcon, quem serão eles? Serão espíritos, robôs ou sei lá o quê? Por que
aproveitam um fenômeno natural para atingir seus objetivos imundos? Estou firmemente
decidido a voar com a Tosoma para Árcon, mesmo sem sua permissão, a fim de obter um
reforço de naves. Encontrarei um meio de conseguir...
— Se não fossem os metanianos, você conseguiria — interferi em tom resignado.
A auto-recriminação me torturava. Será que meu procedimento era correto? Quem
eram mesmo esses desconhecidos?
A abertura do funil voltou a surgir à nossa frente. Penetramos na mesma à
velocidade da luz. Mas, para nosso espanto, desta vez não se verificaram os efeitos antes
observados. Apenas tive a impressão de que alguma força invisível procurava impedir
nosso avanço. Parecia que penetrávamos numa massa viscosa, que cedia a contragosto.
Naquele instante, a sala de máquinas transmitiu:
— Máquinas trabalhando a toda potência, mas velocidade diminui à razão de 123
km/seg. Cifra permanece constante. Pergunto se devemos injetar massa de apoio.
Mandei que essa providência fosse tomada imediatamente, embora soubesse que
isso representaria uma sobrecarga adicional das máquinas.
Atrás de nós, o cruzador pesado Paito aproximava-se em alta velocidade. Mas Inkar
ainda não entrara em contato conosco.
Parecia durar uma eternidade até que conseguíssemos sair do funil. Recebemos
outra notícia alarmante, vinda do setor de localização:
— Campo de descarga desapareceu. Não existe mais qualquer oscilação do volume
energético.
A notícia, transmitida em tom indiferente, me fez empalidecer. Tarts arregalou os
olhos. O rosto de Kosol, que aparecia na tela, emitia um brilho branco. Vi-o olhar
apressadamente para o relógio.
— Segundo nossa dimensão temporal não demoramos lá mais que sessenta e cinco
minutos — disse em tom de perplexidade.
Segundo nossa dimensão temporal!
Um pensamento ameaçava estourar meu cérebro.
Como é que o campo de descarga podia extinguir-se tão depressa? Sabíamos que se
mantinha estável ao menos por três horas. Teríamos passado por uma das temíveis
dilatações, um deslocamento do tempo causado pela modificação do ponto de referência?
Será que, para os outros seres, os sessenta e cinco minutos representaram igual número de
dias ou semanas?
Saí lentamente da poltrona de espaldar alto e peguei o microfone com as mãos
trêmulas.
— Masal, entre em contato com Atlântida. Rápido! Quero falar com Feltif. Preciso
saber o que está...
Não tive necessidade de prosseguir. Um pedido de socorro redigido segundo o
código KRA-QZ de nossa frota estava sendo recebido. Tratava-se de uma mensagem
automática em linguagem clara.
— Capitão Feltif chamando o chefe da esquadrilha. Estamos perdidos. Cinco
posições de artilharia foram destruídas. Além disso surgiu uma frente de superposição
de grande densidade. Muitos colonos já foram sugados. Retiramo-nos juntamente com os
nativos para as matas e montanhas. Cerca de cem naves inimigas atacam
ininterruptamente. A estabilidade do eixo do planeta foi afetada. Parece que a frente do
tempo traz fortíssimos campos gravitacionais, que modificam a posição do eixo de
rotação de Larsa III. Capitão Feltif falando. Onde estão vocês? Chamo há nove dias.
Árcon não responde. Fim da mensagem. Repetiremos dentro de três minutos.
Todos ouviram a mensagem. Fiquei parado como se alguém tivesse despejado ar
líquido sobre minha cabeça. Tarts parecia uma estátua.
Ouvi minha própria voz:
— Atacar imediatamente, haja o que houver.
7

