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Nota sobre o Restauro Digital: visando manter a originalidade da obra, este livro

foi digitalizado sem revisão ortográfica, sendo assim fiel ao português clássico do
tradutor Santos Saraiva.
A William Allen Knight, quasi desconhecido
entre os ibero-americanos, devemos as paginas
delicadas que saem agora á luz, accessiveis em
lingua Portugueza.
Até 1908, haviam-se tirado desse opusculo
350.000 exemplares em inglez.
O texto do psalmo é uma revisão do que o
hebraista Santos Saraiva publicou na “HARPA
DE ISRAEL”.
PSALMO XXIII
O Eterno é meu pastor; jamais terei penuria.
Elle faz-me repousar em virentes prados: ás
aguas tranquillas me conduz.
Elle restaura a minha alma; guia-me
por veredas de justiça, por amor de seu
nome.
Ainda quando caminho pelo valle da sombra
da morte, não receio mal algum, porque
tu estás commigo: teu cajado e teu bor-
dão são os que me confortam.
Tu preparas mesa diante de mim, na presen-
ça de meus inimigos: tu ungiste com oleo
minha cabeça; meu copo está transbor-
dando.
Assim, a bondade e a mercê me acompa-
nham em todos os dias de minha vida;
e eu assistirei na casa do Eterno para
sempre.
A CANÇÃO DO PEREGRINO SYRIO

ADUEL MOGHABGHAB, dis-


se o hospede a sorrir, mostran-
do lindos dentes muito alvos,
por entre os bigodes negros. E,
curvando-se por sobre a mesa,
apontava ao cartão de visita:
—“Faduel Moghabghab” repetiu elle, diri-
gindo-se ás meninas que o miravam curiosas.
“Accentuem em du e deixem cair os ghs, são
impossíveis para as suas gargantas”, accres-
centou, com bondade jovial que lhe brinca-
va nos olhos pretos e lustrosos, augmentando
belleza ao rosto vivaz.
Era homem captivante esse nosso hospede
syrio, e a espiritualidade de sua cultura, tão
notável como a distincção de suas maneiras.
Havemos de guardar-lhe por muito tempo a
lembrança, pelo que, naquella noite, elle nos
contou de seu lar em Ainzehalta, na encosta
das montanhas da Syria. O que, porém, nos
ficará ainda por mais tempo na memória é o
que elle nos transmittiu das suas recordações
da infancia.
—A vida pastoril da minha terra produ-
ziu ha muitos séculos a poesia religiosa mais
linda que já se compoz — o psalmo vinte e
trez. Ah! tantas coisas que nos são familiares
no oriente são estranhas para os que vivem na

