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153. Joan Miro, Peinture (Pintura), 1927, fundo de tinta solúvel em água com motivos em óleo, sobre tela,
97 x 130 cm. Tate Gallery, Londres. © adagp, Paris e dacs, Londres, 1993.
C A PÍTU LO 3
S U R R E A L IS M O , M ITO E P S IC A N Á L IS E

Brionv For

Introdução: o Surrealismo e a diferença

Km vez d c iniciar com o q u e co n fere unidade ao Su rrealism o, gostaria d e com eçar com
a sua diversidade e com a idéia de diferença. A credito q u e as idéias d e diversidade e dife­
rença sejam fu ndam entais para a su a caracterização, e certam en te estã o entre o s seu s
traços m ais interessantes. A prod u ção surrealista p o d e se r con sid erad a, d esse ponto d e
vista, um cam po de representação cm constante m udança, qu e usa frequentem ente a dife­
rença para g e ra r significados. K efiro-m c aqui à s d iferen ças q u e en con tram os n os tra ­
balhos surrealistas entre si,1 "assim com o as diferenças produzidas em um a variedade de
representações - p or ex em p lo en tre o s trabalhos su rrealistas e aqu eles livrem ente ch a ­
m ad os d e "co n stru tiv o s", com o o s d iscu tid os n o s cap ítu lo s anteriores.
Um a d as m aneiras com o a diferença se expressava n o Su rrealism o era pela m etáfora
d o "fem in in o", e eu iria ainda m ais longe dizendo qu e o "fem in in o " constituía para o Su r­
realism o a m etáfora central prom otora da diferença. Em 1945 A n d ré Breton escreveu que:
tem p o virá em qu e as id éias d as m ulheres se afirm arão em d etrim ento d as d os hom ens, cuja
falência é hoje tão tum ultuosa m ente com pleta. (Essa tarefa] cabe particu larm ente aos artistas,
ainda qu e seja som en te em protesto contra is.se escan d aloso estad o d e coisas, para assegurar
a suprem a vitória d e tudo qu e vem d o sistem a fem inino n o m undo c m op osição ao sistem a
m asculino ... (Brvtivn, citado em K Parker e C. Pollock, OU Mrs/rvyscs, p. 138)

N ós nos concentrarem os em com o o "fem in in o ", e o qu e isso significa, era rep resentad o
no Su rrealism o - tanto nos trabalhos d os hom ens com o nos d as m ulheres artistas, e
tam bém com o parte d e um a fantasia d o m oderno q u e estava em d esacord o com a visão
nacionalista abordada no cap ítu lo anterior. O asp ecto sexual da m od ernidad e era crucial
para o s surrealistas, e gostaria d e m c deter nisso segu ndo o ponto d e vista d e nossas preo­
cupações, hoje, com a qu estão da diferença sexual. Tentarei d elim itar claram en te, no
decorrer d o capítulo, as d iferen ças entre as p reocu p ações su rrealistas e a s m in h as pró­
prias, m ais con tem p orân eas - por exem plo, a d istin ção en tre o Ereud "d e le s" e o Freud
da teoria psicanalítica m ais recente.
D esde o início, o Su rrealism o era um m ovim ento heterogêneo. Incluía escritores, pin­
tores, poetas e fotógrafos; m ais tarde, no final d os an os 20, d iv ersificou -se na produção
d e o b jeto s e film es. A lém disso, o s su rrealistas produziram um a g ra n d e q u an tid ad e de
revistas, u tilizan d o-as com o p lataform a para debate. M esm o s c n os restrin girm os â pin
:ura su rrealista, con clu irem os qu e nunca houve um a u n id ad e d e estilo. I’o r exem p lo, os
surrealistas jam ais recom endaram q u e se atribuísse m aior valor à arte abstrata, ou à figu-

Puas exposições na I layward Gallerv, rm Londres, foram momentos decisivos para a interpretação do Sur-
le.ilismo. Dadá e Surrealismo Revistos (1978) foi organizada em torno das revistas e n-senhas criticas, mostran­
do um conjunto extr.iordirurio dc interesses e artefatos (D. Ade», Chuiuand Sumidism Krtvtnn/). fA in o u r fou
( ’.^S6) examinou as fotografias surrealistas e explorcu sua preocupação com a sexualidade e o desejo (K.
krauss e | Livingslon, LAmcwrfot«). IVvo muito aqui aos trabalhos de Ades e de Krauss.
172 SURREALISMO. MITO F PSICANÁLISE

154 Salvador Dali, L es Accontmodatious de s désirs (As acom odações d e desejos ), 1929, óleo e colag em sobre m a d e iri
22 x 35 cm. Coleção ja e q u e s and N alasha G elm an. Foto: M alcolm Varon, cortesia do M etrop olitan M useum o:
Art, N ova York. © dlmart pro aku bv/pacs, Londres, 1993.

rali va. Pinturas que pareciam m uito diferentes em term os form ais - tais com o Pintura, c •
Joan M iro [153], de 1927, e As acom odações de desejos, de Salv ad or D ali [134], d e 192w
pod iam ser vistas com o partes de um m esm o projeto.
Em Pintura, de M iro, um a linha sutil atravessa a superfície azu l intensa do quadre
d eixan d o sugestões de form as, tais co m o a do seio no lado direito d a pintura, m as nunca
perm ilindo à im agem tornar-se definida ou fixa: ela perm anece sem p re no nível da suges­
tão. P o r outro lado, na pintura de D ali, um a paisagem onírica é retratada em detalhe, cor.
form as situ adas num espaço ilusionista, ainda que ilógico. Im agen s de leões, form igai
rochas de form atos extravagantes, fig u ras se abraçando, podem ser reconhecidas, m as a-
relações entre elas são d eliberadam ente enigm áticas, com o num sonho. Esses trabalhos
tinham em com um , portanto, o efeito de desorientar as exp ectativas habituais. O efeito
d esejado era o de revelar o inconsciente na representação e de d esfazer as concepções rei­
n an tes de ordem e realidade. N ão s e tratava apenas de qu estion ar a "realid ad e", ma»
tam bém de questionar a form a pela qu al ela era norm alm ente representada.
N o prim eiro m anifesto su rrealista d e 1924, foi deixado em a b erto o m odo co m o c
"p sic o a u to m a tis m o no seu estad o p u ro " d everia ser expresso s e p or m eio da palavra
"ou p o r outro m eio q u alqu er" (M an ifesto o f Surrealism , 1921, p. 26). Breton, seu autor,
era e le próprio escritor e poeta, o q u e explica seu ponto d e p artid a na literatura, cerca­
do co m o estava por poetas, com o Louis A ragon e Paul Éluard, os q u ais tam bém haviam
p articipado do gru po de Littérature. M as a recusa ao dogm atism o era tam bém parte do
co m p rom isso surrealista com a in ven ção , com o in esp erad o e com o m ínim o de inter­
v en ção possível perm itid a a o co n scien te. P od e p arecer cu rioso que, qu an d o Breton
discu tiu a relação da pintura com o Surrealism o, em um en saio p u b licad o em m ais de
qu atro núm eros de \ji Rcvolution Surréaliste entre 1925 e 1927, e le com eçasse não com um
p in tor "surrealLsta", m as com Pablo Picasso [155]. A n d ré M asson, u m d os artistas cnvol-
INTRODUÇÃO: OSURRI AUSMO F A D1FFRHNÇA 173

1 5 5 .1’ablo Picasso, Hommeà la


mousiache (Homem com bigode), 1913,
ó le o e tecido colado sobre tela,
66 x 47 cm ; reproduzido em
La Révolution Surrcatiste, n* 4,
p. 26, 1925, com o título de Étudiant
(Estudante). M u sée Picasso, Paris.
Foto: R éunion d es M u sées N ationaux
D ocum entation Photographique.
© d a CS, Londres, 1993.

vidos n o g ru p o surrealista, o p ô s-se a isso, n ão som en te porqu e P icasso n ão pertencia ao


grupo, m a s tam bém porque, n a época, seu trabalho e sta v a asso ciad o ao ressu rgim en to
d o C lassicism o . A parentem ente, o o bjetiv o d e Breton e m seu en sa io "S u rrea lism o e p in ­
tu ra" era e x ig ir q u e o Su rrealism o passasse "p o r o n d e Picasso passou e passará n ov a­
m en te". E le d eixav a claro, n o entanto, qu e "se m p re s e op oria a ró tu lo s", erro q u e o
C u b ism o h av ia com etid o no p assado "m e sm o q u e ", acrescen ta em n ota d e rodapé,
"fo sse u m ró tu lo su rrealista" ( L í Révolution Surréalbte, nu 4, p. 30).
M asso n , "a lg u ém tão p róxim o d e n ó s", com o B reto n o d efin ira n o p rim eiro m an i­
festo, prod uziu inú m eros d esen h o s "a u to m á tico s" a p a rtir da m etade d os an os 20, m u i­
tos d os q u a is foram reproduzidos em Lu Révolution Surréalbte. O s d esen h os atu am em
vários n ív e is d e su gestivid ad e, algu n s se referin d o m u ito exp licitam en te a fon tes artís­
ticas (com o os trabalh os d e P icasso) e ou tras, com o Qunrc de vulvn eduxisti me {156], d eli­
n ean d o o b sessiv am en te o corp o d e um a m ulher... ou seriam d u as m u lheres, ou um a
m ulher e u m hom em ? Essa situ ação d e am b igu id ad e é a con d ição im posta à nossa lei­
tura da im agem . A im agem consiste em uma linha d e tinta rabiscada sobre a página, reme­
tendo freqü en tem en te ao s pontos eróticos d o corp o - p o r exem p lo, as m arcas arran h a­
das, q u e rep resentam o s pêlos púbicos. A s v ezes a p en a flui livrem en te, m ais ad ian te é
convu lsiva e desajeitada. A analogia erótica é qu ase im p o sta ao observador, m esm o qu e
a linha d e M asson apenas sugira as p artes d o corpo, q u e nunca são claram ente definidas.
Dois co rp o s - o d o hom em indicado por um a cabeça m asculina - estão entrelaçados e são
p raticam en te in sep aráveis. A am b igu id ad e é n ecessária, p o is a im agem se exp ressa em
fragm entos, p artes representando o corpo inteiro. O b serv ar a im agem é m over-se d e um
frag m en to a ou tro, e cad a in d ício é d estitu íd o pelo p róxim o. E ssa situ ação corresponde
à idéia d e B reto n d o Su rrealism o com o um "e sta d o d e co m p leta p ertu rb ação m en ta l". E
o uso d e um a linha traçada a m ão-livre, a con otação d e "ra b isco " m esm o, definem um a
171 SURREAIJSMO. MITO F PSICANÁLISE

156. A ndré M asson, Quare de vutzta eduxisti


we (Por que me tiraste* do útero?), 1923,
bico-d c-pena sobre p a p e l 2 7 x 20 ar».
C oleção privada. © PACS, Londres c
adacp . Paris, 1993.

ab ord ag em totalm ente contrária à p recisão técn ica e às lin h a s traçad as a régua q u e
v im os no cap itu lo anterior. Para Breton, n ovam ente, "n esta em briagan te com petição, as
im agens aparecem com o os ú n icos g u ia s da m en te", to rn an d o os desejos explícitos.
Para citar um exem plo bem p osterior M erct O ppenheim fey. O bjet: déjeuner eu fou rru re
[157J quando solicitada a colaborar em um a exibição d e objetos surrealistas na C alerie
Charles Ratton em Paris em 1936. Ela com prou a xícara, o pires e a colher na Uniprix, a loja
de departamentos, e cobriu esses objetos de uso diário com pele d c gazela chinesa. O trabalho
foi exibido em um arm ário repleto de objetos, alguns achados, outros com prados prontos e
alguns, com o este, montados, brvton íoi o autor do título, que significa "desjejum em pele"
e parodia o tema do déjeuner na pintura moderna - de Déjeuner >ur Uterbe, de Edouard Manet,
até L e Grarul Déjeuner [13SJ, de Pem and Léger, no qual a m txlem id ade foi projetada na
figura do nu feminino. Aqui, entretanto, o objeto d c uso diário, produzido em massa e que
havia sido celebrado por I.éger e pelos puristas nos anos 20 com o em blem ático da oaiem
racional, geom étrica, da vida m ixlem a, foi transform ado em algo bastante diferente - em
uma espécie de fetichc moderno. É a onipresença da louça que im porta aqui, não a sua qua­
lidade de objeto produzido em série; a familiaridade da forma d a xícara e do pires c destruí-
da pela utilização de um material inesperado, pela impressão de ter sido feito de pele de ani­
mal, e pela conotação sexual. A com binação é deiiberadamente absurda, e há uma recusa em
reconhecer a utilidade ou a suposta racionalidade do objeto produzido em massa. Um
motivo aparentem ente aleatório e incongruente foi concebido pelos surrealistas para desa­
fiar a lógica da m ente racional e expressar um tipo de lógica profunda, a do inconsciente.
INTRODUÇÃO. O 5URREAI JS\K> F AINFKRENÇA 175

: 37. Morot O pponheim , Objet: ilejeuner en fourrure (Objeto: desjejum cm pele), 1936, xícara, p ires e colher cobertos
de pele de anim al; xícara, 11 cm d e diâm etro, pires, 24 cm , e colher, 20 cm d e com p rim en to (altura total
d o objeto, 7 cm ). A cervo, The M useum o f M od em A rt, N ova York. © im c s , 1-ondres, 1993.

138. Man Kay, Objet: üqcunçr enfourrure (Objeto: desjejum em pele), 1936, loto. Coleção
privada. Reproduzida p o r cortesia de M m e. Bíirj;i.
176 SURREALISMO, MITO b PSICANÁLISE

159. D ora Maar, Objet: déjeutwr


enfourrure (Objeto: desjcjum
em pele), 1936, foto. C oleção
privada. R eproduzida
p or cortesia d e M m e. Hürgi.

Objeto: desjcjum em pele tom ou -se um ícone d o Su rrealism o quase im ediatam cnle após
ser lançado. Man Rav e D ora M aar fotografaram a peça [158, 159], e am bos u saram recur­
sos fotográficos para am pliar o efeito d e disjunção. M an R ay iluminou a xícara e o pites pela
frente, para q u e surgisse uma som bra por trás, reproduzindo o efeito d o arranjo “comum
dos objetos à mesa, qu e se d u n a com o material extraordinário d e que são feitos. Dora M aar
vai m ais além ao colocar o objeto, visto d e cim a, num guardanapo quadrado. O objeto foi
program ado para aparecer n a foto com o um a form a enlouquecida d o familiar. E sse desejo
d e chocar, de confundir as expectativas convencionais, era certam ente um aspecto im por­
tante da prática surrealista. Mas era também parte d e u ma estratégia mais am pla - o esforço
d o Surrealism o em trabalhar do ponto de vista d o inconsciente. Ainda qu e o s surrealistas cele­
brassem a "d escoberta", por Freud, do inconsciente questão ã qual deverei retom ar em
seguida , o próprio Freud estava m enos entusiasm ado com a interpretação do seu trabalho
por eles. Fm uma breve correspondência com Breton, fica evidente que Freud rejeitou o Sur­
realismo principalmente porque, para ele, qualquer tentativa deliberada de excogitar os efei­
tos do inconsciente era um a contradição em term os. N um sentido m ais restrito, segundo
Freud, era esse o caso. Mas, no contexto cultural em q u e os surrealistas atuavam , a estraté­
gia mais efetiva disponível a eles parecia ser falar u partir da posição d o irracional, tentar falar
da loucura "a partir d o lugar da própria lou cu ra",2 n ã o do ponto d e vista da razão.

" M u lh e r ", m u lh eres c d e sejo


A s m u lheres, para o s su rrealistas, estav am m ais p ró x im a s d aq u ele "lu g a r da lo u cu ra",
d o in c o n sc ie n te , d o q u e os h o m en s, e é a tra v é s d e u m a c o n stru ç ã o p a rticu la r da
"m u lh e r" q u e a p reocu p ação su rrealista com a fan tasia e o in co n scien te foi definid a.
For exem p lo , a p ró p ria O p p en h eim tin h a sid o um d o s tem as d e um a série d e fotog ra­
fias d e M an R ay p u b licad a na revista su rrealista M in o ta u re em 1934 1160]. S u a m ão e
b ra ço foram lam b u zad o s com tinta d e im p ressão, c se u co rp o co lo cad o nu con tra uma
roda d e im p ressora. O eró tico e a m aqu in a foram co m b in a d o s aqui num m od o qu e
co m b atia a v isã o racio n alista da m o d ern id ad e. O S u rrea lism o valorizou e atraiu a
aten ção para tud o o q u e o "ch a m a d o á o rd e m ", d is cu tid o n o ca p ítu lo 1, havia repri-

I-.. Koudinesco, citado cm |. Rose, Sexualittf iri the held o f Vision, p. 144, sobre a relaç.lo do Surrealismo com a
psicanálise e as instituições inéditas.
INTRODUÇ AO: O SURRLALISMO L A Dll;ERENÇA 177

160. Man Ray, Érotitjue voitée (Mervt


Oppcnheim n Ia prcsse) (Erótica dissimulada
[Merrf Oppenheim na gráfica]), 1933, foto.
Musée National d'Art Moderno, Centre
Georges Pompidou, Paris. <Dadaop-, Paris
e DACS, Londres, 1993.

m id o o su b terrân eo da m o d ern id ad e, o eró tico , o bi 2 arro, a su b stâ n cia in con scien te


da ativ id ad e m ental. A "m u lh e r" torn ou -se o o b je to d e d esejo e tam b ém perm aneceu
um sím b o lo d o desejo.
O ppenheim era uma d a s várias artistas que trabalhavam com o grupo surrealista nos
m os 30 e, nas fotografias de M an Ray, era também u m modelo sobre o qual a vida fantasiosa
do Surrealism o era projetada. Escreverei aqui sobre alguns aspectos dessa "vida fantasiosa",
o m o ela foi elaborada na representação, e tam bém , m ais adiante, sobre com o algum as
m ulheres vieram a trabalhar no interior da estrutura do Surrealism o. Talvez haja uma ten-
>áo envolv ida aqui que esclareça aspectos contraditórios n o interior do próprio Surrealismo.
Sim bolicam ente, o Su rrealism o colocava a "m u lh e r" em seu centro, com o o foco de
^eus sonhos. O prim eiro e o últim o núm ero da revista Lu Révolulioti Su rrcalistc ilustram
-^se cenário sim bólico d e form a bastante vivida. N o prim eiro núm ero, de 1924, aparece
: ilu stração 161, qu e reúne fotos de surrealistas, ju n to com Hreud e o u tro s m entores, em
■ m o de um a im agem central da anarquista C erm a in e Bcrton. A s p alav ras no fim da
página dizem : " É a m u lher qu e lança a m aior som bra ou projeta a m a is intensa luz em
nossos so n h o s", um a citação de C harles Bau delaire. Berton havia assassin ad o um poli-
nco de extrem a-direita e, em um a pequena nota na m esm a revista, A ragon a celebrava
.o m o "aq u ela m ulher p erfeita m m te adm irável q u e representa o m aior desafio contra a
178 SURREALISMO, MITO K PSICAMÁI.1SF

161. G crm ain e B crlon , rodeada p or retratos d os .surrealistas e daqueles que


adm iravam , in cluin d o Sigm und Freud (ao lad o de G crm a in e Berton, abaixo,
à sua direita). I a Rcvolulion Siirrêalistc, n° 1, p. 17, 1924. R eim p resso por A m o Press.

escravidão, o m ais b elo protesto ante a opinião pública contra a detestável m entira da feli­
cid a d e " (A ragon, "G crm a in e B e rto n "). Ela p erm an eceu um sím bolo pod eroso d e trans­
gressão (observe co m o A ragon usa as palavras "d e s a fio " e "p ro te sto ", em v ez d e fazer
dela apertas um sím bolo d e liberdade).
A ilu stração 162 é d o ú ltim o nú m ero da rev ista , p u b licad o em 1929. A página apa­
recia num contexto d e ind agação sobre o amor. M ostra o s surrealistas, fotografados com
o s o lh o s fechad os, d isp ostos em torn o d o qu ad ro frJão vejo a (m ullter) escon d id a na flores­
ta, d e R en é M agritte. A fantasia em com u m (q u e e le s v eem em seus son h o s) está cen-
INTRODUÇÃO: O SUKRK Al.ISMO I- A DIFI-RKNÇA 179

162. Fotos do grupo surrealista ao redor de Je nr vois fras Ia (frnnnr) cachrr da»'. taforrt
VJ o vejo l<i mulher] escondida nafloresta), de René Magritte, La Revolutioit Surrraliste,
n 12, p. 73, 1929. Reimpresso por Amo Press. © aim ci *, Paris t* i )ACs, Londres, 1993.

trada no corp o da m u lher que é rep resentad o pola pintura, em q u e o n u ocupa o lugar
da palavra au sente na sentença. Ela é circu n scrita pela linguagem , ainda qu e d en ote o
que está "e sco n d id o " num a "flo re sta " o p an o ram a obscu ro e com plexo do in con s­
ciente. A m u lher com o "m u sa " do poeta e a m u lh er com o o "o u tro "sã o m otivos recor­
rentes no p ensam ento su rrealista, os qu ais en con trarem os n ovam en te neste capítulo.
M as o objeto de suas fan tasias e tam bém , co m o se vê aqui, um a pintura, um a rep re­
sentação, um a fabricação m esm o, em com p aração com seus próp rios fotorretratos que
a circundam . O s sonhos que em ergem no Su rrea lism o talvez envolvam os son h os e as
rantasias do inconsciente m asculino, m as o m o d o pelo qual são revelados é sem pre um a
questão d e rep resentação. O m odo com o as a rtista s lidavam com a estru tu ra sim bólica
180 SUKRFAIiSMO, Mi ro J-: PSICANÁLISE

central do Surrealism o com plica ainda m ais a natureza do im aginário com o qual o Sur­
realism o lidava.
Ao contrário da tendência "con stru tiv a", discutida no capítulo anterior, o Surrealism o
colocava a sexualidade e o desejo n o centro de suas preocupações. É esse o aspecto do Sur­
realismo que discutirem os aqui, segundo a óptica das questões de diferença sexual. Meu
foco é obviam ente parcial, mas suponho que, longe de despir o Surrealism o de seu aspec­
to político, a insistência surrealista na relação entre a m odernidade e a sexualidade era
bastante abrangente em suas im plicações políticas. A preocupação surrealista com a sexua­
lidade trazia à discussão aquilo q u e fora reprim ido pela tendência "con stru tiva". A asso­
ciação e a sugestão eram positivam ente cortejadas no im aginário surrealista, o q u e podia
tam bém questionar a aparente pureza da form a "fu n cion al" ou m aterial tão cara aos pu­
ristas, por exemplo. Uma característica da prática surrealista nas suas m ais diversas formas
- p<x*sia, pintura, objetos, fotografias - era um a preocupação com o que A ragon chamou de
"u m a m itologia do m od erno" (Paris Peasant, p. 130), a qual, devo afirmar, atraiu atenção
para o caráter m ítico de outros tipos de representação, especialm ente aqueles que reivin­
dicavam um forte laço com a "realid ad e". E a mitologia que o Surrealism o construiu para
si centrava-se na "m u lher" com o o "o u tro ", com o estando m ais próxim a do inconsciente
que os hom ens, e tentava habitar o m undo da "alterid ad e", do inconsciente, indo além de
suas fronteiras, com o intuito de questionar o qu e via com o um m undo m oralm ente falid o.'
Isso significava enxergar além d a s sim ples aparências e entender que, sob estas, jaz
um a série d e forças psíquicas e sociais sobre as quais os indivíduos têm pouco ou nenhum
controle. Isso ajuda a explicar o interesse dos surrealistas por Sigm und Freud e Karl Marx,
os quais, de m odos diferentes, su stentaram que as relações entre pessoas ou entre grupos
sociais estavam veladas e escon d id as pelo qu e era norm alm ente aceito com o "realidad e".
O s surrealistas viam as idéias d e am bos com o m eios de criticar a ordem social existente e
a cultura dom inante, vista por eles com o repressiva. Esse estado d c repressão, acreditavam,
possuía tanto um a dim ensão psíquica quanto social. A tualm ente, com freqüência, o mar­
xism o e a psicanálise são vistos com o pólos opostos, um relacionado aos determ inantes
econôm icos e sociais da vida cm sociedade, e a outra associada a um dom ínio associai, psí­
quico do inconsciente. Contudo, e m alguns m om entos no passado, am bos foram consi­
derados form as radicais de questionam ento e relacionados entre si, ainda que de forma
complexa. O Surrealism o é uni desses mom entos históricos. Ainda que este capítulo se con­
centre no Surrealism o relacionado à psicanálise, gostaria d e não perder d e vista essa
conjunção crítica do psíquico e do social que estava no centro do projeto surrealista.