Arriscamos uma transição de curta distância. Quando emergimos do hiperespaço


vimo-nos em meio a uma aglomeração de cerca de cento e cinqüenta naves inimigas de
grande porte.
Nenhuma delas atingia o tamanho da Tosoma, e só vimos duas que talvez pudessem
enfrentar o cruzador pesado Paito.
Apesar disso, desde o primeiro instante, estávamos fadados à derrota.
Nem tivemos tempo de pensar.
Os campos energéticos defensivos da Paito cederam depois dos primeiros impactos.
Uma das características dos cruzadores pesados consistia em sua alta velocidade e na
potência de seu armamento, mas as respectivas instalações exigiam espaço, motivo por
que tais vantagens eram alcançadas à custa dos campos defensivos. O peso útil na base de
um G de Árcon não poderia ser excedido. Quando uma das naves esféricas estivesse com
um certo número de máquinas e equipamentos, nela não caberia mais nada.
Há um segundo a orgulhosa Paito, comandada pelo Capitão Inkar, explodira sob o
fogo concentrado de cerca de sessenta naves inimigas. As energias liberadas pela
explosão correspondiam às de um pequeno sol. Sabia que as cargas das máquinas e dos
reatores foram atingidas pelo processo de desintegração nuclear. A respectiva energia
correspondia à de cinqüenta bilhões de toneladas de TNT.
A desgraça aconteceu junto à órbita lunar. A esfera de gases incandescentes
espalhou-se com tamanha rapidez que chegou a atingir as camadas superiores da
atmosfera do terceiro planeta.
Encontrava-me sobre a face noturna de nosso mundo colonial. A esfera energética,
que quase chegava ao ultra-azul, ergueu-se em toda sua potência acima do horizonte
escuro do planeta, fazendo com que, de uma hora para outra, fosse dia.
Forças medonhas rugiam em nossos campos defensivos. Sem dúvida, a destruição
de Inkar representara o fim de cinqüenta a setenta naves inimigas. Os desconhecidos
ainda não sabiam o que acontecia quando uma grande nave arcônida detonava.
Mas aprenderam depressa.
Subitamente a Tosoma, que ainda há pouco se encontrava sob o fogo cruzado de
cerca de oitenta unidades, viu-se livre do inimigo, que acabara de receber uma amarga
lição. As naves retiraram-se apressadamente, para voltar a abrir fogo a uma distância de
três milhões de quilômetros.
Era muito boa a pontaria dos seres misteriosos vindos da outra dimensão temporal.
Minhas manobras de desvio eram temerárias. Desliguei o piloto automático para,
mediante comandos manuais, arrancar a nave de sua trajetória.
Estávamos numa situação para a qual não havia saída. Cinco minutos depois do
primeiro contato com o inimigo, três disparos de arma térmica romperam nossos campos
defensivos sobrecarregados. Na sala de reatores número quatro, irrompeu um incêndio.
Seis das quinze unidades propulsoras foram colocadas fora de ação. Dali em diante, a
blindagem da Tosoma teve de absorver quase tudo que o inimigo nos mandava.
O fim estava próximo. Nossas manobras eram lentas e facilmente previsíveis.
Perdêramos a vantagem da velocidade, pois nem mesmo um arcônida pode fazer boa
pontaria numa nave que se desloca a uma velocidade próxima à da luz.
O inimigo mantinha sua velocidade. Tinha todas as vantagens. Segundo as
informações transmitidas pelo computador positrônico, as tormentas atômicas expelidas
das torres de artilharia da Tosoma haviam destruído trinta e quatro objetos estranhos. Mas
os que sobravam ainda bastavam para dar cabo de nós.
Gravemente danificada e ardendo em quatro lugares diferentes, a nave Tosoma caía
em direção à superfície do planeta. Pouco antes da transição, dera ordem para que os
trajes espaciais comuns fossem trocados pelo equipamento arcônida. Esse produto de
nossa hipertecnologia nos permitia voar e erigir um campo defensivo não muito potente.
Os campos defensivos individuais se haviam transformado numa necessidade
premente. O equipamento automático de extinção de incêndio da nave já não emitia o
sinal de alarma. Em vez disso, as numerosas escotilhas de segurança haviam sido
fechadas. As diversas repartições da nave, que se contavam pelas centenas, estavam
hermeticamente fechadas.
O incêndio passou a ser combatido por meio da retirada da atmosfera artificial da
nave. Sem oxigênio não pode haver nenhum processo de combustão molecular.
No momento em que dei as respectivas ordens, os sistemas de bombeamento já
haviam entrado em pane. O computador eletrônico deu o alarma. Mas, naquela hora, isso
já não adiantava nada.
O incêndio continuou a lavrar nas salas de máquinas e de geradores. Se o
combustível catalítico de elevada potência fosse atingido pelo fogo, o inimigo assistiria a
uma explosão ainda mais violenta. Mas, por enquanto, os tanques especiais estavam
agüentando; foram feitos para suportar temperaturas até quinze mil graus.
Sessenta por cento das comunicações de videofone também haviam sido afetados.
Apenas a comunicação de rádio continuava a funcionar.
Quando as longas naves cilíndricas do inimigo abriram o anel que nos cercava para
se colocarem numa distância segura, ficamos momentaneamente fora do alcance de seu
fogo. Os desconhecidos usavam propulsores de popa, e, ao que parecia, os impulsos
destes perturbavam a mira ótica. De repente, não recebemos mais nenhum fogo.
Aproveitei a oportunidade para fazer com que a Tosoma se precipitasse em direção
ao envoltório atmosférico do terceiro planeta.
O ruído uivante do lado de fora continuou. Os campos de absorção da nave, tão
potentes, estavam reduzidos a estruturas muito débeis, que mal conseguiam ionizar as
moléculas de ar. E, sem condutividade elétrica, não pode ocorrer a repulsão magnética.
Foi por isso que, já nas camadas menos densas da atmosfera, minha nave se
transformou num sol ofuscante. Mesmo assim, continuei a descer à velocidade máxima.
Nossa blindagem de arconite suportava temperaturas de até cinqüenta mil graus, e o
sistema de refrigeração da nave ainda estava funcionando.
Chegáramos definitivamente ao fim. Fiz aquilo que um comandante responsável
deve fazer numa situação como esta. Não queria bancar o herói, nem encenar um fim
dramático. Meu único interesse era salvar os sobreviventes, para posteriormente solicitar
auxílio de Árcon.
— A rota foi fixada: Atlântida encontra-se na face diurna do planeta — disse a voz
do imediato.
Pretendia pousar a Tosoma destroçada nas proximidades de Atlópolis, preparar uma
ligeira defesa na superfície e abrigar os homens na abóbada submarina, sob o fogo do
inimigo.
Sobrevoamos a terra oriental coberta de matas virgens a uma altitude de apenas cem
quilômetros. Nesse continente viviam nativos de pele negra e vida extremamente
primitiva. Após isso, avistamos as águas do oceano e a seguir as grandes cordilheiras
marítimas de Atlântida.

