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"Lagartos e coisas leves em reinos imaginários [Ana Fernandes]”

Os movimentos que impulsionam a artista têm a subtileza de um lagarto.

Ao trabalho de Ana Fernandes associam-se coisas, objetos, seres inertes [e


moventes], esculturas e demais configurações tridimensionais.
A volumetria, a profundidade, espessuras insuspeitas e ilusões morfológicas
regimentam definitivamente das matérias que a seduzem.
Estabelecem um universo peculiar, cujas significações complicam o olhar do
espetador, pois nada se reduz apenas ao que está imediato à visão.
Há que aceder a reinos, camadas de sedimentação metafórica, verdadeira e
convincente – qualidades que a artistas manipula com mestria, em simultâneo.
Estes reinos assemelham-se aos tecidos assertivos que se impõem através dos
tempos e obrigam o nosso olhar se retenha, decifrando origens e detetando a
subtileza crítica da intervenção desta escultora.

As subtilezas de lagartos deslizam, por encima dos tecidos, mediante os


movimentos que a artista lhes impulsiona.

Um pensamento impossível de domesticar premedita o destino das suas peças. A


estas subjaz a solidez de uma obra que é conceito e intuição em estado
descontaminado. É uma soma de ideias e intuições criadoras que se revelam em
trabalho autónomo e persistente, desafiando fronteiras e reinos premeditados.

Os lagartos são pregadeiras chiques que as senhoras usavam na lapela do


casaco para serem irreverentes.

Configuram-se diplomacias entre real e imaginário, endereçadas pela ação da artista,


que transporta a realidade e as coisas em ramificações incessantes. É uma espécie de
analogia à substância dos têxteis, cujas tramas, passagens de fios e entrelaçar de
lançadeiras de tear e mãos virtuosas sabem concretizar.
Traduzem, Igualmente, a consistência cultural de um tempo que é o nosso, em que se
vivem os tempos alheios, sobrepondo-se e interseccionando-se.
Vislumbra-se a concretização em que cada pessoa que recebe - em modalidade
estética - tudo aquilo que Ana Fernandes nos disponibiliza a fruir: reconceber e
reinventar como objeto estético, de cada um e de todos.

Seres lascivos, quiçá voluptuosos, porquanto decididamente inocentes perante


os predadores societários: os lagartos merecem reflexão atualizada.

Cada uma das peças – seja ela bidimensional ou tridimensional, por [e em] si, possui
uma identidade autónoma, que transfigurou os materiais de base ou os procedimentos
interventivos sobre eles; ou/e a convencional forma de os interpelar, quer as
substâncias, quer o proceder de Arte.
Ana Fernandes interfere no destino primeiro das coisas: escolhe-as, trata-as, cura-as e
outorga-lhes densidade societária e poética, num mesmo gesto intencionalizado.

Os organismos dos lagartos espiralam-se e criam dialéticas sucessivas que se


escapam...sub-reptícios e ironistas.

As iconografias, as iconologias, os vocabulários visuais, consolidados por Cesare Ripa


(e antes dele já manifestos) ainda driblam e pacificam as argumentações mais astutas.
Convocam as liberdades polissémicas que nos estimulam, pois transladam os
Bestiários menos frequentados na contemporaneidade. As escritas associam-se aos
ícones pertencentes a vocabulários visuais ancestrais, cumprindo funções semânticas,
visuais e proporcionando sinestesias. Os espectadores querem tocar nos materiais,
sentir-lhe as rugosidades tecidas, a aspereza das mãos que os produziram, tanto
quanto a interferência artística da autora.

As tatuagens de lagartos e de palavras (que são animais impulsivos mesmo


quando sussurradas) tornam a pele flexível ao pensamento. Agora grudam-se
em tecidos bordados como se fossem pele não descartável.

A lucidez, clarividência e naturalidade visceral com que a sua inteligência se move nos
territórios das coisas que parecem não ter sentido, surpreende no processo, quanto no
resultado das obras que nos apresenta.

Há muitas espécies de palavras, de tecidos e de lagartos. Incautos, todos: não


os tomem por camaleões, metáforas ou transfigurações, pois são engenhosos –
cada um em sua causalidade.