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America, disse elle com o rosto serio e pen-
sativo .
—Sim, retorqui eu, e por isso commette-
mos erros mais sérios que a pronuncia defei-
tuosa de seu nome.
O estrangeiro sorriu graciosamente e con-
tinuou:
—Tantas coisas na vida de meu povo, que
são hoje como na antiguidade foram, estão
entretecidas nas narrações bíblicas e nos con-
ceitos religiosos ahi expressos. E os occiden-
taes, que não as conhecem, frequentemente
entendem mal o que está escripto, ou, ao me-
nos, não lhe tiram a impressão exacta.
—Fale-nos desses estranhos usos e costu-
mes, disse eu lançando para os rostinhos in-
quiridores um olhar paterno.
Depois de contar alguns casos de sua terra
continuou elle:
—Ahi está o psalmo do pastor. Vejo que
ordinariamente o entendem dividido em duas
partes: uma, sob a figura pastoril, outra sob a
de um festim hospitaleiro.
—Oh! exclamou a senhora que presidia á
mesa, explique-nos como se pode entender o
poema sob a figura unica da vida pastoril.
—De facto, observei eu, apoiando conve-
nientemente a critica literaria de minha espo-
sa. “Parece-nos que o poema quebra o rythmo,
quando passa das scenas pastoraes á descrip-
ção do banquete. Diz o senhor que o psalmo
conserva até o fim o seu caracter bucólico?
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—Perfeitamente, respondeu elle: é de
principio ao fim uma pastoral.
E com voz suavemente modulada, em que
o rythmo da musica realçava a reverencia so-
lenne, recitou elle:
—“O Eterno é meu pastor—jamais terei
penuria”; eis o motivo musical, cuja domi-
nante perdura até que as notas melancholi-
cas esmaecem no fim da canção. Tudo o mais
são variações.
E bem quizera eu reproduzir aqui o bri-
lho daquelle rosto, e as modalidades daquella
voz, emquanto elle descrevia os toques ma-
gistraes das sentenças breves do psalmo, ao
passo que as commentava.
—Cada sentença é distincta e accrescen-
ta uma nova idéa, que se não pode perder ou
confundir:
“Faz-me repousar em virentes prados” —
alimento, repouso.
“A’s tranquillas aguas me conduz” —
mudam-se as scenas e a idéa. Os occidentaes
vêem ainda aqui a noção do repouso, e per-
dem de vista um dos episodios mais lindos da
vida pastoril e uma das mais raras bemaven-
turanças da alma conduzida por Deus.
Durante o dia todo o pastor só pensa em
uma coisa — como ha de dar de beber ao seu
rebanho.
E’ a hora cobiçada, quando a diligencia
providente do pastor, entre os outeiros as-
peros e as planícies requeimadas achará “as
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aguas tranquillas”. Que delicia depois da cal-
ma e da poeira de uma longa marcha!
Querem entender aqui o sentido do poema?
Cumpre lembrarem-se de que as torrentes
são raras na terra do pastor biblico, e este não
conta com ellas. Mesmo quando as encontre,
o leito é fundo, a ribanceira é escarpada e a
agua precípite. As ovelhas são timidas e bem
podia a correnteza arrebatal-as fluctuando por
causa da lã.
—Pobrezinhas, disse uma das creanças
que sempre gostava dos animaes; e como é
que ellas bebem?
—O pastor arranja, retorquiu a outra mo-
destamente, olhos fitos no peregrino syrio.
—Sim, volveu elle, seria difficil ás ove-
lhas beber si o pastor não cuidasse disso.
E com aspecto grave, illuminado pela ex-
periencia da vida e dos trabalhos, olhou-me
de frente e disse:
—Irmão, nós já aprendemos que sentido
profundo ha nessa pergunta e nessa resposta;
que seria de nós si o Pastor não nos provesse
o refrigério de que precisamos? Elle, porém,
o provê.
Depois, fitando de novo com rosto ale-
gre os quatro olhinhos azues do outro lado da
mesa:
—Querem que lhes conte como o pastor
arranja para as ovelhas agua boa todos os
dias? Ouçam. Ha poços e fontes por toda a
vasta região em que vagam os rebanhos. Em
alguns logares ha cisternas; as ovelhas, po-
rém, gostam mais da agua corrente. Os pas-
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tores conhecem, naquelle paiz sem arvores e
onde as torrentes são raras, todos os logares
em que os rebanhos possam desalterar-se. E’
lindo ver quando os pastores conduzem seus
rebanhos “ás aguas tranquillas”, ao pé de
um poço ou de uma fonte, em roda estende-se
vasto e silencioso o deserto, em que vagam
muitas outras ovelhas, e por cima curva-se a
abobada do céu.
O pastor dá um certo signal; ouvem-o as
ovelhas, deitam-se e ficam mui quietas. Nun-
ca se enganam; ellas conhecem a voz do pas-
tor e não attendem á voz do estranho, se mui-
tos rebanhos estão reunidos. E, o que é mais
interessante, os rebanhos vêm em grupos; é o
pastor quem lh’os ensina; e em grupos elle as
conduz para as “aguas tranquillas”. E como
bebem ellas com o pastor ao pé!
Fez pausa, e como se olhára ao longe, ob-
servou:
—E’ uma linda scena, tão linda que S. João
a escolheu para descrever o céu: “O Cordeiro
que está no meio do throno será o seu pastor e
conduzil-o-á para as fontes da agua da vida”.
E, quando elle brincava com a chavena,
uma lagrima lhe rolou dos olhos. Como se
voltasse a si, continuou:
—Sempre que leio as palavras “ás aguas
tranquillas me conduz” eu me lembro de ou-
tra scena. Lá, nas ilhargas do Libano, onde
os meus têm sido pastores ha muito tempo,
não ha poços e fontes, como nas planícies,