***

Ouvi Tarts praguejar. Sobre a terra que se aproximava rapidamente viam-se


cogumelos atômicos chamejantes. Ao que parecia o inimigo sabia perfeitamente onde
encontrar as poucas instalações de defesa desse mundo.
Dali a alguns segundos, nossos instrumentos de localização deram um sinal. Cinco
naves espaciais haviam pousado junto ao litoral.
Estavam desembarcando tropas?
— Não constatamos nenhuma vibração celular; são robôs — disse o Capitão Masal,
que se encontrava na sala de rádio, ainda intacta.
Os oficiais do setor de armamentos receberam minhas ordens. A poderosa Tosoma
preparava-se para desferir seu último golpe.
— Será que essa gente pensa que minha nave está “aleijada”? — disse Tarts com
uma terrível calma pelo rádio de capacete.
O terrível ribombo dos canhões do costado da nave tornou impossível qualquer
forma de comunicação. As cinco unidades pousadas explodiram num furacão de chamas.
Senti-me tomado de pavor, quando a capital e o espaçoporto surgiram na tela. A
enorme área estava transformada numa cratera. As construções de Atlópolis estavam
transformadas em ruínas fumegantes. A paisagem achava-se marcada pelas trilhas de
vários quilômetros de altura, abertas pelos disparos dos canhões térmicos.
Nos lugares em que foram instaladas nossas armas de impulsos, os cogumelos
atômicos fumegantes cobriam a paisagem. O Capitão Feltif não respondia mais. Nossos
chamados não produziam qualquer eco. Compreendi que meu comando de superfície
deixara de existir.
E podia imaginar o que era feito dos colonos.
No espaço, surgiu outra frente de superposição. Percebemo-la pela estranha
mudança de cor das estrelas e pelo tremeluzir da atmosfera. O inimigo ainda se valia das
forças da natureza para atacar-nos.
Tarts realizava a pilotagem puramente manual da Tosoma, que praticamente estava
incapacitada para o vôo. As instalações automáticas haviam entrado em pane e a
comunicação com a sala de máquinas não funcionava mais.
Na sala de comando, a temperatura subia constantemente. Lá fora deviam lavrar
enormes incêndios.
Fiz aquilo que planejara. O couraçado devia ser mantido no ar e cobrir a retaguarda
até que as comportas da abóbada submarina, manejadas por robôs, tivessem sido abertas.
Por motivos de segurança fora criado um controle de impulsos individuais. Só havia
três arcônidas diante dos quais as comportas se abririam. Um visitante, que não fosse
conhecido ao computador da abóbada, não só boiaria diante da comporta sem poder fazer
coisa alguma, mas ainda estaria exposto ao fogo do potente armamento da fortaleza.
Uma das pessoas capacitadas para entrar na fortaleza submarina era o Capitão Feltif,
chefe das guarnições de superfície e responsável pelas medidas de evacuação. Estava
desaparecido.
Outro homem a ter acesso à abóbada submarina era Kosol, chefe da equipe
matemática, que se encontrava a bordo de minha nave.
Eu era a terceira pessoa a ter reconhecidas as vibrações orgânicas pelos robôs.
Kosol teria de descer imediatamente com os veículos submarinos de campo
energético, a fim de abrir os portões da cúpula submarina e liberar a entrada dos demais.
Enquanto fazia isso, eu mesmo permaneceria na Tosoma, para rechaçar eventuais ataques
e, após isso, realizaria um pouso relâmpago e colocaria meus homens em segurança. Era
de supor que o inimigo não sabia da existência da cúpula submarina, enquanto facilmente
poderia localizar as peças de artilharia que disparavam.
Mandei imobilizar a nave. Recorrendo aos campos antigravitacionais, que
continuavam intactos, o couraçado pairou no ar, acima do campo espacial destruído. O
rádio de meu traje espacial ainda funcionava. Comprimi o botão do microfone.
— Atlan chamando o matemático-chefe Kosol. Verificou-se a hipótese resgate.
Abandone seu posto, use seu traje de vôo e abra as comportas da cúpula pressurizada.
Estou chamando Kosol. Responda, Kosol.
A resposta veio dentro de um segundo. A minúscula tela do capacete, instalada
acima dos meus olhos, mostrou o rosto de um jovem oficial.
— Tenente Einkal falando, Alteza, comando de combate de incêndio número
dezoito. Matemático-chefe Kosol foi morto, a divisão matemática está em chamas. Todas
as escotilhas foram fechadas. As salas contíguas também estão sendo consumidas pelo
fogo. Os rombos abertos pelos tiros deixam entrar o ar. Desligo.
Soltei um grito. Tarts, que se encontrava a meu lado, girou com a poltrona.
Compreendeu mais depressa que eu.
