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DE SUA OBRA.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a articulação entre memória e biografia através da
obra ‘Boitempo’ de Carlos Drummond de Andrade, demonstrando como os aspectos memorialísticos
dos mais variados fatos vividos pelo autor se refletiram em sua produção literária. Pra tal, faz-se uma
discussão entre a relação existente entre memória e biografia, assim como o gênero biográfico se
desenvolveu. Pretende-se assim resgatar através da narrativa de Drummond dados autobiográficos
que reportam acontecimentos vividos pelo autor, bem como fatos históricos e lugares que
influenciaram na trajetória do mesmo.
1
Universidade Federal de Minas Gerais, hugo_avelar@yahoo.com.br, ECI - Av. Presidente Antônio
Carlos, 6627 - Campus Pampulha, Belo Horizonte - MG
2
Universidade Federal de Minas Gerais, anitahvs@yahoo.com.br, ECI - Av. Presidente Antônio
Carlos, 6627 - Campus Pampulha, Belo Horizonte – MG
3
Universidade Federal de Minas Gerais, fernandasamla@ufmg.br, ECI - Av. Presidente Antônio Carlos,
6627 - Campus Pampulha, Belo Horizonte - MG.
1 INTRODUÇÃO
Não se trata de apresentar as obras literárias no contexto de seu tempo,
mas de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela
e conhece: o nosso.” (BENJAMIM apud BOLLE, 2000)
3 O GÊNERO BIOGRÁFICO
Originada dos termos gregos bios (vida) e graphein (escrever) a biografia
pode ser compreendida como a “narrativa, descrição, registro ou história da vida de
uma pessoa” (VIANNA; JÚNIOR, 2005). Como fonte de informação as biografias
podem servir como recurso para se obter não só informações acerca da vida de
determinado indivíduo, mas podem fornecer informações acerca de um período
histórico, de uma nação, dos costumes de determinada época e de determinada
população, etc.
As primeiras biografias remontam da Antiguidade, quando antigos filósofos,
como Plutarco e Xenofonte já contavam a vida de algumas célebres pessoas.
Durante o período Medieval, o gênero biográfico se voltou para a vida de pessoas
ligadas a Igreja. Destaca-se nesse período a obra “Confissões de Santo Agostinho”,
a primeira no gênero autobiográfico. Com o período renascentista, surgem dos
primeiros Dicionários Biográficos, obras essas que apresentam pequenos verbetes
sobre a vida das pessoas biografadas.
No século XIX, o gênero biográfico se volta para a história dos grandes
heróis. Dentro de uma perspectiva da historiografia positivista, somente a vida de
célebres indivíduos, que possuíam algum valor para a história de determinado povo,
são contadas.
Crítico da historiografia positivista, Karl Marx ainda no século XIX irá de
encontro a essa ideia da narrativa da vida dos grandes heróis. Defensor da
Historiografia Social, voltada para os processos coletivos humanos e para a análise
da estrutura social, política e cultural de determinado povo, Marx irá criar uma nova
interrogação acerca do papel efetivo dos indivíduos na história. Para o autor, os
indivíduos não são o ponto de partida da história, mas sim um resultado criado por
ela, sendo criados conforme a história avança (ROJAS, 2000).
Foucault discute sobre o processo de individualização sofrido por parte do
indivíduo, onde as dimensões exteriores refletem o grau de liberdade que as
estruturas sociais dão a esse indivíduo. Desta forma, os indivíduos não gozam da
mesma liberdade para desenvolver suas atividades no processo de desenvolvimento
histórico. A discussão acerca do público X privado entra nesse mérito, uma vez que
para Foucault a liberdade que o sujeito possui influencia na sua ação histórica tanto
no âmbito particular quando no público (ROJAS, 2000).
No século XXI o gênero biográfico sofre certo esquecimento, sendo retomado
apenas após a década de 1950, com um crescimento acentuado do número de
publicações no gênero e com o crescimento da procura, ganhando um caráter
romanceado. No Brasil, as biografias vão alcançar seu êxito principalmente após a
publicação de Olga, de Fernando Morais, sucesso de vendagens. Após a publicação
do mesmo, o interesse do público brasileiro pelo gênero cresceu, sendo lançadas
inúmeras biografias no Brasil todos os anos.
O BANHO
amamos.
“CEMITÉRIO DO CRUZEIRO
O sol incandesce
mármores rachados.
Entre letras a luz penetra
nossa misturada essência corporal
atravessando-a.
O ser banha o não-ser; a terra é.
Ouvimos o calo do cruzeiro nitidamente
cantar a ressurreição,
Não atendemos à chamada.”
Em “Cemitério do Cruzeiro” Drummond relata o cemitério de mesmo nome.
