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História
d.as Mulheres
110 Ocidente
'~oh ,1 direcção de
e ;,,,11gt's Duby e Michellc Perrot
Edições )4 Afrontamento
PORTO
=·· EBRADIL
SÃO PAULO
Escrever
c1 História das Mulheres
nário: um farol, uma bandeira reunindo tropas inc rt'ts? Hav rá que obrigam a que sejam consideradas como charneiras no desenrolar ;
tomá-la como o arauto da emancipação das mulh r s, u v"-la histórico. Charneiras diferentes dos cortes tradicionais - mas não
apenas como o testemunho perdido de pote~cialidad s n li gen- serão elas igualmente artificiais e ilusórias? Qualquer história dasf
·iadas, uma faísca tímida numa época obscura? Deveremos procurar- mulheres tem de fazer face ao problema dos acontecimentos que são ~
-lhe êmulas, uma consciência «feminista», a vontade de reunir as significativos para ela e sobre os quais o historiador possa funda-
suas irmãs numa luta comum? Resumindo, como ajustar o olhar, mentar uma periodização específica. Mais amplamente, esta exigên-
atrás dela, sobre essa metade da humanidade que tantos historiadores ·ia implica - repitamo-lo - a concepção que temos da inserção 11
- para não falar senão deles -passam tão facilmente em silêncio? las mulheres na sociedade em que viveram, ou seja, no conjunto das
Sem dúvida que é tentador colocar sobre um pedestal uma mulher r ·lações sociais e no tempo histórico. ~'
como Cristina; e deixá-la aí. Muitos autores nisso se empenharam
entoando o panegírico nem sempre inocente das mulheres de excep- Os artífices do nosso empreendimento explicaram-se mais ampla-
ção para melhor marcarem, com o seu desdém, todas as outras, as 111 'nte na abertura do primeiro volume: esta «História das Mulh r »,
que não fizeram a História. Nisso - dir-se-á - não fazem mais do obra colectiva, nã9 ~_fo_ng~ uma tese_, não milita a favor de um pro-
que retomar um procedimento que inspirou a táctica de numerosos p l' 'SSO nem de Ún;J. IBCUO a condi{ao femfo1na DOSdi~ e~·sos p rí d S
defensores das mulheres: louvá-las, através da biografia de figuras l ll(re os quais se repartiram -osseus- volumes~ Â noss a ambi ção nfo
notáveis. Cristina de Pisano seguiu ela própria esse caminho na lambém reavaliar todos os grandes problemas debatido ll'l 'lr na
defesa do seu sexo. O modelo de muitos dos retratos femininos da l1i, ·1oriográfica, nem traçar o quadro exaustivo das investigaçõ s iue
sua Cidade das Damas tinha-o Cristina encontrado em Bocácio, que 1 multiplicaram de há vinte anós para cá, nem esboçar uma sínt se
por sua vez o tinha plagiado dos autores antigos e das lendas familiares cios trabalhos levados a cabo nas duas ou três últimas d cad·1s 4 .
1
de forma a erigir o corpus das suas Mulheres ilustres, espelhos das 1 I' t nder fazer o inventário dos conhecimentos, muita v -z s i r10-
virtudes desejáveis e dos excessos do carácter feminino. De facto, a 1dores, mas ainda dispersos e bastante fragmentários, s r 'L
história das mulheres foi construída sobre os destinos de heroínas 1111 ilhcres na Idade- Méqia, conduzir-nos-ia a i"m -m~tagal I fus ')
sem par. Como se, em cada nova ·geração, fosse preciso que as 111 11 algumas clareiras. Parece mais urgente desloc.ar o olhar, susc itar
mulheres constituíssem uma nova memória, que reatassem um fio 11111 o 1tro esforço de leitura dos «factos » históricos , uma l itura qu
perpetuamente partido. Desde o final do século XIX que os explora- 'lll'I' à ideia ainda nova de que a diferença dos sexos e as r h 'Õ s
dores dos territórios femininos da história se orientaram frequen- 111 •les mantêm intervêm no jogo social, de que eles são CJÚ , ão ,e
temente por referências espectaculares. Na sua obra abundam as l ito ao mesmo tempo que motor.
biografias, marca durável impressa na maneira de escrever a história Nascer homem ou mulher não é, em nenhuma sociedad , u1 1
do segundo sexo. Estas balizas têm o seu valor~provar as capacidades 1 , lo biológico ne1:1trn, uma simples qualificação «natural» qu r-
femininas é seguramente trabàlhar para restaurar uma parte da his- 111 111 ça como qu~ inerte.- P~lo contrário, esty dado.é trabalhado p la
~ória, dar lugar a uma história que Joan Kelly qualificou de «com- 1H dade: as mulheres constituem um grupo social distinto, uj j
pensadora»2. Não se trata portanto de recusar abruptamente uma tra- 11 wt ·r - lembra-nos Joan Kelly-, invisível aos olhos da históri ·1
dição tão forte e longa e que se revelou muitas vezes fecunda. Este 11 , 11 ·iorial, não depende da «nature:2:a» feminina 5. Aquilo que se con-
procedimento é necessário em certos estádios da investigação sobre 11 ·ionou chamar «género» é o produto de uma reelaboração cul-
o lugar das mulheres na história 3, uma investigação que se · quer 1 1hl. 1uc a sociedade opera sobre essa pretensa natureza: ela define,
empenhada, participante; é, no entanto, insuficiente se se pretender 1 ·u"ld ra - ou desconsider~ .:__, representa"'.'se, control~ os sexo
·tceder a uma análise e a um entendimento das situações históricas 11 ,lop i ·amente qualificados e atribui-lhes papéis determinados 6•
q u tomem em consideração toda a realidade das relações sociais. 1111, qualquer sociedade define culturalmente o género e suporta
1 orque as personalidades que ela destaca sobressaem, despertam o ·0111 rapartida um efeito sexual. _Repitamos o que· muito bem
int r sse. Mas monopolizam as atenções, e há que interroganno-nos uma antropóloga americana: «O géner<?__é uma divisão _ggs
sobre o fas cínio que exercem. 11 soc ialmente imposta[ ... ], um proTiuto das relações sociais de
Voltamos, portanto, à questão que o destino de Cristina nos ins- 1 11 tlichde» que «transforma machos e fêm@as -em"homens" e e.~.
11 1111111,clns profu ndas, entrever os membros mais humildes da socie- 1 J)l'l'ia listas do final do período beneficiam, é certo, de uma mul-
cl ,il,• , 11plir:11,; , o das fontes de informação que os seus colegas interessados
F111 t10, 4ue valor têm para as mulheres as divisões cronológicas 11111 ,·pocas mais antigas parecem invejar. Elaborando novas formas 1
lntrodução lí
uus quais, pelas suas intervenções específicas, homens e mulheres ll'dagogos e autores de tratados de economia doméstica. A isso
imprimiram a marca das suas relações recíprocas. ·e ded icam Carla Casagrande e Silvana Vecchio. Sob o infatigável
. ' 1nurLelar das admoestações exortando a conformar-se às virtudes de
que constitui em primeiro lugar «a mulher» - modelo ou oh ·diência, de temperança e de castidade, a guardar um silêncio,
contraste das mulheres, que são o nosso objecto - é o olhar qu~ uma imobilidade, uma reserva quase monacais, as autoras revelam
sobre ela põemos homens. Muito antes de sermos capazes de nos 110 entanto os ecos tímidos de uma nova ética das relações conjugais .
npercebermos do que as mulheres pensam de si própria~ e jas suas Aspecto particular do controlo da esfera feminina ao qual aspira
r •lações com os.homens, devemos passar por este/filtro masculinõ7 unanimemente o sexo masculino - clérigos e leigos identificados
Um filtro pesado, visto que transmite às mulheres modelos ideais e , a legislação sumptuária ataca de forma crescente o vestuário e os
regras de comportamento que elas não estão em condições de con- adornos das mulheres a partir do século XIII. Diane Owen Hughes
1 ·star. É pela discussão destas regras e modelos que escolhemos mostra como a repressão dos excessos sumptuários, doravante assi-
começar, porque os seus constrangimentos marcaram, talvez mais nalados apenas nelas, trai, ainda aí, a presença das representações do
do que em qualquer outro período, o lugar dado às mulheres na rnrpo feminino como instrumento de perdição e sinal indelével do
sociedade e, inversamente, porque a sua análise permite decifrar as p 'cado original.
relações sociais de sexo que estão na sua origem. Se a repressão da sexualidade, a clausura do ameaçador corpo
Os homens têm ·a palavra. Nem todos, certamente: a grande f" •minino, o enquadramento do que ele emite ou profere, o controlo
maioria cala-se. São os clérigos, homens de religião e de Igreja, que daquilo que nele manifesta a enganadora beleza estão no centro das
governam o escrito, transmitem os conhecimentos, comunicam ao representações e das admoestações tratadas por esta primeira parte,
seu tempo, e para além dos séculos, o que se deve pensar das mulhe- 11 0s capítulos seguintes é o casamento que se torna vedeta. Numa
res, da Mulher. A nossa escuta do discurso medieval sobre as mulheres segunda etapa escolhemos com efeito decifrar, num quadro crono-
é durante muito tempo tributária dos seus fantasmas, das suas certezas, 16gico com malhas muito largas, as estratégias concretas inspiradas
das suas dúvidas. Ora, diferentemente de outras épocas, esta palavra p~los momentos _críticos da vida das mulheres, aqueles em que elas
masculina impõe de forma peremptória as concepções e as imagens tinham por vezes a oportunidade de fazer ouvir a sua vontade, talvez
que delas faz uma casta de homens que recusam a sua convivência, 11 sua vocação. Momentos em que se cruzavam, e muitas vezes se
homens a quem o seu estatuto impõe o celibato e castidade: por isso rnntradiziam, em torno do casamento, da entrada na vida religiosa,
mesmo tanto mais ásperos em estigmatizar os seus vícios e imper- da maternidade e da solidão, os constrangimentos do seu meio, as
feições quanto elas lhes continuam inacessíveis na vida quotidiana; funções que lhes destinavam na reprodução da sociedade, as ambi-
e forçando tanto mais o traço quanto as heranças do seu imaginário ,oes de promoção familiar e social.
são largamente livrescas. Acumulados como camadas arqueológicas, Para apreender estas estratégias concretas em que se inscrevem
argumentos terrivelmente antigos, cujas bases científicas ou éticas quer as aspirações das mulheres quer a sua participação no j ogo
puderam perder qualquer coerência ou validade, prosseguem a sua soc ial, nem as «autoridades» masculinas nem as vozes femininas,
vida própria, arrastados na roda de uma lógica um pouco louca: o quando se deixam aperceber, são suficientes. Aqui, são os materiais
corpus das crenças médicas sobre a natureza física da mulher, que d· que dispõe o historiador que primeiro impuseram o corte tempo-
laude Thomasset aqui apresenta, é um palimpsesto de saberes de rnl. Para as épocas mais altas (séculos VI-X) tratadas por Suzanne
fundamentos contraditórios. 1 Wemple, a combinação das fontes nairntivas e normativas, as pri -
Longe de endossar as simplificações ou os pares de oposição que 111 ·iras temperando as segundas, guarda a sua fecundidade e validade
'struturam tais concepções, temos que desmontar estes sistemas quando, à falta de outros documentos, o historiador tem que deseme-
s ' 111 negligenciar os elementos inovadores que, surdamente, mudam d11r a meada das prescrições e adivinhar a sua transcrição na realidade.
os sinais destas polaridades - Jac ues Dalarun mostra-o acerca da O período feudal, que Paulette L'Hermite-Leclercq esclarece,
.J . .
1r ode sagrada: Eva, Maria e Madalerra, que reonenta a mterpreta- 111ultiplica os documentos deste tipo, mas ela acrescenta-lhe já refe-
c;, o feita pelos clérigos da- singularidade teológica da feminilidade. 1t ncias mais numerosas à prática - arquivos de instituições reli-
O ll1 'S ITIO trabalho que põe em causa as relações entre os sexos que ~iiosas, de senhorias, correspondências de homens de Igreja, de
pn,du:1,iram tais representações impõe-se sobre o vasto corpus dos kigos e por vezes de mulheres, para não citar senão alguns destes
1111>d •los cl comportamento religioso ou doméstico que são propostos novos utensílios. Os inquéritos hoje florescentes de «micro-história»
111u lh ' r s, entre os séculos XIII e XV, por pregadores, moralistas, lmzcm aqui o seu contributo, sugerindo um caminho; sabe-se que
1111, 111 '
l'I ·s isolam ccrLos ca os, visLos ao mesmo tempo na sua marginalidade
ou na sua exeepcionalidacle - e pela representatividade que se
Ih ·s atribui: histórias ínfimas, reveladas pelos regisLos das instituições
repressivas, as correspondências epistolares, os diários íntimos saídos
dos sótãos. A sua interrogação convém às perguntas que nos colo-
camos sobre as tácticas de resistência, sobre as condutas de submissão
ou de oposição elas mulheres, sobre os «contra-pode res» que elas
erigem. A documentação medieval é ainda avara destes dossiers que
fazem as delícias dos modernistas_._O ~ítulo dedicado aos séculos
\ XI-XIII por Paulette L'Hermite-Leclercq mostianoeni:anto, na anál(se
das estratégias famil iares e das tácticas femininas decifradas através
de situações particulares , o partido que se pode tirar de explorações
minuciosas análogas às da micro-história. Em contraponto, as páginas
consagradas por Georges Duby às estratégias que inspiram e utilizam
o modelo civilizador cio amor cortês alargam o quadro de referência
destas estratégias - mas estratégias cujos actores e recursos são
antes de mais masculinos.
O período final abre por sua vez sobre novas mudanças de proce-
dimentos, já que as fontes de infonnação se multiplicam e o serial dá
entrada na cena historiográfica. À luz de projector detalhando um
pedaço de vida, explorando meticulosamente os jardins secretos ele
um indivíduo, torna-se possível por vezes preferir a generali zação
de observações consideradas como acumuláveis e o quadro do con-
junto, apoiando-nos, nos melhores dos casos, em rea is descrições
totalizantes. Certamente que os especialistas da Baix a Idade Média
se lamentam também da sua miséria documental. E há que confessar
que, quando eles se arriscam a raciocinar na base de núme ros e de
médias, os dados, por vezes, agradecem-lhes com caretas e anunciam
em grandes cifras as suas malandrices. Se a panóplia mais rica do
historiador deste período lhe traz outros meios de investigação e
j ustifica aproximações diferentes, acontece que o. números, por si
mesmos, não trnzem resposta sem ambiguidade aos problemas das
mudanças que dizem respeito à condição da mulher; eles não auto-
\ 1t1,1rn 111 d:t mulher é, antes de ma is. rizam de forma alguma o historiador a poupar-se à desmontagem
11 ,lo· 11111,1 pnsonagcm silenciada e crítica das narrativas tradicionais,_O capítulo que Claudia Opitz
~11/t1 1w1 id11 110 pmlcr cios homens. consagra a este período tardio denionstr a, de maiscle um ponto de
eI qt '" d1, 1i11g11 ir:í «o feminino» no
1111111tl11 l1•11d11I'/ Q11c mu lhe r se estudará vista, como os nossos conhe6meritõs fragmentários da demografia
1111111 '/ A q11,·, ,·01110 na ilustração, antiga, por exemplo, sugeriram a alguns generalizações apressadas
1111q1111l11 110., S\'US afazeres, sai à
1·1111111d11 ;1 ,•11id111 da, l'lorcs ou a 4ue ou vacilantes. De facto sabemos muito pouco em matéria de demo-
1n•11lllllll'<i' 1·111 rn,a vigiada pe lo grafia diferencial, e poder-se-ia dizer o mesmo da nossa impotência
11111111iu'/ l ,1v11· 1111 1·,1.· rava. exploradora cm calcular a parte precisa que cabe às mu lheres na produção
011 n pl111,ul11, .1 ov1•111 ou anciã, activa
11111·u1111•111pl11tiv11. toda, e urna . econ6mica, na criação dos bens materiais como na redistribuição
l 1u11m•11111 d1· / ' 1\111/010 oi Ca/1•ario de dos excedentes, numa época em que as fontes de riqueza se multipli-
t\11d 1,• d1• ll111H11111110, 111l'adw, cio
,1·1·1110 X IV . 1·101 ·11~·:1, Santa Maria a cam e se diversificam, e em que as trocas se aceleram. Numa época
Novtt, ( '11pl'lu do, 1i,panhüis. donde nos chega também , mais forte, a voz das mulheres .
Introdução
- - - --- ~
Introd ução
Notas
1. Cristina de P isano , La cité des da111es, trad. e introd. de Eric Hicks e T hérese
Mo reau, Paris, Stock/Moyen Age, 1986, pp. 37-8.
0
As norn1as
do controlo
.,·,
1 ,,
Perante um nu feminino convencional, os médicos d iscutem enquanto o aprendiz executa. A imagem centra-se naquilo que iden-
tifica o corpo fem in ino como «máquina para gerar»: o sexo, o ventre, a matriz. Miniatura de A morte de Agripina. Dissecação
de um cadáver, do manuscrito O espelho da morte, por Thomas de Gerson, ca. 1460. Carpentras. Biblioteca Inguiumberti ne.
As normas do controlo 2
f
1 extensão das capacidades jurídicas das mulheres ou. o seu exerd-
1 cio do poder, parece apenas ter estado à espera de Aristóteles para
pt·11tc é identificada com o Diabo, Eva com a tentadoru , \' '1'1 111111 111,
( 1· t:. 223) exclama, dirigindo-se a todas as mulheres: «N 111 ,d11 111
acção reformadora na base. Tocaram em todos os géneros: tratados qu · és Eva, tu também? A sentença de Deus tem aind11 111111 1111li111
teológicos, comentários às Escritu ras, vidas de santos, poesia latina, vigor sobre este sexo, é preciso portanto que a sua ·1ilp 1 ,111, 1 11
sermões, cartas de direcção espiritual; um espectro completo que 111111h m. Tu és a po1ta cio Diabo, tu consentiste na suu n1vu11 111 1
conduz permanentemente da teoria à prática, regressa depoi s das 11 primeira a desertar da lei divina»9•
realidades à conceptualização e, claro, da mulher às mulheres, das A carta de Godofrédo dirigia-se aos seus monges. 1~111 111, 1 111 ,
grandes figuras legadas pela Escritura e pelos Padres aonde lhes q11t· •le convencesse esses companheiros do Cordeir i11111t 11!111111, p1,
parece revelar-se melhor a essência da feminilidade às suas desti- 11 sua escolha de recusarem a sua parte na carne, de s · 11 111 1111 , 111 il 1
natárias, às suas ovelhas ilustres ou anónimas. 111ulhcr, moralmente hedionda desde a origem e cuja lwl1
11 \'iu l constitui o pior dos logros, era a boa escolha. N11 1, 1!111
Od1odcCJu~(t 942),retomandoaadvertênciade J@o< '11 111t-i111
A inimiga ('I' '107) corilia Eva, inspirava aos seus monges os nws,1 111 li 11111
s11 lu1urcs: «A beleza do corpo não reside senão na p li..'. <'11111 i 1, 11 11
Na priiyeira abordagem, eles fazem tudo para dar razão a R. st· os homens vissem o que está debaixo da pele, a vistn d11 111111111 1
Manselli: «Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era d111· lhes-ia náuseas ... Então, quando nem mesmo co111 1 11111111 d,
também 'o seu marido e pai, estrangulou João Baptista, entregou o 1il'dos suportamos tocar um escarro ou um éxcremcnLo, c111 1111 I""''
corajoso Sansão à morte. De uma certa maneira, também, matou o 1110s d scjar abraçar esse saco de excrementos?»'º· N, o t'IH 1111d, 111 1
Salvador, porque, se a sua falta o não tivesse exigido, o nosso Sal- pt· k dos homens, talvez menos fina, os mesmos hun1w·1• ' \ 1i1, 11
vador não teria tido necessidade de mo1Ter. Desgraçado sexo em 11 o afl ora ao abade de Cluny.
que não há nem temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de liin 1105 , Godofredo reincide numa carta a l lild1•l111111 d
temer quando é amado do que quando é odiado»4 -Á primeira mulher l ,11vardin. Trata-se de o pôr de sobreaviso contra a ini111ll'11 1111 11il, d,
que surge sob a pena de Godofredo de Vandoma por volta de 1095, 11 hnde da Trindade, a condessa Eufrosina de Vandoma . Vi 11 v11 d, 11111
in~ugurando e resumind;'í?do .º seu sexo, é-Evv A narração ~ª.i ,,' 11111 rido morto na cruzada, ela é depositária dos interesses d1• 1t 111 , 1 1
Cnação e da Queda no Geneszs pesa permanentemente na v1sao 1· dispula a Godofredo direitos sobre a região; confli1 0 r ·11d11I l 111 11 ti
medieval da mulher; narração complexa, como se sabe, tanto na sua l'111 que o picante vem do facto de os azares da Cruzada li 1111 ,1,,
redacção como no seu conteúdo, mas cujos traços mais salientes, os 1t·111pos? - terem dado ao abade misógino um riva l cio rn11111 1 "
mais facilmente retidos - tanto mais quanto encontram eco nas .. T •ndcs de tomar cuidado, venerável prelado, para qut· 1 1111111,, ,
Epístolas de Paulo - , são altamente desfavoráveis ao «segundo 11uo abuse da vossa simplicidade e não vo force a 111•ii l 11111 1 1 1
sexo». O j eovista afoma em primeiro lugar a primazia do homem vossa mãe, a Igreja romana. O sexo feminino esLá. muil o m·o 111, 111d11
sobre a sua companheira, a qual só é criada em segundo lugar, de 11 abusar». Pérfido Godofredo, que teme que o bi spo d · M1111 1111111
urna costela do homem, para lhe dar uma «ajuda que o complete»5 • o parlido de Eufrosina: Ivo de Cha.rtres revela-nos q11t·, 111111 d,
Preci samente a partir do século XI, como mostrou Roberto Zapperi, a ·cdcr ao episcopado, Hildeberto teria tido uma mu li icl H1 d, 1tll 11,
a iconografia condensa o texto bíblico num resumo espantoso: a ·opulando sem vergonha com mulier cufae, mulh ' f" 'H <il' lt111 11, 1111
/
Olhares de clérigos 3
1 1111111» 1}.
1wrva porteira» vem da n arrativa da paixão segundo S. João 13 .
1 11 Jt 11 11ou-se na p atrística uma das imagens favoritas de Eva, já q ue
I'', li 11111 Pedro à negação como outrora pressionou Adão à queda.
1 ,1 e onduziu mal Adão, a serva introduziu m al Pedro», explica
1\1 l 111m de T urim entre os séculos IV e V 14. Na m aior parte das
, 1!1111111~ tradicionais, a mulher está mais próxima das forças mis-
1• 1111 1 da vida e da morte do que o homem. Porta da vida, ela vela
111111!1 111 pelos últimos instantes, no limiar da outra grande passagem.
l 1 1110 de T urim , Godofredo de Vandoma, a sete séculos de.dis-
1 1111 111 , quebram este balanceamento. A serva porteira já não abre
1 11 11 obre a Queda. Mas assim como na idade romana o reemprego
1 d1111 lll t', polígamo, teve filhos . Por seu lado, Roberto de Arbrissel
1 1 1 1 1()) é filho de padre. Retomando o curato do p ai na Bretanha,
, ,11h1•1·t· u por sua vez o pecado da carne. Depois andou errante, ere-
1111111 , d ·pois pregador, em breve seguido por uma turba mista em
1111 li11111cns e mulheres estão lado a lado, se deitam a trouxe-mouxe
1111 11 A lo dos bosques. Por volta de 1098; Marbode de Rennes fulmina
, 1p11 r comunicar ao destinatário da sua carta o nojo da carne, da
11111ll11•r: ·i-la, à vez, tentadora, feiticeira, serpente, peste, traça, comi-
1 li 111, wncno, chama, embriaguez. Que resultará destas experiências
Guy Devailly ass inalou que na longa carta dirigida por Marbode • 1111 dm Padres, principalmente com os autores dos s' ·ttlos 1 1
a Roberto de Arbrissel o nome de Eva, por todo o lado implícito, não 11 11 1.ih lidos; acordo profundo nascido do paralelo das ·011 j11111111 1
surgia nunca 17 • No poema Da mulher má, terceira parte do Livro dos ~ N11 11 11111 IV, num tempo em que a ascese toma o lugar cio 11111 1111111
dez capítulos, o bispo de Rennes confiou à sua musa o cuidado de 111111 p ll ll' dos homens, ciosos da sua virgindade, sepani sv d, 11rl,
juntar todas as imagens misóginas que lhe oferecia a sua vasta cul- 11111111111 p11ra enfrentar a tentação do deserto: os mong •s , N 11, t 111
tura clássica e patrística. Rosario Leotta esmiuçou todos os versos 18 . li,11111 dualistas, o mal identifica-se então cada vez mai,~ ,, , 111 1
É um dos fragmentos da literatura mais misógina que nos pode ser • ,11111·1111• com a carne . Desta vez, na viragem dos séculos ;,.. 1 11 ,
dado ler, ultrapassando de longe a Sexta Sátira de Juvenal ( t c. 140), q11,111d11 11 lentação dualista espreita de novo no campo dn, 111 111 ,
de que Marbode se serve no entanto largamente, igualando o Cân- 11111111111111. o apenas manter sem falhas os monges nos ' 11 p111p11 11 ,,
tico sobre o desprezo do mundo de Rogério de Caen (t c. 1095). A 11111 111·1111 te - «Pastores, afastai dos vossos rebanhos as 1111111 1,q, 1
femina, ataca Marbode - e, ainda aqui, o nome da «mãe de todos 11 , r li11 11a Rogério de Caen23 - , mas também clcsvi11 1· 1w l11 "
os vivos» é cuidadosamente ocultado - é «a pior das armadilhas 11111111~ cl ~rigos da mulher tentadora: bispos nicolaílas, l', 1111111 111
preparadé;is pelo Inimigo», «raiz do mal , fruto de todo · os vícios». d, 11111, indo curiosos, padres giróvagos em busca de l' p1•111 11, 11
Do termo f emina resvala-se para o uso de meretrix , a prostituída: 1111v11~. Na geração ante1ior, Pedro Damião (t 1072), o gr1111d, ,, 1111
«Uma cabeça de leão, uma cauda de dragão e no meio nada mais do 11111drn·, linha-se lançado com uma raiva inaudita con1 1·11 1 11111
que um fogo fervente» 19. Aviso a todos os clérigos-escolares que , 1d111111s dos clérigos», «chiqueiros dos porcos gordos ,, 11111111
empalidecerão com estes versos do retórico: eles que não se 111111·11s de tigre», «víboras furiosas»24 . Assinalemos, ç1H1l11d1, q11 ,
exponham a essa fornalha! 1111 1<'11111<..;a elo Oeste nenhum destes panfletos se dirig' 1s 111111!1, 1,
Chama e cinza. Hildeberto de Lavardin contribui também com a 1111 111vs1110 aos leigos: é puro assunto de disciplina e ·k'sl11 I h ,1
""~ - -,
sua estrofe. Os três maiores inimigos· do homem são a mulher, o O terna não é novo; o que o é, é a violência do assn ll111·, 111,, 1 11
dinheiro, as honras/ A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser no tl rn, 11ossos autores, a não nomeação da inimiga. A mu llw1 p 11111 Ir
crime, não deixa nunca espontaneamente de ser nociva. A mulher, j11111o é Eva, é alnominável,no sentido mais forte cio ll' 11 1w 11111 ,11 11
chama voraz, loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina 1 ~lll eslranha discrição? É que, segundo Isidoro de Sl Vll l111 , 1 11j 1
1
/\ pesar de transmiti r uma imagem de
maternidade humana, esta Virgem tudo o que pode prejudicar. A mulher, vil f orum , coisa pública, 11hias Etimologias constituem uma das chaves essen ·iu s d11 1 I N 111
gólica é antes de mais o trono de nascida para enganar, pensa ter triunfado quando pode ser culpada. 1111•dieval dos clérigos, Eva é vae, a desgraça, mas talllll1111 1/f,1 1 1
A Virgem-Mãe
As Lobas no redil Misóginos, os nossos prelados são-no sem rodeios. Para alimen-
tar e confortar os seus preconceitos recolhem materiais tanto da O século XII, repetiu-se à porfia, foi o 1 rand1· S ( l'liln tl 11 11 ,q,1 tl "
tradição cristã como da latinidade clássica: o poema Da mulher má mariano, a primavera das catedrais, o t ·mpo pk•1H1 d1 r111 ,
converteu-se na sua antologia. Eles estão de acordo com a mensa- Senhora»; impulso visível ma que se a li ,n ·11111, l'011 10 11 1,1 11111, 1 11 1
Olhares de clérigos 4·
1,, h 11q, d11s inova · 'S vindas do século XI, que é o da mais viva «Única, sem exemplo, virgem e mãe Maria». Orações, mas Maria sempre mais virgem
1, 11111 11111,· lo m11dnna. Un1endamo-nos: como as nossas fontes atestam, 111111bém meditação, especulação sobre a natureza, a identidade, as
li, 111, 1 1111111 · 11 s aqui Marbode, Godofredo - que rezaram fervo- vii 1udes específicas de Maria. Dos quatro· grandes dogmas pelos
111 111111•11I L' 11 Mari a, lhe confiaram as suas faltas mais inconfessáveis, q11ui s a Igreja a aborda (maternidade divi na, virgindade, Imaculada
1111 d1•dlc11rn m os s us poemas; ou ainda - Godofredo, Hildeberto <'onceição e Assunção), os dois últimos não foram promulgados
, q111• n1t·cli1uram sobre o mistério da sua excepção. «Única, sem senão bastante depois da Idade Média (1 854, 1950), ainda que
1 1111plo, virgem e mãe Maria», como afinnam diversas recolhas 1 •11ham desencadeado as paixões mais cedo, desde o século XI, o u
1111111f111 i11s1'1• Q uer d izer imediatamente que louvar a Virgem-Mãe mesmo do século VIII. A ideia de que Cristo, plenamente homem
111111 dL· 111un •ira a lguma prestar homenagem ao conjunto das suas l' plenamente Deu s, tenha sido gerado por Deus na carne de uma
11111 1110d ·stas co-irmãs, como muito justamente pressentiu Jules mulher e que esta mereça em consequência o título de «Mãe de
M1dll'kl. Deus» fixou-se em época remota, nos debates sobre a natureza do
Filho que, da gnose ao arianismo, envenenaram o cristianismo do
século II ao século V. Na época medieval, ninguém põe em dúvida
N11s h ' líss imas Orações antigas do Ocidente à Mãe do Salva- estas verdades de fé, proclamadas pelo concílio de Éfeso em 43 1,
,1,,, , qu · foram coligidas por Henri Barré, dificilmente se encon- retomadas pelo concílio de Calcedónia em 451.
11 11 11, dt•sd · as origens ao século XII, o apelo que uma mulher dirija A maternidade virginal já não é discutida. A sua aplicação exacta,
p111 i.i pró pria à que é «bendita entre todas», ou o simples pedido a sua form ulação precisa ainda agitam, contudo, os espíritos. A
eh 1111 111 i111 rcessão de Maria em benefício de uma das suas seme- virgindade de Maria, no Novo Testamento, não é afirmada senão na
111 11111•s. Q uando, no século X, a monja alemã Hrotsvita compõe uma concepção e apenas por dois evangelistas: Mateus, por ocasião das
111 ,~to I Virgem, põe-na na boca do vidama Teófilo, libertado por reticências de José: «E sem que ele a tenha conhecido, ela deu à luz
M11 11 11 d· um pacto com o Diabo. Pelos finais do século XI, um um filho»31; Lucas, no diálogo de Maria com o anjo Gabriel: «Como
/ 11•1 n r/1• ornçôes composto por uma religiosa apresenta um centão se fará isso, se eu não conheço homem»32? É o Prato-Evangelho de
d, p1•,·11s j á conhecidas, sem o menor acento feminino. Composto Tiago que avança claramente, sem dúvida no século li, a ideia de
1111 1111·sma época para uso de uma grande aristocrata, o Livro uma virgindade intacta após o nascimento. Jerónimo afirma-o com
,/,• <,'1•rtmdes contém orações marianas mais pessoais e redigidas força, no princípio do século V, no seu tratadoAnti-Helvídio. E o tema
1111 l1·111i11ino singular. Mas, na maior parte das vezes, é para o seu não sofre depois disso mais contestação. Autores há que vão mais
1 lho uni ' O e real, Pedro, que Gertrudes dirige os seus pedidos à longe ainda: desde o século III Clemente de Alexandria (t c. 215),
Vl 1pt•111. ; para uma literatura de menor prestígio, tal como os no século IV Zenão de Verona (t c. 372), Ambrósio, no século V
Altl//,t/l'l',1' de Nossa Senhora, que precisamos de nos virar para Agostinho, Pedro Crisólogo ("!" c. 450), Leão Magno (t 461), na
1 1110111 rnr ' 111 massa mulheres, em geral m ães, salvas pela Mãe do viragem dos séculos VI e VII Gregório Ma.gno33 ("- 604), no século
S11lv11d1u·. IX Pascásio Radberto (t 863) militam por uma virgindade no parto:
M11rl>od • de Rennes, Godofredo de Vandoma, herdeiros do grande «sem abertura do útero», precisa Gregório Magno depois de Santo
p11 1 111 sor mariano F ulberto de C hartres (t 1029), exercitam-se por- Efrém (t 373); «vulva e útero fechados», repete Hincmar de Reims
11111111 1111s oruc: < s fervorosas à Virgem. Sem alcançar as alturas do ('!" 882)34 antes de Pedro Damião.
, 11 111111 o Anselmo de Cantuária ou, meio século depois, da obra A Deus tudo é possível, mesmo o mais incrível. O nascimento
1111111111111 111 ribufdu a Be rnardo de Claraval, empolada com os escritos virginal é contudo o ponto mais difícil de admitir. Quando Godofredo
d11 1 11 ~ 11111los d numerosos apócrifos, eles inscrevem-se na de Vandoma redige o seu sermão Na Natividade do Senhor, uma
l111cll~ 1111 ,. plon1du por Henri Barré : exaltação poética da «virgem dúvida subsiste ainda, já que e le diz querer refutar o erro daqueles
1 111111 1 p tt•t osa», «stella maris» (<<estrela do mar», segundo o jogo q ue pretendem que Maria foi virgem antes e após o parto m as que a
1h pul 1v1, 111· •i1{), «porta do Céu»; piedade filial pela Mãe do Sal-. porta se abriu no parto. Ele comenta o versículo de Ezequiel sobre
111111 , 1•111li 111111;11 nn indefectível intercessão daquela que é «refúgio «a porta na casa do Senhor, fechada e que não se abrirá»35 . Já Gregório
ili 1 111111cl111 ,, " ~'H P' rai,ça dos homens» 30 , incluindo os mais culpa- de Nissa (t 392), Ambrósio ou Jerónimo tinham visto nela o sím-
ili I d11 q11 11I M11rbod 1 m a certeza de fazer parte. Maria é a Mãe bolo da virgindade mariana; como a sarça ardente que arde sem se
11111 , 11 1 111111 , 1w s ·io da qual o filho indigno pode vir esconder a consumir, a arca da aliança de madeira imputrescível, o tosão de
li 1 1 1p1111l111 cdeão coberto de orvalho, o jardim aferrolhado e a fonte selada do
•111l olo Olha res de clérigos 43
França do Oeste para explicar que uma vida santa pode acontecer a 1 l11111111cnte, da prostituta, é o único m odelo. Para as dt·s1·1 11il1 111 1 d 1
uma mulher, e até mesmo a uma mulher casada. Exaltada como prnt•: irn ela morte, que não souberam aceitar o impoN 1v1 I 111 !111 1
esposa casta e sobretudo como mãe dos seus prestigiosos filhos , 111i11inno - permanecer porta fechada mantendo-se ao 11 u• ,111111 1 1111" 1
Godofredo de Bulhão e Balduíno de Jerusalém, ela tem por fim o po1 tu da vida-, não há salvação senão pela poria 1wq1 11 1111
bom gosto, uma vez viúva, de entrar na dependência de Cluny 53.
N unca a comunhão dos santos acolheu tão poucas mulheres como
entre 1050 e 1100 54 • E las projectarão noutros lados, nas sendas do Madalena
desvio, da mística e, para Gottfried Koch, da heresia 55 , o seu nascente
mas poderoso desejo de aceder ao sagrado. Teófil o era intendente da igrej a de Adana, na il t'ln 1'111 111 11 11 ·
do bispo querem promovê-lo ao cargo episcopal. Rm·111-111 1 1 li 11 ,
um outro, que coloca Teófilo em desgraça. Então o r11 11cn1 1 11 111 1 11
Pela porta pequena Mais ainda do que a hagiografia, as cartas de direcção espiritual apoderam-se dele . Por intermédio de um Jude u, uss i1111 111 11 1111• 111
são a expressão da pastoral. Hildeberto de Lavardi n dirige sete a com o Diabo. Mas, medindo o seu erro, cham a a Viq 11111 1 111 11
Adélia de Blois (t 1137), filha de Guilherme o Conqui stador. Não socorro. Tal é a lenda composta em grego no sécu lo V I ' I 111.111 1,l 1
esperemos encontrar neste tempo uma palavra destinada aos humil- cm latim no período carolíngio, passa ao Ocidente . Esl,• p1111111 1I'" ,1 1
des. As três primeiras epístolas, escritas enqu anto A dé lia vive ainda Fausto faz fortuna nos séculos XI e XII, nos textos • 1111• 111111111111111
no século, são puras li sonj as de cortesão. As quatro últimas têm data da igreja abacial de Souillac, visto que ilustra o grand • prn h , 111 111 111 •
posterior a 1122, ano em que a condessa se retirou para o priorado · a Virgem mais forte que o Diabo. Fulberto de Chart,·t·s 11•1 1111, 11 l 1
cluniacense de Marcigny, um dos raros estabelecimentos monásticos Godofredo de Vandoma faz-lhe alusão num dos seus 1w1111lí1
femininos deste p eríodo. A última missiva é a m ais importante, já Vida de Teófilo em verso é composta nos m eios letrndo 11111" 1111 1
que Hildeberto celebra nela as núpcias da monja viúva e do seu talvez por Marbode de Rennes. lgnorando a reuti li :r,n, 111 ili N1 1 1 11111
novo esposo, Cristo . O prelado ch ama Adélia su a dama e exp lica-se: pela monja Hrotsvita, o autor m antém -se o m ais p ' ti o 1111 111 1 1 d 1
«A esposa do meu Senhor é a minha dama»56 ; or a Adé lia tornou-se tradução latina derivada do grego. Eis Teófilo p n111t,· M111 111 l 1 111
esposa de Cristo. A afirmação não é nova; j á Jerónim o se dirigia de defender o seu caso, longam ente, citando em s u 11p11 111 1 111111' 1
assim à virgem Eustóquia. Mas aqui entra em ressonância com os de arrependidos célebres: Rahab, David , Ped ro, 1/,uq111•11, l '1 11il11
poetas corteses que burilam os seus primeiros versos nas cortes do Cipriano. O poeta decalca fielmente o seu mode lo, ·0 111 111111 1 11 11
Sul de França. Hilde berto, muito mais subtil, na oc rrência , do que ção apenas : entre Pedro e Zaqueu inscreve-se um novo 11t11111 , 1\111111 1
Anselmo de Cantuária nas suas cartas a Gunilda, filha do rei Haroldo Madalena, «ela que, chorando, conseguiu abolir as rn tí · ul 11Htl11 1 11
de Inglaterra, tenta tranquilizar a sua correspondente, depois de ter crimes, doravante preciosa ao Senhor, dorava nte e ·ld>r'ildll p1 1, ,
tido, no entanto, o cuidado de lhe criar inquietude : me rece ela o séculos» 58 . Enriquecida pela Tradição, inserida n a Iista dos pt•t 11d111 1
repúdio por ter outrora preferido um homem a Deus, um cavaleiro arrependidos sem dúvida sob a influênciadeuma hom ilitt d • ( l11111,1 11,
ao R ei? Não, afirma Hildeberto. E cita como apo io uma série de Magno, eis que surge uma figura que interessa ess ' 111: i11l11111111 1
exemplos bíbli cos de mulheres resgatadas : a prostituta desposada mulheres. Desde quando os séculos a celebram?
por O seias, a Egípcia desposada por Moisés - com parações pouco Tal como o Ocidente a venera, a santa não ex iste , ' 11<11111 11111 111d1
lisonjeiras - e sobretudo a famosa pecadora do Evan gelho, irmã de víduo, nos Evangelhos. Distinguem -se aí três penmn:11 t•11 11 ,111111
Marta e Lázaro. nas, que darão nascimento à Madalen a: Maria d Mu d111i1, d11 q11 li
Pedro o Venerável , abade de Cluny (t 1156), conta como a sua Cristo expu lsa sete demónios, que o segue até ao ulv(l1in 1 11111
mãe, procurand o fu gir cios laços detestáveis do casamento, se atirava julga ser a primeira testemunha da sua ressurre iç1.o; Mal'ln d1· 111 111111 1
aos pés de todos os hom ens santo s que estavam ele passagem , nova irmã de Ma1ta e Lázaro; a pecadora anónima que, •111 ç11s 11h /, 1111111
Madalen a aos pés do Salvador, implorando perdão e protecção 57 . No o Fariseu, banha os pés de Cristo com as suas láAr'in1t1 , 1·11 111• 1 11
1
espírito dos autores eclesiásticos desse tempo, a possibilidade de com os seus cabelos, cobre-os de beijos, un ge-os cJ • pt·1l\ 11 rn " Ir 11
salvação para as mulheres casadas - e trata-se das mais importantes mas pontes permitiam ligar uma ou outra cl csl as n11illi1·11·~ ( >< 11 li 111 1
í damas - é antes de mais uma possibilidade de resgate . A pe rda do abstev e-se disso . No Ocidente, Gregório Ma 110 1'1111d l11 ,1 ili 1111111
selo virginal não tem apelo, tanto física com o moralmente. A peni- vamente numa única: Maria Madale na tinha nus<:ido . Vu 1111 '111 1 1
tência é a única via ; o arrependimento ela pecadora, da meretrix , dito delineou magistralmente as etapas da sua as 'l.'11s1 o : 11 1111 11 111111 '"
,..-. ---- .
no século VIII nos martirológios e na liturgia, as primeiras menções O desprezo medieval pela sexualidade
feminina é compensado com a figura
das suas relíquias na abadia de Nossa Senhora de Chelles na mesma de Mada lena, a prostituta arrependida
época. Mas o verdadeiro desenvolvimento do culto, vindo ao que que escolhe um caminho de
parece primitivamente do Leste, do Império, está ligado ao êxito purificação e pen itência. A sua
representação gráfica evolui. Para
do santuário de Vézelay. Em 1050, a abadia borgonhesa, original- Giotto de Bondone ( 1266-1 336{7) já
mente dedicada à Virgem Maria, é colocada sob a protecção de não é uma figura penitente. O seu
tamanho hierárquico define-a como
Madalena. E sobretudo, nesse tempo em que a piedade tem uma tal mulher santificada, consolo dos aflitos
necessidade de apoios sensíveis, os monges de Vézelay desco- e u·ansmissora, ela própria, do perdão.
Pri ncípios do século XIV. Assis, São
brem tardiamente que detinham a relíquia da santa desde a noite dos Fra ncisco.
tempos. É preciso inventar uma narrativa um tanto fo rçada para
explicar a vinda do santo corpo do Oriente para a Borgonha, con-
ciliando esta trasladação com o lendário desembarque de Marta,
Maria e Lázaro na Provença; tanto mais quanto outros santuários
aspiram à mesma honra. A operação dá os seus frutos. A peregrinação
de Vézelay irradia com esplendor incomparável nos séculos XI e
XII, antes de ser parcialmente eclipsada no século XIII por outros
lugares ciosos de anexarem a santa: Sainte-Baume, Saint-Maximin
da Provença.
Este úl timo texto, redigido ao que parece por volta do ano mil,
revela assim o papel de Madalena na economia da salvação: «Isto
fez-se para que a mulher q ue trouxe a morte ao mundo não perma-
necesse no opróbrio; pela mão da mulher a morte, mas pela sua boca
o anúncio da Ressurreição. Tal como Maria sempre virgem nos abre
a porta do Paraíso, do qual nos excluiu a maldição de Eva, também
o sexo feminino se desembaraçou do seu opróbrio por Madale-
na»64. Godofredo de Vandoma inscreve-se neste movimento, mas
para dar ainda m ais força à santa: é a «sua língua piedosa» que se
torna «porteira do Céu»; é ela, e já não Maria, que abre as portas
do Paraíso a qualquer penitente, contanto que consinta no arrepen-
dimento65.
ou pe lo m enos atribui-se -lhe a paternidade; Hildeberto a de Maria sarnente misógina, ou m aravilharmo-nos com 0 11Jrn 11111 1, 1 d, 11 1
Egipcíaca. Este século, que por assim dizer não cria mulheres santas, um tão belo papel às mulheres. Tendo partido eh 11111
reescreve d e bom grado as lendas antigas e m anifesta um partic ular ínfimo, se o compararmos ao milénio me di va i l ' , , 111111 111 li
interesse pelas penite ntes do d eserto. Tais é um a céle bre cortesã Ocidente, seguindo os traços de um pequeno 1111 ·lc•n d1 l,11111, 11
salva pelo abade Pafnúcio. Maria Egipcíaca, depois de ter oferecido d e alguns dos seus contemporâneos, tod os b bl'11dn 1 111 , ,
os encantos do seu corpo a qu alquer um, vive numa solidão total imensa reserva da patrística, não se pode s n; o c1111 1111 111 1 , 11 11 1
p ara além do Jordão. Foi precisam ente a sua lenda que inspirou a p lexidade do sistema de representação d a mu llw1· 1111 111 11 1 1111 11 1 1
Vida eremítica de Maria Madalena. A escolha destes dois temas c lerical. Em vez de alinhar longas listas de íra 1 11 H111t11 1 , , ill1 1il11
é significativa. A mulher é pecadora e, por essência, da carne. A que podem ser seleccionados tanto ao serviço ck• 1111111 li , 11 ,11111 ti,
salvação para ela não vem senão pelo arrependimento e pela peni- o utra, pareceu -nos preferível penetrar nos dédalos d I l 1d1111 1 , ili
tê ncia, no castigo desta carne c ulpada. Mas enquanto Pafnúc io, nas funcionamento mental de uma amostra de indiv (d1111 , 11 li 111 11 111 1,
trad uções latinas da A<lta Idade M é dia, se mostrava d e uma temí- do seu tempo.
vel severidade, adoça-se na reescrita do século XI. Cham a a Tais Estes homens pensam através dos mod los 1111111 1 1il11 I" 1 ,
sua «amiga>> . Invectiva-a: «Oh amada de D eu s, imagem do Rei Escritura. Qualquer realidade lhes chega por cst • pd 111, 1111 111 11
celeste! »71. Nestas expressões bord adas de novo na velha talagarça e xac tamente, e les estão convencidos de que aqui lo 11 q111 11, ,i, , 111
há mais do que a contaminação da hag iografia pelo léxico do mamos realidade não é senão a projecção d u11n1 lch·1 1 d11 1111dl 11 ,
fin' amor. Teremos nós a certeza, aliás, de que não foi a ling uagem q ue não poderia revelar-se m elhor do que nas 1'1 1• 111 11 1p11 111111
m ística dos clérigos que forneceu aos paladinos d a cortesia os desses textos e m que jaz a Revelação de todas as ·oi s11 . 1 li 11111 il 1 11 "
primeiros materiais da sua poética? Se o Génesis punha o hom em e uma antino mia: Eva, Maria; uma simbolizando 111111 1 1111111 11 11
a mulher como criados << à imagem de D eus» 72 , a Primeira Epístola reais e a outra a mulher ideal. Por razões de st rnt q oi 1 11 1, 1 d , li
aos Coríntios reservava, pelo contrário, esta honra apen as ao homem, d isciplina clerical, de promoção de uma nova mornl , 11 , 1 , 111 11
afirmando que era do homem , e não do Criador, que a mulher, v iragem dos séculos XI e X II mais sobreca rrc g11<111 dn q111 1 11 il rl
criatura segunda, era « o reflexo» 73 . Agostinho atormenta-se com a tua]: ela é a mulher de que o clérigo se de ve al'aslu1, 1 1111tll11 1 1h
contradição, e muitos outros depois dele, Isidoro de Sevilha, Arnaldo po uca condição de que se devem purificar as uni ·s pri111·1p1 1 1
• de Bonneval (t e. 1156), Graciano (t e. 1159), Tomás de Aquino .
Ora eis a mais indig na das m ulheres; a cortesã, promovida sem
filha do Diabo. A Virgem-Mãe, em época de e n tnlt\'. n d 11 111 11 11
ge ns, é projectada pelos homen s para fora do al can ' l' dt1 111111111 11
rodeios a «imagem do R ei celeste». terrestres. Nesta a bertura agu dizada entre as dua s l'i 11111 11 1111111,
O m ovimento estende -se fi nalmente m uito para a lém do espelho pe rfila-se Madalena. O s séc ulos XI e XII marcam o 1• rn ,uh cl, 1 11
hag iográfico. O discurso e os actos coinc idem. Neste m esm o te m po, volvimento do seu culto. A figura complexa de o ri g •111 1• 111111 lio 1
nestas mesmas regiões, Roberto de Arbrissel e Vital de Savigny torna-se m ais intensa e mais necessária. Mais int •11s11 vi ln q111 11
(t 1122), bem -aventurados fundadores de ordens, preocupam-se homens, os clérigos, a investem do sentimento novo d11 11 111 1 li 11
com a sorte das reais meretrices, ta lvez prostitutas profissionais, mas e ia, que lhes vem como sentimen to de c ulpab ilidacll'. M111 1111,
também mulheres «à dinamarquesa», mulheres de segunda ordem sária para as mulheres, para quem as vias d a ·a lvaç, o N10 1 111 1111 111 111
rejeitadas pelos seus maridos segundo os preceitos dos clé rigos re- escarpadas, senão mesmo sem saída. En tre a porl u dt• 11 u11 li 1 111 111 11 ,
formadores, concubinas de padres votadas ao anátema, todas aque las , de vida, a pecadora bem-vinda é uma porta ntr ' ull •11 11 1111111 111111
sobre as quais Pedro Damião desencadeava a sua vindicta m eio redenção possível, m as ao preço d a confissão, do u11 1•p1•11d 11111 111 ,1
século antes. Vital dota-as e casa-as . Presente na diocese de Mans da penitência.
em 1116, o herético H enrique dito de Lausana, novo Oseias, obriga Esta terceira via que Madale na abre e ntão IH o l'Xls t1• 1•111 11 111 1° 1
os h omens da sua turba errante a desposá-las. Roberto de Arbrissel - Georges Duby sugere-o - com o te rc e iro lm:ul q1u 11111 p11 1 ,
acolhe-as na sua ordem e consagra-lhes um priorado : o de Madalena Goffvê constituir-se enquanto tal na ·cg unda 111 •tnd1· d11 l 1!111 li
de Fontevraud 74 • e q ue é também lug ar de arre pe ndime nto, cl • ('SIK' 1'1111,· 1 1 ti, 1111 11 11
o Purg atório 75 • Todo o pecador se d e ve resg t1 t11 rd 11 1 lll 11 q111 11 11111 , 1
'--~
lfr ,1·w 1tr11 · se d11as vezes hegados a este ponto, admitir-se-á que não serve de grande
d esde a s ua concepção. T e m-se o s ntim ' 1110 dt· q1 w 1 1111111 11 1,
. ob os a uspíc ios de Madalena , se clc v ·111n:s1111 111 d1111 v, 1 1111 ,
co isa indig narmo-nos com alg uns por a Idade M édia ter sido obtu- ele uma : de serem pecadoras e ele se r m 11111llw n'N,
,1,1110 Olhares de clérigos 55
Tempos novos
Este é o ponto de maior acordo. Basta contudo deslocarmo-nos
um pouco, no tempo, no espaço, para que o sistema de representa-
ção clerical da mulher também por sua vez se desloque, mesmo que
se alimente sempre nos mesmos lugares. Anselmo de Cantuá1ia, por
exemplo, que citámos já várias vezes, beneficia de uma maneira
geral as mulheres com o optimismo que marca toda a sua obra,
profundamente confiante na Encarnação. Um inovador como Abe-
lardo concilia «um antifeminismo especulativo e um feminismo
prático»76 • Autores como Hugo e Ricardo de Saint-Victor (t 114 1 e
1173) exploram direcções originais: uma ultrapassagem do masculino
e do feminino num casamento que dê a maior importância ao amor,
mas que se desprenda o mais possível da sexualidade.
No decurso dos séculos seguintes podem balizar-se as continui-
dades e as inflexões das três imagens dominantes da mulher na cul-
tura dos clérigos: a tentadora, a Rainha do Céu, cujo motivo iconográ-
sobretudo os franciscanos, tomam a dianteira. É virada para a Virgem Maria-Mãe é um dos modelos da
fico Suger, abade de Saint-Denis (t 1151), talvez inaugure, a pecadora iconografia feminina. A simbologia da
que a mística medieval levanta voo: piedade filial , piedade de filhos Natividade (esquerda) e da família
resgatada. Na obra de cada autor, estes três fios entrelaçados ligam-
mais do que nunca. Menos crispação sobre a virgindade, talvez: a (direita) mosu·am um clima plácido e
-se a todo o instante numa configuração singular. Mas, além disso, amável, em que se manifesta o afecto.
mulher triunfa como mãe. -
a conjuntura modifica-se a partir de meados do século XII. Por um Trata-se de realçar o triunfo da
As faculdades de teologia são por excelência o local de especula- maternidade e do vínculo conjugal.
lado, assiste-se a uma especialização das tarefas mais desenvolvida Esquerda : detalhe de um capi tel de
c;ão e da elaboração dogmátic<J.!Xari Elisabeth B~rresen mostrou
do que na época anterior: teólogos, canonistas, pregadores, pastores, San Juan de Ortega, século XII,
como cinco autores mendicantes, três franciscanos - Alexandre de Burgos. Direita: capitel do claustro da
hagiógrafos, enciclopedistas, místicos partilham entre si, segundo
1lales (t 1245), Boaventura (t 1274), João Duns Escoto (t 1308) - catedral de Tarragona, século XIII.
limites mais estritos, ? vasto campo que um único letrado percorria
l' dois dominicanos - Alberto Magno (t 1280), Tomás de Aquino
facilmente até então. E mais raro encontrar numa só obra este espec-
(t 1274) - , levados à reflexão pela sua devoção à Concepção da
tro que os autores angevinos ofereciam. Por outro lado, as devoções
Virgem, lançaram em meio século as bases teóricas que permitirão
locais, a piedade dos fiéis vêm mais sensivelmente provocar , e por
n prazo o aperfeiçoamento dos dois últimos grandes dogmas maria-
vezes perturbar, os clérigos encarregados de prestar contas da unidade
11 os : a santificação de Maria, que não era antes senão purificação,
da fé. Em particular - e não é o menos importante - , as próprias
reparação do pecado original em benefício excepcional da Mãe do
mulheres tentam fazer-se ouvir, falar das suas inquietações, dos seus
Salvador, mas que com Duns Escoto se toma numa preservação de
desejos, da sua esperança em matéria religiosa. Nas épocas anterio-
Ioda a mancha desde a origem, e que conduz directamente à Ima-
res, os clérigos ditavam ao mundo o seu ordenamento, do alto do seu
t't1 lada Conceição; a sua Assunção corporal ao Cé u, que não é a
magistério. Cada vez mais frequentemente, devem agora reagir às
11usê?cia de morte, mas o afas tamento de toda a putrefacção. Na
iniciativas que ameaçam coarctar-lhe a liberdade.
t·o11c:cpção como no passamento, Maria escapa ainda um pouco mais
1 t:o nclição humana/
, ,/11 Filho Maria. É este o tempo pleno da sua devoção, de Cha1tres a Ela aproxima-se no entanto da humanidade - percebe-se isso
Amiens , o seu Verão esplêndido. Os cânticos mais enamorados em 111t:lhor na iconografia do que noutros domínios-, pelas suas carí-
seu louvor vêm do meio monástico, e muito particularmente dos t·ias de camponesa humilde ao Filho adorado, mas mais ainda na
cistercienses, na esteira do doutor melífluo, Bernardo de Claraval. int ·nsiclade do seu luto. Os séculos XIII, XIV e XV ressoam com os
Jean Leclercq, sublinhando embora, uma vez despistados os apócrifos, l11111unLos dos autores mais mísLicos sobre a Virgem da dor, a que
as poucas inovações teóricas de Bernardo em questões de mariologia, t l' ·oi hc o seu fil ho aos pés da cruz e o deposita no túmulo: o fran-
diz com urrí'a única palavra o sucesso espantoso dos seus textos: a vi.~~·n no onrado de Saxe ( t 1279), os espirituais Jacopone de Todi
sua «beleza» 77 . A artir do começo do século XIII, os mendicantes, ( 1 1 :106) e Ubertino de Casale (i' c. 1328), o observante Bernardino
. ·---
,11,olo Olhares d e clérigos 57
de Siena (t 1444) ... A pintura e a escultura, renascentes, asseguram-
-lhes um teatro deslumbrante. Esses grupos da Pietà, surgidos na
Alemanha, passando à Itália no princípio do século XIV, espalhados
:-~~~
depois por todo o lado, simbolizam a religião dos novos tempos:
aliança tardia da mulher e do padre numa religião da Mãe e do Filho,
voltados sobre si_mesmos no aprofundamento de uma Paixão insu-
portável, isolados do resto do mundo e celebrando a ausência do Pai. ..;..