— Saia da nave, almirante — gritou. — Vamos, saia logo. Farei a cobertura de
retaguarda. Abra a cúpula e dê ordem de pousar pelo rádio de capacete. Depressa! O que
está esperando?
— Não saio da minha nave antes dos tripulantes — respondi em tom resoluto.
Tarts soltou uma risada forçada. Era dotado de uma calma inacreditável.
— Mandarei atirá-lo para fora. Farei tudo que estiver a meu alcance para salvar os
tripulantes da nave. Não preciso de você para dirigir a nave, ainda mais que não há
nenhuma decisão tática a ser tomada. Kosol morreu e Feltif está desaparecido. Dentro de
trinta minutos chegará a frente do tempo. Quando isso acontecer, toda a vida
desaparecerá na outra dimensão. Saberei enfrentar essas naves cilíndricas. Tenho alguma
experiência de combate nas camadas atmosféricas. Abra a cúpula o mais depressa que
puder.
As últimas palavras saíram num berro. Dois pesados robôs de combate caminharam
em minha direção. Fui arrancado do assento e carregado à força para a comporta central.
Tarts conseguiu soltar uma estrondosa gargalhada diante de minha irrupção de cólera.
— Aguardamos seu sinal pelo rádio. Assim que receber três vezes a palavra Atlan,
falada ou transmitida por meio de um impulso, arriscarei o pouso. Antes disso, ainda farei
uma coisa. Vá logo, amigo, e não se esqueça de que venero você e sua família.
A tampa redonda do transportador abriu-se à minha frente. Era um tubo reto de um
metro de diâmetro, que terminava a quatrocentos metros dali, numa comporta
inteiramente automática. Esse equipamento permitia que a tripulação da nave fosse
evacuada num prazo curtíssimo. Era uma saída de emergência.
Ainda estava gritando de raiva quando a tampa se fechou.
O ar comprimido transformou meu corpo num projétil. A saída de emergência não
era muito confortável, mas em compensação era prática. Fui parar no colchão de ar
comprimido da câmara de recepção, onde tive de esforçar-me para colocar os pés no chão
antes que fosse tarde.
No mesmo instante, procurei abrigar-me, pois outro corpo desceu em disparada pelo
tubo. Era o Tenente Cunor.
— Mandarei colocar Tarts diante do júri de bordo — gritei fora de mim.
É claro que não poderia cumprir a ameaça. As gigantescas escotilhas blindadas
abriram-se, e um segundo jato de ar comprimido atirou-nos para fora da nave.
Comprimi o botão do aparelho de vôo embutido em meu traje. No conjunto que
trazia nas costas, já se ouvia o zumbido do microrreator e do minigerador acoplados ao
mesmo.
O aparelho antigravitacional automático estabilizou minha trajetória. Apenas me
restava cuidar para que o pequeno propulsor de pulsações fosse colocado em
funcionamento. O Tenente Cunor vinha atrás de mim. Era um dos oficiais mais arrojados
da nave capitania. Evidentemente, Tarts lhe ordenara que me acompanhasse no difícil
caminho que teria de trilhar.
— Boa sorte! — disse uma voz no meu capacete. O rosto de Tarts surgiu na
minúscula tela. — Posso dar partida? Estamos registrando novas localizações.
— Ainda falaremos — disse, um pouco mais calmo. — Você ainda se arrependerá
de seu ato de insubordinação.
O comandante limitou-se a dar uma risada. Logo após isso, tivemos de esforçar-nos
para escapar à sucção da nave que partia lentamente. Quando se encontrava a uma
distância segura, Tarts aumentou a velocidade. Chispando fogo, a Tosoma disparou para o
céu encoberto por nuvens atômicas.
Quando a nave tinha desaparecido e o trovejar das massas também, Cunor disse em
tom pensativo:
— Existe uma dose elevada de radiatividade gama, Alteza. Nossos amigos usam
explosivos antiquados.
Mal acabou de falar, ouviu-se um rumorejar distante. Um vulto luminoso passou
acima de nossas cabeças, abrindo suas torres de canhões.
Uma violenta onda de pressão arrancou-me da trajetória. Uma tormenta de fogo
rugiu sobre a terra devastada. A sede de meu governo foi destruída. Não via outra coisa
senão ruínas fumegantes. Até onde a vista alcançava, não havia um único ser vivo.
Compreendi que a passagem de uma zona relativista absorvera tudo que tivesse alguma
aparência orgânica. Só as plantas foram deixadas para trás, apenas para serem destruídas
pela tormenta atômica.
Voamos à pequena altitude sobre o chão calcinado. Contornamos as ruínas de
Atlópolis e tomamos a direção do mar aberto.
Só nesse instante, percebi que um furacão fustigava as águas do oceano; ou melhor,
por um instante acreditei que fosse assim. Logo que a onda de pressão provocada pela