Freud e o in co n scien te
O m od o m ais literal com o os su rrealistas se basearam em Freud foi utilizando vários de
seu s tem as. P or exem plo, M ax E rn st elegeu o personagem de Edipo com o tema na cola­
gem reproduzida na revista I s Surréalisme au Service dc Ia Révolution em 1933 (163J. O
desejo de Fdipo por sua m ãe e o ciú m e ran coroso por seu pai, n a tragédia grega, tinham
sid o propostos por Freud com o com p on en tes do dram a central da vida psíquica. M as,
m esm o nessa im agem , em qu e en con tram os m otivos freudianos bastan te óbvios, o tra­
balho d c Ernst vai além da m era ilu stração e em prega a colagem para m ontar um a figu­
ra andrógina em form a de esfinge, criada a partir d c partes com postas.
Entretanto, não foram apen as m otivos que o Surrealism o retirou de Freud e sim,
m ais fundam ental m ente, um sentido poético dos m ecanism os envolvidos no processo do
sonho. Ia Réi>olutioii Surréalistc incluía regularm ente relatos de sonhos experim entados por
m em bros d o grupo. E a força da id éia d o sonho estava no fato de representar tudo o que
havia sido reprim ido no estad o d e vigília. Era Freud quem havia dito que " o sonho,
com o um todo, é o substituto distorcido d c algum a outra coisa, algo inconsciente, e ... a
tarefa de interpretar um sonho é descobrir esse material inconsciente" (Freud, Introductory
Lecturcs ou Psychoanalysis, p. 144). E os processos que Freud identifica com o operando no
Ver a discussão de (Jill Pcrry da idéia de ' alteridade' no capítulo 1 de Harrisor» et .1/., Cubismo,
Abstração. São Paulo, Cosac Sc Naifv, 1998 (no prelo).
INTRODUÇÃO: O SURREALISMO F. A DIFERENÇA 181

163. Max Ernst, CF.dipe


(Édipo), colagem , Is
Surréalisme au Service de la
Révolution, n- 5 ,1 9 3 3 .
€ Paris e
a Da g p /SPADEM,
dacs , Londres, 1993.

"so n h o " eram cruciais para a abordagem surrealista. Freud afirm ara qu e no son h o há um
conteúdo "m anifesto" e outro "laten te". O m anifesto é o q u e aparece, o latente é o incons­
ciente expressando o que a m ente não quer m ostrar. A "con d en sação" é o processo pelo
qual o conteúdo latente é condensado ou com prim ido dentro do conteúdo manifesto. Isso
pode ocorrer, por exem plo, em tipos de estruturas com postas encontradas cm sonhos nos
qu ais diversas pessoas, coisas ou acontecim entos sào substituídos por um único elem en­
to. ü "deslocam ento" é o processo pelo qual o foco do sonho é transferido de uni elem ento
im portante para um aparentem ente insignificante p or m eio tia censura. O s sonhos liber­
tavam o inconsciente de um m odo im possível no estad o d e vigília - com o o fa/.iam fenô­
m enos relacionados, tais com o sonhar acordado, ato s falhos e lapsos d e m em ória. O s sur­
realistas estavam interessados nessas áreas, p ois buscavam o qu e Breton cham ou de
"arbitraried ade no m ais alto grau " {Breton, "M an ifesto o f Su rrealism ", 1924, p. 38).
Para Freud, o inconsciente era a prim eira e a m ais im portante afirm ação da psicanáli­
se - esses "processos m entais são inconscientes em si m esm os e, de toda a atividade m en­
tal, apenas alguns atos e parcelas singulares são conscientes", (Introductory h r lu r c s , p. 46).
O inconsciente é considerado por Freud com o ten d o sua própria estrutura e m odos de
expressão, que são diversos daqueles que atuam n o nível consciente. Ele tem seus próprios
impulsos, que são revelados apenas em algum as ocasiões e de m odo necessariamente indi­
reto. O inconsciente, para Freud, refere-se também à infância - o que foi reprimido cm tenra
idade pela nossa parte consciente. Para com preender os mecanismos do inconsciente, os sur­
realistas exploraram a linguagem e os processos de funcionamento do sonho. Olharam para
182 SURKEAIISMO. MITO EIMCANALISK.

dentro d c si m esm os em busca do q u e era infantil, m as também exploraram os lapsos de


memória, as repressões de toda um a cultura; voltaram -se para o passado, ou para os mitos
ancestrais, com o intuito de questionar o presente e im aginar uma saída para as condições
aluais - com o um m eio d e transgredir as fronteiras estabelecidas da representação.
Ainda que Breton tivesse m ostrad o interesse pelo trabalho de Freud enquanto atuava
com o auxiliar m édico durante « 1 Prim eira Guerra M undial, c que as idéias de Freud fossem
am plam entc conhecidas, as traduções d e suas obras mais importantes só começaram a apa­
recer na França no d ecorrer dos a n o s 20. A interpretação dos sonhos, por exem plo, cuja
edição original é d e 1900, não havia sido publicado na França até 1925; A psicopatologia da
ifiila cotidiana, de 1901, apareceu em 1922; Totem e tabu, de 1912-13, em 1924; e Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade, de 1905, som ente em 1927.4 Isso sugere que na França d os anos
20 houve um interesse renovado e v iv o pelos textos de Freud, jã que os leitores podiam
encontrá-los facilmente. F., posto que, com o tem sido frequentem ente notado, o trabalho de
Freud tivesse se desenvolvido com b ase na Viena da virada do século e n as neuroses da
burguesia vienense, ele ainda produ/.iria trabalhos im portantes no decorrer dos anos 20 e
30; na verdade, foi só em 1924 que Freud passou a considerar a personalidade c os pro­
blem as específicos da sexualidade d a mulher. É também um a característica do trabalho de
Freud o fato de q u e lida não som en te com indivíduos, mas tam bém com as organizações
m ais am plas da sociedade ( Mal-estar na civilização é talvez o exem plo m ais claro). Dessa
forma, seu trabalho teórico diferia d o s interesses clínicos dos psiquiatras franceses (tais
com o Jean-M artin Charcot e Piem» Jan et), que, especialm ente no início, exerceram grande
influência c m Breton. E isso explica por que foi Freud, e som ente Freud, a pessoa a quem
Breton ofereceu o crédito no prim eiro m anifesto (p. 10) de responsável por trazer de volta
á luz "aquela parte d o nosso universo mental à qual fingíamos não estar m ais conectados".
Esses breves com entários m ostram o sentido, assim espero, d e por que Freud e a psi­
canálise representaram um a esp écie de im pulso histórico n o sentim ento d e revolta dos
surrealistas. Freud oferecia um m od elo explicativo para revelar o que era reprim ido,
para explorar o conteúdo "laten te" m ais do que o "m an ifesto" de sua época (para usar os
term os de Freud sobre sua análise d o s sonhos). Em parte, isso implicava olhar para o "su b ­
terrâneo" da modernidade, focalizando a sexualidade, o desejo e as am bigüidadcs da dife­
rença sexual. E isso conduz m inha análise ao ponto final desta introdução. C om o poderia­
m os en tend er o m odo com o as qu estões da sexualidade foram tratadas pelo Surrealism o
sem a ajuda da teoria psicanalítica em si? O trabalho psicanalítico de Freud e de outros for­
neceram uma teoria da sexualidade. Por se tratar de um a teoria qu e aponta as diferenças
entre hom ens e m ulheres, entre m asculino e fem inino, a teoria psicanalítica tem sido
usada e desenvolvida por escritoras e críticas fem inistas com o uma form a d e explorar as
relações entre os sexos e as d e s ig u a ld a d e básicas que existem em um a sociedade na qual
os hom ens têm p<xler sobre as m ulheres. O trabalho de Freud é visto às vezes com o extre­
m am en te c o n trá rio às m u lh eres, co m o "fa lo c ê n tric o ", ex clu in d o o fem in in o exceto
enquanto subordinado ao m asculino. M as ou tras fem inistas viram em Freud uma forma
radical d e qu estionam ento no â m b ito da sexualidade, e interpretaram sua obra, bem
com o as d escobertas psicanalíticas posteriores - com o o trabalho de Jacq u cs Lacan - , sob
a óptica fem inista. Assim o fizeram por entender que as teorias sociológicas da sexu ali­
dade falharam cm explicar com o certo s padrões de com portam ento, certas norm as e ati­
tudes, são internalizados pelos seres hum anos. Essas teorias nos contam com o os papéis
atribuídos aos gêneros podem ser socialm en te determ inados, m as não explicam com o as
diferenças sociais são reproduzidas interna e inconscientem ente na vida psíquica.
Em bora Freud seja visto às v ezes com o incentivad or da idéia de qu e existem d ife­
renças essenciais entre hom ens e m ulheres, sou trabalho tem um aspecto m ais radical: ele
ofereceu um a teoria da sexu alid ad e na qual as d iferen ças en tre hom ens e m ulheres
foram consideradas com o p rod u zid as pola cultura, e não pela natureza, determ inadas
biologicam ente. É no d esen v olv im en to d as relações sim bólicas dentro da fam ília que 1

1As vl.it.is dessas traduçxVs foram obtidas «»ro Ades, Diulo ittiJ Surrealism RczHfínrtt, p 224.
A Mâ DJA de br eto n 183

essas id en tid ad es sexu ais são construídas. A s relações fam iliares têm sid o con sid erad as
um m odelo p ara as relações d e poder, na form a com o existem em uma sociedade p atriar­
cal. Posto de fo rm a sim plista, enq u anto Marx d iagn osticou os m ales do capitalism o,
Freud diagnosticou os m ales do patriarcalism o. A o longo deste capítulo, usarei elem en ­
tos d e um m éto d o psicanalítico, e meu objetiv o é m ostrar algu ns dos cam inhos p elos
qu ais a p sicanálise pod e lançar u m a luz no terren o sim bólico cm qu e o Su rrealism o t ra-
balhava, tanto em seu aspecto social com o psíquico. A inda q u e o próprio Freud pensasse
a psicanálise com o um a nova ciência, os su rrealistas claram en tc n ão estavam in teressa­
dos nas su as id éias enquanto princípios cien tíficos. C ertam ente n ão desejo reivindicar
aqui um a b ase cien tífica para a psicanálise, ou d iscu tir su a aplicação clínica. Ao co n trá ­
rio, gostaria de enfatizar as forças m etafóricas d e algu ns d os d ram as e m otivos p síq u i­
cos descritos p o r Freud qu e alim entaram a im aginação surrealista. N a verdade, suponho
que parte d o interesse das idéias de Freud está no fato de serem elas próprias um tipo de
construção m itológica, mas que pretende possuir algum a força explicativa.
A ntes de con sid erar a im portância crucial de Freud para o Surrealism o, gostaria de
m e deter cm um a história criada pelo Su rrealism o que persegue o tem a do desejo e q u e
se coloca claram en te em contraste com as rep resen tações correntes da m od ernidad e,
notadam ente a da racionalização.

A Nadja de Breton
" O m ais so n h a d o de seu s o b je to s "
Em um ensaio cham ado "Su rrealism o: o últim o in stan tân eo d a intelligentsia eu ro p éia",
escrito em 1929, W alter Benjam in discu te o interesse dos surrealistas em objetos q u e e sta ­
vam se torn an d o obsoletos, que "com eçavam a s e extin g u ir" (p. 229). N o an tiqu ad o e
obsoleto esco n d iam -se as m ais bizarras co in cid ên cia s qu e assom bravam , e p o rtan to
caracterizavam , as exp eriências da vida m od erna. "N o centro d esse m undo de co isa s",
Benjam in prossegu ia, "e stá o m ais sonhad o de seu s objetos, a própria cid ad e de P a ris"
(p. 23U). O fo co da discu ssão de Benjam in é o livro de Breton Nndjti, pu blicad o no a n o
anterior. O texto de Breton é o relato de um en con tro casual com um a m ulher, N ad ja -
cujo nom e, com o ela diz a Breton, é a prim eira p a rte da palavra russa para esp eran ça.
Para Breton, N ad ja representa a prom essa d e am or. Em bora o rom ance não tenha um
final feliz, N ad ja p ersonificava a possibilidade de am or, com o desejo no papel da força
m otriz que im pelia o texto ad iante nem sem pre de m aneira lógica, no sen tid o de u ma
clara sequência narrativa, m as segu ind o a estru tu ra d a fantasia d e Breton.
Breton encontra N adja enquanto ele vaga sem rum o pela cidade. N o francês coloquial,
fhiner significa p assear ou perambular. O flâticur é alguém qu e está vadiando ou m atan ­
do o tempo. A inda que Breton não use o term o, suas andanças sem destino em N adja
caracterizam a atividad e típica do fhhieur, com o Baudelaire a definira na m etade do sé cu ­
lo xix. OJJâneur havia sido para Baudelaire um observad or com pulsivo da m odernidade,
sem pre à m argem , distraído e fragm entado pola experiência da vida m oderna. Q flâneur
era do origem burguesa, m as déclassé ("n ão pertencente a nenhum a classe"), no sen tid o de
que nunca p od ería participar totalm ente da vida social burguesa ou da vida das m assas
- e l e podería mesclar-se â população, m as nunca fazer parte dela. Com Nadja, B id o n vaga
de um lugar a ou tro, principalm ente dentro da p róp ria Paris, e se refere a ruas p articu la­
res, bairros e m arcos da cidade. O fotógrafo surrealista Jacques-A ndré Boiffard foi c o n ­
tratad o para fo to g ra fa r a lg u n s d e sse s lu g a res, e su a s fotos d e lib e ra d a m e n te n ã o
m em oráveis, discretas, são espalhadas pelo texto (164, 165|. Nadja de quem Breton diz:
"m esm o qu and o estou perto dela, estou ainda m a is próxim o das coisas que estão perto
d ela" (p. 104) torna-se um sím bolo dessas trocas de lugares e de coisas. P ara Breton, a
intim idade é sem p re m ediada pelo d eslocam en to dos objetos de desejo - sejam ele s as
luvas d e N adja, su as roupas ou a própria cidade - , nos qu ais ele centra sua atenção (166).
A ausência de objetivo d o flâtieu r é usada com o um recurso estra tég ia ) por Breton. H
parte do qu e o s su rrealistas celebravam com o um aban d on o necessário do con trole
184 SURREALISMO, MITO t l-SICAN ALISE

165. Jacques-A ndré Boiffard, L i Ubrairie de


L 'l lu m anité (A livraria do L'H um anité), foto
164. Jacques-A ndré Boiffard, Boulevard em A Breton. Nadja, Paris> Éditions
Mageiita deinint le Sphinx-Hõtel (Iknilevard Gallim ard, 1928. Ó OACS, Londres, 1993.
Magettta, emfrente do Hotel h.tfingc), foto em
A. Breton, Nadja, Paris, íd itio n s G allim ard,
1928. 0 i >acs, Londres, 1993.

166. Anônim o, Gant defmwie au$<u... (Uma


luva de mulher também), foto em A . Breton,
Nadja, Paris, Kditions Gallim ard, 1928.

consciente c uma subm issão a o que pudesse acontecer, a o risco. Essa era uma fantasia de
subm issão a Paris, à cidade, a uma m ulher em particular, N adja, e à m ulher em geral.
N adja é uma m ulher particular e é tam bém a m usa de Breton, mas ela foge de um a defi­
nição. Q uando Breton a encontra pela prim eira vez, ela está vestida pobrem ente; em
outra vez que eles se encontram , ela está im pecável. Ela tem encontros d ú bios com
ou tros homens, mas seu statu s é deliberadam ente am bíguo. Ela e Paris são sepauradas e
vinculadas ao m esm o tempo. Breton diz de Nadja (com o diria um flâiieu r referindo-se a
Paris): "Parece-m e que a observo em dem asia, mas com o pode ria ser o contrário?" (p.
104). O desejo, que é o principal tema do livro, está vinculado ao olhar, à observação.
Envolve tam bém a subm issão - ao perigo ou às possibilidades infinitas.
A iVAD/A ü ! HKFTON 185

O desejo é necessariam ente fugidio e distraído. O objeto a ser alcançado torna-se, para
Breton, quase secundário em relação à própria busca: "Bu sca do quê eu não sei, m as busca
no sentido de envolver cada artifício da sedução m ental" (pp. 127-8). Isso, obviamente, cor­
responde aos cam inhos percorridos em torno da cidade, a busca não de uma esscrice, mas
de diversão. A busca poderia trazer ao jogo "cad a artifício" e, melhor ainda, podería pro­
porcionar a fuga de uma situação com um para um "m aravilhoso estado de em briague/",
os momentos bugazes que ele experimenta com N adja. Esses momentos são extraordinários
e, ainda assim , envoltos em banalidade, tanto n as partes dem asiadam ente familiares da
cidade por onde passam com o nos relatos de N adja sobre seus antigos amantes.
Breton relata tudo isso num a narrativa fragm entada, próxim a de um a colagem , c
inclui trechos d e seu próprio diário, falas diretas de Nadja, opiniões sobre se u s colegas
surrealistas e com entários sobre lugares dos circuitos ao redor de Paris. É um relato da
experiência d o encontro com Nadja e com a própria cidade. " É possível", escreve Breton,
"q u e a vida necessite ser decifrada com o um crip togram a" (p. 133), e é isso q u e o seu
texto faz. P ara o leitor, os acontecim entos sã o colocad os com o que arbitrariam ente,
num a situ ação de encontro. Falar em "acon tecim en tos" é superinvestir de sign ificad o o
q u e ocorre - que, na verdade, é m uito pouco. A lém disso, há pouca ou qu ase nenhum a
explicação sobre o que ocorre, exceto fisicamente, e o leitor é abandonado â "fú ria d o sim ­
bolism o, um a prece ao dem ônio da analog ia" (p. 128), assim com o Breton em relação às
experiências q u e está vivendo. Portanto, num m odo curioso, o leitor é tam bém situado
com o uma esp écie dcflân eu r.
O m odo p e lo qual o leitor "en co n tra" as fotografias de Boiffard é um exem plo inte­
ressante disso. Elas correspondem aos lugares que Breton cita em seu texto; sã o aparen­
tem ente fotografias nâo-descritivas d e lugares, não atraindo a atenção com o fotografias
propriam ente ditas. L)c certo m odo elas são, com o observou Benjamin sobre a escrita sur­
realista, "dem onstrações, senhas, docum entos, blefes, falsificações, se você qu iser" ("Sur-
realism: the !,ast Snapshol of the Huropean Intelligentsia", p. 227). Benjamin tam bém res­
salta que a fotografia intervém de um m odo estran h o em N adja: utilizando a convenção
das citações e <» núm ero das páginas com o legend as sob as fotografias, "fa z q u e as ruas,
portões e praças da cidade se tornem ilustrações de um rom ance barato" (p. 231). Isto faz
delas tipos de "b lefes". A s fotos tam bém são difíceis de conciliar com o aparen te propó­
sito de Breton de usá-las com o substitutas aos textos descritivos - já que ele con sid era­
va esse tipo d e texto inadequado à tentativa su rrcalista de su bverter a n arrativa realista
í* as técnicas descritivas. As fotografias, num certo nível, ilustram o texto, já que são de
lugares onde Breton se encontra com o a livraria dirigida pelo jornal com u nista L'Hu-
manitv [165], p o r onde ele inicia e de onde se desvia im ediatam ente, "partindo, sem obje­
tivo, na direção do Ó pera" (p. 71). O letreiro sobre a livraria do UHumanitc, "o n sign e ici"
("assin e aqu i" ), aponta para um a entrada som bria, indefinida; contudo, Breton muda
com pletam ente de direção. Apesar da sua banalidade, as fotografias criam uma atmosfera
peculiar. Elas com partilham certos traços, partieu larm en te a ausência d e p essoas, e
atuam com o registros de onde Breton ou Breton e Nadja estiveram .
Além das fotografias, Nadja é ilustrado co m os próprios desenhos da protagonista
[167,168]. Estes intervém d c uma forma igualm ente estranha no texto. Já m e referi a como
Breton usa m uitas das falas diretas de Nadja: o leitor depara com as palavras "rea is" ditas
por ela, a N adja "re a l". É d a , por fim , que não só estim ula as ações, m as q u e d á voz aos
desejos (d e Breton). Ela descreve Breton com o o sol, o que sem dúvida alim enta algum
prazer narcisista, e o reconhece com o seu mestre. Ao contrário das fotografias de Boiffard,
os desenhos d e N adja são descritos por Breton. Em um deles, caracterizado co m o "u m
retrato sim bólico dela e de m im ", N adja é vista com o um a sereia, e Breton com o um
m onstro com cabeça de águia [ I67|. No outro desenho, as palavras L'At tente ("a esp era"),
L'Eni>ie ("o d esejo "), l/Amour (" o a m o r"), l/A rgent ("o d in h eiro ") são acrescen tad as
1168|. Para Breton, esses eram desenhos "au to m á tico s" que revelavam o funcionam en­
to do inconsciente fem inino. No final do livro, N adja vai para um hospício. A "m u lh e r"
estava ligada à loucura, à histeria, e portanto a o prim itivo, com o m ais próxim a do irra-
186 SURRKAIJSMO, MITO F PSICANÁLISE

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Ün portmit tymtolique d '*lk ei dr uml (p. 140).

167. L/f/ porfraif sytnboliquc d'clle e\ de moi (Um retraio


simbólico dchi e dc mim), desenho em A. Breton, Nadja,
Paris, ÉdiHons G allim ard, 1928.

4[ O- i| KU^> WtMHilw
»S» a r p n tt m 4c* X ff> .

