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MEMÓRIA E BIOGRAFIA: UMA ANÁLISE DA VIDA DE DRUMMOND ATRAVÉS

DE SUA OBRA.

EIXO TEMÁTICO: TEMA LIVRE

Hugo Avelar Cardoso Pires 1


Anita Helena Vieira de Souza 2
Fernanda Samla Souza Costa 3

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a articulação entre memória e biografia através da
obra ‘Boitempo’ de Carlos Drummond de Andrade, demonstrando como os aspectos memorialísticos
dos mais variados fatos vividos pelo autor se refletiram em sua produção literária. Pra tal, faz-se uma
discussão entre a relação existente entre memória e biografia, assim como o gênero biográfico se
desenvolveu. Pretende-se assim resgatar através da narrativa de Drummond dados autobiográficos
que reportam acontecimentos vividos pelo autor, bem como fatos históricos e lugares que
influenciaram na trajetória do mesmo.

Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade – Memória – Biografia – Literatura

1
Universidade Federal de Minas Gerais, hugo_avelar@yahoo.com.br, ECI - Av. Presidente Antônio
Carlos, 6627 - Campus Pampulha, Belo Horizonte - MG
2
Universidade Federal de Minas Gerais, anitahvs@yahoo.com.br, ECI - Av. Presidente Antônio
Carlos, 6627 - Campus Pampulha, Belo Horizonte – MG
3
Universidade Federal de Minas Gerais, fernandasamla@ufmg.br, ECI - Av. Presidente Antônio Carlos,
6627 - Campus Pampulha, Belo Horizonte - MG.
1 INTRODUÇÃO
Não se trata de apresentar as obras literárias no contexto de seu tempo,
mas de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela
e conhece: o nosso.” (BENJAMIM apud BOLLE, 2000)

A temporalidade na obra de Drummond aparece como fator crucial para o


resgate do passado através da memória. A chamada poesia memorialística tornou-
se presente nas produções literárias brasileiras, durante as décadas de 1960 a
1980, como forma de recuperar a memória poética através de registros de
acontecimentos lugares e pessoas.
Os lugares da memória, não são somente espaços físicos, são também
cognições do imaginário, lugares que guardam sinais do que passou como indícios
que possibilitam uma visão da memória. Desta forma, a poesia de Drummond
articula esses lugares de recuperação do passado, no qual o autor reconstrói
lembranças de seu tempo.
Destarte, os registros literários são formas de acesso ao passado, portanto
“lugares de memória” que para Pierre Nora situam-se entre a memória e a história.
Segundo o autor, os recursos de aceleração histórica levaram Memória e História
para caminhos opostos, existindo, porém, entre ambas determinados lugares. -
lugares de memória - onde “a memória se cristaliza e se refugia” dando a
capacidade ao homem de acessar momentos históricos específicos, momentos
esses que são restos que reportam ao passado.
O resgate da memória através de narrativas é também garantia de formação
das identidades individuais. Assim, a poesia atua profundamente na identificação do
poeta com o mundo e suas memórias. A poesia, para Drummond, é como uma
viagem ao tempo passado, na tentativa de recuperar lembranças. Na obra de
Drummond o poetizado se articula com os fatos vividos, assinalando o teor
biográfico constante em sua produção.

Minha poesia é autobiográfica (...). Assim sendo, quem se interessar pelos


miúdos acontecimentos da vida do autor, basta passar os olhos por esses
nove volumes que, sob pequenos disfarces, dão a sua ficha civil, intelectual,
sentimental, moral e até comercial (...). (DRUMMOND apud SANT’ANNA,
1991)

Da mesma forma, produção da narrativa do passado, ou seja, resgatar a


memória pode ser facilitado através de mecanismos de auxílio como a visualização
de objetos que reportam uma lembrança como: fotografias, relógio, roupa, caneta,
pedaço de papel, nesse sentido a poesia aponta lances de recuperação histórica do
passado, como forma de acesso à memória.
Segundo Bergson (1896) a memória é “o lado subjetivo de nosso
conhecimento das coisas”. Assim pode-se compreender a memória como algo
íntimo, mas com presença extremamente ativa e profunda tanto no nosso agir
quanto no nosso pensar. A memória interfere nas nossas ações do presente ao
mesmo tempo em que permite a relação com o passado. O autor afirma que o corpo
guarda duas formas de memória: a memória-hábito, que é esta incorporada o nosso
dia-a-dia e a imagem-lembrança ou lembrança-pura, esta entendida como uma
situação definida, individualizada, é a lembrança de um momento único.
Le Goff (2003) define memória como “fenômeno individual e psicológico”.
Para o autor a memória se liga também a vida social e varia em função da presença
ou ausência da escrita e desperta atenção do Estado, que produz documentos para
escrever a história e conservar traços de qualquer acontecimento do passado.
Pollak em conferência no CEDOC em Brasília em 1987 discutiu quais são os
elementos constitutivos da memória tanto individual, quanto coletiva. Para ele, esses
elementos podem ser agrupados em acontecimentos vividos pela pessoa, dos quais
a mesma se lembra porque foram vividos pessoalmente; acontecimentos “vividos por
tabela”, que são

acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se


sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre
participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim
das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.
(POLLAK, 1987)

A terceira categoria de elementos constitutivos da memória é a categoria dos


lugares. Retomando a idéia de Nora, existem lugares da memória, que nos remetem
a uma lembrança, pessoal ou não.
A Poesia de Carlos Drummond de Andrade, durante a segunda metade do
século XX tornou-se foco de discussão das pesquisas literária articulando relação
entre memória História e poesia.
Os dados que reportam a memória literária em Drummond, são pontos de
recuperação autobiográficos, mas que também possibilitam recompor dados
específicos de uma época, as lembranças de ontem se encaixam no presente,
trazendo referências de sua infância como um processo de imersão no passado.

3 O GÊNERO BIOGRÁFICO
Originada dos termos gregos bios (vida) e graphein (escrever) a biografia
pode ser compreendida como a “narrativa, descrição, registro ou história da vida de
uma pessoa” (VIANNA; JÚNIOR, 2005). Como fonte de informação as biografias
podem servir como recurso para se obter não só informações acerca da vida de
determinado indivíduo, mas podem fornecer informações acerca de um período
histórico, de uma nação, dos costumes de determinada época e de determinada
população, etc.
As primeiras biografias remontam da Antiguidade, quando antigos filósofos,
como Plutarco e Xenofonte já contavam a vida de algumas célebres pessoas.
Durante o período Medieval, o gênero biográfico se voltou para a vida de pessoas
ligadas a Igreja. Destaca-se nesse período a obra “Confissões de Santo Agostinho”,
a primeira no gênero autobiográfico. Com o período renascentista, surgem dos
primeiros Dicionários Biográficos, obras essas que apresentam pequenos verbetes
sobre a vida das pessoas biografadas.
No século XIX, o gênero biográfico se volta para a história dos grandes
heróis. Dentro de uma perspectiva da historiografia positivista, somente a vida de
célebres indivíduos, que possuíam algum valor para a história de determinado povo,
são contadas.
Crítico da historiografia positivista, Karl Marx ainda no século XIX irá de
encontro a essa ideia da narrativa da vida dos grandes heróis. Defensor da
Historiografia Social, voltada para os processos coletivos humanos e para a análise
da estrutura social, política e cultural de determinado povo, Marx irá criar uma nova
interrogação acerca do papel efetivo dos indivíduos na história. Para o autor, os
indivíduos não são o ponto de partida da história, mas sim um resultado criado por
ela, sendo criados conforme a história avança (ROJAS, 2000).
Foucault discute sobre o processo de individualização sofrido por parte do
indivíduo, onde as dimensões exteriores refletem o grau de liberdade que as
estruturas sociais dão a esse indivíduo. Desta forma, os indivíduos não gozam da
mesma liberdade para desenvolver suas atividades no processo de desenvolvimento
histórico. A discussão acerca do público X privado entra nesse mérito, uma vez que
para Foucault a liberdade que o sujeito possui influencia na sua ação histórica tanto
no âmbito particular quando no público (ROJAS, 2000).
No século XXI o gênero biográfico sofre certo esquecimento, sendo retomado
apenas após a década de 1950, com um crescimento acentuado do número de
publicações no gênero e com o crescimento da procura, ganhando um caráter
romanceado. No Brasil, as biografias vão alcançar seu êxito principalmente após a
publicação de Olga, de Fernando Morais, sucesso de vendagens. Após a publicação
do mesmo, o interesse do público brasileiro pelo gênero cresceu, sendo lançadas
inúmeras biografias no Brasil todos os anos.