nave atacante passou, houve uma relativa calmaria... Apesar disso, as águas se
amontoavam em vagas gigantescas. A península, que protegia a entrada do porto, havia
desaparecido. Mais ao leste, o mar estava invadindo a terra.
A oeste do lugar em que nos encontrávamos, o chão estava rachado. Os velhos
vulcões que, segundo acreditávamos, há muito estavam extintos, voltaram a abrir-se para
vomitar a morte e a destruição.
O rugido que enchia o ar não provinha da batalha, mas das forças da natureza.
Ouvi o grito de pavor de Cunor:
— A terra está afundando!
Foi só então que percebi nitidamente que o chão estava balançando. Era o tremor de
terra mais violento que eu havia visto. Bem ao longe, se formava um ciclone, cujas
primeiras rajadas de vento uivavam sobre o continente que estava sendo tragado pelas
águas.
A zona portuária já estava submersa. As ondas se precipitavam sobre a terra, como
se quisessem engolir Atlântida dentro de poucos minutos.
Pousamos junto aos abrigos de barcos, que se erguiam junto ao mar. A terra
começou a descer. Quando abri a porta, a água cobriu meus pés...
Cunor preparou o veículo especial. Tratava-se de um barco da frota construído
especialmente para operações de desembarque em planetas aquáticos e pantanosos, onde
as comunicações eram difíceis.
Enquanto isso, procurei entrar em contato com a Tosoma. Consegui imediatamente.
Os débeis impulsos expedidos por meu emissor de capacete foram captados pela
aparelhagem especial da nave capitania, que os ampliou milhões de vezes.
— Tudo bem a bordo — respondeu Tarts. Sua voz era interrompida por fortes ruídos
de interferência. — Apenas faço curvas para desviar-me e, vez ou outra, aplico um golpe.
Até que ponto conseguiu chegar?
— Estamos entrando no barco. Tenha cuidado; ao que parece, o continente está
afundando. Registramos fortes abalos sísmicos.
— Todo o planeta parece maluco. Uma grande porção de terra está emergindo do
grande oceano. A inclinação do eixo deste mundo está mudando. Haverá enormes
inundações. Desligo.
Assim que fechei a cúpula pressurizada do veículo aquático, as ondas espumantes
nos levaram para fora do abrigo. Por alguns segundos, dançou sobre as águas revoltas
pelo maremoto. Cunor apontou para o leste.
A visão da enorme frente relativista me deu calafrios. Devia deslocar-se a mais de
dez mil quilômetros por hora. Pudemos reconhecê-la pelo estranho tremeluzir no ar e
pelo desaparecimento da luz do sol. Só nesse instante, lembrei-me de que uma misteriosa
alteração das dimensões temporais fizera com que perdêssemos nove dias. Neste meio
tempo, devia ter chegado o momento temível da oposição total entre os planetas dois e
três.
A desgraça aproximou-se silenciosamente. Tratava-se de uma zona típica de
superposição, que não poupava qualquer tipo de vida.
Cunor empurrou a chave do campo protetor gravomecânico. A água foi repelida pelo
veículo. Houve uma área livre, na qual reinava o vácuo, que servia de protetor
acolchoado entre a pressão da água e a parede fina do barco.
Os tanques de lastro encheram-se. Descemos que nem uma pedra. Só quando
chegamos uns cinqüenta metros abaixo da superfície a fúria dos elementos amainou um
pouco. Mas as ondas de pressão ainda eram tão violentas que temíamos pela estabilidade
do campo defensivo.
Os holofotes de luz infravermelha acenderam-se. Procuramos a cúpula construída
pelos especialistas de Feltif, e que devia ficar cerca de cem metros abaixo da superfície.
Estivera lá uma única vez e, nessa oportunidade, as ondas emitidas por meu corpo foram
registradas pelo detector de impulsos do computador positrônico.
Sabia que nessa profundidade começava um grande platô submarino, cujas rochas
chegavam às profundezas do oceano. E, nessa rocha, estavam ancorados os alicerces da
cúpula. Esta suportaria qualquer pressão aquática concebível, ainda mais que, em caso de
necessidade, poderia ser reforçada por campos defensivos.
Não encontramos o platô! O rosto de Cunor mudou de cor tão repentinamente que
adivinhei seus pensamentos. O abalo sísmico levara nosso refúgio para as profundezas.
Mandei que descêssemos mais. A cúpula não poderia ter sido destruída. Nenhum
fenômeno da natureza, por mais violento que fosse, seria capaz de desprendê-la de sua
base, à qual fora presa por meio de suportes de aço de Árcon, injetado pelo processo de
pressurização térmica.
Cunor fez um gesto de concordância. Fiquei desesperado ao pensar nos ocupantes
