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COLONIALIDADE

O lado mais escuro da modernidade*


Walter D. Mignolo
Duke University, Durham, NC, EUA. E-mail: wmignolo@duke.edu.

Tradução de Marco Oliveira


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro – RJ, Brasil. E-mail: marco.alexandre@live.com.

DOI 10.17666/329402/2017

Fiquei intrigado, alguns anos atrás (por volta de blicado no Cultural Studies, intitulou-se “Coloniality
1991), quando vi na estante de “novidades” em uma and modernity/rationality” (Quijano, 2007). Peguei
livraria de Ann Arbor (Estados Unidos) o título do o livro, fui tomar outro café e devorei o ensaio, cuja
livro mais recente de Stephen Toulmin: Cosmopolis: leitura foi uma espécie de epifania. Na época, eu es-
the hidden agenda of modernity (1990). Fui tomar um tava terminando meu livro The darker side of the Re-
café no outro lado da rua e devorei o livro junto com naissance (1995), mas não incorporei nele o ensaio de
o café. O que seria a pauta oculta da modernidade? – Quijano. Havia muito a se pensar, e meu manuscrito
era a questão intrigante. Logo depois estive em Bogotá já estava amarrado. Assim que o entreguei à editora,
e achei outro livro recém-publicado: Los conquistados: me concentrei na “colonialidade”, que se tornou um
1492 y la población indígena de las Américas, editado conceito central em Local histories/global designs: colo-
por Heraclio Bonilla (1992). O último capítulo desse niality, subaltern knowledge and border thinking (2000)
livro chamou a minha atenção. Era de Anibal Quija- (Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes
no, de quem eu já tinha ouvido falar, mas que não me subalternos e pensamento liminar [Mignolo, 2003]).
era familiar. O ensaio, também posteriormente pu- Para Toulmin, a pauta oculta da modernidade era o
rio humanístico correndo por trás da razão instru-
* Introdução de The darker side of western modernity: glo- mental. Para mim, a pauta oculta (e o lado mais escu-
bal futures, decolonial options (Mignolo, 2011), tradu- ro) da modernidade era a colonialidade. O que segue
zido por Marco Oliveira.
é uma recapitulação do trabalho que tenho feito desde
Artigo recebido em 22/03/2016 então, em colaboração com membros do coletivo mo-
Aprovado em 18/08/2016 dernidade/colonialidade.1
RBCS Vol. 32 n° 94 junho/2017: e329402
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A pauta oculta em outras palavras, é constitutiva da modernida-