\·
. '\
11 , 11 1•0:es Madalena~ Saída de figuras múltiplas, ela assume sem cessar Terceiro modelo iconográfico:
Madalena, sintoma de avanço para
múitiplas faces. É a própria Maria Madalena, da qual Victor Saxer uma nova mentalidade, é o símbolo
continua a seguir o culto, enfraquecendo em Vézelay, triunfando em da mulher redimida. Na imagem,
resultado fi nal de uma interessante
Saint-Maximin, irradiando certamente em França, mas também na evolução na sua iconografia, aparece
Inglaterra e na Alemanha, ganhando a Itália83. Como mostra Daniel num espaço íntimo - mas aberto
Russo, franciscanos e dominicanos tornam-se os zelosos propaga- ao exterior, à vida - , em atitude
tranquila e ocupada numa actividade
dores do seu culto e da sua imagem84. Na iconografia italiana, ela intelectual. Esta é uma visão que
tende por vezes a confundir-se com o próprio Francisco, numa dessas rompe já com o modelo medieval.
Pom1enor de Madalena lendo,
raras passagens em que as categorias do sexo tendem a abolir-se. No de Roger van der Weiden
século XV, a cabeleira da pecadora invade a pintura e a escultura. (1397/1400-1464). Londres, National
Gallery.
Os estabelecimentos destinados a acolher, sob a invocação da santa,
as prostitutas arrependidas multiplicam-se em todo o Ocidente.
Há também figuras rejuvenescidas saídas da actualidade hagio- Progresso? Poder-se-ia opor a este texto de excepção uma massa
gráfica. Eis que o povo de Deus se põe com efeito a produzir santos de textos contrários. Caitas dada de novo? Certamente. O período
em abundância. A percentagem de mulheres aumenta, até um quarto «gregoriano» estava centrado em primeiro lugar sobre o controlo
entre 1250 e 1300, para culminar perto dos 30% na primeira metade dos clérigos, em seguida dos príncipes, depois dos outros. Os últi-
do século XV ~5• Só para as santas de Itália, a quota de mulheres que mos séculos da Idade Média vêem o mundo dos clérigos muito preo-
conheceram a carne atinge o seu ponto mais alto nos séculos XIII e c upado em controlar o mundo das mulheres. Esta atenção acrescida
XIV: um terço de mulheres casadas ou viúvas para dois terços de vale ao Ocidente grandes figuras femininas, porquanto é preciso
virgens promovidas aos altares 86. A fracção parece ainda bem pe- r,romover modelos e saber contemporizar: Brígida da Suécia (t
quena. Mas nenhuma época se aproximará mais dela até aos nossos 1373), Catarina de Siena (t 1380), que falam alto e bom som aos
dias. O hagiógrafo de Margarida de Cortona (t 1297) relata como poderosos, e até mesmo ao Papa. Este zelo exprime-se também na
Cristo revela à sua filha bem amada a incrível redenção: Madalena, suspeita de que são alvo as beguinas, as terciárias, místicas de toda
figura emblemática da pecadora arrependida de Cortona, é acolhida u espécie. Desemboca por fim na caça às bruxas. Dir-se-á que Hen-
no coro celeste das virgens, logo atrás da Virgem e de Catarina de rique Institoris e Tiago Sprenger conferem às mulheres um papel
Alex~ndria8; .Aquilo que ~e:ón~mo n.ão podia ~ncarar, o q~e ~ed~o melhor do que Agostinho?
Damião dtf1c1lmente admitia, e aqm consegmdo: a ommpotencia Não há, no entanto, imobilismo. A partir do século XIII, o
divina devolve a virgindade àquela que a tinha perdido. ~·ss •ncial está noutro lado, fora do discurso estrito dos clérigos . O
,li! O lha res de clér igos 61
acontecimento foi que outras vozes se levantaram além da sua, não O corpo feminino é, nas sociedades
patriarcais, sede de produção simbólica
apenas essa cultura paralela e decididamente laica das cortes dos ao serviço da ideologia de género
príncipes, mas também as vozes lançadas ao assalto do divino. dominante. O seio feminino,
Dante (t 1321), formado pela teologia mais elaborada, guiado por insubstituível então na nu trição das
criatu ras, é imaginado amputado em
Bernardo de Claraval, Tomás de Aquino e Boaventura, apesar de relatos marliriais de uma sociedade
leigo, poeta e místico, através da fig ura de Beatriz resolve e sublima q ue não cu ltiva uma cultura do
nascimento. Sepulcro do bispo Pedro
a contradição que caía até então sobre toda a imagem da feminilidade. Sánchez de Asiaín. Pamplona, claustro
Finalmente, vozes de mulher, na maior parte das vezes contrariadas, da catedra l.
procuram projectar-se sem mediação para o Esposo do Cântico dos
Cânticos; é delas que Danielle Régnier-Bohler nos deve falar.
Deixemos pois os clérigos. É mais proveitoso dar atenção a este
mmm úrio ruidoso, que por vezes se eleva até ao grito; mesmo que
esta palavra nova se insinue necessariamente nos quincôncios do
velho saber.
Notas
Por comodidade, as fontes patrísticas e medievais são na maior parte das vezes
c itadas em nota na Parrologia Latina (PL), Paris, Migne, 1844-1864, 22 1 vol. , mesmo
q uando existam ed ições de melhor qualidade.
l. Marie-Thérese d 'A lve rny, «Comment les théologiens et Jes philosophes voient. la
femrne», in Cahiers de civilisation médiévale, 20, 1977, p. 105.
2. René Metz, «Le statut de la femme en droit canonique médiéval», in La fe111rne,
Bruxelas, 1962 (R ecueils de la société Jean Bodin, 12), pp. 59-82.
3 . Raoul ManseJli, «La Chiesa e il francescanesimo femminile», in Movimenro re!i-
Jiioso femm.inile e j i'ancescanesimo nel seco/o Xll/.. ., Assis, 1980, p. 242 (ver Biblio-
grafi a).
4 . Godofredo de Vandoma, PL 157 , col. 168.
5. Gn, Il, 20.
6. Roberto Zapperi, l ' homme enceint. L' homme, !afemme et /e pouvoir, Paris, 1983 ,
pp. 19-25 .
7. Gn, III, 16, 20.
8. Ambrósio de Milão, PL 14, col. 303.
9. Tertuliano, PL 1, col. 1305.
10. Odão de Cluny, Pl 133, col. 556.
11. lvo de Cham es, PL 162, co l. 279.
12. Godofredo de Yandoma, PL 157, col. 126.
13. l n, XVIII, 17.
14. Máximo de Turim, PL 57, col. 350.
15. Marbode de R:ennes, PL 171, col. 1486.
16. Agostinho, citado por J. Delumcau, La peur e11 Occident (XIV' -XVII' siêcle), Paris,
J <)78, p. 306.
17. Guy Devailly, «Un évêque et un prédicatcur erram au XII' siccle: Marbode de
lk nn.:s et Robert d'Arbrissel», Mémoires de la société d' hisroire et d'archéo /01:ie de
llrcl111i11e, 57, 1980, pp. 163-170.
18. Rosario Leotta, ed., Marbodi /iber decem capitulorum, Roma, 1984.
19. Marbode de Rennes, PL 17 1, col. 1698- 1699.
20. Hildeberto de Lavardin, PL 171, col. 1428.
2 1. ! Pcdro, UI,7.
1, ,111 Olhares de clérigos 63
22. Isidoro de Sevi lha, PL 82, col : 417. 65. Godofreclo ele Vandoma, PL 157, col. 274.
23. Rogério de Caen, PL 158, col. 697. 66. !d., ibid.
24. Pedro Damião, PL 145, col. 410. 67. Orígenes, Patrologia graeca, 12, col. 158.
25. Isidoro de Sevilha, PL 82, col. 275. 68. Ambrósio de Milão, PL 14, col. 279.
26. Jeró nimo, PL 22, col. 408. 69. Godofredo de Vandoma, PL 157, col. 231-234.
27. Agostinho, PL 38, COI. 1108. 70. Jerónimo, PL 22, col. 398.
28. Anselmo de Cantuária, PL 158, cal. 406-407. 71. Marbode ele Rennes (?), PL 171, col. 1631 -1 632.
29. Ver Henri Ban-é, Prieres anciennes de l'O ccidem à la Mere du. Sauveur, des 72. Gen., ], 27.
origines à saint Anse/me, Paris, 1963, p. 75. 73. I Cor. , XI, 7.
30. Godofredo ele Vandoma, PL 157, col. 234-235. 74. Jacques Dalarun, Ro/Jerr d' Arbrissel.fondateur de Fontevraud, Pari s, 1986, pp.
31. Mt, I , 25. 80-9 l, l O1- 113.
32. Lc, 1, 34. 75. Jacq ues Le Goff, La naissance du Purgatoire, Paris, 198 1.
33. Gregório Magno, PL 76, cal. l 197. 76. Jean Leclercq, «Un témoin ele l ' antiféminisme au Moyen Âge», R evue /Jénédictine,
34. Hincmar de Reims, PL 125, col. 694. 80, 1970, pp. 304-305.
35. Ez, XLIV, 2 . 77. Jean Leclercq, «Saint Bernard et la clévotion médiévale envers Marie», Revue
36. Roberto de Deutz, PL 167, col. 1493. d'ascé!ique et de mystique, 30, 1954, p. 368.
37. Godofredo ele Vancloma, PL 157, col. 249-250. 78. Tomás de Aquino, Somme rhéolo1;ique , I, .Q 92.
38. J-Jildeberto de Lavardin, PL 171, col. 813. 79. Gilberto de Tournai, Co!lectio de scandalis Ecclesiae, ed. A utbert Stroick, in
39. Godofredo de Vandoma, PL 157, col. 265-267. Archivumfi'anciscanum historicwn, 24, 193 1, pp. 6 ] -62.
40. Sa11c1i Ephraem Syri Hymni e/ Sermones, ed . T homas Lamy, Malines, II, 1886, 80. Tomás de Aquino, Somme théologique, II-II, Q 177, a 2.
p. 264. 8 1. Graciano, Decreto I, D XXIII , c 29, e II, C XXXlII, Q 5, e 12-19.
4 1. Pedro Crisólogo, PL 52, col. 576. 82 . 1 Tim., II, 12.
42. Hildeberto de Lavardin, PL 17 1, cal. 193- 194. 83. ,Victor Saxer, Le cu/te de Marie Madeleine en Occident des origines à lajin du
43. !d. , i/Jid., col. 959. Moyen A1;e, Auxerre-Paris, 1959, vol. I, pp. 183-255.
44. Georges Duby, Le chevalier, la femme e/ /e prê!re. Le mariage dans la France 84. Daniel Russo, «Entre Je Christ et Marie: la Madeleine dans J'art italien des XIIJ<-
féodale, Paris, 1981, pp. 142- 147 e 192- 193. -XIV' s.», in E. Duperray, ed ., Marie Madeleine dans la mystique... , op. cit., pp. 33-47.
45. Marbode de R enncs, PL 171 , col. 1700. 85. J. Tibbets Schulenbu rg, «Sexism and the celestial gynecaeum», op. cit., pp. 127,
46. Hildeberro de Lavarclin, PL 171 , col. 967. l 3 1.
47. Jean-Yves Tilliette, «Les modeles de saintéte du 1xc au XI' s. d ' apres !e 86. R udolph Bell , Holy anorexia, Chicago-Londres, 1985, p. 146.
témoignage des réc.its hagiographiques en vers métriques» , in Sanri e demoni ne/1' alio 87. Giunta Bevagnati, Vila IJ. Margaritae de Cortona, Acta sanc10rum, Paris, Fev.
Medioevo, A1fi dei/a 36" Se11irna11a di S1udi sul/' alto Medioevo (Spo/e10, 1988), Spoleto, III, 1865, p. 317.
l 9~0. pp. 381-406.
48. Pedro Damião, PL 145, col. 599-601.
49. Genevieve Hasenohr, «La vie quotid ien ne de la fem me vue par J' Eg lise:
l'enseignement des "Journées chrétiennes" ele la fin du Moyen Âge», in Frau. une/ spii1-
mir1e/a/1erlicher A/ltag ... , Viena, 1986 (ver Bibliografia geral).
50. Pien-e Toubert, «La theorie du mariage chez les moralistes carolingiens», in li
matrimonio ne/la societá a!tomedievale ... , Spoleto, 1977, p p. 259-260 (ver Bibliografia
geral).
51. Patrick Corbet, L es saints olloniens. Sainteté dynas1ique, sainreté roya/e er
sai111eté féminin e autor de /' an mil, Sigmaringen, 1986.
52. François Dolbeau, « Yie !atine de sainte Ame, composée au XI' siecle par Etienne,
abbé de Saint-Urbain», Ana/ecta bollandiana, 105, 1987, pp. 42-43 e 52-57.
53. G. Duby, La f emme, !e chevalier et le prêtre .. ., pp. 147- 150.
54. Jane T ibbetts Schulenburg, «Sexism and the celestial gynecaeum, from 500 to
1200», Journal o/medieval history, 4, 1978, p. 122.
55. Gottfried Koch, Frauenfrage und Ketzenum im Mi11elalte1... , Berlim, J 962. . .,
56. Hi ldeberto de Lava1·din, PL 17 I , col. 149.
57. Pedro o Venerável, PL 189, col. 2 14.
58. Marbode de Rennes (?), PL 171 , col. 1599.
59. Lc, VII, 38.
60. Victor Saxer, s.v. «M aria Maddalena, santa», in Bibliotheca sanctorum, vol. 8,
Roma, 1967, cal. 1089.
61. Dominiq ue Iogna-Prat, «"Bienheureuse polysémie". La Madeleine du "Sermo in
veneratione sanctae Mariae Magdalenae", atribué à Odon de Cluny (X' siecle)», in Eve
Dupen-ay, ed., Marie Madeleine dans la mysrique, Les arts et les teures ... , Paris, 1989,
pp. 2 1, 29.
62. Pedro de Celle, PL 202, col. 837.
63. Godofredo de Vandoma, PL 157, col. 270-272.
64. Odão de Cluny (?), PL 133, col. 721.
Da natureza feminina
Claude Thomasset
l :'i
1, Da n atureza feminina 69
ainda mais quando, saído da intensa actividade intelectual de Toledo A literatura científica medieval
concede muito pouca importância
no século XII, Gerardo de Cremona oferece ao Ocidente as duas aos seios como zona erógena
grandes sumas da medicina árabe que farão autoridade: o Cânone de feminina . Considera-os apenas como
órgão do aleitamento. Afinna-se que
Avicena e o Liber ad Almansorem de Rhazes, que lhe é anterior o leite materno é sangue menstrual
mais de um século. O último grande momento da história da medi- que, pouco antes do parto e por
cina será a irrupção das obras de Aristóteles. Dominando a filoso- causa de uma modificação da
circulação sanguínea, se branq ueia e
fia, o pensamento aristotélico exerce uma grande influência, através ascende ao peito. Adão preparando a
da zoologia, sobre a anatomia e a fisiologia, graças à tradução de comida para Eva que amamenta,
baixo-relevo em pedra, século XIII.
Miguel Escoto, e depois de Guilherme de Moerbeke, na segun'da Paris, Sainte-Chapelle.
metade do século Xlll, do De Animalibus de Aristóteles. Pouco
depois, o comentário de Alberto Magno sobre este tratado é uma fonte
de primordial importância para o nosso conhecimento da maneira
como um religioso, e ,um grande espírito científico do século XIII,
representa a mulher. E da conjunção do naturalismo de Aristóteles
com o pensamento de Averróis que nascerá, na segunda metade do
século XIII, além de uma intensa actividade no campo da reflexão
teológica, uma arte de viver fundada no abandono à Natureza, que
desemboca numa liberdade sexual. As condenações formuladas por
Estêvão Tempier em 1270 e 1277 terão como propósito conter os
excessos de um pensamento filosófico , de um pensamento científico
que ameaça os próprios fundamentos do poder da religião. Como
pudemos ver, ao longo da Idade Média fala-se muito de Galeno, mas
há que esperar a primeira metade do século XIV para que os médicos
disponham do De usu partium do médico de Pérgamo.
É deste modo que se ordena a cronologia dos progressos dos
conhecimentos medievais erri matéria de anatomia e de fisiologia,
que se institui o sistema das autoridades que, quando entram em contacto com o sangue menstrual impuro, alimento do embrião do
conflito, provocam o debate, com grande recurso a citações. Se as comum dos mortais. Nunca talvez a fisiologia da mulher fo i causa
obras citadas estavam em princípio reservadas aos médicos, as de um debate tão vivo e de uma procura tão incessante!
enciclopédias medievais permitem, em contrapattida, a vulgarização
e a difusão junto de um público mais vasto de pessoas cultas. Não
estabelecem uma síntese, mas ora optam por uma teoria, ora se A história da representação da mulher é condicionada por ideias A analogia galénica
contentam em justapor as opiniões das autoridades. A primeira em si mples e, por isso, impossíveis de extirpar da consciência colectiva. e as suas consequências
data é o Dragmaticon de Guilherme de Conches (morto em 1150), A anatomia, por vias indirectas, veio confirmar _o desprezo dos ,
que acolhe os novos conhecimentos transmitidos por Constantino tt·ólogos que, argumentando corri o Génesis, estavam naturalmente
o Africano. A segunda metade do século XIII vê o florescimento ii 1 •I i nados a ver na mulher um produto secundário e por conseguinte
do género enciclopédico com o Speculum Natura/e de Vicente de i11J' •rior ao homem. Com efeito, por uma notável intuição da diferen-
Beauvais, o De proprietatibus rerum de Bartolomeu o Inglês, e o De ci11ç, o dos órgãos, Aristóteles, mas sobretudo Galeno, para o pensa-
naturis rerum de Alexandre Neckham. Todas estas obras estudam o 11wnto medieva( tinham tido a ideia de uma semelhança inversa dos
2
processo da procriação, da gravidez e tratam com particular cuidado 1li) , os masculinos e femi ninos. No Cânone de A vicena esta pro osta
da anatomia e da fisiologia femininas. Não devemos esquecer também 1•111111cia-se assim: «Eu digo que o instrumento a g_eraç_ãona..mulhe.r.
que os teólogos se interrogam sobre a concepção de Cristo e que, 1 1111 ut1·iz (marrix) éque ela foi c1iada semelhante ao instrumento da
para citar somente um exemplo, Tomás de Aquino se esforça, quer t 1•11 11,:00 no l1omem, quer dizer o pénis e o (}!!_e o acomp_anha». ~º-
no Comentário sobre as Sentenças quer na Suma Teológica, por 1 11t1111to, um destes instrumentos é acabad_ Õe voltado para o_exJ~rior,
( 11 m it ro diminuído e retido no interior, constituindo de_ certa maneira
\ afastar, por um artifício de fisiologia, o princípio divino de qualquer
Da natureza feminina 71
_o inverso do instrumento vüi l. A anª logia é d~fl.nida órgão or a uma sensualidade real; em contrapartida, nos retratos de mulheres
órgão, e desse modo se encontra estabelecida uma equivalênc_i_a__ idosas, a menção aos seios caídos vem reforçar com crueldade a
entre os testículos e os ovários. /
Infelizmente esta com paração é decrepitude. Quanto às representações do peito feminino nos manus-
acompanhada de juízos que se comprazem em sublinhar a pequena critos médicos, são muitas vezes realizadas com uma negligência
dimen ão dos elementos do aparelho feminino. As dificuldades que espanta.
encontradas pelos médicos medievais na sua leitura da anatomia
feminina procedem de uma tripla origem: o princípio rigoroso da
analogia que acaba de ser formulado e que submete o corpo da Limites foram pois fi xados ao olhar exterior dirigido sobre a A mulher e os sopros
mulher ao modelo masculino, o princípio absoluto de finalidade mulher, e a localização das zonas erógenas permanece bastante
presente no jogo etimológico e no pensamento teológico, e por fi m imprecisa. Pouco presente no discurso científico, mas verosimilmente
o princípio da submissão absoluta à autoridade. Estes três imperativos inspirado em representações mais primitivas, a deslocação vertical
conjugam-se para impedir qualquer observaçâo verdadeira. da matri z no corpo feminino parece ser ainda, na Idade Média, uma
Em matéria de anatomia feminina, o exemplo mais notável da verdade de que se extraem as consequências. Tratar-se-á de uma
recusa em descobrir as coisas é a incerteza relativa ao clítoris. reminiscência do Timeu de Platão, no qual se diz que «nas fêmeas,
Moschion tinha localizado e nomeado o clítoris sem contestação aqu ilo a que se chama matriz ou útero é como um ser vivo possuído
possível: afi rmação sem eco. Constantino, nas suas traduções, con- do desejo de fazer fil hos» (91c), ou da ideia hipocrática das deslo-
tenta-se em transliterar a palavra árabe, e não sendo compreendida cações uterinas nascida quer da observação dos prolapsos quer da
a palavra, já ninguém se interroga sobre o referente. A mesma incer- «bola histérica», fenómeno conhecido desde a Alta Idade Média?
teza reina entre os grandes nomes da medicina árabe: o órgão só Em todo o caso esta afecção contribui para criar a ideia de uma
é objecto de observação quando atingido de hipertrofia: Nenhuma possessão pelos órgãos, de uma interioridade que escapa a qualquer
civilização parece querer arriscar-se a destruir a correspondência controlo. Existe uma terapêutica simplista: para vencer a sufocação,
termo a termo da simetria inversa e oferecer à mul her a possibilidade há que fazer descer de novo a matriz para baixo e, para isso, recorre-
de uma capacidade de prazer inteiramente autónoma. O princípio de -se à acção conjunta de fumigações desagradáveis para a parte supe-
fi nalidade seria igualmente posto em questão . Se um cirurgião tão rior do corpo e aromáticas para a pa1te inferior. Um comentador de
notável como Henrique de Mondeville (início do século XIV) Avicena afirma, no século XV, que as mulheres de Navarra, antes de
interessa pelo órgão, faz dele curiosamente a extremidade da uretra. se unirem aos seus maridos, recorriam a práticas análogas a fim de
Uma analogia com a úvula, que altera o ar que penetra nos pulmões, facilitar a concepção. Pensava-se igualmente que o hálito da mulher
permite-lhe salvaguardar as aparências da finalidade. Os sábios restituía os cheiros vindos do seu sexo. Esta pem1eabilidade da mulher
mais avisados, como Alberto Magno, verificaram que existia uma aos cheiros parece reenviar ao poder que a c,:iatura feminina possui
região de uma sensibilidade particular; o médico Pedro de Ábano de captar as exalações tel úricas, como fazia, na Antiguidade, a Pítia.
falou da intensidade do prazer que resulta da sua excitação. Mas Lugar da circulação ascensional dos odores, a mulher inquieta o
todo um conjunto de ideias preconcebidas impede os médicos de homem pela sua grande aptidão em acolher os sopros. A espantosa
chegarem a uma conclusão clara, o que penn itirá a Gabriel Falópio onalogia, recolhida em Henrique de Mondeville, entre a úvula e o
declarar, com alguma presunção, que fo i ele o primeiro a descobrir dítoris testemunha uma obsessão da protecção. Alberto Magno
este órgão. \'voca 9 caso de uma mulher que, nas suas próprias palavras, obtinha
_Os seios das mulheres talvez padeçam também do princípio de pral'.cr pela acção do vento. No contexto, esta anedota serve para
fi nalidade. , É- através deles que o recém-nascido_ recebe_o leite, 1·sboçar a comparação muito frequente da m ulher com a égua, capaz
que não é mais do que o sangue menstrnal que sofr,eu uma dea( ck conceber graças à acção do vento sem intervenção do macho.
b~0í~ Esta função explica sem dú vida o pequeníssimo lugar que 11st' exemplo das éguas é referido duas vezes com pequeno inter-
ocupam nos comentários sobre o jogo erótico. Somente o Cânone de v11 lo num manuscrito contendo questões salemitanas em prosa, e
Avicena evoca as carícias dos seios nos preliminares do amor. Os 1•lt1horaclo cerca de 1200. M uitíssimas vezes explorada na literatura
comentadores não parecem manifes tar grande interesse por essa 1 il' ll lffi <.:a , esta estranha crença não é mais do que um testemunho,
passagem. Pelo menos até ao século XIV, os textos literários não 1 1111 ~· muitos outros, da obsessão do homem face à liberdade absoluta
parecem desmentir esta atitude. Os seios pequenos e firmes pare- il111111 illlcr, face à possibilidade de uma concepção sem a participação
/ cem pertencer mais a um esquema descritivo convencional do que li li .
71 /1 1111111111H d1• con trolo
Um sistema A simetria inversa dos órgãos da mulher e do homem, que per- A adaptação da doutrina dos temperamentos, de 01ip1•111 l1q11,
1i11r11 rmlr•11m· o mundo mitiu dirigir, do exterior, este olhar sobre o corpo feminino, não é crática, ao galenismo foi acolhida muito favoravelm ntc p1· I I ld,1il,
mais do que uma das afirm ações recolhidas do pensamento de um Média. Ela associa o psíquico ao somático. O s quatro d1i-. tit ,, d 1
médico, que construiu um sistem a explicativo todo-poderoso. Com Escola de Salerno, que conferem o aspecto físico, as carnçt1·11 f 11 1
efeito, na esteira de Aristóteles, Gale110 3 estabelece que todas as coisas dos quatro tipos humanos fundamentais, serão inccss:1 1111•11 11 111,
são compostas de quatro elementos : o fogo, o ar, a terra e a água. retomados e citados pelos autores medievais. E pod 'J)l 1,1•1 1111
Aos elementos constitutivos da matéria vêm juntar-se em grupos de acrescentados desenvolvimentos sobre as capacidades s 'x11111 d11
~ois as quatro qualidades do quente, do frio, do seco e do húmido. indivíduos. Quanto aos alimentos, obedecem à mesma lassi 111 11 11,
E assim que a fi siologia do corpo e a medicina vêm inserir-se num segundo as qualidades, e toda uma dietética visando ·01111 11 t d
esquema obrigatório da representação do mu ndo. Cada um dos excesso, tal desequilíb1io, pode pois ser implantada. Para os r ·11111111 1
elementos possui pois uma dupla qualidade (ver esquema), o que o galenismo opera uma diferenciação mais completa, classi li1 .1111 11 ,
permi te as combinações. Cada um d os elementos é posto cm cor- -os segundo vários graus de calor ou de secura, o que p r111it1·, 111 li
respondência com os quatro humores legados pela escola hipocrática. quadro do pensamento, uma abordagem muito fina. Na eh 11111 11 1
Como todas as coisas, o alimento e b e bida são compostos por estes do século XIII, Arnaldo de V illeneuve tenta uma abordag •111 1111111
elementos e transformados no organismo em sangue, fleuma, bílis mática da qualidade.
amarela e bílis negra. É assim que os quatro humores asseguram a A transmissão do saber galénico pelos Árabes é compl1•1111 1 11
alimentação, o equilíbrio do corpo, o temperamentum , a saúde. Para esforço de adaptação pela Idade Média bastante important ', /\ I' 11 i,
sermos breves, digamos que o sistem a as·sim estabelecido possui mais complexa da fisiologia de Galeno é o funciona mento do I pt
uma enom1e capacidade de ordenar o mundo. Sublinha a identidade ritos (pneuma) . As artérias transmitem a todos os órgãos cio rrn p11 11
dos constituintes do universo (o m acrocosmos) e do homem (o .' pneuma vital, agente activo na respiração e em todos os p1rn, , 1
microcosmos). Define os quatro temperamentos principais (para ' da combustão. O pneuma psíquico preenche o cérebro. É fo1·111111l11 1
Galeno existem nove) e associa-os a uma estação e a uma idade da partir do pneu~a vital transformado no plexo coróide sit u 11h1 11 1
vida. Tudo isto funciona no quadro da tétrade. base do cérebro, como resultado de uma purificação obt id 1 111 11
circulação numa rede de capilares, processo essencial na. tn111 1111
mações da matéria na fis iologia medieval, e circula em todo o 1111111,
Sul Por inte1médio do pensamento árabe, o galenism o adoptado co11q1111 l 1
um acrescento à doutrina est1ita de Galeno. Existe um 1(•111 1111
Fogo pneuma, o pneuma natural (spiritus natura/is), que está lo ·til 1111111,
SECO
Verão
Bílis amare l a QU NTE e
no fígado assegura as funções vegetativas. Devido a multtpl 1
razões, o cristianismo não manifesta qualquer hostilidade às 1(•01 11
Colérico
de Galeno, que constituirão de alguma maneira o dogma da m •dh 11111
oficial até ao século XVII.
Ten-a Elemento Ar Estes poucos elementos reunidos dão-nos um a resenha su 111 11 ir1 111
Outono Estação Primavera
Oeste Este uma temia que atinge muitas vezes um elevado grau de compl xid 11 lt
Bílis negra Humor anguc
Melancólico Temperamento Sanguíneo Tom a-se assim fa miliar uma ten11inologia que irrompe nos l •x f11
sem definição prévia. Derivados desta concepção pneumát icn 111,
Água corpo humano, os term os «espírito» ou «ventosidade», qu np1111
Inverno cem nos textos em língua vulgar, são os sinais de uma expliL'tH,'1111
FRIO HÚM lDO galénica dos fenómenos. Corno o repete à saciedade o clisr111 •,, 1
Fleuma
Fleumático medieval, para a concreti zação do acto sexual são nece sárias 111
condições: o calor, o espírito, o humor. Se o papel do espírito 1
Norte afirmado, a terminologia parece definir o limite que a expli<..·11,·1111
científica não pode ultrapassar. Um médico tão avisado como A v Í('1'1 ui
Esquema retirado de W. D . Sharpe, «Isidore of Sevi lle . The medical writings», não vai além do poder explicativo da palavra. No Cânone ele de ·l 11 11
( Tro11sac1io11s of lhe American Philosophical Society, n. s. , LIV-2 (1964), p. 24. que a erecção é devida a uma forte ventosidade que produz o s11it'lt111
1,, Da natureza feminina 75
l11dlvfd1111 • 1• l'~NII p1 1.·ocupu<;t o ele conhecer os homens, que passa Na época medieval pensa-se que a
prn p1,1rn lo1 lu, l' ohj • ·10 de uma troca entre o clérigo e o príncipe. matri z é a forma inversa do pénis.
Os ovários são os testículos femininos.
/\ Sl'µ 1111d11 d ·sc riç,lo analómica salernitana é um dos raros textos Os textos árabes, mais precisos,
d •si • p •r mio que menciona somente duas cavidades na matriz. Ela descreveram uma matriz semeU1ante a
uma bexiga, com dois prolongamentos
pr •c isa a term inologia com cuidado; a matriz comporta dois orifícios, laterais que se estendem até às
um exteri or, col!urn matricis, no qual é realizado o coito; o outro virilhas. Na imagem, Dido e E neias
interi or, os rnatrici, encerrado desde a sétima hora após a concepção, no leito, miniatura da Historia
desrruc1ione Troyae, de Guido de
l,ío hermeticamente que mesmo a ponta de uma agulha não poderia Columnus, ano de 1287. Madrid,
nele penetrar, segundo Hipócrates. Os testículos femininos (os Biblioteca Nacional.
ovários) são mais pequenos e mais duros que os do homem. Estão
colocados sob as extremidades, em forma de com o, do útero, e uma
veia liga-os aos 1ins. A terceira anatomia, a Anatomia magistri Nicolai
physici, escapa enfim ao esquema da dissecação do porco. Circula
sob três fo1mas. Dela reteremos a existência de uma veia «fêmea»
(kiveris vena), cujo papel é conduzir uma parte do sangue menstrual
à matri z e a outra parte às glândulas mamárias, a fim de que aí sej a
transformado em leite para assegurar a alimentação da criancinha.
Os textos que seguem as descrições anatómicas de origem salemitana
são portadores dos conhecimentos do pensamento árabe transmitido
ao Ocidente graças aos tradutores de Toledo. A ideia da simetria
,1,, Da natureza fem inina 79
inversa dos órgãos do homem e da mulher sai deles reforçada. Os este líquido impuro seja mantido à distância.. Na membrana que
órgãos femininos são objecto de juízos depreciativos que fazem rodeia o feto elabora-se um sistema de canais. Quando o fígado do -
deles apenas cópias muito inferiores ao que existe no homem. embrião, órgão de onde procede o sangue no organismo humano, -
Foi em Bolonha, no final do século XIII, que foram praticadas as está formado, constitui-se igualmente uma veia que lhe assegura,
primeiras dissecações humanas. Das observações efectuadas nasce pela chegada do sangue menstrual, a sua nutrição até ao parto ...
a Anatomia de Mond~no de Luzzi, acabada em 1316. Os hábitos Depois do nascimento da criança, o leite, que não é mais do que
de pensamento são tão fortes, porém, que Mondino, à procura das sangue menstrual que sofreu uma forte cocção, substitui-o. Deste
sete células da matriz, observa-as mui to naturalmente ao praticar modo se acha realizada uma feliz transição na alimentação.
a dissecação de cadáveres femininos. Ele introduz apenas uma Durante toda a Idade Média se repetiu que a mulher possui
atenuação na formulação um pouco rápida dos predecessores: «Estas pouco calor natural: é fria, e mesmo a que tem nela mais calor não
células são apenas espécies de concavidades que existem na mat1iz consegue igualar nesse aspecto o mais frio dos homen( Fora dos
de modo a que o esperma se possa coagular com o sangue mens- períodos de gestação, os resíduos que a sua falta de calor não lhe
trual». O saldo da experimentação é po11anto bastante diminuto, e permite transformar pelà cqcção são expulsos sob a forma de sangue
este momento da história da medicina oferece uma bela lição tanto menstrual. Foi por isso que Aristóteles, seguido pelo pensamento
sobre a constituição do objecto científico como sobre os limites da medieval, tinha podido adiantar que as mulheres não sangram pelo
observação. Os anatomistas do Renascimento - nomeadamente nariz, não têm hemorróidas e têm uma pele doce e lisa. Em con-
Gabriel Falópio - modificarão as concepções medievais. O retorno trapartida, no homem a expurgação é realizada pela produção de
a um galeni smo mais próximo do texto não constitui um requestio- barba, de pêlos, e, nos animais, de cornos. É este tipo de observações
namento completo do sistema elaborado pela Idade Média. Se a que tende a ser separado do seu contexto para circu lar sob a forma
doutrina das sete células é muito rapidamente abandonada, se a de uma pergunta seguida da sua resposta. A difusão fraccionada dos
anatomia beneficia enfim com um real progresso da observação, as conhecimentos contribuiu bastante para dar ao saber medieval um
abordagens do sistema fisiológico permanecerão, pelo contrário, aspecto ingénuo e incoerente. Recolocada no seu contexto, esta afir-
durante séculos. mação não obedece ce11amente a uma qualquer verdade científica,
mas reencontra uma aparência lógica. Atenta à menstruação, a Idade
Média conhece as arnen01Teias da fome. Alberto Magno conta que
Na iconografia medieval, a nudez
, 111i11i11as _O sangue menstrual foi objecto de estudos e de reflexões que as mulheres pobres, que trabalham muito, não têm regras, pois o serve habitualmente para representar
demonstraram, nas crenças populares, a sobrevivência de um pen- pouco que comem mal chega para a sua preservação. No sistema uma forma de ruptura com a vida
colectiva. As cenas referentes ao Juízo
samento muito próximo da tradição medieval. Líquido que alimenta da expurgação, a explicação é evidente. Curiosan1ente, a periodici- Final agrupam os nus femi ninos e
o embrião, pode exercer uma acção particularmente nociva sobre dade do ciclo menstrnal não orientou os médicos e os sábios para masculinos rumo à perdição ou à
os que rodeiam a mulher menstruada. Desde Isidoro de Sevilha, os - uma periodicidade da fecundidade. salvação. Nus unidos, almas débeis, no
percurso e na busca da incógnita fi nal.
mênstruos estão ligados pela etimologia ao ciclo lunar (pois a lua Se o sangue menstrual e as suas funções são fáceis de precisar, Ponnenor de um fresco do século XIII
é chamada mene em grego). Trótula, a célebre parteira de Salcrno, cm contrapartida a existência cio espenna fem inino, que define o sito em Lo reto Aprutino, Santa Maria
in Piano.
dá- lhes o nome de «flores», porque, tal como as árvores não dão papel da mulher na geração, não pode ser nem infirmado nem con-
frutos sem flores, também as mulheres sem flores são frustradas firm ado pela observação imediata e torna-se por este facto um espaço
na sua função de concepção. Esta elegância de linguagem não é d' controvérsias científicas e teológicas. A crença na existência de
senão uma das múltiplas comparações que aproximam a fonnação um princípio feminino que intervém no momento da concepção
da Acr~ança da reprodução e da nutrição cios ve~tais. (_)s autores_ são possui uma prestigiosa tradição: da Índia à maior parte dos filósofos
unanimes em afmnar que o sangue menstrual serve para a nutnção do mundo grego. O encontro de um elemento macho e de um ele-
do embrião depois da concepção, à_custa de uma modificação ela cir- 111 ·1110 fêmea determina com efeito o sexo do embrião. Esta tradição
culação sanguínea, de que já falámos. Os mais precisos, como, por •11 l'r •nta um adversário resoluto na pessoa de Aristóteles. Para ele, o
exemplo, Ali ibn al-Abbâs, associam ao sangue menstrual o sangue rl uxo menstrual corresponde ao líquido seminal do macho e não
subtil e o pneuma animal. Foi sem dúvida a partir de distinções deste poderiam ex isti r duas secreções espermáticas no mesmo ser. A
tipo que São Tomás elaborou um sistema particular que explica a secreção que se produz na mulher no momento do coito não pode1ia
/ formação do embrião divino no seio de Maria. O sangue constitutivo ser compa rável ao líquido seminal masculino. Estas secreções variam
(
do embrião é elaborado a partir do sangue menstrual, a fim de que· consoante os tipos de mulheres e dependem igualmente da alimen-
111 Da natureza feminina 81
tação. É em meados do século XIII, com a tradução das obras do
Estagirita, que a doutrina da existência do esperma feminino será
posta em questão da forma mais viva. Hipócrates e Galeno, com
muitos cambiantes, fornecem à defesa a autoridade necessária. Desde
o século XI que se conhecia o pensamento de Nemésio de Emeso,
que tinha já claramente sublinhado a oposição entre Aristóteles e
Galeno. Há na literatura grande variedade de opiniões sobre a fina-
lidade exacta deste adjuvante da semente masculina. Segundo uma
est1ita tradição galénica, ele pode ser o alimento do espe1ma mas- O banho possui um forte conteúdo
culino, antes de o sangue menstrual vir assegurar esta função: pode simbólico. O asseio é representação do
privado, um acto solitário, reservado à
ser também uma espécie de diluente, que ajuda esta mesma semente intimidade, mas o banho no exterior é
masculina, demasiado espessa, a espalhar-se na matriz; enfim, pode lugar de encontro e os que nele tomam
assegurar a formação da segunda membrana que envolve o feto. parte e ntregam-se à liberti nagem e à
promiscuidade sexual. É interessante
Nem sempre os textos são claros sobre esta questão complexa. observar q ue, inclusive nesta cena
Hildegarda de Bingcn (t 1179) , que expôs as suas visões místicas abertamente transgressora, o homem
cobre o seu sexo, enquanto que a
mas deu também uma interpretação científica do universo e reflectiu nudez fem inina é total. Numa a legoria
com grande franqueza sobre os problemas da sexualidade, parece ter do abandono sexual, a mulher aceita a
iniciativa viril. Pormenor dos frescos
uma opinião muito incerta sobre a existência do esperma feminino 8 • do Salão Baronal do castelo dos
Ou nega a sua existência ou fala de uma pequena quantidade de duques de Saluao. Sécu los XIV-XV .
semente fraca. Ela explica a concepção pela mistura de duas espu- Mântua (Asti).
mas (spuma), produto da agitação do sangue; parece que a semente
masculina intervém então sem a presença de um produto feminino. nenhuma parcela de virtude formativa, nenhuma acção na constituição
O defensor mais ardente da semente feminina foi o enciclopedista do embrião. Nas entrelinhas lê-se a dicotomia aristotélica da matéria
Guilherme de Conches (t ca. 1150) que, como dissemos, incorpora e da forma: a matéria é constituída pelos mênstruos, a forma produzida
no Dragmaticon philosophiae o saber veiculado pelas traduções de pela semente viril. Se se supõe um momento em que possam encon-
Constantino. Como a obra de Gui lhe1me constitui uma autoridade na trar-se na mulher a matéria dos mênstruos e um esperma feminino
matéria, retomada pelos enciclopedistas posteriores, as suas afirma- que possua, por pouco que seja, a capacidade de intervir na qualidade
ções têm um grande peso. É a ele que se deve a célebre argumen- de agente, então a mulher poderia conceber sozinha, sem intervenção
tação que se apoiou na esterilidade das prostitutas: como não têm do macho. E vemos assim ressurgir por intermédio da discussão
prazer no decorrer da relação, não emitem semente e por conseguinte filosófica uma velha obsessão masculina. Uma das conclusões pos-
não concebem. Quanto às mulheres violadas, pode acontecer que síveis é que o esperma feminino, sem utilidade alguma, é análogo ao
tenham prazer no final do acto, tão grande é a fraqueza da carne; licor prostático. Averróis forneceu o célebre argumento da mulher
assim se explicam algumas gravidezes consecutivas a este género de engravidada pela água do banho na qual um homem tinha lançado a
incidente. A polémica deve ter atingido uma certa força, visto que sua semente. Não houve nem prazer nem emissão de semente por
um enciclopedista do século XIII, Tomás de Cantimpré, dirigindo- parte da,mulher, e no entanto a fecundação deu-se. Contudo, a nega-
-se aos que negam a existência da semente feminina, exclama: «Os ção da eX'istência do esperma feminino tornava inútil a presença dos
que afirmam isso só dizem mentiras»9• Para a pequena história, note- «testículos» femininos (os ovários) e o princípio da finalidade dos
mos que numa questão salernitana se afirma que;em caso de adulté- órgãos era posta em xeque: é por esta razão que os autores adaptam
rio, a influência do macho é determinante, porque no momento da quase sempre soluções bastardas. A época é de valorização da
reunião das sementes a sua vontade é mais fo1te. semente qiasculina. Vicente de Beauvais, o maior enciclopedista do
Com os defensores da doutrina aristotélica a discussão toma século XIII, declara que o calor do sol e o calor animal estão pre-
uma faceta muito mais filosófica, como prova Gil de Roma no sentes no esperma. Para São Tomás, a semente é um receptor do
seu tratado Da forma ção do corpo humano no útero 1°, escrito em poder dos astros, pelos quais Deus exerce a sua acção sobre o
1267. A existência do esperma feminino pode ser em rigor admi- mundo. Ela encerra um triplo calor: calor elementar da semente,
( tida, mas nega-se-lhe qualquer utilidade. Não se atribui a este humor calor da alma do pai e calor do sol. Ela é, segundo uma metáfora
\
82 As normas de controlo
formar fêmeas. Quanto à célula central, ela explica a fonnação do tipos humanos retirados da ciência antiga, particularmente de Hipó-
hermafrodita. Anteriormente ao estabelecimento desta possibilidade crates. Multiplicar as combinações é um exercício que parece conhe-
de combinação de elementos puramente físicos, Hildegarda de Bingen cer uma certa adesão, a ponto de a obra de vulgarização em língua
expôs um sistema completamente original, no qual concede um lugar vernácula os acolher. O Diálogo de Plácido e Timeu joga com a
decisivo aos factores psíquicos. Se a força da semente masculina localização, a proporção das sementes, e acrescenta-lhes a disposi-
determina o sexo do embrião, em contrapartida o amor que os pais ção do calor. Quando a semente feminina é atirada para a direita, o
têm um pelo outro determina as qualidades morais da criança. Deste calor pode voltar-se para o interior. Atenção então a este tipo de
modo, uma grande quantidade de semente masculina e um amor mulheres, brancas, pálidas, agradáveis, mas altaneiras de aspecto e
virtuoso nos pais permitem a geração de um rapaz ornado com todas de porte. Elas têm no corpo calor masculino e não podem procriar,
as virtudes. Se a emissão masculina é fraca, mas se o homem e a qualquer que seja o calor do homem; além disso, o seu apetite sexual
mulher nut~em um pelo outro um grande afecto, então nascerá uma é desmedido. Mas se, pelo contrário, o calor é desviado para fora,
criança virtuosa do sexo feminino. O resultado mais desastroso é dá-se origem a mulheres negras e barbudas que, quando têm um
obtido quando a semente do pai é fraca e os pais têm falta de amor bom macho, concebem rapazes grandes, belos e fortes . Com meios
um pelo outro, caso em que nasce uma rapariga má. Acaso da refle- que às vezes se prestam a fazer sorrir, a Idade Média esforça-se em
xão teórica que parece ter em conta a necessidade do afecto para o decifrar e classificar os homens, mas sobretudo as mulheres, por-
desenvolvimento psicológico da criança? Hildegarda afirma, além quanto é preciso conhecer a mulher a qualquer preço: desconfiar do
disso, que a mulher bem constituída tem calor suficiente para qu~ o seu apetite sexual, mas assegurar-se da sua fecundidade. Poder-se-
filho se lhe assemelhe, enquanto que o homem vigoroso imporá os -á imaginar um médico, cheio desta ciência, dando a sua opinião
seus traços face a uma mulher delicada. Porque era mulher, Hilde- sobre a futura esposa?· É também quando se preocupa com ades-
garda reivindica a possibilidade de a criança ser parecida com a mãe. cendência, esquecendo que as crianças podem ser parecidas com a
Esta preocupação está curiosamente ausente dos fundamentos teóricos mãe, que a «Idade Média» merece bem esse epíteto. Quanto ao
do pensamento científico medieval. Nada pode então alterar a marca bastardo, saído de um homem bem nascido e prestigiado, é com toda
do homem na sua descendência. Para ela ainda, o ·espaço do corpo a legitimidade científica herdeiro das qualidades de seu pai e teste-
destinado à manifestação do prazer torna-o mais impetuoso e mais munho da sua virilidade.
violento no homem, enquanto que na mulher ele parece comparável
ao sol que, docemente, tranquilamente e de modo contínuo espalha
sobre a terra o seu calor, a fim de que ela dê os seus frutos. Para O prazer é antes de mais o prazer do homem, e Georges Duby O prazer
Hildegarda, finalmente, se é verdade que a mulher é mais fria e mais pôde evocar para os séculos XI e XII, que precedem a irrupção do
húmida do que o homem, estas características favorecem a sua mo- pensamento árabe, o comportamento da esposa legítima: «O homem
deração e a sua fertilidade. Um discurso com tantos cambiantes e tão nunca tem mais do que uma esposa. Deve tomá-Ia como ela é, fria
favorável à mulher não é frequente. Alberto Magno saberá, também no pagamento do debitum, e é-lhe proibido aquecê-la» 13 • A este-
ele, reconhecer que a superabundância de humor, os excessos de rilidade das prostitutas, justificada de maneira científica ou pseudo-
ardor das raparigas encontram o seu exutório no parto que as põe em -científica, permite que os rapazes vivam a sua sexualidade antes do
perigo de morte. casamento. Para que seja assegurada a continuidade da espécie,
Mas a compreensão da natureza feminina nem sempre tem esta afirmam os teólogos, foi necessário que o prazer fosse ligado a um
acuidade. Se Hildegarda encara a sexualidade e a geração sob a capa acto tão "infamante, realizado com o concurso de órgãos tão vergo-
da metáfora poética, a tradição mais vezes explorada na Idade Média nhosos . Galeno fornecia a ideia de uma finalidade aceitável: essas
propõe regras bastante simples que combinam um número reduzido partes foram dotadas pela natureza de uma sensibilidade muito
de factores determinantes. Um deslocamento da localização direita- superior à da pele, e não devemos espantar-nos com o vivo prazer
-esquerda permite a Guilherme de Conch~s fazer aparecer novos de que estas partes são a sede, nem com o desejo precursor de tal
tipos humanos: à direita, mas um pouco para a esquerda, será um prazer. Por muito paradoxal que possa parecer, a Igreja, na sua
homem efeminado; à esquerda, mas um pouco para a direita, será preocupação de regulamentar a vida sexual e de instaurar o casamento,
uma mulher viril. Este tipo de mulher possui mais calor do que as foi levada a aprofundar a sua reflexão sobre a sexualidade e o
suas consortes e, por conseguinte, um sistema piloso mais desen- prazer. Um aristotelismo estrito permitia negligenciar o prazer femi-
volvido. Os autores medievais jogam com uma classificação de nino, mas o galenismo dominante obrigou os teólogos não somente
(
111, !1 1\1111111\ 1l l 1111111 11111
O !,nmem à margem Tirésias foi condenado à cegue ira por Hera porque tinha reve-
lado que o prazer da mulher ultrapassava o que o homem sente. O
desejo de adquirir este aber persegue os espíritos medievais. Com
precauções desajeitadas, os cléri gos, cm busca de público para as
suas compilações, quando abordam a sexualidade fa lam em termos
de saberes esotéricos, de «segredos ele mu lheres». Mais revelador
ainda: no Diálogo de Plácido e Timeu, sob o patrocínio ele Ovídio,
a personagem de Hermafrodi ta aparece como o símbolo mítico
desta vontade de saber. Para satisfazer o seu apetite sexual, este
herói singular manda depilar a barba, veste roupas femininas e, em
diversos países, vive no mundo das mu lhe res e das jovens. Graças
à sua discrição, é cumulado de mú ltiplos favores, mas sobretudo
solicita e recebe confidências que lhe permi tam possuir as chaves do
mistério feminino. Velho e cansado, retoma as roupas masculinas e
revela aos homens o que aprendeu. Como ini ciador dos mistérios
femininos, é digno de figurar ao lado de Trótula, médica de Salemo.
Toda esta1 história mostra que o clérigo, que continua a missão
destas duas personagens, ten(a apropriar-se ela exclusividade do dis-
curso sobre a sexualidade e que,_,:perdiclo no meio de alguns outros
fantasmas masculinos, o «voyeurismo» se afirma. Os escritos dos
médicos não estão isentos dele: a masturbação feminina e os seus
acessórios são apresentados com um tal lu xo de detalhes que trai o
prazer do autor. Numa sociedade que re tarda a idade do casamento,
o jovem é mantido à margem do mundo das mulheres. A alcoviteira
tem pois o seu lugar; na literatura, é encarregada cio discurso sobre
os segredos femininos. Na parte do Romance da Rosa escrita por João
de Meung, a Velha expõe com complacência as práticas do amor
venal e a arte de desflorar. Mais cínica ainda cio que esta persona-
gem é a mãe evocada por Raimundo Lullo na Árvore da Ciência. Ela
H na é poca antiga existia a noção de alegra-se, às vezes mesmo como es pectadora, com o deboche de
que o prazer da mulher superava o do sua filh a, e por fim «falava sem vergonha de luxúria com ela, a
homem. Esta dama toma a iniciativa
de abrir a porta da fortaleza ao seu quem contava os prazeres que tinha sentido com os homens, pra-
aman te. Miniatura de um códice do zeres que tinha vergonha de contar ao filho» 14 • Este caso extremo
século XIV com obras de Guilherme
de Lorris (?- 1260). Valência,
de cumplicidade de mulheres é igualmente revelador da ansiedade
Biblioteca da Universidade . masculina face a uma informação que lhe escapa e à qual não tem
Da na tu reza fem inina
O discurso científico e médico comporta intuições espantosas, no Diálogo de Plácido e Timeu. Um rei teme o poder nascente de
mas veicula também inquietantes zonas de sombra legadas pela tra- Alexandre e educa uma jovem que manda alimentar com veneno.
dição e não postas em causa. Os exempla, quer dizer, neste contexto, Ela sobrevive, e no momento em que está enfeitada com todas as
as pequenas narrativas destinadas a ilustrar uma verdade científica, seduções, este rei envia-a como presente a Alexandre. Este está
podem transmitir elementos que escapam a qualquer análise racional prestes a sucumbir aos encantos da jovem quando os clérigos da sua
e que constituíram verosimilmente um ponto de intercâmbio entre corte, Aristóteles e o seu mestre Sócrates, descobrem a presença do
a cultura -erudita e as crenças populares. Entre os enciclopedistas, veneno na jovem. Para convencer Alexandre, que se mantém reti-
raros são aqueles que não retomaram a lista dos malefícios do sangue cente, procedem a uma experiência: a jovem beija dois servos. Eles
menstrual, segundo a tradição de Plínio, transmüida à Idade Média morrem imediatamente, assim como os animais que ela toca. É pela
por Isidoro de Sevilha. Ele impede os cereais de germinar, azeda os fogueira que o mundo será desembaraçado deste flagelo. O modo de
mostos; pelo seu contacto as ervas morrem, as árvores perdem os contaminação pode variar de uma versão da história para outra: ou
frutos, o ferro é atacado pela ferrugem, os objectos de bronze escure- o beijo, ou o hálito, ou o coito, mas o esquema narrativo permanece
cem, os cães que o absorveram contraem a raiva. Possui igualmente o mesmo.
a propriedade de dissolver a cola do betume, o que nem o ferro Esta história, que floresce na segunda metade do século XIII,
consegue fazer. Afirmações deste tipo fizeram parte da cultura do marca duravelmente a literatura. Traduz não somente o medo que o
mundo rural. Mas, para a Idade Média, há algo de mais inquietante: homem sente em relação à mulher menstruada, mas igualmente o do
a criança gerada durante as regras será ruça, com todas as conotações contágio da lepra no âmbito de um pensamento médico que não
que isso então comporta. Do mesmo modo, qualquer criança pode possui sequer o princípio de uma explicação. A Idade Média pensou
contrair a rubéola ou a varíola, doenças provocadas pelo esforço que que a lepra podia ser contraída no decurso de uma relação com uma
o novo organismo faz para se purgar do sangue menstrual que pode mulher menstruada, e alguns autores afirmam que a criança concebida
estar contido ainda nos seus membros «porosos». nessas condições pode ser leprosa. Ainda que os historiadores sejam
Na esteira de Aristóteles, toda a Idade Média acredita que o induzidos a avaliar por baixo a taxa da endemicidade da lepra, a
olhar da mulher menstruada embacia os espelhos. Alberto Magno doença impressionou suficientemente as imaginações para que todas
fornece uma explicação científica do fenómeno: o olho, órgão passivo, as fábulas a seu respeito sejam admitidas e amplificadas. Os médi-
recebe durante as regras o fluxo menstrual, e em virtude das teorias cos conhecem bem a doença, mas a sua duração de incubação pôs
aristotélicas e galénicas da visão, altera o ar que transmite este vapor em causa o seu sistema de causalidade. A tradição muito antiga da
nocivo ao corpo em contacto com ele. O período após a menopausa transmissão pelas relações sexuais veio preencher, infelizmente para
toma a mulher extremamente perigosa, porque os excessos, que já a mulher, esta lacuna. Um dos enciclopedistas mais conhecidos e
não são eliminados pelas regras, são integralmente transmitidos mais citados, Guilherme de Conches, explica que se um leproso
pelo olhar. Os Admiráveis segredos de magia do grande Alberto e conhece uma mulher, ela não contrairá a doença, enquanto que o
do pequeno Alberto falam das velhas que, pelo seu olhar infectado, primeiro homem que a conhecer ficará leproso. É porque a mulher
comunicam às crianças de berço o seu veneno. As mulheres pobres, é fria que é capaz de resistir à corrupção masculina, mas a matéria
que têm uma. alimentação grosseira, difícil de digerir, são mais pútrida que provém do coito com o leproso infecta os órgãos geni-
venenosas do que as outras. Esta justificação pseudo-científica exclui tais do homem. Portanto afirma-se claramente que a lepra se transmite
e mantém assim prudentemente à distância uma boa parte da socie- como uma doença venérea. No estádio da contaminação, a analogia
dade. Contudo, este mecanismo fisiológico, esta lei, é verdadeiro dos sínais pôde jogar em favor de uma confusão com uma autên-
para todas as mulheres no momento em que perderam a sua função tica infecção venérea tal como a doença de Nicolas e Favre, devida
na sociedade, a saber, a capacidade de gerar, assim como os seus à Chlamydia trachomatis, responsável igualmente do tracoma. A
atractivos. A mulher possui uma tal habituação ao veneno que ela mulher parece, pois, gozar de uma imunidade que se pode em parte
própria está imunizada. Esta propriedade que se lhe atribui está em explicar: o homem, que se desloca mais do que a mulher, corre mais
estreita relação com o mitridatismo. Lembremos que Mitridates, rei riscos; por outro lado, esta, em repetido contacto com a doença do
do Ponto, possuía a faculdade de resistir ao veneno. Este poder, a maiido, devia adquirir alguma resistência. Era por isso que o número
Idade Média confere-o a uma jovem. A autoridade é fornecida por das leprosas era sem dúvida inferior ao dos leprosos. A mulher não
Avicena, que observou que os estorninhos se alimentam de cicuta faz mais do que transmitir a doença que destrói o homem, e esta
sem se molestarem. A narrativa mais completa desta história é dada concepção dolorosa do amor vem inscrever-se no mito.
(
Da natureza femi nina 95
e tão repugnante que a sua mulher consegue convencer os barões, nos, comunidade de sexualidade sempre ameaçadora, único ambiente,
o povo e o próprio bispo de que a separação se impõe. Com efeito, pensa o homem, em que, sempre insatisfeita, ela pode enfim sac iar
uma mulher tão vigorosa não poderia partilhar o leito de um homem o seu insaciável apetite sexual. Na abordagem da lepra há que dis-
tão decrépito, tal é a opinião comum. Tudo se deslinda graças a um tinguir entre urna realidade quotidiana que permitiu que os homens
sacrifício seguido de um milagre, mas o herói curado censura a sua da Idade Média ajudassem os doentes, com a preocupação de obe-
decerem à caridade cristã, e o funcionamento da imaginação, que
desempenha um grande papel no pensamento médico, visto que este
* No original «la givre (la g uivre, la vouivre)», palavras sinónimas que identificam
uma serpente fantástica, utilizada em heráldica (N.R.).
acolhe, sem espírito crítico, as narrativas legadas por uma longa
1
1, Da natureza feminina 97
(
\
- -- ----- '
h :tlar às mulheres
A linguage m como veículo de normas
1e6ricas e práticas é criação masculina.
