You are on page 1of 6

PONTO 2 – Letramento e multiletramentos: práticas e ensino de

língua portuguesa

O termo “letramento” surgiu entre os especialistas das áreas da


Educação e das Ciências Linguísticas na metade da década de 80, pouco mais
de três décadas atrás. Palavras do mesmo campo semântico de “letramento”
eram comuns nos dicionários, como “analfabeto”, “analfabetismo”, “alfabetizar”
etc., mas, ao mesmo tempo em que as palavras “letrado” e “iletrado” apareciam
no dicionário, “letramento” não era registrada.
No Brasil, convivemos com o analfabetismo desde que éramos colônia
até os dias atuais – quase 12 milhões de brasileiros com 15 anos ou mais ainda
são analfabetos (IBGE, 2016) –, logo, esse problema nos é familiar, e a ele
relacionamos várias palavras de nossa língua. Foi somente após começarmos
a avançar diante desse problema e o número de pessoas que sabem ler e
escrever aumentar, tornando-nos uma sociedade grafocêntrica, que um novo
fenômeno se evidenciou: ler e escrever não é o suficiente. As pessoas se
alfabetizam, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da
escrita às suas vidas, não adquirem competência para usar a leitura e a escrita,
para envolver-se com as práticas sociais: não leem, não escrevem, não
procuram informações etc.
E, já que novas palavras são criadas, ou a velhas atribuímos novos
sentidos, quando emergem novas ideias e fatos que precisam ser nomeados,
surgiu o termo “letramento”: inicialmente, significando “escrita” e sendo
classificada como uma palavra antiga. Já sua nova versão surgiu sendo
relacionada ao termo em inglês “literacy”, que significa o estado ou condição
que assume aquele que aprende a ler e a escrever, conforme Soares (2000).
Uma pessoa letrada é aquela que, além de saber ler e escrever, faz uso
frequente e competente da leitura e da escrita. Se tornar uma pessoa letrada,
mesmo que não interfira, necessariamente, em alterações na classe ou nível
social, muda o lugar social da pessoa, seu modo de viver na sociedade, sua
inserção na cultura. Alguns estudos já mostraram, inclusive, que o letrado fala
de forma diferente do iletrado e do analfabeto – evidenciando que o convívio
com a língua escrita teve como consequências mudanças no uso oral da língua,
nas estruturas e também no vocabulário.
Mas essa relação entre letramento, leitura e escrita não se dá de maneira
pacífica, principalmente devido às distinções entre esses dois processos: o de
ler e o de escrever. As definições de letramento frequentemente tomam ambos
como uma mesma e única habilidade, desconsiderando suas peculiaridades e
dessemelhanças – embora os dois sejam complementares para o letramento.
A leitura é um processo de relacionar símbolos escritos a unidades de som e é
também o processo de construir uma interpretação de textos escritos. Já as
habilidades de escrita estendem-se da habilidade de registrar unidades de som
até a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor
potencial.
Ambos, ler e escrever, são conjuntos de habilidades, comportamentos e
conhecimentos que compõem um longo e complexo continuum. Portanto, há
diferentes níveis e tipos de letramento, dependendo das necessidades, das
demandas do indivíduo e de seu meio, do contexto social e cultural etc. Logo,
não é possível dissociar o nível de letramento de grupos sociais e suas
condições sociais, culturais e econômicas. Por isso, é preciso que haja
condições para o letramento, é preciso considerá-lo dentro de sua dimensão
social.
Sob essa perspectiva, o letramento não é pura e simplesmente um
conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à
leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social. A
necessidade do letramento em nossa vida cotidiana é bastante clara: no
emprego, passeando pela cidade, fazendo compras, todos encontramos
situações que requerem o uso da leitura ou a produção de símbolos escritos.
Não é necessário apresentar justificativas para insistir que as escolas são
obrigadas a desenvolver nas crianças as habilidades de letramento que as
tornarão aptas a responder a estas demandas sociais cotidianas. E os
programas de educação básica também têm a obrigação de desenvolver nos
adultos as competências que devem ter para manter seus empregos ou obter