168. A rexcfption du masque rectangulaire do/il cllc ne


peut rim dire (Com exceção da máscara retangular, sobre
a qual ela não pode dizer nada), desenho em A. Breton,
Nadja, Paris, Éditions G allim ard, 1928.

cional c com o o constante “ou tro". Essa era um a condição qu e os surrealistas n ão som en­
te toleravam , m as à qual aspiravam e celebravam - com o o lado "fem in in o " da perso­
nalidade qu e havia sido reprim ido. A fantasia, portanto, não era som en te sobre a fem i­
nilidade, m as tam bém sobre os desejos d os hom ens e a m asculinidade.
A representação de Nadja é a chave estrutural da fantasia de Breton. A N adja do texto
de Breton não é um a m ulher real, m as um a representação, ap esar d as sem elhanças ç
m esm o das p alav ras qu e parecem transcrições d as f.ilas d e algu m a m u lh er qu e ele
conhecera. Ela é o objeto de seus desejos, m as ao m esm o tem po articula o s m ecanism os
da sua fantasia. Ela atend e às suas necessidad es, com o diz um a de su as frases, relem ­
brada por Breton m ais adiante no livro: “Se você quiser, posso ser nada para você, ou ape­
nas um vestígio" (p. 137). A fantasia requer qu e N adja seja um “espírito liv re", a musa
qu e estim u la o poeta. Ela tem um a m obilidad e que a faz parecer qu ase um flâ n eu r, livre
para vagar pelas ruas d c Paris, on d e ela st* sen te em casa. C ontudo, o flân eu r baudelai-
riano era um tipo m asculino: um a m u lher burguesa não podería vagar pelas ru as de
Paris, em vista d as restrições sobre sua cla sse e sexo. Por volta d os an os 20, a m ulher
possuía m aior m obilidade, particularm ente o tipo de m u lher gtirçonne, que se tom ara
m oda na época. E, certam ente, as restrições sobre as m ulheres burguesas nunca foram
im postas às m ulheres das classes trabalhadoras da m esm a m aneira, e um a m ulher com o
N adja não era burguesa. N o entanto, o flâneur precisava ter o controle do olhar, já qu e o
"o lh a r", com o Benjam in havia reconhecido, era um a de suas ativid ad es características.
A NADJA DE BRETON 187

Isso significava estar de p osse do olhar, em vez de ser seu objeto. E, no entanto, Nadja
anda pelas m as de Paris apreciando os olhares dos outros homens: "F ia responde a esses
tipos de galanteios com prazer e gratidão. Eles jam ais são escassos, e ela parece valorizá-
los m u ito" (p. 115). Um a parte adicional na fantasia de Breton é que essa receptividade
confere a ela poder sobre os hom ens. Breton escolheu uma m ulher marginalizada, em po­
brecida, mas que ainda podia adotar a aparência de uma burguesa, que se encontrava no
limite da respeitabilidade. Era um a m ulher que fantasiava ser uma boulangère (alguém
que trabalha numa padaria) e que adotava suas próprias m áscaras de fem inilidade.
Para Baudelairc, a prostituta seria o equivalente fem inino m ais próxim o do flâneur, e a
construção de Nadja por Breton com o uma figura am bígua (no sentido de com o ela usa­
ria sua sexualidade) parece aproxim ar-se de Baudelaire de um m odo quase anacrônico.
Breton reescreve o m odelo de prostituta do século xix num contexto moderno. Nova­
mente, ele busca o "u ltrap assad o". Ainda que aparentem ente o flâneur estivesse negan­
do o papel ativo m asculino no seu desejo de entregar-se ao que pudesse acontecer, isso
é bem distinto da experiência d a mulher. Não há dúvida de que se deve antes ter o con ­
trole, para que, em se tratando d o flâneur, st* possa perm itir ficar livre dele.
Devemos lembrar aqui, com o escreveu Benjamin, que esse era "o olhar do homem alie­
nado" e portanto não realmente livre (Charles Baudelairc, p. 170). O controle, tanto social
com o psíquico, era visto pelos surrealistas com o uma forma de opressão - já que em sua
visão os sintom as neuróticos de uma sociedade doentia podiam ser encontrados na cha­
mada normalidade. Por outro lado, eles viram na loucura a possibilidade de libertação.
Quando Breton imagina como seria para Nadja o hospício, ele questiona se fari.i muita dife­
rença para ela o fato de estar dentro ou fora tia instituição. Evidentemente, essa é uma linha
de pensamento mais fácil de ser seguida por quem não está, ele próprio, trancafiado, e Bre­
ton adm ite que certa m ente haveria uma diferença quando a chave girasse na porta. Com o
Benjamin escreveu sobre o flâneur de Baudelaire, "a multidão não é som ente o mais recen­
te asilo de marginais, tí também o últim o narcótico para esses abandonados" (p. 55). Essa
idéia, da vida moderna com o um tipo de hospício, remete ao ceticism o fundamental dos
surrealistas sobre o tipo de liberdade possível nas condições então presentes.
Baudelaire, B e n ja m in , Breton
A visão de Benjamin sobre Baudelaire era sem dúvida influenciada pelo seu interesse no
Surrealism o. Sua análise ecoa a releitura dos modelos de Baudelaire pelos surrealistas.
Tendo isso em mente, gostaria de dizer algo mais sobre a construção baudelairiana do flâ-
ncur com o foi interpretada por Benjam in. Para Baudelaire, o flâneur era o herói m oder­
no, um tipo inquestionavelm ente m asculino, vestido em cinza e preto, com polainas e
gravata. O flâneur era necessariam ente um papel vivido por um hom em ocioso, livre para
vagar e debruçar seu olhar sobre a cidade (p. 170). À medida que se desenvolvia, a cida­
de moderna utilizava-se da flânerre para vender produtos nas lojas de departamentos. Fm
seu estudo sobre Baudelaire, Benjam in se concentra nas lojas de departam entos e gale­
rias, pois é nesses locais que se encontra a m ais clara relação entre o flâneur e o fetichismo
da mercadoria: é aqui que "a intoxicação à qual o flâneur se rende é a intoxicação dos bens
em torno dos quais afluem as v ag as de consum idores" (p. 55). O poeta não estava imune
a essas relações. A verdadeira situação do homem de letras, escreveu, era que "ele vai ao
mercado com o um flâneur, supostam ente para olhar, mas na realidade para encontrar um
com prador" (p. 34). D e fato, Baudelaire chegou a ver o poeta com o prostituído, no sen­
tido de que ele "recebia dinheiro pela sua confissão" (p. 34). Além disso, ele era um "boê­
m io", em constante estado de revolta contra a sociedade burguesa.
Para Baudelaire, a cidade era o lugar do erótico. Um dos principais poem as discuti­
dos por Benjamin foi /I une passante ("A uma passante"), de Baudelaire. É sobre o desejo
de uma mulher, uma viúva vestida de preto passando na multidão. A imagem da mulher
é passageira, ela se perde assim que aparece. C om o em Nadja, a m ultidão não figura
explicitam ente no p(x*ma, m as está ali presente de modo implícito. Benjamin enfatiza que
a m ultidão não ofusca o desejo, m as é um a condição dele:
188 SURREAl ISMO. MITO L PSICANÁLISE

L onge de evitar o erótico na m ultidão, a aparição que o fascina é trazida a te ele por essa mesma
m ultidão. O deleite do indivíduo u rb an o não é tanto o am or ã p rim eira vista, m as o am or ao
ú ltim o olhar. O nunca m arca o p o n to alto d o encontro. (Btnjjm m , Charles Baudelaire, p. 45)
N o texto d e Breton, a perda de N adja é talvez um a parte n ecessária da fantasia, e a ante­
cipação d essa perda, um aspecto do seu desejo.
Tal encontro casual ocorre na m ultidão, onde o objeto de d esejo é escolhido entre uma
infinid ade de outros. O objeto de d esejo é “en con trad o por acu so" em Baudelaire, do
m esm o m od o qu e em Breton m ais tard e. Já m encionei qu e p en so qu e o leitor d e Nadja é
colocado na m esm a posição, confrontado com fragm entos, vistas parciais, vislum bres do
passado, becos sem saída d o p resen te. D e m odo sim ilar, B cn jam in com parou os escritos
de B au d elaire a um m apa da cid ad e, "n a qual é possível se locom over anonim am ente,
p ro teg id o por b lo co s de casas, p o rtõ es, ja rd in s". Ter d e se lo ca liz a r é um processo
desconcertante. Para Benjam im , era co m o peram bular pelas ruínas da burguesia. Ele cita
Balzac com o o prim eiro a falar sobre esse tema, m as acrescenta q u e "fo i o Surrealism o que
prim eiro perm itiu ao seu olh ar p ercorrê-lo livrem en te" (p. 176).
Benjam in discutiu oflâneur com o um a figura histórica que estava desaparecendo já na
última parte do século xix e cujo últim o posto eram as lojas de departam ento. Ainda assim,
foi esse o m otivo im plícito escolhid o por Breton para estru turar Nadja. Talvez isso esti­
vesse, e m parte, ligado ao obsoleto, mas suponho qu e havia tam bém ou rio propósito
estratégico, qual seja, o de contrapor-se às convicções predom inantes. Segundo Benjamin,
a extin ção doflân eu r estava ligada ao fato de que o lem a d e F. YV. Taylor, “abaixo a vadia­
gem ", estava na ordem do dia (p. 54). Q u and o N adja conta a Breton com o fantasiava sobre
o que as p essoas da segunda classe d o m etrô faziam para viver, e le a repreende por sua
preocu pação com o trabalho (Nadja, p . 78). Esse não era sim p lesm en te o caso de privile­
giar o ó cio em lu gar d o trabalho, m a s relacionava-se à posição d e Breton no âm bito de
um a cu ltu ra “m axim izad a" pela eficiên cia e a racionalidade no sen tid o taylorista.
A flânerie era um a resposta estratégica à cultura dom inante d a racionalização exem ­
plificada n o Gerenciamento cientifico de Taylor. C om o tal, fazia parte d o senso d e revolta sur­
realista, voltand o-se contra a n oção d o m od erno com o racional, ord en ad o e eficiente. Ao
contrário, “a vertigem do m o d ern o" com o A ragon a redefine em O camponês de Paris
(p. 129) - encontrava-se nos cantos p erd id os da cidade, o passe, a q u eles lugares on d e "a
lenda da m odernidade tinha su as in toxicações" (p. 131). Essa e ra um a visão da m oder­
nidad e co m o um m ito, m as nem p o r isso m enos im portante. O s lugares que Aragon
descreve são exatam ente os m esm os q u e Benjam in identifica com o o s locais do fí<mewr, par­
ticularm ente as galerias de lojas - m ais um a vez revelando com o a sua visão do século xix
era m ediada por sua leitura surrealista. A ragon descreveu um a galeria específica que esta­
va para ser dem olida. A disposição d o s objetos n as vitrines despertava, para Aragon, deva­
neios q u e eram apenas sem iconscientes. Ela desencadeava respostas inteiram ente dife­
rentes, digam os, d a celebração d as vitrin es por Léger com o exem p los d e um “cham ado
à o rd em " racional e m oderno [140]. E n quanto Léger viu os efeito s repetitivos da disp o­
sição d os objetos na vitrine exem plificando um gosto peculiarm ente m oderno pela ordem
lógica e form al, A ragon encontrou ali um a experiência quase alucinatória.
Q u an d o Benjam in cita a palavra de ordem de Taylor "a b a ix o a v ad iag em ", ele nos
indica co m o fonte um texto do so ció lo g o G eorges Friedm ann. X a décad a de 30, Fried-
m ann d iscu tiu as m u danças na p rod u ção industrial q u e se seguiram à Prim eira G uerra
M undial e a organização de n ovas fábricas,

b asead as em prin cípios m uito p róxim o s d aqu eles de Taylor e Ford, qu e se adequ aram à
exp an são d e um tipo de religião da prod ução organizada “rien tificam en te", envolvendo um
setor b astan te am plo da burguesia. (Fnedmonn, La Crisedu i>rvgns, p. 117)

Fried m ann enfatizou a enorm e in flu ên cia qu e as teorias de Ford e a teoria do geren cia­
m ento cien tífico d e Taylor exerceram nos an os d o pós-guerra: " A obsessão de Taylor, de
seus colabo rad ores e sucessores è â guerre ò la flânerie (p. 76). Literalm ente significa
O'•ESTRANHO" 189

"g u e rra à flânerie", ao ócio, q u e Taylor via com o end êm ico n o sistem a qu e sua teoria
b u scav a corrigir. A tradução d e flânerie com o daiviUing [vadiagem ] na ed içã o inglesa do
ensaio d e Benjam in ê d e certa form a inapropriada ao contexto. O term o original de Tay­
lor era soldiering, que significa "fin gir que trabalh a", "estar ocioso" ou ainda "desperdiçar
tem p o " (Taylor, Scientific Management, p. 30).
Príncipes tTorganisation scientifique des usines, d e Taylor, foi p u b licad o na Fran ça em
1920 (o original, em inglês, intitu lav a-se The Principies o f Scientific Management, Harper,
1916). Taylor discute nesse livro as m edidas necessárias para contrapor la flânerie naturellc
et la flânerie systématique (o ó cio natural e o sistem ático). D e acordo com o sistem a de Tay­
lor, ao trabalh ad or in d iv id u al é dada um a tarefa, e essa tarefa, repetida infinitam ente,
con stitu i a função do trabalhador. Cada com p on en te ou tjr e fa era in dividu alizado, e
tod as essa s tarefas reunidas, coletivam ente, com p u n h am um processo d e trabalh o m ais
eficien te. Friedm ann en fatiza que a separação d os trabalhadores feita d essa m aneira era
um a con d ição necessária do sistem a de Taylor, n o sen tid o de d esenvolver a am bição pes­
soal e a com petição. O co n ceito de luta de classes n ã o tem utilid ade para Taylor, qu e na
v erd ad e v ia os sind icatos co m o inú teis para os trabalh ad ores porque restringiam o ren ­
d im en to ao im por "o ócio, esse flagelo do m undo industrial m o d ern o".5 A flânerie, por­
tanto, p od ería ser vista com o um a pedra no sapato de um a visão taylorizad a do m undo.
U m a fantasia m asculina de "m u lh e r", e com e la um a fantasia de m ascu lin id ad e, é
tam bém tratada no rom ance d e A ragon O camponês de Paris, de 1926. A p ós algum preâm ­
bulo, A ragon chega ao bord el. Porque sua atitude e m relação ao am or tem sido vista por
algu n s com o in teiram en te corrom p id a pela sua celeb ração da p rostitu ição, ele acha
n ecessário explicar:
N ão será equivocar-se qu an to à natureza d o am or acreditar que ele seja incom patível com essa
d egrad ação, essa negação absolu ta da aventura que é ainda uma ventura para o meu próprio
eu, o hom em se atirando a o mar, a renúncia de tod as as m áscaras: um processo qu e é uma
atração irresistível para o verd ad eiro am ante? (Aragon, Paris Peasant, p. 117)
Essa p arece ser a confissão d e um hom em qu e só con seg u e se ligar às m u lh eres enquan­
to m ercad orias qu e podem s e r com p rad as com o qu aisqu er outras. C on tu d o, a ilusão de
que ele pudesse despir-se de "to d a s as m áscaras" é apen as sintom ática d a escravid ão à
sua própria fantasia (e, por extensão, da escravização de todas as m ulheres a ela também).
O qu e Benjam in tem a dizer so b re essa qu estão da m áscara é b astan te p ertin en te e con ­
trário à visão de A ragon. A ssim é a descrição d c B a u dei a ire por Benjam in:

P elo fato de n ão ter nen hu m a convicção, ele assu m ia sem pre novas form as do si próprio. Flâ-
ncur, m alfeitor, dãndi e trapeiro eram portanto seu s m uitos papéis. Pois o h eró i m oderno não
é h erói, ele representa heróis. O m odernism o heróico acaba por se tom ar u m a tragédia na qual
o papel d o herói está disp onível. (Benjamin, Charles Iknuíeltnre, p. 97)

Essa idéia do rep resentar u m papel su gere q u e "m a scu lin id a d e " seja em si tam bém
um a q u estão de sim ulação, d e ad o tar um a série de disfarces. A N adja cio texto de Breton
talvez seja, nesses term os, um a p rojeção d e sua própria iden tid ad e v a cila n te, com a
qual e le falha repetidam ente em focalizar a m u lh er e, em vez disso, d esloca sua atenção
para os objetos em torno d ela.

O " estran ho "


"É p o q u e des m a n n eq u in s, é p o q u e des in té rie u re s"

Im ag en s de m anequ ins e d e ou tro s autôm atos p od em ser encon trad as esp alh ad as pelas
p á g in a s d e várias revistas su rrealistas. Na cap a d o quarto nú m ero d e L i Kêvolution
Surrcaliste, a fotografia feita p o r M an Ray d e um m an eq u im de loja foi colocad a entre as
d u as p alav ras do slogan "et guerre au travai!" (" e g u erra ao trabalh o"), e o m anequim age

' Essa foi uma observação feita por Taylor sobre os W A, em Snentific Management, p. 81.
190 SURRFAI.1SMO, MITO F. PSICANÁLISE

N<* \ — P rc m ie rs a m icc 15 .lu illc t 1925

LA RÉV0LUTI0N
SURRÉALISTE

f --------------------------------------------------------------
SOMMAIKL
Pourquoi Jc prendí Ia dircction de Ia It. S. ! CHROMQUKS :
Apa1*c Br«fun Fra^mcnt* d'unc conterence : Leu.. A'.gc--.
POÊMES l-e «urrvnlismc et Ia peinture : Br<ie»
Lou.» Ar»go», Paul Eluard.
RÊVES : Note *ur In liberte : Leu» An*...,
Mm Mor»x. MiihíJ Lcirift. t-xpoíit.on Chirico : M». Moriic.
TEXTES SU RRÊA U STES: 1’ltiloiephiex. L‘étoile nu Iront P»«l Itlu.rd.
Phd.p(«t Soup»«1i. M.rcel Nell. Grorg». Millmi,
Correspondo oce
U» p«fO«lte* toyntrnl ; IWn|imii< P»r,i.
I.n bate de In la«m : Rcd»<»t D«mo*. IU USTRAT.ONS
Glosjatre (n*-r,) Mk IkI Uiin, Cxtr^io d< Ouriço, Mm Rnni, An4i«
Ncmenclaturc : Jk ^uo- And.» IU.ff.iJ, Jeon Mito, Ptbln Piri.u., M.n R*y. Pirir* Rey. <«.

ABONNe.MtNT. Dcposilairc tOncr.il : l.ibrairic GAl.LIM ARD LP- n u m «:ro


l«t (I Nw"T*IO>
hntnce : 45 Iranc» >*. Bcti le v a rá R u p a ll, >5 I rniKc : * frno<»
Etranger: XSIranca P A R IS (V II ) fi(m n(cr : } (ranct

169. C apa de Lm Rcvolution Suréalistc, n- 4 ,1 9 2 5 , com foto d e um m anequim executad a


por M an Ray. R eim presso p or A rno Press. <C>ada GI», Paris o t>A< s, I.ondres, 1993.

co m o um a fig u ra d e d esejos e so n h o s [169]. A g ra v u ra 170 era u m a d as q u atro fo to ­


grafias execu tad as pelo fotógrafo veteran o Eu gèn e A tget e rep rodu zidas e m Im R évolu-
tion S u rréaliste em 1926. Atget fotografou in ú m eras vitrines, tais co m o essa da loja d c
esp artilhos no Boulevard de Strasbou rg, tirada em 1912. A foto n ão era creditada ao seu
a u to r (a p ed id o d o próprio A tget, que, ap aren tem en te, n ão qu eria se r asso cia d o ao
gru p o su rrealista) e foi colocada na seção d e "so n h o s" da revista. Pode-se ded u zir en tão
q u e a fotografia d e A tget £tua com o um fragm en to d e um a n arrativa d e sonho, cen-
O "ESTRANHO" 191

170. E u g èn c Atgct, Boulevard de


Strasbourg, cspcrtilhos, 1912, im pressão
em album in a c e prata,
24 x 18 cm . A cervo, T he M use um o f
M od em Art, Nova York. Im pressão
feita por C hicago A lbum en Works,
1984.

lrando-se na repetição com p u lsiva da seqüéncia d e m an equ in s na vitrine. Foi o efeito de


estran h am ento d e tais im ag en s q u e in teressou os su rrealistas, esp ecialm en te nas esq u i­
nas fora d e m oda e p erd id as d a cid ad e q u e tanto atraíram Breton, com o vim os em
N adja. K, em O cam pon ês de Paris, A ragon se refere à "g eo g ra fia d o p ra z e r" n a cidade,
o n d e ele é irresistivelm ente lev ad o aos "sim u lacros em exibição n a v itrin e", com o ele
m esm o afirm a. O m anequ im era asso ciad o ao au tôm ato, a qu em um artig o inteiro foi
d ed icad o na M inotaure [171 j, com fotog rafias extraíd as d e um a história dos autôm atos
e Geri to por A lfrcd C hapu is c Édouard C élis c m 1928. A idéia de q u e a figura fem inina em
p articu lar podia ser ev ocad a desse m odo, com o um a m era ilusão do real, um sim ulacro,
p ara ser infinitam ente repetida em torno d as ruas d e Paris, era a m ais recen te expressão
da idéia da m u lher com o objeto c tam bém desencadeava o s m ais estran h o s efeitos.
N o prim eiro m anifesto, Breton escreveu que " o m aravilh oso não é o m esm o em
cad a ép oca da história: ele p articip a, d e algum m od o, d e um a esp écie d e revelação
geral, da qu al ap enas frag m entos chegam até nós: são a s ruínas rom ânticas, o manequim
m o d ern o ", sím bolos qu e p rovocam um sorriso m as q u e tam bém retratam "a incurável
in q u ietação hu m ana" ("M a n ife sto o f S u rrealism ", p. 16). E m seu en saio "Su rrealism o e
p in tu ra", de 1925, ele se refere novam ente ao m anequim cm sua d iscu ssão sob reG iorg io
d e C hirico [172]. Ele cham ou a atenção para o efeito m isterioso, entre outros, das carac­
terísticas da époqu edes m annequins, epoque des inlérieures com o "a era dos m anequins, a cra
d os in terio re s' ( i a R éw lu tion Su rrcaliste, n ° 7, p. 3). Foi p rin cip alm en te sob a influência
de d e C hirico, e â luz da ad m iração d e Breton por seu trabalh o, q u e esses elem en to s -
o m an eq u im , o interior, a ru a - p assaram a ocu p ar essa p o sição d estacad a d en tro do
19 2 SURREALISMO. MITO E PSICANÁLISE

171. Fotos cm B. IVret, "Au paradisdcs fantómes", Miuotcure, n° 3/4, p. 33, 1933. R cim presso por Amo Press,
com a permissão de I ditions d'Ari Albert Skir.i.
O "ESTRANHO" 193

172. G iorg io do C hirico, UÉnigme de Ia


falalité (O enigma da fatalidade), 1914,
óleo sobre tela, 138 x 96 cm . Em anuel
H oíím ann -Foun d ation, K unstm useum .
Basel. © d a c s , Londres, 1993.

Surrealism o. E, m ais especificam ente, foi a ju n ção desses elem entos díspares efetuada por
d e C h irico em d iv ersas pinturas q u e dissem inou esse efeito m isterioso.
A id éia d e estranham ento, ou dépaysemcnt, co m o foi ch am ad a por Breton, con stituiu
u m a fu nção crucial d o Surrealism o. P elo m en os em p arte, ela estava associad a à inde-
term inação d e im agens, tanto n o tipo d e n arrativa on írica q u e Breton viu n o trabalh o de
d e C h irico co m o por m eio das técn icas au to m atistas u sadas por ou tros, com o M asson e
M iró. Em V isão provocada pelo aspecto noturno da Porte Saint-Denis, d e 1927 [173J, Em st usa
a com binação d e am bos. A Porte Saint-D enis, dedicada ao santo padroeiro de Paris e que
certa v ez d em arcara o s lim ites d a cidade, era um d os lu gares p or o n d e passaria Breton
em Sadja, em q u e o m onum ento, "m u ito b on ito e m u ito in ú til" (174), serviría com o um
pretexto para um a sequ ência tangenrial d e pensam entos a lem brança d e um film e ridí­
culo, O abraço do polzw, a q u e Breton assistira um a vez em um cin em a local.
Assim com o Breton, E m st tratava o m onum ento com o um ponto d e refração. A Porte
S a in t-D e n is é rep resen tad a por E rn st co m o o local d e u m a v isã o q u e, u sa n d o tan to a
frotlage com o a grattage (descritas no cap ítu lo 1), perm ite q u e a s im pressões na textura da
m adeira venham à su p erfície com o o prod uto d e um sonho. E ssas técn icas foram con ce­
bid as para burlar as m ediações d o consciente, d esencadeando devaneios inconscientes.
S em querer levar a s com parações m u ito além , d ev em os lem brar qu e o s lerm os franceses
automafique e automatisme, no uso corrente, referem -se a m ovim en tos m ecânicos, com o o
dos autôm atos. A inda qu e o termo automatisme seja usual e corretam ente considerado ori-
194 SURREALISMO, MITO E PSICANÁLISE

173. M ax F.rnst,Vision prwoquá' par 1'aspect noctunte de to Porte Saint-Denis (Visão provocada pelo aspecto noturno
do Porte Saini Denis), 1927, ó leo sobre tela, 65 x 81 cm. C o leção privada. Reproduzido por cortesia da $othcby's.
© aiía CP/spadkm, Paris c oacs , Londres, 1993.

ginário das técnicas d c escrita "au tom ática" usadas nas práticas terapêuticas, suas.alusões
m ais com uns ao "m ecânico" acrescentam -lhe um a dose a m ais de ironia, e sim bolicam ente
su bstitu em a m áquina racional por um a boneca m ecânica.
Pelo inacabam ento das im agens [ 173|, Ernst sugere qu e a cidade é tam bém um lugar
q u e abriga o m edo. Em A horda, prod uzid a no m esm o ano [46], essa sen sação de terror
c ainda m ais aparente. A tinta é rasp ad a de um a tela preparada previam ente sobre um a
superfície texturizada, criando figuras m onstruosas que frequentam o m u n d o dos sonhos
ou , m ais precisam ente, o incon scien te. O efeito se torna m ais in esp erad o um a vez que o
azu l intenso do "fu n d o " não está p o r trás, m as foi claram en te acrescen tad o depois. As
fig u ras parecem velh os espíritos q u e se escond em atrás da fachada d a vida social con ­
tem p orânea, insurgindo-se na pin tu ra com o um a rebelião da m en te - com conotações,
críticas no âm bito do pensam ento surrealista, de revolução social. D u ran te os anos 30,
Ernst produziu um a série de p in tu ras cham ada A cid ad e inteira, da qu al a ilu stração 175
é um exem plo, novam ente caracterizan d o a cidade com o um tipo d e labirinto, com
estrato s e subestratos, em lugar da co n cep ção ideal d e cidade m od ern a defendida por
con tem p orân eos com o L e C orbusier. M ais do q u e um ideal d e u n id ad e c ordem , a cid a­
d e é representada com o um local prim evo, d om inado por luxuriantes m as am eaçadoras
form as de vegetação. É um a visão desoladora da cidade em ruínas, assom brada pelo pas-
O "KSTRANHO" 195

174. Jarques-André Boiffard, Non: pn> momo la tròs belle d tri>


imitilo Porte Saint-Dcnis (Não: vem mesmo n tão bola o tão imitiI
Porto Saint-Donis), © dacs, Londres, 1993. Fotoem A. Brcton,
Nadja, Paris, Éditions Gallimard, 1928 © i)A< s Londa^s, 1993.