Do fina l do sécul o XII até ao fi nal do século XV estas palavras Pais, esposo , clérigos, letrados e
to rnam-se mais numerosas e insistentes: escritos por homens de mestres dirigem o seu discurso para
as mulheres, a quem admoestam,
lg n:jn ' por leigos, os tex tos sucedem-se uns atrás dos outros a tes- aconselham, ordenam. Desde o
l\.' lll 1111harem a necessidade e a urgência de se e}aborarem valores e século XII e até ao século XV os
textos pedagógicos com exemplos
\ 1110tl •los de comportamento para as mulheres. E difícil definir com e regras de conduta femi ni na
p tl' ·isão o q ue faria m as mulheres daquele período que pudesse ser multip licam-se, dando lugar a um
rnns idc rado tão estranho e tão diferente das suas companheiras de género d idáctico e pastora l, de base
eclesiástica , q ue transmilirá uma
o utro te mpo para provocar tanta atenção da parte daqueles que se ideologia masculina sobre a mulher.
·o nsid ' ravam os de positários dos valores morais de toda uma socie- Na imagem, ao fundo, a mu lher
dad ' . É certo que o se u compo1tamento religioso se tinha tornado «custodiada» . P ormenor cio fresco
do M ês de Janeiro, sécu lo Xlll.
mais relevante em q uantidade e qualidade: algumas delas patticiparam Pádua, Palácio da Razão.
(
rl,1 A m u lher sob custódia 101
em movimentos heréticos, outras entraram em grande número nas poslos •ntre o fim do século XII e o início do século XIV olham Os autores de obras literárias dirigidas
ordens reconhecidas, outras escolheram um tipo de vida religiosa ao l 1111hc111 para O passado e freq uentemente para um passado muito _ à mulher sã? varões que assinam
1 • - . os seus escntos, enquanto as
serviço de Deus e do próximo à margem da instituição eclesiástica, lo11pf11quo. Com a preocupação de apontar às mulheres o cammpo mulheres permanecem no anonimato.
muitas tomaram a palavra para escreverem o seu desejo de uma rela- d:1virtude e da salvação, frades, clérigos e leigos empreenderam um O conteúdo destes textos pretende
ção mais intensa e directa com a divindade. Nesse entretanto, conti- , . _ , chegar a todas as mulheres, rehg10sas
n 11dadoso apuramento das trad1çoes e falaram as mulheres com as e seculares, para estabelecer O seu
nuavam a estar presentes na sociedade, intervindo de várias manei- p11lnvras dos seus livros. As Escrituras Sagradas, as obras dos pagãos domínio no universo feminino, cuja
ras, a nível económico, político e familiar: muitas paiticipavam no · f ' l h · variedade é representada por esta
1111s quais ·osse poss1ve recoo ecer uma antiga sageza, os textos miniatura da Crónica de Ulrico de
trabalho dos campos, na produção e venda de mercadorias, algumas <10111 ri nários, morais, teológicos e hagiográficos dos Padres da Igreja, Richental, de 1420. Praga, Biblioteca
encontravam-se no centro dos jogos da política e do poder, todas dos monges e dos mestres mais próximos no tempo, nada foi esque- Nacional.
assumiam nas famílias os papéis de esposas, de mães ou de filhas , e rido para se construiI um modelo feminino que, imbuído da auto-
a definição desses papéis foi um dos principais objectivos da nova ridade que vinha do passado, fosse capaz de funcionar no presente
pastoral e da nova pedagogia que elas ouviram ser-lhes propostas. t' de se projectar no futuro.
A cena na qual estas mulheres se moviam era uma cena complexa;
no meio dos campos e das florestas eram agora numerosas as cida-
des; ao lado da hierarquia das relações feudais desenvolvia-se uma Falar a que mulheres?
rede de relações determinada por uma economia mercantil e mone-
tária; novas fo1mas de poder e de cultura se impunham ao lado das Os protagonistas da história que vamos contar são homens e
formas tradicionais dos senhores e do clero. Uma sociedade que do mulheres; dos homens sabemos sempre o nome, e quase sempre a
século XI ao século XIIÍ não tinha cessado de se alterar e de se com- rormação cultural, as amizades, as deslocações, a data e o lugar do
plicar, tinha ig ualmente alterado e complicado a vida das mulheres.
Não foi por acaso que os principais protagonistas desta renovada
pedagogia nos confrontos com as mulheres foram os frades men-
dicantes, isto é, os que pertenciam àquelas novas ordens religiosas
a quem a Igreja confiou a tarefa de responder às necessidades reli-
giosas e ideológicas de uma realidade social alterada e complexa:
presentes nas praças públicas das cidades, nas universidades, nas
cortes, no campo, interlocutores de heréticos, de reis, de camponeses,
de mercadores, de trabalhadores manuais, de intelectuais empenha-
dos em levar a palavra de Deus aos lugares onde tinha sido conte -
tada, discutida ou esquecida, franciscanos e dominicanos conside-
raram as mulheres um sustentáculo importante para a sua ambiciosa
política pastoral e às mulheres se dirigiram frequentemente e com
grande atenção.
Entre todos os textos que durante cerca de três séculos falaram às
mulheres e das mulheres, os que foram compostos do final do século
XII aos primeiros anos do século XIV ocupam um lugai· especial: de
facto, naqueles anos, na tentativa de construir um modelo ético
fem inino adaptado às mulheres de uma sociedade que se estava a
tornar mais complexa e a assentar em formas novas e diferenciadas,
foram lançadas as bases de uma pastoral e de uma pedagogia no
feminino destinadas a perdurarem. A análise será conduzida, numa
primeira fase, recorrendo em alguns casos também a textos pos-
teriores, quando se tratar de assinalar continuidades, diferenças,
nascimento e morte; se são homens da Igrej a, sabemos a que ordem salvação. Na passagem da «mulher» às «mulheres» produz-se um
pertenceram e que papel representaram; se são leigos , podemo desconcerto, um momento de indecisão e de perplexidade , em q ue
determinar-lhes a condição social e o nível c ultural. cada qual procura e experimenta soluções mais ou menos eficazes,
mais o u menos articuladas. Nesta fase experimental , de stinada a
durar por todo o século XIII, as mu lheres invadem, numerosas e
1/1/t ' ll.1 Temos que nos re lacio nar com profissionais do trabal ho inte- dive rsas, os textos pastorais e didácticos que se esforçam por encon-
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lectual, como Alão de Lille (t 1202-3) ,e:-Gil de R om) (t l 3 16) , com
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trar um critério unânime para individualizar e classificar o aud itóri o
pregadores que organizam e praticam na primeira pessoa as activi- feminino ao qua l se dirigem.
clades pastorais da Igreja, como Tiago de Vitry (t 1240), como os
dominicanos Vicente de Beauvais (t 1264), Guilherme Peraldo ( t
1261), Humberto de Romans (t 1277), Tiago de Varazze (t 1298), Alão de Lille tem diante de si, como possíveis ouvintes dos seus As class!fh·ações
os franciscanos Gilberto de Tournai (t 1284), João de Gales (t sermões, virgens, viúvas e mulheres casadas. As mesmas m ulhe re s, das 111u/!1eres
1285) e Durando de Champagnc (t 1340?), com le.igos cultos como com a adição ele freiras e serventes, constituem o público fem inino
Filipe de Novara (t 1261-4) e Francisco de Barberino (t 1348), e dos pregadores T iago de Vitry e Gilberto de Tournai 1• Vicente de
com um rei santo, Luí. IX de _franç-ª-(t 1270). As palavras que Beauvai s e Guilherme Peraldo, em dois tratados sobre a educação
dirigiram às mulheres gozam do privi légio de terem sido escritas, cios jovens príncipes, dirigem -se às meninas da corte para as prepa-
em latim pe los homens da Igreja, em língua vulgar pelos leigos, e rarem para os futuros papéis de mulheres, viúvas ou virgens con-
chegaram até nó · organizadas nas formas tradicionais do discurso_ sagradas2. O franciscano João de Gales, no se u compêndio moral,
normativo, o sermão, o tratado moral e pedagógico; à semelhança ocupa-se de mulheres casadas, viúvas e virgens; o dominicano Tiago
dos seus autores, estas o bras são identificáveis e reconhecívei s uma de Varazze, nos sermões e na crónica de Génova, volta a sua atenção
por uma, podemos reconstruir-lhes o índice, as fontes, o destino, g. sobretudo para as m ulheres e as mães 3• O le igo Filipe de Novara, no
conhecemos os seus títulos. seu tratado acerca das quatro idades do homem, propõe uma séri e
Das outras protagonistas da nossa história não sabemos o nome de nom1as para raparigas, mulheres jovens, mulheres de me ia idade,
nem a biografia; as mulheres entram nos textos da literatura pastoral velhas4 .~Às rainhas dirige-se um 1~ei, S. Luís, que escreve para a
e pedagógica através de uma série de categorias femininas q ue deve- filha/rainha uma breve- selecção de ensinamentos, e um franc iscano,
riam compreender e compendiar todas as suas inumeráveis condições Durando de Charnpagne, que compõe um speculum dirigido à mulher ,
individuais. São porém em número avultado, praticamente todas. O do rei de França5• Gil de Roma, que fala ..das mulheres com a lin-_ i
projecto educativo que lhes diz respeito é de facto particulaimente guagem da teoria política aristotélica, distingue-as com base nas .t.
ambicioso; não basta falar a algumas delas por serem importantes funções que elas desempenham naquela comunidade política natu-. 1
na escala social ou por se dedicarem a urna vida santa e virtuosa; ral que é a família, falando portanto ele esposas, de mães e de filha 6• · j
o desafio que a realidade impõe é o de elaborar valores e modelos Quando o dominicano Humberto ele Romans decide que é necessário 1
capazes de se dirigirem a todas as mulheres. É por isso necessário pregar de mane ira diferente aos diversos géneros de m ulheres, o seu
repensar com atenção o posto e a função das mulheres na vida social manual para pregadores enche-se de um número de mul heres como
e religiosa e individua lizar com exactidão a variedade das suas con- nunca se tinha visto: as religiosas, diferenciadas em bened itinas, cis-
d ições. Há no confronto com o público fem inino uma curiosidade terc ienses, dominicanas, franciscanas, humilhadas, agostinianas, rapa-
descritiva e um esforço de classificação até então in só litos ; _todos ri gas que vêm a ser educadas nos con ventos, beguinas , e as leigas,
aqueles q ue se dirigem às mul heres com um propósito moral e diferenciadas em nobres, burguesas ricas, raparigas, servas em casa
pedagóg ico- preôcupam-se em elaborar urna tipologia das suas lc famílias ricas, m ulheres pobres q ue habitam em pequenas aldeias
inter ocutoras. Mas descrever e classificar as mulheres não é uma cio campo, meretri zes7• Com o jurista florentino Francisco de Bar-
o peração simples para quem carrega nos ombros uma tradição que b •rino há uma verdadeira explosão de categorias femininas: com eça-
Submissão, obediênc ia e atenção
raramen te pen ou as mulheres no interior das representações da -se co m as menininhas e as raparigas cm idade casadoira, para passar constante ao marido elevem ser normas
sociedade, preferindo unificá-las na categoria «mulheres», na qual, d poi s às mulhe res q ue superaram a idade de ter marido, àquelas de cond uta da jovem esposa, presa
com base num critério unicamente moral, se colocam as opostas que se casam tarde e às mulheres casadas; cada uma destas categorias nos laços mairimoniais. M iniatura
do Oficium Beatae Mariae Virginis,
mas solidárias imagens da mulher luxuriosa, sujeito e objecto do é po r sua vez dividida em subcategorias, conforme a mulher seja século XV. Madrid, Biblioteca
(
pecado, e da mulher casta, símbolo de virtudes e instrumento de o riunda de uma família de re is ou imperadores, de nobres, de cava- Nacional.
A mulher sob custód ia 105
leiros, juízes e m édicos, mercadores e artesãos, camponeses e simples como podem ainda assumir um p apel de ensinamento e de coJTec-
trabalhadores; prossegue depois com as viúvas, as viúvas que se ção sobretudo no que se refere às mais jovens. Muitas delas vivem
voltam a casar, as mulheres que praticam em casa uma vida religiosa, porém uma vida p ecaminosa: gostam de tagarelar continuamente,
as freiras, as reclusas solitárias, as damas de companhia, as criadas, escondem com roupas e cosméticos um corpo agora murcho, buscam
as amas e as servas, concluindo com uma série de mulheres de con- com enganos aqueles prazeres da carne a que há muito deveriam ter
d ição humilde : barbeiras, padeiras, vendedoras de fruta, tecedeiras, renunciado. À figura da velha arrebicada e pintada, frequenteme nte
moleiras, vendedeiras de aves de criação, mendigas, tendeiras e ridicularizada nas prédicas e nos tratados, sobrepõe-se a fi gura, de
hospedeiras; as meretrizes, sublinha Francisco de Barberino, «não origem clássica, da velha alcoviteira que se insinua nas casas como
entendo incluí-I as no escrito, nem delas fazer menção, pois não são insidiosa mensageira, junto das mulheres, das lisonjas dos am antes ,
d ignas de ser nomeadas» 8• e a da vetula feiticeira que com adivinhações e sortilégios engana
Esta última precisão de Francisco de Barberino é muito impor- por dinheiro as mulheres simples e curiosas que a consultaram. As
tante: a sua classificação das mulheres, que é talvez a mais rica e a vetulae aparecem portanto, aos pregadores e aos moralistas, como
mais articulada, e talvez também a mais apegada à situação social, habilíssimas n a arte de induzir ao pecado as outras mulheres; Gui-
não pretende ser uma notícia neutra e uma descrição completa da lherme Peraldo escreve com grande preocupação que «lá, onde nem
condição feminina. Há mulheres , as meretrizes, que Francisco tem o homem nem o diabo atingem o seu objectivo, a velha pode
diante dos seus olhos mas que ficam propositadamente excluídas chegar» 9 . Frente a estas velhas viciosas e perigosas que Tiago de
da sua classificação. O facto é que no Regimento e costumes das Vitry não hesita em denominar «ministras do Diabo» e sobre as
11111/heres, e ainda mais nos outros textos que arrolámos, as mulheres quais, segundo Peraldo, o Diabo poderia fazer descer línguas de
tomadas em consideração são o resultado de uma difícil mediação fogo infernal numa espécie de blasfema paródia do Pentecostes 'º, i{(.i
entre aquilo que as mulheres são e aquilo que deveriam ser. O pre- prédicas e tratados não se cansam de propor de novo a imagem de ~ \
gador, o moralista, o pedagogo selecciona da realidade, ou preci- uma velha sóbria e modesta que alterna com os cuidados familiares ·...,·~:..-,,...ir
sa mente impõe à realidade, aquelas categorias de mulheres que já uma intensa actividade devocional feita de preces e j ejuns.
encarnam ou que pelo menos têm a possibilidade de encarnar os _'s> As meninas tornam-se obj ecto, pela primeira vez de um modo
va lores que propõem. Só as mulheres que pertencem às categorias quase sistemático, ele urna pedagogia específica: as jovens da nobreza
t·scolhiclas ão mais ou menos potencialmente mulheres virtuosas; de que falam Vicente de Beauvais e Peraldo põem-se lado a lado
as outras sofrem uma dupla condenação como marginalizadas e " com jovenzinhas para as quais Humberto de Romans prepara dois
çomo pecadoras. As mulheres, no fim contas, suportam uma socio- sermões, segundo vivam no mundo secular ou nos conventos, com
log ia que é em grande parte ideologia, uma descrição que existe mocinhas a quem Francisco de Barberino e Filipe de Nevara dedicam
quase sempre em função de uma moral, uma classificação que é já propositados capítulos das suas obras, ~ om raparigas par1!_ quem
um mode lo . escre ve Gil de Roma. A intervenção j unto destas interlocutoras é ao
mesmo tempo importante e delicada: p1imeiro banco de ensaio para
valores e modelos que serão depois propostos às outras mulheres,
, 1/1,11 Os c rit éri os que servem para a classificação das mulheres tornam- são um banco de ensaio paiticularmente difícil, porque marcadas
M' po1·t,rnt o um importantíssimo meio de observação para comprecn- por uma natural falta de disciplina e por um sentido moral bastante
dl•1· qua l o sistema de valores e quais os modelos de comportamento débil e quase irreconhecível. As mocinhas de Francisco de Barberino
q111· st· ri11 111 propostos às mulheres. No nosso corpus de textos, os cri- começaram há muito pouco a entrever, depois de u m primeiro e Os tratados pedagógicos preocupam-se
ll I ÍllN silo múltiplos e frequentemente cada autor utiliza mais do que ,, '\
em estabelecer tipos femin inos
inesperado rubor, a diferença entre o bem e o mal 11 ; _as raparigas de \ dis1in1os. Na sociedade laica. e
u111 <) nwis simples, e aparentemente o mais neutro, não por acaso .\ il de Roma têm necessidade de uma disciplina a~a mai:s rígida se gundo a sua função, d ividem-se e m
fi lhas, esposas e viúvas. Dirigidas às
11 111 11 1l11< lif't•r ·ntcmcntc para homens e mulheres, é o da idade. Através d o que ã reservada às mulheres porque, como ensina Aristóteles, a primeiras escrevem-se obras didácticas
ili \ li' n it(• rio i mrõcm-se à atenção dos pregadores e dos moralistas clé bi I nÍcionalidade da sua natureza feminina une-se à ainda incorn- específicas , ou, em obras mais gerais,
111111 t11do duns cat egorias de mulheres: as velhas e as jovens. p l ' l a racionalidade da condição infantil12 • Na realidade, todas estas dedicam-se certos capítulos à
preparação para o matrimónio destas
11 11<·l11s, frL·qu ' ntcmente incluídas também na categoria das rupari gas, que atravessam uma fase da vida identificável com a «donzelas em cabelo». Na imagem,
111 v11•. 10 1·1111 Ni<k'rndas interlocutoras decisivas ------=---=
da nova pastorale
-- - ) ndol •scência e a primeira juventude - sobre a infância feminina o figura femi nina da História do Novo
Testamento, segundo um manuscrito
I " d, 111•111 1 11d1 11•,·111 l11s Is mu lhe res; send ,pruãêntes e vi1Juosas.)/ 1 s ili; nc io mantém-se praticamente total - , não são apenas jovens; anglo-saxónico do século XJIL
111• 1 11 111 11111111 11111 11111d1•lo ('Xl'111plar para as- ou rasmnlheres, ! s, o tamh 111 pobres, ri cas, nobres, laicas ou rel igiosas . Até Filipe de Veneza. Bibl ioteca Marciana.
106 /\s normas d<.: controlo
Um esquema de sucesso Entre os finais do século XII e o iníc io do século XIV, virgens,
viúvas e mulheres casadas impõem-se portanto como as principais
interlocutoras de pregadores e moralistas: por vezes ao lado de outras
categorias femininas, outras vezes insinuando-se no seu interior, outras
vezes ainda tncluindo-as, frequentemente ocupando o espaço sozinhas.
O seu sucesso está destinado a perdurar no tempo e a tornar-se cla-
moroso: a maioria das prédicas e dos tratados morai destinados às
mulheres que se multiplicam nos séculos seguintes prefere classifi-
car a mulher com base no critério espiritual da castidade e deixa em
segundo plano, ou põe mesmo completamente de lado, classificações
A m ulher sob custódia 115
d1· 1ipo soc ial. O trabalho, o poder, a riqueza, a cultura, o lugar de O Ménagier de Paris faz no tar a
l1a hitação , a proveniência social ou geográfi ca mantêm-se critérios sua esposa: «E saberás que não me
desagrada, mas que muito me alegra,
1•, 11 1111hos, o u pelo menos não decisiv os, quando aparecem, p ara se que tenhas rosas q ue cultivar e
rn111pr ·cnde r o mundo das mulheres . Apena Cristina de Pisano, violetas que cuidar e que faças
g rinaldas e bailes e can1os, e desejaria
q111· l'X pc rimentou em pessoa as vantagens de uma condição abastada, que cont inuasses a fazê-lo entre os
11 i111·cr1ezas e as dificuldades da pobreza e as fadi gas do trabalho, nossos amigos e as pessoas da nossa
1• 11110 só o doméstico, recorda vivamente o peso q ue a organização
condição ... » . A vida de re lação
limi 1a-se a um g rupo social concreto
lt11•n rqu ica ela sociedade dos homens tem na vida das mulheres: se para evitar os perigos do encontro
I ,, <'ir,1rle.1· Domes (1404- 1405) encerra com um apelo à tradicional com o pecado. /\s llodas de Ca11á de
Giollo ( 1266- 1336). Pád ua, Capela
11 11dc de casadas, virgens e viúvas , o Livre des trais vertus (1405) dos Scrovegni.
d11 lgt· s · amulhe res de diversos níveis sociais, mulheres que vivem
1111 l11do d· re is, de no bres, de me rcadores, arte sãos e trabalhadores,
q1w t1 11 h11 lham de ntro e fora das parede s domé sticas, que podem ser
11il1 11s ou ilc lraclas, humildes ou poderosas , ricas ou pobres22 .
Nos s ·ul os X IV e XV a maior p arte da literatura didáctica e
1111s 111111 I 1·11d · rcçad a às mulheres , na qual o uso da língua vulgar é
Jlll'Vll l1·1·1•111 • mes mo por parte dos h omens da Igreja, continuará no
1·111 11 111 1111 d il'i p, ir-se ele preferência a casadas, viúvas , virgen s, adoles -
n•1111·s 1· 1·l'li1•imws: o autor doMénagier de Paris (1393) escreve como
11111 1·id o ~ s ua j ove m mulher; à mulher casada e à mãe de família se
A mulher sob custódia 117
1\ _
filho do rei daquele país apaixona-se e rapta-a. Desejaria casar com l1111 11 r a si mesma. Arrisca-se, de facto, a comprometer ou mesmo a
ela, mas a família de Dina não pode esquecer a ofensa; os irmãos pl' rdcr aquela castidade que todos , pais, maridos e clérigos, consi- }
pegam em armas, saqueiam o país, matam todos os homens incluindo d1•1·11 m o bem supremo das mulheres. S_~g_L!DQO~_Roma a_rapa-
o rei e o seu incauto filho. 11p11 hitbituada a andar fora de casa e -a ter relações sociais deixa de· ~
Dina, filha de Jacob e de Lia, é uma personagem bíblica; a sua podl•r ·ontar com aquele pudor natural que protege a sua castidade
história, contada no capítulo 34 do G énesis, refere tempos e países dt1~ 110111 ns; perdida a timidez e o carácteT bravio, ela é como um -
longínquos; no entanto Dina torna-se para as mulheres do Ocidente 1k 1,s1•s «animais selvagens que, habituados à companhia do ho_1_nem,
medieval uma personagem concreta e quase quotidiana, uma jovem 1• 1111·1111111 domésticos e se deixam tocar e acariciarn .
30
companheira um pouco descuidada e desafortunada, que era me lhor <) 111tlqucr saída é portanto perigosa, quer se trate de andar na rua
não frequentar e sobretudo não imitar. Presença praticamente obri- 11 p1l~S\'Uf' ou lc ir a uma festa para dançar, a um espectáculo para se
gatória nos sermões e nos tratados destinados às mulheres, Dina d1 v1•11ir. 11 uma igreja para a sistir à missa ou a um sermão na praça
estava ali para recordar a todas quão perigoso era sair das casas e p11 1111111 vi1· il Palavra de Deus. É certo que nestes dois últimos casos
dos mosteiros. Nas praças e nas ruas, no percurso que conduz de casa 1111 1lsros du 1•agatio podem ser mitigados e compensados pelas van-
à igreja, a mulher pode _ser vista e, no dizer dos pregadores e dos t11p1 11s l'S piriluais que estas práticas religiosas comportam; mas o
(
A mulher sob custódia 119
11,p11dos o lhares do qua l a mu lher pode ser sujeito e objecto durante ajst~té..fü: , fa la de raparigas que no silêncio da noite penduram nas
1 11•1imónia re lig iosa manl ém-se um perigo que não se pode elimi- janelas os seus cintos, e neles os amantes atam cartas e pequenos
11111 , tunto mais arriscad quanto j unta o descaramento da luxúria à presentes, ou então fazem descer até ao chão um fio que permite aos
lt 111cridadc da proíanaçã : de modo que, além de serem inquietas e amantes tomarem as medidas para construírem escadas de corda
l1111Hidicas vagabundas, as mulheres se tomam aqui, como escreve graças às quais irão ter com elas aos seus quartos 36.
l 11•rnklo, verdadeiras e próprias «incendiárias dos lugares sagrados»31 .
1'11•0 ·upações ainda maiores provocam as mulheres que saem para
p111tic ipar naqueles momentos colectivos, festas, danças, reuniões, Para além de todo este espreitar mais ou menos insistente à Irrequietas e curiosas
1 p1• ·táculos, em que um grupo familiar ou toda uma comunidade janela, na raiz deste contínuo e suplicante desejo de sair e de vaguear
ociu l se mostra e se reconhece.- Aqui as mulheres exibem-se e no mundo há uma forma de vagabundagem intelectual e moral que
1•xi hcm a riqueza, o prestígio e a honra da família a que peitencem ; preocupa sobremaneira pregadores e moralistas. É uma espécie de
11111s hasta pouco - um olhar mais aceso, um movimento mais contínua inquietude, uma curiosidade nunca satisfeita, uma instabi-
111-scomposto - para q ue essa riqueza, esse prestíg io e essa honra lidade de humores e de afectos que força a mulher a procurar sempre
1·111 l'lll11 sérios perigos: a festa favorece os encontros e desencadeia alguma coisa de novo, a conhecer coisas diferentes, a mudar fre-
o d ·scjos, o movimento circular das danças toma belas e febris quentemente de opinião, a desejar aquilo que não tem, a deixar-se
1111•s1110 as mul he res pálidas e feias32 , os cantos lascivos seduzem os arrastar por impulsos e paixões. Nas páginas de Durando de Cham-·
101·11ç\ cs e inflamam os sentidos. E ntre todas as mulheres que de um pagne vem traçada uma linha, de continuidade entre a audaciosa
111odo incauto e perigoso vagueiam pelo mundo, as que frequentam c uriosidade de Eva, que quer conhecer a ciência do bem e do m al, a
l1•s111s e cspectáculos são, sem qualquer dúvida, as m ais imprudentes incauta vontade de Dina de ver coisas maravilhosas e escondidas, e
1• us ma is levianas. Na tentativa de manter a função de representação a estúpida preocupaçao de algu mas mulheres , nunca satisfeitas, que
que u mu lher te m nessas ocasiões sociais e de, ao mesmó tempo, desejam roupas cada vez mais belas e preciosas37. O único e lemento
1•vi1:1r os perigos que esta função comporta, leigos como Filipe de de tranquilizante estabilidade desta vertiginosa e desordenada insta-
Novnra e Francisco de Barberino preocupam-se em apontar às m ulhe- bilidade feminina consiste na sua paradoxal permanência: nada parece
11•s um comportamento público composto e púdico: não se divertirem mais imóvel e mais constante que a contínua irrequietude e incons-
d1•111usiudo, mostrarem-se desdenhosas, comerem pouco, dançarem tânc ia das mulheres. Uma longa tradição, frequentemente transfor-
1·11111 ·ompostura, moverem-se com contenção 33 . Os pregadores mada em lugar comum, supera incólume as mudanças da história e
1111111 · 111 uma posição mais rígida e consideram festas, danças e consigna à literatura didáctica e pastoral a imagem obsessivamente
1. p1•ç1úculos como os sucessos mais extre mos e mais perigosos do uniforme de uma mulher sempre inquieta e caprichosa, inconstante
v lHllhundcar das mul heres no mundo. A imagem m ais inquietante é «corno a cera derretida que está sempre pronta a mudar de forma
11 q11 • ·voca Tiago de Vitry, que compara os cantos e as danças nos segundo o selo que a imp1ime»38, «instável e móvel como a folha de
q1111is as mu lhe res participam com ritos diabólicos em que a cerimónia uma árvore agitada pelo vento»39.
11•1l iosu mimada: «A mu lher que dá início ao canto é a capelã do Pregadores e moralistas recebem, a este respeito, o conforto'
d 11lo, aqu •I 'S que a acompanham os seus sacerclotes» 34 .
Pr •quc ntcmcnte, para ir ao encontro do pecado não é necessário
«c ie ntífico» dos filósofos que, pelos meados do século XIII, encon-
t rnm nos textos de Aristóteles um tratamento sistemático e uma con-
K
11111l11r 111uito cam inho nem participar em reuniões especialmente l'irma9ão autorizada das temáti cas sempre difundidas na c ultura do \.
)
11 p1•i111s, busla ir à porta ou à janela. Pôr-se à porta da casa ou C) ·id ·nte medieval. Definidas como homens incom letos e im er-
d111111\111· s' , janela é já «sair»: um modo limitado mas sempre peri- k itos, dotadas de uma forma ; dequada àdebilidade e à i;:;:;- erfei ão YJ,
111 11 d1· pro ·ura r uma re lação com o mundo exterior e de se abando- d11 Slltl tra nsbordante Ill_atéiia pri..\ fadas d~ Umé!_racionaliclade cagaz
; / /}1 t
11111 1111 i111 pu lso de vaguear na sociedade dos homens. Na literatura 111• gov ·rnar plenamente as paixões, as mulheres cios comentários
)
Jl 1 111111 l 1• d id clica endereçada às mulheres a janela é um elemento 111 tol~li ·os s10 frágeis, plasmáveis, i!_Tacionais e passionais. O seu
1, 1111 11·111 do " nário cm que agem as mulheres demasiado curiosas, 1111 110, 1·111·uc1 rizado em comparação com o masculino por um excesso
1111 1111111 1• 111uli ·iosas: Francisco de Barberino zomba das mulheres d1 l11111ildt1d ', to rna-as capazes de receber mas não de conservar;
q111 1 Jll ·111 11 ·os · r ujanela, porque «quem à janela cose, muitas 1111111 d11 , 1nol ·se inconstantes, vagueiam continuamente em busca
35
1 1 111 1• 1111110 p •11s11ndo coser o vestido» ; Conrado de Megenberg ) d11 1111vld11dt·, i11cc1pazes como são de tere m opiniões reso lutas e está-
1 1 1 1/ I l 1111111 d1· 11 ,11 1n1111do de economia doméstica de modelo / v1•1 1111., v111ius s ituações. A instabil idade e a irrequietude das m ulhe-
.. . -----· \ _;
- - - - - - ---------
\ tom a-se a palavra de ordem atrás da qual se alinha lod11 11 111, 1 11111 1
pastoral e didáctica dirigida à mulhei/4-ustodia s ' 1Vl' 11111 ,1 11 til 1 11
: tudo aquilo que pode e deve ser feito para educar as 111111!11 11 1111
1 bons costumes e salvar as suas almas: reprimir, vigiai', 1•rn 1 11 11 111,
1 também proteger, preservar, cuidar. As mulheres i111111 d11d 1 1 1
1
amadas e protegidas como um bem inestimável, escondíd11., 11111111 11111
tesouro frágil e precioso, vigiadas como um perigo scmpn· 1111111L 1111
encerradas como um mal de outro modo não evi1ávt'I . I• 111 , 11
complexa de intervenções, que vão da repressão mni s 111t1d,1 ,, ·
cuidado mais amoroso, deve ser praticada desde a inJ'ân ·ln 1• 11111 11111,,
acompanhar a mulher, seja ela leiga ou religiosa, em 1od11., 1 1 1 ,
da sua vida/
Muitos dos textos da literatura pastoral e did~kticu <kNl11 111111
directamente às mulheres intimando-as como primeiras · 111·1 1• 1111 1
guardas de si mesmas. A mulher foi criada por Deu s, pari icip1111, 11111
a Virgem Maria do mistério da Encarnação, contribu iu pOI' 1111 111 d,
inúmeras mulheres santas e piedosas para o desenvol vin1l'11 l11 1 ,pi
ritual da Cristandade, possui uma alma que está apta a •1111 11 1111
relação com a divindade, pode salvar e ser salva, prati ar 11 vi i 111d1
fugir ao vício, tornar-se exemplo de perfeição mora l; prnl 111 1l11
•
capaz de se autocustodiar. Além do mais, a mulher apar '<.: • d111 1d11
com uma disposição natural para o temor e para a vergon l111, 111111
espécie de timidez e de retraimento congénito chamado pudo, q111 n
toma propensa ao pavor e à rudeza, e que a leva a retrair-se.: 1· 111111111
do mal e da torpeza. Que este pudor lhe tenha sido dado pw I h 11
q111 11111 tl11p1111illl'll masculino depois do pecado original para melhor a defender das loq w. 1 d 1
,1, 1q111 1111 ~ 1· 111111bé,n proporciona
1 11• 1,1 1 1111111r1111,1rução teórica carne, ou que seja consequência lógica da sua natural imp1·il11 111
11 1,I I q111 111~1 1111·11 11 necessidade de o que conta é que o pudor é um providencial inst.rumenlo d1 i,i1,11 ,11
11 1.. 11,11 11 111111111·1. l(sla é a tendência
111 , 111 1111 1111 p111~rno ou no de si própria nas mãos da mulher. Pregadores e morali sl11, 11111 1
,11 1111 11 1111 Nl' II IPll' 11111a figura dam insistentemente as mulheres a reforçarem a reserv11 q111 111
11,11111p11111111111111l11r as manifestações ·quentemente as paralisa, a serem tímidas e inseguras nns 11· 111 111
11h 111v11lv11111·11to da feminilidade.
1 1 1111 11h,1•1v11cl11 pL·lo rei David sociais, a retraírem- e amedrontadas diante de qualquer 1•111 111 ,1,
1111 1,o1l,1111 11 111111,g1 ·,são masculina. homens, a ruborizarem-se, a comportarem-se como aninrni 1 1 1
1111111111,1 d11\ /fr11n•.1· de Séguier,
11111 \ < 'l111111dly. Museu Condé. gens. A vergonha custodia a mulher porque a afasta da co11111111il111I,
social, a remete para o espaço fechado e protegido da casal' d11 11111
res, censuradas pelos pregadores, é para um filósofo aristotélico teiro, preserva-lhe a castidade, relega-a para uma louv(iVl' I 111111111
como Gil de Roma a consequência cientificamente irrefutável de lidade. No momento de máxima sociabilidade consen1ido 1 1111!11!11
um rigoroso método silogístico: «A alma segue a constituição do durante aquele rito matrimonial público a que a connin idr1d1• 1 1 lo
corpo, as mulheres têm um corpo mole e instável, as mulheres são e em que dá o seu assentimento à passagem de uma mull1t•1 ,h 11111
instáveis e volúveis na vontade e no desejo»4 º. grupo familiar para outro, a mul her ideal tratada por l 1rn11t·1 111 d,
B arberino, que em adolescente sempre se tinha mostn1do ll1 111d,1,
reservada em todas as suas aparições em público, reafirmo 111 li 111111
A custódia Inquietas no corpo e irrequietas na alma, as mulheres devem pois vez a sua escassa e insegura sociabilidade: envergonhad11, 11, 11 111d 1
ser guardadas. Obsessivamente repetida nos títu_!Qs, nos parágrafos e imóvel durante a cerimónia, não estende a mão mas ap •1111.~ 111•1111111
e nas conclusões dos sermões e dos tratados( a palavra custod,a que a tomem quase à força, e uma vez chegada à n va ·aso 1111, 1111
'-./
\___- -
1, A mulher sob custódia 123
-se assustada com todos, respondendo, se interrogada, de um modo O afastamento das mulheres da vida
pública livra o homem de possíveis
«breve, baixo e medroso», e revelando-se ao marido «selvagem e concorrentes. O seu encerramento
ignorante... em assuntos de amor»4 1• no lar soluciona o cumprimento
das tarefas domésticas. A casa,
Potencialmente capaz de se autocustodiar, a mulher não consegue, simbo lizada na il ustração por torres
porém, realizar plenamente essa custódia. A dignidade espiritual da e arcadas, é também o marco do
sua alma, criada por Deus e salva por Cristo, que a toma capaz de ócio; o triquetraque ou o xadrez
consideram-se distracções adequadas
virtudes, traz de facto os sinais do pecado para o qual tantas mulheres, para as damas. Miniatura do Livro
a começar por Eva, contribuíram de modo decisivo; a possibilidade dos Jogos de Afonso X o Sábio,
códice de Sevilha, 1282. Biblioteca
que lhe é concedida de receber a Palavra de Deus é de facto apenas do Mosteiro do Escorial, Madrid.
realizável através da mediação daquela instituição masculina, a
Igreja, que da Palavra de Deus é depositária. Não menos problemático
que esta colocação ambígua na ordem da salvação é para a mulher
o recurso àquela naturalidade que parece protegê-la do mal; aquela
natureza que, de facto, a torna tímida e reservada é a mesma que a
torna excessiva, irrequieta e vagabunda. Num processo ambíguo que
se transforma continuamente no seu contrário, a mulher, salva de
uma animalidade que a faz deter-se perante o mal, encontra-se logo
em seguida condenada por essa mesma animalidade que a abandona
às forças irracionais dos impulsos. e a cabeça de cada mulher é o homem e a cabeça de Cristo é Deus»
( 1 Cor., 11 , 3) - reconhecem a submissão da mulher ao homem
como um dos momentos da divisão hierárquica que regula as relações
11/t1111.1·.1·a 1/ A mulheres não podem portanto guardar-se sozinhas; a infirmitas entre Deus, Cristo e a humanidade, encontrando ainda a origem e o
da sua condição, que as toma débeis e privadas de toda a firmeza, rundamento divino daquela submissão na cena primária da criação ,
exige que ao lado do pudor intervenham outras defesas. Tiago de de Adão e Eva e no seu destino antes e depois da queda.~Do relato
Varazze, como já tinha feito Santo Agostinho novecentos anos bíblico, os comentadores retiram a convicção de que a mulher foi
antes, elenca-as com ordem e segurança: a submissão ao homem, o criada numa posição de subordinação relativamente ao homem. O
terror das leis, o temor a Deus42 • Os homens - pais, maridos, irmãos, corpo do homem, criado em primeiro lugar, aparece de facto supe-
pregadores, directores espirituais - partilham com Deus e com os rior ao corpo da mulher, este criado num segundo momento e ·a
sistemas jurídicos o difícil mas necessário encargo de «guardar» as partir do corpo do homem; dádiva de Deus, oferecida ao homem
mulheres; as quais, porém, afortunadamente, graças a uma sábia como auxílio, a mulher é um instrumento providencial nas mãos do
disposição da natureza sustentada por uma oportuna intervenção da homem, capaz de o aj udar nos objectivos da geração.
providência divina, se unem para sempre submetidas à autoridade Face a esta leitura, que traduz a diferença em inferioridade e
dos seus companheiros e portanto prontas, se não mesmo dispostas, superioridade, subordinação e supremacia, se ergue, com toda a sua
a supo1tar-lhes a custódiac.2s com_enta_d_ores de Aristóteles encontrai:!_l rorça revolucionária, o princípio evangélico da igualdade.de to~os
nos textos daÉtica,_e sºhretu.do da pp lítica, mulheres ~ pornatureza os seres humanos perante Deus. A ideia de que a mulher tenha sido
obedecem e se_submeteJIL.a.homens que por na!_ureza comandam e dotada por Deus de uma alma, igual à do homem por natureza e
tomam decisões, fortes como são pela superioridade dos~seus cor os dignidade, atravessa de fotmas diversas todo o pensamento medie-
e pela sua razão; ambos potencialmente virtuosos, homens e mulh~ vu l: se na tradição agostiniana, fundada sobre um dualismo nítido
praticam as mesmas virtudes de modo diverso segundo as funções ·ntrc alma e corpo, se fala de uma igualdade total entre a alma .da
que desempenham no organismo político: uns exercitam-nas em_ mu lher e a do homem, para um autor como Tomás de Aquino, que
\ fu nção de um poder eficaz e eficiente, as outras enúu_nção de uma _ u · •iLa a definição aiist2_té1Íca da alma como forma do c_OJ:PQ, trata-
\correcta e rápida execução das ordens secebidas.,. · ·S• un1cs de uma igualdade 12arci--ª1 válida na essência mas não na
1
Os comentadores do texto sagrado, que por vezes são os mesmos ·x istGncia43 ; mas em todos os casos, o apelo à igualdade das almas,
que lêem e comentam os textos aristotélicos, perante uma passagem se ja •lc feito de modo mais ou menos directo ou mais ou meQ.os
de São Paulo - «Deveis saber que a cabeça de cada homem é Cristo p,:obl •mál ico, mantém-se confinado ao plano espiritual e não põe
1 1 11111111 ,lt 11111l [lll11
() 1\1 10 t,. p1•11gu,u p11n1 u~ mulheres. mulheres, «que maquilham e enfeitam outras mulheres, ou então
11111 11 1•1t1s 11•,•11111l'lld111n se uctividades ensinam-nas a pintar-se, a encontrar ou a imitar todo o género de fri-
1•011 111 11111, 11•,•111. hurdur, coser.
An•11 11111 \l' ' " M lilS suídas de casa se o volidades, como acontece geralmente entre irmãs, parentes, amigas,
111ut1v11 1111 v1, it111 011 assistir pobres e vizinhas o u qualque r outro tipo de mulher»46 : o amor feminino pelos
1·1111•111111~. A, i11wgcns medievais sobre
t• fü• 11•11111 sílu 11u1nerosas. À direita, adornos introduz na sociedade uma imprevista e perversa solida-
A/11/11,•1 //m1rlo, miniatura de La vie riedade feminina que, superando os limites das casas e das famílias,
ri,•, /1•1111111'.I" dtN,res, de Antoine
1>11 lrn11 . l'II. 1505. Nantes, Museu
cria no interior da comunidade uma espécie de sociedade de mulheres,
IJ11h1fr, À esquerda, Assistência ao cimentada pela inveja, pelo desejo de emulação, pela cumplicidade
rlo,•1111•, porme nor do Retábulo de e pela reciprocidade.
S 11111 tolomeu e Santa Isabel, de
<,unrm1 Gener, pintor catalão Os danos provocados pelo excessivo cuidado exterior do corpo
(111. 1~ 16). Barcelona, Catedral. são pois lim itados por uma assídua obra de vigilância e de repressão.
A empresa_parece_di.fícil também porg1,1e, COll!O nota Gil de R_QDla,
a ,riiulher ar,osta natu@lmente na aparência porque se sa be deficitária
na substância; a sua trad icional falta de racionalidade e de firmeza,
- \/ leva-a a privilegiar os bens caducos e imperfeitos da ext,e rioridade,
incapaz como é de perseguir sozinha os bens perfeitos e duradouros
da virtudc47 • Só uma nítida inversão de percurso que anule, o u pelo
menos reduza, o c uidado e a exibição do corpo que o uso das roupas
e dos enfeites inevitavelmente compotta, pode travar um processo
ruinoso para a mulher e para a sociedade. Para a religiosa a solução
é simples e definitiva: a clausura atrás das paredes monásticas e a
imposi ção do hábito bloqueiam na origem q uaisquer cuidados e exi-
bições do aspecto exterior. Mas, em compensação, a monja pode
ungir-se com o ung uento da temperança, pintar-se com o cosmético
da boa fama, ornar-se com o colar da doutrina, os brincos da obe-
diência, o anel da fé, vestir-se com o linho da castidade e cingir-se
com o cinto da discipl ina. A lg uns sermões de Tiago de Vitry e de
Gilberto de Tournai48 colocam à disposição da mulher que renunci a
a vestir e a e nfeitar o seu corpo com as roupas e as jóias do século
um enorme repertó rio de adornos simbólicos que a tornam m ais be la
e mais enfeitada do q ue qualquer o utra mulher.
Para a mulher laica, o discurso é mais com plexo: ao lado das
tomadas de posição mais rígidas sobre a vaidade e sobre o perigo
dos enfeites femininos, há outras mais indirectas que lhe consentem
que não renuncie completamente ao cuidado e à exibição do corpo.
Francisco de Barberino recomenda às mu lheres, sobretudo se forem
de elevada condição, que compareçam em público com um vestuário
adequado à representação do poder e da riqueza da família a que
pertencem49 ' G il de Roma, e com ele outros autores que se inspiram
'\
nas doutrinas aristotélicas, não exclui, m antendo firme a condenação
nítida da maquilhagem que a mu e.Lse possa..yestir com rcqu~nte
para agradar ao maridQ e respajtar a sua condição soc_i,al 5º. Mas q ue
tudo seja feito com modera ão eJ e.m_e..scândalo. De o utro modo
aque le corpo tão amado e idolatrado pode corromper-se, não só
pcrclenclo a castidade que o torna precioso mas também compro-
Oito mulheres assistem Santa Ana
e Maria recém-nascida, numa
interessante composição em diagonal.
Ao mesmo tempo, forma-se um
semi-círculo entre a parteira, ao
centro, e a criada da direita, que abre
o baú. O artista, servindo-se de um
tema especificamente feminino, a
maternidade, oferece-nos todo um
mostruário de atitudes femininas e
de objectos. Pintura sobre madeira do
Mestre da Vida de Maria (1460-1490).
Munique, Pinacoteca Antiga.
A mulh er sob custódi
Uma outra série de n01mas dirigidas às mulheres diz respeito à Modestas e sóbrias
sua gestualidade. Também neste caso se trata de rep1imir um uso
imoderado e quase teatral da exteriorização do corpo, tarefa para a
qual é invocado um ti o especi I de tem eran ·a, a modéstia, expres-
samente proposta para pôr ordem e medida na gestualidade. Uma
série de normas, vindas sobretudo da tradição monástica, transferem
os gestos das mulheres de uma expressividade de acção e de movi-
mento para uma gestualidade da fixidez e da imobilidade: não rir
mas sorrir, sem mostrar os dentes, não arregalar os olhos mas
mantê-los baixos e semicerrados, chorar sem fazer ruído, não agitar
as mãos, não mover demasiado a cabeça, etc. As normas adensam-
-se e tornam-se mais rígidas quando a exteriorização do gesto se
A mulher sob custódia 131
insistência sobre os valores da sobriedade e do jejum torna-se mais 11 111 111 ,. rnns idcrado especialmente perigoso para as mulheres: a
aguda e mais radical, atingindo também, c m alguns casos, as mulheres 1111t1111il " inrnnstância e mobilidade do comportamento feminino,
casadas. As nonnas que estabelecem quando, quanto e como comer 1111 111 11111t111 pdos rit mos repetitivos de uma vida retirada e conduzida
e jej uar tornam-se cada vez mais pormenorizadas e, ligadas a uma 1111 11 ij'1!0 dn moderação, parece encontrar nos momentos de ócio
série de prescrições sobre os tempos e os modos da disciplina cor- , 111 1 i 111 prnpfcia para libe rtar um fluxo de pensamentos e de dese-
poral, assumem um valor ascético cada vez mais forte . Nos textos 1" 111 qllt' lllt' lll ·n tc turvos e ilícitos. Em face do especial deleite
precedentes o acento é, pelo contrário, posto na custódia da castidade: 1 11111 q111 ,, 11111111 'I' s parecem abandonar-se aos prazeres da inércia,
A mulher sob custód ia 133
1111111111<10 s' di sp níve is para qualquer coisa ou para qualquer um que cada mulher, viúva, esposa, virgem, serva, burguesa ou nobre
q111 pussu realiza r as estranhas fantasias em que gostam de se deixar d ·ve conhecer e de que deve dar prova. Através da caridade, a mulher
1 1111•111·, 11110 há outro remédio que não o trabalho: uma série de acções parece entrar finalmente em contacto com o mundo que se agita fora
111 1111 l' ltoncslas, fia r, tecer, coser, bordar, remendar, que mantenham dus casas e dos conventos; um mundo povoado por marginais, pobres,
111 11p11dus mo só as mãos da mulher mas também, coisa mais impor- doentes, aleijados, vagabundos, mendigos, mas mesmo assim um
t1111t l'. os seus pensamentos. A figur~ ideal de uma mul~L que, mu ndo que a retira, ainda que por pouco, da quietude doméstica e
l'IIIJll'l' UC I iva e laboriosa, Sabe superar as ÍnSÍdiasdÕ Ócio armando- que lhe impõe contactos sociais exteriores à família. Na realidade, a
! dl' ngu Iha, 1inha, fuso, lã e linho é _<::omum flonaaJiteratura.pas- caridade das mulheres, potencial ponto de fuga à vigilância atenta a
1111 rd l' d icláctica, dos sermões dos pregadores ao~ tratadoS-dg Moral que são submetidas, apresenta-se nas páginas dos pregadores e dos
cl1 111spiração aristotélica e às obras pedagógicas dos leigos. Neste moralistas como um posterior instrumento de custódia: a caridade
l1111vor ·onlínuo da laboriosidade das mulheres, e da sua habilidade cumpre, de facto, uma obra de controlo sobre a impetuosa passio-
111111 111111, mo fa ltam, sobretudo por parte dos leigos, apreciações nal idade feminina, que, em vez de se dispersar em afectos ilícitos e
ohn· o va lo r económico do trabalho feminino. Segundo Filipe de desejos vãos, é dirigida para uma finalidade justa. Por outro lado, a
N11v11 rn us mulheres pobres devem aprender desde pequenas a coser própria caridade é objecto de controlo, submetida como é a uma
1• 1 1'1111· para saber de um ofício55 , e segundo Francisco de Barberino série de regras e de cautelas que presidem à sua actuação: antes que
ll ll 11s filh as cios cavaleiros, dos juízes e dos médicos fariam bem em a mulher dê livre desafogo à sua paixão caritativa para com os
11 pn·1HI ·r a coser e a fiar para estarem preparadas para as mudanças pobres e os doentes deve ser cuidadosamente verificado se se trata
cln <kstino; mas entretanto, enquanto a condição desafogada em que de verdadeiros pobres e doentes e não de simuladores, e evitar q ue
1• 1•11contram não as obriga a trabalhar para viver, o lavor incessante um eventual excesso de esmola possa pôr em perigo o bem-estar da
cl11 111 ulha e do fuso ajudará essas mulheres a superar os momentos família; com frequência, estas avaliações sobre a licitude e a opor-
cl1• 111 ·lnnco l ia e a não se manterem ociosas 56 . Também para Fran- lunidade da esmola são confiadas ao tranquilizante bom senso dos
1 lsrn d' Barberino, como para a maioria dos pregadores e moralistas, maridos e dos directores espüituais. Em suma, com a caridade a
11 vn lor produtivo e económico do trabalho feminino mantém-se em
mulher tem certamente um contacto com a sociedade, mas é um
1• 1111do plano; o q ue conta é que as mulheres nunca sejam presas contacto apenas parcial, cauteloso, frequentemente indirecto, de
clns desejos e das fantasias que derivam do ócio e que podem cor- qua lquer modo vigiado. ·
1111t tJ)l'r n eslabilidade dos seus pensamentos e a integridade dos seus
1n1 pos. O trabalho das mulheres é, em suma e sobretudo, uma vez
11111i~, um modo de as dominar. Embora enquadradas , nos gestos, nas roupas, nos alimentos, nas Taciturnas
All 111 cio trabalho que as mantém ocupadas em casa, há uma actividades manuais e nas obras de misericórdia, as mulheres falam,
1111111111 ·1i viclaclc à q ua l as mulheres, segundo o parecer dos moralis- ' segundo os pregadores e moralistas falam demasiado e mal: mentem
111 1• dos pregadores, se podem dedicar com empenho e assiduidade: com habilidade, trocam maledicências, discutem continuamente,
11 1111ldud '. Não há texto da literatura pastoral e didáctica que não suo insistentes e lamurientas, nunca param de tagarelar. Todos os
111•111 1tl 11(1 ' ~s mulheres que sej am pias e misericordiosas. De resto, luga res comuns de uma secular literatura m isógina estão deposita-
1 111 11·w ln111 -sc es pec ialmente propensas a apiedarem-se dos sofre- dos nos se1mões e nos tratados morais dirigidos às mulheres, dando
d111 l 1• 11 auxiliar os necessitados: Gil de Roma sublinha como a d ·las a imagem fastidiosa de uma mulher faladora e petulante que
1111 1111 i11do l ·nc ia que as toma inconstantes e iITacionais as torna 11 s11 ele um modo perverso aquela extraordinária faculdade humana
1 11111>1 111 in ·upazes de suportar a vista dos sofrimentos alheios e as 1 q11 •é a pa lavra. Na defesa apaixonada da palavra femin ina, na Cité
1 r/1 •,1· nomes, Cristina de Pisano terá mesmo de contestar certos pre-
111111,1 d1· l•josas de os aliviar no mesmo instante57. A fomrn concreta
11111111 11 111ulh 'res podem realizar esta sua tendência natural para a ndor 'S, eslúpidos e blasfemos, para os quais Cristo teria aparecido,
1111 11il c11 d lt1 u esmo la, recomendada como dever específico de tkpo is tia ressurreição, a Madalena porque sabia muito bem que
11 1111111ti ht r, s ·j u po bre ou rica. A rainha ideal, tratada por Durando 1·Nt11, t·nq uanlo mulher, iria imediatamente propagar ao mundo a boa
d, e l111 111p111111t·, qu estende a todos os pobres e necessitados a sua 1111v11 111 • Os lexlos de inspiração aristoJélica..2.f5_ecem..twib~ n g!illll!Q___
1•li d ,1cl1 , q111• Nl' o ·upa dos leprosos, que visita os conventos, que faz r , 11 1·~11• ponl o, novas e desconf_pr.tantes confirmações: Gil de R oma
lt, 11 11 1111 l'Slllo la aos mais miseráveis e recônditos casebres do 11t'1 111 qu ' a reprovável, mas infeliz~nente nat~ l, te ~at
1 11111 N, 1 111H•1111s o 'xemplo mais perfeito daquela caridade feminina il tll lltt'l"S p:i ra fal arem de um modo indevido e incauto s e j ~da
1li 11111111 1 "" 11111110!11
·\~ 111111111 li 111111 1111111111 IIIIN l11h11nt1iS, proibições. O enfado e o desgr~ ignad c m qu · os 11• 111 d 1
11 li jlll Vl 11111111 11 11 l'IINI IIIII II , rlflO
p11 .,,1111 11p1 11111 111!1111• ,. 11 plc11i1udc literatura pastoral e didáctica falam das mulheres chi Ir •111111 1 11 • 1
1111, h, 111111 11111111 1·1 l1el11s 110 homem. relas, multiplicando invectivas e anedotas acerca dos p 't':idm 1, 1111
N,11111 1111\ 111 vr11111N11111 f111111acl:u1 ico ninos da língua, tomam-se viva e preocupada atenção qu1111d111
, 111111 ,1111111111N. <) hrn11t 111 é tJUe eslá
111111 11111111111 11 l11no1111do com a textos colocam o problema de estabelecer tempos, espai;rn, t· 11111d11
1I 111 111 d1'~1•11volv1d11: a~mulheres, da palavra feminina: a custódia da palavra das mulhe r s l. d, 1 11 111
11l11cl111111 ,•, 11111p111dorn, representam
11!111111! N l11l1•i11111•h e dcpcndenles da também inevitavelmente custódia dos poderes e dos pri vi ll p i. 1 .i 1
111 11vlclml1• 11111,nili11a. Miniatura do palavra dos homens.
141 11111 XV d1· 11111 manuscrilo de Acerca da palavra e dos silêncios femininos dom ina él 111111u 1il111h
Alh1w11sl., (hfr11lo X). Paris, Biblioteca
N11dwu1I. de S. Paulo, que proíbe à mulher, colocada numa condiçt n d, 1il 1
missão perante o homem, de ensinar (1 Timóteo, II, 12) e dt· t 11111 11 ,1
assembleias, consentindo-lhe, caso deseje saber qualqu ,,. r,11 11, q11,
inteJTogue o marido em casa(/ Coríntios, XIV, 34-35). l~s t I il 11 1
passagens das Escrituras, comentadas durante século por 11111 111 111 11
e prestigiosos exegetas, justificam o primeiro e constitut ivo 111 111 d 1
c ustódia da palavra femi nina proposto por pregadores • 111011111 11
a palavra das mulheres deve ser excluída de qualque r d11111 11 111
. piíOÍica e colocada no privado. A dimensão pública nega 111 11 p1il 1 1 1
feminina não é tanto um problema de espaços como um pn,1 111 11111,h
funções : cada vez que a palavra abandona o plano da crn111 11111 111 1 11
insiste especialment u literatura pastoral do século XV, é a oração .m control do era uma mulher ue era possível guiar para a sal-
que deve encher a boca e o coração da mulheres. Só nos textos mai s vação etema_§_que ao mesmo t~mQQ_garªntianeste mundo a honra e
tardios aparece uma prec isa e pormenorizada normativa acerca do a continuidade da família; uma mulher que os pregadores e directores
número e tipo de orações a di zer em tempos e espaços precisos, mas espirituais aprovavam e os maridos e os pais apreciavam. A clérigos _
a insistência na importância da oração é um tema igualmente recor- e leio-os arecia..., além_disso, qJ1e_!_Q9as as mulheres QQ_deriam pra.ti:-
rente na literatura dos séculos anteriores, onde se apontam às mulhe- carãs virtudes da__nrnlher sob custódia._Algum_a_Ldeviam ser mais
res de qualquer idade e condição as vantagens desta prática devocio- virtuosas que outras ou sê-lo de um modo di\!erso das outras: havia
nal. A mulher que reza é uma mulher que se afasta das tentações do quem devesse ren unciar completamente aos adornos exteriores e
mundo, que dá preferência ao sossego e ao recolhimento, que sabe quem pudesse deles fazer um uso moderado; havia as que deviam
custodiar-se a si mesma e à sua virtude numa relação privilegiada ficar para sempre reclusas entre as paredes de um convento e as que
com Deus. Recitadas cm voz alta ou repetidas com submissão, as podiam, ainda que com cautela, sair de casa algumas vezes; havia
palavras das orações invadem o espaço de silêncio libertado pela as que viviam a sua castidade longe de qualquer contacto carnal e
tacitumitas e seguem as mulheres para toda a parte, nas igrejas, nas as que a viviam no interior do matrimónio. O modelo, em suma,
casas e nos conventos, contribuindo a todo o momento, no decurso embora encontrando na figura da monja a sua inspiração e a sua rea-
de uma cerimónia relig iosa, durante os trabalhos domésticos, nos lização mais acabada, mostrava, no entanto, uma grande capacidade
momentos de pausa e de ócio, para guardar as suas virtudes. de adaptação junto de um público feminino compósito e multiforme.