da Tosoma que, naquele instante, deviam encontrar-se em situação desesperadora. Rompi
as últimas barreiras psíquicas e recorri ao rádio subaquático para chamar a estação
robotizada. O dispositivo de orientação respondeu imediatamente.
O controle de direção atingiu-nos. Fomos arrastados para baixo em velocidade
vertiginosa.
Quando finalmente distinguimos os contornos do refúgio azulado, que na base
media cento e vinte metros de diâmetro, estávamos a mil e cem metros de profundidade.
O controle de identificação do pequeno computador foi realizado pelo método
prescrito da verificação das ondas cerebrais. Coloquei os contatos sobre a cabeça e liguei
o transmissor.
— Permissão de entrada concedida, Alteza — soou a voz metálica do autômato, dali
a alguns segundos.
Um raio de tração segurou-nos e arrastou-nos em velocidade incrível para o interior
da comporta de alta pressão que se abriu à nossa frente. Muito ansioso, prestei atenção ao
zumbido agudo das bombas. Assim que a câmara estava vazia e o ar penetrou na mesma,
disse apressadamente a Cunor:
— Aguarde aqui. Transmitirei o impulso de programação, a fim de que as comportas
se abram diante de qualquer mensagem codificada normal. Depois teremos de subir de
novo, para entrar em contato com a Tosoma. Na profundidade em que nos encontramos,
isso não é possível. Na cúpula, não existe nenhum hipertransmissor.
Um robô com o aspecto de um arcônida, revestido de plástico, surgiu na escotilha da
comporta. Passei correndo por ele e subi apressadamente pelas escadas de caracol que
levavam à sala de programação.
Lá fora ouviu-se uma série de ruídos fortes. O zumbido das gigantescas instalações
energéticas provava que o centro de computação compensava o aumento de pressão por
meio da criação de campos defensivos. Os alicerces rangiam. O efeito das pressões
desencadeadas pela movimentação das massas de pedra devia ser tremendo.
Um forte solavanco atirou-me ao solo. Esperei que a onda de abalo passasse.
Gemendo e cambaleando, cheguei à sala de comando. O relê principal do computador
pequeno, mas potente, estava instalado numa abóbada de aço de pouco menos de dois
metros de altura. Fui recebido pelas palavras estereotipadas “seja bem-vindo, Alteza”.
Sem dizer nada, desliguei a barreira individual e empurrei a chave destinada à
entrada dos impulsos normais transmitidos pelo rádio. A palavra-chave correspondia a
meu nome.
Sem formular qualquer indagação ao computador, corri de volta à comporta. Cunor
esperava ansiosamente.
— Achamo-nos a uma profundidade de dois mil metros — anunciou com uma
calma espantosa.
Não dei atenção às suas palavras. Dali a alguns segundos, estávamos novamente
dentro da água, que, vez por outra, era revolvida por vulcões submarinos, transformando-
se em perigosos torvelinhos, parecendo ter a dureza do aço. Em todos os lugares, via-se o
fulgor vermelho das irrupções submarinas. Este mundo estava submergindo. Ao menos,
assistíamos à modificação dos continentes e ao nascimento de novas terras.
Levamos dez minutos para atingir a profundidade-limite de segurança. Não
deveríamos subir mais, pois não sabíamos se a frente relativista já havia passado, ou se
ainda ficaram remanescentes da mesma.
— A velocidade da frente foi muito elevada, Alteza — disse Cunor. — É de supor
que já tenha passado.
Numa súbita resolução, resolvi jogar todas as chances numa cartada. A segurança de
que gozávamos nas profundidades do mar deixara de existir.
Fomos recebidos por ondas tão violentas que nosso veículo se transformou num
joguete dos elementos.
De Atlântida só sobravam os cumes mais elevados. Para onde quer que olhasse, só
via água. Não descobrimos o menor vestígio da Tosoma.
As naves inimigas não estavam atacando mais. Se seus comandantes tivessem um
pouquinho de inteligência, já deveriam ter compreendido não haver mais nada por ali que
pudessem destruir. O tremor de terra e as tremendas vagas cuidariam disso.
Deixamo-nos sacudir durante duas horas. Durante todo esse tempo, chamei
ininterruptamente pelo transmissor superpotente do barco. Bem acima das nuvens
tangidas pela tormenta, via-se uma extensa luminosidade. Não podia ser o sol, pois este
nunca brilhava ao norte.
Sabia como era o aspecto da incandescência atômica de uma nave que explode
tangida pelo vento. Apesar disso, não quis acreditar. A próxima frente de superposição
aproximou-se de nós.
Muito consternado, dei ordem para mergulhar.
Meus amigos estavam mortos.
8