173. Mox Ernst, ia Villo otliòrc (A cidade inteira), 1935-36, óleo sobre tela, 60 x 81 em. Kumthaus, Zurique.
© aoacp /spadkh Paris o dacs, Londres, 1993.
196 SURREALISMO, MITO E PSICANÁLISE

sad o o tipo de ruína m etafórica à qu al tam bém se referia Breton em sua crítica da cu l­
tura burguesa contem porânea.
A sensação d o passado assom brand o o presente foi tam bém relacionada p o r FJrnst às
m em órias d e infância. Ele até m esm o rastreou a origem de su as descobertas dos m étodos
autom atistas, com o a frotinge, nos m om entos iniciais de sua vida. Em La R évolution Surréa-
liste, em 1927, publicou três "V isions de dem i-som m eil" ("V isões d e d ev an eio s"). A pri­
meira, que trata de um a "v isã o " que e le experienciou qu an d o m enino, é m anifestada em
um painel de m adeira texturizada: "V ejo diante de m im ", e le escreveu, "u m painel pintado
grosseiram ente com largas p incelad as pretas sobre um fu n d o verm elho, im itando a tex­
tura do m ogno e desencadeando associações de form as orgânicas (um olho ameaçador, um
nariz longo, um a enorm e cabeça de pássaro com cabelos pretos e grossos etc.)". A visão se
transform a em um a terrível im agem d o pai do artista, segu ran d o um lápis qu e se trans­
form a em b engala e por fim em um chicote. O devaneio é expresso em term os d o repertó­
rio freudiano de im agens sexuais, num a narrativa em que as antigas fantasias d o artista
e os medos da punição de seu pai tom am -se públicos. Em casa, na cama, a criança acha que
o fam iliar - o painel d e m adeira de im itação - tom a as form as estranhas e assu stad oras
daquela fantasia. A o usar técnicas au tom atistas cm suas p in tu ras da cidade, E m sl im pri­
miu um aspecto social àquelas fan tasias e, ao m esm o tem po, representou a cid ad e com o
um local de fan tasias infantis. A cid ad e é um a extensão d o lar, um a vez que nela também
se d esen v olvem relações sim bólicas e psíquicas. E, co m o vim os, particularm en te em
N adja, a cid ad e c tratada no Su rrealism o com o a m orada d o inconsciente m oderno.

A v is ã o f r e u d ia n a d o " e s t r a n h o "
O s dois aspectos - o do m anequim e o pavor cm um a m em ória reprim ida - aparecem jun­
tos na noção de "estranho" em Freu d " Essa noção, ao contrário de outros conceitos em tex­
tos clássicos de Freud tal com o A inta-pretação dos son hos, não influenciou E m st. Vou,
porém , d iscu ti-la aqui porque acredito que ela traga algu m a luz sobre o conjunto de preo-
cupações no Surrealism o. O term o d e Freud unlieitnUch, traduzido para o inglês com o
u n am n y ["estran h o "!, é o oposto d e heim lich ("d om éstico" ou "fam iliar" e, portanto, "não-
estranho"). Ele cita a definição de F. W . J. von Schelling de unheim lich: "o nom e de tudo que
deveria p e rm a n e ce r... secreto e escondido, m as que veio à to n a" (Freud, "T h e 'U n can n y "',
p. 345). O qu e interessa a Freud é esse sentido de estranho com binado com o de familiar:
é um term o am bíguo, já que im plica também o seu oposto. Ele discute o m od o com o o
estranho é lem brad o em O hom em de areia, um a h istória d e H. T. A. 1 loffm ann e m que se
encontra a O lym pia original, a b on eca que aparece no prim eiro ato da ópera d e Jacques
Offenbach C ontas de Hoffmann. O lym pia é apenas um a boneca, um autôm ato, m as com a
aparência de um a m ulher real, de tal forma que o herói se apaixona por ela. M as, para
Freud, Olym pia nâo é a principal responsável pelo efeito de estranham ento na história, mas
sim a figura d o " Hom em de A reia", a im agem d o pai que pune as crianças arrancando seus
olhos. Com o um contraponto agrad ável na história, a ou tra figura paterna, C oppola, que
criou o autôm ato Olympia, é também um oculista, alguém qu e faz óculos. Isso atraiu Freud,
que viu o m edo d e perder a visão co m o um m edo sim bólico da castração. O lym pia talvez
pareça ser a origem do efeito do estranho, m as por fim é apen as um tipo de álibi. O tem or
real está no m edo do pai e da vingança do pai sobre o filho, com a castração.
Foi d ep ois d e assistir aos C ontos cie H offhiann qu e H a n s Bellm er com eçou a produzir
a sua série de b o n ecas desm em brad as [176] que foram subsequ en tem en te interpretadas,
em term os freu d ian os, com o rep resentand o a angústia p o r tem or à castração (K rauss,
L A m p u rfitu , p. B6). C ertam ente, o tem a sobre o olh o é recorrente no im ag in ário su rrea­
lista, notad am ente na seqüência de abertu ra de O cão anda luz, film e d c Bunuel e Dali em
qu e um olho é co rtad o [177]. O m a is in teressan te a q u i, su p on h o, n ão são tan to as
conexões d iretas a serem feitas, já q u e a idéia principal é qu e o estranho con siste cm algo

“A idéia de estranhamento em f reud foi discutida por R. Krauss cm seu importante trabalho sobre a fotogra­
fia surrealista, "Corpus Delicti", p. S5.
O "ESTRANHO" 197

176. H ans Bcllm or, Poupée


(Boneca), 1935, fotografia.
Coleção privada.
© ADAGP, P a ris e im c s , Londres,
1993.

secreta m ente familiar. Trata-se d e algu m a coisa que foi reprim ida, já que, para Freud, o
prefixo "u n " em unheim íich era a ev id ên cia d e repressão. N essa estrutura, as partes
desm em bradas podem evocar o estranho, mas tam bém o pode um texto ou um a imagem
"d esm em b rad a", em qu e peças são ju stap ostas n u m m od o nào fam iliar. O m esm o pode
ocorrer - e aqui retom am os ao texto de Freud - com um "d u p lo ", com o um espelho, ou
um espirito guardião, ou um a im agem repetitiva.
C) estranho rem ete ao anim ism o e ã magia, co m o as form as m onstruosas d e Kmst em
A herdo, ou a floresta assombrada, ou a figura dc Loplop (o mítico espírito guardião do pró-

177. Fotogramas do filme 0 cão andaluz, de Luís Buítuel, 192K, rolei ri/ado por Salvador Dali. Fotos: cortesia do
National Film Archive. Rcprodu/ido com a permissão da Contemporary FUms.
198 SURREALISMO, MITOE PSICANÁLISE

178. Max Emst, L-? íoresla Embalsamala (A floresta embalsamada), 1933, óleo sobre tela,
163 x 254 cm. Coleção de Adelaide de Menil, Nova York. Foto: Paul Hes ler.
© ADAGP/SPadem , Paris e i.»a í s , Londres, 1993.

179. Max Ernst, A mulher 100 cabeças abre sua manga de


agosto, de l.a Femme 700 têles (A mulher 100 cabeças ),
Paris, Éditions du Carrefour, 1929. © adagp /spadkm,
Paris e dacs , Londres, 1993.
O "ESI RAXHO" 199

180. M ax Ernst, Aqui estão todas


juntas as minhas sete irmãs,
ViWndòfrequentemente em desejo*
líquidos e parecendo perfeitas folhas
adormecidas. I X- ia Femnte W0
tetos (A mulher 100 cabeças), Paris,
Éditions du C arrefour, 1929. ©
AI>A<•!’/SPADKM, Paris
e dacs, Lon d res, 1993.

prio Ernst), ou a s form as indefinidas em A floresta embalsamada 1178]. Aqui, a floresta st' tom a
uma metáfora, com o a cidade, d o inconsciente - onde a memória espreita, onde os segredos
são escondidos. M as há também um aspecto social d o estranho, da idéia de "não-dom ésti-
co". Na novda-colagpm d e Ernst, A mulher 100 cabeças, im agens de interiores burgueses reti­
radas d e g rav u ras do sécu lo XIX são reunidas com o ob jetiv o de inverter seus sen tid os
[ 179,180]. O interior, ou lar, torna-se estranho ou unheinüich e é o local onde as fantasias são
engendradas. A s gravuras recortadas de figuras fem ininas são os equivalentes bidim en­
sionais dos m anequins, que atuam com o álibis para o argum ento principal da história. Bau-
delaire definiu a cidade com o o lar d o hom em m oderno, que som ente se sente " c m casa"
nas ruas - aqui, novam ente, a cidade pode ser vista com o um local de drama psíquico (com o
vim os em N adja, de Breton). O sentido de estranho, nos term os de Freud, envolve o seu
oposto - o fam iliar reprim ido dentro dele. De m od o similar, o título da colagem de Ernst,
A m ulher 100 cabeças, possui dois sentidos, no trocadilho "1 0 0 " e "se m "; a m ulher de cem
cabeças (uma im agem do tipo da M edusa) torna-se um a m ulher sem cabeça (cuja cabeça foi
removida) - dois temas freudianos para a castração usados muito explicitam ente por Ernst.
N ão estou interessada aqui num a "psicobiografia" de Ernst, ou no efeito que sua tenra
infância teve sobre sua arte. M ais significativo, penso, c que o próprio Ernst, assim com o
outros surrealistas, trouxeram essas m em órias de infância a público - tais com o vim os em
"V isions d c dem i-som m eil". Ernst escreveu m ais tarde q u e ele era "u m jovem que b u sca­
va encontrar o s m itos de seu tem po" (Ernst, "A n Inform al Life o f M. F.. [as told by h im self
to a young friend ]", citado em M. G ee, Lnist, p. 9). Tom ar pública a sua história pessoal,
usando um repertório de sím bolos freudianos para tanto, significava sugerir um tipo de fan­
tasia coletiva ou estabelecer mitos que predominavam na vida social e psíquica de sua época.
Ernst tratou essas fantasias com o se fossem moeda corrente ou, com o foi sugerido por D aw n
Ades sobre Dali, "com o se [os psicanalistas] fossem um bem comum, do m esm o m odo qu e
a iconografia religiosa era um bem com um na Idade M éd ia" (Dali, p. 76).
200 SURREALISMO, MITOE PSICANÁLISE

Le fcu lugubre
Dali ju ntou -se ao m ovim ento surrealista em 1 9 2 9 . Pintou O jogo higttbre [ 1 SI j naquele
m esm o ano, que foi a peça principal d.‘ sua prim eira exposição na C am illeG oem an G al-
lety em novem bro. A tela As acomodações de desejos [154] foi tam bém m ostrada ali e com ­
prada por Brclon, que escreveu o prefácio do catálogo da exibição. Em O jogo lúgubre, Dali
usou a narrativa do sonho e ju stap ôs elem en tos incongruentes e form as m onstruosas;
em pregou tam bém diversos m otivos (tais com o o gafanhoto) com o objetos de um a fobia
obsessiva própria. Em contraste com seu trabalho p osterior - qu e coloca a narrativa on í­
rica em um espaço ilusionista, tridim ensional , D ali faz uso aqui d e uma "p a isa g e m "
mais fragm entada. O tratam ento desguarnecido d os d egrau s à direita, do ch ão e do
m onum ento lem bram as ruas e cidades desp ovoad as e vazias de de Chirico 1182]. E a
"fig u ra" central explod e em fragm entos, o corpo se d isten d e para cim a, term inando em
um a cabeça dilacerad a revelando pedras, conchas, cabeças e chapéus. Não há um a uni­
dade coerente na figura: apenas a som a d essas partes fragm entadas. Vias não é som en ­
te essa figura qu e está "d esm em b rad a"; além de algu ns elem en tos realm ente "co la d o s"
na tela, a pintura com o um todo em prega um a técnica sem elhante à colagem para agru ­
par fragm entos e partes. (N o capítulo 1, David Batchelor discu te esse tipo de efeito de
"co lag em ", com parand o-o com as técnicas au tom atistas de M asson e Em st.)
A ssim com o Ernst, Dali usou um repertório d e m otivos freudianos e concentrou-se
no im aginário sexual. A cim a d e tudo, é talvez o tem a da m astu rbação e a culpa decor­
rente que preocupa Dali, e isso é sugerido pela calça m anchada da figura m asculina em
prim eiro plano, o im ensa m ão da estátua, a m ão cobrind o os olhos d a estátua e o sim ­
bolism o sexu al do qual a pintura está repleta. Breton, em seu prefácio, escreveu qu e "a
arte de D ali, a m ais alu cin ató ria co n h ecid a até agora, co n stitu i um a am eaça real".
Ameaça, qual seja, à ordem estabelecida e à aparência das coisas, mas com uma força crí­
tica: "C o m a vinda de D ali, é quiçá a primeira vez que as jan elas da m ente se abrem com
am plidão, de form a a se ptxler sentir alanando em direção à selvagem arm adilha celes­
te" (Breton, "T h e First Dali Exhibition". prefácio ao catálogo em W7íat is Surrealista?, p. 45).
A concepção d e Breton do Surrealism o com o um a sondagem das profundezas do
que é escond id o c secreto - coincide-com essa idéia d e revelação. Ela pode estar relacio­
nada ao caráter de oculto c não-fam iliar t* revelador qu e observam os no estranho. D e fato,
ainda que lugubre seja frequentem ente traduzido com o "so m b rio " ou "lu g u b re", é uma
das p alav ras q u e F reu d en co n tro u com o o e q u iv a len te fran cês para unheimlich ou
"estran h o ". (Traduzido para o francês na década d c 30, esse en saio d c Freud foi intitu­
lado "L T nqu iétante étran g eté".7) N a descrição de Breton sobre o efeito do trabalho de
Dali com o une joie sonibre ("u m a som bria ou m elancólica alegria"), ou m esm o quando ele
fala do pod er da "alu cin ação v o lu n tá ria ", podem os reconhecer algo do m esm o espírito
de contrad ição que sem p re parece estar em jogo.
A pintura d e Dali foi surpreendida no fogo cruzad o entre A n d ré Breton e G eorges
Bataillc. F o r enq u anto tenho m e concentrado cm Breton com o a força principal no inte­
rior d o Surrealism o, m as agora gostaria d e introduzir a figura de Bataille. Embora jam ais
tivesse um envolvim ento estreito com o grupo de surrealistas, Bataille os conheceu em
1925. M ais tarde, ele se referiu à sua posição am bivalente d efin in d o-se com o "u m velho
inim igo in tern o" (d ta d o por A des, liada and Surrealista Revieioed, p. 229). Ele e Breton
estavam sem p re cm desacord o sobre as con cepções e abordagens, c suas diferenças
aguçaram -se em 1929 quando um grupo de renegados aliou -se a B ataillc C om o arqui­
vista da Bibliothèque N ationale, Bataule tinha diversos in te r e s s e s -d e m anuscritos anti­
gos à pintura m oderna, passando pela cultura popular, um a diversidade refletida na
revista Docuntents. (D iscuto a segu ir o en volvim en to de B ataille em Docunents.)
Sob a influência d e Breton, Dali negou perm issão a Bataillc para rcpiodu/.ir O jogo
lúgubre num en saio so b re p in tu ra em Docuntents. A in d a que* o sen tim en to de Dali

fiou grota a I Javid Lomas por ter-me apontado isso.


O "ESTRANHO' 201

181. Salvador Dali, Le Jeu íugubre (O jo%o lú%ubre), 1929, óleo e colagem sobre cartão,
44 x 30 cm. Coleção privada. Reproduzido por cortesia de Robtrt Deschames. © DEMART tro
aktk bv /dacs, Londres, 1993.
202 Sl FRRFAUSMO, Ml IX) li 1'SICANÁl.lSH

1S2. Giorgio do Chirico, Mistero e maiinconin di una stradn (Mistério e melancolia dc uma rua), 1913, óleo sobre tela,
S7 x 71 cm. Coleção privada. Fotografado por Luca Carra, cortesia de Index. © dacs, Londres, 1993.
O "ESTRANHO" 203

183. Gcorgou tt.itaille, Schcnta


psychanalytique des figuralions
R EõV» <Jj Jc"rt
tSfitUiUti-\-J.itcr.»
«M U I i i l í t
*j. conlradieloires du sujei duns “Lejeu
fiijrt» tia if ú r.
cjríírfre tariaque
Le lugubre" de Salixidor Dali (Esquema
yr>l»«l|VÍ!it d; psicanalitico das representações
<tuc«>l<re»»n nuf-
tjec U raclicxcie
v »2o.iSi!'rc de U cotitradiiórias em "O jogo htgubre", de
IlUlãjCil
Salvador Dali), Documents, nfl 7,1929.

D. F í»iíí:íío Ja
jtijrt iorteo(.Wí
J l t t . W tp lú U fU
a jxtitft émioci-
\ liliw tr%limmnl
— l'»rti;lilKa!Í£n

A. • !">*! C. r'ullW.»-0 «njrt


ooiumiihi*HfI"<rr»vt» í n i í i l l * <tX«|iy.lI.I ' j
mkisi, KniMukln _;« mit ,
liwi cri p)f ■.lliu.l- ÍKfwmòliciw <1 /
*í<iíii!títiín: í«t Vi &NNMDMi la. »toHwt i
rc/lit tu y rtk w t <!o *>« * l.« Í . . . Í r i m » y ,
lOIpk p fim i:i> * <1 »<vm

- "beleza c ap en as o grau de consciência de n ossas p e rv e rsõ e s"- corresponda ao t ipo de


interesse en co n trad o nos escritos d e B ataillc e q u e D ali fosse inegavelm ente in flu en cia­
do pelo rom ance erótico de B ataillc I/H istoire de 1'ccil ("H istó ria d o o lh o ", escrito so b o
pseudônim o d e l.ord A uch em 1928), Breton persuad iu-o a perm anecer com o grupo su r­
realista.
Bataille com eçou seu en saio sobre O jo g o higttbre afirm and o que " o desespero in te­
lectual n ão leva nem à apatia nem ao sonho, m as à v iolên cia". Para Bataille, Dali estav a
longe de abrir am p lam en te as janelas; ao con trário, Bataille viu " o abom inável esp elh o
de D a li". E, enq u anto "a s pinturas de Picasso são d e te stá v e is... as d e Dali têm um a feiu ­
ra m edonha"; violência, beslialidade, repugnância, horror, excrem ento - tud o isso rep re­
sentava o p on to nevrálgico, o inconsciente do "civilizado". Bataille viu em 0 jo g o Itígit-
bre aspectos e fig u ras diversos e contrad itórios, ob serv ad os esqu em aticam en le na ilu s­
tração 183. Id entificando a castração com o o tem a da pintura, Bataille inicia pela figura
central, cuja p arte su perior d o corpo foi arran cad a da inferior, sim bolizand o o m o m en ­
to de "em a scu la çà o " (A ); as form as fragm entadas, d isp ersas na parte su perior da tela,
representam d esejos, m ostrados no m ovim ento p ara cim a, ou a "a scen sã o " de "o b jeto s
d e d esejo " (u san d o o form ato d e um a assu n çã o religiosa ou ap oteo se), pela q u a l a
punição é buscada voluntariam ente (B); a figura do canto direito inferior, com calças m an ­
chadas, tenta escap ar da em ascu laçào ao adotar "u m a atitud e d egradante e rep ulsiva"
(C); finalm ento, na estátua à esquerda, a figura contem pla sua própria em ascu laçào
"co m seren id ad e" (D). Bataille, d etend o-se na fragm entação d os m em bros, identifica a
castração e seu pavor com o O tema psicanalitico da pintura. O desm em bram ento e a frag­
m entação da pi ntura estão, portanto, vinculados a o cenário edipiano, e em últim a instân­
cia às origens ed ip ian as da pintura m oderna.
204 SURREALISMO. MITO L PSICANÁLISE

Breton e Bataille
D iv isõ es: 1929
Enquanto o Surrealism o de Breton explorava a "floresta de sím bolos" que estava por trás
das concepções correntes de realidade, podem os ver o trabalho de Bataille percorrendo
as som bras que constrangiam até m esm o Breton. Enquanto Breton buscava um "brilh o
de lu z", Bataille perseguia o obscuro. Q u ando Bataille usa a m etáfora da luz, esta é tão
estonteante que cega; a visão dá lugar à cegueira e o cam po de visão é contam inado pela
tache avcugle ("m ancha ceg a "). Não é de surpreender, portanto, q u e Breton visse Batail­
le com o entrincheirado num pessim ism o incurável. Ainda que o com entário seja apenas
unilateral (Breton alu d e a Bataille, m as Bataille raram ente responde), Bataille considera
Breton e os surrealistas sim plesm ente iludidos por um incurável idealism o.
A separação entre Breton e Bataille ocorreu em 1929, quando em apenas um mês su r­
giram as publicações d o "Segu n d o m anifesto surrealista", de Breton, em L i Rcvolution
Surréaliste, e de "L e 'Jeu lu gu bre'", de Bataille, em Üocinncnts. A crise daquele ano envol­
veu muitos surrealistas, alguns dos quais foram expulsos d o gru po por Breton, enquan­
to outros - com o M asson - distanciaram -se dele. Bataille era o oponente m ais vod ferante
de Breton e, com M ichel Leiris e outros, tornou-se uma figura-chave na revista rival Docu-
tnents, que estreou em 1929. A pesar de nunca ter sido propenso a organizar grupos,
Bataille acabou por representar, com com panheiros dissidentes, um cam po alternativo
situado fora das fronteiras definidas por Breton.
Breton criticava Bataille por seu "m aterialism o vu lgar", que ele contrastava com sua
própria visão do "m aterialism o dialético" do Surrealism o, derivado de M arx. Breton não
estava se referindo aqui ao m aterialism o vulgar que ganhou espaço sob Stalin, no qual a
arte sim plesm ente "refletia" a sociedade e os interesses de classe (ainda que, no segundo
m anifesto, ele tenha certam ente atacado os dogm as do Partido Com unista). Breton ad e­
riu ao Partido C om unista Francês em 1927, mas desligou-se m ais tarde, desiludido pela
falta de interesse do partido em aceitar a relativa autonom ia da posição surrealista e por
sua recusa em adm itir a necessidade de experim entação por parte da vanguarda. O seu
com prom etim ento e de ou tros surrealistas com um a plataform a trotskista - a qual, entre
outras coisas, permitia a o intelectual engajado estar adiante da cultura convencional - era
irrecondliável com «i posição stalinista adotada pelo Partido Comunista Francês. A posição
do partido poderia ser vista com o um tipo de deturpação do m aterialism o com o havia
sido definido por M arx, mas, especificam ente no seu ataque a Bataille, Breton referia-se
a outro tipo de distorção a redução do m aterialism o feita por Bataille, literalm ente, ã
sua form a m ais grosseira, vil e prim ária.
Para Breton, era crucial que o Surrealism o encontrasse um a estrutura teórica que
abrangesse tanto M arx com o Freud, num a estratégia que se voltaria contra a opressão
social e psíquica op eran te sob o capitalism o. No segundo m anifesto, Breton insiste:

O Surrealismo, que, com o vimos, optou deliberadam ente pela doutrina marxista no âm bito dos
problem as sociais, n ão tom intenção do m inim izar a doutrina d e Freud, uma ve/, que cia sc
aplica ã avaliação de idéias. (Breton, “Second Manifesto of Surrealism", p. IS9)

A defesa d e Freud é tã o exp lícita aqui porque o partido se recusou a con sid erar a
"grand e descoberta" d o inconsciente que Breton sem pre reconhecera com o o seu maior
débito a Freud. M as devem os notar tam bém com o Breton insiste aqui na conjunção de
Freud com Marx, do psíquico com o social. Para Breton, a abordagem d c Bataille repre­
sentava elim inar Marx da equação. E a perda d e Marx significa também a perda da revo­
lução. C om o Breton escreveu:

A nossa lealdade ao princípio tio materialismo histórico... não há maneira de brincar com essas
palavras. C ontanto q u e isso dependa unicam ente do nós - quero dizer, considerando qu e o
com unism o nao nos veja sim plesm ente com o tantos anim ais estranhos, destinados a ser exi­
BRETON F BATAILLE 205

bidos saltitando e lançando de suas fileiras olhares desconfiados , devemos provar que
somos totalmente capazes de realizar nossas tarefas como revolucionários, (p. 142)

A afirm ação parece defensiva, e o era: na realidade, as críticas de Bretori a Bataille,


baseadas n a ligação do Surrealism o com o m arxism o, foram feitas no contexto d a mar-
gin a li/ação de Breton pelo Partido C om unista Francês.
N o segu n d o m anifesto surrealista, a crítica ácida d c Breton contra Bataille é apenas
uma das m u itas dirigidas contra aqueles que ele considerava traidores e d esertores dos
princípios d o Surrealism o e que am eaçavam su a própria liderança c dom ínio d o grupo.
M uitos d esses "traid ores", com o já vim os, foram reagrupados em to m o de Bataille. Bre
ton escreveu: "O q u e estam os testem unhan do é um abom inável retorno ao velho mate-
rialismo antidialético, que dessa vez está tentando forçar seu cam inho gratuitam ente por
in term éd io de Freud" (p. 183). O problem a para Breton n ão era Freud em si, m as o uso
feito de su as idéias psicanalíticas. A esse respeito, Denis Hollier escreveu que "h a via dois
usos para Freud, duas posições para a literatura em relação á psicanálise, pod end o cada
uma delas ser representada por Bataille e Breton, respectivam ente". Km suas posições teó­
ricas, H ollier identifica um a diferença entre a tentativa de Breton de negar teoricam en­
te "a distinção entre a norm alidade e a p ato lo g ia" e "a prática real d o desequilíbrio, um
risco real à saúde m ental" d c Bataille (H ollier, A gainst A rchitecture, p. 108). Knquanto o
interesse d e Breton pola psicanálise era o diagnóstico, Bataille sucum bia às fantasias
descritas p or ela.
Breton era crítico em relação às preocu pações de Bataille com o corrupto, o vil e o
grosseiro, e m que "o horror não conduz a nenh um a condescendência patológica, e ape­
nas exerce o papel do estrum e no crescim ento da planta da vida cujo odor e su focan ­
te, m as sem dúvida salutar para a planta" (Bataille, citado por Breton, p. 184). O q u e é sur-

184. Mariate, Seineet Mame, vers 7905 (Casamento, n área do Sena c do Mame, c. 7905), fotografia "Figure
hu m ainc" ("F a c e hu m ana"), Doawients, n 4, 1929. Fotografado por cortesia da C ourtauld Instituto Book
Libra rv.
206 SURREALISMO, MITO fc I*SICA\ÁI JSF

prcend ente aqui é que, ao vilip endiar B ataille, Breton usa term os sim ilares àqu eles qu e
haviam sido associad os ao p róprio Surrealism o:
Deve ser salientado que o senhor Bataille abusa d e adjetivos com intensa paixão: infam e, senil,
grosseiro, sórdido, obsceno, titubeante, e essas palavras, longe d e servir a ele para depreciar
um estad o de coisas insuportável, são aquelas pelas quais seu s deleites são m ais liricam cntc
expressos. (Breton, "becond Manifestoof Surrealism". p. IS4)

Breton evoca tam bém as últim as linhas do ensaio d c Bataille em D ocum cnts, "F ig u re
hum aine", nas quais o autor convidava seus leitores "a correr absurdam ente com ele - seus
olhos de repente tom am -se em bad ad os e cheios de lágrim as inevitáveis - em direção a
algum as casas provindanas assom bradas, m ais desagradáveis do que moscas, m ais depra­
vadas, m ais grosseiras qu e barbearias" (Breton, "Scco n d M anifesto o f Surrealism , p. 181).
Um a d as ilustrações que acom panhavam "Figu re h u m ain e" era a fotografia d e um casa­
m ento burguês provinciano d a virada do século [1841, superficialm ente respeitável mas,
para Bataille, um a cena de perversão encoberta. D e certo m odo, a preocupação com im a­
gens anacrônicas, a idéia d c significados latentes sob os explícitos, o terrível qu e subjaz ao
aparentem ente respeitável e ordeiro - em sum a, o estranho podem parecer bastante afi­
nados com as preocupações m ais am plas do Surrealism o. E, contudo, a diferença é que
Bataille recusou-se a acatar as im agens disponíveis de liberação (fossem elas m arxistas ou
não), preferindo participar do seu traum a, envolver-se na sua "b aix eza" sem a pretensão
de distanciam ento objetivo. É um traço im portante de sua escrita a tendência a atuar com
b ase nas estratég ias perversas descritas. Seu en saio " L e 'Jeu lu g u b re'", por exem plo,
em bora tendo retirado seu título de um a pintura de Dali, é tam bém um tipo de "jogo lúgu-
hre" que não m antém distância de seu objeto, com o Breton possivelm ente teria desejado,
mas se su bm ete a suas próprias m etáforas de "u m a feiura horrível". 1’ara Bataille, contra
o idealism o existia apenas a bestialidade: "É im possível", escreveu, "com portar-se difc-
rontemento do porco fossando a lavagem ". Para Breton, ao contrário, "o hom em ... é ainda
livre para acreditar c m sua liberdade" (Breton, "Sccond M anifesto o f Su rrealism ", p. 187).
Para Breton, resta sem pre algum a esperança (contida, lem bre-se, no nom e de N adja), ao
passo que, para Bataille, a ilum inação é necessariam ente acom panhada d o pecado. Breton
apegou-se a uma concepção de beleza, a qual cham ou de "beleza convulsiva". Para Batail­
le, existe tam bém a beleza, m as som ente no m om ento de obsolescência, que está indele-
velmente ligado à podridão e à decadência e, por fim, ã morte (suas metáforas de pó, cuspe,
até m esm o de abatedouro, sugerem form as diferentes d e putrefação).

A biisscsm e de B ataille

Bataille estava interessado na /wssrssc, ou "baixeza", com o um m ecanism o que desenca­


deava a degeneração e a decadência - os processos característicos d o informe, ou o proces­
so pelo qual a forma é "desfeita". Em seu "D icionário crítico", publicado em Documente em
1929, Bataille dclibcradam enle parodiou a idéia de dicionário com o uma série de definições.
Ao contrário, as palavras que ele seleciona, tais com o (vil ("olh o"), informe ("in form e"), abat­
ia ir ("abatedou ro"), la Ixíuche ("b in a ") e materialtetne ("m aterialism o"), são dispostas de
um m odo que as im pede de ler seus significados fixados. F.las seguem o form ato d e um
dicionário, m as ao m esm o tem po desfazem esse formato. As fotografias que acompanham
os textos não fornecem definições, mas acrescentam uma categoria a m ais d e sugestivida-
de [185,186]. Isto é, as palavras são desprovidas de qualquer definição absoluta e, ainda, são
deslocadas pelas imagens (que foram produzidas por lk>iífard e Hli Lotar, entre outros). Sob
o m esm o verbete de dicionário para ceil, Bataille também reproduz a pintura de Dali O san-
$ u e c mate doce que o mel, de 1927, ju n to com uma velha história de detetive em quadrinhos,
IJO eil d e la Police [187]. V ários dos term os de Bataille no dicionário e em outras seções da
revista referem-se a partes do corpo com o um a anatom ia desm em brada do moderno.
Bataille, com o Breton, via P icassocom o uma figura fundam ental. M as, enquanto Bre­
ton considerava o trabalho de Pieasso um "cam in h o preferencial" por on d e o Surrcalis-
BRKTON E BATAILLE 207

185. "Abattoir", duas páginas de fotografias de Eli Lotarem C. Bataille, "Dictionnaiiv critique" ("Dicionário
crítico"), Docutm-nh», nu7, 1929. Fotografado por cortesia da Courtauld Instituto Book library.;i daí s , I .ondres,

186. "Bouchc" ("Boca"), fotografia de Jacques-


André Boiffard em G. Bataille, "Dictionnaire
critique" ("Dicionário crítico"), Docunients,
n- 3,1929. Fotografado por cortesia da
Courtauld Instituto Book Library. €> dacs,
Londres, 1993.
208 SURREALISMO, MITO F PSICANÁLISE

IN7. Página de
Documente, nu4 ,
1929, com
L'Cí'il de la polic e c Le
Sa>ig rs/ plus doux <jiic
le miei (O sangue e
mais doce que o mel),
d e Salvador D ali,
1927, pintura
desaparecida. <D
DEMAKT PRO AKI I
bv/oacs, Londres,
1993.

l>*£, U «M »)u. d(xn <(IMI* mifl (192?)


Bar<.«l>rae. Cot), urivt*.

m o também deveria passar, Bataille enfatizava a sua sordidez, o q u e poderiam os cham ar


d e um "cam inho d escend ente", n o qual "o deslocam ento das form as im pulsiona o pen­
sam ento para baixo" (balaille, " L e 'Jeu lu gu bre'", p. 86). Da m esm a forma, tanto o grupo
surrealista quanto Bataille celebraram o trabalho d o M arquês de Sad e. Em l.a Révolutiott
Surréaliste e, m ais particularm ente, em Le Surrenlisnie nu Service d e Ia Rêvolution, Sade é
discutido com o um herói do Surrealism o (por exem plo, a hom enagem de Paul Éluard a
Sade, "D.A.P. de Sade, o fantástico e revolucionário escritor"), com o um hom em que pas­
sou a m aior parte de sua vida n a prisão pelas suas crenças e qu e m erecia ser celebrado
com o um ateu, um revolucionário e um escritor que havia liberado a sua im aginação eró­
tica. Nesse sentido, os surrealistas seguiram Apollinairc, que, na introdução à sua edição
d e 1909 da obra de Sade, proclam ou "o M arquês de Sad e o m ais livro d e todos os espí-
O PAPEL DA DESORDEM PSÍQUICA NA ESTÉTICA SURREA! ISTA 209

ritos a te h o je". Bataille com partilhava dessa con vicção da im portância d e Sade, mas
enfatizava o seu "tato para o terrível", a violência e a crueldade de seus escritos (um títu­
lo provisório para seu ensaio "L e 'Jteu lu g u b re'" teria sid o "D ali e Sad e gritam ju n tos").
Bataille achava que, seguindo as descobertas de Freud, as diferenças entre a cruelda­
de d os rituais de sacrifício dos povos antigos e os apelos escandalosos de Sade eram ape­
nas superficiais. Ele considerava Sade um precursor exem plar do inconsciente m oderno
que, com o o artista espanhol Goya, expôs "a s faces terríveis dos son h os" subjacentes à
aparência das coisas. Em sua concepção de arte m oderna, Bataille internalizou os princípios
de Sade. O trabalho de Kliró, por exem plo - que decom pôs a im agem e quebrou a sua uni­
dade -, seria, com o o de Dali, indicativo do princípio da destruição operante na arte
m oderna. Em seu livro bastante posterior sobre M anel (1955), Bataille elaborou essa idéia
para argum entar que a arte m oderna com eçava com M anet porque ele havia sid o o pri­
m eiro a "d estru ir" o tema na pintura. Com M anet, com eçou a obliteração d o "tex to " - isto
é, do en red o que deveria ser o pretexto da pintura. No caso de Olyntpia, o "tex to " da pros­
tituição é repudiado ou invalidado pela m anipulação d e M anet, provocando um "corte de
relações" entre o "texto" e a pintura: "a pintura oblitera o texto", escreveu Bataille, " e o digni­
ficad o d a pintura não está no texto escondido, mas na supressão desse texto" (Bataille, M anet, p. 62).
É m u ito fácil, ao fazerm os com parações en tre Breton e Bataille, perder de vista o ter­
reno q u e eles com partilhavam . Eles, claram ente, tinham m ais afinidades entre si d o que
com a s concepções dom inantes d e realidade, ou com o tipo de estética da m áquina, ou
"co n stru tiv a ", discutida no cap ítu lo anterior. Partidários de am bos tendem freqüente-
m en te a exagerar su as diferenças, que sem dúvida existem , no sentido de difam ar um às
cu stas do outro - afirm ando, p o r exem plo, que Breton representa "u n id a d e " em relação
ao sen tid o de "frag m en tação" ou "d escen tralização" qu e há em Bataille, ou qu e Batail­
le sim p lesm ente representa o Su rrealism o sem política, em op osição às credenciais revo­
lu cion árias de Breton. O Surrealism o, em si m ultifacetado, tornou-se um foco d e consi-
d era çõ es conflitantes sobre o significado do m oderno. Foi Breton qu e dom inou a litera­
tura so b re o Surrealism o, tanto com o a voz m ais poderosa de seu s objetiv os revolu­
cion ários, quanto com o o líder organizacional d o m ovim ento. O m od elo de Surrealism o
de Breton com prom eteu -se diretam ente com a política revolucionária e foi influ ente ao
atacar a concepção de que a arte podia ser independente das preocupações sociais e polí­
ticas. A s idéias de Bataille não são m ais afirm adoras da independência da arte ou da cul­
tura d o q u e as de Breton, nem idealizam a arte com o livre da política. M as, certam enlc,
a atitu d e de Bataille com relação à política era diferente: o fervor utópico, toda a esp e­
rança de "lib e ra çã o ", volta-se para dentro num estad o term inal d e traum a. Para B atail­
le, se a desordem psíquica d evesse ser sim plesm ente im itada - m esm o com o um a form a
d e crítica - tudo estaria perdido.

O papel da desordem psíquica na estética surrealista


A h isteria

Dali publicou um artigo ilustrado em M m otaurc em 1933 sobre o tema da "beleza horrível
e com estível" presente na art nouvcati. A dualidade d e "h orrível" e "com estível" era uma
conjunção tipicam ente daliesca, aplicada aqui às form as de arte decorativa. O artigo apa­
recia d o lado oposto ao de Sculpturcs involontaires do fotógrafo Brassai. Eram fotografias de
objetos encontrados e sucatas, tais com o um bilhete de ônibus dobrado ou um pedaço de
papel amassado, isolados e deslocados de seus contextos habituais 1188). A o usar o d o s e up,
Brassai capturou form as incomuns dessas peças da efemeridade urbana, qu e representavam
a sobra descartável da cidade m oderna. Elas se relacionavam com outras de suas fotogra­
fias, q u e m ostravam facetas e estratos inesperados d e Paris e apareciam em ou tras partes
do m esm o núm ero de M inotaure por exem plo, os "desenhos pré-históricos", os Craffitis
Parisiens [189]. O artigo de Dali, por outro lado, era um a celebração da arquitetura de
A ntonio C au dí em Barcelona [190], ilustrada por fotografias d e Man Ray. F.le ressaltava o
210
SURREALISMO. MITO E PSICANÁLISE

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SCULPTU RES INVOLONTAIRES


188. BrassaY, Sculptures involontairtí, fotografias. M inoíaure, n- 3/4,1933. Reimpresso por Amo Press
com a permissão de Éditions d'Art Albert Skira. © OACS» Londres. 1993.
O PAPEL DA DESORDEM PSÍQUICA MA ESTÉTICASURREALISTA 21 I

189. Brassaí, Graffitis Pnritiens, fotografias, Minolaure, rc 3/4, 1933. Rcimprcsso por Arno Press
com a permissão de Édifions d'Art Albert Skira. 0 d a c s , Londres, 1993.
212 SURREALISMO, MITO E PSICANÁLISE

190. Man Ray, foto da arquitetura do Gaudí, em Dali, "De Ia boauló lerrifianto ot comestiblc,
de rarchitecture modem' stylc", Minotourc, nw3/4, 1933. Reimpresso por Amo Press com a
permissão de Éditions d'Art Albert Skira. €> OliMAKT i’RO artt: BV/DACS, Londres, 1993.

m odo pelo qual a "fórm u la do ângulo reto" e a "seção dourada" haviam sido substituídas
pela fórmula da "ondulação convulsiva". Esse era o perfil da arquitetura de Gaudí que Dali
comparava, por analogia visual, com uma fotografia feita por Brassai de uma entrada art
nouveou do metrô de Paris [191J. E havia um paralelo adicional encontrado na "escultura
histérica" de Gaudí, c u jas cabeças fem ininas mostravam o "êxtase erótico". A colagem de
Dali O fenôm en o do êxtase [1921, que usava detalhes de esculturas dos edifícios de Gaudí,
rem ete ao interesse consolidado dos surrealistas pela histeria, saudada com o a maior
descoberta poética do século xix (L í Rcoolution Surréoliste, nv 11, 1928, pp. 20-2).
N otam os com freqüência que os surrealistas, ao revelarem o m undo escondido dos
desejos inconscientes, focalizam situações de falência psíquica e social em que as leis são
enfraquecidas ou destruídas. Um exem plo disso é a celebração da "loucu ra" de N.ulja por
Breton, que* acaba por interná-la num hospício; outro é o interesse surrealista pela histe­
ria. Em uma página dupla com em orativa do " O cinquentenário da histeria", cm L? Rcvo-
Intion Surréoliste em 192S, Breton e Aragon escreveram: "A histeria não é, de modo algum,
um sintom a patológico, podendo, d e todas as m aneiras, ser considerada um a forma
suprema d c expressão" (n ° 11, p. 20). Seus artigos foram ilustrados por fotografias de uma
histérica estudada p o rC h arco l em 1878. A jovem paciente, "A ugustin e", havia sido foto­
grafada num a série de estados involuntários, denom inados "attitu des passionnelles"
("atitu des passionais") 11931. Ao contrário d c C harcot e de seu discípulo Freud, os sur­
realistas tendiam a celebrar a histeria m ais com o uma condição passional do que patoló­
gica. Para Breton e A ragon, a condição da paciente histérica d c Charcot exem plificava a
ruptura de leis repressivas:'"A histeria é um estado mental m ais ou m enos irredutível e
que é caracterizado pela subversão das relações entro o sujeito e o m undo da m oralida­
de, ao qual ele se opõe, fora de qualquer sistem a d e delírio" (L i Révolution Surréoliste,
nc 11, p. 22). A subversão, nesse sentido, significa um protesto inconsciente, o qual, em
interpretações feministas mais recentes da obra de Freud, tem sido caracterizado com o um
protesto contra a lei patriarcal: "N o corpo do histérico, hom em ou mulher, reside o pro­
testo fem inino contra a lei do pai" (J. M itchell, Psychoatiuh/sis an d Feminism, p. 404). Cer­
tamente, a preocupação surrealista com a histeria feminina pode ser vista com o reforça-
O PAPEL DA DESORDEM PSÍQUICA NA ESTÉTICA SURREALISTA 213

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u . • ^m ik w í i i .o \i'Ií ev..-*r í.V« luwui k

191. Brassaí, fotografias das grades do metrô de Paris, em Dali, "De la beauté terrifiante et
comestible, de rarchiteclure modem' style", Mitiotourc, n- 3/4,1933. Reimpresso por Amo Press
com a permissão de Éditions d'Art Allx*ri Skira. © demart pró arte Bv/dacs, Londres, 1993.

dora de uma visão estereotipada da m ulher com o “lo u ca" e "devoradora". Mas seu “pro­
testo" é tam bém im portante, e a ênfase na falência psíquica lança uma luz bastante dife­
rente sobre o u so do estereótipo pelos surrealistas.
N ão estou su gerindo, obviam ente, qu e o s su rrealistas d eliberad am en te usaram
Freud dessa m aneira, ruas apenas que a posição ocupada pela histeria na estética sur-
214 SURREALISMO. MITO E PSICANÁLISE

192. Salvador Dali, Le Phénomètiede Vextose


(Ofenômeno do êxtase), colagem, Minotaure,
ntf3 / 4 ,1933. Rcimpresso por Amo Press
com a permissão de Lditions d'Art
Albcrt Skira. © dimakt i'ROakte bv/dacs,
Londres, 1993.


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realista era com plexa. As razões pelas qu ais eles se sentiram tão atraídos pelas fotogra­
fias dos pacientes de Charcot envolviam suas próprias visões d a sexualidade fem inina
e o papel que a desordem p síqu ica fem inina representou na su a estética. Seu conheci­
m ento sobre a histeria era am plam en te derivado de C harcot e d e outro psicólogo expe­
rim ental, Piem * Janet. M as a histeria era tam bém , com o eles reconheceram , fundam en­
tal na obra de Freud (um de seu s prim eiros casos, "D o ra ", tornou -se um exem plo fam o­
so de histeria). Para Freud, a histeria era caracterizada ao m esm o tem po por "u m desejo
sexual exagerado e por uma excessiva aversão à sexu alidad e" (Freud, "Th rco Hssavs on
the T heory of Sexu ality ", p. 79). A doença era vista com o u m a form a de escap ar desse
conflito "a o transform ar ... im pu lsos libidinosos em sintom as" (p. 79).
Em bora a histeria seja vista frequentem ente com o um fen ôm en o do sécu lo xix - a
grande descoberta d o século, com o vim os, para Breton e A ragon vale lem brar qu e o
m ais im portante trabalho d e Freud sobre a sexualidade fem inina data dos anos 20 e 30,
quando a histeria ainda exercia um papel im portante na sua concepção de patologia femi­
nina. Em seu ensaio de 1931, "Sexu alid ad e fem inina", Freud desenvolveu a idéia de que
a sexualidade da m ulher era distinta da do hom em c não, com o ele havia suposto ante­
riormente, apenas o seu reverso. A histeria, sugere Freud, é particularm ente com um entre
as m ulheres porque está enraizad a na fase pré-edipiana das m eninas, d e ligação com a
mão. O problem a específico das m eninas é que elas precisam fazer a transição da m ãe
enquanto objeto d e am or para o pai (e, portanto, para todos o s hom ens). A paranóia, nas
O PAPEL DA DESORDEM PSÍQUK A NA ESTÉTICA SURREALISTA 215

LES ATTITUDES PÀSSIONNI&LK5 EN IS7S

193. "Le cinquantenairv àv Thystéric, 1878-1928" ("O cinqücntonário da histeria"), La Rávtution


Surrcaliste. n- TI. 1928. Roim presso por A m o Press.
216 SURREALISMO, MITO E PSlt A\Á1 1SI

mulheres, era outra condição que derivava desse período da infância de dependência da
mãe. Eram fundam entais aqui as m an eiras diferentes pelas quais os m eninos e as m eni­
nas experienciavam o com plexo de Édipo. Se inicialm ente Freud não fazia diferença entre
os sexos com relação a essa fase v ital, ele agora escrevia:
U m a coisa que perm anece nos h o m en s pela influência do com plexo do Édipo é uma certa
depreciação em suas atitudes para com a mulher, as quais eles consideram ca stra d a s... M uito
diversos são o s efeitos d o com p lexo de castração na m ulher. Ela reconhece o tato d e sua
castração, c com isso, tam bém , a sup erioridade do hom em e a sua própria inferioridade;
porém , rebela-se contra esse m desejado estad o d e coisas. (Fn-ud. "Female sexuality”, p. .>76)

Ele continua:
Provavelm ente não estarem os errad os ao dizer que é essa diferença na relação recíproca entre
o Édipo e o com plexo d e castração qu e confere uma m arca peculiar ao carãter d as m ulheres
com o seres sociais, (p. 377)

A lgum as psicanalistas e teóricas fem in istas desenvolveram a idéia de qu e a teoria de


Freud descreve as relações de poder com o elas existem sob o patriarcalism o, m as não as pres­
creve.* D esse ponto dc vista, a força crítica da teoria de Freud reside, parcialm entc ao
menos, em sua análise de com o a diferença sexual não é determinada biologicamente, mas
produzida culturalm ente. O com plexo d c Édipo, por exem plo, m antém sua im portância
capital porque desem penha sim bolicam ente o qu e o psicanalista Jacques U ican iria cha­
m ar d e "a lei do p ai", que tem sid o considerada em blem ática da estrutura d e poder sob
o patriarcado. K Freud fornece um a explicação de com o essas diferenças são representa­
d as sim bolicam ente. É im portante reconhecer aqui o valor sim bólico, m ais d o q u e o
valor literal, da teoria d c Freud, em que "a lei do pai" representa m etaforicam ente a
dom inação d o hom em sobre a mulher. Lacan m ais tarde reconheceu qu e o caráter da “ati­
tude sexual fem inina" havia sido sin tetizad o com precisão na palavra "sim u lação ", que
foi introduzida no debate sobre sexu alid ad e fem inina em 1929 com a publicação do
ensaio da psicanalista Joan Rivière, "A fem inilidade com o um a sim u lação". Aqui, R iviè­
re questiona o que é a fem inilidade, ao exam inar o caso d e um a m ulher bem -sucedida em
sua carreira e que, nos lerm os de Rivière, lula para ser “com o um h om em " no trabalho e
ainda com pensa isso ao adotar u m a m áscara de fem inilidade. Rivière conclui que a fem i­
nilidade é ela própria um a representação e, com o tal, o m esm o qu e um a sim ulação. A
encenação d c um a idéia dada de "fem in ilid a d e" novam ente reforça a proposição de que
as diferenças sexuais significativas são produzidas na cultura, não na natureza. A histe­
ria tem sido vista nesse contexto co m o um a sim ulação falha. D o ponto de vista psica-
nalítico, portanto, a histeria é um a condição específica q u e traz à tona os problem as
gerais d c relacionam ento entre o* sexos, c entrv a "m asculin idade" e a "fem inilidade".
O dom ínio sim bólico com o qual lida o Surrealism o flutua entre a sim ulação (a fan­
tasia de feminilidade) e os seus m om entos de fracasso (a histeria, por exem plo), com o dois
lados de um a m esm a m oeda. O Surrealism o, em vez d c "d esm ascarar" a fem inilidade,
acha suas m áscaras desejáveis e, ao fazê-lo, privilegia o ponto de vista erótico m asculino.
Em seu ensaio "L a beauté sera con vu lsive" ("A beleza será con vu lsiva", a últim a fala de
Nadja), Breton deixa claro que, de seu ponto d e vista, a resposta estética está integralm ente
ligada à sua experiência de prazer erótico. Esse ensaio foi m ais tarde incorporado cm
L’A m ourfou e, nele, Breton discute o efeito erótico da "floresta de signos", tanto em form as
anim adas com o inanim adas. Um d os três elem entos da "beleza convulsiva" era o erottquc
voilee ("erótico d isfarçad o") - o processo de representação atuando na natureza por m eio
do qual, por exem plo, um anim al pod e im itar o outro ou o inanim ado confundir-se com
o anim ado, ou em qu e uma coisa assum o a aparência de outra, com o n as fotografias de
cristais de rocha feitas por BrassaV rep rod u zid as no en saio (194). M as ele reproduz

•J. Mitchell apresentou originaImente e>sa visão em /'syrhomrMÍysts rtrirf t o wtnfm, que influenciou amplamen­
te o> empregos feministas posteriores de Freud e UKOi», em particular.
' S. I ieatn aponta isso e o discute em "Joan Rivièrv and lhe Masqueradc", p. S I.
O PAPEL DA DESORDEM PSÍQUICA NA FSTFT1CA SURREAI1STA 217

194. Brassai, fotografia de cristais d e rocha, em A. Breton, "L a beauté sera convulsive" ("A
beleza será convulsiva"), Afm o ta u rc, n' 5, 1934. Reim presso por A rno P ress com a perm issão de
Éditions d'A rt Albert Skira. © PACS, Londres, 1993.