outros melhores, receber treinamento e os benefícios a que têm direito, e
assumir suas responsabilidades cívicas e políticas.
Segundo Soares (2000), a perspectiva apresentada acima sobre o
letramento é uma perspectiva liberal, progressista, “fraca”, pois são habilidades
necessárias para “funcionar” adequadamente em práticas sociais nas quais a
leitura e a escrita são exigidas. Mas há uma outra abordagem em torno do
letramento: a radical, “revolucionária”, “forte”. Aqui, letramento não é
considerado um instrumento neutro a ser usado nas práticas sociais quando
exigido, mas é essencialmente um conjunto de práticas socialmente
construídas que envolvem a leitura e a escrita, geralmente por processos
sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores,
tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais.
Um dos primeiros educadores a realçar esse poder “revolucionário” do
letramento foi Paulo Freire, ao afirmar que ser alfabetizado é tornar-se capaz
de usar a leitura e a escrita como um meio de tomar consciência da realidade
e, assim, transformá-la. Ele concebe ao letramento o papel da “libertação” ou
da “domesticação” do ser humano, dependendo do contexto ideológico em que
ocorre, e alerta para a sua natureza inerentemente política, defendendo que
seu principal objetivo deveria ser o de promover a mudança social.
Resumidamente, os conceitos de letramento fundamentam-se ou em seu
valor para o efetivo funcionamento da sociedade ou em seu poder
“revolucionário”. Portanto, é impossível formular um conceito único de
letramento adequado a todas as pessoas, por isso que alguns autores
defendem que é mais adequado referir-se a letramentos, no plural. Além disso,
seus diferentes conceitos variam, inclusive, conforme as necessidades e
condições sociais específicas de determinado momento histórico e de
determinado estágio de desenvolvimento.
Caminhando no sentido oposto tanto da perspectiva “liberal” quanto da
“revolucionária”, ainda agora, no século XXI, a escola – a pública e a privada –
parece estar ensinando mais regras, normas e obediência a padrões
linguísticos do que o uso flexível e relacional de conceitos, a interpretação
crítica e posicionada sobre fatos e opiniões, a capacidade de defender posições
e de protagonizar soluções, apesar de a Lei de Diretrizes e Bases já ter mais
de vinte anos e pouca coisa ter mudado.
A prática docente no ensino fundamental e médio permanece assim: o
texto literário como o modelo padrão; a ideia de que o estudante deve ser
guiado, e não incentivado ao aprendizado; a avaliação centrada em correção
gramatical, muito embora se trabalhe geralmente com a concepção de texto; e
a utilização de mecanismos textuais na forma de regras pré-estabelecidas etc.
Contudo, os estudos em torno dos letramentos no século XXI têm
defendido a escola como um espaço de letramentos múltiplos e diferenciados,
cotidianos e institucionais, locais e globais, vernaculares e autônomos, sempre
em contato e em conflito, alguns rejeitados e apagados, outros constantemente
enfatizados. Afinal, um dos objetivos da escola é possibilitar que seus alunos
possam participar de várias práticas sociais nas quais se utilizem a leitura e a
escrita, de maneira ética, crítica e democrática. Assim, é preciso que a
educação linguística leve em conta os multiletramentos ou letramentos
múltiplos – seguindo uma trajetória diferente da apontada como mais recorrente
ainda hoje.
Os multiletramentos são interativos e, mais que isso, colaborativos, pois
dependem de nossas ações enquanto humanos usuários; e eles são híbridos,
fronteiriços e mestiços de linguagens, modos, mídias e culturas. Como aponta
Canclini (2008), pares antitéticos (cultura erudita/cultura popular,
central/marginal, canônica/de massa) já não se sustentam mais. Eles deram
lugar ao híbrido, às misturas. Ainda conforme o autor, a produção atual se
caracteriza por um processo de desterritorialização, de hibridação que permite
que cada pessoa possa fazer “sua própria coleção”, sobretudo a partir de novas
tecnologias.
Além disso, a cultura de massa da globalização é padronizada,
monofônica, homogênea e pasteurizada. Por isso se tornam tão importantes