4 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Importante artista do modernismo brasileiro, Carlos Drummond de Andrade
nasceu em Itabira (MG) no início do século XX. Relatou em sua vasta obra, diversos
acontecimentos de sua infância na cidade e de sua saudade deste tempo. Por
insistência da família, graduou-se no ano de 1925 em Farmácia na cidade do Ouro
Preto, mas nunca exerceu de fato a profissão. Em 1934 transferiu-se para o Rio de
Janeiro para trabalhar no escritório do então Ministro da Educação e Saúde Pública
Gustavo Capanema até 1945. Passou depois a trabalhar no Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional e se aposentou em 1962. Desde 1954 colaborou como
cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.
Drummond faleceu em 1987 aos 80 anos de idade no Rio de Janeiro.
Na obra “Boitempo”, onde são arrolados diversos poemas de Drummond,
pode-se notar o relato de diversos acontecimentos que marcaram a vida do autor,
acontecimentos esses que envolvem, desde a vida de Drummond, até a o cotidiano
em Itabira e os personagens que passaram pela vida do mesmo, bem como fatos
históricos do Brasil.

4.1 OS LUGARES DE DRUMMOND

O BANHO

“Banheiro de meninos, a Água Santa

lava nossos pecados infantis


ou lembra que pecado não existe?

Água de duas fontes entrançadas,

uma aquece, outra esfria surdo anseio

de apalpar na laguna a perna, o seio

a forma irrevelada que buscamos

quando, antes de amar, confusamente

amamos.

A tarde não cai na Água Santa.

Ela pousa na sombra da gameleira,

fica vendo meninos se banharem.”

Alguns poemas de Drummond retratam lugares que ficaram “gravados” em


sua memória e que marcaram sua vida. No poema “O Banho”, por exemplo, pode-se
notar traços da infância de Drummond vivida em Itabira. A fonte retratada pelo autor
nesse poema, localizada no Parque da Água Santa possui algo peculiar. De um lado
da fonte é liberada água quente. Já do outro lado, libera água fria. Era comum na
vida itabirana do começo do século passado, que as crianças tomassem banho
nessa fonte, e na qual se acreditava que os pecados eram lavados na mesma.

“CEMITÉRIO DO CRUZEIRO
O sol incandesce
mármores rachados.
Entre letras a luz penetra
nossa misturada essência corporal
atravessando-a.
O ser banha o não-ser; a terra é.
Ouvimos o calo do cruzeiro nitidamente
cantar a ressurreição,
Não atendemos à chamada.”
Em “Cemitério do Cruzeiro” Drummond relata o cemitério de mesmo nome.
Destinado em sua origem às pessoas com maior poder aquisitivo, possui grande
parte de suas lápides em mármore. Modernamente, com a criação dos “Caminhos
de Drummond” em Itabira, tornou-se também um ponto turístico da cidade.

“CEMITÉRIO DO ROSÁRIO
À Beira do córrego, a beira do ouro,
à beira da história,
à beira da beira, os mais esquecidos
inominados
de todos os mortos antigos
dissolvem a idéia de morte
em ausência deliciosa,
lembrança de vinho
em garrafão translúcido.”

O Cemitério do Rosário fica localizado na Igreja do Rosário, principal igreja da


cidade de Itabira. Construída no século XVIII, manteve-se como matriz da cidade até
meados do século XIX, quando para abrigar novos fiéis, foi construída uma nova
Igreja Matriz. Possui em seu assoalho de tábua corrida as campas onde foram
sepultados os membros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, fundada em
1812. A maioria dessas, são de escravos e negros alforriados. O forro da igreja
também é retratado no poema “Pintura de Forro”.
Outro ponto turístico e marcante da cidade de Itabira retratado por Drummond
no poema “Ausência” é o Pico do Amor. Acredita-se que quem tocar na cruz que se
encontra no alto do pico, casa-se no ano seguinte. Atualmente, no Pico do Amor,
está localizado com prédio projetado por Oscar Niemeyer o Memorial Carlos
Drummond de Andrade e a Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade.

“AUSÊNCIA

Subir ao Pico do Amor

e lá em cima
sentir presença de amor.

No pico do Amor amor não está.

Reina serenidade de nuvens

sussurrando ao coração: Que importa?

Lá embaixo, talvez, amor está,

em lagoa decerto, em grota funda.

Ou? mais encoberto ainda, onde se refugiam

coisas que não são, e tremem de vir a ser.”

4.2 FATOS HISTÓRICOS NA OBRA DE DRUMMOND


Alguns fatos da história do Brasil e do mundo, Drummond também retratou.
Em “15 de Novembro”, o poeta retrata a chegada da Proclamação da República à
Itabira. O poeta não viveu esse fato, o que provavelmente, leva a acreditar que o
poema foi escrito com base no que o poeta ouviu falar ou estudou a respeito do
assunto. Drummond cita os personagens itabiranos famosos nessa época, bem
como o comportamento da cidade ao receber a notícia. Além disso, pode-se
perceber que Carlos Drummond critica de forma indireta a mineração que “destruiu”
boa parte das montanhas de Itabira.