195. M an Rav, Explosnntc-firc


(Expiosivo-fixo). fotografia,
em A. Breton. "L.a beauté sora
convulsivo" ("A beleza será
convulsiva"), Minotaure, n- 5,
1934. R eim presso por Arno
Press com a perm issão de
Éditions d'A rt Albert Skira.
© ADAC.r, Paris e dac s , Londres,
1993.
218 SURREALISMO, MITO E PSICAMÁLISF

tam bém , e com a legenda érotiquc voilée, as fotografias de M eret O ppcnhcim 1160] reali­
zadas por Man Ray, e m que as form as do corpo fem inino e da m áquina são m ostradas
num estado de transirão, com a imagem da m ulher m esclando-se à identidade da m áqui­
na. O objetivo não é tanto desmascarar uma feminilidade essencial, m as elevar o efeito eró­
tico por meio da inconclusão, por m eio do próprio disfarce.
O utro elem ento na noção bretoniana de beleza convulsiva era a explosante-fixe- por
exemplo, outra fotografia de M an Ray que congela o movimento selvagem da dança [195]
com o intuito de capturar " o m om ento exato de expiração do m ovim ento" ("M ad L ov e",
em W hat is Surrealism?,'p. 162). Está na natureza da beleza convulsiva, de acordo com Bre-
ton, qu e ela não nos possa "alcançar pelos canais lógicos norm ais". N esse sentido, o delí­
rio era um estad o para ser alm ejado, pois ele questiona o que significa o "n o rm a l". Por­
tanto, m esm o quando Breton, num texto com o esse, não se refere diretam ente à histeria
ou a outras d esord ens psíquicas associad as particularm ente às m ulheres, elas estão
sem pre im plícitas em sua estética. O term o "con v u lsiv o", por exem plo, derivava dos
m ovim entos involuntários do corpo engendrados por condições tais com o a histeria.
C om o observou W hitney Chadw ick, la m o iir fo u era o term o em pregado por Pierre Janet
para o estad o de êxtase experim entado pelas m ulheres histéricas (Wotucn A rtisls an d lhe
Surrealist M ovem enf, p . 33). Breton faz disso um princípio da estética surrealista.

A paranóia

O utra situação de falha psíquica que interessou aos surrealistas foi o caso das irm ãs
Papin, discutido cm L e Surréalism e au scrvicc de Ia R évolulion, em que aparecem tam bém
duas fotografias das irm ãs, "a n te s" e "d ep o is" (1961. A s irm ãs tinham sido criadas num
convento em Le M ans c então colocadas pela m ãe no serviço dom éstico de um a casa bur­
guesa. D urante seis anos, elas suportaram , com perfeita subm issão, pedidos irracionais

a v #.>t

196. As irm ãs Papin, Le Surréalisme au Service


dela Révolulion, n- 5,
1933. R eim presso por
....... .... ?*•
A m o Press.
O PAPEL DA DESORDEM PSÍQUICA NA ESTÉTICA SURREALISTA 219

e insultos; por fim, o medo, a exaustão c a hum ilhação provocaram o ódio a se u s patrões,
os quais acabaram sendo m ortos por elas, qu e arrancaram seus olhos e esm agaram suas
cabeças. Em seguida, lavaram-se cuidadosam ente c foram dormir. Paul Éluard e Benjamin
Perct term inaram a história com as palavras (p. 28): "E las saíram lotalm ente arm ad as dc
um canto d c M ald o ro r" - sugerindo, com a referência aos Cantou dc M aldoror, d o C onde
de Lautréam ont, que suas ações eram p oéticas em vez de crim inais.
N ovam ente, essa história horrenda oferece uma narrativa na qual os su rrealistas
podiam projetar su as próprias preocupações, tais com o sua construção da m u lher com o
"lo u ca ", com o a "o u tra ". (Breton, por exem plo, identifica N adja, encarcerada num asilo,
com o de ce rta form a m ais próxim a do inconsciente do q u e os hom ens.) A ação das
irmãs, o m assacre de seu s opressores, tam bém significou para os surrealistas o protesto
m áxim o contra uma estrutura social na qual c ia s estavam aprisionadas e escravizadas.
Portanto, esses exem plos de loucura poderíam ser considerados um protesto contra a
fam ília, contra o catolicism o e contra a op ressão sexual e social. Indiretam ente, isso é
espelhado n u m a ilustração no m esm o nú m ero da revista, o Édipo de Ernst [163], pro­
porcionando a situação clássica de protesto con tra a lei do pai.
O m odo p elo qual essa pequena com posição sobre as irm ãs Papin aparece na revista
tam bém é revelador, f o i colocada ao lado de u m artigo (sem ligação com o caso) do sur­
realista belga Paul N ougé, cham ado "L c s Im ages d éfend u es" ("Im agen s proibid as"),
que tratava d o m ecanism o da m etáfora. A baixo, estava disposto um desenho d e M agrit-
te que com binava as im agens da Virgem M aria e de um a prostituta, num gesto blasfem o
de anticleriealism o. A celebração da desordem psíquica da mulher, o gesto blasfem o e a
visão de N ougé sobre o papel do escândalo na "recu sa da ordem estabelecida" (P. Nougé,
"L es Im ages d éfend u es", p. 28) são reunidos com o com entários sim ultâneos. E em outra
imagem (no m esm o núm ero), qu e tam bém p<xle ser lida em parte com o um ataque à
Igreja católica, Man Kay enquadra, com a form a delineada de uma cruz invertida, a foto­
grafia das nádegas de uma pessoa 1197| e a dedica ao herói surrealista, o M arquês de Sade.
O psicanalista Lacan esteve envolvid o com o grupo surrealista nos an os 30. Ele
publicou d o is artigos sobre a paranóia na M iuolaure, um deles (no m esm o núm ero que
trazia o artigo d e Dali sobre G audí) sobre as irm ãs Papin. Para Lacan, as irm ãs Papin

197. M an Ray, Monument à D.A.E dc Sadc, 1933,


fotografia, reproduzida cm t.c SurrMbme au Service dc
Io Rcvolution, n" 5, 1933. C oleção d e A rturo Schw arz.
© a d a g p , Paris e o a c s , Londres, 1993.
220 SURREALISMO, VÍTTO E PSICANÁLISE

haviam com etido o m ais exem plar "crim e paran óico"; a paranóia era um estado m órbi­
do, caracterizado por delírio e m anias d e perseguição, mas, com o um a condição expe­
rim entada pela im aginação criativa, podia ser reveladora. Em outro artigo sobre a qu es­
tão do estilo, Lacan defendeu: "A ssim , algu m as dessas form as de experiências vividas,
conhecidas com o m órbidas, parecem particularm ente férteis em term os de expressão
sim bólica" (Lacan, "L e Problem [sic] du sty le et la conception psychiatrique des form es
paranoíaques de rex p cricn ce ", pp. 68-9). C om o a histeria anteriorm ente, a paranóia
agora entrava na estética surrealista, por interm édio de Dali em particular. Apesar de nao
se r de m an eira algu m a u m a d esord em ex clu siv a m en te fem in in a, a a sso cia çã o da
paranóia com as irm ãs Papin não era acidental para o s surrealistas, qu e elegeram a
dupla com o a m ais recente de uma longa série de anti-heroínas desde G erm aine Berton.
Q uando Dali com eçou a se interessar pelo trabalho de Lacan, a paranóia já fazia parte de
seu vocabulário - e a sua interpretação "crítico-p aran óica" da pintura A ngelus, de Jean
François M illet, precedeu o ensaio de Lacan. Q uando Dali leu a tese de doutorado de
Lacan sobre a psicose paranóica, julgou q u e ela reforçava seus próprios interesses. Em
1931, por exem plo, Dali havia produzido seu "rosto paranóico" [198], em que a fotografia
de uma aldeia africana, ao ser virada de lado, transfom iava-sc no perfil de um rosto. Isso
mostra, novamente, o interesse do Surrealism o pela metáfora, pela idéia de que uma coisa
podia sim ultaneam ente ser lida com o ou tra sem nunca perder inteiram ente sua identi-

198. Salvador Dali, fotografia


interpretada d e "C om m unication:
visage paranoYaque"
("C om u nicação: rosto
paranóico"), Le Surréalisme au
Service de la Rnvlution, nv’ 3,1931.
R eim presso por A m o
Press. O DEMART TRO ARTE BV/DACS,
lx>ndres, 1993.
OBJETOS DO DESEJO 221

199. Salv ad o r Dali,Banlieue dc ia ville paranoiaquc-critique; apres-midi sur ia lisicrc de ihistoire européenne (Subúrbio
da cidade crítico-paranóica; tarde nos arredores da história européia), 1936, óleo sobre p a in e l 46 x 6 6 cm . Coleção
privada. Foto: C hristie's C olou r Library. © dacs, Londres, 1993.

dade original. Para Dali, "as im agens paranóicas são devidas ao delírio de interpretação"
(A d es, D ali, p. 124). Elas podiam tam bém p roliferar-se infinitam ente: " O fenôm eno
p aran óico", escreveu Dali, são "im agens com uns tendo um a dupla figuração; a figuração
pode ser teórica e praticam ente m u ltip licad a" (A des, p. 126).
D ali desenvolveu seu próprio "m étod o crítico-p aran óico" em pintura. Seu quadro
S u bú rbio da cidade crítico-paranóica [199] lem bra as im agens d c de C hirico d a m enina
solitária correndo em ruas vazias [182). A idéia da cidade com o um sítio arqueológico de
so n h o s e m em órias, assim com o o inconsciente, constituía um interesse constante para
os su rrealistas, com o já vim os. Em vez de em p regar im agens de Paris, Dali utilizava
v istas panorâm icas d e cidades espanholas, o s subúrbios no título francês referem -se a
áreas m arginalizadas e rem otas da Europa. As ligações entre as form as são sugeridas pela
sem elhança entre os detalhes - as uvas, os crânios e a estátua equestre, por exem plo - ou
nos pad rões das nuvens qu e ficam sobre o arco d e pedra. U m a "co la g em " d e im agens
d ísp ares é utilizada, na qual a figura de um a m u lher é sim bolicam ente sobreposta a uma
paisagem suburbana - ou, melhor, a um a série de locais e vistas d escon eclad as com o
a paisagem do inconsciente.

Objetos do desejo
A E x p o s iç ã o d c O b je t o s S u r r e a lis t a s , 1 9 3 6

Em 1936, ano em que pintou Subúrbio da cidade critia>-paraiwica, Dali participou de uma
Exposição d c O bjetos Surrealistas prom ovida pela G alerie C harles Ratton em Paris. Com
base n a fotografia de um a instalação da exposição (200) é possível obter um a idéia da
v a rie d a d e su rrealista - assim com o o tipo de ap a ra to u tilizad o, cu jo s m ostru ários de
vidro sugeriam um m useu etnográfico. M áscaras prim itivas (no alto, à esquerda) eram
justapostas a trabalhos de Picasso (relevo) e a objetos surrealistas, tais com o Bola suspensa
de A lberto C iacom etti (canto inferior esquerdo e figura 201); os ready-m ades de Marcei
222 SURREALISMO. MITO E PSICANÁLISE

200. Instalação na Exposição de Objetos Surrealistas, Galerie Charles Ratlon, 1936. Reproduzido
por cortesia da Galerie Charles Ratton «.* Guy I.adrière, Paris.

201. Alberto Giacometti, Houlr


$u$ltàulue (8vla suspensa), Le
Surreatisme nu Service de In Rmolution,
nu 3,1931. Reimpresso por Amo Press.
© ADAt.r, Paris e DACS, Londres, 1993.
OBJETOS DO DESEJO 223

202. M arcei D ucham p, Why not


sneeze Rro$e Sclitvy? (Por que não
espirrar Rrose Sélavy?), ready-
made, 1921, blocos d e mármore
em forma d e cubos d e açúcar,
term ôm etro, ossos d e m olusco e
m adeira contidos em uma
pequena gaiola, 11 x 22 x 16 cm.
Philadelphia Museutm o f Art;
Coleção Louise e W alter
A rensberg 50.134.75.
€> ADAGP, Paris e DACS,
Londres, 1993.

Ducham p [202] eram expostos ao lado de objetos surrealistas tais com o Objeto: desjejum em
pele [157] d e M eret O ppenheim . O s "objetos m atem áticos" [203] d o Instituto Poincaré de
Paris foram também incluídos. Com o itens d e "lógica", esses objetos eram conceituai mente,
digam os assim, invertidos, com o se para reafirm ar o argum ento de Koger CaiUois em seu
artigo "Sp éd fication de Ia p oésie" de que o desejo surrealista de levar a realidade ao
descrédito só podia ser entendido se visto com o oposição à visão dom inante e conside­
rando-se que o Surrealism o valorizou tudo o que o industrial e o racional tentaram supri­
mir (p. 31). A questão era desestabilizar as divisões e categorias estabelecidas, em vez de
prom over aquelas absolutas e universais. A inclusão d e "objetos m atem áticos" visava
sugerir que a oposição racionalista entre objetos científicos e poéticos era dispensável.
"O s objetos qu e fazem parte da exposição surrealista de m aio de 1936", escreveu Bre-
lon cm "A crise do ob jeto", " s ã o d e um tipo calculado principalm enle para despertar o

203. M an Ray, estu d o de um


"ob jeto m atem ático ", c. 1936,
fotografia. C oleção privada.
Paris. © ADAGP, P aris e DACS,
Londres, 1993.
224 SURREALISMO, MITO E PSICANÁLISE

proibido, qu e resulta da cslu p id ifican te proliferação de objetos qu e violam nossos sen ti­
dos a cada dia e tentam nos persuadir de que tudo o que possa existir independentem ente
desses objetos m undanos deve se r ilu sório" (p. 279). Isto é, as reações habituais eram
colocadas em crise e as d efinições costum eiras eram questionadas com base na m udança
de papel q u e esses objetos h av iam sofrido. O s objetos com prados prontos eram d esvia­
d os d e su as funções habituais e recebiam um a assinatura; o s objetos en contrados per­
m itiam interpretações que eram d iferen tes de suas origin ais; os objetos su rrealistas fre-
qü entem ente agrupavam ob jetos fam iliares dispostos de um m odo não familiar. Essas
redescrições resultaram de um p rocesso de "p ertu rb ação e d eform ação" (p. 280).
E le m e n to s d ís p a re s são r e u n id o s em O b jeto : d es je ju m em p e le |1?7| d e M eret
O ppenheim , que trabalha com a disju n ção entre "xícara, pires e co lh er" e "p ele ". O m ate­
rial não com bina com o objeto; é um a pele particularm ente áspera, exatam ente o oposto
da superfície lisa e brilhante da louça e talheres. O título esten d e essa incongruência
visual e tátil à m etáfora "d esjeju m em p ele". As conotações de "p ele " e "xícara, pires e
colher" são postas em conflito. M as, ao m esm o tempo, são levadas a relacionar-se, no sen­
tido de que o objeto do dia-a-dia é visto em seu aspecto sexual, por m eio da conotação da
pele, um dos sím bolos sexuais d iscu tid os por Freud. A conotação sexual da pele, para
Freud, era (com o o veludo) "a fixação da visão dos pêlos púbicos, que deveria ser segui­
da pela tão desejada visão do sexo fem in in o" (Freud, "Fetich ism o", p. 354). Um m aterial
específico pode assum ir um sign ificad o sexual por associação em um determ inado con­
texto. Ainda que os surrealistas às vezes recorressem à teoria de Freud do sim bolism o dos
sonhos, um a parte im portante de seu trabalho era o fato de terem esses sím bolos a capa­
cidade de ser am bíguos, de m udar e de variar - para alterar seu significado de acordo com
o contexto. Em outro m om ento, p o r exem plo, Freud enfatiza a natureza bissexual de sím ­
bolos que desafiavam as polaridades sim ples, q u e não eram nem exclusivam ente "m ascu ­
lin o s" nem "fem in in o s". Em seu en saio "F etich ism o ", ele enfatizou a idéia d e "u m a
fixação d a visão" de um objeto. U m olhar, im provável de ser lem brado conscientem ente,
poderá ser repetido e tom ar-se um a fixação. O objeto da fixação é sem pre em certa m edi­
da um a escolha aleatória, ou a o m en os não segue conscientem ente padrões racionais. O
fetichismo, nesse sentido, está relacionado tanto com olhar para um objeto específico com o
com olhar para o próprio objeto do desejo. A lguns objetos perm item ser fetichizados m ais
facilm ente do que outros, m as em geral qualquer coisa é passível de ser fetichizada.

Fu n ções sim b ó lica s

A Bola suspensa de G iacom ctti [201], de 1930-31, foi reproduzida em Le Surréalisnje au Ser­
vice de la Révolution em 1931 junto com o artigo de Dali, "O bjetos surrealistas"; a versão em
m adeira dessa peca havia sido com prada por Breton. Dali descreve com o a bola de m adei­
ra suspensa por um a corda de violin o é "m arcad a por um a cavidade fem inina" qu e se
m ove sobre a aresta da forma crescente ("O bjets surréalistes", p. 17). Essa foi a primeira vez
qu e G iacom ctti incluiu urna parte m óvel em su as esculturas, as qu ais denom inou "o b je­
tos m óveis e m u d os" em um artig o que se seguia ao de Dali no m esm o núm ero da revis­
ta (pp. 18-9). Dali incluiu a escu ltura de G iacom ctti em seu s "objetos com um a função
sim bólica". Novam ente, a função sim bólica dos objetos era basicam ente sexual, e derivava
d os "fan tasm as e rep resentações" do inconsciente. O utros objetos incluídos por Dali
eram de Breton, G ala Éluard [20*1], V alentine H ugo [205] e dele próprio [206], Seu trabalho
O bjetos escatológicos funcionando sim bolicam ente, de 1931, era um a com posição de objetos
deslocados de seu contexto habitual para funcionar de um m odo incom um . Incluía um
sapato, um a xícara de leite m om o, pasta com cor de excrem ento, um torrão de açúcar
suspenso em um a roldana e pintado com a pequena im agem de um sapato, pêlo púbico e
um a pequena fotografia erótica. Para Dali, o objeto surrealista era a encarnação do desejo:
A encarnação desses desejos, se u s m eios d e objetificação pela substituição e pola m etáfora e
suas expressões sim bólicas constituem o processo típico de pertvrsidadf sexual, o que é de todas
as form as sim ilar ao processo de criação poética. (Dali, "Objets surréalistes", p. 16)
OBJETOS DO DESEJO 225

204. Gala Éluard, objeto,


Le Surréalisme au Service
de la Rérolution, ri-' 3,1931.
Reimpresso por Amo Press.
© D a c s , Londres, 1993.

205. Valentine 1 lugo, objeto, Le Surréalisme au Service 206. Salvador Dali, objeto, Le Surrcalisme au Service de
cie ia Révolution, nu 3,1931. Reimpresso por Amo Press. Ia Révolution. n® 3,1931. Reimpresso por .Amo Press.
© dacs, Londres, 1993. © demart pro arte bv/dacs, l^ondres, 1993.
226 SIJRRF At.ISMO. MITO E PSICANÁLISE

207. Joan Mirei, Objeto poético,


1936, m ontagem : papagaio
em p alhado em um poleiro
d e m adeira, meia d e soda
om palhada com liga d e veludo
o sapato de boneca de papel
suspensos em uma estrutura
do m adeira cavada, chapéu-coco,
bola do cortiça pendurada, peixe
de celulóide e mapa im presso,
81 x 30 x 26 cm. A cervo, The
M uscum of M od em A rt, Nova
York; doação d e Sr. e Sra. Pierre
M atisso. aoaci\ P aris e dacs ,
Londres, 1993.

A substituição ora um m ecanism o característico d o fetichism o, e a m etáfora era vista


com o o seu equ ivalente lingu ístico. O objeto com o um todo, portanto, m ais do q u e ape­
nas os objetos individuais nele incluídos, poderia ser visto com o um a série de su bsti­
tuições para o desejo e com o parte d e um objeto ritualístico que se tornava, quando deslo­
cado, o foco obsessivo daqueles desejos.
M iró tam bém constru iu tra b a lh o s a partir de um a v aried ad e de o b jeto s en co n tra ­
d os, com o em seu O bjeto p oético d e 1936 [207|, no qual um p ap ag aio em p alh ad o c
um a m eia de seda estão en tre os o b je to s co locad os sobre um ch ap éu -coco. E lem en tos
incoeren tes são com b in ad os em u m "e n co n tro a o a c a so ", para usar um a frase d e Lau-
tréam ont. D e m od o m ais indireto, a idéia do objeto de arte total com o um objeto de feti-
ch ização p od e s c r v isto em O bjeto com grelha (208J, d e M iró. A qui, os ob jeto s "en co n -
OBJFTOSIX) DESEJO 227

208. Jo a n Miró,Objet avecgrilU'


(Objeto com grelho), 1931, óleo
sobre m adeira preso em uma
malha de arame,
36 x 2 6 cm. C oleção de 1 lenriet
G om es. © AIMCJP, Paris e DACS,
Londres, 1993.