de – não há modernidade sem colonialidade. Por
A “colonialidade” é um conceito que foi intro- isso, a expressão comum e contemporânea de “mo-
duzido pelo sociólogo peruano Anibal Quijano, no dernidades globais” implica “colonialidades globais”
final dos anos 1980 e no início dos anos 1990, que no sentido exato de que a MCP é compartilhada e
eu elaborei em Histórias locais/projetos globais e em disputada por muitos contendedores: se não pode
outras publicações posteriores. Desde então, a colo- haver modernidade sem colonialidade, não pode
nialidade foi concebida e explorada por mim como também haver modernidades globais sem colonia-
o lado mais escuro da modernidade. Quijano deu lidades globais. Consequentemente, o pensamento
um novo sentido ao legado do termo colonialismo, e a ação descoloniais surgiram e se desdobraram,
particularmente como foi conceituado durante a do século XVI em diante, como respostas às incli-
Guerra Fria junto com o conceito de “descoloniza- nações opressivas e imperiais dos ideais europeus
ção” (e as lutas pela libertação na África e na Ásia). modernos projetados para o mundo não europeu,
A colonialidade nomeia a lógica subjacente da fun- onde são acionados. No entanto, “a consciência e o
dação e do desdobramento da civilização ocidental conceito de descolonização”, como terceira opção
desde o Renascimento até hoje, da qual colonia- ao capitalismo e ao comunismo, se materializou nas
lismos históricos têm sido uma dimensão cons- conferências de Bandung e dos países não alinha-
tituinte, embora minimizada. O conceito como dos. Esse é o cenário da transformação de um mun-
empregado aqui, e pelo coletivo modernidade/co- do policêntrico e não capitalista antes de 1500 para
lonialidade, não pretende ser um conceito totali- uma ordem mundial monocêntrica e capitalista de
tário, mas um conceito que especifica um projeto 1500 a 2000.
particular: o da ideia da modernidade e do seu lado
constitutivo e mais escuro, a colonialidade, que sur-
giu com a história das invasões europeias de Abya O advento de um monstro de quatro cabeças
Yala, Tawantinsuyu e Anahuac, com a formação das e duas pernas
Américas e do Caribe e o tráfico maciço de africa-
nos escravizados. A “colonialidade” já é um concei- Começarei com dois cenários – um do século
to “descolonial”, e projetos descoloniais podem ser XVI, e o outro do final do século XX e primeira
traçados do século XVI ao século XVIII. E, por úl- década do século XXI.
timo, a “colonialidade” (por exemplo, el patrón co- Primeiro, vamos imaginar o mundo por volta
lonial de poder, a matriz colonial de poder – MCP) de 1500. Era, em resumo, um mundo policêntrico
é assumidamente a resposta específica à globaliza- e não capitalista. Havia diversas civilizações coexis-
ção e ao pensamento linear global, que surgiram tentes, algumas com longas histórias, outras sendo
dentro das histórias e sensibilidades da América do formadas naquela época. Na China, a dinastia Ming
Sul e do Caribe. É um projeto que não pretende se reinava de 1368 a 1644. A China era um centro de
tornar único. Assim, é uma opção particular entre comércio e uma civilização com uma longa histó-
as que aqui chamo de opções descoloniais. Para ser ria. Por volta de 200 a.C., o Huángdinate Chinês
mais direto: o argumento a seguir tem como cerne (muitas vezes chamado erroneamente de “Império
a MCP e, portanto, o argumento é uma entre di- Chinês”) coexistia com o Império Romano. Até
versas opções coloniais em funcionamento. 1500, o antigo Império Romano se tornou o Sacro
A tese básica – no universo específico do discur- Império Romano-Germânico, que ainda coexistia
so tal como foi especificado – é a seguinte: a “mo- com o Huángdinate Chinês governado pela dinas-
dernidade” é uma narrativa complexa, cujo ponto tia Ming. A partir do desmembramento do califado
de origem foi a Europa, uma narrativa que constrói islâmico (formado no século VII e governado pelos
a civilização ocidental ao celebrar as suas conquis- omíadas nos séculos VII e VIII, e pelos abássidas
tas enquanto esconde, ao mesmo tempo, o seu lado do século VIII até o século XIII) no século XIV,
mais escuro, a “colonialidade”. A colonialidade, três sultanatos surgiram: o Sultanato Otomano em
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Anatólia, com o seu centro em Constantinopla, o na pela história da Europa e dos Estados Unidos
Sultanato Safávida em Azerbaijão, com o seu cen- desde 1500, assim como isso não aconteceu na Ín-
tro em Baku e o Sultanato Mogol, formado a par- dia. Pelo contrário, a invasão tem reforçado o dese-
tir das ruínas do Sultanato de Déli, que durou de jo da China por soberania. O pós-nacional é uma
1206 a 1526. Os mogols (cujo primeiro sultão foi expressão ocidental que transmite o sonho do fim