A capacidade do modelo da mulher sob custódia de absorver no seu
interior uma série de variantes sem por isso mudar de natureza foi,
Castidade, humildade, modéstia, sobriedade, silêncio, trabalho, sem qualquer dúvida, um dos motivos principais da sua durabilidade.
misericórdia, c ustódia: as mulheres ouviram repetir estas palavras Mas, como se verá nas páginas seguintes, havia um tipo de mulher,
durante séculos. Ouviram-nas ditas pelos pregadore · nas igrejas, a esposa e a mãe de família, para a qual o modelo tinha tido de criar
ouviram-nas ditas pelos familiares nas suas casas, reencontraram- variantes mais decididas e j unto da qual corria os maiores perigos,
-nas nos livros para elas escritos. No decurso do tempo, as mulheres arriscando-se por vezes a ser ineficaz ou impraticável. Nem sempre
que ouviam estas palavras mudavam; eram mulheres diversas e fre- era fácil propor a esta mu lher, que devia ocupar-se da casa e da
quentemente di tantes entre si: rainhas, religiosas, burguesas ricas, família, agradar ao marido, gerar e educar filhos , a imagem pacificada
camponesas pobres, servas, mães de família, rapariguinhas. Mudavam de uma mulher afastada das perturbações da carne, distante das preo-
os homens que diziam essas palavras: pregadores, filósofos, teólogos, cupações mundanas, tranquilamente entregue à oração e às obras de
runcionários da corte, leigos cultos; uns atrás dos outros tomavam a caridade. Perante esta dificuldade, pregadores e moralistas foram
palavra e falavam das mulheres e às mulheres. Mudavam também os forçados a levar a cabo esforços teóricos e retóricos para incluir a
modos de falar às mulheres: por vezes recorria-se à palavra falada, mulher casada no número das mulheres sob custódia, experimen-
outras vezes à palavra escrita; por vezes escolhia-se um tom impe- tando os limites extremos de adaptabilidade do modelo que tinham
rai ivo e genericamente afi nnativo, outras vezes recorria-se a conse- e laborado, procurando de todos os modos, no interior desse modelo,
lhos persuasivos e mais pessoais. Mas as palav.l]ls contifl!l.<!YfilIL,;'LSer o modo de fazer da mulher uma «boa mulher».
s ubstancialmente as mesmas. A duração dessas palavr~s no léúco
da lite ratura pastoral e didáctica dirigida às mulheres dos finais-do- [Traduzido do italiano por Egito Gonçalves]
s ·culo XII ao final do século XV testemunha a duração subs!ancial
do modelo feminino que elas veiculavam e que através delas des-
ncvcmos nas páginas anterior~~.._Q_1n_oJl_§IQ, de resto, apres~ntava-s~
Notas
ço11sist nte desde o início. Coe.rente,_fundamentado na autoridade da 1. Alão de Lillc, Summa de arte praedicatoria, in PL 2 10, 111-95; T iago de Vitry,
1rutlição, justificado por exegeses das ~ituras, confirmado-~o . SN111011es Vulgares, Ms. Paris B. N. Lat. 17509; Gilbetto de Touniai, Sermones ad omnes
status, por Johannem de Vingle, Lugduni, 1511.
providencial aparecimento das teorias aristotélicas; capaz de CQ)Tes-_ 2. Vicente de Beauvais, De erudilionefilion1m nobilium, ed. A. Steiner, Cambridge
po11dl·r i\s exigências não só dos que as elaboraram inicialmente, os (Mass.), 1938; Guilherme Peraldo, De erudirione principum, in S. Thomae Aquinatis,
, h•1iµos , mas também dos leigos que bem depres a delas se apo1,sa- Of!Na Omnia, XVI, Parmae, 1865, pp. 390-476.
( 1 1111 11111a mulher sob custódia nas casas e nos conventos, cujos_
3. João de Gales, Communiloquium, por Georgium de Arrivabenis Mantuanum,
Venci iis, 1496, ff. lr.- l 66v.; Tiago de Varazze, Sermones de tempore, por Simonem de
1111,v l1m•,11os, gestos, palav ras, hábitos, fecundidade e religiosidad~ _ l .u ·rc, Vcne .. iis, 1497; Chronica civitatis lanuensis, ed. G. Monleone, Roma, 1941.
A boa esposa
Silvana Vecchio
--- -
!)Ol'lnc no r de A apresenração da a Nicómaco fornece os pressupostos para uma definição da rela .!Q..
r•s110.w , cu. 1320. San Gimjg nano,
Palác ki omuna l, Câmara dei
CQllllJ.gaLque _super.e a p ra,rarrrra-J.idade-para se cõlõcãrn11 s ·era d
Poclcslá. _grna ética específica; a Política insere a f a ~ no · · · da comu-
1,1t1 A 11 110 1111llH dl' contro lo
O contrato matrimonial afecta outras _nidade do Estado e analisa as diversas relações que, no seu seio, se
pessoas para alé m dos esposos: _organi_z am ~fll_1or_no da fig.ura_[o c ere da familia,_en uanto os
servos e trabalhadores da «casa»
mat rimonia l, parentes, amigos e , _ pseu.ci.o=a.1:istQtéliGosDa Economia tradun dos no fim do século, põem
sobretudo, os sogros. Pomienor de mais distintamg.nte em foco o-espaço-domés tieo cerno espaço_fem.h
urna miniatura com o cortejo nupcia l
de Segismundo l. Crónica de Ulrico
nino e fixam as competências d-as- mulheres no-interio1~da- easa-:->
de Richental, 1429. Praga, Biblioteca _Comentacl.as rep.etidamgflte-no_de.c.urs.o dos séculos XIII e XIV, as
Nacional. obras aristotélicas constit~em o pres_§_!.)posto inevitável da aten ão
_ao espaço doméstico e de tQÇ!a a tentativa de para ele de linear urna
possível mqralidade:__O s Da Econom-;:;:em especial, lançam as bases
de um a doutrina da administração da casa que percorre frequente-
mente as etapas do modelo b íblico; por muitas décadas, marido,
filhos, servos, casa, constituíram os capítulos ideais de cada pedagogia
da mulher casada e os topai em tomo dos qu ais se prganizou toda a
tentativa de fa lar às mu lheres ou das mulheres. Nos,fi nais da Idade
Média a figura de Sara encarna ainda o ideal fem inino nas páginas
de Francisco Ximenes, de Dinis o Cartuxo, de Querubim de Espoleto6,
testemunhando a vitalidade e a persistê ncia de uma tradição à qual
nem sequer a literatura humanística saberá contrapor um outro modelo
igualmente forte.
d11 1 111111 t' produ z também no interior do casal um acréscimo de 111csmo te mpo a mais vistosa presunção sobre a qual se pode fun.:.
1111111111111d11dl' ' de amor 11 • No cruzamento deste equilíbrio delicado, dum ' ntar cada apelo à paridade e reciprocidade do casal. Gilberto é
"\111'11111 d11111 11lhcr aparece como elemento essencial de uma obra de 11q 11 ' I ' que pinta sempre um quadro idílico da v.ida comum, no qual
d11pl11 11111 if i\-11<,1 o: responsável única de uma unanimidade conjugal 11 rl·ciprocidade do amor garante serenidade, honestidade e paz no
q111 11111111 v1•1'l'111os, passa sobretudo pela sua subordinação ao esposo, 1111 · s' tradu z em mútua fide lidade e amparo recíproco com a fin a-
, 111 11 111 1/ 11111111 ·nte a tarefa de manter as boas relações com os lid11dt• dn salvação. Peralclo contabiliza umas dezasseis razões que
11111,1 1 111111 os parentes do marido. Branda por definição, à mulher j11 s1if'it·11111 o amor conjugal 14, utilizando, ao lado da habitual argu-
ili td11 d11klf'il'll r os ânimos, suavizar os contrastes, apazig uar os 111,·111:1 c;: o bíbli ca, imagens fortemente evocativas, como aquela que
1111111111 , q111•1· 110 interi or quer no exterior do casal, desenvolvendo l'o111p11rn o matrimónio a um enxerto que, feito numa única árvore,
111111 11111 111 p11l'il"icadora que aparece mais ligada à sua docilidade e l'l-t·1111d11 o ramo enxertado e a planta estéril na qual fo i inserido, ou
11111 AH 11 mn1 l111 d!' \'1 1111 rolo
aq ue la do anel nupcial que, enfiado no dedo que a veia do coração como aquele que dá para aquele que recebe, como o b •11 ft<il111 p111 1
atravessa, simbo liza m elhor do que qualquer outro ritual o amor que o beneficiado; o m arido dá realmente à mulher a prole, ' e l11 11 11 111
deve ligar os esposos. -a de le» 18.
Presa nas m alhas de um d iscurso que é s imultaneame nte <ll·Nt , 111 1,,
e norm ativo, a figura feminina move-se no cruzam ento d ' 111111111 111
l glful<lade o u suhmissão? Tanta insistência sobre o amor c onjugal, à qual não ficam sequer tradição insolúvel : a obrigação de a mar o marido que Ih ' L' i11q 11 1 11
alheios os teólogos, não faz no entanto d esaparecer a impressão de com o essencia l à sua fun ção de esposa revela-se ao mcs1110 11 1111 11 r
um nítido d esequilíb1io que res ulta da le itura exaustiva da literatura tarefa inexaurível e m arca de inferioridade, A mulhe r, drn11 1111d 1
que trata esse tema. Tiago de Varazze é talvez aquele que m e lho r pelos sentidos e incapaz d e atingir o autocontrolo afecti vo do 1111111 111
do que qualquer outro con seguiu definir os tennos precisos deste é condenada a am ar de um modo total m as en-ado, num cs l'ot \'11 11111
desequ ilíbrio: não existe dúvida alg uma de que marido e mulher se tínuo de adequação àq ue le inatingível amor, limitado mas ,w,li 11 11
devem amar recíproca e i ntensamente, a uxiliando-se um ao outro que o marido lhe oferece. E não só: obj ecto te ndenc ialmc 11l t· p 1 11 11
para o bterem a salvação; no e ntanto, ao amor perfeito d a mulher o deste amor, a mulher é dele, no entanto, de alg um modo r ·sp<111 1\, 1
mar ido deve opor um amor moderado (discretus). A mulher ama deve fazer-se am ar para evitar q ue o m arido seja presa duq 1wl11 111
perfeitamente quando, deslumbrada por esse sentimento, perde a cívia para o do mínio da qual fo i instituído o matrimó n io, 11 111 111 11
dime nsão da verdade e fica ceita de que «nenhum é mais sapiente, de ve fazer- se amar em demasia para não provocar essa 111t•s11 111 l,1
nenhum é m ais forte, nenhum é mai s belo que o seu esposo» e sente cívia; deve, em suma, am ar sem medida, mas conseg uir i111p111 11 1
prazer em tudo o que o circunda, acha bom e justo tudo aquilo que amor do cônjuge aquela m oderação que ela m esm a não podl• 1 11 111
ele faz ou diz 15. O deslum brame nto e falta de me dida que é proposto deve exer citar sobre a própri a afectividade,
à mulher é exactamente o que está proibido ao marido: o seu amor Perguntar-se neste ponto em que coisa poss a consis lir ll 11111 111
nunca deve ser demas iado ardente, deve ser com e dido e te mperado. da m ulher que r di zer, antes de mais nada, tornar con lw t'1 1111 1111 1
Retomando uma passagem de São Je rónimo, que compara o amor da impossibilidade em que a mulher se encontra de ge rir 1·111 ·1111111 1
excessivo pela mulher ao adultério, Tiago insere-se num vasto coro m e nte a p rópria afectividade e da necessidade de enco nl r11 1 1 1llt
que inclui os personagens mais diferenciados, de Peraldo a G il de ri os externos que permi tam encher de conteúdo o a mo ,· 1111111 1111
~ ) . ! ? ~ e Filipe de Novara a Vicente de ~e~u~ais,_~ o n c o r ~ 1
confronto dos cônjuges. Critérios e conteúdos que se r so lw 111 1111
própria von tade do m arido, perante a qual não é ped ido 1 1111111 11,
. . . _ { ) afmnar_gue o homemÁe-ve amar com-parc1moma, não com-afecto,.
O prazer fem,n,no e a d1versao que - · ·d 1 d ' .· . · ·
" mais do que uma muda, reverente e total obediência. Amar o 111 11 1tl11
esta miniatura reflecte não têm lugar sem nunca pe1 er o contra o a propna 1ac10nahdade e- sem- se-
nos textos doutrinais, que insistem de ixar arrastar pelo sentirµe11lu,_i:iúme, passionalidade e, no limite, traduz-se, na exegese de Pe raJdo ou de Vicente de B e,H1 v1 11 , 1111
cm colocar a impon_ân.cia do afecto loucura, são as con sequências do amor excessivo pela mulher emble- obrigação de uma submissão voluntária; a p aridade p o Lc n ·i1il 11 1t1
c do serviço entre eon1uges acima da . ' vel na página bíblica é exorcizada com referência à cu lpu 01I 11 1111
rl!lação sexual. Miniatura do Oftcium ma t1cam ente representado pelo amor de Herodes, qu e acabou por
!Jeorae Mariae Virginis , século xv. matar a mulher Mariana por a amar d emas iado ou pe lo de Adão q ue transformou a igualdade em s uje ição quase se rv il. A l' 111 1.1
Madrid, Biblioteca Nacional. que, para n -ao en' tnstecer
· E
, '
va , desobe deceu ao Senhor mergulhando' ção à obediência cam~ ia ern.. tod a a no@ati.Yc' para as 111u ll 11•11
toda a humanidade no p ecado • 16 _- encontra-se nos c onti!xto_s_ mais diferen ci ados.: o..s...textos d e i11 p i, 1
_A te ntativa de racionalizar o deseguilít,1io afecti vo do casal_e.ncon- ção aristoté lica não deixam de precisar que a una ni midad ' l1 11111 11
tra um arg umento válido iia dqutrina aristotélica do matJimg_ni~oJru!> cônjuges se não deve ente nder CO_mo o resuJtado ele Utnfl Vtll ll ilil1
1
_-relação de amizade entre seres d~si_g!1aJ~ A am izade c~njugal, ns,tai~" t_,.. comu m, mas sim de um r egime bem ordenado, no qua l uo 1•o v1 11111
_ Albe1to Magno e Torpás de Aquin_o, funda-se naj ust_i_ç a, não godenqo,/. _ <t, do marido coJTesporide a obediência da mulher, e a pró prili ( '11 111111
i portanto deixar de se adequ ar aos vári2§ graus de virtude que existefu"'°' de Pisano cons idera compone nte não única, mas sem d1ívitl11 11111
. . nos cônjuges; se o marido é amado com mais intens idade é porque : - damentaJ, do amor ao maridQ-ª.J1u.milda de e_ a o bed ie nci u 111 M 11 11
dotado de maior racionalidade, pode s-er 1nais virtuoso, enquanto a maior insistência na temática da obediência encont ra-s ', l' 111111 1•111
- mulher, natur a lmen te inferi o r, recebe um a menor quantidade d ( acaso, no tratado escrito por um rnm·ido para s ua mulh •1·, 1, l'1 111111111l11
amizade, mas adequada à su a natureza 17• João B urid an chegará a M énagier de Paris20 : nestas páginas , a identificação amor o lwd11111 111
afirmar q ue de facto «o m arido am a mais do que a mulher, e ama conduz a uma submissão ab soluta da mulher ao qu ' I' •r do 11 1 11 til, ,
com um amor mais nobre, u m a vez que o maiido está para a mulhe r até uma total desresponsabilizaçã o, inclus ive mo ral ; 11 10 11 11 11111 11
como o superior para o inferior, como o perfeito para o impe1feito, mentação da obediênc ia conj ugal faz-se ava liza r ·rn11 11111 11111
A boa esposa 153
11111 1lcll io d ' exemplos que vão do texto das Escri turas ao mundo simo sobre a reciprocidade da ob1igação, mas n ão deix a de lembrar
1111111.111• rn lminam com a triste h istóri a de Griselda, retomada do q ue muitos maridos pensam injustamente estarem a ela menos vin-
11, ,, ,11111•1·1111 de Bocácio. c ulados que as esposas22 ; Tiago aponta a fide lidade como obriga-
ção recíproca dos esposos, mas reconhece que a mulher «g uard a a
fidelidade melhor que o marido», controlada como está por quatro
N1•s ll' con tex to de subordin ação a bsoluta da esposa ao m arido, o custódias, das quais ó a primeira vincula igual mente o home m : «O
111111110 balua rt e daquela p ari dade e reciprocidade que teólogos e mo- temor de D eus, o controlo do marido, a vergonha perante os outros,
1,tlt t ,~ t i11ha111 com tanta ênfase sublinhado continua a ser a actividade o medo das leis»23. A sensação de qu e a fidelidade, imposta a ambos _
1 1111 1, 11ct ividad e à qual, no entanto, nunca é reconhecido o carácter os cônjuges, é de facto ;nais vinculativa para a mulher torna-se _
d, l1111d11 111cnt o do vínc ulo matrimonial. Justificado pela necessidade evidente nos textos de inspiração aristotélica e na literatura teológico-
d, 1•vi 111r a l'ornicação, o matrimónio deve garantir a ambos os côn- -moral que debate o tema do adultério. Gil de R oma coloca o pro- _
111 1.11•N II poss ibilidade de exercitar legitimamente a sexualidade: o blema em termos mais gerais. Que a m ulher deve estar ligada a um
d, v1'I' co11j ugal permanece, portanto, quer para o marido quer para a só homem é dedutível não só de uma praxe universal e consolidada,
1 p11~11, o tínico objecto de troca recíproca e paritária, o único contexto mas também de urn a série de motivações de carácter racional: a _
1111 q1111I rnda um cios dois tem igual faculdade de pedir (para evitar re lação com m ais homen, subve1te a natural subordinação da m ul her
11 111•r11< lo) · ig ual dire ito de recusar (quando não estejam garantidas ao marido e impede a manutenção da paz familiar, m as sobretudo
11 1·011cli (,:o 'S de legitimidade). A enonne discussão sobre os deveres
11111111gui s que se desenvolve a nível teológico a partir do século XIII,
1 q1w Sl' r ·f'l cctc nos tex tos de carácter pastoral sobretudo do século
V, tl'lll a !'unção de definir a natureza e os limites da sex ualidade,
11 t11 ~(, •1n rc laçíío aos tradicionais interditos de lugar e de tempo que
111 110s p ·nitcncia is limitavam fortemente a actividade sex ual , mas
11h11•1t1do c m relação à doutrina do matrimónio, que consente o uso
d11 ~,·xunlidade apenas como instrnmento para gerar uma p role que
1 1111•1 h1 rnda re lig iosamente ou para evitar a forni cação. O controlo
il11 ~1·x 1111lidade diri ge-se a uma virtude específica: a castidade con-
lllJ'lil : p11ra quem, como os esposos, não pode renunciar totalm ente
1111'\l'l'l' l' io da actividade sexual , castidade significa manter aquela
11111v icludl' dentro dos limites fi xados pela doutrina matrimonial. Por
1111 ,11 do s11 ·ra mcnto, afirma Tiago, repete-se continuamente o milagre
d, < '1 11111 , qu · 1rans forma a vi l água do pecado no vinho precioso da
\ 111111 11·, 11 ponto de que «aquela mesma virtude, que antes do matri-
111111110 si· dwmava virg indade, não se p erde, antes se conserva e nos
1111q11prs to111u o no me ele castidade matrimoni al »21 . A reciprocidade
111 11 l1•vl·1· t'tH1juga l impli ca, pelo menos em princípio, a concórdia e1i.1 A fidelidade sexual femi nina é a
111111 " " dt'l' iso •s q ue di zem respeito à vida sexual; nada, nem sequer ún ica garantia da paternidade e, em
consequência, da legitimidade da
11 11ltj1•1•1i vo dl' 11111a m aior santidade, pode jus ti ficar a prevaricação
prole. No entanto, a li1eratura ele corte
Jl11 d11 1•110 do outro cônju ge ao uso da sexualidade. testemunha costumes mais livres; à
mulher, se o marido falta aos seus
\ M11 ~n lll't•tud o a rec íproca posse do corpo implica a exclusivi- deveres conjugais ou se se ausen ta
d 1il1 d.1 11•l11,·1h> ' po rt anto a mútua e absoluta fidelidade. R equisito durante muito 1e111po, é-lhe permitido
111d1 p1•11 11v1• l tio matrimónio, do qu al constitui com a graça sacra- relacionar-se com ou1ros homens.
A clama da ilustração recebe atenções
'"' 111 111 1 11 d11di va da pro le um dos principais ben s, a fidelidade é ele do is cavaleiros. Em primeiro
q 11, 1111 111111 1·111110 obri gação recíproca dos cônjuges pelo coro unâ- plano, logicamente, «o seu senhor» .
Miniatura ele um manuscrito de
1111111 dtt l111•rn111rn t •o l6g ica e pastoral. No entanto, os sermões j á Lance/ar du Lac, século XV .
, 111 il ,1,11 ,w..,t~· L'Ol'O alg umas dissonâncias: Gilberto insiste muitís- Turim, B iblioleca Nacional.
A boa esposa 155
1111~ 1!1111 qu • rege Lodo o istema da ética fami liar; colocado nestei
li 11111>', lodo o discurso moral acerca do casal é forçado a modelar-
, '!11l1c II natural diferença de papéis que marido e esposa desemp~-
111111111 1111 reprod ução. Pudicícia, castidade e fidelidade da esposa têm
p11111 <li l, u fun ção de oferecer ao marido aquela garantia de pater-_
111d11dc IL• 1 ítima que a natureza não lhe pode dar, enquanto todas as_
111111 11s vi rtudes femininas se relacionam, de algum modo, com esta
1 11•t•11t·i11 de o bter uma garantia: abstinência e sobriedade rnodcra.in:-
,1 111111ml lascív ia fem inina, silêncio e estabilidade tornam a mulhei:
111111 <kvolada ao marido e tranquilizam-no acerca do seu comport-ª:,..
11u 1110. ( ' 0111 Gi l, todos os comentadores de Aristóteles, de S. Tomás
11 ll ll'rlo d • Saxe, de Oresmo a B_uridan~ ·~ hecemna/fid elidade
li 11iJ11i1111 H Única ganrntia de legitimidade da prole, e no controlo que
11 111111 ido cxerce sobre o corpo da espo a o único instrumento caaz
d1 u ,\oss ·gur acerca da sua patemidad_e 21 A fidelidade acaba assim
p111 Nl'r 11111a virtude particularmente feminina, ou, pelo roeno_s,-11
l11k l1d11d • masculina ass ume um carácter substancialmente diversQ
,1, ll•111i11i11a, na medida em que não é mais do que urna contrapartida,.
l11111l11111l'lllada na justiça, do comportamento exual da esposa. À_
11cll'i id11dl' quase obrigatória e «fisiológica» da mulher, com a fi na-
11«11<11· d1· 1•gilimar a reprodução, corresponde uma fidelidade menos.,
111111 •11loriu mus mais virtuosa por parte do homem . .
Su 11111 tul pressuposto pode explicar a aparente contradição que
11111 1w 111 1111 uva liação do adu ltério: a maior responsabilidade moral são de que na realidade, a obrigação da fidelidade é apenas rese,:_-- O estado matrimonial pode ser
cl11 l11 1111l'III lruduz-se pela obrigação de uma conduta mais virtuosa
caminho de salvação. A esposa, por
vada às mulheres. Confinada ao âmbito puramente fís ico, a fideli- intermédio da oração, santifica-se a si
1 p1111111110 numa culpa mais grave; por outro lado, as consequên- dade 4caba, quase exclusivamente, por ter a ver apenas com aquele mesma e à sua família. De qualquer
1111 dn 11dul1 •rio l"eminino são certamente mais graves, compreen- corpo que desde sempre foi objecto de repressão, o corpo feminino, modo, a missão da mulher na
espiritualidade do casal foi objecto de
di 111 1111111g11111a de culpas que vão da luxúria à traição, do sacri légio tanto mais neces itado de custódia quanto uma nova ideologia discussão entre os teólogos. Retrato de
ll._l 111110, rl'Jl~'1" utindo-se em danos profundos para com os fil hos, matrimon ial coloca em primeiro plano o problemà da procriação D. Catalina Suárez de Figuciroa,
,pl, 1 11 il·1 (111110s, depa uperados na herança pela presença de bas- devota esposa do marquês de
de fi lhos legítimos. Castidade e fidelidade substituem em parte o Santillana. Pormenor do re1ábulo de
111 d11 , q11n os i lcgíti mos, expostos pela incerteza do nascimento grande ideal da virgindade, mas, tal como este, a partir do momento Buitrago, de Jorge Inglês, século XV.
111 11 111 do i1H.: ·slo. As discussões acerca do comportamento a ter Madrid, Colecção Duque do Infantado.
em que se tornam um apanágio feminino, definem-se em termos
111 1,11111 11 11111111 ·r adú ltera (perdão, pun ição, repúdio e, no limite, estritamente fisiológicos e traduzem-se em práticas repressivas. Não
111,,111 l, q111• dominam a literatura canonística e penitencial do século mais destinada a Deus, mas ao marido, a custódia do corpo femi-
11 1111 d1111tll', lli1o fa zem mais do que confirmar a di sparidade de nino mantém-se, também para a mulher casada, o valor por exce-
1111 11 11lill' o odultéri o masculino e feminino e reforçar a impres- lência.
156 A s no rma s de controlo
Aux flio para a salvação Na Summa Confessorum de Tomás de Chobham (12 15) está pre-
sente uma forma singular de penitência que o confessor pode impor
às mulheres casadas: elas devem «ser pregadoras junto dos mari-
dos»; cada esposa, de facto, «no quarto de cama e enquanto abraça
o marido, deve falar-lhe docemente; se ele é cruel, impiedoso e
opressor dos pobres deve convidá-lo à misericórdia; se é rapinante
deve deprecar as suas rapinas; se é avarento deve incitá-lo à gene-
rosidade e a dar esmolas, discretamente, dos bens comuns»26 . Esta
iniciativa, à qual se reconhece uma eficácia que nenhum sacerdote
poderá jamais atingir, e que parece especialmente aconselhável para
as mulheres dos usurários, assimila a palavra feminina à palavra
mais santa e eficaz, a dos pregadores, e parece indicar para as mu-
lheres a possibilidade de uma intervenção activa e de uma missão
específica de salvação no interior do casal. Excepcional sobretudo
pela acentuação posta na palavra feminina, nonnalmente conotada
negativamente como desregrada, excessiva, culpada, a proposta de
Tomás encontra, a cerca de um século de distância, uma singular
co1Tespondência no projecto de Pedro Dubois (t1321): utilizar as
mulheres cristãs como missionárias, favorecendo-lhes, depois de
uma oportuna doutrinação, o matrimónio com os infiéis, confiando
na força de persuasão das esposas para converter os maridos27 . As
propostas de Tomás de Chobham e de Pedro Dubois representam a
interpretação mais literal do versículo de S. Paulo, segundo o qual o
marido infiel pode ~ antificado 2ela mulher fiel (/ Coríntios, 7, 14 .
- corrr menor ênfãse, de resto, pregadores e moralistãs repetiram,
durante todo o século, que a mulher pode servir de auxílio para a sal-
vação do marido, e propuseram o modelo de Santa CecOia, a mulher
que, com a persuasão, com as preces e com o exemplo, conseguiu
converter o marido infiel e perverso. Em tal contexto, a «moleza»
típica da mulher, que constituía um aspecto da sua inferioridade,
podia tornar-se, pelo contrário, o elemento de apoio para abrandar
um marido demasiado duro.
No entanto, no interior de um sistema ideológico que pretende a
mulher em tudo subordinada às directivas e às iniciativas do marido,
a possibilidade de confiar às mulheres a responsabilidade moral pela
conduta do marido não foi desenvolvida a fundo. A fi gura de Cecília
é obrigatoriamente evocada na resenha das esposas santas, mas é
logo esquecida, e a obrigação de modificar o marido não aparece
A 1111 tl hl' I' deve cuidar cio seu esposo.
A tl11 il11s111u;ilo explica ao marido os
mais, pelo menos até aos finais do século XIV, no elenco dos
1•h'ilm lwm' lkos de uma planta deveres das mulheres. Que a mulher deva ser auxiliar do marido é,
1111•1111•111111 qm· cura o ma l-es1a r do de acordo com a narrativa bíblica da criação da mulher, afirmação
1·~11'\111111111. Mli 1i111urn de De 11a111ra
11•111111 , d1• 'J'11111~s de Cantimpré repetida com insistência e nos contextos mais diversos; mas rara-
( 1 1111 '1 1 1/h'/), do códice llis1ória mente esta função de auxílio é entendida como colaboração activa
N,11111,i/ rir• S,11110 /\/l>aro Ma!i110.
p1111u-l111 1111•111d1• d11 sfr ulo XV. para fins de salvação. À mais difusa e mais e vidente interpretação
( li1111111h1, lllhll111t·rn tln U11ivcrsidadc. que vê na mulher a colaborado ra do homem com vista à reprodução
A boa esposa 157
Sobre a escolha do cônjuge a literatura
oferece apenas uma imagem teórica e
idealizada. É conhecida a impo11ância
dos «casamentos polfticos» para a alta
nobreza medieval, bem como a «razão
de Estado» que preside às núpcias de
personagens da realeza. No entanto,
os estratos inferiores da sociedade
desconhecem esta questão. O tema
da ilustração é o resgate de um
homem para a vida religiosa:
«Como Santa Maria fez com que
o clérigo que lhe tinha prometido
ca tidade deixasse a mulher e fosse
servi-la». Miniatura do Códice Rico
das Camigas de Nossa Senhora.
Cantiga CXXXJI, século XIII.
Biblioteca do Mosteiro do Escorial.
condição social, o vínculo matrimonial config ura-se primariam ente pensável para a sua concórdia e estabilidade; T iago P"" Plll 11 11 11
como compromisso em au xiliar o esposo em todos os aspectos da mulher de aspecto medíocre, justame nte a meio caminho t•111 11 11 111 1
s ua ex is tência, na vida pública e em privado, nas necessidades mate- beleza demasiado difícil de guardar e uma fealdade clcmns i111 111 1.1 11
riais e nas exigências espirituais . Às princesas, Cristina aconselha diosa de suportar37; enqua nto Gil de R om a aconselha a 's~·" ll11 1 111111
que cuidem do esposo tanto na alma qu anto n o corpo, acon selhando- mulher decididamente bela e alt11, de modoatran smitir lllll, 1111111 ,,
-o e ventualmente com doç ura e recorrendo ao confessor p ara o cor- ~~ Se us clot~s -;-aturai ~, epara que ele; r_ecebam_da...mãe 1111 111 11111 1' III•
rigir; às mulhe res da burguesia recome nda que se mos trem sempre . dos seus caracteres físicos38•
alegres com o m arido e que o ajude m a esquecer as suas preocupa- T odos parecem concordaT num pont~ a mulhe r cl ·vt• se1 111 1 1
ções; às mulheres de artesãos o u de camponeses obriga-as a contro- ou pe lo meno~ egundo ü ma- fnêlic ação de Aristóte les, p11 11 11 , 1
lar a moralidade do trabalho do marido e a ajudá-lo concretamente que sej a virgem em vez ele viúvª"--Ingenuidade e incx1w 11t 111 11 l 1
a prendendo os rudime ntos do ofício ; às mulheres dos pobres, enfi m , esposa, bem longe de serem defeitos, são garantia dt- 11 11111 ,Il 11 l1
atribui uma fu nção que pode ser apenas de conforto e de exortação dade para o futuro m arido. Ao contrário d a v iúva, qu e 1rn111, l1 11 I' 11 1
à esperança 33 . Nas indicações de C ris tin a de Pisano p arece ter-se a nova família hábitos j á consolidados, quando não Ir v 1111111 11 11 1
realizado o conselho de T omás de Chobham : a palavra feminina filhos nascidos do ante rio r casamento, tudo pote ncia is ·lt·1111 1111 1 oi,
torno u-se instrumento de uma pastoral doméstica e as mulheres tensão que ameaçam a co ncórdia conjugal, a virgem e h '!'11 11111 I"' 11
podem desenvolver, com todo o direito, a sua função auxiliadora ape nas com os rudimentos de uma escassa pedagog ia 1'111 1111111 ' I"
para a salvação dos se us m aridos. tratou, mais do que qualquer outra coisa, de preserva r o , 11 111 11 11 •
e aparece totalmente di sponível para aprender do mari do 11 11 111,11p11I, ·
que diz respeito ao seu novo estatuto de mulher casacl u.
A escolha da m ulher Preliminares ao discurso sobre as o brigações familiares são
frequenteme nte as análises dos critérios em q ue se deve fundamentar
a escolha do cônjuge. Às indicações escassas e genéricas dadas às A di c ussão acerca dos deveres recíprocos dos es po 11 1111,.,
mulhe res (procurar no marido não a r iqueza mas os bons costumes sexualidade, fidelidade , con stitui o cerne d a pastora l d" 11 111111 11 d
e a sageza) corresponde uma análise m ais ampla do problem a visto nio, e pem1ite evidenciar as dinâmicas contraditórias d · u111dil 1d 1
pelo lado m asculino . Saber escolher uma .boa mulher aparece com o -subordinação intern as ao casa l. T ais dinâmicas res ultrn11 11111il 111111
o prime iro pressuposto para se iniciar correctamente a vida matri- evidentes quando se com pleta o quadro das o brigaç cs t• q111 111 , 1
m onia l. A tarefa não é fácil; qu ase impossíve l, segundo Peraldo, se mente masculinas com uma tríade quase omnipres ' Illt' , ,11 I• 111,
O relato b íblico da c riação de Eva a · d. · ·
partir da cos te la de Adão serviu para não se conseg ue uma rntervenção 1vrna d!fecta que deve ser solici- instrução, con ecção . E streitamente ligadas umas às o utras, 1 111 11
justificar a s uposta inferio ridade tada com orações e esmolas 34; ele qualquer m odo votada ao fracasso, prerrogativas fundamentam -se na «natural» inferiori dadt· d11 1111illi1 1
fe m inina . Na, imagem, Adão.e segundo o dominicano inglês João Bromyard ("/" 1352) que reto- em relação ao marido, ao mesmo tempo que a reforçu111 ,
E1•a e fratncrdro de Ca;m, p111tur\ , . . .· . . , . .. ' ' .
sobre made ira de Ramon de Mu r . ~· m,mdo as notas ant1matnmornais de S. Jeronimo, afuma que a mulhe1, O m arido tem , acima de tudo, a o brigação de m ante r u s11 11 I'' 1 1
( 1412- 1435). V ic h, Museu E piscopa1.r / fecunda o u estéril, bonita o u feia, é sempre, em qualquer caso, fonte a q ual, excluída de qualquer relação de produção, desern p1·111i11 1 11111 ,
.~ de proble mas 35• Menos pessimistas, Filipe de Novara, Gil ge R oma, se verá, um a função doméstica de pura conservação l' 11•11 111 il,1
, Tiago de Varazzeindicam alg_uns e e mentos apropriados p-;:ra 01ientar marido todos os meios de subsistência. Mas també m c1 rn11 1111 1, 1 1
a escolha. Quase comp ~amente irrelevante~ a riqueza do dote, g_u~ ó bvia de que a mulher rece be cio cônjuge tudo aquil o dt· q111 li 111
tamanho lugar ocupa nQ_entanto na prática quotidiana, mas que deve " necessidade ass ume , na literatura pastoral, uma to na licl11d1• 11111il l 1
ser menos considerado, mesm o numa óptica laica e mundana, do tame nte moral. Abastecer a mulher não é uma pura função l'l't 1111111111 1
que o utros e m ais importantes bens ex teriores, como sejam boa na medi da em que se espera do marido q ue resta be leça · 'lllll1 1il1 11
família, cópia de am igos, boa re putação. Essenciais são os costumes ped idos da esposa de modo a que co1Tespondam a nec ss id 11d1 11 11
ho nestos, para os quais a melhor garantia é constituída pelo com- e não se coloquem , em vez disso, na esfera do vão e cio s u111 1l l11t 1
portamento da m ãe, segundo T iago de Varazze, ou então da avó, o brigação do s uste nto evoca a ssim o espectro do rJr11(1 /t1,1· 1• llll 111 1
segundo Paulo de Certalclo36. Mas os requisitos físicos também não ê nfase moral que o acompanha. A exigência de q u H t'H J1<1 11 1 I •
são para descurar: as pecto exterior e idade da mulher devem ser, vestida e adornada, de mane ira adequada à própria ·ondi t,· 111, li 1
segundo Peraldo, substancialme nte semelhantes aos do marido, para duz-se na obr igação p ara o marido de prove r às nec ·ssid11d1• q111 11
garantir aquela h omogeneidade do casal que é um elemento indis- decoro impõe, necessidades obviam ente cli ve rsi ficadus s1· q 111tl11 11
IM) /\ ~ IH11 ll1i\H d1• 1·0 11lrolo
jllll' l'Cpl'c.:scnlações mais naturalistas.r _de Ror11a,__Albe1to de Saxe_111s1stem na ex1gencia de uma mstr.u_ç_ ao
I '.~I VS i'n.,"Scxs do Nc'.scin!enro d<j. mora] que OSCÍla continuamente entre a atitude pedagógica da doutrÍl.'.la
Alnl'lo L'slu num mvel mtermedw. e a prática repressiva da custódia. Custodiar a mulher quer dizer
/\s l lµ11l'11s con1111 uam a manter . . . .. - - ~ _- -
dl1n,111sí!,·s hierarquizadas, de acordo precisamente que se lhe v1g1em os costumes, rodea-la de ate n_çoes
1·111 11 11 s1111 dis1inra importância_, mas repressivas que superintendam sobre a sua debilidade física e ligeireza
11111v1•111 s1· 1111m um biente quoudiano, .. ._ . . .-
1111111 1 IIN 1111 t111crc.:s nesie pormenor, q.ue moral, afasta-la de todas as ocas10es de pecado , corn glf-lhe as a t_1 - _
1• 111 11•1111111 1• r1•r ·bem. respectivamente, tudes levianas e repreensíveis_Ob1oi-g a~ão_do__marido_a.par da inst:ru ão
d· ' di . - d .. · 1 d d d ·
e a custo, a, ª con ecçaQ__JLes osa e sma ~ ver a e1ro amor e,
1111111 1'1'"111 1•111 11 ovos. Fresco de
Ai 11,i1 11 e nddl (in. l '.l% ). Prato,
( '1111•d1 1il , como tal, deve ser acette de bom grado e sem indignação. Pela
milésima vez o discurso acerca da correcção percorre o 101,ol tl 11
leviandade feminina e assinala lugares e contextos dos «pecados I l 1
mulher»: praças e mercados, onde as mulheres se perdem em 1a11 111 1·
lices inúteis, danças e espectáculos, onde a curiosidade femini11 11 1·
alia com o desejo de se mostrar. Acima de tudo campeia a obs ·ss1111
pelos enfeites, o sector mais perigoso que, sem o travão do ma, idt 11
pode conduzir uma família inteira à ruína económica e a pl'lp1111
mulher ao limiar da prostituição. Em confronto com estas c ulpus, 11
comportamento do ma.rido não deve porém ser demasiado sev ·m; 1
austeridade excessiva é, segundo Tiago de Varazze, um dos 1111d
graves defeitos dos homens e a causa de fo1tes perturbações da p 11.
familiar. A correcção da mulher «de maus costumes» repetirfi cl1•
preferência as etapas do percurso já sugerido por João Cris6sto1110:
em primeiro lugar insistir no ensinamento da lei divina, pass111
depois à censura firmando-a no sentimento tipicamente feminino dr1
vergonha, e só em última instância recoITer ao bastão, «ca tig;u1cl11
como uma serva aquela que não sabe sentir vergonha como u111 1
mulher livre»40.
A possibilidade especifica.mente masculina da punição fís i ·11 d11
mulher representa a expressão última e mais palpável do desequ iI l,1 11
que se vinha delineando no interior do casal. Cada afirmaçi o d1
princípio acerca da paridade, da unanimidade e do auxílio recíp,·01•11
dos cônjuges infringe-se de facto na real subordinação que s' l'N f11
belece entre quem tem como primeira obrigação a obediênci11 1
quem está investido na função de governar, sustentar, instruir, ·w 1,
gir. O espaço bastante limitado reservado às admoestações, únk, 1
escassa contrapartida feminina da correcção masculina, e o fa ·lo d,
se concentrar a discussão da paridade no âmbito da pura scx 1111l1
dade, indicam as linhas de um processo que, no próprio monw11l 11
A ideia de que a moda é coisa
de mulheres é antiga. Na Roma em que exalta o casal, construindo-lhe a ideologia, crava e fin ·u 11
imperial os satiristas e os moralistas princípios da desigualdade.
ridicularizavam o apego feminino
aos vestidos luxuosos. Os escritores
cristãos continuaram a mesma ideia.
No século XII surge de novo a O terceiro dever de Sara é o de amparar a família, de lnil 11 1111111
associação entre mulher e vestuário.
As damas destes frescos góticos dos portanto dos filhos e dos servos. O espaço, potencialmente basl1111f1•
séculos XIV e XV vestem trajes de amplo, que estas indicações parecem abrir para a actividade fe111 inl11 1
gala extremamente luxuosos e
e legantes. Mântua (Asti), Castelo dos no contexto doméstico é drasticamente redimensionado à lu :r. d11
Duq_u_es de Saluzzo, Salão Baronal. concepções aristotélicas, que mesmo no interior da família co lm·11111
\ no centro de cada relação a figura masculina. Trata-se de d ' 1'11111
para a mulher tarefas e funções que, sem diminuir em nada o i11d1
cutido poder do chefe da família sobre os filhos e os servos, 1rnç11111
um espaço de intervenção especificamente feminino.
No que diz respeito aos servos, a operação é bastante simples: 11
pregadores, mas também frequentemente os leigos, tendem a ·0 11111111
as tarefas da dona da casa a uma genérica obrigação de amw·, d,•
162 A s nonYHll! de con trolo
i11stru ção e de controlo moral. O empenho quotidiano da mulher Esta miniatura do século XV apresenta
co11s iste, assim, não tanto em organizar o trabalho da criadagem uma visão idealizada de um mundo
rural em louvor a Deus. O centro da
qu anto em evitar a promiscuidade de servos e criadas, vigiar os composição situa-se nas duas mulheres
11H>mcntos de v ida em comum , reprimir duramente cada acto de que combinam o mundo natural
(ovelhas) com o mundo anesanal
l11sdvia ou desregramento, salvaguardando a moralidade da família (fiação), em agradecimento final ao
l' e liminando qualquer perigo potencial para a conduta dos próprios Criador. Oficium Beatae Mariae
Virginis, século XV. Madrid,
donos da casa. Biblioteca Nacional.
Mais complexo e artic ulado é o procedimento com os filhos.
l'10criação e ed ucação da prole constituem, como se viu, um dos
hc11s do casamento e um dos e lementos ng_cleares da dignid ade /
l', tuhilidade do vínculo conjugal. Mas gerar filho s representa, ao
111t·s1110 tempo, para a mãe, a condenação pelo pecado de Eva (Géne-
, i,,, J, 16), o instrumento para resgatar esse pecado e ating ir a sal-
VI IC,'l o (/ Timóteo, 2, 15) e a forma mais natural de auxílio que Deus
d1 spCis ' 111 benefício do hqmem (Génesis, 2, 18). Obrigação prime ira
dn 11111 · cm relação à prole é portanto a de a pôr no mundo; «gerar
lllllos continuadamente e até à morte» - segundo a expressão d o
d11111111kano Nicolau de Gorran (t 1295)41 - constitui a alternativa
11•111 n rnnq ui st.a da salvação p or meio da virgindade. Não é por
1u 11~0. o bserva S. Boaventura, que o termo matrimónio indica o
, 11111111110 das runções maternas relativas aos fi lhos, em contraposi -
111, 1·t1111 o le rmo património, que alude à relação especificame nte
11111 l 11li1111 com os ben s m ateriais .
Nl'~ lt' llori t'.On te mental em que o acto de gerar é empenho con-
111111n 111:tl s do que ep isódio esporádico, não e spanta que também o
A boa esposa 165
d1 1 111so moral seja dominado pelos aspectos mais fisiológicos da 11fudiga e sofre m uito mais do que o pai, e que com absolu~a certe~a
,, 1.111·111idade: procriação, gestação, parto, aleitamento, constituem r •conhece como sua 47• A mãe, confirma S. Tomás, ama o filho mais
11 1110111 •n1os essencia is de uma atenção ao problema dos filhos que
do que o pai e compraz-se mais em amar que em ser amada48• Mas
1 , l'ol'ça por sa ir dos limites da pura naturalidade. A preocupação l'ste amor tão intenso e visceral parece também culpado aos olhos
111111 11 ·si ·rilidade, vivida como condenação e como potencial ele- dos clérigos; na medida em que o afecto não consegue sair da natu-
11w1110 d· ruptura do casal , reúne clérigos como Gilberto de Tournai rnl idade e atingir a esfera da virtude, a sua intensidade é a sua fra-
1!1 1 llm,nya rd e le igos como Francisco de Barberino43 ; o receio de queza: é amor carnal, passional, que, privilegiando os corpos, ou
p1•111r l'i lhos doentes ou deformados sustenta e reforça os interditos seja, a saúde e o bem-estar dos filhos, an-isca a perder as almas.
1 ,wuis; n obsessão da legitimidade dos nascimentos estrutura, como
/\mor misericordioso e votado ao sacrifício, que leva a mãe a sofrer
1• vi u, lodo o s istema de relações e valores familiares. Gravidez e
111ais do que o pai com a adversidade dos filhos e a gozar menos com
p111 lo, 1idos na óptica da condenação bíblica, aparecem como os os seus sucessos. mo1:,_c_omo notam os_escolásticos, de Alberto a
11111llll'lllos mais trág icos de uma vida miserável para todos, m as de Tomás e a Buridan49 , mais forte, mais_manifesto e mais constante_do Cris1ina de Pisano inscreve-se na lista
11111 ,nodo es pecial para as mulheres: Durando de Champagne, reto- q ue o paterno, mas dece1to menos nobre, 2orque_ menos raciona~. A das escri1oras medievais. Nas suas
1111111<10 as temáticas do De contemptu mundi de Inocêncio III, descreve obras traia os mesmos lemas que os
discussão acerca do amor matemo não faz mais do que repetir a homens seus conlemporâneos, se bem
111111 cor •s roscas o percurso que vai da concepção, necessariamente rnntradição no seio da qual se move a afectividade feminina e que que com um crilério muilo mais aberto
11 •11d11 «ao prurido da carne e ao ardor da libido», à gestação, per- jrt aparecera com toda a evidência no âmbito do amo~ conjugal: a
no que respei1a à ac1ividaele femin ina.
Na iluslração, um grupo ele damas
1111 buda por incómodos físicos, ânsias e apreensões pela vida quer da mãe não pode, por definição, senão amar de amor pass10nal e _n atu- entrega-se à t:onvcrsa, numa atitude
141·~111 111 ' que r do nascituro, ao parto, dominado pela experiência da 1'111, mas esta naturalidade é-lhe atirada à cara como culpa. O pai ama de cumplicidade q ue a autora pretende
drn l' p ' lo espectro ela morte44• Menos trágica é a visão de Francisco deslacar. Miniatura de La Cité
l'L'rtan'tente menos, mas com um amor intrinsecamente virtuoso, que des Dames ele Cristi na de Pisano,
d1• Burb ' rino, q ue com olhos laicos vê o periodo da gravidez e do ll'nde mais para o aperfeiçoamento da alma do que para o bem-estar século XV. Chantilly, Museu Condé.
p111 10 c;o1110 um momento de cautela meramente humana e de atenções
11111is d ' tipo médico que moral: no início da gravidez, a mulher
d1•v1·1\ ev itar «correr, saltar e fazer qualquer movimento que seja
d1•11111sindo brusco»; quando sente o movimento do feto deverá «comer
,. IH'h •r wrn temperança, viver amiga de Deus e viver a legre, pois
q111• nssiin a alma ganha gentil hábito»; deverá abster-se de relações
1•x1111is depois da concepção e depois do parto, e amamentar pes-
1111littl'l11, o recém-nascido, se quer «agradar a Deus e ao filhinho»45•
, ' 11 l'Nlt) ·s aná logas se encontram no Económico de Conrado de
M1•} l'llh •rg, para que m as precauções e atenções que se devem ter
11111 1 os filhos ainda antes de nascerem se colocam j á numa óptica
6
p11 11111111111 sli ca~ . A obrigação materna de garantir aos filhos vida e
111111 1111d \ faz recai r quase exclusivamente na figura feminina a
11 po11.~11hi Iidude cios pecados ligados à limitação dos nascimentos
(1111111 11n• pç:io, aborto, infanticídio) que aparecem frequentemente
1111 pl·1illl'llçiais e nos confessionais, mas expõe por outro lado as
11111 111111 ot1lro risco de pecado na obstinada procura da procriação
1111 d 1 1111<k· dos filhos através de sortilégios e práticas mágicas.
\ r~,· 11 n·l1u;1 o puramente fís ica com a prole, qual é o espaço
,, , , v 1d11 ) 111'11 r l ividade materna e que papel desempenha a mãe na
d111 ,1 111 dn l'ill1os'J Na lite ratura pastoral, o amor maternal, mais
d11 q111 11111 dl'v1•r, 11111 f"acto; que as mães amem os filhos é um dado
, i.h 1111 1111 nllll>Hd · todos e j ust:ificado pela relação imediatamente
11 1, 1q111 1 lit t 111 r o ,11 •I ·s: a mãe, observa Tiago de Va.razze, reen-
111111 1 1111 111111, 1111111 1n11·1• de si mesma, uma criatura para a qual se
llih A 1111111111N d1• n,ntrolo
I• pn\11 11111·11111 d11 rn,11 p111u a mu lher; tanternente preocupada com a salvação dos filhos, a rn, • 'Xl'll 1' 111111
1 p11\u 1 ~11·11111 !"'"' u 1111h11lho do função que é m ais de controlo dos comportamentos 11101111 , 1 ti 1
11111111111 11111h 11111111111 ,,. 11 cxi, 1ência
1h 1111111 ~1·v.11•v.111;11111111, nctiv idadcs
práticas religiosas que de verdadeira instrução. É sobr ·1ud11 111
1111111)1111111 11111 puru ll'udal. específica missão vigiar a conduta das filhas, que devem s •r 111111111d 1
N11 1 1111111111, f 11111 " d1scu1ívcl uma longe da frequência de companhias inadequadas e da pari inp 11. 111
\111 l11d1•1111 cltv"i\o ,cx ual no 1rabalho.
1> li , 111, 1·,·l,•,1rt,11c11s fa lam dela, em festas ou danças. Relativamente às filhas, as mães, e las p1np1111
IIIIIN li 11·11!1dmk L'ClllllÍ lllÍCa dá um sob a custódia do marido, reproduzem a mesma atitude r flH", I\ 1
li 11·11111111111 dilnc111c. Adão cavando e
1 v11 111111d11. ll111xo relevo cm pedra,
voltada para a mesma finalidade : preservar o corpo f tn i1111111 d,
"111 !11 X 11 1. 1':111s, Sainte-Chapelle. qualquer contacto que ataque o valor fundamental, a castid 1111 11
controlo da sex ualidade das filhas surge de facto como âmbito p1 I\ 1
legiado da pedagogia materna, o único do qual a mãe, ·eja ·011111 I li!
é responsável, independentemente até da sua própria mon1 lid11d1 11
mulheres más, observa Filipe de Novara, podem ser, como 111.t,
até melhores que as boas, hábeis como são em reconhecer nu s 1111111
os sinais da «lo ucura» que já experimentaram directarne nl L',J, 1\lit
quando a iniciativa pedagógica vai para além ela sim ples t' ll',11111!11
para se dotar de conteúdos propriamente educativos, já não pod1 ., 1
apanágio feminino e transfere-se decisivamente para a figuro p111t 111 1
São dois pais, o cavaleiro de La Tour Landry e o rei de Fn11u.-11 , 1 1
Luís, que se preocupam com a educação das filhas rn ull wn·,, 1111
são sobretudo os pais os responsáveis pela educação dos filhos v111 111
uma vez estes saídos da infância: Gilberto afirma com cltlll'/11 q 11t ,
educação dos filhos adolescentes compete aos pais53 e Frn11vi 111 ti,
Barberino aconselha as viúvas a confiarem a educação dos 1111, 1 ,
a qualquer cavaleiro escolhido no círculo dos amigos o u dos p111, 111,
do corpo . Por outro lado, a resposta afecti va dos filhos confirm a do marido, q ue pos a adequadamente substituir a figura pull·1111 1
estas análises: Tiago de Varazze constata q ue os fil hos amam de A __!i_m itação das_prerrogativas pedagógic!!.Síemininas. p11 ,, 111i
facto mais o pai que a mãe, reconhecendo nele o princípio activo da na literatura pastoral do sjculo XIII, e nconll~_L!__ma aut rií'od11 11111
geração e a fo nte de bens e honras que estão destinados a herdar50; l'irmação nos textos aristotélicos. A leitura da Política, que t·111111 1"
enquanto Tom ás conc lui que, de um ponto de vista ético, embora a problema dos filhos unicamen te em relação_ao _2_a i, e ai ncln 111 11 1
mãe am e mais do que o pai , os filhos são levados a amar mais o pai, Da Economia, que estabelece uma nítida divisão de trabal ho p 11 1111
do qual, na geração, receberam mais; e Bu1idan observa que, uma dois genitores (ao pai a tarefa de educar, à mãe a de alimentar), ll , 1111
vez decorrido o período da primeira infância, durante o q ua l são a uma excl usão ainda mais radical da figura .ieminina d· 1wl11 11
mais fortes as exigências naturai s, o am o r dos filhos tende por si Jm bitoeducativo. S. Tomás j ulga poder fundamentar a própl'in 11l'11
mesmo a tornar-se menos carnal e m ais raciona l e a transferir-se sidade do matrimónio na exigência de confiar a educação du p1111>
progressivamente da mãe para o pai. a uma figura rnasculina55 , enquanto todos os come nt adores d11 11,,
N um a visão exclusivamente fis iológica da maternidade , não lfro nomia reiv indicam para o pai toda a missão educati va, :1 i11d11 q111
espanta que seja bastante escasso o papel pedagógico atribuído à moral, e confirmam para a m ãe aquela função merame nt • 1\1111 1111 1
\ que a natureza visi velmente lhe atribuiu.
mãe. Os acenos a uma genérica fu nção educativa que se podem
encontrar nas páginas de Peraldo, de Humberto de R om ans, de João Até Cristina de Pi.sano parece paitilhar esta concepc,:flo pl'l,1 q11 d
de Gales assumem contornos mais exactos n os sermões de Tiago de a mãe, naturalmente inclinada a tomar para si o cuidado do:.. 1111111
Varazze ou de G ilberto de Tournai51: o dever da instrução moral e deve re n:eter ao pai toda .ª ~unção educativa; no entant o, 11<1 t1111iill11
religiosa dos filhos pode ser assumido pela mãe com a condição de \ de tal atitude natural, Cnstma consegue restabele r u111:1 s1 111 d1
q ue esta consiga controlar e temperar o amor carnal q ue por eles !'unções que acabam por reconhecer à mulhe r urna csp -rilll 1d 11 11
sente, acompanhando-o com uma atitude de temor espiritual. Cons- p •dagógica própria 56. Assim, para a princesa, a ate nçw 11m 111 111,
\
A boa esposa 169
Se há um ponto sobre o qual clérigos e leigos concordam una- Col'(! rl1Clr a casa
nimemente ao construir o modelo da boa esposa é o de que a casa
representa o espaço feminino por excelência. Boa esposa é aquela
que está em casa e que da casa toma conta Fundada.sobre a autoriclacl
das Escrituras e da Patrística, e difundida desde sempre na menla-
lidade comum, esta convicção encontra um suporte válido nos textos
11ristotélicos, nos quais a atenção à casa como cél ula política e co-
11<ímica conduz a uma definição precisa do papel que nela clesemp nha
11 fi gura femini na. A contraposição de um espaço interno, fechado,
vigiado, no qual se coloca a mulher, a um espaço externo e aberto,
110 qual o homem se move livremente, toma-se precisa na con tra-
pos ição de duas actividades económicas fundamentais: a produção,
turcfa do homem, e a conservação, tipicamente feminina. A unidad
marido e mulher é também complementaridade económica, na qual
cada um dos dois desenvolve a sua natural função com vista ao bem-
estar comum; conservar e administrar quanto o homem produz,
punha, acumula, toma-se para a mulher o contributo específico para
o bom ,andamento do lar e uma forma posterior e concreta de ajuda
1•111 re lação ao marido.