“15 DE NOVEMBRO
A proclamação da República chegou às 10 horas
[da noite
em telegrama lacônico.
Liberais e conservadores não queriam acreditar.
Artur Itabirano saiu para a rua soltando foguete.
Dr. Serapião e poucos mais o acompanhavam
de lenço incendiário no pescoço.
Conservadores e liberais recolheram-se ao seu
[infortúnio.
O Pico do Cauê quedou indiferente
(era todo ferro, supunha-se eterno).
Não resta mais testemunha daquela noite
para contar o efeito dos lenços vermelhos
ao suposto luar
das montanhas de Minas.
Não restam sequer as montanhas.”

Em 1914, o poeta retrata os horrores da I Guerra Mundial, que não foi sentida
no Brasil. O cotidiano da cidade não é afetado pelos fatos que mudam a Europa e a
única forma de informação sobre os acontecimentos da guerra é o jornal, “ilustrado
longínquo”, segundo as próprias palavras do autor. O sabor de “morrer pela pátria”
não pôde ser sentido pelos brasileiros.
“1914
Desta guerra mundial
não se ouve um explosão
sequer nem mesmo o grito
do soldado partido
em dois no campo raso.
Nenhum tanque perdido
ou avião de caça
rente ao Poço da Penha
por um momento passa.
Vem tudo no jornal
ilustrado longínquo.
O mundo finaliza
na divisa do Carmo
ao Norte
ao sul em Santa Bárbara.
[...]
A vida é sempre igual
a sim mesma a si sempre
mesmo quando o correio
traz naquela mala amarela
esse enxofre de guerra
estranha guerra estranha
que não muda o lugar
de uma besta de carga
dormindo entre cem bestas
no Rancho do Monteiro;
que não altera o gosto
da água pedida à fonte
para dormir na talha
uma espera de sede;
que não suspende a aula
de misteriatritmética
e nem a procissão
em seu eterno giro
na rua principal
tão lerdo a ponto de
tornar abominável
a própria eternidade.
Entretanto essa guerra
invisível e assética
assalta pelas fotos
e títulos vermelhos.
[...]
Já não posso mais ser
o exato germanófilo.
Fernandinho me encara
com silente desprezo
enquanto adiro ao velho
sentimento de pátria.
Pátria, morrer por ti
ou pelo menos te
ofertar este ramo
de palavras ardentes.
[...]”

Fato marcante na história mundial, em especial da ciência, que Drummond


retrata em um de seus poemas é a passagem do cometa Halley que o poeta
presenciou em 1910. No poema Drummond cita importantes nomes da literatura
brasileira, como Murilo Mendes e Marques Rebelo, ou ainda de Ruysbroeck, famoso
místico belga que viveu no século XIII. O poeta lembra que a próxima vez que o
cometa passará pela Terra é só daqui a 76 anos, no caso do poema em 1986, e
passagem na qual Drummond provavelmente viu.

“HALLEY
O sol vai diminuindo
de tamanho e calor e interesse em teu redor.
Há menos razões de rir e até de chorar.
Alguém toca – talvez – a campainha.
Depressa! Não há mais tempo para te vestires,
o barco sombrio impaciente na rua.
Tudo é como se não acontecido
pois depois de acontecer – restou o que?

Ah sim, restou Halley


iluminando de ponta a ponta o céu de 1910.
O menino Murilo Mendes o contemplava em Juiz
[de Fora
o menino Marques Rebêlo em Vila Isabel
o menino Carlos no mato-dentro de Itabira
os três absolutamente fascinados
como o contemplaria no Brabante em 1302 o
[menino Ruysbroeck-o-Admirável.

Halley voltará
Halley volta sempre
com a pontualidade comercial dos astros.
Pouco importa sejam outros meninos que o hão
[de ver em 1986
iluminando de ponta ponta
a noite da vida”

4.3 COSTUMES NA OBRA DRUMMONDIANA


Na obra de Drummond podem ser identificados também aspectos da vida
cotidiana, principalmente da cidade de Itabira que o poeta descreveu. Em “Ordem”, o
poeta retrata algo comum nas cidades do interior mineiro em meados do século XX.
As folhinhas, os pequenos jornais da cidade é que informavam os cidadãos a
respeito da melhor época para colheita, melhor época pra plantar, dias dos santos,
fases da lua, enfim, guiavam a vida de todos os cidadãos das cidades. Drummond
critica os tempos modernos, onde as tradições e os costumes se perderam, onde a
“graça no viver” se foi.