Irados" não são coisas com o sap atos ou to rrões de açúcar, m as m ateriais c su ca ta s que
continham elos p róprios associações. F o rm as fálicas am bígu as são pin tad as em um
pequeno ped aço de m adeira, pendurado num a tela de aram e que servia tam bém com o
um a m old u ra alternativa. Em ou tras ocasiõ es, M iró em pregou am ian to e o u tro s m ate­
ria is em o b je to s com p ostos, p reten d en d o q u e fossem o lh a d o s da m esm a m aneira
obsessiva, co m o fetiches.
Para os surrealistas, a idéia do objeto co m o fetiche podia variar de exem plos de arte
africana e da O ceania, que eles colecionavam e exibiam , a objetos "en con trad os", incluin­
do o objeto d e arte em si - qu alqu er objeto, de fato, no qual seus olhares d e desejo
escolhessem s e fixar. Isso não quer dizer que o apelo d o fetiche estava n o fato d e ser uma
categoria universal, transcendente, m as que residia nos tipos de m ecanism os e processos
que estavam com binados na idéia d e fetiche. Ma concepção d e Freud, o fetiche é sem pre
o substituto d e algum a outra coisa, e em term os surrealistas é um objeto obsessivo. Mas
devem os ter em mente a questão apontada anteriorm ente, ou seja, de que a visão do obje­
to, o processo d e fixação, é tam bém responsável por eleger um objeto e não ou tro com o
fetiche. Um objeto ou imagem podem ser usados repetidam ente para m ostrar esse aspec­
to obsessivo ou , igualm ente significativo, a ên fase pode estar no ângulo do olhar.
228 SURREALISMO, MITO E PSICANÁLISE

209. M an Ray, Sem títu lo, 1933, fotografia. Coleção


Rosabianca S k ira. € ADAGP, Paris e DACS, Londres,
1993.

210- M an Ray, Sem titu lo, 1933, fotografia. Coleção


Rosabianca S k ira. € ADAGP, Paris e DaCS, Londres,
1993.

Fotog rafia e fetich ism o


A id éia d o o lh ar oblíquo, que é ao m esm o tem po obsessivo e isola a im ag em de seu con ­
texto fam iliar, foi característico na fotografia surrealista. A s séries d e fotog rafias de
chapéus |209, 210| foram produzidas por M an Ray para acom panhar o artig o "Sob re um
certo au tom atism o do g o sto ", de T ristan Tzara, em um núm ero da M inotaure em 1933.
Esse artig o tratava d a m oda con tem p orân ea de chapéus fem ininos de feltro do tipo
"diplom ata" e outros estilos, que copiavam a m oda m asculina m as cuja fenda no topo era
vista com o um a m etáfora para os órgãos gen itais fem ininos. D e fato, para Freud o
chapéu era um sím bolo obscuro, cap az de ter tanto um a significação m asculina com o
fem inina, e essa am bigü idad e foi exp lorad a por M an Ray. A s fotog rafias focalizam o
chapéu m ais em relação a sua form a do qu e com o um acessório ou um com plem en to da
cabeça, e o ângu lo da câm era in clin a a form a para prod u zir a m etáfora, atribu in d o
assim um a conotação sexual a um o b je to do vestuário de uso d iário .1
Enquanto Breton, em N adja, foi atraíd o pelos recantos antiquados, q u a se obsoletos,
de Paris, M an Ray acom panha o a rtig o de Tzara en con tran d o m etáforas de diferenças
sexu ais presentes na m oda do d ia-a-d ia e m esm o nos estilos m ais elegan tes. Tzara pare­
ce ter adotad o m uitos d os p ontos-chave do en saio "F em in ilid ad e" de Freud, publicado
no com eço de 1933, e os aplicou às consu m idoras de m oda. O en saio prin cipiava com
um a citação do poeta H einrich H eine:
Cabeças cm hieroglíficos bonés
Cabeças em turbantes e barretes negros,
Cabeças cm perucas e milhares de outras
Miseráveis, suadas cabeças de humanos ...

Para Freud (p. 577), H eine era um d o s poetas que "quebravam a cabeça contra o enigma
da fem inilidade". F., em seu ensaio para a M inotaure, Tzara parece ter aproveitado a ev o­
cação de Freud a respeito dessa con ju n ção entre chapéus, cabeças e o inconsciente. Isso
pode ser considerado um a cadeia m etoním ica, que se m ove por associação ou parece

Ver o discussão do R. Kr.iuss sobro ossos fotos em Krauss o Livingxton, LA w ourfou, p. 95. Também mc refi­
ro neste capítulo ã sua discussão sobre o fetichismo o a fotografia surrealista.
OBJETOS DO DESEJO 229

deslizar de um dom ínio adjacente para outro. N as fotografias de M an Ray, há algo exces­
sivo na atenção desproporcional dedicada a um a p arte e no m odo pelo qual os objetos são
focalizados em ângulo, revelando a form a m etaforizada d os genitais fem ininos. É com o se
o ângulo d a câm era reproduzisse a fixação do o lh a r no chapéu, escondendo o rosto e sim ­
bolicam ente evocando o corpo feminino sem nem naesmo m ostrá-lo. A capacidade da foto­
grafia para focalizar um ângulo incom um , ou um a parte do todo, de desconectar o objeto
de outros q u e o cercam e assim dedicar-lhe um a aten ção excessiva, torna esse m eio parti­
cularm ente suscetível ao processo do fetichism o, e capaz de expressá-lo.
A s fotografias de Boiffard para o texto de Bataille " O dedão d o p é" [211,212] também
su bstitu em a parte pelo todo, o dedo representa o pé e recebe, m ais um a vez, o m esm o
tratamento- com pulsivo. A s fotog rafias cham am a aten ção para a idéia do olhar oblíquo
qu e é in trínseco ao processo fetichista. Entretanto, em vez d e olhar para o elegan te ou o
urbano, as fotografias de Boifíard focalizam um d ed o d o pé com o um a protuberáncia
quase in su p ortável ao olhar, com seu ob sessivo p ê lo e as rugas na pele. Para Bataille, "o
dedão do p é é a parte m ais hum ana do corp o" porque, com o ele afirm a, o dedo do pé
h u m an o é a parte q u e m enos se assem elh a às co rresp o n d en tes em ou tro s anim ais.
Assim , ele com eça o artigo com um a idéia qu e é o op osto do sublim e: ele distin gu e os
h om en s d o s ou tros anim ais som ente para afirm ar qu e o dedo do pé era a quintessência
do corp o hum ano, pois o pé cn con tra-se "n a su je ira ". A inversão de Bataille da cabeça
para o pé, d o alto para baixo, corresponde às suas idéias de "b a ix ez a " que apontei antes.
A preocupação com o olhar oblíquo na fotografia não era, oertamente, confinada ao Sur­
realismo. A preocupação com o ângulo da câm era, com o um a das propriedades específi­
cas do processo fotográfico, era com partilhada por fotógrafos tais com o o construtivista
A leksandr Rodchenko, que estava atuante na Rússia na mesma época, ou 1ús/ló Moholy-

211. jaeques-André Boiffard, fotografia, em C. Bataille, 212. Jacques-André Boiffard, fotografia, em G. Bataille,
"L c Crus orteil" ("O dedão do pé"). Documente, nJ 6, "Le Gros orteil" ("O dedão do pé"). Documenta, nü 6,
1929. Coleção privada. © dacs, Londres, 1993. 1929. Muscc National d' Art Moderne, Centre Georgos
Pompidou, Paris. (Ddai \ Londres, 1993.
230 SURRKAt.ISMO, MIT() I |*S1CA\ÃL!SE

213. Brassai, Sem título, 1933, fotografia. Coleção Rosabianca Skira. © aimc.i-, Paris e dacs,
Londres, 1993.

Nagy na Alemanha, c m uitos outros. Seu com prom etim ento era basicam ente com a pró­
pria linguagem da fotografia, que devia encontrar novas form as para representar as novas
realidades políticas e sociais. N o Surrealism o, a n oção de Breton de dépaysem ent, ou
estranham ento, pode ser com parada à idéia de "desfam iliarização" de Viktor Shklovsky.
A diferença crucial no Surrealism o era que a sexualidade e o desejo eram fundam entais no
processo do desvio da realidade. Para Brassai, por exem plo, em sua série de nus 1213], o
foco t^tã no dorso de um corpo, fotografado de um m odo que torna am bíguas as catego­
rias de “m asculino" e "fem in in o", com um corpo de m ulher representado com o uma
forma fálica. E as propriedades particulares da fotografia (por exem plo, o uso do close-up
e o ângulo da câm era) parecem quase im itar o processo do fetichism o.
O “fetichism o" é fundam ental não som ente na linguagem d c Freud, mas tam bém na
de M arx. A inda que os significados sejam diferentes, o con ju n to de idéias em torno do
"fetich ism o" e do "fetichism o d a m ercad oria" (com o o term o ap arece em M arx) é inte­
ressante sob a luz da tentativa surrealista de juntar as idéias d e M arx e Freud. Para
am bos, há uma preocupação central com o encobrim ento d o significado, com a necessi­
dade de ir além da aparência para desvendar o s m ecanism os profun d os em funciona­
mento. A inda que os surrealistas não tivessem usado especificam ente o conceito de feti­
chism o da mercadoria no seu com prom etim ento com o m arxism o e com as políticas revo­
lucionárias, há aspectos em su a abordagem do objeto que são relevantes. Foi Benjam in,
escrevendo em 1930, que desenvolveu a noção m arxista de fetichism o da m ercadoria e
aplicou-a â prática cultural so b o capitalism o, csp ed a lm en tc em suas análises do fenô­
m eno do flâ n c u r do sécu lo xix, q u e vim os anteriorm ente neste capítulo.
Para Marx, as mercadorias eram coisas que tinham um valor de troca e que eram tro­
cadas no mundo por dinheiro. O "fetichism o da m ercadoria" descrevia o valor ritualísti-
co que é atribuído a esses bens por causa de seu valor d e troca, ou m onetário. Para Marx
era um term o pejorativo, indicando que, sob o capitalism o, o valor é dado às coisas e não
às pessoas. N esse contexto, o v alo r de uso real dos bens fica obscurecido, e todas as mer­
cadorias atuam simbolicamente com o “hieróglifos sociais" (O capital, p. 47). Para Marx, esse
investim ento excessivo das coisas com s tatus de m ercadoria se estende para a vida social
em geral. Para os surrealistas, o objeto-de-arte-com o-fcliche tendia a reificar o desejo - con-
MUSA/ARTISTA 231

v o rtcn d oo num objeto ritual de troca, com o qualquer outra mercadoria - por m eio do pro­
cesso de deslocam ento. N o íetiche, o social c o psíquico poderíam se encontrar.
Em seu ensaio "A crise d o objeto", escrito p ara acom panhar a exposição de 1936, Bre-
ton nào d iscu te as idéias d e M arx e Freud exp licitam en te, m as em vez d isso qu estion a a
relação entre a rte e ciência e as fronteiras h a b itu a is en tre elas. Ele se refere, d e um lado,
ao m odo pelo q u al "o s sistem as m ais bem o rg an izad os - incluind o os sistem as sociais
pareciam ter-se petrificado nas m ãos de seus d e fen so res" (p. 277) e, de outro, à n ecessi­
dade do Su rrealism o de engajar-se no "su rra cio n a lism o " (p. 276), d e agarrar-se às " p o s ­
sibilidades latentes" do objeto (p. 279). Ele esperava, desde o m anifesto de 1924, que o tra­
tam ento surrealista do objeto "acarretasse n ecessariam en te a depreciação daqu eles o b je­
tos de utilidade aceita, freqüentcm ente de m odo d úbio, que atravancam o assim cham ado
m undo real". A tentativa de rom per com o "ra cio n a lism o precon ceitu oso" por m eio do
objeto surrealista poderia ser vista até m esm o com o um questionam ento acerca de on d e
- se n ão no o b jeto m anufaturado com o em blem a su p rem o da m odernização - o fetichis-
m o m il da cu ltu ra m oderna se localiza.111 C on tu d o, para Bataille, nào se tratava da q u e s­
tão de apenas redefinir e rcatribu ir o uso e o v a lo r sim bólico d os objetos, m as de q u e a
força total do fetiche era precisam ente o que estava faltando no Surrealism o. Sem referên­
cia específica à visão de Breton d o objeto su rrealista que, im agino, B ataille con sid era­
va um a im itação excessiva d os processos in con scien tes, sem um a id en tificação su fi­
ciente entre e le s - , Bataille, em sua crítica do Su rrealism o "T h e M odcrn Sp irit and the
Play o í T ransp osition s", escreveu: "E u d esafio q u alq u er aficion ad o da pintura a a m a r
um a tela da m esm a m aneira que um fetichista am a um sap ato".

Musa/artistn
G radiva

A G radiva [214] de A nd ré M asson foi pintada em 1939. Estava entre um a série de p in tu ­


ras sobre o tem a da m etam orfose qu e ele prod uziu no final d os anos 30. Esses trabalhos
eram m uito m ais explícitos n o uso d as im agens d o qu e as pinturas de "a reia " in iciais de
M asson [216], n as qu ais ele considerava que a su gestão de uma im agem ou de um a fig u ­
ra resultava da técnica autom atista utilizada, m as não qu e determ inasse essa técnica. Na
verdade, M asson - segu nd o o próprio Breton ("Su rrealism and P ain tin g ", L i R éw lu tio n
Surréaliste, n° 9/10, p. 43) - sem pre fora "d escren te da arte" e da técnica conven cional de
pintura a óleo, preferindo o desenho, ou a areia, ou ou tras alternativas. M as ele havia
retom ad o à técnica da pintura em 1930, num a ép oca em q u e m uitos su rrealistas - ainda
que en v olv id os em fazer objetos - estavam tam bém produzindo pinturas. íi quase com o
se esse tipo de diversidade, encorajada e p raticad a dentro do Surrealism o, pudesse p e r­
m itir q u e M asson retornasse à técnica do óleo.
M asson foi um dos surrealistas que rom peram com Breton na crise de 1929 e u niram -
se a Bataille. E le foi o responsável pelas gravuras o rig in ais d e L 'H isloirede Vaeil de B atail­
le em 1928, e su a série de desenhos sobre m assacre e m utilação 1215], que foi reprodu/i-
da no primeiro núm ero da M inotaure, era fortem ente ligada ao tipo d e tem as violentos que
interessavam a Bataille. Por volta do final d os anos 30, entretanto, Masson e Breton fize­
ram as pazes, e Breton escreveu um artigo intitulad o "L e Prestige d 'A n d ré M asson", q u e
apareceu na M inotaure em 1939, sobre o tem a das pinturas da metamorfose. N um contexto
de guerra, sua frase do abertura foi: "H um fato execrável que a arte na França, no com eço
de 1939, pareça estar preocupada principalm ente com escond er a náusea do m undo sob
um tapete de flo res". Enquanto outros artistas sim plesm ente falharam em tratar "d essa
sensação trágica de horror da ép o ca", M asson, ele argum enta, surgiu "triu n fan tem en te"
por m eio do con traste de "seu sentim ento de in qu ietação" e sua disposição para correr
riscos. Por m eio do erotism o, que deve, segundo Breton, ser considerado a "ch av e" d c seu

1T. (in m tx T jí produ/m um trabalho interessante sobre essa qticstào cm seu texto "Speakinc volumes: tln- Pnvil-
lon dc L'l.sj>nt Nouzvilu", apresentado na Association oí Art Historians' Conference, Londres, 1991.
232 SURREALISMO, MITO E PSICANÁLISE

214. André Masson, Gradiva, 1939, óleo sobre tela, 97 x 130 cm. Coleção privada. Foto: cortesia
da Galcrie Louisc l.eiris. <£>DAC5, Londres, 1993.

215. André Masson, Massacres, 1928,


Minotaure, n - 1,1933. Rei mpresso
por Amo Press com a permissão
de Albert Skira. iw s , Londres,
1993.
MUSA/ARTISTA 233

216. André Masson, Figura, 1926*27, óleo e areia sobre tela, 46 x 27 cm. Acervo,
The Museum of Modem Art, Nova York; doação de William R.ibin. @ i»acs,
Londres, 1993.
234 SURREALISMO, MITO K PSICANÁLISE

217. Raoul Ubac, Mnnncquin


(Mum-ijuim), 1037
i w m
(fotografia do manequim de Masson).
Calcrie Adrien Maeght, Paris.
COi )a<s, I ondres, 1993.

trabalho, M asson adquiriu "u m estado geral de em briagu ez". E, tecnicam ente, ele o
alcançou "p o r m etáforas plásticas em seu estado puro, o que para mim significa uma
metáfora literalmente ininterpretável". Brvton viu o exem plo perfeito disso no m anequim
exibido por Masson na Exposição Internacional Surrealista de janeiro de 1938, com "u m a
mordaça verde e um am or-perfeito no lugar da boca" [217].
A "m etáfora" significava aqui um estado de ambiguidade, a idéia de que a justaposição
de "d u as realidades mais ou menos distantes"12 provocaria um choque, uma colisão de ter­
mos, em vez de sua resolução. F a força da metáfora, para o Surrealismo, era que ela envol­
via um deslocamento dos padrões convencionais de interpretação. Isso foi o que atraiu Bre-
ton no trabalho inicial de Masson, quando este reconheceu o valor introduzido nos tra­
balhos de Picasso e de Braque com a inserção de recortes de jornais ("Surrealism and Pain-
ting", La R éivlution Surréalislc, n° 4, p. 29). F.ra a essa condição de am bigüidade e pertur­
bação que a técnica automatista inicial d c Masson, assim com o a de Miro, havia induzido.
N os anos 30, o trabalho de Masson tinha perdido um pouco desse estado de am bigüi­
dade inicial, repleto de nuanças, em favor de uma consciência m ais explícita e im agísti-
ca da metáfora - a despeito do fato d e que Breton, nas circunstâncias, tenha visto Masson
com o um artista preocupado com as "lacu n as" na consciência contem porânea e que per­
sonificava o "perfeito acordo entre o artista e o revolucionário". E a violência requerida
do artista para corresponder às necessidades de uma época recaía, sim bolicam ente, sobre
o corpo da m ulher com o retratado na pintura Cradtva (214J, d e Masson. Num espaço fra­
turado, cubista, M asson retrata uma figura feminina que é m etade carne e m etade está­
tua. Uma m etade da m ulher dividida é a figura feminina vestida à moda clássica, evoca­
tiva dos nus monumentais de Picasso dos anos 20 [64], e a outra metade são vísceras espar­
ram ando-se sobre o pedestal clássico quebrado no qual ela se recosta. O "in terior" do
corpo-estátua é colocado no centro da pintura, e o corpo, virado na direção do observa­
dor, revelando uma vagina aberta - em vez d e reclinar-se no m odo habitual, com o a linha

: Piem* Reverdv usou essa frase na Norii-Sud em março de l‘MS <>loi citado por ftrelon no "Manifesto of Snr-
realism", 1924, j>. 20
MUSA/ARTISTA 235

superior sugere qu e deveria ser. Num certo sentido, a im agem nega as figuras fem ininas
calm as e feitas estátuas das representações anteriores. Entretanto, o fato de que uma
im agem tão abertam ente sexualizada e violada, com o essa da figura reclinada, devesse
significar a "violência" de uma época tam bém mostra o corpo feminino tratado com o um
terreno adequado para a desfiguração e a dizim ação metafórica.
Atrair a atenção para o imaginário "dilacerado pela guerra" de M asson seria com eçar
do ponto em que a im agem da "G ra d iv a " dos anos 30 term inava csfacclad â c devas­
tada. M as, com o C hadw ick argum entou, d e 1930 em diante a figura m ítica de G radiva
foi representada com o a m usa ideal e a inspiração para os poetas e artistas surrealistas.11
Dali disse de G ala Éluard, a m ulher com quem ele viria a se casar: "ela é G radiva, a
m ulher que avança. Ela é, de acordo com Paul Éluard, 'a m ulher cujo olhar perfura
m u ros'". O ensaio de Breton d e 1937, intitulad o novam ente "G ra d iv a ", concentra-se no
m esm o tem a da m etam orfose, da vida para a morte, d o inconsciente para a consciência
- com base na idéia da transição d e u m a coisa para outra, de um estad o para outro, ou
seja, a condição da m etáfora que preocupava o Surrealism o.
O nom e "G rad iv a" vem de G radiva: uma fan tasia potnpeiana, um a história do escritor
germ ânico W ilhelm Jensen, publicada em 1903. O s surrealistas provavelm ente teriam
ignorado essa história se não fosse o estu d o de Freud sobre ela, "D elírios e sonhos na
'G rad iva' de Jen sen ", publicado em 1907 m as só tradu zido para o francês em 1931,
quando foi lido por Breton. O rom ance de Jensen é a história de um jovem arqueólogo,
H anold, que st* apaixona por um relevo clássico que vê pela prim eira vez num m useu de
antiguidades em Roma [218J. Ele consegue um m odelo cm gesso desse relevo, ao qual dá
o nom e de Gradiva, ou "a jovem que a v a n ça ", e o pendura no seu escritório. C ativado
pelo andar gracioso da figura que cam inha em seu vestido longo, ele se convence de que
ela seria encontrada cm Pom péia. N esse estad o de "d e lírio ", ele acredita ter encontrado
G radiva em Pompéia, passeando calm am ente com seu andar característico "sem que ele
tivesse suspeitado disso, vivendo co m o sua contem porânea" (citado em Preud, "D elu -
sion s and D ream s in Jen sen 's 'G ra d iv a '", p. 38). A contece que a m ulher q u e ele encon­
tra era Zt>e, sua am ada de infância, que, parecendo aceitar totalm ente seu delírio, na ver­
dade alua no sentido d e realizar sua cura.
O interesse de Freud na narrativa estav a no conteúdo latente em butido na "teia do
delírio" (p. 62), e ele buscou revelar a repressão existente por trás disso. A tarefa do jovem
arqueólogo é transform ar um am or enganoso por um relevo de pedra em am or pela
m ulher que ele conhecera na infância; foi esse am or que ele havia reprim ido antes e que
havia sido soterrado com o delírio. A tarefa é tornar o am or por um a m usa em am or por
uma mulher, qu e é participante ativa n a vida. Para Freud, foi significativo o falo de ser
essa m ulher uma m édica, capaz de efetivar a cura do jovem ao em pregar, em su as con­
versas com ele, o m esm o sim bolism o presente em seus sonhos,

a equiparação de repressão e soterramento, de Pompéia e infância. Portanto, em suas conversas


ela é capaz, de, por um lado, permanecer no papel para o qual o delírio de Hanold a escolhe­
ra e, por outro, entrar em contato com as circunstâncias reais e despertar a compreensão
delas no inconsciente de Hanold. (Freud, "Delusions and Dreams in Jensen's 'Gradiva"', p 108)

Freud estabelece uma analogia entre a escavação e o próprio processo d e análise, uma
escavação sob a superfície. Pom péia, com o um a cidade antiga que havia sido soterrada
e então recuperada pela escavação arqueológica, era uma m etáfora para a repressão
psíquica e a recuperação do m aterial inconsciente pola psicanálise. O interesse dos su r­
realistas pelas análises de Freud deve estar, a essa altura, bastante claro - desejos repri­
m idos, o papel dos sonhos, os m ecanism os do inconsciente, a dupla personagem G ra­
diva/ Z oe e o estado precário d e am biguidade entre a musa e a m ulher "re a l". Freud fri­
sou tam bém que a arte (na forma d o rom ance dc? Jensen) c a ciência podiam, ao m esm o

r Nessa parte, referi-me a discussão de Whifney Chadwick sobre a constmção surrealista du mulher, em
Woiiicn Artfcts ittui íhr SttrMilisl Movnnml.
236 SURREALISMO, MITO F. PSICANÂI ISF

218. Reprodução em gesso


do "Gradiva", comprada
por Sigmund Freud no Museu
do Vaticano em 1901. Freud
Museum, Londres.

tem po, revelar processos inconscientes e esclarecer o funcionam ento do inconsciente, um


ponto q u e Breton havia enfatizad o cm seu en saio "C rise de l'o b jc t" e na E xposição de
O b jetos Su rrealistas na G alerie C h arles Ratton.
Em 1937, q u and o os surrealistas abriram sua própria galeria, cujo d iretor era Breton,
eles a cham aram d e "G ra d iv a " [219]. Situ ad a na R u c d c Seine, estam p av a em sua porta
d e vid ro silh u etas d e um a figura m ascu lina e ou tra fem inina, d esen h ad as por M arcei
D ucham p. Breton p arece ter ab erto a galeria p rin cip alm en te porqu e precisava incre­
m en tar seus recursos. O cartaz qu e an u n ciav a a sua abertura dizia:
MUSA/ARTISTA 237

219. A Galeria Surrealista, "G ndiva",


1937, em A. Breton, La C lé des champs.
Paris, Editions du Sagittaire, 1953.