hoje as maneiras de incrementar, na escola e fora dela, os letramentos críticos,
capazes de lidar com os textos e discursos naturalizados, neutralizados, de
maneira a perceber seus valores, suas intenções, suas estratégias, seus efeitos
de sentido. Assim, o texto já não pode mais ser visto fora da abrangência dos
discursos, das ideologias e das significações, como tanto a escola quanto as
teorias se habituaram a fazer. A escola deve formar cidadãos flexíveis,
democráticos e protagonistas, que sejam multiculturais em sua cultura e
poliglotas em sua língua.
Portanto, os letramentos tornam-se multiletramentos, e trabalhar com
eles pode ou não envolver (normalmente envolverá) o uso de novas tecnologias
de comunicação e de informação (novos letramentos), mas caracteriza-se
como um trabalho que parte das culturas de referência do alunado (popular,
local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos, para
buscar um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático de textos/discursos
que ampliem o repertório cultural, na direção de outros letramentos, valorizados
ou desvalorizados.
A presença dos multiletramentos em sala de aula – por meio de textos
que combinam imagens estáticas (e em movimento) com áudio, cores etc. –
passaram a exigir mais do leitor. Além disso, os Parâmetros Curriculares
Nacionais têm requerido cada vez mais do aluno no que diz respeito às suas
habilidades de leitura e escrita, de fala e de escrita, de gêneros variados
presentes nas mais diversas práticas sociais letradas. Esse leitor passa a ser
visto, na perspectiva bakhtiniana, como “responsivo”, isto é, como alguém que
adota uma postura de compreensão responsiva ativa: ele precisa refletir sobre
o que lê para ter competência para concordar ou discordar (total ou
parcialmente), completar, adaptar, etc., estar pronto para cumprir sua função
protagonista de sujeito que interage e se comunica.
Logo, as práticas de letramento, tais como são desenvolvidas (e talvez
nem o sejam) na escola, não são suficientes para possibilitar aos alunos
participar das várias práticas sociais em que a leitura e a escrita são
demandadas hoje. É necessário que a concepção de sala se ressignifique, na
medida em que deixe de ter como base a transmissão oral e escrita da verdade,
sistematizada pelo(a) professor(a) e pelos textos didáticos (e científicos)
utilizados. As aulas passam a ficar cheia de bricolagens de semioses: do som,
da imagem e da escrita, por meio de textos, fotografias, desenhos, pinturas,
animações, vídeos, jogos etc., cujo trajeto seria definido a partir da lógica
estabelecida e ressignificada pelos alunos e pelos professores. Dessa forma, o
processo de ensino estaria contribuindo para a construção de uma educação
conectada com as necessidades atuais e para a produção de saberes plurais,
coletivos e interativos.
É importante reiterar a pedagogia dos multiletramentos como forma de
democratizar o ensino, que é, sobretudo, um problema político. A educação de
qualidade não pode continuar um privilégio de poucos. É preciso que as
políticas públicas potencializem a qualificação do professorado para que se
possa, de fato, superar a exclusão social e o insucesso escolar por meio de
práticas que considerem o imbricamento entre a cultura valorizada, a cultura
periférica e os letramentos locais e globais dos alunos, como geradores de
sentidos e de aprendizagens.
Como conclusão, podemos dizer que trabalhar com a leitura e a escrita
na escola hoje é muito mais que trabalhar com a alfabetização ou os
alfabetismos: é trabalhar com letramentos múltiplos, com as leituras múltiplas –
a leitura na vida e a leitura na escola. E, independentemente das escolhas que
o professor tomar, é preciso estar ciente de que nenhuma escolha é neutra,
pois o tempo escolar que é dedicado a um objeto de ensino não o será a outro:
cada escolha presentifica uma dentre outras. Mas nada na educação é neutro
e a tarefa deve ser justamente a de fazer escolhas e encaminhamentos
conscientes.

Referências

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2000.

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. 2009.

ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo. Multiletramentos na escola. 2012.

You might also like