Dali a dez minutos, estaria clinicamente morto.


Descontraído e com o corpo flácido, estava deitado no leito macio, ouvindo a
embaladora hipnomúsica. O capacete de impulsos do pulsador cobria minha cabeça. Meu
ritmo biológico estava sendo reduzido gradualmente.
A isso seguir-se-ia a injeção automática de soro conservador. Tratava-se de uma
técnica que meu venerável povo dominava há muito tempo.
Um indivíduo sadio podia perfeitamente resistir a um estado de hibernação
biomédica pelo prazo de quinhentos anos. As funções vitais ficavam reduzidas
praticamente ao nível zero.
Em minha cúpula pressurizada havia as instalações que se faziam necessárias para
isso. Haviam sido retiradas de uma antiga nave-hospital de minha esquadrilha.
Abri minha vontade consciente, a fim de ceder totalmente ao som insinuante da
música. Caso não quisesse enlouquecer, estava na hora de retirar-me para a calma
absoluta proporcionada pelo estado de hibernação biomédica.
Quase quatro meses se passaram até que a fúria dos elementos se aplacasse a ponto
de podermos pensar em emergir. Depois disso, iniciamos nossa longa busca.
Não descobri nenhum arcônida ou nativo de Atlântida. Os castelos e silos-pirâmide
construídos por Feltif ainda existiam, mas não descobrimos o menor vestígio de gente.
Cunor e eu sentimo-nos dominados pelo desespero, que nos fez correr
insensatamente de um lugar para outro. Vez por outra, descobrimos certas formas de vida,
mas eram tão primitivas que não conseguimos estabelecer qualquer contato.
Os bárbaros do norte gelado sobreviveram à catástrofe. Já os habitantes inteligentes
de Atlântida e os colonos estabelecidos no leste e no oeste deixaram de existir.
Foram mortos pelos gigantescos vagalhões ou tragados pelas numerosas frentes
relativistas.
Durante seis meses, ficamos procurando e chamando pelo rádio, chamando pelo
rádio e procurando. Ao que parecia, em Árcon ninguém se lembrava de nós. As estações
transmissoras de Atlântida e dos dois continentes do sul foram destruídas pelo inimigo.
As emissoras existentes na cúpula eram de potência reduzida; jamais seriam capazes
de vencer a distância que nos separava de nosso mundo.
Agora me arrependia de não ter instalado um dos transmissores de grande potência
na base submarina. Naquela época, acreditávamos que não valeria a pena, pois o lugar da
instalação de hiper-rádio não era embaixo da água. A cúpula seria um refúgio para pouco
tempo. Para que instalar na mesma os grandes aparelhos, que tomavam tanto lugar, se
todos os cantos estavam ocupados?
Pegamos o planador e sobrevoamos todos os continentes. A face do terceiro planeta
estava modificada. Novos mares haviam surgido, e enormes ilhas afundaram. Uma delas
era Atlântida, da qual apenas restavam os cumes de algumas montanhas, transformados
em pequenas ilhas.
Nossa base se estabilizara a uma profundidade de 2.852 metros.
Antes que desistíssemos de vez, um estúpido bárbaro das cavernas do norte abateu o
Tenente Cunor com uma cunha de pedra. Com os olhos secos, fitei o túmulo do meu
derradeiro companheiro.
Transformei-me na criatura mais solitária...
A última medida por mim ordenada só se tornou possível porque, num canto
recôndito de minha mente, ainda havia um pouco de esperança. Um belo dia, viriam para
verificar o que era feito do Almirante Atlan. Não deixariam de notar as mensagens que
mandei expedir pouco antes da explosão da Paito. Afinal, Árcon não estava morto, e eu
era um membro da família imperial.
Em virtude dessas reflexões, instalei no cume mais elevado das montanhas
existentes nas ilhas um pequeno aparelho super-sensível, que reagia aos abalos estruturais
provocados por qualquer nave que saísse da transição.
Se ocorresse essa hipótese, uma estação retransmissora avisaria o computador
instalado em minha cúpula, que me despertaria imediatamente do meu estado de
hibernação.
Por uma questão de cautela, limitei o tempo de hibernação em quinhentos anos.
Não havia dúvida de que, antes disso, chegaria alguém do meu povo, nem que fosse
uma simples nave-correio.
Por isso, recolhi-me ao leito com o espírito relativamente tranqüilo. Se quisesse
esperar dia após dia, noite após noite, isso não adiantaria nada e apenas colocaria em
perigo a saúde de meu espírito. No estado de hibernação o tempo deixava de contar; e
meu detector merecia toda confiança.
Comecei a sentir sono. Meu robô pessoal de serviço estava a meu lado. Tratava-se
de um artefato especial, com o qual podia conversar.
— Quanto tempo demorará, Rico? — perguntei num cochicho.
— Daqui a pouco, Alteza, daqui a pouco encontrarás a paz — disse a máquina
dotada de um eficiente computador positrônico.
Desta vez, o som metálico das cordas vocais mecânicas nem me incomodou.
— Encontrei a paz — disse, repetindo a fórmula estereotipada. A paz de quem? De
minha consciência?
— Procure relaxar, Alteza — disse o robô.
Rodas coloridas começaram a girar diante dos meus olhos. De repente, vi o rosto
enrugado de Tarts, no qual havia um sorriso encorajador. Seguiram-se Inkar, Cunor,
Kosol, Cerbus e todos os amigos que já estavam mortos.
Quis gritar, mas não consegui.
Por que defendi este mundo? Por quê?
— Rico, será que um dia estes bárbaros se transformarão numa raça inteligente?
— Procure relaxar, Alteza. O tempo está correndo.
O tempo! Eu subestimara este elemento. Passei ao largo dos fatos. Os que viriam
depois de mim não repetiriam o erro. Fiz este juramento perante minha consciência,
perante o Grande Império e perante minha venerável família.
9