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logares certos onde se possam abeberar os re-
banhos. As torrentes descem encachoeiradas
rumorosamente, pelos desfiladeiros. As ove-
lhas querem agua. Não podem beber no veio
saltitante. Que faz o pastor? Descobre uma
curva ou um remanso, levanta mais adiante
um pequeno açude e prende a agua, até que
ella forme uma toalha placida. Então, elle
conduz as ovelhas para “o logar das aguas
tranquillas”.
Não conheço outra coisa que melhor re-
presente o cuidado do Bom Pastor pelas al-
mas que se confiam ao seu carinho.
Renovou-se nas chavenas o conteúdo, e o
peregrino syrio proseguiu:
—“Elle restaura a minha alma.” Sabe,
disse-me elle, que nos escriptos hebraicos
alma significa a nossa personalidade, o nos-
so eu. Por toda a parte as ovelhas encontram
perigos e parece que nunca aprendem a evi-
tal-os. Deve, pois o pastor manter vigilancia
ininterrupta.
Si a ovelha penetra em terreno ou em vi-
nha de outrem, e fôr apprehendida, pertencerá
ao dono da terra alheia. Porisso, “Elle restau-
ra a alma” significa: o pastor faz-me voltar e
tira-me dos logares fataes e prohibidos:
—“Andavamos longe de Deus
Ovelhas desgarradas”...
E’ assim que diz o hymno, observei eu.
—Exactamente. Quando eu era menino,
vi muitas vezes como é difficil achar para o
rebanho bom caminho.
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“Guia-me por veredas de justiça, por
amor de seu nome”. A’s vezes um trilho leva
ao precipício, outro, a um logar invio, e o pas-
tor vae sempre adiante guiando pelos bons ca-
minhos, zeloso de seu nome de pastor.
Certas veredas vão ter a sitios onde ha
mortal perigo. “Ainda quando caminho pelo
valle da sombra da morte ” — é assim que o
psalmo allude a este passo da vida do pastor.
Em minha terra a expressão “valle da
sombra da morte” é muito significativa. Per-
to da casa de meus paes ha um “valle dos la-
drões”. A expressão do psalmo é, pois, usual
entre o nosso povo.
“Não receio mal algum, porque tu és com-
migo”. Ah! que palavras ricas.
Não importam ás ovelhas os perigos nem
os logares nem as difficuldades si o pastor
está com ellas. Não ha mais linda represen-
tação de caminho da paz para os afflictos do
mundo inteiro.
Afim de mostrar como importa ao reba-
nho a presença do pastor, eis um caso que não
é frequente, mas que observei mais de uma
vez. Acontece que, a despeito do cuidado do
pastor, um lobo ás vezes intromette-se no re-
banho.
As ovelhas tomam-se de pavor, correm,
saltam.
E’ impossível attingir o inimigo que talvez
nesse momento esteja deitando as garras ao
pescoço de um cordeiro.
Mas o pastor está com o rebanho. Salta
para cima de uma pedra ou de um comoro,
de onde póde ser percebido e brada: Huh!
huh! Ao ouvirem isto as ovelhas attendem ao

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pastor e as pobres creaturas timidas, ha pouco
presa do terror, correm então em massa com-
pacta. A pressão é irresistível; o lobo succum-
be; ás vezes é esmagado emquanto o pastor
brada “huh! huh!” “Não receio mal algum,
porque tu estás commigo”.
E olhando em torno disse o peregrino sy-
rio:
—Sim; nestas coisas somos mais que ven-
cedores por Aquelle que nos amou, e curvou a
fronte em silencio.
Depois reassumiu o poema:
—“Teu cajado e teu bordão”, isto literal-
mente reproduz o que se observa na vida do
pastor. A dupla expressão refere o ronda de
cuidados do pastor — o báculo para guiar,
a maça para defender; o cajado para tirar as
ovelhas das covas para o bom caminho, o bor-
dão para proteger das feras e dos roubadores.
Com maestria estas palavras descrevem o
que significa: “Tu és commigo”.
E que hei de dizer das palavras seguintes:
“Teu baculo e teu bordão são os que me con-
fortam?
Ah! minha senhora, desejára eu que vis-
se as ovelhas como roçam cariciosamente no
pastor, para que pudesse entender o que sig-
nifica “elles me confortam”. Brada o pastor:
Ta-a-a, huh! e o tropel das ovelhas a correr
para elle é o que melhor representa neste
mundo o que Deus é para as almas que lhe es-
cutam a voz. E hoje, na minha terra, ouve-se
esse tropel como no dia em que se escreveu o
psalmo do pastor .
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E o peregrino syrio entreparou como se
escutára o som familiar no Oriente longínquo.
Animando-se, levantou a mão delgada e
disse:
—Aqui, costumam interromper a figura
pastoral e introduzem a imagem do festim.
Perde-se desta arte o lindo climax em que se
integraliza o cuidado do pastor.
Nós aguçámos a attenção, porque presen-
timos que o peregrino syrio ia desvendar-nos
como nova luz o brilho escondido nessa can-
ção preciosa, o mais lindo poema pastoril do
universo .
—“Tu preparas mesa diante de mim, na
presença de meus inimigos.”Ah! E pensar que
na leitura perdem de vista a habilidade supre-
ma e o heroismo do pastor quando o psalmo
começa a cantal-os, a troco de um festim no
interior da casa!
A palavra mesa significa “alguma coisa
que se estende” e dahi, uma refeição prepa-
rada, qualquer que seja o modo de a servir. E’
nisso que o pastor em minha terra encontra
sua obrigação mais delicada.
Elle tem de examinar o terreno e a her-
va, até encontrar pastagens boas e seguras. As
ovelhas não comem certas folhas venenosas,
mas ha outras de que ellas gostam, e foi assim
que um de meus primos perdeu, de uma fei-
ta, mais de cem ovelhas. Além disso, ha ser-
pente que se occultaram nos buracos do solo
e, si estas não forem afugentadas, mordem
as ovelhas no focinho. Costumam os pas-
tores queimar a gordura de porco junto ao