A casa apresenta-se portanto como o espaço da actividade femi -
111110; activiclade de administraçâoãos bens e e regulamenta ã do~
I111bulho doméstico confiado a servosecriadas, mastambém activj- es1 Do 111atri111ónio conto ins1rumcnto para
reitar alianças entre fa111ílias à sua
dudc num trabalho desenvolvido directamente: a dona de casa fia e u1i li,rnção corno meio ele preservação
ll' l'l', trat a e li mpa a casa, ocupa-se dos animais domésticos, assume ela linhage111. O gcs10 ele entrelaçar os
- braços, nesta cena de casa111ento,
li ~ 1k v ' f 'S de hospitalidade relativamente aos amigos do marido, recorda ainda a 1radição Laica do
111!•111 de, naturalmente, cuidar dos filhos e dos servos. Desenvolve casamen10 sem intervenção sacerdotal.
t 111 Nlllll 1I um volume de trabal110 absolutamente ig-ual sustenta Gil- Miniaiura do Liher Feudorum Maior,
- , -- _ _ ' século X ll. Barcelona, Arquivo ela
l1t·1ln 11, 1 qu lc que o mariáo desenvolve no e terior para ga.riliar_.? _, - c oroa de Aragão.
A boa esposa 171
, 11s1ento. A citação da mulher forte do Provérbio 31 e a imagem da ma1ri monial, se transforme em lugar de desregramentos sexuais, de
prndente Abigail intervêm frequentemente para recordar como o fo rnicação ou, pior ainda, ele incesto. No espaço custodiado da casa,
1, nhalho duro e escondido da dona de casa exige, para ser desenvol- a esposa pode encontrar até o modo de atender aos seus dev~res
vido adeq uadamente, virtudes específicas e imponantes: sapiê nc ia, religiosos: G ilbe1to de Tournai volta a propor o modelo de Judite e
diligência, previdência e uma força que, ao contrário da m asculina, as exortações de S. Jerónimo para lembrar que as tarefas domésti-
11:10 se manifesta em gloriosas empresas g uerreiras mas antes na cas não podem absorver totalmente a m ulher, mas que, no próprio
humildade das tarefas quotidianas58• fi mbito do seu trabalho, ela pode encontrar um lugar de recolhimento
Mas a gestão da casa não é, para a mulher, uma actividade ue e de oração, podendo assim o espaço do seu quotidiano transfonnar-
e la possa realizar êin plena autonom ia; osmesmos textos aristoté lico_§_ se em espaço religioso60 .
que l'undamentam a especifi cidade do trabalho feminino rcpcten1,
qu' lambém no interior das paredes domésticas o marido continua a .
M'r o senhor, responsável pelas pessoas e proprietário dos bens. Nas O último dos deveres de Sara é o de se mostrar irrepreensível. Mostrar-se iJ'J'epreensível
p.íg inas dos comentadores, a tarefa de admini stração confiada à . Depois da longa resenha de deveres para com os sogros, o m~rido,
lll11lher inscreve-se ass im no interior da função puramente alime ntar . os filhos, os servos e a casa, acrescentar uma obrigação especial de
que, como se viu, ela desenvolve em relação aos filhos, e encontra _. irrepreensibilidade pode parecer inúti l e repetitivo, nada mais do
11111 limite intransponível na impossibilidade de tomar decisões q ue que um expediente retórico para resumir numa só palavra a gama
di gam respeito ao património. Excluída a possibilidade de estabelecer.. - completa dos comportamentos femininos examinados até aqui em
rn111ratos e de movimentar o dinheiro do marido, a aclividacle femi- pormenor. É o q ue afirma Gilberto de Tournai: a mul her que assumiu
nina reduz-se mais uma vez à gestão elo necessário à subsistência . lodos os seus deveres de esposa, de mãe e de dona de casa, é segu-
. . D 61
11 sica: alimento e roupas, enquanto a virtude essencial da economia . ramente irrepreensível mesmo aos o1110s d o JUI Z supremo, eus .
doméstica se torna precisa naquela parcimónia que, tendência natural _ Afirmar que no cuidado da casa e da família a mulher casada realiza
da mulher, segundo Oresmo 59, se casa pe1feitamente com a sua tarefa _ lotalmente a sua missão, sem mais, equivale a dizer que as tarefas
l's pcc.:ífica de conservação. domésticas não só não entram em conflito com as obrigações reli-
A casa não consti tui para a mulher apenas o espaço no qual ela giosas, mas também q ue as esgotam completamente; a boa esposa
<k'senvolve o seu trabalho; mais ainda que espaço económico e la é é, por isso mesmo, boa cristã, irrepreensível aos olhos de Deus. A
l's paço moral. Com as suas paredes e as suas portas, a casa encarna - solução de Gilberto parece ao mesmo tempo a ma is radical e a mais
l' representa fisicamente a custódia, c irc unscreve e isola o inte rior, conciliadora, na medida em que apenas pede a Deus o juízo último
preservando-o dos contactos e dos riscos que possam vir do exterior, sobre o comportamento da mulher, mas elimina em princípio qualquer
l' lugar e símbolo de estabilidade q ue exorc isa o fantasma da vagatio possível conflito entre vida familiar e vida religiosa. Peraldo e V(c~nte
l' dos perigos que esta comporta. Espaço altamente simbó lico, a de Beauvais distinguem , no e ntanto, no comportamen to fe m111mo,
11<11110 de se tornar, nas páginas de Durando de Champagne, metáfora um aspecto re ligioso - a santidade - e um aspecto moral - a
da consc iênc ia, mas também da Igreja, do Paraíso ou do Inferno, a pudicícia-, mas acabam por falar exclusivam ente desta, deixando
rn~u evoca irnediatmnente o campo metafórico da segurança e da entender que modéstia no trajar e nos gestos, controlo das palavras,
v11lude l'cm inil. Estar em casa, para a mulher casada como para a simplicidade, humildade, vergonh a e sobriedade, as virtudes que
virgem, quer d izer estar ao a brigo dos perigos, mas também mani- tornam a esposa irrepreensível aos olhos dos homens, são em con-
62
ll•star aq ue las viI1udes mais aptas para tranquilizar o marido: fide- c lusão as mesmas atitudes que a tornam santa aos olhos de Deus •
lidade, continência, pudicícia, vergonha. Ao mesmo tempo, para a Tiago de Yarazze julga irrepreensível aquela esposa que «não
11111llwr casada a casa é também um espaço a custodiar; a esposa, tem mancha alguma, nem na vida, nem na fama, nem na consciên-
111, qrnz de se gerir e necessitada de custódia e de orientação moral c ia»63; o comportamento quotidiano da esposa encontra-se assit?
d11 11111rido, to rna-se, quase contraditoriamente, a responsável pelo submeti do ao critério de avaliação de um d uplo juízo: o juízo reli-
, 11111por1amento de toda a família. Protegida pelas paredes domésticas, gioso, confiado à consciência da mulher que, revendo-se nos ensina-
1•!11 d,•ve salvaguardar-lhe de todos os modos a moralidade, mode- mentos das Escri turas e nos exemplos das santas, pode emendar as
11111d11 a intemperança do cônjuge e controlando os costumes de próprias c ulpas, e o j uízo profano, remetido às vozes e ao fal~tó:io
1tlho-. ,. servos. Somente a atenta obra de v ig il ânc ia da mulher pode das pessoas, àquela fama que, com razão ou sem ela, constitui a
111qll'dir que a casa, lugar por excelênci a da legítima sexualidade ca ixa de ressonânc ia de vícios e virtudes femininas. Espelho da
A boa esposa 173
mulher, e da esposa em particular, a boa fama, como a literatura tante Summa Theologica dedica uma ampla secção, q ue circulará
laica sublinhou mais vezes, constitui o único verdadeiro ornamento igualmente em separado, aos problemas do casal e da família. Em
wm que ela se exibe na sociedade, o seu principal «dote», capaz até 1450, um franciscano, Querubim de Espoleto, compõe a Regala de/la
de modificar o destino social, o «perfume» que constantemente a vita matrimonia/e; pelos anos setenta, João o Cartuxo escreve para
acompanha. Mostrar-se irrepreensível quer di zer, para a mulher as mulheres casadas a Gloria mulierum, enquanto o seu irmão D inis
casada, não só comportar-se honestamente, mas também evitar enfrenta mais vezes os problemas do matrimónio no dec urso da sua
qualquer possível insinuação ou boato sobre si, algo que, verdadeiro vasta produção e dedica ao tema um tratado específico, o De laudabili
ou falso, mancharia a sua imagem e a de toda a famíl ia. Por outro vita coniugatorum. A esta literatura q ue usa, e não por acaso, a
lado não escapa a Tiago de Varazze que o juízo sobre o comporta- língua vulgar mais que o latim quando se dirige directamente à
mento da mulher é, em última análi se, confiado à sua própria cons- mulheres, junta-se a obra do mais importante pregador quatrocen-
c iência, lugar no qual se concentra uma religiosidade m ais íntima e tista, S. Bernardino de Siena, que ao matrimónio e à família dedi ca
sentida: a fama e a consciência encaixam -se, nas páginas de Tiaoo, longos e importantes sem1ões.
num hábHjogo de espelhos q ue faz devol ver continua mente o p;o- Mas o interesse pela famíl ia não nasce apenas na Literatura re li-
hlcma da Irrepreensibilidade da esposa do interior da alma para o giosa: a vasta produção de memórias ou livros de família, nos quais
exterior da imagem pública. Construído com base no pressuposto m uitos mercadores, sobretudo toscanos, anotavam com especial
de que o juízo de Deus e o juízo dos homens em última análise se minúcia todos os acontecimentos que se relacionavam com o núcleo
correspondem, o modelo proposto por Tiago re presenta, na forma doméstico (nascimentos, mortes, casamentos, mas também negó-
n~ais rc'.i~ada, a tentati va de encontrar aquele equilíbrio entre exigên- cios, débitos, créd itos, reveses económicos), pode testemunhar a
c ias ~·e bg1?sas e deveres familiares que é comum a toda a ideologia nova atenção com que também os leigos olhavam a célula familiar64.
matnmomal do sécul o XIII, equilíbrio destinado a romper-se no Atenção que a nível teórico encontra um vasto eco na produção
momento em que um novo e mais forte interesse pela família ou a humanísti ca: no âmbito de um debate renovado acerca da compati-
re ivindicação de um espaço mais amplo para a experiência reli- bilidade do casamento com a actividade intelectual, Francisco Bár- Juntamente com a Virgem Maria,
as mulheres bíblicas e as santas e
~iosa i_nvestem a fi g ura feminina de responsabilidades e expecta- baro escreve em 14 16 o De re uxoria; João Campano regressa ao mártires dos primeiros séculos do
1,vas divergentes e potencialme nte conflituosas. tem a com o De dignitate matrimon.ii (1460); entre 1431 e 1438, cristianismo serão utilizadas como
Mateus Palmieri escreve a Vita civile, nos mesmos anos em que espelho das esposas. Na ilustração,
Sara veslindo Jacob, fresco de
Leão Baptista Alberti compõe o mais importante e afortunado tratado Bembo Bonifácio, século XV.
/\. mulher e a família no século XV sobre o tema, l libri della.famiglia; em 1468, António Ivani dedica Cremona, Museu Cívico.
à mulher casada um breve opúsculo, Dei governo della .famiglia
Em 1403, o dominicano João Domini ci escreve para Bartolomeia civile65 • Nesta renovada atenção à família insere-se também um filão
d ·g li Alberti a Rego/a dei governo di cura.fami!iare. Bartolomeia , ma is especificamente pedagógico, representado pelas obras de Ver-
duas vezes casada mas forçada a viver separada do marid o, banido gerio, de Bruni e de Vegio.
de Florença, e p011anto investida directamente dos deveres familiares Produzida por homens e quase sempre dirig ida a outros homens,
tinha solicitado ao frade conselhos e amparo espiritual; mas a Reio!; a literatura humanística é directamente influenciada pelos motivos
supera a simples ocasionalidade para propor um modelo de vida da tradição aristotélica, da qual tira os elementos de uma concepção
1Hllli I iar potencialmente universal. O tratado de Dominici, que coloca laica df! família: o elogio do matrimónio, a definição das funções
11 l'nmília no centro da pastora l feminina, utili zando o term o na sua dos cônj uges, a atenção à casa e aos filhos movem-se quase sempre
nn· p<_;ão moderna, inaug ura uma moda destinada a grande êxito; em fora da óptica religiosa; referências e exemplos que saem da tradição
1t11~> _0 sécul,o XV; ~a Itá~ a e e_m especial na Toscana, as problemáti- clássica substituem a autoridade das Escrituras e da Patrística; as
, 11 s 11gaclas a fam1 li a serao o b.1ecto ele um grande interesse. Na linha esposas fiéis e púdicas do mundo greco-latino (Penélope, Alceste,
«11• Dominici muitos religiosos escreverão manuais de vida familiar Andróm aca, L ucrécia) tomam o lugar das santas mulheres da tradição
1ll'll'''.'nl emente dedicados às mulheres o u nos quais, de qual que; hebraico-cristã. Relativamente à figura feminina construída pelos
1111111\' lla, as mu lheres podem encontrar oportunas regras de compor- h umanistas, certamente q ue a literatura religiosa se mantém mais fiel
1111111•1110 doméstico e conselhos de vida espiritual. Santo Antonino, ao modelo elaborado no século XIII: a doutrin a matrimonial retoma
111, ,· hispo ele F lorença e discípulo de Dominici, escreve em 1450 a e desenvolve os motivos formulados naquele contexto ideológico;
'1,,, 1,111 he11 1·iFere para Dianora Tornabuoni, mas também na impor- os papéis da mulher relativamente ao marido, aos filhos e à casa
A boa esp osa 175
11 1111 \ l' am, topoi trad ic iona is; a imagem de Sara, mesmo q uando
11111 l l'vocada d irectamente,' constitui ainda assim um ponto de
1 11 H l ll IH fac ilmente identificável nas análises de Antonino, de
llc 111,11 di 110, de Dinis, de· Querubim . Falta saber se, para lá da diferente
l111,. 11 ,1gl'lll uti lizada e da fácil oposição entre o modelo laico e o
111111 11•10 re lig ioso , o inte resse extrao rdin ári o de Quatrocentos pelas
p111 hk 111:íti cas fa miliares terá realmente modificado a imagem femi-
111 1111. l11díc ios úteis para se verificar a m anutenção do modelo ducen-
11 111 pod ' 111 ser as análises de dois pontos partic ulares, mas de modo
1!1}•11111 marg inais : o papel do m arido na vida da mulher casada e a
111111,·110 pedagógica da m ãe re lativamente aos filhos.
lll i l l\ prec ioso do patrimó ni o. presença, tem-se a impressão de que, pelo menos para a lguns destes
/\ presença do marid o na literatura religiosa é igualmente consi- escritores, alguma coisa mudou e que o marido se tornou ta lvez mais
1k111 w l; d issipada em parte a ênfase sobre a un animidade dos esposos, embaraçoso m as m enos im portante. A Rego/a de Domi nic i, div id ida
11 t ~nitorcs de Q uatrocentos insistem ainda mais do que no passado e m quatro partes (alma, corpo, bens, fil hos), não dedi ca ao ma rido
1111 ckw r de submissão da mulhe r ao marido: B ernardino , Querubim , um capítulo específico, atribu indo-lhe porém um pape l fundamental
l >1111 ,, l'alam d os deveres femininos cm te1mos de temor e ele serviço na segunda parte do tratado: o marido é dono do corpo da m ulher e ,
1 11hl111 ham a necessidade de uma obediência absoluta 66 , que se não apesar da reciprocidade do dever conj ugal, e le pode ostentar direi tos
eh h 11 h11 scqu cr pe rante a proibição das práticas religi osas 67 , encon- m aiores do que aq ue les que a m ulher pode ostentar sobre o c orpo do
11 11111n 11111 único li mi te, unanimemente reconhecido, na imposição marido . A Gloria mu!ierum de João o Cartuxo conclui com a mesma
d, 1, li1\'tlL's sexuais antinaturais. T odavia, apesar desta o bsessiva
.
nítida pai1ição: a al ma da m ulher pertence a D e us, o corpo ao m ai·ido .
A boa esposa .i 17
E portanto a alma feminina que parece, porventura pela primeira A inic iativa pedagógica materna
ganha força nos textos. Ainda que se
\ 1 1 , fu g ir ao domínio e ao controlo do marido. Tem-se a impressão mantenha o predomínio paterno na
d1• qu '. apesa r da insistência no tema do auxílio e do amor recíproco educação da prole atenuam-se as
limitações da Baixa Idade Média ao
dos l' njuges, se abriu uma fractura na utopia da concórdia conjugal labor educativo da mãe. A m ulher
qt1l' o século XIII tinha exaltado. Os estudos de Genevieve Hase- da ilustração parece plenamente
11ohr''" demonstraram como o evoluir de uma religiosidade feminina en1rcgue à «ditadura» de seus filhos.
Pormenor de uma pintura de
11111is intensa e o emergir da figura do director espiritual haviam, de Domcnico di Bartolo (1400-1455).
dp urn modo, subtraído ao marido aquela função de mediador até Sicna, l lospilal de Santa Maria della
Scala, Sala dos Peregrinos.
111l•s1110 relig ioso que durante tanto tempo exercera em relação à
11111llwr. É certo que alg uns destes escritores insistem ainda na obri-
t 11,·uo de o marido fornecer à esposa uma educação também religiosa,
111ns, de qualquer modo, abriu-se um problema que a ideologia
111111 rimonial do século XIII parecia ter resolvido definitivamente, o
do conc iliação entre vida conjugal e vida espiritual. A exigência de
Sl' ·riar um espaço mais amplo para a contemplação e para a oração
111111b m na vida mat1imonial, e de se encontrar para esta necessidade
d1· espiritualidade outros interlocutores que não o marido, coloca,
porlanlo, o problema de conciliar práticas religiosas e obrigações
l11111iliares : Bernardino, Antonino, João Dominici oscilam entre a
1•xigência de colocar no centro da vida feminina o cuidado da famí-
lia e a tentação de abrir novos espaços à religiosidade da mulher,
011 seja, de lhe confiar directamente aquela função de intermediário
1l'lig ioso q ue foi do homem em tempos. A admoe tação e a esmola
podem tornar-se os instrumentos essenciais desta função: graças à
p1 i111c ira, agora sistematicamente presente entre os deveres femini-
11os, a mu lher pode desenvolver uma prudente e discreta obra de
rn11trolo da moralidade do esposo, enquanto a segunda pode suprir
o escasso empenho religioso e caritativo deste, garantindo-lhe indirec-
111111cnte a salvação eterna. reabrir a questão da sexualidade. O problema, que a literatura
Pelo contrário, as tarefas domésticas são vividas como obstáculos humanística nunca enfrenta directamente, não passando nunca de
110 ·umin ho da santidade, obrigações às quais não é possível subtrair- um genérico preconceito negativo e de umas quantas e igualmente
Sl' mas nas quais a mulher não pode encontrar a sua verdadeira genéricas exortações à moderação, produz, em vez disso, em alguns
ll'll li,.ação e em que não é portanto estimulada a deter-se mais do escritores religiosos como Antonino, Querubim ou Bernardino inte r-
q lll' o necessário: Antonino exorta Dianora a despachar rapidamente mináveis análises, recheadas de inúmeras distinções. Só uma casuís-
os d ·veres domésticos e a dedicar ao trabalho manual apenas curtos tica minuciosa e obsessiva pode possibilitar à mulher a resolução do
1111nva los de uma vida de oração69 ; João o Cartuxo coloca a relação conflito quotidiano entre o dever de obediência absoluta ao marido,
rn111 o marido, com os filhos, com a casa sob a égide da pac iência, dono do corpo, e o caminho da purificação e do aperfeiçoamento
Jo l'S l'orço, da resignação70 ; Dorninici recorda que também o corpo que a Igreja propõe à sua alma. À mulher, c aracterizada generica-
l1•)11i11ino não é apenas pertença do marido, ou dos filhos, aos quais mente nesta literatura como elemento passivo, apenas com a possi-
1 11111111 •r deve dedicar cuidados e afecto, mas também de Deus e da bilidade de travar as iniciativas sexuais do marido, pode então ser
11 lr1111, o ~uja vontade deve dobrar-se e a cujas ex igências deve subor- proposto um novo tipo de castidade matrimonial, aquela que tende,
d11111· por vezes até os deveres familiares 7 1• com a persuasão ou mesmo com o subterfúgio, a reduzir e no limite
No i111crior deste conflito, que não coloca apenas o problema de a abolir toda a actividade sexual, e que encontra os seus modelos na
111111 rnnc iliação prática das competências fem ininas, mas repensa Virgem Maria ou em Santa Isabel da Hungria72• Com esta solução
11 p11wl 1· o sentido da escolha matrimonial, não pode de ixar de se radical o velho problema das relações virgindade-matrimónio regressa
A boa esp osa 179
1h ,llgum modo ao ponto de partida: a vida de santidade passa, para
1 111ulher, pela renúncia a toda a actividade sexual.
para outras qualidades apreciáveis pelo futuro marido: mansidão, A mulher injuriada ou ofendida deve
dar mostra da sua dor por meio ele
prudência, engenho, constância, sobriedade, modéstia, diligência; uma sé rie ele gestos ri tuais, como
dos rapazes vigiarão a conduta moral e religiosa valendo-se do arrojar a touca, arrancar os cabelos,
lacerar o roslo, numa palavra,
único instrumento à sua disposição, a admoestação, feita directa- mal1ra1ar os atributos que. lhe
mente ou por meio de pessoa de confiança. Modelo desta dupl a acarrc1aram a desonra. A ilustração
tarefa pedagógica é Mónica, a santa mãe de Santo Agostinho, encar- re presenta o suicídio da rainha Dido,
segundo uma miniatura do manuscrito
nação de todas as virtudes maternas e exemplo de comportamento C(Wigos y docume111os dei Rey Don
para ambos os genitores . O empenho de Mónica na conversão do Sanc!to (e. 1420- 1430). Madrid,
filho garante, pelo seu sucesso final, a possibilidade de esperança Biblio1c.:ca Nac ional.
mesmo nos casos mais desesperados, mas denuncia talvez através
dos instrumentos utilizados, orações e lágrimas, a debilidade estrutura 1
da intervenção feminina no interior da família.
No momento em que a família assume uma posição de primeiro
plano na cultura e na ideologia quatrocentista, a mulher, que nela
encontrou sempre a sua natural colocação, vê na realidade enfraquecer
a consideração pelo seu papel, enquanto a esfera religiosa se confirma
uma vez mais como âmbito único no qual, pelo menos a nível teó-
rico, se abrem novos espaços para a iniciativa feminina . A di scussão
sobre a existência de um Renascimento feminino, aberta pelo artigo
já clássico de Joan Kel ly 77 , trouxe para a luz o modo como no decurso
da Idade Média se assistiu a uma progressiva perda de estatuto, de
poder e de «visibilidade» por parte das mulheres; a hipótese de
David Herlihy78, segundo o qual só se pode falar de um Renascimento
feminino pelo facto de ter emergido um carisma espiritual repre-
sentado por figuras como Catarina de Siena, Margery Kempe, Juliana
de Norwich, Catarina de Génova, pode encontrar uma confirmação
no único elemento de novidade efectiva que emerge também ela tra-
tadística do século XV sobre a família: a descoberta da alma feminina.
Notas
1. Roben o de Sorbon, De matrimo11io, in J.-B. Hauréau, Notices et extraitsde quelques
ma11uscrits latins de la Bibliotheque Narionale, Paris, Klincksieck, 1890, ! , p. 200.
2. Os tex1os utilizad os são em grande pane os mesmos que se c itam no capítulo ante-
rior; portanto faz-se referência às ed ições ali assinaladas. Para os Sermões de Gilberto de
Tournai Ad coniugatas, que empregam todos o modelo de Sara, a edição citada até agora
só contém o terceiro, ff. 140v.a.- 142r.b.; para os outros dois sermões faz-se referência ao
Ms. Milano Ambr. F. 57 sup., ff. 171 r.b.- 174r.a.; Tiago de Varazze, D om. /l post f est. Trin.
Sermo li, in Sermones de tempore cit. , ff. 78v.a.-79r.a. ; G. Peraldo, lJe erudirione cit. , pp.
463-64; Vicente ele Beauvais, De eruditione c it. , pp. 197-206; Paulino Mcnorita (t 1344),
Trattaro de regimine rectoris, ed. A. Mussafia , Viena-F lorença, 1868, pp. 73-74.
3. Durando de Champagne, Spec11l11111 dominarum cit., ff. l 32r. e 180v.
4. G. Duby, Le cheva/ier, lafemme et le prêtre: /e mariage dons la Prance f éodale,
Paris, Hache11e, 1982.
5. Ph. Delhaye, «Le dossier anti-malrimonial ele l' Ad versus Jovinianum e1 son
influence sur quelques écrits latins du XJI< siecle», in Medieval Studies, X III ( 1951), pp.
65 -86.
A boa esp osa 183
r, l 11111usco Ximenes , Lo libre de les do11es cit., I, pp. 11 7-44; Dinis o Cartuxo, De 45. Franc isco de Barbciino, Reggi111e1110, c it., pp. 225, 227, 230.
11 l,11• 1·11,1 1·rmi11x . c il., p. 70; Que rubim de Siena (de Espoleto), Rego/e dei/a vira 46. Conrado de Megenberg, Yco110111ica, cit., pp. 73-78.
,r11,,,,.,,111t,•, Bo lonha, 1888, pp. 28-32. 47. Tiago de Varaz ze, Chro11ica, cit., pp. 205-6.
1 l1lhl·110 ele Tournai, Ad co11i11garas. Sermo 1, in Sermo11es, cit., Ms., ff. 171 v.a.- 48. Tomás de Aquino, Se111. /ibri Erhicorum, cit., p. 469.
l/ '1 li
49. Alberto Magno, Super Erhica , c it., p. 665; Tomás de Aquino, Summa T/Jeologica,
H 1111)!11 d ' Vurazze, Dom. li posr fest . Trin. Sermo li, in Sermones, cit. , f. 78v.a. 11, li, q . 26, a.10; J. Buridan, Quaestiones in libras Ethicorum, cit., pp. 757-60.
•J Nln1l1111 Oresmo, Le livre de Yconomique d' Arisrore, ed. A. D. Menut, in Tra11- 50. Tiago de Varazze, Dom. XVI posrfest. Trin. Sermo Ili, in Sermones, cit. , f. l l 4 r. a.
'" 1111111 "' tlw /\111erica11 P/rilosophical Society. XLV ][ ( 1957), p. 844.
5 1. Tiago de Varazze, Dom . i1?{ra ocr. Epiph. Sermo I, in Sermones, c it., f. l2v. b.;
1(1 l l11111bc rto de Romans , ln so/emnibus conviviis nuptiarum, in De eruditione, cit., G ilberto de Tournai , Ad coniugaras. Sermo Ili , in Sermones, cit., f. l40 v.a.
52. Filipe de Nov<U·a, Les quarre âges, cit., p. 20.
l'I' ~ 111 10.
l l /\ lhl' l 10 ele Saxe, Expositio librorum Economicorum, ed. V. Beltrán de Heredia, 53. Gi lbe1to de Toumai, Ad ado/esce111es. Sermo I, in Sermones, cit. , f. l 79v.a.
111 l ,1 t 1,•11('/r1 to111i,1·ta , XL Vl ( 1932), pp. 327-28. 54. Franc isco de Barberino, Reggimento, c it., p . 133.
1' ( '11~1i11a ele Pis,1110, Le Trésor, cit., ff. 15r.-17r. 55. Tomás de Aquino, Exposirio in 011111es S. Pauli Epistolas, in Opera Omnia, XIII,
1 1 <111111:rlo de Tournai, Ad coniugaras. Sermo ll, in Sermones, e it., Ms., ff. 173v.a.- Parma, Fiaecadori, 1862, p. 201.
56. Cristina de Pisano, Le Trésor, cit., ff. 30r.-32r., lOOv., 120r.v., 128v.
l /lv h
11 ( i. l'crn ldo, S11111ma, ff. 70va.-7 lrb. 57. G ilberto de To urna i, Ad coniugaras. Sermo Ili, in Ser111011es, cit. f. 141 v.b.
1 l 1111.\0 d1: Varazze, Chro11ica, pp. 195-98. 58. Ptolomeu de Luca (t 1326-27), De regimi11e p ri11cipu111 ad regem Cypri, in
1r, C1i lhc 110 de Tournai, /\d co11iugatas. Sermo li, in Sermones, Ms., f. l 74rb. S. Tomás de Aquino Opera Om11ia, XVI, Panna, Ficcadori, 1864, p . 275.
11 /\Ih •110 Mag no, Super Erhica, ed. W. Kübel, in Opera Omnia, XIV, 2, Münster, 59. N. Orcsmo, Le livre de Yconomique, cit., p. 827.
l 1JH/, p. r, Ili: Tomás de Aquino, Se111e11ria libri Erhicorum, in Opera Omnia iussu Leo11is 60. G ilberto de Tourna i, Ad coniugaras. Ser1110 Ili, in Sermones, cit., f. 142r.a.
\Ili ,•tflft1, XI.V II , 2 , Roma, S. Sabina, 1969, p. 489. 6 1. Ibidem. f. 142r.a .-b.
1H. lo o fluridan, Quaesriones in decem libras Er/ricorum Arisrotelis ad Nicomachum, 62. G. P eraldo, De erudirione, cit., p. 464; Vicente de Beauvais, De erudirione, cit.,
11 lcucl , 11. ('ripps, 1637, p. 762.
pp. 203-6.
111 ( '1i~1i11a de Pisano, Le Trésor, cit. , ff. 26v.-27r. 63. Tiago de Varazze, Dom. II posr fesr. Trin. Sermo li, in Sermones, cit., f. 78v.b.
'O / 1• Mé11axicr c it., 1, pp. 96- 168. 64. Cfr. Ph . .J. Jones, « F lo re ntine Families anel Florentine Diaries in the Fou11eenth
11 '1'1111!<> de V itry, Ad coniugatos. Sermo li, in Sermones, c it., f. 137v.b. Century», in S1udies i11 Ira/ian Medieval Hisrory, o rg. E. M. Jamison, Roma, 1956, pp.
<lllhc rlo de Tuurnai , De decem praecepris Decalogi. Sermo li, in Sermo11es, cit., 183-205; F. Pezzarossa, «La memorialistica fiorentina tra Med ioevo e Rinascimento .
1 Rassegna di studi e testi », in Lellere ira/iane, 1979, pp. 96- 138.
' 11v 11 11.
1) l'i11110 dc Varazze, Dom. XX posrfesr. Trin. Sermo II, in Sermones, cit., f. 123v.b. 65. Francisco Bá rbaro, De re uxoria /iber, ed. A. Gnesotto, in Alli e mem. dei/a R.
1 1 <ili de Roma, De regimine, cit. , pp. 248-49. Accademia di Se. Lell. e Arti in Padova, n. s., XXXII, 1915-l 6, pp. 6- 105; João Campano,
·~ 1'0111tls de Aq ui no, Swnma contra Ge111iles, lll, 123; A lberto de Saxe, Exposirio De dignitate matri111011ii, in Opera Omnia, Ro ma, por Eucharium Si lber, 1495, rep. anast.
/1/•1 ,,, 11111 Fr·r1110111icm·11111 c it., p. 323; N. Oresmo, Le livre de Yconomique cit. , p. 837; J. Ha in, Me isenheim, 1969; Mateus Palmieri, Vira civi/e, ed. G . Belloni, F lorença, Sansoni ,
111111<11111, (}111tr•.1·1io11es i11 oc/o /ibros Polilicorum Arisrotelis, Oxford, 1640, p. 85. l 982; Leão Baptista Alberti, I libri dei/a famiglia, org. R. Romano e A. Tenenti, Turim,
•r, l'o mrt, ele C hobham , Sw11111a confessorum, ed. F. Broornfield, Lovaina-Paiis, Ei nandi, 1969; António lvani, Dei governo dei/a famiglia civile, Génova, 1872.
N11tll\'1· !111•1IN, 1968, p. 375. 66. Bernardino de Siena, Sermo XIII. De marrimonio regulara, inordinaro er separato,
'/ 1',·tho Duhois. De recuperarione rerre saneie, ed. Ch.-V. Langlois, Paris, A. Picarei, in Sermones impe,fecri cit., p. 59; Querubim de Espoleto, Rego/e. cit., pp. 18-22; D inis
o Cartuxo, De /audab. vira coniug. cit., p. 70.
1"'' 1, 1'1'·
1H
,o52.
l'lllflO d · Vi1ry, Ad co11i11garos. Sermo I , in Sernwnes, cit., f. 135r.b.; Robe1to de 67. J . Dominici, Rego/a cit. , pp. 70-72.
111111111, /11• 111111ri111011io, cit., pp. 199-200; G. Peraldo, De erudirione, cit., p. 443. 68. G. Hasenohr, «La vie quotidienne de la femme vue p<LI· l'Eglise: l'enseig nement
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l'I' I' lol
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1' l h111v1 11111111 de 13ugno regio, Comm. in Sem., in Opera Om11ia, cit., IV, p. 678. lJ ni vcrs ity of Ch icago Press, 1984, pp. 19-50.
11 e Ili,, 1111111• 'l'ou11111i. !)e sacra111e1110 111arri111011ii. Sermo, in Sermo11es, cit. , f. 2 17r.; 78. D. Hcrlihy, «Did Women Have a Rcnaissance? A Reconsideration», in Medievalia
1111,111 11,I \11111111,1111·aNlirn11ri11111 c it., lf, f. 15v.a; Francisco de Barberino, Reggimento, 1•1 ll111111111isrica, n.s., XVI, 1985, pp. 1-22.
11 I' lll'l
11 11111 ,1111111 cl1• <'humpag ne, Specu/11111 domi11arum, cit., ff. 11 v.- 12r.
As modas femininas
e o seu controlo
Diane Owen Hughes
li 1\os. Do mesmo modo, do outro lado do Canal, os primeiros con- de vo pel» - para prender às guarnições dos vestidos, ou pelo
1wlos sumptuários medievais, fixados por Carlos Magno e pelo seu menos assim pretendia o autor de um rondó contemporâneo. A nova
pk•doso filho, não prestavam especial atenção ao vestuário ou à predominância das mulheres no mundo da moda exigia um ajus-
ust ·ntação das mulheres. tamento dos velhos argumentos. Dado que no passado os homens
Também a revolução da moda na Alta Idade Média não foi tinham sido intimados por adoptarem as modas femininas, agora as
l11kialmente entendida como uma conspiração feminina. mulheres seriam castigadas por usarem vestuário masculino: por se
pavonearem nas ruas de Milão, no século XIV, como Amazonas,
com cintos dourados e sapatos ponteagudos, símbolos dos seus
A medida que o renascimento económico tomava os bens de corações marciais e masculinos; ou, em Inglaterra, por andarem a
l11xo genericamente mais disponíveis e que melhores comunicações cavalo em torneios, vestidas com túnicas bicolores com adagas no
l'Slimulavam a propagação da moda, o novo brilho e forma do ves- cinto, parecendo mais participantes do que espectadoras. Gradual-
t11drio fe minino começaram certamente a chamar a atenção. O que mente, a responsabilidade pela interpretação e transmissão da moda
utrni u as críticas foi a sua adopção pelos homens. Os cronistas deslocou-se igualmente para as mulheres. Os cronistas ingleses assi-
111011ásticos do século XII encontraram sinais de declínio moral não nalariam que os estilos flamengo, francês e da Europa Central, que
1111s roupas alongadas e justas das mulheres, mas antes nos laços pareciam exercer uma influência corruptora na corte dos séculos
11p ·rtados e nas caudas exageradas dos homens, cujas cabeleiras XIV-XV, tinham aí sido introduzidos pelas consortes estrangeiras
l'IIÍdas e andar afectado completavam uma ameaça travestida aos dos seus reis. No século XVI, em todo o lado parecia fácil encontnu·
111odelos de um passado marcial. Mas eles apontavam igualmente a a origem de um estilo espanhol - que se tomara há pouco domi-
Invenção de certas modas particularmente odiosas, criadas directa- nante - no bando de princesas enviadas de Castela para casarem no
111 ·n te para a vaidade masculina. Orderico Vital, por exemplo, desan- estrangeiro. Quando Catarina de Aragão se dirigia a Londres para o /\ moda não f'oi apenas uma
qucslilo feminina. O homem esteve
l ' OLI a nova moda dos sapatos compridos e ponteagudos que atribuiu seu casamento, os ingleses imediatamente repararam que o seu traje larnbém sob os seus desígnios. O da
11 l<'oulque de Anjou, que os tinha desenhado para esconder a forma reflectia «a estranha diversidade do vestuário do país de Espanha»3. ilustração está calçado com uns
dos seus pés deformados e para dissimular as <<tubera, quae vulgo De forma mais crítica, os franceses censuravam Leonor de Castela sapatos extremamente ponteagudos.
Miniatura do Ojicium Beatae Mariae
vocttntur uniones»* 2 • não só por ela usar modas espanholas em França, mas também por Vir1;inis, século XV . Madrid ,
ontudo, um século mais tarde, o olhar dos moralistas tinha-se tentar fazer com que o próprio rei as adoptasse. Nessa altura as Biblioteca Naciona l.
virudo para as mulheres e para o 'seu apetite pela moda, cada vez mulheres já se tinham tornado a personificação visual de uma varieta.1·
111:1is insaciável. A caracterização de Margarida da Provença como vestium que simbolizava a fragmentação política e a confusão mora l,
11111a rainha ávida pela moda, que tentou persuadir um Luís IX relu- visto que o seu traje parecia ofuscar fronteiras específicas de nação,
tuntc a adaptar um vestuário ostentatório mais condizente com o de género e mesmo de espécie:
1wu estatuto real, é um exemplo disso. Se a história de Roberto de
Sor·bon serviu para exemplificar o célebre ascetismo do rei, ela pres- Veston vi.llani e cappe alla francesca
11pôs também um novo entendimento das mulheres como pavões Cinte nel messo ali 'uso mascolino,
till•çtados. Porque aparentemente Margarida só desistiu quando, em Le punte grande alla foggia tedesca,
Polite e bianche quanto un ermellino.
ltl>t·u, o marido lhe pediu que usasse vestidos mais humildes - um
ll'to de renúncia de que as mulheres se estavam a tomar cada vez Portan a lor cappucci le visere
11111is incapazes. Tirando partido da ânsia das mulheres pela moda e E .manteJline a la cavalleresca
E capuzoli, e strette all a ventriere
ll'llrtsl'ormando-a num tema misógino, o Roman de la rose tornou
Co petti vaghi all guisa inghilesca* 4 •
1k /' rico e promoveu um apetite que estava já em vias de ganhar
11Í~1 vasta audiência europeia, à medida que ameaçava devorar o No entanto, dificilmente se pode defender que as mulheres
11111, ulo dos homens. Não contentes com vestidos debruados a pele, tivessem monopolizado os produtos da importante indústria euro-
111l lt1s l'inas de lã, sapatos de biqueira ponteaguda, ricos mantos e
1•11111plicados penteados, as vorazes maníacas da moda do século
11111111,invam por um bocado de carne do seu amante-«un tronson * «Vestem à vilã com capas à frru1cesa/Justas na cintura à maneira masculina,/
Pontas grandes à guisa alemã/Delicadas e brancas como um arminho.
Trazem nos seus capuzes viseiras/E mantéis à cavaleiro/Com carapuços, e apertadas
"' """l'I ·scCnc ias a que vulgrumente se chama joanetes» (N.R.). na cinta/Com seios indefinidos à moda inglesa» (N.R.).
188 As nornrns do mntrolo A
lksfllc s11n1p111nso cln séc11lo X V .
l,11xo, osll'IIIII\' o e 11rofust o Vestuário, consumo e estatuto da mu Ih ·r
011111111,1111d, ('011111111H pulcla de
1•011•s I IIIH'H 1r11çu111-s • túnicas
1111111m·111111rtt irn,s ,. bicolores, grandes As transformações económicas e sociais dos séculos 1 1• 11
1·1111cl11ij, 11111111111s perdidas, capas de tinham estado intimamente ligadas aos tecidos, que eram 111111 "
111111l11hn, h,m·ndm d· metais preciosos
1•111111wc1clos t·on1gemas, bordados, uma mercadoria essencial do comércio nos mercados europ u 1111
11111111 IIN 1111110s ' 1011cados de todo o crescimento e um produto industrial básico das suas nóveis ·id111h ,
tipo soh1l' us cabeleiras entrançadas.
( lh 1·11v11los, csmcradamentc ajaezados, mas também um meio primordial de patentear as distinçõ s ck 1111111
s11pm111111 lllo rica carga. Estes nova sociedade. Os panos ricos, muitas vezes tecidos n 01 i1,111i
sí111lmlo~de: distinção social e política que tinham anteriormente servido como ícone estático de pod1•1 1111
t•xpol11w111 magnificamente o ambiente
nkµil' e descontraído do cortejo. de privilégio, estavam agora localmente disponíveis para l'l'Vt 111
Mi111111ura de As Muito Ricas Horas uma miríade de mudanças sociais provocadas pela reor l11tl:1111,111 1
tio n11q111• de Berry, de Paul de
l.1 111bourg (m. 1416). Chantilly, política e económica da Alta Idade Média. Os tecidos, be111 r 1>11111 "
M11scu Condé. vestuário a partir deles produzido, depressa se tornaram Unlll 11111 1t i
proeminente do estatuto social e um sinal de mobilidade ·inl, 111 111
como um meio de moldar distinções sociais e políticas. ado cp11 11
nova riqueza permitia o investimento em vestuário, este adq11i1111 1111 1
novo significado. Na corte, os tecidos fluíam das mãos til' 111 ,
p1incipes, não só para manifestar favor e hierarquia, mas 1111111 11 111
para esbater velhas fronteiras e para afirmar novas. Já se ar u111111111111
que a lei sumptuária publicada por Filipe o Belo em 129•1, q1 1>
proibia à burguesia a indumentária distintiva da aristocraciu, 1 111111
realidade uma concessão à nobreza ressentida com a prole ·i,;11111!1 1
a essa classe influente e versátil. Na corte quatrocentista d · 1~1 11 11 11
de Anjou, onde a oferta e o uso de tecidos constituía desd li 1111111 11
um sinal da protecção e da estima do rei, uma mudança, vis v, 111111
volta de 1470, distinguiu a linhagem real das outras, tornando 1 , lt 1
peia da moda de luxo. Em 1351, uma princesa francesa podia sivos dela certos tecidos e trajes. Nas cidades, os governos t11l·1111111 1
exigir para o seu casamento um vestido do veludo mais encar- querendo dar um testemunho visual da nova ordem política, prnil!11 1111 1
nado «brodee a pluss et divers ouvrages de pedes grosses et me- coroas, caudas, tecidos de samito e de metais preciosos, gun1111,111
nues»* 5 , mas o delfim seu irmão excedia-a, com uma capa listrada de arminho e outras exibições da moda aristocrática. A aus 111'111h
de pano tecido com fios de ouro e de prata e bordada pelo menos fronteiras sociais fixas associou-se aí, no entanto, à dispo11ihtl1tl 11h
com duzentas pérolas grandes. E também não é claro que apenas as de tecidos para provocar um tumulto estilístico. tão ameaçado, p 1111
mulheres participassem na corrida à moda. Se reagiam com prazer a estabilidade social que muitas cidades começaram' a regulwnl1111 111
às tentações do estrangeiro, não eram muito diferentes dos j ovens através de infindáveis leis sumptuárias, o vestuário dos seus ·id11d 11 1
cidadãos genoveses que apareciam na corte de Milão de chapéu e·' desde o nascimento até à cova.
botas alemãs , cinto catalão, gibão italiano e manto de estilo bor-
gonhês ,talhado em tecido inglês. Na realidade, os inventários de As mulheres mostraram-se pai.ticularmente vulneráveis t 11111d1 \ 11111
·-\ roupas sugerem que na Roma renascentista eram os homens que lação social que o vestuário permitia, visto que os s ' 11s f 111, 11
estavam mais firmemente à la mode. Então, por que razão acabou visíveis ajudavam a fixar e a solidificar uma identidad so ·i11 I 111•1·1
o fardo da moda por pesar tão duramente sobre os ombros das sariamente mais fluida do que a dos homens que lhe tin h11111 d111 lll
mulheres? forma. Uma mudança, que ocoffeu quase simultaneam nll' 1·1u11 11
aumento da produção de tecidos nos séculos XII e Xlll , n · 1111111111 11
* «bordado com muitos e diversos enfeites de pérolas grandes e pequenas» ambiguidade da sua posição social e contribuiu cons ' qu1·11l11111•111 1
(N.T.). para a sua dependência em relação às distinções e dcf'ini ç l' v1• 11
1110 A 111111111 d11,1111troln 1111
mentárias: o desenvolvimento de uma ideologia patrilinear de des- que se tomava ainda mais exaustiva pelas invenções de unrn it 11 l11•
cendência através da linha masculina. Concebida para preservar a triada moda em expansão. Não surpreende por isso que os ·as:111 w11
riqueza e a posição social das famílias, limitando direitos sobre os tos tenham sido dos primeiros acontecimentos sumptuári s 11 1•1, 111
seus recursos, a organização patrilinear tomou a esposa uma estranha, controlados pela lei urbana. Se em algumas cidades alemã us p, 1'111 li,
diferenciando-a em termos linhagísticos não só do seu marido mas oferecidas ao noivo eram suficientemente valiosas para qu 1111 11
também, num certo sentido, dos filhos que deu à luz para ele e para cessem igualmente atenção e regulamentação sumptuária, a Sul d11
a sua linhagem. A sua incorporação visual tomou-se assim mais Alpes tudo se focaliza na noiva. Poucas podiam esperar riv11 l1 1 11
necessária como forma de apagar tal distinção durante a vigência do com o extraordinário enxoval, repleto de túnicas de cintilant t spl1 11
casamento, para criar uma ilusão de completa união conjugal. Uma dor - uma das quais bordada com 8966 pérolas e 70 onças d • p1 11111
lista de trajes excepcional, registada em Florença em 1343 no sen- - que Hipólita Sforza levou para o seu casamento com Afo111..n d1
tido de poderem continuar a ser usados em contravenção a uma lei Aragão em 1465. No entanto, mesmo as mulheres burguesas ntt 11v11111
sumptuária recentemente promulgada, dá-nos um raro vislumbre nas casas de seus maridos com várias mudas de vestido , m t111i 1 1
de um tal processo, tal como os trajes apropriados das esposas da mantos, numerosos chapéus e véus, pares de chinelos s11p 11 11 ,
família Albizzi formam um padrão patrilinear bem definido numa ornatos de joalharia, bem como bolsas e uma infinidade d m·1• 11
miríade de cores urbanas. Mantos de um branco luminoso bordados rios menores. Dado que a importância do casamento fazia 0111 q111
com heras e uvas vennel has encobriam a sua identidade de origem aumentasse o significado social dos enxovais, estes cresc ' 1"11111 1 111
transformando esposas de várias paites da cidade em representantes tamanho e complexidade. O seu valor crescente começou a s11pl 111
visuais do clã Albizzi. De modo menos emblemático, os presentes taro dinheiro dado em dote, suscitando críticas e depois lin1lt 1, 11 -
J lá numerosas notícias literárias de de tecidos e jóias que os maridos dão às esposas por ocasião do legislativas. O enxoval incrustado de jóias de Hipólita Sforzu 11•1111
que a guerra contra a traça era uma
actividade quotidiana das famíl ias casamento devem ser vistos não como meras contrapartidas sump- sentara um terço do seu enorme dote de 200.000 florins, pmp111 ~ 1111
com possibilidades de adq uirir roupas tuárias do enxoval, mas como um meio pelo qual um marido pode que se tomou um padrão para muitos legisladores.
luxuosas. Estas conservam-se durante
muitos anos, e inclusivamente faziam
pretender vestir a nudez da sua Griselda colocando sobre ela um
pm1e do dote. Na imagem, uma dama símbolo evidente dos seus direitos. Deste ponto de vista, as rainhas
veste um vestido de gala. Pormenor de que insistiam em arvorar as modas da sua terra de origem pareciam
um fresco anónimo do século XV. Enquanto o d.i nheiro do dote garantia o casamento e sus1t•111 1 1
Pádua, Palácio da Razão, parte sul. rejeitar ao mesmo tempo um selo conjugal e um selo nacional. Do a descendência, os tecidos do enxoval podiam desfazer-s · 1·111 1111
mesmo modo, as mulheres burguesas que mudavam de vestuário - um contraste intensificado sob o reinado da moda. As 11 111111• 1
segundo os caprichos da moda ameaçavam desenvolver uma per- com aberturas longitudinais e os vestidos listrados ou bicoloi1 1h,
sonalidade que desafiava a autoridade dos maridos e enfraquecia a final do século XIV eram de natureza diferente das longas e 11111.1
identidade colectiva de uma linhagem . e mangas criticadas nas primeiras leis sumptuárias visto qlll' 11 1111
clai·amente consumiam o tecido de que eram feitos. Ess • tlp11 1h
vestuário, cheio de aberturas ou constituído por tiras de te ·ido, 1111 1
O enxoval e o dote Ao mesmo tempo; o casamento toma-se um rito social ainda podia ser facilmente descosido e refeito para as futuras ·n11; 1
mais importante, um instrumento fundamental de reconstrução Este desperdício foi acelerado pelo desenvolvimento da moda dtt1 111111
social e política. Em tal contexto, a insistência acrescida da Igreja o Renascimento. Um dos seus principais cronistas, o es ·iit111 1h
na monogamia reforçava incontestavelmente a posição da noivai e moda Césai· Vecellio, desesperou de alguma vez vir a escr 'w1 111 11
adicionava também um sentido religioso à união civil. O enxoval inventário completo dos trajes femininos, visto que «sono n 1111ti 1
trazido e exposto nesta cerimónia pública era um sinal da honra que soggeti alla mutation e variabili piu che le forme della lunu... /\ 1111
a noiva trazia da sua casa natal, as roupas que recebia do rnaiido um piu tosto si deve temere, che mentre io sto scrivendo una l'opp 111
penhor da honra que receberia na sua nova casa. Apenas o funeral esse non dieno dimano a un'altra, onde me sia impossibiJe ablm 1n 1111 1
podia rivalizar com o casamento como foco de atenção da comunidade il tutto»* 6• A extrema variabilidade da moda datava o cnxov111 1
e de exibição sumptuária; e os casamentos, como qualquer leitor de tornava o vestuário num bem menos durável, que não passuv11 111
Mauss compreenderá, estimulavam uma competição em tomo dos
presentes, pois ambos os lados lutavam para dominar e retirar bene-
fícios sociais mais amplos de tal desafio. A noiva, recompensa final * «eles são muito sujeitos à m udança e mais variáveis que as formas du 1 1111
mesmo de temer que enquanto eu descrevo um corte eles adaptem outro, de 11 111111•11111111•
neste torneio de valores, era igualmente a beneficiária de uma troca me será impossível abarcar o seu conjunto» (N.T .).
As modas femininas e o seu controlo 193
11 111 11 nente para as filhas mas era rapidamente abandonado às criadas, der, evidenciava. Se, como propuseram alguns antropólogos, uma
, 11jo ri co vestuário introduzia consequentemente confusões de hie- sexualidade socialmente perigosa - geralmente associada com a
,11,quia e suscitava por isso acerbas sátiras. Se a necessidade de se carne, a decomposição e as mulheres - pode ser oposta a uma
111111u.:1crem às exigências cada vez mais caprichosas da moda enco- fertilidade ancestral celebrada através da linha masculina, a força
1 1j11vn as mulheres a incluir nos seus enxovais, entre os vestidos da destrutiva da moda tomou as mulheres do Renascimento particu-
111odn, peças de tecido não cortado, ela conduzia igualmente os larmente susceptíveis de uma tal análise.
11111ritlos a uma legislação para banir as novas modas de rufas, cor- O carácter perecível da moda fortaleceu igualmente uma relação
p,•1•s e mangas que ameaçavam consumir a riqueza da linhagem entre as mulheres e a corruptibilidade da carne. Praticamente a partir
d11r11nle a vigência do casamento, se eles tivessem de submeter-se à dos seus começos, a moda serviu para acentuar um contraste religioso
pr ·ssão social e manter as esposas à la mode. entre o espírito puro e eterno e a carne corrupta e mortal. Numa das
Dado que a moda se tomou um factor tão importante na defi- primeiras vezes que ambos se confrontam no âmbito da literatura,
11i,1io social das mulheres, os seus atributos colaram-se à sua pele. vemos três viventes serem levados à compreensão do espiritual, ao
A descrição feita por Vecellio de uma moda tão mutável como a encontrarem um cadáver cujas marcas exteriores de dignidade se
l ,uu acompanha a sua observação da «instabilità et amore della esvaneciam ao mesmo tempo que a sua carne, e perguntarem: «Ubi
vnrictà, che regna nelle donne»* 7 • À medida que as tesouras da pulchra vestimenta/Cum auratis cingulis/Digitorum ornamenta/Cum
111oda transfo1mavam os tecidos de mercadoria de produção e troca gemmalis anulis?»* 9 • A esta enumeração do vestuário, os elogi s
i'lll bens sumptuários , elas pareciam afastar também as mulheres fúnebres das confrarias acrescentarão posteriormente mantos, chapéus
di.: um sistema de troca reprodutivo. Como o vestuário que usavam, e outros ornamentos à moda, que apodrecem - ao mesmo tempo
11s mulheres tomaram-se ícones sumptuários e estáticos, que se que os olhos, a carne e os cabelos - na desordem do túmulo. A
i'Sgotavam no seu valor social, e, portanto, destruidoras de um sis- moda alimentou uma imaginação macabra que via por debaixo cios O excesso ele e legância na
1,·ma de reprodução demográfica e social. O apelo de Florença a ouropéis consumptivos a carne corruptível e que negava o seu apa- indumentária fe minina chegou a
simbolizar a natureza transitória dos
novos controlos sumptuários feito em 1433, depois de quase um rente poder de restauração e de renovação ao entrever em cada nov be ns te rrenos. Não é de estranhar que
1•1·tilo de epidemias ter elevado a consciência demográfica, quase padrão uma semente de decadência. Pelo século XV - acompa- esta Sa lomé, mulhe r perversa por
111ili:1.a estes mesmos tennos para atacar as mulheres elegantes da anlo nomásia, e m lugar de exibir a
nhando a inflação da moda - as mulheres tinham já assumido um nudez das suas representações
l'idndc, que lugar central nas representações populares do macabro, como acon- lradicionais a pa reça sumptuosa e
tece num Triunfo da Morte em Palermo. Nele, as ricas jóias, os ves- profusame nte ataviada. Ponnenor do
.. 1111111cmores quod viros portant qui ab ipsis hominibus procreantur ipse Festim de !/erodes, século XV.
q111· tumq uam sacculum semen naturale petfectum ipsorum virorum retinent tidos e os notáveis penteados de um grupo de mulheres em pose Barcelona, Museu ele Arte da
111 lto rn ines fiant, et quod non est nature conforme ut tanti s sumptuosis ociosa formam o mais estático e acentuado dos contrastes com a 'a1ulu11ha.
0111u111cntis se homent cum ipsi homines propter hoc desstant a matrimonii fúria medonha e súbita da morte. Em encontros mais íntimos, o traje
1·opu la propter incornportabiles sumptus, et sic ipsorum hominum natura contribuía frequentemente para a erotização do macabro. A imagem
clt·l'i<:i t, c um femine facte sint ad replendam liberis civitatem et ad castitatem impressionante de Nicolau Manuel Deutsch, de 1517, retrata um
111 mu trimonio servandam et non ad sumptus argenti auri vestium atque
tema bastante comum: o abraço da morte, representada como um
~w111111arum »** 8.
cadáver em decomposição, a uma jovem mulher. Deutsch intensifica
Atribuindo a necessidade de tal legislação à «barbarem et indo- o seu elemento erótico, no entanto, representando-a com um vestido
111ilatam feminarum bestialitatem»* **, os Florentinos chamavam a elegante e convidativo, sob cujas saias soerguidas a morte insere os
11ll' 11ção para uma sexualidade carnal que o traje, em vez de escon- seus dedos ossudos. O seu traje sugere uma sexualidade que não só
convida ao beijo da morte mas também excita um desejo masculino
• «a instabilidade e amor da variedade que reinam entre as mulheres» (N.T.) . que não produzirá qualquer fruto. As mulheres vestidas à moda -
.... « ... esquecendo que elas transportam homens procriados por homens, elas mesmas «sepulcros caiados, cheios de ossos podres», como as descreve um
•1111' l 0 1110 peq ue nos sacos retêm a semente natural e perfe ita dos seus esposos, p ara que
0
As !11111111, d11 d11N t1 rn;íl11 l'X ihcm que por natureza estão apenas cobertos com um vestuário de pclt·s, M111
1011p111,11•11 111111111 clls1ii1111,, mas tarde, à medida que o seu orgulho cresceu, os homens passaram 11 11 111
i111111h111'111t• v11h111111s11s e elegantes, roupas feitas de lã. Num terceiro momento, à medida que alimcntar11n1 1'11d11
111111 p1111111•11011•s de µ11111dc vez mais o prazer carnal, usaram roupas feitas a partir das plantas tln 11,1111
11 lh111111r11111 os 1•s1ud11dos contrastes
d1• 1·111 , "" cl11\11·11~11•s extravagantes nomeadamente o linho, e em quarto lugar roupas de seda, que são foh1i(·111 ht
cl11N 11111111111N, 11 1·squis110 penteado a partir das entranhas de vermes - e todas estas espécies de vestu 1in 1111
1111 cl1111111 <111 l'Mlllt'nla e o toucado agora usadas mais por vanglória e pompa mundana do que por nc ·ssld111h
h1n11 l11 cl11 11111111. /\mhas entretêm
o 111'111 t'llid1111do dos seus falcões. da natureza ... e seguramente, acima de tudo, para excitar a luxúl'i11 1i.
l'1111111·11w· de 11111 rrcsco anónimo do
N1'1 ·11h1 XV. 'l'rcnlo, Castelo do Bom
( '1111,l'lho. Torre da Águia. Se o vestuário foi o resultado e o sinal do pecado para tod 1 1 , '1
humanidade, haveria de ser um símbolo ainda muito mais p dt·rn 11 li ,,,
·ra induzido pela vaidade mais do que pela luxúria, os pregadores Que vós, as mulheres, vos vestireis», diz ele,
mendicantes posteriores consideravam-no como um pecado mortal. «E nada de tranças e de pedras preciosas,
Nas suas criativas mãos, a moda viria a tomar-se uma chave para a Como as pérolas, nem ouro, nem ricas roupas».