Alguém estava cantando. A voz era bonita e agradável. Ouvi-o com uma atenção
cada vez maior e esqueci a dor de cabeça que me torturava. Por muito, muito tempo,
meus sentidos absorveram os belos acordes com uma verdadeira volúpia.
Quando abri os olhos, vi um jovem de pele morena.
“Home, home on the ranch” cantava com sua bela voz. Mais adiante vi um oficial de
olhos escuros com os distintivos de chefe administrativo. O jovem de rosto moreno
continuava a cantar. Subitamente lembrei-me de quem era. O Tenente Fron Wroma
pertencia à oficialidade do couraçado terrano Drusus.
De repente, ouvi alguém dizer:
— Lembrei-me de que a música e o canto sempre produzem um efeito benéfico
sobre o sistema nervoso de gente do seu tipo.
Ergui-me lentamente sobre a poltrona articulada, que estava em posição reclinada.
Lembrei-me de que meu segundo cérebro me obrigara a contar alguma coisa.
Perry Rhodan cumprimentou-me com um sorriso. Reginald Bell ofereceu-me um
refrigerante. Falando num tom estranhamente baixo e pensativo, disse:
— Afinal, acabaram chegando, almirante. Apenas demoraram bastante. Mas os
bárbaros de Larsa III se desenvolveram. Seu esforço não foi em vão, Atlan. E os que
vierem depois de você não voltarão a cometer o mesmo erro.
Limitei-me a acenar com a cabeça. Tinha de realizar um esforço para voltar a
raciocinar nos moldes atuais.
Deixaram que descansasse um pouco.
Depois de algum tempo, Rhodan perguntou:
— Parece que seu aparelho de alarma falhou, não é?
Sacudi a cabeça.
— Não; estava em perfeitas condições. Acontece que não apareceu nenhuma nave
espacial. Despertei a cada quinhentos anos.
Nessas oportunidades, dava uma olhada pelo planeta, mas faltava muito para que os
terranos atingissem o nível desejado. Para fugir à solidão, voltava a recolher-me à cúpula.
Quando despertei pela vigésima primeira vez, havia na face da Terra um grande império,
conhecido como o Império Romano. Infelizmente despertei um pouco depois da hora,
pois dormi enquanto florescia a cultura grega. Dali em diante, fiquei em cena, mas o
caminho, que teve de ser percorrido até a construção da primeira nave espacial, ainda era
muito extenso. Foi uma longa espera, Perry.
As máquinas da Drusus começaram a funcionar. Levantei a cabeça.
— É um som lindo, quase tão lindo como a voz de Wroma — disse em voz baixa.
— Foi uma ótima idéia mandá-lo cantar. Adoro esta velha canção, que costumava ser
cantada nos Estados Unidos. Faz muito tempo.

***

A Drusus decolou. O planeta artificial Peregrino foi-se afastando. Naquele instante,


tomei uma decisão: informaria os humanos sobre todos os erros que cometera. Talvez
isso lhes servisse de lição. A essa hora, já sabia contra quem lutara há dez mil anos.
Os seres terríveis vindos da outra dimensão temporal costumavam ser chamados de
druufs. Lancei um olhar para Rhodan. Ele estava tranqüilamente sentado em sua poltrona
de comandante e examinava os inúmeros controles da gigantesca nave.
Desta vez, não esperaria em vão pelos reforços de naves e material. Tinha certeza
absoluta. Esse homem, cujos antepassados trucidaram meu último companheiro, exigiria
a revanche. A revanche pela quase-destruição de um mundo que chamava de Terra.
Retirei-me sem dizer uma palavra. Fron Wroma me fez um sinal e sorriu.
— A transição será realizada daqui a dez minutos, Sir — disse em voz alta. — Logo
estaremos em casa.
Em casa! Que expressão maravilhosa! As escotilhas blindadas da sala de comando
abriram-se automaticamente. O ativador celular pulsava sobre meu peito. Cumprira
aquilo que um desconhecido me havia prometido.
Deixei-os a sós, esses barbarozinhos adoráveis. Valera a pena defender Larsa III.
Realmente valera a pena!

***
**
*

Mais uma vez, a arte narrativa, viva e fiel de Atlan,


trouxe à luz da história um dos capítulos da mitologia
terrana: Últimos Dias de Atlântida...
Mas será que o computador-regente já está em
condições de determinar a posição galáctica da Terra?
Em Tigris Erra o Salto, título do próximo livro, o Major
Clyde Ostal tentará responder a esta interrogação.

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