A ação é cúmplice do visionarismo que compreende a estrutura invisível das coisas –


pois Ana Fernandes sabe relacionar-se com linhas, materiais, suas formas e volumes.
Converte as “coisas pequenas da felicidade” parafraseando Nietzsche, numa extensão
e propriedade [quase] intransmissível de si mesma, exteriorizada, partilhando-se mas
sendo por elas tomada, pois a conduzem até à resolução artística mais consentânea e
lúcida. As coisas ínfimas expressam-se através de umas poucas palavras
sequenciadas, instituindo nessas variantes coreográficas, o que se designa por frases.
Decorrendo de um gesto, simultaneamente, irreversível e acariciador de sentimentos,
as palavras sozinhas evocam vivências antigas, ainda que indicando o futuro e as
consequências de cada um de nós a participar no [in]atual relembrando Nietzsche, que
Giorgio Agamben soube assinalar quando refletiu sobre “o contemporâneo”.

São seres, filhos da Terra, elementos que impulsionam revêries à superfície e


nas entranhas - G. Bachelard dixit.

A atuação artística de Ana Fernandes pauta-se pela coerência, fixada nas suas
certezas, agarrada à terra, elemento que metamorfoseia as suas efabulações
antropomórficas, vegetais e zoomórficas aqui em causa, olhando as obras que
integram esta exposição.
O ar é leve, todavia os tecidos que a artista estende e fixa, imobilizam-se, contrariando
os ciclos e dinamismos que as gerações impõem. Nos produtos têxteis reside a
história de quem os habitou: voluptuosos e pobres; angustiados e histriónicos;
sedutores e introspetivos. Nos tecidos permanecem as marcas, as células mínimas de
quem os habitou, mesmo após terem partido da terra, do ar, do fogo e da água.
Mas a terra é fértil. Todavia clama por que se cumpram princípios de austeridade e
exiguidade, que as palavras, as morfologias geometrizadas e os lagartos sejam
traçados com precisão cirúrgica…Entranham-se e deslizam, já se sabe. Atingem-nos,
havendo que destaca-los e autorizando-lhes relacionalidades inesperadas. Toda uma
história de sentidos concatenados, entre as indexações mais efetivas e as residuais
que se ramificam até se tornarem tão finas quanto as linhas de uma caligrafia bordada,
de caracteres tipográficos ou de grids de fios industriais finos, quase impercetíveis.
No caso de Ana Fernandes, agregam exotismos industriais, pois estes mecanismos
poéticos – quase inconscientes na receção estética - cresceram a partir de junções
heterotípicas.
Cheiram a terra no ar e em suas entranhas; pairam sobre as águas paradas e
fluídas; fogem do fogo: são lagartos.

A escultora segue a necessidade interior que pondera e apreende na obra a realizar:


como projeto, expandindo-se no espaço, como ideia – por um lado - e
foram/configuração em unidade – por outro. Identifica-se uma tríade, implícita no seu
processo criativo: ideia/conceção, material/substância e forma/configuração surgem as
peças bordadas ou enxutas (austeras sempre), produtos e objetos. As dualidades
triádicas instauram-se, instalam-se e adquirem a maior veemência e pregnância.

Acuidade visual das grafias e dos lagartos é notável: concilia filogénese e


ontogénese, pois claro.

As palavras descodificam-se mas isso nem sempre é preciso. Podem manter-se numa
condição de inominado e incompreensível que potencialize a imaginação dos
espectadores. Sabem-se em condição de serem desocultadas mais tarde ou mais
cedo, ultrapassando os seus âmbitos de significação mais literais e realojadas em
materiais surpreendentes. Assim como a figura do lagarto que fala com palavras
alojadas em tecidos metamórficos.
O lagarto é uma entidade simbólica; é arquetípico e mítico. Seduz ou suscita abjeção
nas pessoas, causa repúdio intrínseco ou provoca uma viagem a histórias de infância.

O lagarto é um animal domesticado sem perder a personalidade selvagem.

Olhar, nalguns casos, é difícil de dissociar do tocar. Quando se observa peças


tridimensionais, existe grande tentação de alisar a pele do mármore do Desterrado
(Soares dos Reis), de tocar na mancha de sangue escorregadio de Jaz morto e
arrefece o Menino de sua Mãe (Clara Menéres) ou de enrugar a pele da luva com
unhas de aparos de pena (Cruzeiro Seixas) e assim por diante. Assim sendo, porquê
espantar-se por lhe apetecer roçar o seu braço na pele fria (mas não viscosa) dos
lagartos bordados e corpóreos que sedentarizaram nesta exposição?

Eis que sabemos que os lagartos veem muito bem e gostam de ser acariciados
como se fossem crocodilos chiques.

A unidade existe nos objetos artísticos e estéticos de Ana Fernandes, convive e


dialoga, propiciando-nos a riqueza daquilo que é díspar e irreverente.

Maria de Fátima Lambert

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