“ORDEM
Quando a folhinha de Mariana
exata informativa santificada
regulava o tempo, as colheitas,
os casamentos e até a hora de morrer,
o mundo era mais intelegível,
pairava certa graça no viver.

Hoje quem é que pode?”

Outro fato que marcou a vida do autor e que pode ser considerado um
costume das cidades do interior de Minas Gerais é o hábito de o leiteiro passar na
porta das casas com o leite fresco e cada morador com sua vasilha compra o quanto
de leite necessita. O hábito de o leiteiro passar de porta em porta também serve
como marcação de horário e é algo tão intrínseco na vida cotidiana da cidade, que
muitas vezes é passado despercebido, torna-se algo automático.
“MULINHA
A mulinha carregada de latões
vem cedo para a cidade
vagamente assistida pelo leiteiro.
Para à porta dos fregueses
sem necessidade de palavra
ou de chicote.
Aos pobres serve de relógio.
Só não entrega ela mesma a cada um o seu litro
[de leite
Para não desmoralizar o leiteiro.

Sua cor é sem cor.


Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.
Não tem idade – vem de sempre e de antes –
nem nome: é a mulinha do leite.
É o leite, cumprindo ordem do pasto.”

Hábito que se perdeu com o passar do tempo é criticado pelo autor em


“Cortesia”, o costume de se tirar o chapéu ao encontrar alguém conhecido. Através
da figura de “Seu Inacinho”, Drummond mostra como esse costume simples se
perdeu no tempo, criticando assim a perda de tal hábito.
“CORTESIA
Mil novecentos e pouco.
Se passava alguém na rua
sem lhe tirar o chapéu
Seu Inacinho lá do alto se suas cãs e fenestra
murmurava desolado
– Este mundo está perdido!
Agora que ninguém porta
nem lembrança de chapéu
e nada mais tem sentido,
que sorte Seu Inacinho
já ter ido para o céu.”
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A memória é fundamental para qualquer ser humano. É através dela que o
homem pode se lembrar desde suas atividades cotidianas, até o que marcou sua
vida num passado próximo ou distante. Perceber que em obras de importantes
escritores existe muito de suas vivências e de suas memórias torna a leitura dessas
obras mais interessantes e carregadas de sentimento, o que transporta o leitor para
a cena que o autor retrata.
Depois de Machado de Assis, Drummond é sem dúvida o mais importante
escritor brasileiro. Suas poesias tocam os mais diversos públicos. Elas possuem
verdade e demonstram todos os sentimentos desse Itabirano ilustre. Os lugares,
costumes e fatos históricos analisados neste artigo, são reflexos das vivências do
autor, que através da sua poesia acessa as referências do seu passado, fornecendo
assim importante fonte não só de análises literárias, mas de reconstrução de um
passado e uma época.
Drummond possibilita uma reflexão acerca das possibilidades de construção
literárias aliadas às lembranças, levando os diversos tipos de leitores a conhecer a
história do poeta, bem como o seu cotidiano.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968. 188p.

BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: EDUSP, 2000.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A.


Queiroz, 1979. p. 5-24

LE GOFF, Jacques. Memória. In: __________ História e Memória. Campinas:


UNICAMP, 2003. p. 419-477

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto


História, n°.10, dez./1993, pp.1-78. São Paulo: PUC-SP, 1993

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de


Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

PREFEITURA de Itabira. Portal Viva Itabira: caminhos Drummondianos. Disponível


em: http://www.vivaitabira.com.br/viva-drummond/Caminhos-Drummondianos.php.
Acesso em 20 mar. 2010.
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. La biografia como género historiográfico: algunas
reflexiones sobre sus posibilidades actuales. In: SCHMIDT, Benito (Org.). O
biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: ECUNISC, 2000. p.
9-48

SANT´ANNA, Affonso Romano de. O Escritor e o Leitor. In: Carlos Drummond de


Andrade: análise da obra. Rio de Janeiro: Documentário, 1977.

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A memória em questão: uma perspectiva


histórico-cultural. Revista Educação e Sociedade. nº 71, jul. 2000. p. 166-193

VIANNA, Márcia Milton; MARQUES JÚNIOR, Alaôr Messias. Fontes Biográficas. IN:
CAMPELLO, Bernadete; CALDEIRA, Paulo da Terra (Org.). Introdução às fontes
de informação. Belo Horizonte : Autêntica, 2005. p. 43 – 51.

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