Por nada deste mundo me submeterei
compreensão da crise social e moral da época. Bernardino de Siena Ao teu texto ou às ruas normas 15 •
e os seus discípulos franciscanos, pregando num contexto de focos
de perturbação gerados pela peste e sob a ameaça global do avanço Parece ter sido esta a resposta das mulheres da Flandres e do
lurco no século XV, viu no vestuário das mulheres uma causa pri- Artois que tinham sido forçadas a renunciar aos seus penteados
mordial do declínio da Cristandade. Em primeiro lugar, argumen- exageradamente altos, na esteira de um périplo de pregação feito em
tavam, as mulheres apostavam a tal ponto na moda que os casamentos 1428 pelo monge Tomás Couette. Uma vez esfriado o fogo da sua
eram retardados até que as peças do enxoval, cada vez mais volumoso, retórica, elas abandonaram os simples gorros camponeses que ele
pudessem ser compradas e pagas, privando assim a sociedade dos recomendara e passaram a usar penteados ainda mais altos do que
nascimentos de que necessitava para superar o declínio demográ- antes. Privilegiar estas respostas individuais, no entanto, é ignorar
fi co. Pior ainda, a falta de opo1tunidades de casamento fomentava a peso cumulativo do desafio mendicante, lançado no decurso de
perversão da sexualidade, desviando-a para uma esterilidade sodo- várias gerações em missões que se estenderam da Sicília à Flandr s,
111 ila: «Chi puõ fare tante ispese?»*, perguntava Bernardino. «E per da,Espanha à Hungria e à Dalmácia - num quadro muitas vezes
questo i popoli mancano e la sottomia multiplica»** 14 • Retrocedendo iluminado por grandes fogueiras de vaidades em que se consumiam,
na própria linha evolutiva da criação, o vestuário decaiu no sentido em rituais de purificação pública, as futilidades da moda contrn as
do ouro, prata e pedras preciosas, que eram incorporados nos ves- quais os frades vituperavam.
tidos do século XV, assinalando e reproduzindo, assim, de forma
lilcral, a esterilidade desse passado geológico.
E à medida que a sociedade cristã se via diminuída pela moda, Os governos monárquicos foram provavelmente os m nos O desafio mendicante
argumentavam· os frades, os Judeus enriqueciam, porque os homens receptivos às mudanças que os frades reclamavam. Em Aragão n
recorriam a usurários judeus para alimentarem a ânsia de moda das própria rainha poderá ter sido tão tocada pelos seus sermões qu
suas esposas e filhas. Esta associação silenciosa entre as mulheres mandou encurtar as caudas dos seur, vestidos, como exemplo para
obcecadas pela moda e os prestamistas judeus representava a per- os seus súbditos, mas um tal exemplo na corte raramente levou à
versão final da ordem natural. Não só porque os Judeus se tornavam mudança da legislação para todo um reino. As considerações hie-
, icos à custa dos Cristãos, mas porque o curso da fertilidade natural rárquicas faziam do vestuário uma marca das fronteiras sociais
•ra desse modo invertido. Dado que as dispendiosas modas femininas demasiado valiosa para permitir a sua redefinição de acordo com
t• ram um obstáculo à reprodução humana, elas permitiam também
ao usurário reproduzir dinheiro de formas que qualquer aristotélico
considerava não naturais. Esse mundo de ouro e de pedra, que repre- Os cnbclos t m uma importante
scnlava simultaneamente o cume da moda e o abismo da humani- cnrgn cxprcssivu: os louros são
consid ·rudos o cfinonc ideal da beleza
dnde, acabava por concretizar assim a sua supremacia. e os ru ivos t rn conotações negativas.
Somos tentados a rejeitar uma interpretação social e moral tão O cabelo solto rc111c1c pura o erotismo
Hl ria da moda, do mesmo modo que a ÍlTepreensíve l «Mulher de e, cm gcrul, os textos doutrinais
recorncndum um penteado composto
Bath» de Chaucer rebatia as admoestações eclesiásticas: e sóbrio. Para as mulheres, se não
e ram muito jovens ou prost itutas, o
Tu dizes também que se nós nos enfeitamos que cstuvu mais ele acordo com as
Com roupas e com preciosos atavios, conveni(lncius era usar o cabelo
apanhado cm !ranças, e as casadas
É com perigo da nossa castidade, deviam além disso cobri-lo com uma
~. miserável, tens que reforçar a tua posição touca. Esquerda: pormenor de um
Dizendo estas palavras em nome do Apóstolo: capitel do século XV. Segóvia,
«É com um traje feito de castidade e de pudor Mosteiro de Santa Maria Real de
Nieva, Claustro. Direita: pormenor de
um capiiel do século XII. Barcelona,
• .. ()ucm pode fazer tantas despesas?» (N.T.). Moste iro de Santa Maria do Estany,
u ,,n por isso a população diminui e a sodomia aumenta» (N .T.). claustro.
l'IH /\ 1111111111 do ,·rn1lrnlo
/\ 111111!11 d11111 1111111111 1111,1 11"qucria categorias sexuais. Quando o seu confessor franciscano se queixou
1111111 11• Ili I' ll/ll'lllllill11t•111,• 11110. O
<111< 1 , 1111•,11111111 11111•11<111 11•11·occder do luxo e da licenciosidade da coite espanhola, Isabel sentiu-se
1 , 1111 11!.1 il11, 1,11.. 111 po1 111cio de obrigada a responder comparando a simplicidade do seu vestido e
eh 1'11 I\ .111 N11~ li lm h11 notícias
11l,1c 11 1,, 11lc 11~ 1111'd11•v11is de do das suas damas com o rico vestuário dos homens. Contudo,
, 111111111\íl11 do 111lwlo: q11c i111ava-se quando ela e Fernando começaram pouco depois a publicar uma
1111111111 VIVII , lllllllll'IIVll·SC com longa série de éditos sumptuários, as suas categorias continuaram a
l'ill\,1 1111 111111 "'ch•dos impregnados
111 111 , ,. li11 i11siv11111c 11tc atacavam-se ser determinadas pelo estatuto e não pelo género - como o eram
11 111111111 , 11pil1111·s i:0111 agulhas também nos reinos do Norte.
1111> llll 1'1111111·11111· de S. Jorge
, ,1 /'1 /11, ,·.111 1k /\111611io Pi sano, Foi nas cidades, muitas das quais garantiam a sua riqueza com
11 l'I 11111•110» ( l 19:'i- 1450). Verona, a indústria do vestuário, que as leis sumptuárias, publicadas com
,111111 /\1111,Hkia. renovada insistência por bispos e concelhos municipais, codifica-
ram a mensagem dos frades . Os códigos influenciados pelos seus
sennões deixam perceber uma preocupação exclusiva com a moda
das mulheres, que são tratadas como um grnpo homogéneo, não
diferenciado pela hierarquia social. Em alguns locais foi-se tão
longe que se aboliram isenções que anteriormente tinham sido con-
cedidas às esposas e filhas de nobres, médicos e homens de leis para
escaparem ao completo rigor do controlo vestimentário. O facto de
o seu traje confirmar a hierarquia social parecia agora menos impor-
tante do que a mensagem sexual que ele veiculava. As distinções
sumptuárias por todo o mundo urbano tomaram-se mais claramente
definidas pela atroadora pergunta dos mendicantes: «Quod etiam est
videre in muliere caligas soleatas et quandoque, saccomannorum
more, divisas et ad nates longas et tractas; sotulares rubeos, aureos,
perforatos, rosatos, decorticatos atque colorum varietate depictos?
Quid amplius facient meretrices?»* 16• Aquelas cujo rico traje des-
denhava da lei sumptuária arriscavam-se agora a passar não por
nobres mas por prostitutas. As caudas, por exemplo, cujo extravagante
consumo de tecido tinha outrora sido suficiente para a sua conde-
nação, tomam-se agora um esconderijo para diabos mais do que um
sinal de pretensão aristocrática. Alguns atribuíam a sua invenção
não à corte mas ao bordel, razão provável pela qual o bispo de
Ferrara apenas poupou as prostitutas à excomunhão a que se sujei-
tavam as mulheres que as usassem na sua cidade. Os conselhos
urbanos reagiram frequentemente mudando o traje das prostitutas,,
que podiam agora abandonar os sinais e roupas degradantes do pas:
sado para assumir as modas sumptuosas negadas às outras mulheres.
Se, melhorando a sua apresentação, algumas cidades esperavam
atrair os homens afastando-os do pecado mais grave da homosse-
xualidade, outras estavam simplesmente a antecipar a sugestão de
* «Não é que se vê mesmo mulheres calçadas com cáligas, e, por vezes, divididas,
à maneira dos salteadores, longas e puxadas até às nádegas? Ou com borzeguins vem,elhos,
dourados, petfurados, roídos, esfo lados e pintados de todas as cores? Que mais farão as
meretrizes?» (N.R.).
As modas femininas e o seu controlo 205
As formas particulares da transgressão As anquinhas, uma das modas renascentistas mais condenadas As anq · ha
. Utn . S
mas também mais sedutoras, pareceriam à primeira vista desmentir
A l'SI igmatização de duas modas renascentistas mostra algumas uma tal interpretação. Sendo inicialmente uma armação que mantinha
d11., vius pe las quais as abordagens eclesiástica e secular se uniram os vestidos afastados das ancas, tomaram-se depois num aro ou série
111111111 1· ilura sexual do vestuário feminino. As duas modas fizeram de aros cuja rigidez, semelhante à de um escudo, sugerirnm em Itália
llllllll'lllur enormemente - e foram provavelmente concebidas para e em Espanha o nome de guardinfante. Como extensões das ancas,
i NO li quantidade de tecido que uma mulher podia exibir nos seus ou verdugos, conquistaram a corte castelhana do século XV, e a
Vl'Nlidos. ontudo, os seus críticos lançaram contra elas um ataque ampla política de alianças matrimoniais desta corte divulgou-as no
111ois moral do que económico. estrangeiro. Os observadores ingleses imediatamente repararam que
Catarina de Aragão e as suas damas usavam «abaixo da cint1ira uns
arcos que mantinham os vestidos afastados dos seus corpos, à maneira
J 11 11111 O ·hapins, sapatos de solas altas em couro, madeira ou cortiça, do seu país» 18 • Mas no reinado da rainha Isabel, que gostava de las,
1l11hn111-s ' tornado populares no século XV em algumas cidades ita- as anquinhas tinham-se tomado uma moda verdadeiramente ingl sa,
1111111,s, b ' 111 corno em Espanha, onde o confessor da rainha Isabel se tal como as idênticas vertugalles eram uma moda francesa na corl ,
q11l·ix11va de que os sapatos vulgares nessa altura - tão altos que de Francisco I. Os arcos tomaram-se uma marca distin tiva e um
l'l1l'g11vam ao cotovelo - estavam a esgotar as reservas de cortiça suporte da moda da Renascença tardia, mantendo os vestidos afasia-
1111l'io11 uis. De um ponto de vista mais doméstico, e como assinalaram dos dos contornos naturais do corpo e exigindo, como os chapins,
os kpis lndores italianos, elevando as mulheres bem acima do solo jardas adicionais de tecido para o cobrir. No entanto, os crític s da
l'lts !roçavam das leis que regulavam a quantidade de tecido a moda preferiam os argumentos morais aos argumentos económ i-
11llli1.11r nos vestidos através da limitação das caudas que arrastavam cos, referindo os segredos que as anquinhas encobriam mais do qu'
p1•lo d1t o. Era, no entanto, mais a extravagância moral do que a . o tecido que exibiam. É verdade que alguns, como duas mulher s
1•x1r11v11gfi ncia económica manifestada pelos chapins o que realmente genovesas que desaprovam a moda num Ragionamento di sei nohi/i
ONrn11d •nava. Toda a gente notava a extraordinária imobilidade que fanciulle genovesi (1583), assinalaram que, para além da dificuldad
1•ll'S provocavam nas mulheres, que cambaleavam em cima deles, que provocavam na passagem pelas portas, «non e scommodissimo
1•01110 s 1 ·aminhassem com andas. Eis sapatos que impediam o a chi vuol sedere, poiche bisogna primieramente farli una g ran
rn111 i11luu· uma característica que suscitava uma comparação, na manufattura attorno in assettarlo, se tu non v uoi far la mostra gene-
V1•1w111 do sé ulo XV, com o costume chinês de ligar os pés. Nessa rale»* 19• Mas o que geralmente incomodava não era tanto a sua
l'id11d1 , os legis ladores foram mais longe, condenando tal moda revelação como a constrição que provocava na função natural da
pw·q111• <t11tdic res pregoantes, euntes per viam cum zocholis ita altis mulher e a ocultação dos prazeres meretrícios. Tal como os chapins,
1u111 VII lrnl 'S se sustenare, ceciderunt et in tali casu reciperunt tantum eram oriticadas porque vergavam o corpo feminino para servir a
111is11111n, quod clisperdidenmt seu fecerunt filios abortivos in perdi- moda, forçando uma perversão do seu uso natural, a concepção de
llcu,l'll, l' Cll poris c t anime sue»* 17 . A sua contribuição para a esterili- filhos, cujo desenvolvimento fetal os seus aros e armações rígidos
cl11<ll' 1 p 11·11 o dano espiritual fazia com que fossem mais apropriados ameaçavam afectar. Além disso, mantendo as gravidezes escondidas
Jllll'II I prnslilutas, às quais foram consignados por alguns governos. sob os volumosos vestidos que sustentavam, as anquinhas permitiam
<> q111 11111 n t ico inglês do século XVI chamava o seu «andar de pri- às mulheres uma licenciosidade sexual inaceitável.
O pastor puritano Stephen Gosson foi mais longe do que a
maioria atribuindo a invenção a prostitutas como meio de manterem
"' vidns, que andavam p~las ruas calçadas com chapins tão altos que
1111111111 1 N p.1
11 11 111 1111111 N1· q111•1rnnnlt:r o eq uilíbrio, tinham caído, o que lhes tinha causado tão
1•111111h il111111N q111 1lnh11m perdido os filhos ou abortado, levando à perdição do seu corpo * «são muito incómodas p ara quem se quiser sentar, porque exigem anles um grande
11!1 ~11 t 11 111111 (N,1< ,). trabalho para as afeiçoar se não se q uiser armar espectáculo» (N.T.).
202 As norm,111 do ronlmlo 111 1
O simboli, 1110 do Vl'Sl11rt rio permite a mente vestida. Levantando com ambas as mãos a grandl' i'ill 111 q11,
intc rpr •1111, o dl' li 1111111•11s 111cdicvais.
O nc11ro si111holi111v11 11 11h, 1i11Gnc ia
cobre as suas anquinhas, ela põe à vista não só os seus g i 1 111111 1 11
scx unl 1· po, is,o l'l'II , in11 I distinti vo chapins mas também as elegantes calças masculinas q u · p11 11 11 111
eh: vlt1vns l' 1Tll•si , lirns, ainda que ter feito parte do vasto guarda-roupa da maior par te das cm li 1
css1· s11111lli1"11do 11110 s~ja o único.
C'o,11 1· l1• i10, 11~ l'OIll' , ·sr anhola e italianas. Sugerindo ou não essas calças o comércio d · p1 111, 11
ho, ro11h1·s11 11s11v11111 o negro, que sodomitas, elas revelam certamente uma liberdade de s • t111v1 11 1
ilk llt li k 11v11111 1·0111 a sua virtude
11ohH No 1111111do campesino não
0
•
que lhe permite o controlo do seu corpo como se fosse um 1101111 111
l111vi11 c,rnl ha. Mi niatura com a À primeira vista, os seus chapins e as suas anquin has p11 11·11111
l 'w lida da rainha, alusiva a
Mnrp,111ida d • Angoulême, minha
conferir um contraste feminino ao seu estilo mascul ino, 1111 11 1
d1· Nav:11 ra, 1450. Chanrilly, Museu verdade fazem parte de um mesmo conjunto. Subverte ndo 11 I' q 11 1
( 'n11dé. conferido ao vestuário de instrumento de desígnio patrili111• 11
armações das saias, os corpetes e os sapatos de solas altas 01'1 111, 111
formas particulares de liberdade transgressiva.
Uma interpretação sexual do vestuário pode também p1rn l11 11
moda. Os eclesiásticos tentaram no século XIII criar uma l' ll lt p1 111,
visual de honra feminina insistindo no véu como um sinal dn 11 1111!11 1
convenientemente casada - uma moda expressamente r ' t'11 s1111 , 1111 1
muitos governos urbanos a prostitutas públicas, que tinha111 ti, ,11 11 l 11
na rua com o rosto descoberto. Essa iniciativa fracassnl'II , 11111 ,
invenção de véus de seda transparente que nada ocultavan, ,. , 11111 1
de outros véus mais complicados que escondiam de mais, dl 1111 11
lando perigosamente a identidade e o estatuto de uma mul h ·r. h11l 11 11 ,
as autoridades cívicas estivessem menos inclinadas a c ii 111 1 til , 1
especiais de vestuário, preferindo apenas reagir às modas 1 1111 , 111 l 1
que estas surgiam, o manto negro imposto a muitas mulh1•11 11 11
o tecido fino das suas saias afastado da sua roupa interior maculada séculos XVII e XVIII sugere uma necessidade premcn ll', 1111 11 11
pela sífilis. Muitos, no entanto, teriam concordado com o autor nessa altura, de marcar as mulheres pela categoria sexuél l 11111 ,l, 1
anónimo de Le Blason des Basquines et Vertugalles de que os aros que pelo seu nível social ou estatuto.
serviam para esconder as consequências da liberdade sexual: «Que
servent ces vertugalles/Sinon engendrer des scandalles?»* 20 • Uma
questão que nos faz recuar à mais antiga explicação espanhola da Um regu lamento ducal florentino de 1638 abandonou r 11tlq•11
sua origem, em 1468, na corte de Joana de Portugal, consorte famosa hierárquicos anteriores para encerrar progressivamente as 111111111 ,,
de Hemique IV «o Impotente». Segundo um cortesão-historiador, no preto da abstinência sexual, que caracterizava antes as vi 11 , 1 ,
que parece ter estado dentro do segredo, a rainha tinha considerado os eclesiásticos. Depois de seis anos de casamento - anos cl 111 11111 ,
as anquinhas uma forma de manter secretas as consequências de , os quais a moda podia legitimamente servir de engodo s ·xu11I p 11 ,,
uma indiscrição. O seu exemplo encorajou o seu uso entre as damas reforçar o vínculo matrimonial - as esposas dos cidaclé os 111111 11
da corte, que por isso assumiram o aspecto de matronas grávidas. Se tinos deviam arrumar as suas roupas coloridas e em vez cl0l11 11 11
o chamado guardinfante protegia as crianças por nascer, estas eram, vestidos pretos, que podiam no entanto exibir corpetes, 11111 11p11 ,
assim , crianças cuja legitimidade podia ser posta em causa. Longe colarinhos coloridos. Estas manchas de cor tinham por sua w, d,
de estabelecer uma marca de patrilinearidade, a moda pennitia que ser abandonadas de pois de doze anos de casamento, quando, p11 11
as esposas escapassem ao sinal mais notório das suas reivindicações. mivelmente, a sexualidade produtiva dos anos de gestação d 11·111v 1
A esterilidade ameaçadora de ambas as modas é sugerida por um ao fim. Em Siena, a interdição do uso de roupas de cor H tod 1 11
de ·enho da época que representa uma cortesã veneziana elegante- mulheres casadas depois do segundo ano do seu primei ro ·11s11111111l 11
era acompanhada - numa conivência implícita com as v •11111 1 111
* «Para que servem essas anquinhas/Senão para produzir escândalos?» (N .T .). gorias mendicantes - da sua atribuição às prostitutas. Em 1•'ln, 1111 11
As m od as femininas e o seu con trolo 205
'
1111111110 da berrante cacofonia da licenciosidade rural e das classes
'1111,i;ns - um contraste reforçado pela associação antiga do preto
111111 11s virtudes nobres nas cortes da Borgonha e de Espanha. A
ndopçilo do negro pode ter igualmente servido finalidades mercan-
1li 1s111s ao afastar as mulheres mediterrânicas dos têxteis coloridos
d,• 1111111 nova manufactura atlântica. A ser assim, as ideias de extra-
vu~Oncia sexual e económica ter-se-iam mais uma vez fundido para
1h•l111ir as categorias sumptuárias femininas.
li lld11I, ou com as alemãs e flamengas, que eram livres de se dedicar simbólicos do vestuário. Mesmo os brincos, com os quais, sob a
11 11111 ofício, as mulheres italianas - segundo Marinelli - . eram pressão dos mendicantes, muitas cidades italianas tinham marcado
p li lku larmente susceptíveis à auto-definição que a moda permitia. as mulheres judias no século XV, encontraram, por meados cio
N lo definidas , e portanto não afectadas, pelas marcas políticas e século X VI, lugar nas orelhas cristãs. O significado da moda tor-
1·1·11n6mi cas por todo o lado impostas aos homens e noutros países às nou-se tão mutável quanto a própria moda, exigindo permanente-
11111 1h ' rcs, elas eram mais livres para se exprimirem através do ves- mente não só reconhecimento mas também interpretação. Sendo a
111 rio. Marinelli pode ter exagerado o poder político e económico sua mais perfeita encarnação, as próprias mulheres exigiam atenção
d11s outras mulheres, mas não foi a única a atribuir aos italianos uma não como símbolos estáveis de valor social, mas como partici-
r111rn ·idade peculiar para explorar as qualidades criativas e trans- pantes num jogo interminável de negociação social. Se o individua-
gn•ss ivas da moda. lismo do Renascimento fez de tal auto-criação uma arte, a moda
Por meio das suas roupas, as mulheres participaram de forma ameaçava fazer das mulheres o paradigma por excelência desta
vlsfv ·I na auto-criação que Burckhardt considerava uma caracte- época.
1!si icu defi nidora da cultura renascentista. Tal como os. déspotas
llli lizaram as armas e a diplomacia para for:jar identidades políticas
111div iduais, livres dos constrangimentos dos antigos ideais feudais Uma avaliação moderna
1 hie rárquicos, t,.ambém as suas esposas e filhas utilizaram a tesoura
1• os lecidos para modelarem personalidades sociais individuais, Os críticos modernos não foram tão- rápidos em ver na moda um
111p11:,,es de suplantar uma identidade colectiva. A sua posição de instrumento de poder para as mulheres. Em vez disso, argumentaram
,·~posus vindas do exterior para se casarem fez destas mulheres de que, longe de permitir uma nova 'liberdade de auto-definição, o
1011· os veículos naturais da moda estrangeira; mas elas foram mais vestuário criado pela moda encobria os sinais de uma nova escra-
1111111 ', esbatendo as marcas do ·vestuário tanto da sua terra natal vização feminina. Onde os governos hierárquicos fracassaram nas
1111110 da sua terra pelo casamento, procurando no estrangeiro novas suas tentativas de utilizar o vestuário semioticamente como deli-
l11wnç< es. Bona de Sabóia escreveu de Milão a Ginevra Bentivo- mitador das fronteiras sociais; uma economia capitalista conseguiu
~d 10 pn ra arranjar fazzoletti de seda, populares em Bolonha. Beatriz fazer dele um sinal fundamental do notável consumo que se trans-
eh• Esl ', 11o varum vestium inventrix*, como a descreveu Muralto, formara numa medida do crescimento económico e da posição
1 llllSl'P,Uiu desenhos do traje da rainha de França para introduzir o social. Permitindo que os chefes masculinos dos agregados fami-
1 li l'SIilo de toucado na Lombardia. A sua irmã Isabel tomou-se tão liares consumissem ·por substituição através das modas das suas
e nnlwcida, pelos emissários que mandava de Mântua ao estrangeiro mulheres, os progenitores do capitalismo em ascensão foram capazes
p 1m nrrn njar os tecidos e as modas necessários para criar um estilo de evitar algumas das manifestações mais perturbadoras do mundo
l1111 11111c ional, que Francisco Ilhe .pedÍu que mandasse a Paris uma que estavam a criar. A invenção incessante e a obsolescência planeada
i llllll'l'II V Slida com a sua Última moda como modelo para as damas inerentes à economia de consumo tornaram-se mais claramente
d11 1111 corle. associadas ao ca;ácter feminino à medida que os homens vestiam as
Nu,~ 111, os criativas das italianas, a marca colectiva do vestuá- suas mulheres e tentavam retirar-se do jogo da moda. É claro que os
110 1111 11ou-sc menos impo1tante do que a afirmação individual que homens podiam também ser pavões. Mas, apesar disso, não parece
111 1111 l1in . Ass im , a co.r perderia o seu valor simbólico porque era haver qualquer lei sumptuária dirigida às mulheres equivalente à
11 11d I p11 ru lisonjear os olho o cabelo e a pele. O berettino, um direétiva· que Veneza dirigiu à sua classe dominante masculina para
111111 111 0 d · luLo, tornar-se-ia uma cor favorita de Isabel de Este, que se vestisse de forma mais colorida e sumptuosa. Se o seu traje
111111 1111• t• l11 p •nsava que lhe ficava bem. E se o governo veneziano demasiado sóbrio ameaçava o prestígio da sua cidade, ele significava
1 1 11 1 sutis mulheres de preto como sinal da sua humildade, os igualmente um carácter de conservadorismo e estabilidade adequado
1 111111 h1pm 1H..'os atribuíram a rápida adopção desta cor ao facto aos seus governantes legítimos. Eles podiam dar-se ao luxo de usar
d1 1 ht 1 1von·c ·r a sua pele c\ara e os seus cabelos platinados. O um tal traje porque as suas esposas e filhas afirmavam oestatuto da
q11 111 e I tko triunfaria igualmente sobre as proibições sociais família aceitando o desafio da moda e mudando de vestuário com a
1111 dtd I IJ lll' as mulheres de corte rejeitavam os significados estação. De acordo com este cenário, as 'mulheres vestiam-se ao ser-
viço dos homens, perdendo neste processo os atributos de constância,
1!1 , 11111111 ,1(, ,1ovus roupas (N .R.). prudência e estabilidade necessários ao bom governo e ao bem-estar
As modas femininas e o seu controlo 213
, 1111llunl. Elas tornavam-se as mais temporais das criaturas num 13. De Cu/tu Feminarum, ed. Marie Turcan, Paris, Eclitions clu erf, 197 1, pp.
44-46.
1111111do cada vez mais consciente do tempo. 14. Le prediche volgari, ecl. Ciro Canarozzi, 5 vols., Pistoia, 1934- 1958, l , 244.
No •ntanto, à medida que as qualidades da moda se colavam à 15. Pró logo a The Wife of Bath's, 11 , 337-347.
11111ll' das mulheres e definiam o carácter daquela que a usava, a 16. S. Bernardin o, Opera Omnia, II, Florença, 1950 , p. 56.
17. Veneza, Archivio di Stato, Maggior Consiglio, Ursa, f. 8Jv.
111ocln oferecia também às mulheres um meio de reordenarem as
18. Citado por Anderson, H ispanic Costume, p. 209.
ti 1 1i nç cs sociais e de reencenarem o processo social. A colaboração 19. Citado por L. T . Bel grano, De/la vita privara dei Genovesi, 2." ed ., Génova, 1875,
11111' • mu lheres ávidas de moda e fabricantes ávidos de lucros p. 270 .
20. Le Blason de Basquines et Vertugalles, Lião, 1563, sem paginação.
111111s l'orrnou a exigência eclesiástica do século XIII de que as
21. Citado por Michel Z ink, «L es Destinataires des recueils de sermons en tangue
11111lhcrcs casadas velassem o rosto, de instrumento de demarcação, vulgaire au XII' et au XIII' siecle», in La Piété populaire au Moyen Age, Paris, Bibliotheque
1•111 oportunidade de transgressão, visto que os véus de seda obscu- Nationale, 1977, p. 70. ·
22. Ed. Ludovico Frati, La vita privara in Bologna dai seco/o Xlll ai XV//, 2." ed.,
ll'Ci11111, e mantilhas mais elaboradas mascaravam, as identidades Bolonha, 1928, pp. 251-262.
p111rilincares. A moda masculinizou os vestidos femininos, não para 23. Laurae Ceretae Epistolae, ed. J. F. Tomasini, Pádua, 1640, pp. 70-71.
lllí'.l'r das mulheres homens mas para sugerir à que a usava (e aos
~1· us críticos) a aquisição de um novo poder viril. Que tais trans-
1111 mações eram mais imaginárias do que reais é um sinal das limi-
lllÇ() 'S da moda. Mas é igualmente um sinal do ·seu poder. Desde
os ·hapins e anquinhas omnipresentes às 800 plumas de pavão que
11111 111crcador de seda florentino comprou para fazer um chapéu para
11 sua jovem noiva, ou ao traje turco que Beatriz de Este mandou
luz ' r Iara as damas da sua corte, a moda é fantasia. Uma fantasia de
onhos, mas também de possibilidades utópicas. É talvez esta a
1lli'.t o por que as mulheres eram, de facto, as suas adoradoras.
Notas
1. M. ele Grenaille, La Mode ou Charactere de la Religion, de la Vie, de la Conver-
111111111, dl! la Solitude, des Compliments, des Habits et du Style du Temps, Paris, Nicolas
C l11HH•• 1642, citado por Louise Godard de Donville, Signification de la Mode sous Louis
p 1111.
10. Joseph Swetnam, The Arraignment of Lewd, /d/e, Forward anel Unconstant
li 11111,•11: Or rhe Vanitie of Them, Choose You Whether, Londres, 1615, p. 30.
11. John Rylands Library, Ms. Lat. 367, f. 256.
1 >, C'ituclo de British Library Ms. Harl. 4894, f. 176b by G . R. O wst, L iterature and
/'11111/r 111 Medieval England, 2.ª ed., Oxford, Basil Blackwell, 1961, p. 404.
As n1ulheres
nas estratégias
f an1iliares e sociai
---- -- - --- - ---------------~
Introdução
Christiane Klapisch-Zuber
v111111111cs dos comportamentos e das estatísticas que os medem2 • Percebe-se o papel que neste quadro desempenha a disparidade
l 111111 tc nlativa recente, levada a cabo por David Herlihy, permite numérica entre os dois sexos. Ela foi invocada com mais insistência
o l>1 cvoar os processos pelos quais se constituíram, desde a Anti- em diversos debates sobre o lugar das mulheres na Idade Média: a
1111dade e até ao século XV, os «lares» da Europa ocidental3. O autor §Ua característica comum é assumir como adquirido que muitas de
d i~c ulc aí as condiçõe_§_do casamento a partir de um conjunto inédito ~ntre elas não podiam ter acesso aQ..casamento ou, quando viúvas,
ck dados que dizem respeito às idades em que se acedia ao casa- ao recasamento, e que esta e~clusão de um estado normal para as
llll'1110; esses dados,_díspares, são tirados de crónicas ou das narrativas mulheres resultava de um dese ui~ io entre os sexos:_/
lioµiog ráficas, dos censos carolíngios ou dos recenseamentos fisc;is A partir dos trabalhos de Karl Büch~r no final do século pas-
do l'inal da Idade Média. Este panorama sedutor interpretgi assim sado, aquilo que era designado como o Frauenj"i-age, o problema das
i11f'ormações que na sua maior parte dizem respeito a indivíd~ mulheres que não podiam casar, amplamente evocado mais adiante
l'~palhados no espaço europeu e ao longo dos tempos. Durante por Paulette L ' Hermite-Leclercq e Claudia Opitz, extraiu com efeito
11111i10 Lempo, a maior parte pertence às c lasses superiores, porquanto a sua argumentação das observações de ordem demográfica. No
duran le muito tempo os santos e as santas foram recrutados nos estado das investigações do início do século, os únicos dados preci-
1lll' Íos privilegiados, como demonstram vários dos capítulos que se sos eram tirados dos raros censos disponíveis, os de algumas cidades
' l'gucm: para atingir~ humilç!_es, p.ara._o_s estudar por gr__upos re re- do final da Idade Média. Na melhor das hipóteses, eles permitiam
~l'lllalivos, há que esperar pelo final da ldç_tde Méc!j~. A comparação observar as relações entre grupos de idades, po r vezes entre os sexos,
dl'st · período com as épocas anteriores repousa portanto numa base m as não descer ao nível dos comportamentos individuais que as
1•st l'l'Íta , e por isso frágil; as perspectivas que ela abre têm sobretudo técnicas de análise aperfeiçoadas na exploração do registo civil dos
vn lor de hipótese. tempos modernos permitem avaliar. Não será portanto surpreendente
Seja como for, D. Herlihy distingue vários modelos de casamen to para nós que, de todo o arsenal de medidas que a demografia histó-
qtll' se te riam sucedido desde a era·élássica._~n(l!J~tÜq ue a m11lher_~ rica elaborou, os medievistas pareçam por vezes não ter retido senão
11111 i).!.a era dada em primeiras nú_pcias, ainda de tenra idade, na sua um único índice, a relação de masculinidade - por outras palavras,
pli111 ·ira adolescência, a um esposo muito mais idoso do gue ~~. · o número de homens por cada cem mulheres - , que mede o equilíbrio
1•s1' modelo teria conhecido um eclipse desde a Alta Idade Média n uméiico entre os sexos e que vimos já escrutinado por D. Herlihy
llll' l' ·rca do século XII, p_eríodo em que as idades dos cônj uges se a propósito do casamento medieval. De facto, este índice serviu de
l1•1i11111 aproximado,.de acordo com os costumes germânicos já des~ referência fundamental em diferentes espécies de análises: graças a
l'I itos f)O r Tácito; o .!_I]odelo «antigo» voltaria depoiLà sup_erfiçie _e ele pretendeu-se já calcular as variações da situação j urídica das
11~ idades do homem e da mulher divergiriam de novo na Baixa mulheres ao longo dos séculos, e das condições do seu casamento
ld rt de Média, altura em que vemos reaparecerem.maciçamente esses em particul ar; a sua aceitação na família de nascimento e o grau de
l'll~nis desiguais em que uma grande diferença de idàdes separa ;-s misoginia específico da sociedade onde viviam; a sua· participação
l 11j11gcs. , - nas actividades económicas, a sua infegração na v ida espiritual do
1ix iste certamente uma coJTelação entre as diferenças de idade seu tempo.
dos l'Sposos nas suas primeiras núpcias e os diversos sistemas de No entanto, se observarmos de mais perto, a base documental
p11•111nc;o ' s materiais ligadas ao casamento; não podemos ignorar, sobre a qual assenta!n estas interpretações parece bem vacilante, e
1111 p11rti ·ular, a concomitância do desvio crescenle entre as idades os dados em que elas se apoiam não são também tão límpidos quanto
d11 l'S posos com os avatares do sistema dotai, que a renovação do parecem. A questão lancinante da cred ibilidade das contagens medie-
d111·ito roma no revigora a partir do século XII e onde o essencial d as vais obriga a que consideremos cum grano salis números por vezes
p11• 111,·1 ·s cslá a cargo da mulher ou da sua família. Estes movimen- admitidos com demasiado entusiasmo. E mais ainda, o alargamento
111 p111·nll' los testemunham mecanismos complexos; mas, em última da base problemática repõe em questão reconstruções que tiram, de
111 1 l11r l11, ,. pelo desequilíbrio numérico entre os grupos de esposos maneira demasiado exclusiva e mecânica, as suas justificações de
J111h 111•iuis - bom deus ex machina - que o historiador dá conta um único tipo de causalidade.
ti, 1111 l 'rqwl tanto mais notável quanto destes mecanismos depen- Assinalemos em primeiro lugar que ao longo de toda a Idade
di 111 , 11divi nlrnmo-lo, o tipo de estrutura doméstica e as hierarquias Média a relação numérica entre o s sexos é marcada por variações.
1111 1 11111 d11 t:asa, assim como as relações de autoridade e de afecto Esta d iversidade reflecte antes de mais a heterogeneidade das comu-
q111 li11111l'lls e mulheres nela mantêm . nidades onde ela pode ser calculada. Admitamos contudo que, pelo
l1 111,11ii,1r~'s e sociais l ntroduçno '• 1
menos nos limites restritos de uma cidade ou de uma aldeia, as questão importante para a história das mulheres, a da própria cons-
rdações sociais entre os sexos dependem em boa parte da sua rela- trução das fontes quantitativas clássicas: mais do que admitir a
c,ão de força numérica. Ora, é excepcional que se observe entre os cómoda ideia da s'iia neutralidade, o observador deve interrogar-se
•fcctivos de homens e de mulheres um equilíbrio local, mas estas sobre as distorções que o sexo dos actores nelas introduz. Mas uma
va riações jogam em sentido contrário de uma comunidade para tal conclusão é talvez sobretudo prematura, porque na melhor das
outra. E isto tanto na Al ta como na Baixa Idade Média. Nas ten:as da hipóteses suprime o problema da mortalidade diferencial, e na pior
abadia de Saint-Germain-des-Prés, no século IX, as mulheres são o da eliminação voluntária das raparigas e das mulheres. Foi nestes
muito menos numerosas do que os homens, sobretudo nos grupos tem1os que uma americana, Emily Coleman, o colocou não há muito
etários infantis. O mesmo acontece em tomo de Frufa, na Itália, tempo, a propósito das aldeias do Sul de Paris descritas pelo políptico
cerca do ano 800, ou em Reims4. No entanto, pela mesma época de Irminon, abade de Saint-Germain-des-Prés, que evoquei acima.
(8 13-814), elas são, na idade adulta, um pouco mais numerosas do Ela avançou a hipótese de que o desequilíbrio não poderia atribuir-
que os seus parceiros masculinos nos domínios de São Vítor de -se apenas aos defeitos do documento nem ao sub-registo das mulhe-
Marsel ha, enquanto que a população infantil experimenta aqui um res, mas reflectia antes uma situação real, fruto da discriminação
grande déficit de rapazes 5 • Estes dados, isolados e de interpretação activa entre os sexos desde o nascimento'º. Conclusão dela? O infan-
difícil, não apontam todos no mesmo sentido. E a situação não é ticídio das raparigas caracterizou essa sociedade carolíngia e apenas
obrigatoriamente mais clara em épocas menos recuadas. Se pratica- ele permite dar conta da desproporção entre os grupos de homens e
mente nada sabemos de preciso sobre a Idade Média central, a partir de mulheres. Concl usão sem dúvida forçada e controversa: ela foi
do fina l do século XIII os dados tornam-se mais densos. Em trinta e geneti camente rejeitada, ou pelo menos muito fortemente atenuada,
seis aldeias inglesas de cujos habitantes o Poll Tax de 1377 - os na base de uma discussão mais cerrada do documento e de confrontos
registos de capitação - indica o sexo a partir da idade de catorze 1
com os polípticos de outras regiões' 1•
anos, os homens são mais numerosos do que as mulheres6 : contam- 1
Deste debate podemos extrair uma conclusão. Ele faz-nos sentir
se aí 112 homens para 100 mulheres. O mesmo acontece na Toscana os escolhos nos quais tropeçam as investigações sobre as mulheres.
de 1427-1430, que o catas/o descreve de forma detalhàda7 : aqui, o Identificar os observatórios a partir dos quais eles podem ser ultra-
rnnjunto da população, assim como a maior parte das comunidades passados oferece já o seu quinhão de dificuldade. Além do mais,
rnns ideradas individualmente, sejam elas urbanas ou rurais, devem qualquer conclusão que assente em observações retiradas de um
rnntar com um déficit feminino, e os homens são mais numerosos documento específico é tanto mais vulnerável quanto tem laivos de
do que as mulheres em perto de um quinto. Noutras regiões da escândalo, tão forte quanto ela aspira à científicidade de métodos de
1iu ropa, no entanto, outros números contradizem estas observações. análise comprovados. Por isso, quando se trnta ele estabelecer factos
No final da Idade Média, em cidades do Norte da França como que implicam as relações entre os sexos, encerrarmo-nos num único
Reims, ou da Alemanha e dos Países Bàixos, como Friburgo, Basi- registo de factores explicativos pode custar-nos caro: de fac to, a
il'ia, Nuremberga ou Ypres, as mulheres excedem os homens em força dos argumentos que se opuseram à tese de um infan ticídio dos
1111mero 8 . Esta situação, que parece opor antes de 1500 a Europa do bebés do sexo feminino perpetrado nas terras do abade de Saint-
Noroeste às regiões mediterrânicas, tornar-se-á, parece, a regra nas -Ge1main-des-Prés radica em eles fazerem apelo a um leque de fac-
l'iducles do século XVI. tores explicativos bem maior. A este título podem ser invocadas as
Poder-se-á concluir de resultados tão contraditórios, como muitos reacções diferentes dos homens e das mulheres às causas da mor-
1iz •1-ain, que, nestas listas que raramente pecam pela sua preocupação talidade - para a Baixa Idade Média, será a peste em particul ar 12
de 1:xaustividade, o sub-registo das raparigas é o grande responsável - , se bem que, confessemo-lo, saibamos bem pouco sobre os efeitos
'
1wlo seu número demasiado bai xo, onde tal é observado9 ? Elas seriam físicos e mentais que os constrangimentos materiais, o sofrimento
111tencionalmente subtraídas aos agentes senh01iais, comunais ou do trabalho e da doença, a procriação tenham pelo seu lado exercido
1t•11is, com mais facilidade do que se fazia para os rapazes; de qualquer sobre a saúde e as capacidades de acção respectivas dos homen s e
111ndo, o olhru· menos escrupuloso que governantes e governados das mulheres desses tempos. Compreende-se que, nessas condições,
li ll'H d ·dicariam faria desaparecer as suas insignificantes pessoas, seja tentador identificar na disparidade numérica entre os sexos, ele
porq11ç não tinham nenhum interesse mi litar e pouco rendimento acesso mais fácil do que a maior parte das outras med idas demo-
1•1•111uímico ou fiscal traziam. Frequentemente, es'ta conclusão bloqueia gráficas, o parâmetro adequado para dar conta ele uma característica
d, 11111si:ido cedo a investigação, se bem que levante pelo menos uma da sociedade ou de uma evolução.
111111111• t' sociais Introdução 225
Atribuiu-se assim um papel sem dúvida excessivo ao excedente práticas sociais, permitir-nos-ão reconhecer, para a lém do que
11 1111 ivo das mulheres para explicar o seu empenhamento crescente determina de forma tão pesada a vida das mulheres - o casamento
1111 ·c.:onomia - no sector artesanal no final da Idade Média ou no e a proc1iação - , os momentos fugidios em que elas criaram as
l'C lor ind ustrial no Renascimento. Tal interpretação foi posta em condições das suas próprias escolhas.
q11t:stão de forma radical por historiadoras feministas. Trabalhos
tt1 n ·111cs·, de que Claudia Opitz dá largamente conta mais adiante, [Traduzido do francês por Francisco G. Barba e Teresa Joaquim j
di stinguem entre o acesso ao trabalho e a qualidade deste, o seu
prestígio social, as res po nsabilidades públicas às quais ele dá acesso.
1>o ponto ele vista da condição profissional e jurídica das mulheres, Notas
11 d<,;sq ualificação do trabalho feminino acompanha, pelo menos desde
1. John Hajnal, «European marriage patterns in perspective», in Popularion in His-
o século XV, o seu relegar para a produção de mercadorias de qua- tory, D.V. Glass e D.E.e. Eversley (eds.), Londres, E . Arnold, 1965, pp. 101-143.
licludc inferior, e este facto é' mais impottante do que a sua chegada 2. C itemos o q uad ro de conjunto das contribuições financeiras para o casamento
estabelecido para a área mediterrânica por Diane O. Hughes, «From brideprice to dowry
l' lll l'o rça ao mercado público do trabalho. Em suma, se o número ele
in Mediterranean Europe», .lournal of Family History, 3, 1978, pp. 263-296, e a compa-
11 \ til hc res a trabalhar é maior, a concentração da mão-de-obra feminina ração das características da nupcialidade entre a Europa do Norte e a do Sul feita por R.
t'l11 <,; mpregos pouco gratificantes contribui em m uito para esta des- Smith em «The People of Tuscany and the ir families in the fifteenth century: Medieval
q11alif'icação: um trabalho subordinado, para uma produção desqua- or Mediterranean?», Journal of Family History, 6, n. 1, Primavera 198 1, pp. 107- 128,
esp. pp. 115- 116.
1i f'i <.;ada. Estamos aqui longe da hipótese monocausal de um Karl 3. D. Herlihy, Medieval Househo/ds, Cambridge, Mass., Harvard University Press,
BUchcr: para além da relação numérica entre os sexos, outros factores 1985, p. 67.
i111c rvêm que põem em causa a organização fam iliar, a situ ação da 4. Polyptiqu.e de l' abbé lrminon, ed. por B. Guérard, Paris, 1844, «Collection de
documents inédits sur l' histoire de France», 3 vol.; Polyptique de l' abbaye de Saint-Ger-
l'u rnília e dos seus membros, ho mens e mulheres, relativamente à main-des-Prés, reed. por A. Long no n, Paris, 1886-95; D. Herlihy, Medieval i-louseholds,
produção de mercado, a fraquezâ ou a força dos ofícios na comu- op. cit., p. 67; J.-P. Devroey, «Les premiers polyptiques rémois, VlI' -lXº siecles», in Le
grand doma ine aux époques mérovingienne et carolingienne, A. Verhulst (ed.), Gand,
nidade considerada, a organização política e a ideologia do género
1985, «Belgisch Centrum voor landelijke Geschiedenis», Publ. 8 1, pp. 112-124.
q11c, no fim de contas, a sustenta. Em resumo, as relações entre os 5. Monique Zem er-Chardavoine, «Enfants et jeunes au IX' siecle. La démographie
Ht·xos e as destes com a esfera económica não podem reduzir-se du polyptique de Marseille, 813-814», Provence historique, 126, 1981, pp. 355-384, esp.
11nicamente à relação numérica entre os efectivos masculinos e p. 359.
6. Richard M. Smith, «Hypotheses sur la nuptialité en Angleterre aux XIIl'-XlV'
l1.•111ininos : não podemos confinar a análise apenas às de terminações siecles», Annales E.S.C., 38, n. 1, 1981, pp,- 107-136, e sp. p. 116, e «The People of
1k:inográficas, e ainda menos a uma só de entre elas. Tuscany ...», art. cit.
Em que consiste, então, o poder das mulheres, se não reside sim- 7. David Herlihy e Christiane Klapisch-Zuber, Les Toscans e/ leurs families. Une
étude du catastoflorentin de 1427, Paris, Presses de la Fondation Nationa!e des Sciences
pi •smente no seu número, com o que muitas análises pareceriam Politiques, 1978.
rnntcntar-se? Sobre quem se exerce ele, em que espaços? Georges 8. C f. a síntese destes dados, parcialmente tirados de Josiah C. Russell, «Late
1)uby desbrava adiante a imagem facilmente complacente de um medieval population patterns», Specu!um, 20, 1945, p. 16 3, que é apresentada por R. M.
Smith in «The People o f T uscany ... », op. cit., p. 116.
11111or cortês no qual poderíamos directamente identificar a promo- 9. Richard Ring, «Early medieval peasant households in central Italy» , Journal of
,·110 f'c minina na época fe udal. Ora, se a pedagogia do «fino amor» Family History, 2, n . 2, 1977 , pp. 2-25; J.-P. Devroey, «Les !l1éthocles d' analyse
démographique des polyptiques du haut Moyen Age», in Histoire e/ Méthode, M.-A.
pt•rmiti u, ao mais alto nível da hierarquia social, ajustar o olhar mas-
Arno uld et ai. (eds.), Acta Historica Bruxellensia, 4, 198 1, pp. 71-88.
rn lino sobre as mulheres, sobre o seu coração e sobre a sua fi gura 10. É. R. Coleman, « L'infanticide dans lc haut Moyen Age», Anna/es E.S.C., 29,
psiw lógica, ela foi integrada na política das famílias, reforçando 11. 2, 197( pp. 3 15-335.
11111i s do que alterando as relações que submetiam tradicionalmente 11. D . Herlihy, Medieval Househo!ds, op. cit., pp. 63-68; Monique Zerner, «La
population de Villeneuvc-Saint-Georges et de Nogent-s ur-Marne au IX' siecle d'apres 1e
IIH mu lhe res aos homens. O amor c01tês purificará com as suas rami- polyptique de Saint-Germain-des-Prés», Annales de la Faculté des let1res et sci_ences
lknç< es pe rturbadoras as estratégias matrimoniais, que permanece- humaines de Nice, 37, 1979, pp. \7~:14; Robert H. Bautier, «Haut Moyen Age», in
Hisroire de la popu/ation française, Jacques Dupâquier (ed.), Paris, P.U.F. , 1988, pp.
i 11111 sob o controlo concorrente e por vezes cúmplice das famílias e
186 e 202.
d11 Igreja. Por isso ele as consolidou, não as aboliu. Apesar disso, ele 12. Como fez, para épocas posteriores, Gérard Deii lle, « Vn P_robleme de démographie
11 l11rgou os espaços e os tempos em que as mulheres foram qualificadas historique: honimes et femmes devant la mort», Mélanges de l'Ecole française de Rome,
1·111110 pessoas. 86, 1974, pp. 4 19 -443.
S · a prime ira patte desta obra se abriu necessariamente aos dis-
111rnos masculinos, os próximos capítulos, entreabrindo a porta das
As mulheres
do século V ao século X
Suzanne Fonay Wemple
cios túmulos primitivos podemos dizer que elas teciam uma grande 19, 9, que permitia o divórcio por falta de castidade. Contudo, os
v111icdade de padrões em teares _simples e cosiam-nos de modo a apóstolos não estiveram isentos de preconceitos no que respeitava
101 marem peças de vestuário ou artigos domésticos. As mulheres ao sexo feminino. As mulheres eram assim im.2_edidas de faj_ar, d~.
l'1mânicas que viviam pert<;> da nascente do Reno preparavam uma ensinar e de exercer qualquer autoridade nas congregações5 . Mas às
111 •special, muito fina. primeiras mulheres cristãs não foi negada a oportunidade de agirem
A castidade e~a-lhes exigida; as que eram aQ_anhadas em adul- como parceiras iguais nas arenas , perante os animais selvagens e os
lt rio eram severamente punidas, flageladas e enterradas vivas.· Os carrascos . Os pais tendiam a pensar as mulheres como criaturas de
111rnnjos matriroo_ni~s dos povos germânicos sefil!tlm três padrões extremos: a filha de Eva ou a virgem que imitava Maria. Apenas
dL1 Casamento, Segundo a maior parte düS historiadores. Eram~ leS O Ambrosiaster, no seu Comentário à Primeira Epístola aos Corín-
rnsamento por compra (Kaufehe ), o casamento por captura (Raubehe) rios, ousou colocar a questão de saber se as mulheres eram feitas à
e neste caso não interessava se a rapariga cooperavaou...não com imagem dos homens e deu aos maridos a oportunidade de se divor-
o seu raptor- e Q_casamento por mútuo consentimento (Friedelehe). ciarem das suas esposas adúlteras6 •
H -rerindo-se ao preço da noiva, Tácito não foi muito claro sobre se Houve duas excepções entre os Padres daJgre·a Cri tã: Cesário
Nl ' referia ao Morgengabe, dado à noiva após a consumação tanto no de Arles e Gregório Ma no. Cesário escreyeu na Gália do Sul na
rnsamento por compra como no casamento por consentimento mútuo, mesma época em que Clóvis estabelecia o seu reino no Norte, e
ou ao dos,~um preço da noiva negociado no momento dos espon- falou em defesa das mulhfres 7• Nos seus sermões desmascarou a
s11is e que era depois total ou parcialmente dado à noiva. Sabemos, hipocrisia dos homens que des~javain a pureza sexual dos membros
vo ntudo, que ele se referiu também à oferenda que o noivo rece- da sua família enquanto intent~vam proezas se.xuais_e..até..se..gahayam
lliu antes da boda. Se o noivo era um homem bem colocado, um rei delas aos seus amigos. Pelos finais do século, qepois das_invasões
1n1 um chefe, não tinha que apresentar qualquer preço. As esposas ostrogodas, bizantinãs e Jombardas, o~a Gregório Magno levantou.
t•rnm oferecidas a tal homem sem qualquer compensação. Podemos a sua voz em favor dos mosteiros femininos e escreveu_ ÇQPtra a
assim concluir que duas noções directamente opostas governavam a Qroibição impQsta às mulheres de_co.mungarem quando §SJava]Jl
ll' lução entre os sexos: a esposa era uma colaboradora, mas a filha menstruadas ou grávida~, c?m a cláusula de q_ue se o não fizessem
l'l'll um bem cujo destino dependia do seu parente masêulino mais
próx imo.
No Império Romano a posição das mulheres melhorou conside-
1nvclmente. O QjgesJ_o incluiu o costume cada vez mais vulgar dos
1·11st11nentos sine manu, rws ql!ais o poder sobre a mulhe.r não. era
trn nsferido para o seu marido2 • Isto representava um passo na direcção
1111 t'mancipação da mulher, que se observa já no Código Teodosiano3 •
< 1111nclo atingiam a maioridade, _elas podiam controlar os seus bens
1 e usar com quem quisessem, mas a sua liberdade de acção continuava
11 t·r restringida por padrões duplos que governavam o divórcio e o
1 <llll f)Ortamento sexual, bem como pela rígida estatifiêação social da
1111 sociedade. As mulheres das classes mais baixas tinham poucas
1u1ss ibilidades de escolha quando o seu senhor as achava atraentes. As qucs16cs d· ordc111 e ·onómica
foram urna pr ·ocupnçno básica da
'l'inltnm então de tomar-se suas concubinasJ vitla ccnobí1ic11. A riqueia é critério
Hmbora o Cristianismo não obviasse a discriminação sexual no decisivo rmru u admissão e as
prcrrog111 iv11s ·conómicas discutem-se
l111p<-rio Romano tardio, na verdade ofereceu às mulheres a opo1tu- com os podt.:rcs públicos. Assim o
11lcl11d' para se considerarem personalidades independentes mais do 1cs1c111unhu111 os numerosos preceitos
jurídicos que proíbem a alienação dos
11111 l'I lhas, esposas ou mães de alguém. Segundo os Actos dos Após- bens da Ig reja. Os livros de culto
1,,/,,,,, ' lc permitiu que as mulheres desenvolvessem uma auto-estima foram Iuxuosamente enriquecidos,
1 111110 s ·rcs espirituais que possuíam o mesmo potencial de perfeição como se vê nesta obra carolíngia.
Pormenor de uma miniatura do
111111 , il que os homens4.. Além disso, o Cristianismo defendeu a san- Sacrame111ário de Saint-Denis,
11il ,1d1• dos casamentos monogâmicos, com a excepção de Mateus século IX. Paris, Biblioteca Nacional.
As mulheres do século V ao século X 23,1
1 11 lw1wl'i ·iuria grande mente as suas almas 8 . Este último preceito A associação do poder com a
posse do ouro e do «dinhei ro» é
111 1111111,l 111 inc luído numa carta que o Venerável Beda citou na sua característica da época merovíngia.
ll11r,,1 lr1 riu Igreja e do Povo lnglês9. A ourivesaria merovíngia e carolíng ia
é uma das mais belas de todos os
tempos. Placa de cinturão do cemitério
burgúndio de Borgonha, 650-700.
11 H \'111rn que no século VI11s mulheres germânicas já não exibiam Museu de Berfort. Fivela de
bronze, século VI, e peças de vidro
11 1 p I i10 marc ia l que Tácito lhes tinha atribuído. ~las converti~ _- de fi nais do século V-séculoVI.
, 111 11 os seus maridos ao C1istianismo,. Por exemplo, Clotilde, a Saint-Germain-en-Laye, Museu das
111 11rt'H11 burgúndia que casou com Clóvis, persuadiu o marido a Antiguidades Nacionais.
11 1·1111IH't' •r o verdadeiro Deus e a abandonar a adoração dos ídolos.
()11111,do us tropas ele Clóvis quase foram aniquiladas pelos Alama-
1111 , t'k virou-se para Deus e acabou por sair vitorioso da batalha.