Gradiva. Esse titulo, emprestado do trabalho maravilhoso de Jensen, significa, acima de tudo:
"Ela que avança". O que pode ser "Ela que avança" senão a beleza do amanha ... ?
(Citado em Ades, Dada and Surrealism Rrvicuxd, p. 324)

C) "p a sso adiante" da figura do G radiva na gravura antiga foi tratado com o u m a m etáfo­
ra para a a rte "a v a n ça d a ", o m ov im en to progressista d a v an gu ard a surrealista. N ova­
m ente, en con tram os um a rev ersão calcu lad a dos m od elos d e m od ern id ad e correntes:
um relevo antigo d e um a figura fem in in a cam in h an d o é ad o tad o co m o um sím bolo d e
av an ço cultural, em o p o sição à s fo rm as con tem p orân eas d e m od ern id ad e tais com o o s
trajes m ascu linos m od ern os u sad os por Le C orb u sier n o com eço d os a n o s 20; o p o sto
tam bém à p redom inância d as m etáfo ras d o "en g e n h eiro " e d o "c o n s tru to r"; em o p o ­
sição tam bém ao "en g en h eiro d e a lm a s h u m an as" d e A nd rei Z hdanov, o papel para o
artista praticante d o realism o socialista q u e Breton e os ou tros con sid eraram pernicioso.
D esse m odo, G radiva p od ería p erso n ificar vários asp ecto s d o p rojeto surrealista - a
p reocu p ação com a lib eração d o inconsciente, idéias d e m etáfora e d e m etam orfose,
n oções d e vangu ard ism o e o tem a da m u lh er com o a m usa d o a rtista (rem in iscen te d o
papel d e Nadja para Breton, "E u sou a alm a que v a g a ": N adja, p. 82). Sem dú vid a, um
nom e bastante ap ro p riad o p ara u m a g aleria surrealista.

Frida K ah lo
A b aixo d o nom e "G ra d iv a ", na fach ad a da galeria, aparecia um a serie d e nom es de
m ulheres som ente o s pronom es, G isòle, Rosine, Alice, Dora, Inès e Violette precedidos
pela palavra conime ("c o m o "). C om o notou C hadw ick, os n om es eram daquelas m ulhe­
res qu e ou estavam ligadas ao Surrealism o - tais com o a fotógrafa Dora M aar [220], a pin­
tora e poeta Alice Paalen [221] e G isòle 1’rassinos - ou eram celebradas pelo grupo. A que­
las celebradas incluíam V iolette N ozières, qu e havia sid o condenada à m orto em 1933 por
en v en en ar seus pais - um a "an ti-h ero ín a", com o a definiu C h ad w ick (W om en Artists and
tlie Surrcalist M ovement, p. 43), na m esm a linha das irm ãs Papin ou da anarquista Germ aine
Berton. Essa com binação, da figura m ítica d e G radiva com o s n om es d e algu m as m ulhe­
res ligadas ao Surrealism o, sugere algo da distinção problem ática n o Surrealism o en tre a
m ulher co m o m usa e a m ulher com o artista. Ao m esm o tem p o q u e celebra a fusão da
m usa com a mulher, o m ito d e G radiva tam bém aponta um problem a não resolvido pelo
Su rrealism o - m u dar da m u lher com o m usa para a idéia da própria m ulher com o uma
artista. A m ulher com o m u sa, com o anti-heroína, com o artista, convivia desconfartavel-
m ente n o Surrealism o, porém ocu p an d o um a posição central.
D u rante os anos 30, m u itas artistas o poetas asso ciaran vo c ao gru p o surrealista;
tam bém nesse p eríodo, Breton e o u tro s centraram su a id éia de m ulher m usa m fe n w te -
238 SURREALISMO, MITO E PSICANÁLISE

220. Dora Maar, / e Simulateur


(O simulador), 1"936, fotografia.
Musée National d'Art Modeme,
Centre Ccorges Pompidou,
Paris.

a ifa n t, a m ulher-criança, que era vista com o m uito m ais próxim a do inconsciente do que
os hom ens. Prassinos, que foi adotad a pelos surrealistas, tinha apenas catorze anos
quando seus prim eiros contos foram publicados (Chadw ick, p. 46). Envolvida com im a­
gens c sím bolos infantis, ela representava am bas, a musa e a artista. Esse duplo papel foi
im posto a outras artistas ligad as ao Surrealism o, tais com o O p pcnhcim , nos exem plos

221. Alice Paalen (tiéc Rahon),


Lc Sonrirc de Ia mort (O sorriso
da morte), 1939, guache, 20 x 26 cm.
Coleção de M. Louis Felipe dei Vai Io
Pricto, México. Aí»u (u J.
M lISA /ARTISTA 139

222. I.oonora C arrington, Auto-rvtrato: "A iAulvrgcdu Clitval d'Aubc", 1936-37, óleo sobre tela, 63 x SI cm .
C oleção privada. Foto: cortesia de Pierre M atissc G allcry C orporation.

q u e a p r e s e n te i n o c o m e ç o d e s te c a p ítu lo . T am b ém p a r e c e te r in flu e n c ia d o o tr a b a lh o d o
L e o n o r a C a r r in g to n , u m a e s c r ito r a o a r tis ta in g le s a q u e f o i p a ra P a r is e m 1 9 3 0 .0
rctralo d e C a r r in g to n |222] é u m e x e m p lo d e u m a e s p é c ie d e S u r r e a lis m o fa n tá s tic o , c o m
u m a p r e fe r ê n c ia p e lo im a g in á r io d o tip o in fa n til, q u e é m a r c a d a m e n t e d if e r e n te d o tr a ­
b a lh o d e O p p e n h e im . C a r r in g to n r e tr a to u -s e n u m interior» c o m u m c a v a lin h o d e b a la n ç o
s u s p e n s o n o e s p a ç o p r o d u z in d o u m a s o m b r a n a p a a x i e c c o m u m a c r ia tu r a fa n tá s tic a a
s e u s p é s ; u m c a v a lo m á g ic o p o d e s e r v is to n u m a p a is a g e m q u a s e e té r e a a d is tâ n c ia . O
o b je to d e O p p e n h e im Minlta tmw-scca [2 2 3 J, p o r o u tr o la d o , u s o u a m e m ó r ia d a in fâ n c ia
d e m o d o d ife r e n te . E la a fir m o u q u e o tr a b a lh o fo i f e ito c o m o v in g a n ç a a u m a b a b .i q u e
h a v ia a ta d o s e u s p é s q u a n d o e ra c r ia n ç a , m a s re c u s a a s c o n o ta ç õ e s in fa n tis s u g e r id a s p o r
C a r r in g to n e m fa v o r d e o b je t o s n ã o fa m ilia r e s , d e s lo c a d o s , e s e u c a r á te r fe tic h is ta . O s
s a p a to s , a m a r r a d o s c o m o u m a g a lin h a p a r a ir a o fo rn o , s ã o s e r v id o s s o b r e u m a b a n d e ja
d e p ra ta . C o m o o o b je t o d e 1 lu g o [2 0 5 ), e m q u e a m ã o c o m lu v a d e u m m a n e q u im é
e n v o lv id a e m u m a re d e , M itilia am a-nxa p a r e c e tr a b a lh a r c o m a e s tr u tu r a d o fe tic h is m o
e s u g e r e q u e o fe tic h e e n v o lv e a lg u m a fo rm a d e a r m a d ilh a .
E m v e z d e f a z e r u m le v a n t a m e n t o d o s tr a b a lh o s d e a r t is t a s lig a d a s a o S u r r e a lis m o ,
v o u c o n c e n t r a r -m e a q u i n a o b r a d a a r tis ta m e x ic a n a F r id a K a h lo . E la fo i c e le b r a d a p o r
B re to n c u ja a v a lia ç ã o s o b re o tra b a lh o d e K a h lo e x a m in a r e i a q u i, p o is e le e s c la re c e a lg u ­
m a s d e s s a s a tit u d e s c o n f lit a n t e s e n v o lv id a s n a m u d a n ç a d e " m u s a " p a ra " a r t i s t a " .
240 SURREALISMO, MITO lí PSICANÁLISE

223. Meret Oppenheim, Ma Gouvernante (Minha ama-seca). 1936, sapatos de salto brancos com enfeites de papel,
apresentados em uma bandeja oval, 14 x 21 x 33 cm. Mocema Museet, Estocolmo. Foto: Statens Konstmuseer.
© d a i s , I-ondres, 1993.

Q uando Breton foi para o M éxico em 1938, ele visitou Leon Trotsky (o líder bolch evique
exilado por Stalin), D iego Kivera e outros. K ahlo era casada com Rivera, e Trotsky era
hóspede d o casal. Breton publicou n.i M itiotaure, em 1939, um longo estudo sobre o
México, a lula revolucionária que ocorria lá e a obra de Rivera. Seu arligo sobre K ahlo foi
o único ensaio sobre um a artista publicado em seu livro Surrealistn and Painting de 1945,
que incluía o ensaio original do título assim com o outros ensaios sobre pintores surrea­
listas em particular. Q u and o retornou do M éxico, ele incluiu o trabalho de K ahlo num a
exposição que organizou na G alerie Picrre Colle, cham ada sim plesm ente M exique (1939).
Breton foi para o M éxico, com o observaram Laura M ulvey c P eter VVollen, "co m o se
fosse para um a terra de son h o s" (Frula Kahlo and !'ina M odotti, p. 7). Ele com eçava seu
ensaio sobre K ahlo com um a descrição do efeito que o país teve sobre ele: "H á um país
or.de o coração do m undo se abre, aliviado d o sen tim en to opressivo de que a natureza
por toda a parte é m onótona e n ão -em p reen d ed o ra... [um país q u e é separado] das leis
econôm icas d a socied ad e m oderna que a tudo en v o lv em " (Breton, "F rid a K ahlo de
Rivera", p. 141). N o entanto, a despeito de sua im pressão d e "im ag en s fragm entadas
ar-ancadas do tesouro da in fân cia", o M éxico deixou -o con scien te de certas lacunas, do
que ele não tinha conhecim en to, com o as "esta tu e ta s de C o lim a " - feitas de terra, a
evidência de uma cultura que ele ignorava. E, por fim, até aquele m om ento ele desconhe­
cera Frida K ahlo, qu e se parecia com "aqu elas estatu etas em su a postura". Ela era para
MUSA /ARTISTA 241

224. Frida Kahlo, Auto-retrato


dedicado a Lcon Trotski, 1927, óleo
sobre tela, 76 x 61 cm. National
Nluseum of YVomen in the Arts,
Washington; doação de Hon.
Clare Boothe Luce. Reproduzido
com a permissão do Instituto
Nacional de Bellas Artes * v
Literatura.

Breton com o um a estatueta; era tam bém a esposa daquele "g ran d e lu tad or", Rivera, cuja
força d erivava d a "en can tad ora p erson alid ad e" dessa m ulher (p. 143).
Esse era o cenário no qual Breton conheceu o trabalho de Kahlo, um cenário que tinha
seus ecos no m ito de G radiva. Ele escreve que desde m uito tem po adm irava o auto-retra­
to de K ahlo pendurado nas p aax ies d o estúdio de Trotskv 1224]: "E la se retratou com um
xalc adornado com b orboletas dou radas, e é exatam ente n esse traje qu e ela abre as cor­
tinas m en tais". Esse é o ponto em qu e, na avaliação de Breton, K ahlo com o m usa c
Kahlo com o artista se fundem m ais claram ente, em que um a m u lh er "d otad a d e todos
os talentos da sed u ção" é tam bém um a artista "situada delicadam ente naquele ponto de
interseção entre a lin h a política (filosófica) e a linha a rtística" (p. 144).
Breton estava im pressionado com o fato de o trabalho de Kahlo ter desabrochado em
"pura su rrealid ad e", em bora ela nao tivesse estabelecido nenhum con tato com o grupo
surrealista na França, e não tivesse conhecim en to p rév io de seu s qu estion am en tos.
Ainda que ela fosse fiel à tradição m exicana, Breton viu um a ligação en tre o seu trabalho
e o Surrealism o. Um a pintura qu e ela estava prestes a terminar, O qu e a água m e deu [225],
surpreendeu Breton em particular. Pareceu-lhe (p. 144) ilustrar perfeitam ente um a frase
d e Nadja: "E u sou a idéia do banho num aposento som esp elh o s". Essa pintura, tam bém
reproduzida no ú ltim o nú m ero de M inotaure, inclui im agens d erivad as de pinturas
anteriores d e Kahlo, qu e em ergem da água com o m em ória e sonho. É um a esp écie de
242 SURREALISMO. MITO E PSICANÁLISE

225. Frid a Kahlo, Lo que el agua tnc ha dado (O que a agua me deu), 1938, ó leo sobre tela, 97 x 76 cm . Cofoçáo
privada. Foto: clmixat. Reproduzida com a perm issão do Instituto N acional de Bellas A rtes y Literatura.
MUSA/ARTISTA 243

au to-retrato, m as d o tipo q u e inverte as con ven ções habituais de retrato ao pintar não a
cabeça, m as a m etad e in ferior do corpo sob a superfície da água, sobrep osta por referên­
cias sim b ólicas à fam ília, a o nascim ento, à sexu alid ad e e à m orte.
P osto qu e Breton tenha su blinhad o qu e o trabalh o de K ahlo estava "p erfeitam en te
situ ad o no tem po e e sp a ço ", ele tam bém nào viu arte m ais "exclu siv am en te fem in in a";
isto é , nenhum a era m ais cap az d e representar o "o u tr o " do in con scien te m asculino o ci­
dental, d c representar o lado fem inino de todos os seres hum anos. Essa com binação signi­
ficava qu e " a arte de Erida K ahlo é um a fita de cetim em torno de um a b o m b a". Foi nas
m argens de seu trabalho, en tã o - n o fem inino, no m exicano, n o n d if—, q u e Breton viu as
qu alidad es liberadoras do inconsciente qu e de tod o m odo reforçavam a sen sação de alte-
ridad e. O M éxico, com o P om p éia, poderia rev elar o que hav ia sid o rep rim id o na socie­
dad e m oderna ocidental. P od eria revelar tanto a força psíqu ica com o revolucionária,
valorizan d o em ve/, d e q u estio n ar - a sua m arginalidade.

226. Frida Kahlo, Mis abados, viis padres y yo (drbol g a n a lógico) (Meus m ós, meus pais c eu Iarvore genealógica]),
1936, óleo e têmpera sobre painel de metal, 31 x 35 cm. Acervo, The Museum of Modem Art, Nova York;
doação de Allan Roos, MDe B. Mathieu Roos. Reproduzido com a permissão do Instituto Nacional de Bellas
Artes y Literatura.
244 SURREALISMO. MITO F PSICAXAl ISF

227. Frida Kahlo, Hospital Hemy Ford, 1932, óleo sobre meto], 3 0 x 3 8 cm. C oleção D olores
O lm edo, C idade do M éxico. Foto: o m d i a i *. Reproduzida com a perm issão do Instituto
N acional de Bellas A rtes y Literatura.

A inda que não tivesse passado por um treinam ento form al, Kahlo não era um a artis­
ta "n a iv e ". Ela usava, com o Brcton notou, trad ições especifica m ente m exicanas, e as
em pregava com conhecim ento c sofisticação; ela recorria a várias convenções, da tradição
religiosa m exicana e de im agens populares a dicionários m édicos. M eus avós, m eus pais e
eu (árvore genealógica) [226], por exem plo, sobrepõe a form a esquem ática de um a árvore
genealógica do im aginário popular a um a paisagem , incluindo um auto-retrato seu com o
um a criança ainda não nascida, na forma de um feto ilustrado num livro de m edicina.
O trabalho de Kahlo representa o ou tro lado da luta d e Rivera. Enquanto ele estava
com prom etido com um a form a politicam ente engajada de pintura m ural do realism o
social cm am pla escala, a dela era um a pintura de pequena escala e não-heróica. Kahlo
retratou a si m esm a na m aioria de suas pinturas, não com o objeto do olhar, mas tendo o
corpo com o um terreno de sofrim ento e dor. As pinturas se relacionam m uito intim am ente
com sua própria experiência, as inúm eras operações em sua espinha dorsal gravem ente
ferida, sua incapacidade de gerar filhos. M as, com o outros surrealistas, K ahlo lidou com
a fantasia, não unicam ente com o um a experiência pessoal, m as tam bém com o um tipo de
m itologia bastante carregada com as convenções das diferentes form as d e representação.
Em H ospital H n iry Ford [227], a paisagem industrial é registrada num a escala pequena, no
horizonte, com parada com o tratam ento heróico de Rivera de tem as industriais, com o seus
m urais de Detroit [229, 230]. V ários em blem as são retratados cm tom o da cam a - frag­
m entos de órgãos do corpo, um a estatueta ritualística, um a peça m ecânica. N ão é som en­
te, portanto, o tem a incom um que interessa no trabalho de Kahlo, m as a form a pela qual
ela mistura form as de representação para sugerir um cenário conflitante de m itos em tom o
de sua própria fem inilidade. C ertam ente, a idéia d e desm em bram ento e desfiguração.
ORIGENS, NOVAMFNJT 245

representados nas pinturas de Kahlo d o corpo feminino, é m uito diferente do tipo de desfi­
guração que interessava a M asson na figura 214. Nenhum dos dois representa o corpo
fem inino unificado, m as o s m odos pelos qu ais os fragm entos são usados por cada um
m ostra com o a esfera do fem inino pode ser contestada.

Origens, novamente
A ssim com o Freud colecionava objetos, com o o m odelo em gesso d e "G ra d iv a ", Lacan
tam bém o fez. Um d os objetos da coleção de Lacan, um a estatu eta de um a prostituta de
um tem plo romano, foi reproduzido por Bataille em seu livro Erotism o. E sobre a escri­
vaninha do escritório de Lacan, depois da Segunda G uerra M undial foi pendurada uma
pintura de M asson qu e traçava as form as esqu em áticas d e outra pintura, com o um
m apa (sim ilar, ralvez, à interpretação esquem ática de Bataille sobre O jo g o hígu bre de
Dali). O u tra pintura escond ia-se em baixo dela, numa caixa engenhosa feita por M asson.
Era a conhecida A origem d o m undo d e C ourbet, que estivera desaparecida por m uitos
anos - um quadro de uma figura fem inina com as pernas abertas, cortada n o torso e reve­
lando a genitália fem inina.14 H avia um m ecanism o secreto que abria a caixa, com o um
qu ebra-cabeça. Esse cenário, su gestivo no seu processo d u al de escon d er o revelar e no
corpo fem inino com o u m foco de desejo e m edo ao m esm o tem po, evoca as origens ed i-
p ian as da pintura m oderna, em que as im agens do passado oferecem um tipo de pré-
nistória do inconsciente m oderno. Poderiam os, finalm ente, p en sar sobre as im plicações
de um a pintura, um a pintura abstrata, que recebeu um traçad o sobre ela e ao m esm o
tem po escond e uma ou tra pintura, pod end o representar "a s origens do m u ndo" numa
fantasia de diferença sexual.
Fin alizo exam inand o b revem ente um a pintura próxim a das origens do Su rrealism o
em m eados dos anos 20. M iro pintou O nascim ento d o m undo [228j em 1925, um ano
depois do primeiro m anifesto de Breton. A tela rem ete às circunstâncias nas qu ais o Su r­
realism o em ergiu, o período da Reconstrução após a Primeira G uerra M undial. N aqueles
anos longínquos, era a sond agem das profundezas sob a superfície das coisas, aparen­
tem ente organizadas, que parecia m ais prom issora do qu e o devastador senso d e m or­
talidade que vam os encontrar m ais tarde, por exem plo, n a G radiva de M asson. E foram
as circunstâncias históricas da gu erra, por fim , que levaram Breton a aceitar o tipo de
violência envolvido na versão de M asson do "p asso ad ian te" da G radiva, um a cruelda­
de sublim inar que M asson, com o Bataille, havia percebido há m uito com o apenas super-
ficialm ente encoberta pela "civ ilização ".
C ontudo, a ela de M iró O nascim ento do m undo não retrata, com o fizera a im agem de
C ourbet, o corpo fem inino. Longe de confrontar o observador com um im aginário explí­
cito, ela c feita de m arcas abstratas - um círculo aqui, um a form a geom étrica ali, algum as
linhas pontuando um a su p erfície m anchada com uma cam ada fina d e tinta escura. Ela
não esconde, com o o trabalho de M asson no estúdio de Lacan, outra pintura, que fosse
m uito m ais explícita com o um a fantasia erótica m asculina. C ertam ente aqui, no tra ­
balho de Miró, cevem os adm itir que a am biguidade e a obscuridade sejam possivelm ente
um a cond ição da pintura, qu e não pod e ser "v ista através" para chegar a um a im agem
m ais fixa e reconhecível. C ontudo, a cena no estúdio de Lacan parece-m e de fato reite­
rar um a das questões surgidas n este capítulo a questão d as origens sim bólicas da pin ­
tura m oderna r a diferença sexual. M as essas origens não podem ser encon trad as em
outra parte, em um a interpretação m ais clara, m ais lúcida ou m esm o m ais violenta de
"o u tra " p in tu ra real ou im aginária.
A ilu stração228 era um a das "pinturas-sonho" de M iró de m eados d os anos 20, rara­
m ente expostas porém conhecid as pelos surrealistas. Seu título foi d ad o por Breton ou

“ Ver a observação Unda Nochlin em S. Faunce e L. Niochlin Courbet Reconsidrrrd, pp. 176-8, e a referên­
cia de Tam.ir G arba essa pintura no capítulo 3 de F. Frasoinn t) ai., Mtxlernidade e M odernismo. São Paulo.
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24 b SURREALISMO, MIIOI-: PSICANÁLISE

228. Joan Miró, Li Naissanct du monde (O nascimento do mundo), 1925, óleo sobre tela, 251 x 200 cm. Acervo,
The Museum of Modem Art, Nova York; adquirido através de fundo anônimo, do Sr. e Sra. Joscph Slifka
e Armand G. Erpf Funds, e pela doação do artista. €> ad/vcp, Paris c dacs, Londres, 1993.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 247

Élu ard (M iró, em en trevista posterior, n ão lem b rava quem , m as que ach ara o título
ap ro p riad o ). Essa en orm e tela foi possivelm en te u m dos trabalhos que lev aram B reton
a v er M iró co m o "talv e z o m ais surrealista de todos n ó s". E ra tam bém u m a d as p in tu ­
ras que estav a p en d u rad a no ateliê de M iró (que era vizinho ao de M asson, n u m edifí­
cio na Rue Blom et) qu ando Bataille foi apresen tad o ao círculo surrealista. Bataille, com o
já vim os, escrevia p o r m etáforas, e q u an d o d escrev eu alg u m as d as últim as p in tu ras de
M iró, definiu a sua superfície co m o u m couvercle, ou tam p a, que v e d a v a "u m a caixa de
su rp resas". N o entanto, não se tra ta v a ap en as de um a "ta m p a " que p u d esse sim ples­
m en te ser retirad a p ara revelar o que se escond ia p o r baixo, já que a força do trabalho de
M iró, p ara Bataille, residia no m o d o pelo qual a superfície pin tad a era "d e co m p o sta ",
ca racterizad a pelas tadíes inform es ("m a rca s sem fo rm a s") (Bataille, "Jo a n M iró: peintu-
res recen tes", p. 399).
Esse p rocesso de d eco m p o sição vai co n tra o princípio d as categ o rias fixas e m ina a
idéia de que tu d o p o d e ser red u zid o a u m a p o larid ad e estreita entre o "m a scu lin o " e o
"fem inino". A diferença sexual é estabelecida n u m cam po de representação em constante
m u d an ça.
Se o b serv arm o s co m o M iró pintou O n asám en to do m undo, p o d em o s v e r que ele
co m eço u pelas m an ch as e scu ras de tinta sobre a tela, que d eixo u esco rrer e às quais
sobrepôs u m a série de sím bolos e m arcas p retas e de cores vivas. M iró h avia original­
m en te coberto a tela com cola, à qual as cam ad as posteriores de tinta ad eriram de form a
desigual, d eixan d o u m a im p ressão de m an ch as e pontos. A s figu ras geo m étricas da
linha, do círculo, do triângulo são delib erad am en te d esen h ad as a m ã o livre; a p recisão
geo m étrica é p aro d iad a nas irreg u larid ad es de linhas ou b o rd as e p o sta em relação com
as m ão s de tinta d isform es que p reen ch em o resto da tela. A fusão d as form as sim bóli­
cas é d eixad a n u m estad o de susp en são, no qual alg u m as form as são revelad as, o u tras
encob ertas pelos em aran h ad o s e b o rrões e quase ap ag ad as. O que v e m à luz é freqüen-
tem ente obscu recid o no processo.

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