Destinado em sua origem às pessoas com maior poder aquisitivo, possui grande
parte de suas lápides em mármore. Modernamente, com a criação dos “Caminhos
de Drummond” em Itabira, tornou-se também um ponto turístico da cidade.
“CEMITÉRIO DO ROSÁRIO
À Beira do córrego, a beira do ouro,
à beira da história,
à beira da beira, os mais esquecidos
inominados
de todos os mortos antigos
dissolvem a idéia de morte
em ausência deliciosa,
lembrança de vinho
em garrafão translúcido.”
“AUSÊNCIA
e lá em cima
sentir presença de amor.
“15 DE NOVEMBRO
A proclamação da República chegou às 10 horas
[da noite
em telegrama lacônico.
Liberais e conservadores não queriam acreditar.
Artur Itabirano saiu para a rua soltando foguete.
Dr. Serapião e poucos mais o acompanhavam
de lenço incendiário no pescoço.
Conservadores e liberais recolheram-se ao seu
[infortúnio.
O Pico do Cauê quedou indiferente
(era todo ferro, supunha-se eterno).
Não resta mais testemunha daquela noite
para contar o efeito dos lenços vermelhos
ao suposto luar
das montanhas de Minas.
Não restam sequer as montanhas.”
Em 1914, o poeta retrata os horrores da I Guerra Mundial, que não foi sentida
no Brasil. O cotidiano da cidade não é afetado pelos fatos que mudam a Europa e a
única forma de informação sobre os acontecimentos da guerra é o jornal, “ilustrado
longínquo”, segundo as próprias palavras do autor. O sabor de “morrer pela pátria”
não pôde ser sentido pelos brasileiros.
“1914
Desta guerra mundial
não se ouve um explosão
sequer nem mesmo o grito
do soldado partido
em dois no campo raso.
Nenhum tanque perdido
ou avião de caça
rente ao Poço da Penha
por um momento passa.
Vem tudo no jornal
ilustrado longínquo.
O mundo finaliza
na divisa do Carmo
ao Norte
ao sul em Santa Bárbara.
[...]
A vida é sempre igual
a sim mesma a si sempre
mesmo quando o correio
traz naquela mala amarela
esse enxofre de guerra
estranha guerra estranha
que não muda o lugar
de uma besta de carga
dormindo entre cem bestas
no Rancho do Monteiro;
que não altera o gosto
da água pedida à fonte
para dormir na talha
uma espera de sede;
que não suspende a aula
de misteriatritmética
e nem a procissão
em seu eterno giro
na rua principal
tão lerdo a ponto de
tornar abominável
a própria eternidade.
Entretanto essa guerra
invisível e assética
assalta pelas fotos
e títulos vermelhos.
[...]
Já não posso mais ser
o exato germanófilo.
Fernandinho me encara
com silente desprezo
enquanto adiro ao velho
sentimento de pátria.
Pátria, morrer por ti
ou pelo menos te
ofertar este ramo
de palavras ardentes.
[...]”
“HALLEY
O sol vai diminuindo
de tamanho e calor e interesse em teu redor.
Há menos razões de rir e até de chorar.
Alguém toca – talvez – a campainha.
Depressa! Não há mais tempo para te vestires,
o barco sombrio impaciente na rua.
Tudo é como se não acontecido
pois depois de acontecer – restou o que?
Halley voltará
Halley volta sempre
com a pontualidade comercial dos astros.
Pouco importa sejam outros meninos que o hão
[de ver em 1986
iluminando de ponta ponta
a noite da vida”
“ORDEM
Quando a folhinha de Mariana
exata informativa santificada
regulava o tempo, as colheitas,
os casamentos e até a hora de morrer,
o mundo era mais intelegível,
pairava certa graça no viver.
Outro fato que marcou a vida do autor e que pode ser considerado um
costume das cidades do interior de Minas Gerais é o hábito de o leiteiro passar na
porta das casas com o leite fresco e cada morador com sua vasilha compra o quanto
de leite necessita. O hábito de o leiteiro passar de porta em porta também serve
como marcação de horário e é algo tão intrínseco na vida cotidiana da cidade, que
muitas vezes é passado despercebido, torna-se algo automático.
“MULINHA
A mulinha carregada de latões
vem cedo para a cidade
vagamente assistida pelo leiteiro.
Para à porta dos fregueses
sem necessidade de palavra
ou de chicote.
Aos pobres serve de relógio.
Só não entrega ela mesma a cada um o seu litro
[de leite
Para não desmoralizar o leiteiro.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968. 188p.
VIANNA, Márcia Milton; MARQUES JÚNIOR, Alaôr Messias. Fontes Biográficas. IN:
CAMPELLO, Bernadete; CALDEIRA, Paulo da Terra (Org.). Introdução às fontes
de informação. Belo Horizonte : Autêntica, 2005. p. 43 – 51.