1>11 111t•s1110 modo, E telberga de Nortúmbria exerceu influência na
11111vt·1·s o cio marido. As rainhas muitas vezes fundavª--m mosJeirÇlli_
1 1 1 ·Jns nas suas próprias terras. Fa_ziam também com que alg1J.n..s
d11 Nl'11s ravo ritos fossem nomeados bispos, alargando _assim o_se1:!
p111p1 ln pode r. Dados arqueológicos atestam que era habitual que as_
1111ilhl'I' •s fosse m enterradas com as suas jóias 10, seu símbolo esta-
111111 lo, • o ódigo Alamano prescrevia uma dupla pena pelo roubo -
d11 111n1ulo de uma mulher 1'.. .• •
l.111111ia uté que atingisse a idade da maturidade, gtJe era de vinte e_ arriscava-se a perder a vida, a liberdade e a_JJ.!Ql?riedade, e os seus
, 1tl'O unos no direito romano, adoptado pelos Burgúndios20 , e de vinte filhos eram reduzidos à servidão e não podiam herdar. Mas nenhuma
1111 direito visigótico2 1• Mas as raparigas casavam-se muito mais lei impedia que um homem- tivesse uniõessexuais c om as uas
1, IVl'llS, geralmente ficavam comprnme.tidas aos d_oze ano~~ casavam- próprias escravas, e podia mesmo reconhecer 2.s filhos como seus
l' p •los quinze. A idade legítima do casamento para os homens era herdeiros3 1• Os casamentos entre parentes consanguíneos e por afi-
111111h m muito precoce, quinze anos sob a Lei Sálica e doze sob a nidade eram tambémdissolvidos. 1Isto im edia a criação de uma
J,l'i Ripuária22 . - --- - - - aristocraciã fechada e encorajava u; iões exo âmicas facilitand o a
0 casamento implicava três etapas: q__pedido (petitio), os esponsais ascensãÕ social através do casamento de mulheres de- nascimento
(r/1•s1N111satio) e as núpcias (nuptiae). O pretendente geralme nte selava· inferior32 . Por outras palavra~ se a mulher era bonita e esperta,
o Sl' ll acordo oferecendo um penhor (arrha) . Uma vez este aceite, o podia as;ender por meio do casamento na hierarquia merovíngia.
l'0111pr misso não podia ser unilateralmente quebrado. O s código~ Na família real merovíngia são conhecidos quatro reis por terem
l1•1•n is geralmente especificam quanto podia ser nesse caso exigido. incorrido em poligenia. Como nos di zem Gregório de Tours, Fre-
Por exemplo, pela lei burg úndia um noivo repudiado podia pedir degário e o autor anónimo do Liber historiae Francorum, foram eles
II P l' llHS 300 soldos, mas se uma rapariga comprometida casasse com Clotário I, Cariberto I, Chilperico I e Dagoberto !33 • Duas das mulheres
1111 lro, podia ser morta23 . Mas um noivo tinha que pagar apenas o de Clotário, Ingunda e Aragunda, casaram com e~e ao mesmo tempo.
,los, um presente à noiva, que concordava em oferecer no momento Cariberto dividiu a sua atenção por duas irmãs, Merofleda e Mar-
cios esponsais 24 . Ele podia também esperar vários anos antes de coveifa, e por uma mulher adicional, Teodegilda. Chilperico praticou
l11111rn r os esponsais, segundo nos diz Gregório de Tours na sua a poligamia, antes de casar com Galsvinta. Dagoberto casara ·com a
11 i,,·rríria dos Francos25• O direito lombardo especificava que podiam desejável Nantilde e outras duas mulheres. A m aior parte dos seus
1111•cl ·ar dois anos entre os esponsais e as núpcias26 . casamentos era, é claro, Friedelehe. A oligenia era ap..enas_pr:oib.ida
-N_() era esta a única forma de ~sarnento conhecida dos povo_§ no código visigótico, e a manutenção de uma concubina por um
11•1111u11icos. A mulher podia ainda se~ ap_!.urag_a, e Santa Rade- homem casado só era proibida pelo código romano adoptado pelos
11111111 ro i capturada no campo de batalha pela família do seu marido. Visigodos .
h11 f1111 u10, no seu D e vita sanctae Radegundis, dá-nos os terríveis As leis do divórcio observavam padrões sexuais duplos, Para
p111 111c11o res dessa captura27 • Radegunda era filha do rei vencido dos aJém da dissolução por consentimento mútuo, permitida tanto pelo
'1'111 íng ios e a sua mão foi reclamada numa batalha judicial pelos direito romano como pelo germânico34 , os códigos germânicos
1tl h11s de C lóvis. Este tipo de casamento entre reinos era contestado, facilitavam ao homem o divórcio da sua mÜlher. Segundo o direito
11111w se pode ver pela história de Chuppa, que tentou arrebatar .romano um homem apenas podia dissolver o seu casamento se a sua
1 111110 noiva a filha de Badegisel, o último bispo de Le Mans. A mãe mulher cometesse adultério, feitiçaiia ou fosse alcoviteira35 • Segundo
d11 jov ·m resistiu com os seus homens e Chuppa perdeu vários dos a-lei germânica, um homem podia repudiar a sua mulher por esta ser
1•11 !'1 purlidários28 . Havia ainda o Friedelehe, e podemos ver os re is estéril, bem como por qualquer crime grave. Se a mulher estivesse
111< mvíngios casados por esta forma com mulheres que lhes eram_ acima de qualquer suspeita, ele podia ainda divorciar-se dela se
1111!•1ior ·s. As mulheres não beneficiavam de grande protecção eco- quisesse renunciar ao controlo sobre os seus bens e pagar-lhe uma
11111 11irn neste tipo de laço conjugal. Por exemplo, Ingunda implorou compensação igual ao presente de noivado 36• Uma mulher tinha de
111 rn marido, Clotário, que não a abandonasse quando e le casou manter7 se fiel e obediente ao seu marido mesmo ue est~__fosse
111111 u sua irmã, Aragunda.29 . O casamento lombardo era o tipo de bêbado, 'jogador, a maltratasse ou fosse âdúlter? 37 • ~gundo a mais
11 111 li l' lll que o no ivo não pagava a meta da noiva e em que a mulher simples das leis germânicas, 9 Código Burgiindio, ela deveria ser
1 11 1i lhos permaneciam sob a protecção da sua própria família. sufocada na lama se tentasse divorciar-se deJe. Segundo a lei romana
p ll t'• ras sangrentas que os cronistas re latam atestam que no ser-lhe-ia permitido o divórcio_se pudesse provãr que o mai·ido era
1 1 1111 11•1110 a lgumas vezes os desejos da família da noiva eram culpado de homicídio, necromância, ou violação de túmulos , _por
1111 11 11 pH•:,,,udos. H ucbaldo, por exemplo, conta na sua Vita sanctae outras palavras, de crimes na realidade muito graves 38• 1). lei visigó-_
l't, 1111,//,1• q11 • os irmãos desta mataram o seu marido vários anos tica pennitia gue ela solicitasse o divórcio se o marido fosse consi-
11111111 11! 1rnsomento, apesar de a união já ter dado um certo número derado culpado de pederastia ou de a ter obrigado a fornicar com
ti, 1111111 111 C\ •riamente que as uniões entre mulheres livres e homens outro homem39 . Uma forma de uma mulher conseguir escapar a uma
11 "1 11 11 1•111111 condenadas como contubernia ilegítimas. ~mulher união infeliz era m andar matar o marido. Foi o que Fredegunda fez,
} \11 A 1111lihl·1·1•s 11,1s estratégias fa miliares e sociais
N11 " , 111m VI l' VI I o e11xova l da herdavam em termos iguais. No extremo oposto 1• 11\ 11111 11
n p11~11 1o, t1111111vu i11l'luir objcctos
!1111111 til m 1• 11\111\ ll·i1a, com metais saxónico e turíngio. A Lei Sálica, em r ' dHv~·t 1 111,11 111 ,111
Jlll, 111~11~. /11 f•ul11~ ti • ouro visigóticas, também os outros códigos permitiam que u1 1111 1111tlh, 1 li, 1d 1
~1111111 VI M11d1 ltl, Museu terra que fora comprada, más não a que ra do p 11,111111111" ,h,
1q111·11h\f' ll'll,
pais 46 • As mulheres herd~vam também os l111v1 11 111 11 li
mulheres da sua família e recebiam um enxovul q1111111l11
Este consistia em artigos domésticos e pcssonl • 11111111 1 11 ,ti
pela descrição dos vestidos elegantes e caros, 1>111 l> I I" 111 , 1 11 111 11
objectos preciosos que foram oferecidos a RI / 11111111 ,, lilli 1 ,l,1
Chilperico e de Fredegunda47 • Reconhecidat1lllt1l i', 1li 111111 1
apropriadas para a filha de um rei, mas as p •, 1111• d, 111 11
condição davam também tanto quanto p di11111 ,
As mulheres das classes mais baixas tinht1111 ptt1 1 11111 1 111, 111 "' 1
liberdade para casar com homens de sua 1•li;t 11 1" 1 '1111 111 11 11 • 1 ,,
das mulheres nobres, a castidade das mullt 1'l'N tl1 1111 11 11 11111!, 111
segundo o Liber historiae Francorum40 • Não há provas de que a estava protegida da violação por estranhos, ·111h111 111 h I d,, 1111 11 1 111
Igreja franca, exceptuando o concílio de Orleães cm 533, que proibiu dos seus senhores. O menor valor era atribuído vltl11, 1 , 111.t, ,l 1
o divórcio com a alegação de doença, tivesse legislado sobre o ancilla comum, seguida pela semi-livre /iw dqu11 p1 h, /1/•, '1,1
divórcio até à época carolíngia4 1. Mas isso não significa que os clé- livre; no topo de todos, segundo a lei burgúndin , s111v 1111 11 1 1111 11
rigos conscienciosos não excomungassem a parte culpada. ~s leiL, da Igreja e da coroa49 . Uma distinção po t rior l'ol 1• t,1111111 li ti, 1
lombardas penalizam, de resto, menos pesadamente a fornicação .Q.Q.... Jhadoras especializadas e não especializadas. /\q11 \•li1 q111 11 ,ti 11dl 1,
que o adultéào42 . Se uma mulher livre fosse descoberta pelos seus vam como criadas domésticas ou artesãs num ~ " "''' '1•11111 1 1!1 111111 11111
parentes por haver fornicado, estes podiam quer vingar-se quer valor mais elevado do que as escravas comuns, 8 'íl11111 l1111 / ',11 111 /, • '
obrigá-la a casar com o homem em causa. A fidelidade no casamento Salicae 5º. Como se vê no Código dos Francos Rlp1 111, ili 111 1 lill1o 1
era apenas exigida da esposa, não do mãrido, com a condlção, co!E_ de uma mulher de alta condição era negado oi', 1111111 11 li ,,1., 11 1
tudo, de ele não seduzir a mulher de um outro. , ela detivera se casasse com um homem de lass II li !11 u 1 1' 11
A mais importante evolg_çã_Q__na história das 111ulher(;!s de~de o as classes baixas a categoria não era apa r nt •111 11111 11111 11 111 1111
tempo em que Tácito escreveu até à codificação _4as lei~germânic.a.s finais do século VI, mulheres livres casav11111 t•11111 1 11 1 11 11'
-foi a- melhoria_dos seus_direitos
--- económicos.
- - Inicialmente
- - - - as mulheres - - de tais leis. De facto, os senhores encorajuvt1111 1111 11111111 1 11
germânicas não herdavam e não odia_J'!!__EOssuir qualquer proprie- mos ver a partir das Formulae que, levados 1w111 d11 v d.1 1 1,, il 1 11
dade. Mas nos finais do século V o «preço da noiva» evoluiu para o de possuírem uma força de trabalho suf'ici 111 •, 1 li 11, 1111 1!, • 11111
;;presen.te da noiva», que esta recebia em parte ou no todo. Chamava- •statuto livre a essas esposas e garantiam qui• o 111 111 11 11
-se-lhe wittemon, ou meta, ou nuptiale pretium, ou uxoris pretium, também livres.
o qual, com o tempo, acabou por ser designado como dos43 . Assim, Depois de se ter convertido em 587 lo /\111111 1 1111111111
os códigos al~haram a situação da noiva germânica com a sorte R 'Caredo começou a perseguir os Jud us 1111 111 11 11111
mais favorável da mulher romana. Não obstante, São Leandro, no d cisão do 3. 2 Concílio de Toled s gundn I q1 11d 11
/ seu De l nstitútione virginum et contemptu mundi ad Florentinam ·asamentos mistos entre Judeus e riHll OS 1111111111 111 11 11111111 1d11
sararem liber, descrevia-o, em termos pouco lisonjeiros, como o 'ontra a opinião de Isidoro de evi llrn , qm• i't H 11111 111111 11t 1 1
preço pago pela perda da modéstia44 • A diferença entre o dos e o Jud us cm outros assunto , o sue ssor d l~l'l'111 1·tl11 d111 1111111 11 11 111
Morgengabe era que este era dado depois das núpcias e era geralmente os Jud us que se não conv ri ss ' m d ·v ·1i11111 tl1 ,11 11 , 11 "111
constituído por uma oferenda menor do que o prime.iro45 • O Mor- Huh·mos pela Gesta .Dagoberti qu inill11111•, d1 l111 li 11 1"11111 111 1
gengabe era também dado à Friedelfrau. plll'u o Norl, d Áf'ri a ou para u : lit1 11111,1v 1111 ltt 1 1'11 1 11111,,
S_ob a influênci~ das l~is romana~ as leis q__ª herança_gennâniçm; pulnvrns, hom '11S, mu lher ·s ·rit1 11 ·11s J111h 11 1111 111 1,11 11 11'11 li 11 1
tornaram-se ta.m bém menos restritiv;!§. 9 direito Yisigótico_ rescrevia tu m •nt o. ( pior 'Stnri u 11i11cl11 p111 11 vi ,· 11111 d11 111 111 1111 111 11111 111
que, no caso de serem intestad~, todos os filhos, raP-azes era ari~ ,rn11 111 ,n 7 11 , os rilhos do 111111111 j1111t 11 11. 11 11 t11tl1 ,111 , ,1,
'Ili 1111ilhl'1t'N 111111 ,•slra tégias familiares e sociais
entregues ao Estado, e depois divididos entre boas famílias c ristãs, fez uma conciliação ·entre a posição dos padres ocicl ·11111 1 11
como tinham de casar com católicas íntegras. Pouco nos surpreende costumes do povo, _cujas predi}écçõe~ se reflectem nas fm ,1111/,1, il 1
que essas crianças, bem como os seus pais, tenham tratado os época, que provam que o divórc io por mútuo consenli1n 111111 1111111
nuava a ser muito popular59 . Além do mais, no sínodo cl t· Vt 11 11 1111
Muçulmanos, quando estes chegaram, como libertadores da huma-
nidade55. promulgou uma ordem segundo a qual todos os casam •11111 1 1 1,
brados no reino tinham de ser públicos60.
A ideia de Carlos Magno do que devia ser um impc rn do1 t 11 1 11,
/
A época carolíngia era m ais exigente. Em 789 proibiu o recasamento dos d ivt111 11111, 1
de ambos os sexos. Em 796, perante os bisp os re un idos 1•111 h 11 11
A importância histórica dos tempos carolíngios reside no facto declarou q ue o adultério não podia dissolver o vínc ulo mui I l 111111 11 d
de ser esta a primeira altura em que se pode falar de cultura europeia. e incorporou esta ordem na sua capitular aos missi dom inil'i dt· H11 ' 1
Enqu anto o reino merovíngio era secu lar, a unidade teocrática era a Enunciou esta regra depois dos se us dois casamentos te r 'll t H il 1111 h,
característica predominante do reino carolíngio. Quando, em 752, em divórcio, mas permitiu que as suas próprias filh as casusst 111 1 111
São Bonifác io coroou Pepino rei dos F rancos , fê-lo com autorização Friedelehe62 e manteve várias co ncubinas entre e d po is do 1 11
papal. A partir de e ntão, os carolíngios protegeram a Santa Sé. Mas próprios casamentos. Apenas Leodegária conheceu a ho nr11 ti, 1 1
o esforço dos carolíngios para serem os representantes da Cristandade ele vada do estatuto de concubina ao estatu to de rainha.
foi de c urta duração, e depois da morte de Luís o Pio, em 840, o A seg unda mulher de L uís o Pio, Judite da Bavie ra , l'oi 111 11 11,l 1
império desintegrou-se gradualmente. de imoralidade pelos seus inimigos. Muito bonita, e ra fi lh n do, 1111d,
240 /\s 1111 ,llwr~·s nas estratégias fam iliares e soci ais
Mnr6sia, mãe do papa João XII, que tinha cone bido 111111 11 1111 1,
St rgio LII, depois da mo1te do seu segundo marido, u ido d11 l 11 , 111 ,
111 ·io-irmão do rei Hugo, enviou emissários a este üli 111111 q111 , , ,
t11111bém viúvo, convidando-o a vir ter com ela, a ai-111 1 111111 1 l 11 1
rnnquistar a cidade de Roma. Hugo não se fez rogado ,. 1 111q1o 1,
foram celebradas em Roma no Castelo de Santo /\11111 11, 1\ 1 t
Albcrico, filho de Marósia e do seu primeiro m arido, 11 111 111 1ol 1
,narquês Alberico, impediu um desenlace feliz. Rcv o ll rn1 1 1 11 1111 1
llugo, que teve de fugir a meio da noite deslizando igno11111tl11 1111 11 111o
pela m uralha do castelo e abandonando Marósia às t1 11 1 d11 111111,
incapaz de colher os benefícios do seu casamento 8K.
Outro bispo, Ratério de Verona, era mais favoráv 11 1111tllt1 11
Mas como todos os homens da época derivava mulil'I' dt• //111//111,1
fraq ueza, e associava o m asculino ao espírito e o~ 111 l11 i1111 111111 11
A lém do mais, estabeleceu a distinção entre a mulh L11 1111!1 11 1
esposa que deve ser submissa ao seu marido. O casam 1 111 11 tl1
celebrado publicamente e os cônjuges deviam ser f'il , 111 111 11
corpo como no espírito. A verdadeira virtude de un111 (' p11 t , 1 1 1
sua modéstia. Aos pais e às mães Ratério consig nuv11 11 ti, 1 1 11
d isciplinarem os filhos. Às viúvas aconselhava qu 11 1111 , 1d11111,I,
nassem aos prazeres da vida, porque uma viúva dadt1 1111111 111ol11t
gência valia tanto como se tivesse morrido89 .
Mais agradáveis eram os m aldosos comentá ri H d1• 1 111 q ,, t1 , 1
sobre os prazeres da cama. Sabemos que ele odiava Bt•11 1 1 11 111 it
rei Hugo, porque dizia ser ela a causa de mu itas qu I' ·111 , I'"' , 111 1
Estas personagens que cantam e todas lhe deram filhos, que o rei Hugo colocou em posições influen- da sua astúcia e dos seus exercícios na cama. Detestavn l lt 11111111 11 11
dançam são uma miniatura de um
manuscrito francês do século XI tes85. Por outras palavra-s, as concubinas não tinham quaisquer pre- que, depois da morte do seu marido Adalberto d · lv1, 11 , 1, ,
contendo De vita sanctae Radegundis. tensões de natureza legal; o seu futuro dependia da vontade do seu pronta a dormir tanto com príncipes como com ho11w11 tf 11 I"'
Capturada no campo de batalha pela
família do seu esposo, rei polígamo,
senhor e depois da dos seus filhos. Desaprovava igualmente as duas Willas- a esposa do 1111 11111 "", 1
conseguiu obter do bispo Marardo o A.s..111ulheres_casadas em contra artida, tinham muitos direitos e H ugo, Boso, e a sua filha, esposa de Berengário de lv11• 1 , I"' 1
consentimento para dissolver o seu de Boso escondeu o cinto com pedras preciosas do 111111 ld 11 1 111,, ,
casamento e ingressar num mosteiro
~m~ições. No sécu~o X_ um nú~~o cr~scentt de- espo§_as aparece
de Poitiers. Poiticrs, Biblioteca como cas~lãs, sen_!ioras_de propriedades fundi árias, proprietárias nádegas, e a s ua filha viu o seu amante clérigo caslrndo p1111 11 11111.t
Nacional. de igrejas, participantes em assembleias seculares e ecfesiásticas e ao ser apanhado por um cão quando se dirigia para n t•t111 111 d t 11,
~et~ntoras do poder de comando militâre dorespectivo direito de amante. Estas mulheres não eram, certamente, tfmiclus. S 11 1111111 , p,,
JUSt1ça. A terra_ era_entl!o a úniça fonte de poder e as mulheres queriam o poder e faziam tudo para o obter90 /
podiam herdar temt_dos seus maridos ou d~ sua famíli;, e podiarr{ A posição de uma mulher era determinada pela su111 iqrn ·11 I" lo1
exer~ei: ~ oder guavâo...Qs seus_maridos eram chamados à corte real estatuto dos seus parentes e pelo poder dos seus f ilhos, A 1111 111, 11
ou imperial por motivo de gueI"_ra ou de dissensões, ou ~tão qÜando de dar à luz estava subordinada ao seu papel como 0111p 111111 11,1 '"
eles morriam. Matilde, mãe de Otão o Grande·, renunciou a todos os mi!!id.o. O lar, os pobres e a igreja estavam a seu ca rgo . O t 11 111 "1, 1
bens que o marido, o rei Henrique, lhe tinha deixado quando foi político consistia em adquilir-bens suficientes pa ro f'11:,,,t•1· tf 1111~ 111
acusada pelos seus filhos de os delapidar em benefício dos pobres. Igreja e estabelecer casas religiosas para as qu ais s' pod1•1111 11 11, t1
Mas podia continuar a viver nos seus próprios domínios, que tinha em caso de viuvez.Jvlas estas oferendas eram gern ln1t111I( 11 i1,1 1 111
herdado dos seus pais86 . Liutprando de Cremona, que tinha uma nome dos dois cônjuges. ~ o o marido estava ,111s(11111-. 11 t 11111 1t
língua venenosa quando descrevia ceitas damas de Itália disse o ele rezar para que ele fosse bem sucedido , e, d po is d11 11 1 111111 1,
pior possível de Marósia, filha da escandalosa família de T~odora 87 . para que a sua memória se mantiYesse viva.
1 11 11 Ui I' fil(H,. 1,l iH
As mulheres do sécu lo V ao sé ulo X 2111 1
<'01110 viúva, uma mulher podia exercer o poder enquanto os Magno conta também que Santa Monegunda tomou votos religio-
111 1ilhos rossem menores. Eram colocadas sob a tutela especial sos depois da morte dos seus filhos 96 • A vida anónima de Santa
dn ir11p ·radores ou dos reis, mas a sua posição não era completamente Sigolena de Albi relata como ela ofereceu ao marido todos os seus
1 p111·11. /\ melhor oportunidade que tinham de deter poder político bens para obter a liberdade, mas que só após a morte deste conse-
1111 11lrnv s dos seus filhos. Mas nem todas as mães tinham a sorte de gui u construir um mosteiro, com a ajuda de seu pai97• No século VITI,
h•1 lill1os que a amassem. Por exemplo, Ema, rainha de França e a tensão entre pais e filhas era frequentemente resolvida por um
v111v11 , numa carta a sua mãe, a imperatriz Adelaide da Alemanha, clérigo, amigo ou parente. Foi desta forma que Santa Bertilda de
11plkuva-lhe que a ajudasse contra o filho que se tomara seu inimigo Chelles teve a sorte de encontrar como seu campeão Santo Ouen,
1 1 nr usava de ter fornicado com o bispo Adalberto de Làon 91 • Ou a que davam o apelido de Dado, e que era um dos mais influentes
11•1los bispo ·, como Bernardo de Hildesheim, o preceptor de Otão homens de igreja no reino merovíngio98 . Finalmente, nos séculos
111, 11cus,11·am Teófano de ter sido demasiado indulgente com o filho IX e X aparece um terceiro tipo de mulheres consagradas, a filha
l111pl ·s mente para ganhar a sua boa vontade92 • Uma mulher que não obediente de pais muito devotos que faz voto de castidade a pedido
1 11m·11c;ada pela sua progenitura masculina põ de sê-lo pelos sells dos pais. Parece ser este o caso de Herlinda e de Remilda, bem como
111l111ip.os políticos. Algumas viúvas foram viver par~ casa de seu pai de Santa Hatumoda99 • E stes casos ilustram a tendência de certos
1111 r om um irmão clérigo, ou retiraram-se para um convento.J - - pais para encorajarem as suas filhas a permanecerem celibatárias.
Existe ainda um outro tipo de mulheres religiosas, as que se casam
e criam os seus filhos, adiando a sua vocação religiosa até os filhos
As mulheres e a religião serem crescidos, como podemos ver a partir da vida de Santa Sala-
berga100.
Ap ' nas as mulheres que se refugiavam num mosteiro conservando Estes três padrões de comportamento - rebelião contra os pais
11 NIIH virgindade ou a sua viuvez, ou as que permaneciam em casa ou os maridos, tensão e acomodação por intercessão de um homem
1111110 santas mu lheres de Deus, se libertavam das responsabilidades influente, e obediência respeitosa - correspondem mais ou menos
do rnsamento. Já as esposas dos reis merovíngios, lombardos e às três diferentes fases da história do monaquismo feminino. No
11 11~10 saxões preferiam retirar-se para uma instituição religiosa, século VI, época em que os mosteiros femininos são pouco nume-
q11111Hlo nviuvavam. rosos, era necessária uma perseverança heróica para servir Deus
através da vida religiosa. Durante os séculos Vil e VIII foram
construídas por todo o lado instituições femininas, e as mulheres
, ,, /\ ruinha Clotilde, por exemplo, depois da morte de Clóvis passou conseguiam ·encontrar homens de religião que intercedessem por
11 1t•s10 dos seus dias na Basílica de São Martinho93 . Quando Carlos elas. Nos séculos IX e X, época em que foi incentivada a clausura
Mu 110 d 'Slronou o seu marido, a rainha lombarda Ansa juntou-se à estrita das monjas, os pais pressionam as filhas para que entrem para
11111 ilhu no mosteiro de São Salvador em Bréscia94 . A rainha Etelreda um mosteiro. Este padrão observa-se não só na Gália mas também,
li 1 11111i10 que queria retirar-se deste mundo, e acabou por obter o embora de forma atenuada, na Itália. Depois da invasão dos O stro-
11•!11111111 · ·onsenlimento do rei Egfredo para que entrasse no mosteiro godos, Bizantinos e Lombardos, sobressaem os esforços do papa
d1 <'uldingham 95 . A própria natureza do papel de esposa na família Greg61io Magno e da nobreza lombarda nesse sentido. Gregório
1111 llll' I' li ·u, repleta de uma riqueza móvel representada por jóias, Magno1 por exemp lo, oferece u a abadessas vários edifícios em
1111111<111 l' roupas, dava oportunidade às mulheres de cimentar alianças Roma ·que tinham sido destinados pelos seus doadores a institui-
111111 hilipos ' abades. ções masculinas. Exortou também o clero a proteger as instituições
l1í 11s crónicas e hagiografias merovíngias estão repletas de femininas, lembrando aos clé1igos que deveriam recomendar às
111 h 11 IIL sohr · as percepções da virgindade e da continência sexual. monjas para permanecerem castas, sedentárias e para não esbanjarem
l '1, 1, 1v1 lllll'IIICeram a moral sexual dupla a que as mulheres estavam os bens da comunidadew•. A comunicação mais desagradável de
11 I• 1111 , o 111 ·do la gravidez e em certos casos a brutalidade dos Gregório foi dirigida a Januário, bispo da Sardenha, porque ele não
1 11 11 1111 Idos que as levavam a evitar o casamento e o recasamento. protegia suficientemente as comunidades femininas. Os homens que
1111, 1•111 111111110, na sua De vita sanctae Radegundis, conta-nos como eram encontrados nos mosteiros femininos, se fossem leigos, deviam
1 1d, 11111 11 1bds1iu da sua vida de mulher casada quando descobriu ser excomungados; se fossem clérigos, eram privados do seu m únu s
q111 11 1 11 p i op1 io irmão tinha sido assassinado pelo marido. Gregório e encerrados num mosteiro masculino; e as monjas culpadas deviam
' •li 11111111,•11·~ 11,1s estratégias familiares e sociais
ser submetidas a orações e jejuns por causa do pecado cometido 102. àquelas que não desejavam casar, enquanto a tlim 1• '1111111 11111 1
Após este período, na era carolíngia e nas suas repercussões, as fun- verdadeira vocação religiosa.
dações de mosteiros femininos decrescem. Apenas na segunda metade No século VII, os esforços de São Columbano,, 111!111111 11 l 11 ,h
do século X assistimos à edificação frequente de mosteiros de freiras deram os seus fiutos. Chegou ao re ino fran co na 1111 1111 1 d, 1 1d 1 1
em Itália, o que se ficou a dever à influência dos Otonianos, que século VI, e era tão amistoso com as mulheres como t' I 111111 l11111 11 11
também se manifestou na Alemanha. No mosteiro de Luxeuil, de que era fundador, os 1•11 ili I q uil ,
Na época heróica do monaquismo apenas existiam alguns mos- exibiam em relação às mulheres religiosas um espíii1 11 dtl , 11 111 , ,1 1
teiros na parte sul do reino franco. O s mais famosos entre eles eram do século anterior. Trabalhavam em parceria co n1 li 111111111 1,
os de São João de Arles, que São Cesário, bispo de Arles, construiu, descobriram uma solução prática para o estabeleei1rn 111 11 ,h 111 11 1, 1
organizou e dotou com uma regra para a sua irmã, Cesária103. Na ros femininos fora das cidades. Para proteger as H· l1 1 11, 11 I ' 11
França central e setentrional o monaquismo feminino deu mostras aj udar a gerir os seus estabelecimentos e para lhes ro, 1w11 1 1 1 lo 11
de um maior vigor. Sabemos por Gregório de Tours que nas cidades religiosos estes homens empreendedores dotaratn tlH 11111111111d,1,h
eram constrnídos institutos para mulheres, onde estas estavam a femininas' recentemente fundadas com um contin •1111• d1 111 11111'
salvo dos ataques 104. Pelos finais do século VI havia mosteiros femi- Criaram assim uma nova instituição, o moste iro thq 1lt1, 11111 111!11 •
ninos em todos os centros urbanos da Gália . Em Itália prevalecia a alguns precedentes no Oriente e possive lmente tan:b 111 1111 lil1111il 1
mesma situação; as contingências das zonas rnrais não encorajavam Nestes mosteiros as freiras não viviam como paras1tus do 111 11 1111 1
a construção de comunidades femininas fora das cidades. Gregório Deveriam encarregar-se do trabalho manual. Cozinhn r, ll111p 11 1 1 11
Magno concentrou os seus esforços nas cidades. Para além dos de à mesa, coser, pescar, fabricar cerveja e acender? lum 1 1·1 1111 tl t1t1111 1
Rom a, escreveu cartas para mosteiros femininos localizados em das suas incumbências diárias, tal como nos di z Va ldub •1111 1111 11 1
Nápoles 105, Pisa 106, Lilibeu 107, Luna108, Nola 109 , bem como nas cidades Regula cuiusdam patris ad virgines 116 : Sabem?s tamb 111 1wl11 li , ' "
da Sicília11º e da Sardenha 111 . de Mary Bateson Origin and Early Hzstory oj Dout,/e M ri/lrl\ /1// 1,
Em ,614 reuniu-se um concílio em Paris e Clotário III anunciava que as monjas desempenhavam múltiplas funções e qu · • 1111 111 11
uma nova era sentenciando com a pena de morte o s raptores de riora era geralmente uma abadessa 117. Mesmo os ass11111 0 111 11 11
mulheres. A partir desta data, no reino franco, as mulheres que qui- estavam submetidos a regras. Por exemplo, o lugar d · r ui 1 1111 11 1 111 1
sessem furtar-se ao casamento e levar uma vida ascética precisa- dormitório obedecia a certos princípios; os lugar s du 1111H 111 11
vam de menos coragem para perseverar nessa via112. A entrada numa novas eram dispostos alternadamente com o s das mu v1 11 11 1 I' 11 '
casa monástica era proposta pela Igreja a viúvas que ambicionassem evitar a leviandade ou a tentação carnal. A lavagem do t 1tl 11 1, 1 1 1
um estatuto igual ao das virgens e como fmma de penitência a -se apenas aos domingos, e à vista de to~as . .
mulheres pecàdoras 113. As leis dos Lombardos são um tanto mais Os ritos penitenciais irlandeses tambem fo ra m 1111 1111111 11 111 11 ' '
indulgentes, embora punissem as mulheres que desistissem do seu continente, e as abadessas, especialmente nas c nn111ld11d1 ol1qil 1
estatuto religioso com a perda dos seus bens, além de se tornarem tinham de ouvir a confissão das religiosas três vez ·s p 111 d 11 111 ' 111
propriedade do rei, que podia fazer com elas o que lhe aprouvesse 114 • penhavam igualmente uma função quase sacerclo tu l d 1111111 111 11 111 101
1'111111<·nor de uma miniatura do
\,,,.1 ,111w111ário de Saint-Denis, Havia também virgens e viúvas professas vivendo fora dos muros aos membros da sua comunidade . A ocupação n rn 11tl d1 1111111 d,'
., , 1110 IX. Paris, Biblioteca Nacional. dos mosteiros, em sua casa 115. Esta forma de vida religiosa convinha dessa incluía a administração, a disciplina e o cuid11d11 111111 11 I" 111
-estar espiritual.
A enoime popularidade das instituições cluplus 1111111111
fonte de grande inspiração por todo o Ocident· ·. S11 lll'11t11 11111
1 1
0 Venerável que Earcongota, filha do rei de K nl , •sn il ln 11 11 1 1,
de Deusnoreinofranconummosteirofundaclo rn llrll 111lt1 1111111h
Fara e muitas foram aquelas que se vieram ·s!11lw l1•11 1 1111 e I ilt 1
co m .esse fim 118 . Várias casas duplas foram 1111nhl 111 l1111d11d,
Inglaterra. Hilda, abadessa de Whitby, g vcrn nv11 111 1111111 1 111111111 1
simultaneamente. Passara trinta e três anos clu 1n111 v1d11 1•111 111 111 1111 '"
0
iduno, bispo de Lindisfarne, chamou-a para que regressasse ao seu longe do que o resto dos bispos. Incluiu na «Capitular» a regra de
p11ís de origem, e ela tornou-se a fundadora de vários mosteiros que mesmo as mulheres letradas e inteligentes não deveriam ousar
01d uindo Whitby._ A sua grande fama provém da sua vida religiosa; ensinar homens 125 • Em suma, enquanto os bispos nada podiam fazer
':~orlava todos a v1~er~m na paz do Evangelho. Um dos seus monjes para impedir as mulheres de exercer o poder no mundo, na igreja
1, u. cdmon, o pnme1ro poeta da língua inglesa119 . Também em conseguiram mesmo restringir a sua actividade.
li dia foram fundados alguns mosteiros duplos, embora não fossem A clausura das freiras é uma questão que pesa fortemen te nos
governados por abadessas. Por exemplo Santa Maria e São Pedro espíritos dos primeiros clérigos carolíngios. O concílio de Verne uil ,
1·111 Alife, dependiam de São Vicente de Volturno, uma comunidad~ reunido em 755, apenas permitia às abadessas e às outras religiosas
11111sculina. Em Roma conhecemos apenas os casos dos mosteiros de que deixassem a comunidade se fossem convocadas pelo rei. A rei-
Santo Estêvão e São Cesário, que eram governados por uma aba- teração de restrições semelhantes, ou mais fortes ainda, indica que o
ckssa e por um abade, mas que estavam sob a protecção da Basílica enclausuramento não era fácil de impor126 • Tal como as suas irmãs
de São Paulo 12º. anglo-saxónicas, as monjas francas estavam aparentemente 1;:iabi-
tuadas a ir em peregrinação até que o concílio de Friul, reunido em
796 ou 797, lhes ordenou que abandonassem essa prática. Consi-
f 11 , 11 . ~o seu esforço para restaurar o sistema monástico na sua pureza derações semelhantes levaram sucessivamente os concílios a invec-
ongm,'.l, os ho~e~s . de igreja do séquito de Carlos Magno rein- tivar as freiras que usavam trajes masculinos e a avisá-las contra
1rod uzll'am o pnnc1p10 de que as mulheres eram o sexo mais fraco visitas desnecessárias de bispos, cónegos e monges 128 • Carlos Magno
l ' linham espíritos instáveis. Em 742, quando Bonifácio iniciou não só aprovou estas regras como mandou que as abadessas cons-
rl'l'ormas na igreja franca, insistiu para que tanto os frades como as truíssem claustros nos seus mosteiros 129 •
l'r ·iras observassem a regra beneditina 121 • Treze anos mais tarde o Uma ampliação dos esforços para evitar o perigo de uma asso-
concílio de Verneuil ofereceu a opção entre a regra beneditina ; a ciação estreita entre os sexos no interior dos mosteiros femininos foi
ordem canónica aos homens e mulheres que queriam servir a Deus. proibir as religiosas e a~ cónegas de educarem rapazes 130• Mesmo os
A regra para a vida canónica dos homens ficou pronta a partir de hospícios para os pobres e para os peregrinos tinham de localizar-se
/(16 graças aos esforços de Rodegando de Metz, mas a definição no exterior do mosteiro, anexos à igreja, onde o clero se poderia
do cargo de cónega teve de esperar até 813, data em que o concílio
d • .halon estabeleceu as suas bases, e até 816, data em que foi
p11 blicado o Institutio Sanctimonialium 122 • Porque se considerava
q11 • cr~m fra~as e de espíritos instáveis, as cónegas deviam levar
uma vida mais austera do que os cónegos - tinham de estar estri-
111111: nte enclausuradas e a gestão dos seus bens privados tinha de ser
rnnf tacla a um terceiro. Além do mais, tinham de velar a cara na
,g,·cja e manter-se cuidadosamente afastadas de qualquer contacto
l'Orn os homens. Mesmo a sua comunicação com os padres era
li mitada - elas podiam confessar-se apenas em presença elas outras
111111 s 12 1.
Além disso, no século X, os clérigos instruíram as mulheres de
ljtH' .dev i.a~ compo~tar-se humildemente na igreja. Se fossem virgens,
cl1•v111m 1m1tar Mana, «espelho da castidade, inscrição da virgindade, As doações cios le igos forn m
li· 1 munho da humildade, honra da inocência», escreveu Ratério de indispensáveis paru o crescimento
dos moste iros. O ohjcc10 da ilusu·ação
V1•1OI ta 124• Preceito.s idênticos constavam igualmente na «Capitular» fo i um presente de um tal Mumma à
e li A1: '. >de Vercelh. As mulheres não podiam aproximar-se do altar, abadia de Flcury-sur-Loirc, fundada
111111•11 llllham de permanecer nos seus lugares, onde o padre deveria em 6 15 . Pormenor com anjos o u
bustos de apóslolos que adornam a
111 1 l111r as suas oferendas. Com efeito, as mulheres, incluindo as fila superior ela Arqueia de Mumma,
111 li II N, JH o deviam tocar nos vasos sagrados ou nos paramentos arte me rovíngia cio século VII.
1 11 11 llp ntdos , nem levar o incenso para o altar. Mas Atão foi mais Saint-Benoit-s ur-Loire.
2,,1 A 11111lh1'r'l'Hnus estra tégias familiares e sociais li li
Os llv1ns 1111 11111 uhj1·1·tos ele luxo, uma rapariguinha de família pobre a quem fora negada a 1d1111 111
('()11111 O lll l'SIII U Íl11l'll'SSC eli tista
l'lll doto los d1· v11lo1 11rtfs1ico. num con vento. Após tal recusa ela escolhera instalar~s no \( 111111 1 1li 1
As !'lll'lld1•11111ç/\\'s com melais perto do túmulo de Austreberta. A santa, contudo, mt f'Vl'tn: 11 1il 11
11oh11•s, p1·<li 11, pn:ciosas e marfins dessa foi atingida pela doença e então arrependeu-s ·, t'l'('oli 11111 1
10111111111111 1>u1 1c de tesouros apenas 11
11n·ssfvl·is II uma minoria aristocrática. saúde m andou buscar a rapariga e aceitou-a como pos111l11 11 l1
C'111 los M111,1110 e Carlos o Calvo qualidade m ais notável das abadessas francas do século 1 1111 111 1 1
dcsllll'u111n1 se pelo seu interesse
por este I ipo de objectos. Capa da a sua santidade, mas o seu engenho. Ennentrude, abadessn d ' lt11i.11,,
c11cadcrn11ção do Saltério de Carlos o ilustra-o perfeitamente . Conseguiu obter importantes d q1111 1111 1
C'ulvo. Na parte historiada, a alma de
David protegida pelo Todo-Poderoso.
Jouarre, e logo que o mosteiro se tornou um local de p ' l'l')•t 111111 1, 1
Sécu lo IX. Paris, Biblioteca Nacional. e graças à intercessão da imperatriz, ela recebeu de ado 11 e .d 1
garantias de imunidade, com os respectivos direitos de n1l11('t11l 111 1 h
cunh ar moeda 136 . Além disso, as famílias locais apod ·1·:11 1111 • d 1
exploração dos rendimentos monásticos .através das sun~ 1ill 111 1111
os administravam enquanto abadessas laicas. Elas transfo11111111111 11
mosteiros em institutos de cónegas onde a clausura es1ri111 d1 1 111 1 d,
ser exigida.
1111111 11t'iu das mulheres na vida da paróquia diminuísse. Ninguém rejeitados pelos seus pares. Que tais medidas eram ineficazes toma-
1 flH'OCupava com º. destino subsequente destas mulheres, que se claro pela segunda carta de Atão sobre o mesmo assunto, onde
I'" 11.íum a hor~ra d~v,dosa de serem chamadas diaconissae, pres- •lc sugere a destituição.
l11•t,•1w1• _ o u episcoptae, designação que reflectia as posições dos
111s mundos.
' l''.1111<~ os clérigos _com? as suas esposas desafiaram as sanções A actividade intelectual e artística
1•1 1·s1(ist1cas. O «PemtencraJ Burgúndio», ao estabelecer cláusulas
1Hpl·ciais para o infanticídio cometido por clérigos casados, teste- das mulheres
1111111huva esse desafio' 51. Além do mais, os concílios consideravam
11 li1l'ontin~ncia de um clérigo com a sua própria esposa como um Na AI~ JE_ade_Média, ao lado dos clérigos ~ dos monges havia
p1•1·11<.lo m,us grave do que a fornicação com uma mulher com quem certas mulheres com uma educação assinalável. Eram todas nobres
11 o fosse casado. Por ter um filho de uma concubina ou por viver ou religiosas. Entre as primeiras mulheres germânicas está Amala-
111111 un~a concubina depois da morte da sua esposa, um padre não sunta, filha de Teodorico o Grande, o rei ostrogodo da Itália. A sua
1•111 <kst1luído do seu cargo. Nos séculos VII e VIII, uma mulher que mãe, Audofleda, era irmã de Clóvis. O seu reinado de nove anos
v1v,•ssc com um clérigo dos níveis mais elevados era tratada como acabou com o seu assassinato, estrangulada no banho quando era
111111'. udú ltera. Sabemos pe~o comentá.rio de São Bonifácio que não mantida como prisioneira. Como o seu pai, ela tinha um profundo
1•111 111vul~ar encontrar cléngos com vá.rias concubinas por noite1s2_ respeito pela cultura, pela literatura e pelo direito romanos. Conser-
1J11t11 ·ap1lu lar de Carlos Magno sugere que alguns padres tinham vamos dela três cartas, escritas a Teodora, a Justiniano e ao Senado
v 11 ins esposas, faziam correr o sangue de cristãos e pagãos e se de Roma. Outra mulher secular de algum renome foi Euquéria, que
11•1·11suvum a obedecer aos cânones 153 . era casada com o governador de Marselha e cujo epigrama foi con-
Na ~poca carolíngia, sínodo após sínodo proibiu-se que os clé- servado por Fortunato 156( Ü seu curto poema sobre um pretendente
1lpos vivessem com outras mulheres que não as suas parentes de de baixa extracção é rico de metáforas subtis e complexas. A terceira
154
Nllllf'IIC mais chegadas . O objectivo era transformar o clero num mulher culta cujo trabalho conhecemos é Duoda, mulher de Ber-
1•111 po e Ii batário, e já não uma questão de ascetismo. Era a pureza nardo da Septimânia, que instruiu o filho mais velho, Guilherme,
11111111 que contava. Os reincidentes eram encarcerados e submetidos nos deveres espirituais, morais e feudais do seu tempo. O seu livro,
1dois unos de penitência. As suas companheiras eram punidas com intitulado Liber manualis, serve também para a conhecermos· bem,
11 1•1tc!ll'ceramento num mosteiro. O aviso dos eclesiásticos carolín- e diz-nos do seu amor pelo marido e pelos seus dois filhos, dos seus
inii d• qu~ os conventos femininos se pareciam em alguns lugares problemas com os prestamistas e com a sua doença 157.
1rn11 bordéis sugere que o enclausuramento das mulheres não resolvia As _oportunidades em . matéria_de-~~1,1c~ção, administração e
11 probl ' ma da incontinência clerical. literatura disponíveis para as mulheres que quisessem abraçar uma
No .~ culo seguinte, 'cerca de 940, Atão de Vercelli escreveu com vida celibatária fornecem-nos um quadro mais satisfatório, ~ uJt.9s
1 dvn qu • a sexualidade clerical acima do grau de subdiácono era mosteiros se desenvolvemna mêsrria êíciade, uns maiores, outros -
111111111io 1~~. Alguns padres foram ao ponto de instalar em suas casas mais pequenos. As comunidades religiosas ofereciam urri ambiente
p111 fil11t ns bscenas, comendo e vivendo publicamente com elas. acolhedor e uma atmosfera de paz ·onde-as mulheres podiam viver,
1'111 1 11dornarcm essas prostitutas arruinavam as igrejas e atormen- trabalhar e rezar. Servindo Deus e ocupando-se umas das outras
111v 1111 os po bres, fazendo estas meretrizes suas herdeiras. Uma vez com humildade, elas podiam participar na liturgia e encontrar uma
q111 11 uwlhcrcs e as crianças que viviam com os clérigos ficavam saída para os seus talentos administrativos e intelectuais. Algum.as
1 l 11 11111111l l' sob jurisdição pública, os oficiais de justiça, usando mulheres desempenharam as funções de deãs, de camareiras, de des-
0
1111 li lo d· as expulsar, conseguiam subornos dos atemorizados pensei.ras e de porteiras. Q!!.tras- trabalhar:am- Gomo- bibliotecár-ias,
fl 1d11 1• H'<h1:1.iam-nos à subserviência. Além disso, os padres colo- copistas e rofessoras. A R egula sanctarum virginum de Cesário de
' 1v11111 1 do ludo das mulheres e dos filhos se estes tivessem algum Arles incluía a exigência de que as irmãs deviam ter idade sufi-
1 11
11111 1111•0111 os viz inhos e, rejeitando qualquer reverência sacerdo- ciente para saberem ler e escrever 158 • Todas as regras de que temos
1 ti lf 111v 1111 quunlas injúrias e vitupérios podiam aos seus oponen- notícia atestam uma mesma presc1ição para as religiosas. Aquelas
1 '1111111 p1111i<;t o, Atão somente repreendia os padres e ministros que fossem lentas a aprender recebiam vergastadas, punição consi-
11111 • 1• Vlllu va para que os clérigos culpados de adultério fossem derada exemplar para monges preguiçosos. Para além das capaci-
As mulheres do século V ao século X 263
d 1111 l' I •mcnta.res de leitura e escrita, a educação de ambos os sexos
1 111 l1111i1uda, pelo menos até ao século IX, ao conhecimento apro-
1ksdc que Bernhard Bischoff identificou as escribas do mosteiro famoso é Gongolf, cujo tema está muito próximo da lenda do Fausto
cl1 <'h ·llcs q ue copiavam para o bispo Hildebaldo de Colónia167 , dos tempos modernos.
hu 1111ram-sc mais numerosos os artigos sobre manuscritos copiados Os mosteiros eram também os depositários de obras artísticas.
p111 mu lheres retiradas em mosteiros. Além disso, as freiras eram Sabemos, por exemplo, que no século VIII foram pintados frescos
1•l11s própri as autoras. Baldonívia redigiu uma segunda biografia de cm Bréscia, e que cruzes ornadas de jóias eram usadas no mosteiro
S1111111 Radegunda 168 ; Radegunda é autora de dois poemas que se de São Salvador 175 • De resto, as mulheres nunca foram suplantadas
11111s '!'varam até hoje; Cesária de Arles escreveu uma longa carta a como representativas nas artes liberais. Temos um exemplo antigo
l<ud ·g~111da e a Richilda169; Aldegunda de Maubeuge ditou as suas disso no quadrivium da biblioteca estatal de Bam berg, onde os quatro
vist cs a Subino, abade do mosteiro vizinho de Nivelles 17º. A vida da temas, a música, a aritmética, a geometria e a astronomia são repre-
t 1tl nhu Bcrtilde foi também provavelmente escrita por uma freira de sentados como damas do século X. As mulheres também se ocupavam
< 'hdl •s 171. Cerca de 760, Hugeburca, religiosa do convento de Hei- em bordar tapeçarias e objectos de menor tamanho. As realizaç cs
tl1•11h •im , descreve a viagem de São Vunibaldo à Terra Santa 172. A de duas monjas do século VIII, Berlinda e Remilda de ,Eyck, pod m
l11hliotcca de Chelles, para onde se retiraram a irmã de Carlos M agno, ter sido exageradas pelo seu biógrafo do século IX 176 . E mesmo pos-
Cl1isla, e a sua filha, Rotrude, e de onde mantiveram correspondência sível que o mosteiro de Valenciennes onde o biógrafo diz que e las
1·0111 Alc uíno, atesta o interesse das religiosas pelos livros. Alcuíno foram educadas não existisse nessa época. O que é fascina nle, no
p1•di11-lhcs que criticassem o seu comentário inacabado do Evangelho entanto, são as capacidades que o autor lhes atribui por causa da sua
dt S. João e mandou-lhes os escritos de Beda. Em contrapartida, cultura. Elas conheciam não só o ofício di vino e as cerimónias,
1•l11s p ·diram-lhe que lhes explicasse algumas passagens obscuras de sabiam ler e cantar, copiar e iluminar, mas eram igualmente inslru ftlns
S111110 Agostinho, solicitaram-lhe uma carta de São Jerónimo e pres- em todas as artes que são no1m almente produzidas pelas m ãos dus
io11uram-110 para que acabasse o seu comentário 173 • mulheres, nomeadamente fiação e tecelagem, na feitura e entre la-
No século X , uma cónega alemã tomou-se famosa pela publica- çamento de motivos em ouro e em bordar flores em fio de seda .
i,; o de bras clássicas da literatura devocional e secular. Era Hrots-
v1111 de Gandersheim, uma autora prolífica e talentosa tanto em
p111s11 como em poesia 174 • Redigiu peças, legendas, poemas épicos. Conclusão
1> s •us trabalhos não foram, aparentemente, muito populares na
lcl11d • Média, embora algumas das suas peças tivessem sido copia- O esforço carolÚ1gio para introduzir a indissolubilidade nos casa-
cl11s 1111oni mamente. Já se sugeriu que ela deve ter _influenciado os mentos foi bastante bem sucedido. Tietmar de Merseburgo fa la-n()S
pm•n1us que as freiras de Ratisbona escreveram cem anos mais tarde da existência do divórcio apenas na Polónia. A tentativa de encerrai'
111111 o mesmo encanto amoroso. Apenas sobreviveram algumas as mulheres nos claustros mostrou-se prematura. No século X vemos
1•npl11s manu scritas dos seus trabalhos, mas a sua obra foi redesco- de novo abadessas a assumirem posições de chefia, exercendo pod ·r
h1•1111 110 s culo XVI e os seus escritos foram traduzidos em muitas político, económico e religioso. Na Alta Idade Média, nos séculos V,
1111 1111s ' continuam a ser lidos nos dias de hoje. Nobre por nasci- VI e VII, a sociedade estava pouco organizada; o papel das mulheres
11w1110, l lrotsvita deve ter passado algum tempo na corte, provavel- estava assim em aberto, e elas contribuíram extensamente para a
11u•11l1• quund era ainda jovem . Entre os seus poemas épicos, a organização da vida. Na época carolÚ1gia, quando os reis triunfaram
C;,•,1/,1 Ottrmis cele brava a vida do imperador Otão I, e os Primordia sobre a' aristocracia e os bispos sobre os mosteiros, o alcance das
C 'o,•1111/ili Gondersheimensis registam a fundação do seu mosteiro e actividades femininas foi mais estreitamente delineado e o envol-
11 1111 ltlst riu até 919. Duas mulheres aparecem no primeiro, Edite vimento das mulheres fora de casa ou do mosteiro foi limitado. A
ili l11 pl 111•11·11 Adelaide de Itália, as duas mulheres de Otão I, e nos opressão das mulheres não foi uma história sem fim na vida medie-
I', 111101 ti/" 11parccem em primeiro plano as parentes de Otão que val. No século X as mulheres deram de novo uma contribuição dinâ-
111 lllt11t11111 i.' dirigiram Gandersheim. Hrotsvita conhecia bem muitos mic a e criativa devido à descentralização da Igreja e do Estado. Esta-
1111t 111 , 11111N 1111 primeira linha dos seus favoritos estavam Virgílio e vam então numa posição mais p1ivilegiada do que em tempos bem
l 1 11 111 ln Vi l'pílio serviu de modelo aos seus escritos épicos e as mais recuados. Os seus direitos e prerrogativas estavam de alguma
11 1 111 , 11 lo1·um e. cri tas com o sentido de humor malicioso de forma protegidos pelas decretais imperiais d o século anterior..
1 1, 111 111, 1 1111loru o seu argumento se baseie nas legendas de santos
1111 1, 11 111111 ti l· te r nciano. Entre os seus trabalhos em prosa o mais [Traduzido do inglês por José S. Ribeiro]
A ordem feudal
(séculos XI-XII)
Paulette L'Hermite-Leclercq
, 11111 1 Ho , • d ' P is de ter transposto para o feminino as carreiras, com o cavalo de pau, antes dos quatro anos, Graça escapava à sua
111111! 111 1'111 t •r casado com um príncipe, tornar-se abadessa, profe- mãe e era confiada ao velho Adão de Neville, que fazia dela ime-
11 , 1 1•sni1orn como Hildegarda de Bingen? Tem-se espontanea- diatamente sua esposa. E é apenas então que a história oscila e qu
1111 11h , 11111s sem provas, a impressão de que, desde o início, a facul- Inês perde a partida. Há casamento, muito precoce, e p ortanto com-
cl 111 h d1• Sl' d ·sco lar do molde peltence mais aos rapazes. Haverá que petência da Igreja. Hugo de Lincoln põe todo o. seu peso na balança
111 1111il1wr a questão a cada nível do estudo. A história de Graça de para desmanchar os planos de Adão de Neville. Ainda assim o
, '11l1•hy p •rmi te, ai nda deste ponto de vista, observar os fenómenos casamento realiza-se, mas o bispo excomunga os cúmplices. Primeiro
1111110 /11 11itro. a criada, depois a falsa mãe, cedem . Bem entendido, a verdadeira
1'11rn l'u,. ' r c rer que ia dar à luz uma criança, Inês preparou, for- nunca esteve em questão: tinha fornecido o bebé e o seu leite, ma
11 unwntc, o seu plano sem lhe conhecer o sexo. O interesse excep- não era senão uma mercenária e de mau sangue.
1 11111111 d ·stc caso é o de nos permitir, como numa equação, isolar Apercebemo-nos aqui de uma das lacunas mais graves de que
1111111 int:ógnita. Rapariga ou rapaz, terá isso importância? À pri- padece o historiador destes séculos. Para dar um pouco de carne a
1111•1r11 vista, não! O encadeamento dos factos teria sido o mesmo. estas mulheres, teríamos precisado do seu testemunho, por exemplo
1'1•1•mtk1110-lo: o berço, Inês disfarçada de grávida e a verdadeira do seu diário íntimo. Interrogávamo-nos acima sobre as motivações
11111' dL' ama, o pai putativo, o cunhado desconfiado, ameaçado de de Inês. Sabemos apenas que ela morreu na humilhação do revés,
p1•1d1'I' 11 he rança e que apresenta queixa, o bispo que reivindica o talvez com remorso e medo da condenação eterna. Reflictamos um
plCHTsso como seu, porque se trata de saber se Graça é resultado de pouco sobre Graça, que nesta narração tem tanta alma como um
111111·11samcnto legítimo. Aterrorizado ao mesmo tempo pela mulher peão. Que imagem dela própria e da vida poderia ter? S abia que por
, pt•lo hi sro, Tomás teria morrido, o seu coração teria parado na sua causa o seu falso pai tinha monido e tudo levava a crer estava
1111·~111u noite. Mas imaginemos a partir daí que a criança tinha nas- no inferno; que por sua causa a sua falsa mãe se tinha tornado numa
1 td11 111uc ho. Ele teria sido educado como cavaleiro, segundo toda «criminosa» - é o que dizia Hugo. Enquanto brincava com bonecas,
1 w w s im ilhança sob a guarda de sua mãe. Ce1tamente que o irmão tinha sido casada três vezes seguidas. Uma herdeira legítima podia
d11111111 10 te ria instaurado contra Inês o seu processo em Westmins- ficar melancólica ao medir a que ponto a sua pessoa pouco contava.
h 1, 11111s a justiça real era lenta, venal e neste caso desprovida de Como não se aperceber de que as suas qualidades próprias não
p111v11s: o ra i era o marido da m ãe, ora a criança tinha sido reco- tinham nada a ver com a cobiça dos homens que se acotovelavam
11l11•ridn Tomás tinha morrido sem o ter publicamente renegado. para a desposar? Ela podia contudo ter interio1izado suficientemente
< > bispo também não podia fazer grande coisa: o cavaleiro não tinha o sistema de valores aristocráticos para ter orgulho em se identifi-
v11 l111do para confessar a maquinação de sua mulher. O caso tinha car com a sua função , se sentir poltadora do passado e do futuro de
1,·l11•111odo cm 1194, São Hugo morrido em 1200. Um rapaz teria, uma linhagem. Ela tinha preço, um peso social e simbólico: este ter
1111 q11t• pnrecc, trazido a Inês o que ela esperava: um fim de vida servia-lhe de ser. Ora, a identidade de Graça era falsa, e toda a gente
li 11 1 l' livre junto do herdeiro dos Saleby. Crê-se poder dizer que, o sabia. Ela era a impostura e não semeava senão desgraça; aliás,
1 11 Sl'll S planos foram frustrados, foi porque a criança era uma todos os maridos lhe morriam um após o outro. Como teria ela esca-
1 1p111i~t1. pado ao desprezo dos outros, portanto à má consciência? Mas pelo
N11 111eio aristocrático, desde o nascimento, uma rapariga é mais seu lado, se fosse de inteligência norn1al, não teria ela desprezado os
d, 1 q111• 11m partido, ela é uma presa: desencadeia reflexos, acelera três maridos? Estes eram nobres e sabiam bem que ela o não era;
0
111111 111111 o ·urso das coisas. Em p1imeiro lugar, segundo o costume fingiam. Tinham-na simplesmente comprado pela sua fortuna e,
111p l1 • 11 lt•i devia ocupar-se de Graça, herdeira de um feudo impor- para a guardar, compravam o rei e a sua justiça.