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chão para afugentar as viboras. E’ frequente
achal-as nas covas de toupeiras, de bote ar-
mado para atacar as ovelhas. O pastor vae
adiante do rebanho para afugentar as cobras.
E nos barrancos, as cavernas são esconderi-
jo dos chacaes, lobos, hyenas e pantheras. O
pastor percorre o valle, visita as grutas, obs-

true-lhes a porta ou mata as feras com a longa


faca que traz á cinta. E’ destas proezas que
mais os pastores se gabam no detalhe dos cui-
dados que devem ao rebanho.
Eis ahi o perfil do pastor no verso apura-
do: “Preparas mesa deante de mim, na pre-
sença de meus inimigos”.
—Sim; repliquei eu. Percebo o cuidado de
Deus pelo homem no mundo. Esse quadro é
mais grandioso do que a imagem de um fes-
tim hospitaleiro portas a dentro. Mas, que sig-
nifica “unges a minha cabeça” e “meu corpo
transborda”?
—Oh! é uma representação do crepusculo.
O psalmo descreve a roda do dia, da manhã

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á tarde, as necessidades todas da ovelha, os
cuidados omniscientes do pastor. Agora che-
ga ao termo, com a scena final do dia. A’ porta
do redil está o pastor, com o báculo na mão,
e a cada ovelha elle dá ingresso afastando seu
corpo que fecha a entrada do redil — elle é a
porta, como Christo disse de si mesmo.
Com o baculo elle apprehende as ovelhas
e examina uma a uma. A esta elle unge com
oleo, áquella põe o penso da resina de cedro,
á que está porventura exhausta elle refresca a
cabeça com o oleo e, mergulhando o vaso de
duas azas no deposito de agua posto ali adre-
de, deixa a ovelha beber a lympha refrige-
rante.
Nada ha no psalmo mais bello que isto —
Deus cuida dos feridos, mas reserva seu ca-
rinho também para os cansados e exhaustos:
“ungiste minha cabeça com oleo, meu copo
transborda”. E depois o dia é findo, e as ove-
lhas estão bem juntinhas no redil, e na aboba-
da de um azul negro profundo accendem-se
as estrellas dos céos orientaes: Então vem —o
repouso e o conforto: “Assim, a bondade e, a
mercê me acompanham em todos os dias de
minha vida”, assim como neste dia que agora
é findo.
O coração que Deus amparou, protegeu,
apascentou um longo dia de peregrinação, faz
um voto: “Eu assistirei”, eu quero permane-
cer na casa do eterno para sempre.
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Acabou-se a canção, as ovelhas estão em
repouso, tranquillas e seguras no redil do bom
pastor.
—E será de pasmar que desde aquella noi-
te nós nos tenhamos acostumados a denomi-
nar este psalmo — “A canção do peregrino
syrio?”
A Ovelha Perdida
A Ovelha Perdida
—1—
Noventa e nove ovelhas ha
Seguras no curral;
Mas uma longe se extraviou
Do aprisco celestial,
Vagando nos montes de terror,
Distante do terno e fiel Pastor.
—2—
“A grei submissa, oh bom Pastor,
E’ para ti assaz!”
“A perdida é minha,” replicou,
“E’ minha a triste fugaz;
Vou para o deserto a procurar
A ovelha que ouço em dolor gritar.”
—3—
Ah! nenhum dos remidos imaginou
Quão negra a escuridão,
Quão fundas as aguas que Elle passou,
Trazendo a salvação,
Quando apressou-se a soccorrer
A perdida quasi a perecer.
—4—
“Por todo o caminho, donde vem
O sangue que enxergo alli?”
“Busquei a ovelha com dôr cruel;
Nos penhascos meu sangue verti.”
“Feridas vejo na tua mão!”
“A angustia entrou-me no coração!”
—5—
Sobem das montanhas acclamações!
E’ a voz do bom Pastor!
Resôa em notas triumphaes
O psalmo do Vencedor!
E os anjos cantam lá nos Céus:
“Folgae! a perdida voltou para Deus!”

(Musica — Psalmos e Hymnos 154)

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