! 11111 l l11 vi11 que prever um homem junto dela, poltanto um marido. Ter-se-á verificado que a Igreja, que trabalha para a eternidade,
, li~ 11 11 ltl•t·d 'i ra era tão concorrida que o rei cedia à tentação de a está patticularrnente atenta ao tempo, e poltanto às mulheres, que
d1111 1111h1 VL',. mai s cedo. Sempre o havia feito, mas o rei João tinha têm com ele uma relação particular. E antes de m ais pela sua
11111111 11111111 reputação de negociar ainda mais chorudamente a cessão programação genética. Elas estão na intersecção do tempo cíclico -
d 1 111p111 t~ us com feu do. Os arquivos reais conservaram o vestígio o relógio das regras, da concepção - e do tempo linear. Quando se
l 1 11111111 • 1,1111111 que exigiu dos três maiidos sucessivos «para terem trata das mulheres, é n~cessário mobilizarmo-nos constantemente
1 , q 11111 11 ,. a sua herança» - eles consignam-nos sem floreados. para conciliar os inconciliáveis: esperar que venha o tempo, deixá-
1 , 11 1 111111, 11 1 id11d · cm que o filho de Tomás de Saleby teria brincado -lo agir e empuná-lo, porque urge.
A ordem feudal (séculos XI-XII) 283
h rnmum salientar-se que o tempo da infância é curto na Idade criança antes do nascimento, como os camponeses endividados ou
1\1, dl11, tanto para os rapazes como para as raparigas; não apenas com fome vendem a colheita antecipadamente? Não se sabe se era
po1 que n morte o encurta muitas vezes, mas por causa das condições casada, viúva, mãe solteira; pobre de mais para a criar ou cúpida:
1•1 111is. Vemos mal em que idade e de que forma os pais chamam a pode supor-se que Inês lhe pagou pat·a lhe ceder o bebé e o alimentar
1ti•11t;11o da rapariguinha para o aspecto sexuado da sua identidade. depois. A menos que ela tivesse sonhado vingar-se da vida por pro- As oficinas dos miniaturistas
11 l1•s do is séculos não nos deixaram qualquer manual de educação curação, vendo crescer a jovem castelã que viria de tempos a tempos conseguem, durante a segunda
metade do século XI, adequar-se
1• 11 documentação conservada é pouco loquaz. Julgamos poder dizer abraçar a sua ama. E Inês? O biógrafo diz-nos que esta «mulher à pintura românica, abandonando
qm u parte da educação mista é muito restrita, sobretudo nos meios estéril que não tinha sido capaz de dar à luz senão uma fr~u de» definitivamente a tradição hispânica.
dissimulava ocupando-se de Graça «como se esta fosse sua filha». A arte das capitais historiadas pode
111vor ·c idos, e que os pais devem desde muito cedo e insistentemente admirar-se nesta letra «E», pe11encente
p1 nwad ir a rapariga de que é diferente, não apenas pelo que ela faz Seria apenas comédia? Nesta cumplicidade de três mul~eres deb~ - a uma Bíblia portuguesa do
11111s por aquilo que ela é e deve ser. Na aristocracia, as rapariguinhas çadas sobre um berço, havia sem dúvida qualquer c01sa de m ais século XII. O tema eleito é David
e Betsabé: o rei com o seu ceptro
o f ·chadas no gineceu, ocupadas em trabalhos femininos, ou colo- nobre do que aquilo que o narrador nos quer fazer acreditar - e a mulher com o cabelo solto como
, ndns 11 0 mosteiro definitivamente ou até ao casamento. Se tiverem que se pareceria com o amor e com uma boa partida ao destino. O alusão à sua virgindade. Coimbra,
destino, aos olhos delas, tinha cabeça de homem: a do marido, do Biblioteca da Universidade.
ldo casadas antes da puberdade, são muitas vezes enviadas para a
l11111flia do noivo, esperando a consumação da união. Qual podia ser
11 11·ssonância no psiquismo de uma criança o facto de se sentir em
11 11si 10 até este ponto, muito cedo arrancada à sua mãe e no quadro
dos s ·us primeiros anos? Que relações afectivas se poderiam esta-
li1•kccr com os pais, com a ama, com os irmãos e as irmãs? De que
,, 11 lime ntavam os seus sonhos?
primeira vista, a situação parece mais favorável nas camadas
111 iis modestas. As raparigas são casadas menos jovens. Entre os
111111poneses como entre os attesãos, as crianças são associadas
1111d10 cedo à actividade dos adultos e a aprendizagem separa muito
1111•1111s rigorosamente os sexos do que a preparação guerreira do
l11111ro nobre. Pode supor-se que a célula familiar guarda durante
111 ds tempo a sua coesão e o seu calor e que as relações da rapari-
11111hu com o pai e os irmãos são menos distantes.
H •r o as crianças amadas? Há que fazer também a história dos
li 1 1i 111 os e dos sentimentos. Salienta-se que os pais choram quando
11 1111,os estão doentes e dirigem-se ao santuário pat·a implorar a sua
1 11111, ou mesmo a ressurreição. Ao invés, é-se surpreendido pela indi-
1 1,1 ll' •rus provam à evidência que a Igreja achava normal que os Mas os indícios são concordantes. Na aristocracia, a diferença de
I' 11 l'HHIISS •m a sua progenitura. Mas como salvaguardar então o idade entre os esposos é muito sensível - dez, vinte anos, às vezes
p, 1111 rpio do livre consentimento? A Igreja deixava aos futuros espo- muito mais - e são as raparigas que são casadas muito jovens. No
11 , 1111 diu do casamento, o poder de recusar o compromisso con- povo, a diferença parece também existir, contudo menos marc~da.
11 111tl11 por •les. Não será necessário ser muito optimista para acredi- Portanto, é sobretudo a mulher a afectada pelo problema do hvre
111 qll l' s • trata da liberdade de escolha do cônjuge no s<::ntido em consentimento no casamento. Mais valia então definir a sua liberdade
q1 u 1u'is o entendemos? Uma rapariga noiva aos sete anos e casada como a de consentir na escolha dos seus progenitores: O que se
1111 doz' saberá aquilo que faz? E antes de mais, o que pode ela explica: a mulher resiste mal à sua sensualidade, o seu .espírito ,é
l 1111 r'/ Dom Leclercq 12 quer convencer-nos. Tomai o caso de santa fraco, a sua pureza constantemente ameaçada. Cabe ao marido doma-
1>d1•, di z-nos ele. Ela não se queria casar. É obrigada a fazê-lo. No -la, diz o bispo Ivo de Chartres, como a alma doma o corpo e o
cl11 du e •rimónia, recusa-se a consentir. Imagina-se o escândalo: o homem o animal. Quanto mais cedo ela passar à tutela do seu senhor
1111 ll'jo desfa z-se; Ode volta para sua casa e corta o nariz para esca- e mestre, melhor será. Plutarco e São Paulo estavam, sem o querer,
p111 dl'l'initivamente ao casamento, o que prova que era livre. Que de acordo para o afirmar. No século em que os homens eram inci-
v11 l1• 11111 direito c ujo exercício exige tanto heroísmo? tados a melhor se conhecerem a si próprios antes de se ligarem, a
l'ocl ' avançar-se uma objecção mais forte porque fundada sobre fazerem frutificar o seu capital intelectual e moral como o faziam
11 (jlll' sabemos dos costumes da época. Sendo a juventude muito para o dinheiro os mercadores das cidades, verifica-se ~ p~opós~o
l 111111 na Idade Média, a idade tão precoce estabelecida pelo direito do casamento esta importante excepção, que recebe uma JUSl1flcaçao
l 111 u111i ·o devia parecer normal aos teóricos: estavam de boa fé quando teórica. As raparigas entram muito jovens para o casamento como
n u1sidcravam que estas. crianças eram capazes de se comprometer. continuam a entrar muito jovens para ó mosteiro. Os espíritos mais
lh •ll·111 bremos o papel capital desta primeira metade do século XII lúcidos, mais exigentes, que tinham reflectido sobre o imperativo do
1111hist ria do pensamento ocidental 13• Fecundada pela filosofia antiga «conhece-te a ti mesmo» socrático, não pensavam nem falavam para
t111 11srni1ida pelos árabes, toda uma reflexão se elabora em torno da as mulheres.
l 1111sci ncia, da responsabilidade. Paralelamente, as novas ordens No fim de contas, em que consistia a liberdade? Georges Duby
11 u111 sli cas como as da Cartuxa ou de Cister rejeitam, entre as ins- encontrou na vida de Santo Arnaldo o sinal do novo espírito da
15
11111 i<,:1 ·s antigas, a prática da oblação que enviava para o claustro Igreja, recomendando que não se obrigassem as crianças a casar .
l l i11 11ças que muitas vezes seriam maus monges. Não queriam senão Alguns pais vêm procurar o santo, desamparados. A sua fil?~recusa
l1111m·11s fe itos, livres, adultos. Mas então, como se podia ao mesmo o marido por eles escolhido. Ama outro e fala em mc1dar-se.
ti 111po d ,r nder que seres cujo crescimento não estava ainda acabado Reencontraremos esta ameaça de voltar a violência contra si , forma
11110 Sl' podiam comprometer honestamente, seriamente, a servir a
1li'llS l' podi am com todo o conhecimento de causa ligar-se para toda
1vld11 t· r pr cluzir-se no casamento? Como explicar uma contradição
1 11 r hocunte? Duas razões vêm ao espírito. A Igreja é pragmática.
1
< 111111t'ic nlc le que lhe é impossível proibir tudo, de uma só vez, aos
li 1111s, l'lu vai primeiro ao mais grave, assegurando a indissolubilidade
d11 1111i1 ·s que impede as manipulações repetidas. Não pode também
l111p1•d ir Ih ·s ele assegurar o mais cedo possível o futuro da sua
d1 1•1 11d 11 ·ia. Se este argumento fosse bom, bastaria esperar: muito Quando se representa a rupt ura com
11 cl11, 11 direito canónico recuaria a idade dos casamentos para melhor os tabus sexuais não se seguem os
mesmos trilhos expressivos que nas
1 , •11rnr o exercíc io deste direito fundamental de escolher e de mensagens pedagógicas. À esquerda,
1111 1•111ir, Ora não é este o caso. A razão principal tem que ser pro- um modilhão (atribuído ao século XII ,
Segóvia) que se costuma chamar
1 111 ,,d,1 110111 rn lado, na imagem que os homens da Igreja têm da
cena de cop11 /açlio. À direita, um
11111 11 11 1 l'ois quem se casa tão cedo? As raparigas, numa proporção capitel com uma figura «obscena»
que joga também com a ambiguidade
11 1 1 11dorn.
repulsiva do mal. Cantábria, Mosteiro
1 11111!1111 11qu i não é possível estatística alguma, mesmo que esta de Cervatos, janela meridional da
1, •• 111 p11 sívl' I nalguns casos privilegiados na Baixa Idade Média 14 • ábside.
A ordem feudal (sécu los XI-XII) 293
111 11111 da impotência e do desespero. Arnaldo aconselha respeito «O casamento foi estabelecido para
procriar filhos aumentando a linhagem
I" l,1, t·olha da jovem. Se a história ficasse por aqui, a demonstração dos homens, e para se evitar o pecado
, 1111 cl1• fu ·10 magi tral do respeito absoluto pela liberdade de escolha. ela fornicação». Assim se exprime no
CIHli110 das Sete Partidas Afonso X o
11 1 Hlri111 ·nLo da narrativa, com muita habilidade, restabelece os
S:lbio. Na imagem, uma cena em que
111111 pti11dr,ios. Dotado de presciência, o santo tranquiliza-os: a se n1ostru com clareza a distri buição
111111e ,suda segundo o seu desejo cedo enviuvará e ficará então feliz cios pup<lis familiares: os homens
conversam nu sala; a mulher fia
p111 t·as11 1· com aquele que eles lhe destinam. Só custava portanto aos na nlcov11 • os fil hos ... brincando
p ti ~ t1111 pouco ele paciência antes de restaurarem, com a harmonia no qum lo'I Mi11iu1ura ela História
<•,1·colá.1·1irn d,• P1•dm o Comilão,
l11111lllnr, a sua autoridade. No fim do seu namorico de rebelde, ela final cio s<lculo XII. Paris, Biblioteca
, •11111 ht• ·c ri a forçosamente que dera uma má cabeçada, visto que Nacional.
1 li rnsnmenlo acabava mal, e que a escolha dos seus tutores naturais
1 111 11 boa escolha. Por si própria, ela dar-lhes-ia razão. Arnaldo,
, rnt111 l lugo de Lincoln, antecipa o tempo: é próprio dos santos. É
11111 isso que eles conhecem tão bem as mulheres.
l Jnirn competente em matéria de casamento, a Igreja levou mais
lt 111 t· o seu zelo para fazer respeitar a liberdade do casamento - no
1•11tldo ·m que ela a concebe. Progressivamente estabelece os tribu-
1111is t• o processo encarregados de examinar as queixas de esposas
q111• li v ·sscm sido forçadas a casar. Se o caso se provasse, estava
p11•vls10 que o casamento poderia ser anulado. Eis-nos de novo nos
1 11111t•s da Leoria antes de a vermos revista outra vez. Para o século
li II documentação é demasiado escassa, mas podemos utilizar os
, lt•111L·111os conhecidos para os séculos XIV-XV' 6. A priori, o que está
, 111 iogo é capital. Puderam as mulheres usar este direito de fazer
11111il11r um casamento imposto? Antes de as seguirmos perante as
j1111 , 1li(·<cs episcopais, relembremos a evidência. Como se verá mais
11l11ii xo, H quase totalidade das raparigas está sob tutela simultanea-
1111•11lt• j urídica e económica. Raríssimas são aquelas que, ganhando
11 1111 vida e sendo indepyndentes, podem bastar-se a si próprias e
d1 por li vremente da sua pessoa. Os pais, os innãos se aqueles mor-
11 111111, dolam as raparigas. Se elas quisessem casar com outro rapaz
q111• 11, li o cundidato escolhido pelos pais ou o recusassem, era ten-
f 1el111 ~11primirem-lhes o dote, cortarem-lhes os víveres. Numerosos
1 11 111,111•s, •s pecialmente meridionais, reconheciam ao pai o direito seus é, a priori, acusada de «vício de ingratidão». Imaginemos que
d, d1• t·1·d11r u filha indócil e aos senhores o de se apoderarem da a sua inocência consegue captar a benevolência dos juízes - todos
p1 11, t' dos bens do apaixonado que não fosse persona grata 17• É homens, castos, para escutarem estas histórias de esposas infelizes .
clllll li 1ilK'.Slimar o carácter dissuasivo destas pressões. O medo do Perguntar-lhe-ão porque é que, casada à força, não fugiu na própria
1 1 11d11lo e du miséria deve ter influenciado muitas raparigas. noite de núpcias, antes da consumação. Nós perguntaremos com ela:
111111} 1m·111os que, casada contra sua vontade, uma esposa se não para ir para onde? Se coabitou com o marido depois da consumação,
1, lp111 1 utiliza a fac uldade que a Igreja lhe reconhece de protes- supor-se-á que acabou por consentir nesta união, o que anulru·á .ª
111 111 111 111(• o lribunal episcopal. A sua diligência supõe que ela se pressão de que foi vítima no dia cio casamento - salvo se consegu~r
li 111 1111 , dl•sul'ic a sua modéstia, os seus parentes e agora também o provar que foi violada. Só seres excepcionais são capazes de fug1r
1111111111 , 11 l11111ília cio marido. Como acolhem os eclesiásticos aquela para escapar a uma violação legal. Nestas condições, não será pre-
1111 , llu•s 11pr ·s ' nta? Nenhum o diz melhor do que o grande jurista ciso ser ingénuo para se regozijar de que um tão pequeno número
1, 1 1 1 11 ln · 111 , llosLiensis: uma rapariga que se opõe à vontade dos de queixas tenha sido apresentado? O que é extraordinário é mesmo
A ordem feudal (séculos XI-XII) 295 ·
q111 li 11h11 havido algumas. Uma nova história vivida vai permitir- Para fazer pressão sobre Cristina, para que ela consinta na decisão
1111 p ,, o dedo na realidade do casamento. dos seus pais - eis no que se resume a liberdade da mulher - diri-
gem-se aos eclesiásticos e ninguém duvida que eles saberão chamar
a jovem à razão, lembrar-lhe os seus deveres. Consulta sucessiva
<'11s1l11u lem muitas oportunidades à nascença 18 . Os pais, de velha aos cónegos da cidade, ao bispo de Durham, ao de Lincoln - po r
ll11l 111pt1111 anglo-saxónica, vivem em Huntingdon, na costa leste de duas vezes. Face a isto, os amigos de Cristina, que querem ajudá-la
111 l11tt1 11·a. O pai é um mercador rico, o mais notável da guilda local. a salvar a virgindade, os piedosos eremitas e reclusos do condado,
11•dl1 de parentesco estende-se por todo o condado. A família mobilizam-se. Um deles bate na porta principal e vai consultar o
1 111•i 111 ·o mpreende os pais e cinco filhos. A tia materna da rapariga arcebispo de Cantuária.
foi d111·1111 tc muito tempo a mulher ou a concubina - neste final do Estamos cerca de 1114, pouco antes da morte do canonista Ivo
1 n do XI-princípio do século XII não se sabe bem como dizer, já de Chartres, cujas obras são bem conhecidas em Inglaterra, e uma
q111• 111<10 muda - do primeiro personagem do reino depois do rei, geração antes da redacção do Decreto de Graciano, que estabelece,,
1 11111tlfo filambard, que se toma em 1099 bispo de Durham. Dá-lhe por volta de 114 1, as bases da futura legislação do casamento. E
v II ws f'ilh os, entre os quais um futuro bispo de Lisieux. Protegido portanto capital, para nós, observarmos as razões dos prelados
p1•lo r ·i. Ranulfo não dá importância às repreensões pontificais e consultados face a este assunto. Não nos espantemos de que a Igreja
p1•11111111 •cc com costumes muito livres. Acaba contudo por se sepa- seja impotente: o direito está em gestação, os seus utensílios a ser
1111 d11 sua companheira, que ele casa, e muito bem, com um burguês fabricados, os seus tribunais a ser criados. Este vazio jurídico deixa
cio l'idude, e conserva relações estreitas com a família de Cristina; justamente falar o bom-senso. Para estes homens de Igreja, o pri-
q111111do vai de Londres ao seu bispado, hospeda-se em casa da sua meiro ponto a verificar é o móbil da jovem. É virgem? Não recusará Não faltam exemplos negativos
1111tlh •r. submeter-se porque ama outro rapaz? O escândalo que poria cobro aduzidos em defesa do casamento,
como o da Adúltera, tratada com
1111 •li gcnte e séria, Cristina é a preferida dos pais. Autti, o pai, a toda a discussão estaria aí - no que seria para nós a liberdade de grande dureza. Observe-se o rosto,
1•11111'1 011-lhe as chaves dos cofres cheios de ouro e de prata. A família escolha. É perfeitamente normal que o pai escolha o esposo. Autti contraído numa máscara de horror.
h VII umu vida de patrícios, com um capelão em casa. A rapariga é é o primeiro a reconhecer que a constrangeu a consentir no dia do Das suas roupas sobressai a perna
esquerda nua, os seios são perceptíveis
11111110 l' ·li z e os pais estão orgulhosos dela: a sua própria piedade é casamento, mas é um pecadilho, uma falta de jeito. Ela, obstinan- e os cabelos estão em desordem.
p1 rn 111•ssa para o futuro . Porque eles querem casá-la. Ela acrescentará do-se na sua recusa, desonra a família. Isso entende-se... Até que Como se isto não bastasse, tem o
crânio do seu amante entre as mãos.
11111dn li prosperidade da linhagem e dar-lhes-á netos que se parecerão Cristina fala do seu voto de virgindade. Aí, o corpo dos eclesiásticos Pormenor de um tímpano românico,
111111 ·lu. O tio bispo procura um esposo e encontra um rapaz da divide-se, porque já não se trata de discutir a liberdade de amar um séculos XI-XII. Santiago de
homem, mas a Cristo. Única escolha que não só absolve mas impõe Compostela, Catedral, fachada das
1 icl1111l• p •rr il ame nte adequado, nobre, jovem, rico. Sem mesmo lhe
Pratarias, arco esquerdo.
p1•r 1111111r m o que ela pensa, prometem-na em casamento. Mas o a desobediência ao pai ou ao marido: estes homens, então admirativos, .
1111lvo 1 ·111 pressa, as núpcias aproximam-se. Os pais avisam Cristina: estão prontos a fazer passar uma mulher para o seu campo, o das
1 111 n•spondc que fez voto de virgindade. Reacções? Riso, depois virgens. Que diz em pa11icular o arcebispo consultado em segredo
1Mp111l10, cóle ra, mimos, ameaças, recurso aos filtros, pancada. Nada pelo eremita defensor da rapariga, sequestrada, em perigo de viola-
11 111111. Infeli zme nte, um dia, perante a Igreja, é-lhe arrancado o ção? «Se ele achasse, diz ele, que a mãe de Cristina perseguia a filha
, 1111 1•111 im •1110. Casa-se. ainda mais maldosamente do que o pai» - aqui não há solidariedade
1·11s11 do novo casal não está acabada e Cristina continua a feminina - «impor-lhe-ia uma penitência tão dura como para um
11 11 111 l'lll ·asa dos pais. Tudo é tentado para que ela ceda ao esposo: homicídi~! ». Obviamente que ele não tem meio algum de pressão,
1, 11t111111•111briagá-la, aproveitar o seu sono; incitam o marido, que se nem sobre os pais nem sobre o bispo de Lincoln que os apoia. «Mas
1 1111 11H l'l' cl ·rnasiado facilmente. Como ele não ousa possuí-la pela então que deve fazer Cristina?», pergunta o bravo eremita. Resposta
1111 1 t1 111nm-no de inútil, de mole, de maricas. A insubordinação do primaz: «Fugir! ». A lei canónica, ainda impotente, não pode
11 111 1111111 1• d • l'acto sentida como um desafio à honra viril, do marido aconselhar senão um refúgio. E esta rapariga de uma têmpera espan-
11111111 do p11I , • 1ransforma-se na risota da cidade. Os mais caridosos tosa foge: a sua zona livre é uma reclusão. A bênção da Igreja só a
l 11111111 11111 110; uma delegação de notáveis decide-o a ir consultar as acompanha porque a liberdade que ela reivindica é da ordem da
1111111 id ul1 l'Oinpetentes. A quem se dirigir? Em todo o caso, não às graça. Na ordem da natureza, onde está a liberdade de amar?
1111111111 uh N d vis. As le is de Hemique I, redigidas justamente nesta Ao afümar o princípio do livre consentimento, a Igreja não
i"" 1 111111111111 c laramente que o casamento é um assunto privado. defendia a liberdade por ela mesma. Não defendia também o direito
l 11111li,111•s (' sociais A ordem feudal (séculos XI-XII) 297
11 klicidade. Esta reivindicação surge tarde na história do Ocidente consentimento que funda o vínculo; ora tem um conteúdo moral e
l'nada deve ao Cristianjsmo. Preocupado com a salvação das almas, afectivo, mas o mesmo termo convém aos sentimentos que ligam
l'Slc pensaria antes que a ideia de felicidade pode fazer esquecer pais e filhos, irmãos e irmãs, ou mesmo a esta caridade em sentido
1k us, desarmar o esforço para lutar contra o mal. O livre consenti- lato de que fala Cristo quando prescreve que nos amemos uns aos
111cnto dos esposos tinha por objectivo pôr fim aos erros dos leigos, outros. Para os teóricos destes séculos, o amor é portanto muito
que destruíam a estabilidade da célula conjugal, na qual exclusiva- diferente do nosso, tanto pelo conteúdo como pelo lugar que ocupa
mente se devia, com menor pecado, perpetuar a espécie. No entanto cronológica e logicamente na formação do vínculo. Ele não é um
os teóricos falam de dilecção, de afecto conjugal. Que devemos dado psicológico condicionando o casamento e anterior a ele («Uma
t•11tcnder por isso? vez que nos amamos, casemo-nos!») mas um prescrito no casamento,
um preceito moral («Amai-vos !») . Eé óbvio que o casamento sub-
siste mesmo se o afecto desapareceu ou se transformou em ódio,
Nas sociedades ocidentais actuais, o casamento pressupõe o amor, uma vez que é indissolúvel.
ou seja, uma relação entre um homem e uma mulher que os com- No final do século XII, uma mulher fugira do domicílio conjugal
promete totalmente, corpo, espírito, alma. E nos séculos XI-XII? Eis e tinha-se refugiado junto do homem que amava21 • Preferia morrer a
19
11111 caso significativo • O papa Celestino III (1191 -1198) é consultado voltar para o marido; a mãe, «nova Herodíades», apoiava-a. O esposo
pelo bispo de Lincoln - ai nda São Hugo. João, casado com Alice, abandonado queixou-se ao bispo, que convocou o casal à igreja,
tinha cometido adultério com Maxila. Tinha-se arrependido, e havia admoestou a esposa, «misturando palavras afectuosas e ameaças».
sido depois condenado pela justiça eclesiástica, doravante eficaz, a Conduzindo-a junto ao altar, adjurou-a a dar o beijo da paz ao
retomar a vida conjugal. Traindo a sua promessa, tinha recomeçado marido: diante da indignação da assistência, ela cuspiu-lhe na cara.
a ver a sua concubina. Contudo, Alice morrera; passaram-se dez Voltando para casa, endureceu no mal. Morreu pouco tempo depois,
anos, em que viveu com Maxila; tinham dez filhos e queriam casar- e a sua alma foi levada pelos demónios. A única solução admitida
sc. Decisão do Papa: «Deverão fazer penitência pública e depois há pela Igreja se os esposos já não podem suportar a vida em comum é
que separá-los . O facto de terem tido filhos agrava o caso. Velar-se- a separação, mas sem recasamento possível, ou o recolhimento no
(t para que partilhem o cuidado de os criar». Na nossa lógica, a convento dos dois cônjuges.
fidelidade desta longa ligação merecia recompensa, a do amor, uma
vez que nenhum obstáculo se opunha à regularização. A lógica da
Igreja não é a mesma. Maxila foi definitivamente manchada pelo Neste domínio das relações entre homem e mulher há que dar um Beleza, beleza!
adu ltério; qualquer reparação é impossível. Apercebemo-nos aqui lugar particular à beleza, principalmente feminina. Ela preocupa Cruel preocupação!
da repugnância dos eclesiásticos pelo carnal. Para eles, o essencial muito os homens da Igreja. O mundo antigo tinha exaltado a beleza
11110 é a manifestação dos esposos na comunhão dos corpos e das nas relações humanas - os amores homo- ou heterossexuais - e na
almas, e ainda menos a procura do prazer. Os Padres da Igreja, e reflexão filosófica. O nosso mundo contemporâneo tem o culto do
sobretudo São Jerónimo, cuja influência foi considerável, tinham corpo. E nos séculos XI-XII? A literatura em língua vulgar, que
1u~·vcnido os esposos: amar-se demasiado ardentemente no casamento explode no século XII, faz imediatamente da beleza a mola poderosa
,. um ad ultério. Santo Agostinho tinha exprimido em três palavras a do amor, e Isolda continua a seduzir-nos: não se lhe teria perdoado
l 11 111lidade da união: progenitura, fidelidade, sacramento. E a dilecção se fosse feia como Sócrates. Na realidade social a sua influência é
l ' o afccto que os esposos são supostos manifestar um pelo outro muito mais difícil de medir. É claro que a pastora bonita nunca teve
1l'l'Obrcm uma outra realidade que não aquela que nós entendemos a sombra de uma oportunidade de se fazer amar pelo príncipe, mas,
por amor no casal. J. T . Noonan 20 mostrou bem a ambiguidade da tudo o resto igual - meio social, fortu na, idade - , a beleza teve
111H;1lo de afecto, aliás retirada também ela do direito romano. Ora certamente a sua palavra a dizer. Os homens da Igreja queixavam-
ll'1•11vi a ao jurídico, e pern1ite então opor as uniões legítimas às -se amargamente de que os pais casavam as filhas predilectas e
l ont·ubinagens, ou designa mais ou menos a mesma realidade que o abandonavam ao Senhor as mais feias - que o pregador Bernardino
de Siena tratava, sem mais contemplações, de «vómitos da terra».
Não se deve acreditar, pelo que dizem, os cronistas nobiliários do
" No ori ginal: «Mariages qui se fon t par amourettes finissent par noisettes»
l ll111111<'i111l·). Outro provérbio português de sentido equivalente é: «Quem casa por amores, tempo: segundo eles, os casamentos dever-se-iam todos a amores à
1111111H 11111~ e noiles piores» (N.R.). primeira vista, e nada ao cálculo. Mas se, além disso, a dama era
298 As mu lheres nas estratégias familia res e socia is
Esta história mostra que na prática das relações conjugais a O casamento e a imagem que dele a Igreja te nt ava i111p111 , 1 1111
igualdade de direitos devia ser muito difícil de obter, por razões essenciais para definir o lugar da mulher. Ora, se co111p:11 11 1111ll
evidentes. Ela convida-nos sobretudo a reflectir sobre os princí- situação com a da época carolíngia, tal como a dcscrçvr11 I' l , ,11
pios. São Paulo tinha colocado o problema das relações sexuais no bert28, ela parece muito menos favorável. O fascíni o du v11 1' 1111l.1,I,
terreno austero do direito: a dívida conjugal entrava na categoria e do modelo monástico depreciaram a vida laica, a m utt•1111d,11I, l i
jurídica das obrigações. Distinguia-se dela contudo de maneira papel da esposa ao serviço da célula conjugal.
surpreendente. A dívida clássica compromete a consciência até que
seja reembolsada e pode-se pagá-la por antecipação. O bom senso
popular é ainda mais optimista: quem paga as suas dívidas enri- A vida de família
quece! Acontece o contrário no espírito dos homens da Igreja reflec-
tindo no menos mau dos casamentos. O mérito do devedor consiste O s casais estão fo1mados: acompanhemos as mulht'H'M1111 l 11
em se fazer esquecer o mais longamente possível e o do credor em Duas observações preliminares. A vida a dois tem poucos liq 11111 ,
apresentar o seu título o mais tarde possível. Como os esposos são de ser longa, porque a esperança de vida não deve ult1 11 p1111N111 l i
simultaneamente credores e devedores, deve atingir-se, para honra trinta anos. A diferença de idade entre o s esposos, o N 1,~, " ,1 ,
do casal, o melhor lanço de forma discreta. A abstenção apaga a morrer de parto, explicam também que a viuvez e o s 1\ •1·11~111111 1111 ,
dívida. O ideal acaba por ser o casamento branco ou, pelo menos, sejam frequentes e que as crianças sejam muitas vezes t•d 11t 111111 1""
totalmente casto a partir do momento em que a descendência esteja outras pessoas que não os progenitores; pouco numc roimM111111 , , , p 11
assegurada. E o que acontecia na prática? Mesmo nas hagiografias conheceram os avós . Segunda observação: há que lcmb1111 111111111, , ..
exprime-se alguma nostalgia ou mau humor: a dos maridos aban- e a dificuldade das questões levantadas. Estudar o lugar d11 ~ 111111111 11
donados no leito conjugal por esposas subreptícias que se furtam suporia que fosse conhecida para cada região do Odd1 1111 1 11 1
ao abraço. O inverso parece raro! Que p ensar enfim da fidelidade herança esp ecífica de costumes cuja evolução se ria ncc1•s11111 11, , , 11
recíproca que a Igreja tentava impor? Ela ia em sentido contrário das durante dois séculos ao longo da conjuntura. Para cad11 11 1111111,
realidades: por razões que tinham a ver com a legitimidade da facto, haveria que saber em que estrutura famili ar cstrt l'11li11 11 11
progenitura, o adultério era forçosamente mais grave para a mulher família estreita ou alargada - , o seu estatuto jurídico, 11 1v1 1 " ' 111
do que para o homem. A exigência era nobre, mas arriscava-se a recursos económicos. Tem dote e em que consiste dt•'t ,\, 1 1 t i
permanecer um voto piedoso. viúva? Que fracção dos bens do marido represenl é1111 t•l 111o ' 11, 1 I,
dos pais o u está excluída da sucessão patern a desde qm• 1111 d111 1, l 1
Que capacidades civ is lhe reconhece o direito loca l? Pod1• d, 111 111 l 11
em tribunal, testar, fazer contratos? Possui o dircilo 1h , 11· 111 ,
gestão dos bens do casal? Qual é a sua situação quando 111 o1 , 111 ,
Conquista a sua autonomia e obtém n ormalme nte a lult•l11d 11 11 1111,
Depois de responder a estas perguntas, h averi a aindu q111 1111 ,111 1
distância, que pode ser con siderável, entre os tex tos, 110 1111 ,1d.1111, 111
os jurídicos, e a sua aplicação. Não se pode aprcsc11111 1 11q111 1 11 111
alg uns bosquejos, sabendo q ue muitas incertezas pc 1111:1111 11 111 N 1
maior parte das vezes, as mulheres são as cornpanh ci,m 111 \' 1 11 , 1
dos h omens que se di stribuem n o interio r do co rpo sornd 1 1 111 I '"
de Limerick, Gilberto, descrevendo a sociedadt: do p11111 fp111 d, 1
século XII, retoma o esque ma doravante clássico 29 q11t• 111111 1111111 ,
A 11111111111111 l'nvalgando em cima do os que rezam, os que combate m , os que traba lha m, e r o111r111i1 N 1,1
h íl11, q111 N11 hj11ga, abrindo-lhe as digo que a função das mulheres sej a rezar, trabu llrnr 0, 1 < 111111,.ili 1
111111, •, e 11111 ll'lllU clássico que
, ,v, 11~1111111111111 ideologia.
mas elas estão casadas com os que rezam, traba lh t1111 1• t 1111111,111 111
\111111111111 11 l11ílo de Piasca, a luno e servem-nos» 30• Antes de ir ao e ncontro de las crn t·1ul11 1111 111 d 1
,lt , 1,11111111 d11 M1·,lll' de Silos, categorias desenhadas pelo sistema ideológico du épO('II, oliM,, , 111,,
11 11111 \ li ll111 11n~. Rcbollcdo
,1, 111 lt1111 , 111plll·I do rt1rio. primeiro uma sociedade partic ular.
304 As mulheres nas estratégias familiares e sociais
Mulheres da Islândia A Islândia, nos confins setentrionais da cristandade, é um país um estatuto episcopal tenta impô-lo apenas em 1269, e l'III , ,111
pouco povoado para a sua superlície, homogéneo e original. É rapariga tem um dote; o marido assegura-lhe arras, ~ 11 dnd1 , ,1 il 1
conhecido graças ao seu código de leis e às sagas, que esclarecem manhã no dia seguinte ao casamento. O divórcio é poss1w l dn•, d111
contudo muito melhor o grupo dos chefes do que o resto da popula- lados - mas a iniciativa sexual é mal vista para a mullwr
ção31. Tarde cristianizada, possui agora o enquadramento ~eligioso Se compararmos esta aristocracia islandesa com a suu ho1 1111li 11· 1
clássico, do bispado à paróquia. É interessante observar o que as continental, a sua originalidade espanta. Reenconlran10.~ 111 1111 1
fontes dos séculos XI-XII nos ensinam sobre as mulheres, o casa- grandes famílias reagrupando à volta do casal senhoria l os 1111111
mento, o seu lugar na família. Três traços salientes: é uma sociedade muito numerosos, legítimos e bastardos, criados, clicn tcs; 11 111 ,111
de homens e muito violenta. Nela, a sexualidade não é de forma final do século XII, não começa senão aos poucos a des1:11h111 ~1 1
alguma desvalorizada nem disciplinada; a virgindade e o modelo evolução, muito mais precoce noutros países, que fez passu1· tio , l,1
monástico não têm aí sucesso. A mulher é inferior ao homem e o seu com vários núcleos conjugais à linhagem onde se impõe111 o tl 111 1111
estatuto «é quase o de gado»; a sua imagem até se degradou com o de primogenitura, a exclusão dos bastardos da herança e a i11dl\ 1 1
cristianismo. Os vulcões têm nomes femininos e a mulher é por bilidade do património. Durante os dois séculos aqui est11d111l11~ 11
vezes ridicularizada com apelidos pouco lisonjeiros, como «Égua- pai escolhia o herdeiro principal como o entendia e não fo l'<.: <11-1111 111 111,
-de-cemitério». É excluída da herança paterna, não tem direito polí- entre os filhos legítimos. Ficamos surpreendidos ao vcl'i 111 111 11 1
tico algum. Em direito civil, recomenda-se que se acredite antes Islândia, a impermeabilidade tranquila que este povo de g t1 l' ll 1 11 11
no homem do que na mulher. Propriedade do marido, ela é contudo durante muito tempo pagão, opôs aos esforços da Igreja. llst11 l. tllt1111
protegida na sua progenitura. Se fica grávida sem ser casada, há uma na tentativa de convencer que a sexualidade fora do cas111111•11111, 1 1
investigação de paternidade. um pecado mortal, a virgindade uma virtude. O mais grn w 1 111 q111
O mais surpreendente é a liberdade sexual. As concubinagens os bispos nascidos no país também não estavam di sso pc rs1111cl 1d11
são muito frequentes, a poligamia corrente, os bastardos muito nume-
rosos. O celibato é em contrapartida muito mal visto. Os padres e os
bispos conhecidos são casados. O primeiro mosteiro de beneditinas As três ordens
só é construído em 1186 e as freiras que se conhecem raramente são
virgens: tiveram maridos, concubinos, filhos. O casamento legal Nove décimos da população são camponeses. As sit1111, , 11 111
existe sem ser indissolúvel, mas o amor é funesto. Ele deve estar em muito variadas em todos os planos, tanto em função elas l'C111d11111
harmonia com o estatuto social e mais vale que os futuros esposos naturais como dos estatutos jurídicos e dos níveis econó111ii " "
não se vej am antes. O consentimento da rapariga não é exigido -:-
têm o seu lupanar. São conhecidos em Paris, em Angers como em família e depois sobre todo o seu povo, não é indifcrl•t1k :,, 1111
Toulouse: aqui, a regulamentação da prostituição era anterior a século XII houvesse promoção da mulher, vê-se ond1• 1 111 1 11
1201 37 • Ignora-se na maior parte das vezes em que meios ela se perdendo a virgindade, ela é uma rapariga perdida, n·jl' tl 111l.1 1 111
recruta. Numerosos factores devem intervir: psicológicos, económi- uma onça de piedade na lama da desonra. Nesta paródia Slll 1111I' 1, l 1
cos, sociais. Assinalam-se numerosas prostitutas nesses bandos de Anunciação lê-se toda a ambiguidade do modelo mari n110 Ap1111
leigos fascinados pelos grandes pregadores errantes, por vezes heré- os cristãos mereceram ter uma Virgem-mãe que pôs no 11111111111 11111
ticos, que são uma das maiores originalidades do período. A igualdade salvador. Entre os Judeus, as profecias mentem, não há s1·11ni, htl 1
dos sexos, a participação das mulheres nos sacramentos, são então virgens que não dão à luz senão raparigas, e tudo o que cssn 11,, 111
reivindicadas. É possível que as esposas de padres, expulsas pelos -nascida merece é a morte.
maridos a partir de 1139, tenham algumas vezes acabado por se
encontrar entre elas. Roberto de Arbrissel recolhe algumas na sua
fundação de Fontevraud. Em breve as autoridades locais fundarão Nesta recensão das mulheres segundo a sua posição sot 111 1• 11
casas para as abrigar. nómica há que abordar o estrato mais delicado, o mais f'H vw 1'11111 1 11
Não se pode ignorar as consequências do desenvolvimento do mais carregado de mitos: as castelãs.
anti-semitismo numa história das mulheres. O concílio de 1215, que As mais conhecidas destas damas adquiriram uma at1r11 1h 11,11
impõe o uso de roupas específicas, quer impedir que os cristãos se Se se eliminarem os fantasmas, não se apanham senão so11li11 11 1
unam, sem o saberem, a mulheres judias. O endurecimento da legis- sobretudo a seu propósito que os historiadores se dividu111 , d, 1 li
lação não faz senão oficializar as tendências. Por volta de 111 O, era forma é difícil medir exactamente o seu estatuto, o seu rup1•I, 11 11 .1
a uma velha judia que os carrascos de Cristina se tinham dirigido, influência, as suas atribuições: o carácter vago da termi1111l11p1.1 " "
para a levar, por meios mágicos, a consentir. No final do século XII, poder que eles utilizam mostra-o bem39• Os problem as rcd1111 111 , 1
a hostilidade contra os judeus é sensível em todos os reinos, e os reis dois. Poderá conhecer-se o que nós chamaríamos a suu v11 l. 1 d,
exploram-na. Particularmente impressionante é a história contada mulheres, os seus sentimentos - filiais, amorosos, mat1•11 1111 d,
pelo monge cisterciense Cesário, ·que entra para o mosteiro de amizade, religiosos? E terão elas um papel público, oficinl't I• 11 1
Heisterbach mesmo no fim do século38 • meio que se fabricam os modelos culturais. E nesse nw11 1, 11 , ..
Um clérigo de Worms, jovem e pobre, apaixona-se pela sua essas mulheres consideradas pessoas? Notemos imedia1u111111t1 q11o
vizinha, uma rapariga judia muito bonita. Sedu-la e engravida-a. Ela para a imensa maioria delas nada se sabe. O que é verdud1· p111 1 1
confessa-lho e tem medo que o pai a mate. Ele tranquiliza-a: «Se os aristocratas da Europa como para as princesas do Oriente 111111111 111 11
teus pais te interrogarem, responde-lhes que não sabes como isto nome, nos casos mais favoráveis, uma subscrição em bai x11 d1 11111
pôde acontecer, uma vez que és virgem e nunca conheceste homem ». pergaminho - mas tomaram elas parte na sua elaboraçllo't S111 111,
No silêncio da noite, esgueira-se até à janela dos pais, faz deslizar portanto obrigados a voltar às poucas figuras de que fal6111u~ 111111
um tubo pela abe1tura e fala: «Sede abençoados, a vossa filha rostos muito contrastados.
concebeu um filho que será o salvador do vosso povo!». O casal fica O discurso masculino que elas alimentaram pode se;,· 11111 1· ,,1,.
louco de orgulho e a notícia espalha-se nas comunidades judias das em sentidos opostos: protótipo ou excepção? Assinalo1111 ,,. 111 11
cidades vizinhas. Quando chega a altura do parto, muita gente exemplo que nenhuma rainha francesa destes dois sécul mi ti, 1 1111
espera o nascimento miraculoso. Adivinha-se o que se seguiu. O 1 qualquer escrito ou foi objecto de uma Vita. Evoquemos 11 0 111111 11
Messias é uma rapariga. Louco de raiva, um Judeu apodera-se da do nosso período a nobre estatura de uma impera.triz, mo rto 1•111 1>1J1J
recém-nascida e esmaga-a contra um muro. Adelaide. Filha do rei da Borgonha, casa-se com o re i ck• ll nl111 ,
O tombo A de Santiago de O comentário pode ser breve. Tenha ou não a história um fundo torna-se depois a segunda mulher de Otão Ida Germân ia, i111p1·1111 1111
Compostela dedica um impo,tante
capítulo a personagens hispânicas de verdade, ela está cheia de sentido. Para além das questões postas em 962 40 . Como tantas princesas alemãs antes dela, rcspor11l1 1111
de forte significação política. pela coabitação rancorosa das duas religiões, ela é interessante para cânone ideal: muito caridosa, constrói igrejas, mosteiros 1.· 1 1111111 11
Na ilustração, a nobre esposa culta. O seu filho Otão II sucede ao pai; ela perde influênciu l' 11 t 11,1
cio C'id é tratada com singeleza e
o n~sso tema. Aqui a fornicação do rapaz não é apenas absolvida -
poucos aditame ntos simbólicos, mas o que vai ao encontro da indulgência espontânea para com as aven- -se para a Borgonha. Recebida de novo com afecto, vai govt•11 1111 1
scguru um rolo, símbolo de pode r. turas masculinas-, ela é incensada. Este cristão toma-se um herói, Itália. O seu filho morre antes dela, em 983, e o herdeiro lo111 11p1 1111
01111a .li1111•11a, miniatura do tombo A
de S11111ia110 de Compostela, o instrumento da vingança contra o povo deicida. Mas que uma três anos de idade . Adelaide volta à Alemanha para ass1.·n111 rn 1
século XII. Biblioteca da Catedral. mulher suporte esta mácula antes de a fazer repercutir sobre a sua regência. Quando O tão III atinge a idade legal para re inar, e l11 11•11 111
A ordem feudal (séculos XI-XII) 313
J\ ,m te de Maria está em suspenso enquanto se prepara a luta parte lhes pode ela dar nesta arena? Na aristocracia de mais baixa
11111111111 contra o conde de Toulouse, que apoia os heréticos. Mas eis categoria será a posição das mulheres talvez mais pacífica? O que
q111 1111('1 v6m um novo parceiro, os burgueses de Montpellier. Estes sabemos de Inês de Saleby não nos tranquiliza.
v II l(•11111r aproveitar este imbróglio sucessora! para conseguir uma Resta evidentemente, e como sempre, que a felicidade não tem
, 11 t11 dl• li berdades do seu senhor. Escolhem Maria, expulsam Inês história. A vida de castelo nem sempre deve ter feito mentir a sua
1 11 ~1111 progenitura e tornam-se parte activa nas negociações que vão reputação. A enorme maioria dos casamentos são arranjados; não se
, 11111111:1.ir ao terceiro casamento da sua senhora com Pedro, rei de deve excluir que a natureza venha graciosamente aquecer relações
\111~110. Cedo Maria dá à luz uma rapariga, e o drama recomeça. fundadas no cálculo. Ignoramos tudo das fantasias medievais de
, ~~ 1111 que ela nasce, Pedro casa a menina com o conde de Toulouse Cupido e das vertigens do tu-e-eu. A bem -aventurada Cristina de
1, ~11h ameaça, força Maria a dotá-la com a sua própria herança, Stommeln teve durante seis semanas a mesma visão 44 : um marido,
t\l1111l pd licr. «Crucificada», diz ela, faz registar um protesto solene uma mulher que brincava temamente com o seu bebé e lhe dizia:
ah 111111l'iundo as pressões que suportou. Eis um extracto: «Ele (Pedro) «Não há felicidade maior do que a que une um marido à sua mulher.
111111 queria ler uma terra, um senhorio, uma mulher ou qualquer Não há felicidade maior do que a que um filho dá à sua mãe! ». Na
11111 111 rnisn de q ue não pudesse dispor à sua vontade». As relações ocorrência, era o demónio que queria tentar a santa por esta evoca-
d11 l 'IISII I são tensas, Pedro quer repudiar a mulher. É preciso um ção da felicidade familiar, mas esta ideia ela tinha-a com ce1teza ido
1111 ll'xto. Na meada destes casamentos, encontra-se sempre algum: buscar a qualquer lado. Aliás, apenas uma santa era suficientemente
, 111 1206 apresenta queixa perante Inocêncio III acusando-a de adul- perspicaz para distinguir este trio diabólico da Sagrada Família. Não
lt 1111 cl'ectivamente Bernardo de Comminges não morreu! Quem nos precipitemos portanto em afirmar que o ódio, o medo, o aborre-
\ 1d 11judur a jovem mulher? É claro que a linhagem do pai, apesar de cimento ou a indiferença reinavam nos castelos. Se o amor não era
111111111 poderosa, não move um dedo, assim como a mãe. É a cidade o dos romances, a dama podia ter compensações, ocupar-se utilmente
q111• 11 npoia: a partir de 1206, ela revolta-se contra Pedro dé Aragão. quando o marido estava em guerra, no torneio, ou na cruzada,
f\111~ l'is que uns amigos empreendem a reconciliação do casal: os manter a sua casa, gerir os seus bens e distrair-se. Oferecer-se-ia ela
d111 ~ l'IICOntram-se, ela fica grávida e dá à luz um rapaz, Jaime, em tantas férias extra-conjugais como Robert Fossier imagina? Podemos
t 'OH, mns o processo de repúdio continua a con-er. Na realidade o duvidar. Em todo o caso é vão estabelecer uma média. Não esque-
p11p111lo es tá muito ocupado: no m esmo ano lançou a cruzada contra çamos também, ao lado das damas, estas raparigas das q~ais nã? nos
11 f11·H·sia, confiada a Simão de Monforte aos barões do Norte. Em apercebemos senão às escondidas, filhas bastardas, solteiras, cnadas
t 10 11, 111ussucre de Béziers. Montpellier, fiel à sua tradição, permanece cujo número Georges Duby mostrou, estas mulheres «sós», que
111111111, 111us Pedro deita várias achas para a fogueira. Casa o pequeno estão já «num ângulo moita da história»45•
l11111ll', que tem quatro anos, com a filha de Simão de Monfort e, Quanto ao papel político que as mulher es puderam r epresentar,
1111 ,llll'llltdo-o à mãe, envia-o aos cruzados como refém. parece quase sempre precário, adventício ou interino e contingente:
() m10 de 1213 começa bem para Maria. Em Janeiro, o Papa a mulher «pode» ser chamada aos negócios, ocupar o lugar de um
,, ~olVl' por fim o problem a da sucessão. Só o casamento de Guilherme homem. Nunca é indiferente que seja mulher- em particular porque
111111 liud6xia é legítimo, os oito filhos de Inês são bastardos. não vai à guerra ou não é iniciada nas escolas das especialidades que
f\ l1111lp1•llicr vo lta para Maria. Em Abril, o Papa repele o pedido de se desenvolvem no século XII: o direito e a administração. Por pre-
111111111, o f'ci to por Pedro. Tarde de mais: ela morre nesse mesmo dilecçãó, a sua história tende sempre a reduzi-la a fazer filhos que
111/ ~. l'llllt trinta e dois anos de idade. O seu real esposo não se farão a História, uma vez que essa é a sua natureza e a sua vocação.
1p111v1•it 11 di sso durante muito tempo. Juntou-se ao conde de Toulouse
, 11111111 Sln1t o de Monfort e foi morto na batalha de Muret. Que ia ser
d11 111 (!lll'IIO Jaime? Maria, inquieta, tinha tido tempo de fazer É impossível conhecer a proporção de mulheres que, num ou As mulheres
la ~111111•111 0 l' de o confiar ao Papa. Inocêncio III fá-lo vir e envia-o noutro momento da sua vida, se retiraram do mundo. As que mais e o amor de Deus
11,11 ,1 pll'IHllf' o l'Csto da sua infância num mosteiro de templários: anos facilmente se distinguem estão no convento. Mas o monaquismo
,11 11 111P1 J krda Aragão pelo pai e Montpellier pela mãe. Aqui se vê feminino é ainda muito mal conhecido. Desde a origem, os esta-
11 41111 p1•s11 111 os sentimentos: o amor filial, conjugal, materno e belecimentos femininos são no conjunto menos numerosos e menos
l' 11t 11111 A 111ulhcr pode herdar um património e bater -se. Raramente bem dotados do que os seus homólogos masculinos e terão histórias
1,111 111111 mmas iguais e, entre duas tribulações, traz filhos : que mais atribuladas. As freiras foram transferidas de um local e de uma
316 As m ulh eres na s estra tégias familiares e sociais
Este manual d e direcção teve sucesso, poss uímos til' ll , 11111111 111,
e quatro manuscritos. Anónimo, escrito por volta de l 100 1111 11 r, '"
de Colónia, representa um nov o teste munho do f'usçí, 1111 d,1 , I'" ,
pela virgindade46. O seu conteúdo ordena-se em to rno dl' d 11 1'i 1, 11 11
a organização de uma comunidade de freiras e a sua vid11 ''"I'''1111 d
Faz alusão ao recrutamento. Muitas religiosas es1110 1111 11111 1, 11 t1
contra a sua vontade, aí colocadas muito jove ns pelos p,11 .. 1 • 11 1
mente que melhor seria estare m aí de sua própria von1 11d1 , 111 11 11 111
que se resignar. Q ue e las saibam que a vontade pllll' l 1111 111t , "111
promete tanto quanto o seu próprio voto e que ma is v11h ,,. 1 d 11
contra sua vontade do que ver-se condenado. O a ul o1 i11 v111 11 1, 11 11
C hartres: há que forçar as virgen s fugidas a rcg rcss11 1 1111 .11111 11
C ondena estes géneros de vida re ligiosa anárqui cos q111 11 1 ,.,,, 111
de 1139 v ai proibir. H á que escolher: o mundo o u o 111111 .. 11 11
claustro, a clausura estrita, ideal de vida das mulhl1 n ·s 11111 11111111
Também se faz alusão às relações no inter io r d a t·o11111111d .11t. 11
que abandonar todo o orgulho fundado na o ri g1·111 11111111 "'' 11 1
riqueza; respeitar as antigas e chamar-lhes Senhora, nn 11.11 ,p1, I 1
vos chamem Innã. A verdadeira qualidade é a do l'~Pll 11 11
Desde o século X que Cluny foi um direcção para outra. Muitas casas desapareceram no final da Idade U ma reflexão m ais alargada diz respeito à vida n•l11•1111111 N 11
lugar privilegiado para o monacato
masculino. Até meados do século XI Média com o s seus arquivos. Uma outra razão explica que sobre elas que procurar uma ascese imoderada. E m razão do .., 11
não houve fundações cluniacenses haja tão p ouca luz. A história monástica foi escrita, em grande m edida, mulheres são mais frágeis que os h ome ns. O se u pii11 1 qud , 111,I 1 1
femininas. Pormenor de um espaço por eclesiásticos pouco à vontade para falarem d as mulheres. As deve ser o da conservação da virgindade: a queda dn vl 1r1 111 '"i'll
cluniacense, antes centro chave de
poder, hoje convertido em sala de re ligio sas não são contudo as únicas, e nem m esmo talvez as mais ria o seu casame nto com Cristo, con stituiria um sinnl d,• d, 11 I' 11 1
exposição. Borgonha (França), abadia numerosas, a votarem -se à virg indade ou à continên cia. Encontramos gravíssimo. Conompida para sempre ela se ri a urnu vv1 1 """ 1 I' 11 1
de Cluny.
outras mulheres que levam uma vida piedosa à porta dos mosteiros, toda a Igreja. Contudo, a integridade do corpo nuo l ' 111 11 H 11 111, 11 1
como a m ãe de Guiberto de Nogent, o u eremitas que asseguram o que garantir também a pureza do coração. A vida virg i111tl 111111 11 1il1 1
sucesso desses «loucos de Deus» do século XII, futuros fundado- • de uma d ecisão única, ganha-se sem cessa r, exige 1111111 111"11111 ·~ " •
res de ordens , por vezes femininas, como Roberto d e Arbrissel ou um esforço permanentes. Se se entra no mos tei rn n111 1 v,11 11 ,.. 1
Gilberto de Sempringham, já citados . Algumas destas mulheres p ara ne le escutar C risto, e e le torna-se e ntão o Junll111 d11, 111 11,, 1
cafram na heresia: as «Perfeitas» cátaras são as mais céle bres. Existem A obra contém muito poucas indicações so bn.: o s r xv11 li 111 , ,,,
também mulheres com um estilo de vida muito particular, as reclusas. rituais; nada sobre a oração pessoal ne m sobre a n 111·111 1~1111 111 111111111
Justament e no século XII, a Igreja també m se ocupa delas, do seu convite a participar nos sofrimentos do Stil vado, , 1111d11 11h11
estatuto e da sua direcção. Aelredo d e Ri evaulx, grande cisterciense n ecessidade de se conhecer a si próprio.
amigo de São Bernardo e d e São Gilberto, escreve um belo tratado Ficamos tocado s pela timidez deste manuol ml11p1 11d11 ,,., 111111111
para a sua irmã recl usa. Hildegarda de Bingen recebeu a educação res. O essen cial é estar livre dos constra ng i nll.llll OMdo "' 1 1!111 1111 1
religiosa de uma reclusa e Jue tte de H uy passou a maior parte da desabrochar ao servi ço do E sposo. O lugar dado 1) s 1111\l ll'I 111111 111o
vida em reclusão. Cristina aí se escondeu durante vários anos antes espirituais dessa época é muito reduz ido : nl'lo lrn l'lll11 ~1111111111 111111
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