Babur, descendente de Gengis Khan e Timur) se es- das fronteiras do Estado-nação e que abre as portas
tenderam de 1526 a 1707. Até 1520, os moscovitas para o livre-comércio. Entretanto, no mundo não
tinham expulsado a “horda dourada” e Moscou foi europeu, o pós-nacional significa a afirmação de
declarada a “Terceira Roma”. A história do czarato uma identidade que precedia o nascimento do na-
russo começou. Na África, o Reino de Oyo (per- cionalismo na Europa e sua dispersão pelo mundo.
to da atual Nigéria), formado pela nação Iorubá, O nacionalismo é uma das formas de identificação
era o maior reino da África Ocidental encontrado que estão enfrentando as forças homogeneizantes
por exploradores europeus. Os Reinos de Benim e da globalização. A globalização tem dois lados: o da
Oyo eram os dois maiores da África. O Reino de narrativa da modernidade e o da lógica da colonia-
Benim durou de 1440 a 1897, e o de Oyo de 1400 lidade. Essas narrativas engendram respostas dife-
a 1905. Por último, os incas em Tawantinsuyu e os rentes: algumas estão sendo descritas aqui como de-
astecas em Anahuac eram duas civilizações sofisti- socidentalização, e outras como descolonialidade.
cadas até a época da chegada dos espanhóis. O que O pós-nacionalismo no Ocidente significa o fim do
aconteceu, então, no século XVI que iria mudar a nacionalismo, enquanto no mundo não europeu
ordem mundial, transformando-a naquela em que significa o começo de uma nova era na qual o con-
vivemos hoje? O advento da “modernidade” pode- ceito de nacionalismo serve para reivindicar iden-
ria ser uma resposta simples e geral, mas... quando, tidades como base da soberania estatal. A partição
como, onde e por quê? imperial da África entre os países ocidentais no fi-
No segundo cenário, no início do século XXI, nal do século XIX e início do século XX (o que
o mundo está interconectado por um único tipo provocou a Primeira Guerra Mundial) não substi-
de economia (o capitalismo) e distinguido por uma di- tuiu o passado da África pelo passado da Europa
versidade de teorias e práticas políticas.2 A teoria Ocidental. Foi assim, também, na América do Sul:
da dependência deveria ser revista sob a luz dessas 500 anos de regimes coloniais por oficiais penin-
mudanças. No entanto, me limitarei a distinguir sulares e, desde os anos 1900, por elites de criou-
duas orientações gerais: por um lado, a globalização los e mestiços, não apagaram a energia, a força e as
de um tipo de economia conhecido como o capi- memórias do passado indígena (comparemos com
talismo (que, por definição, visava à globalização questões contemporâneas na Bolívia, Equador, Co-
desde o seu início) e a diversificação de políticas lômbia, no sul do México e na Guatemala), assim
globais que estão acontecendo; por outro, estamos como não foram apagadas as histórias e memórias
presenciando a multiplicação e diversificação de das comunidades afrodescendentes no Brasil, na
movimentos, projetos e manifestações contra a glo- Colômbia, no Equador, na Venezuela e no Caribe
balização neoliberal. insular.
Quanto à primeira orientação, China, Índia, Quanto à segunda orientação, estou presen-
Rússia, Irã, Venezuela e a União Sul-Americana ciando muitas organizações transnacionais não
emergente já deixaram claro que não se dispõem a oficiais (em vez de não governamentais) se ma-
seguir ordens unilaterais vindas do Fundo Monetá- nifestando não apenas “contra” o capitalismo e a
rio Internacional (FMI), do Banco Mundial ou da globalização, e questionando a modernidade, mas
Casa Branca. Por trás do Irã há a história da Pérsia e também abrindo horizontes globais, embora não
do Sultanato Safávida, e por trás do Iraque há a his- capitalistas, e se desvinculando da ideia de que há
tória do Sultanato Otomano. Os últimos sessenta uma modernidade única e primária cercada por
anos da entrada ocidental na China (o marxismo e outras periféricas ou alternativas. Embora não ne-
o capitalismo) não substituíram a história da Chi- cessariamente rejeitando a modernidade, essas or-
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ganizações estão deixando claro que a modernidade [...] uma das consequências mais importantes
anda junto com a colonialidade e, portanto, que a da Revolução Gloriosa de 1688... foi o ímpeto
modernidade precisa ser assumida tanto por suas que deu ao princípio do livre comércio... Ha-
glórias quanto por seus crimes. Vamos nos referir a via apenas uma singularidade que diferenciava
esse domínio global como “cosmopolitismo desco- a liberdade acordada no comércio de escravos
lonial” (Mignolo, 2010b). da liberdade acordada em outros comércios: a
O que aconteceu entre esses dois cenários ante- mercadoria envolvida era o homem.
riormente delineados, entre os séculos XVI e XXI? A
historiadora Karen Armstrong – olhando a história Assim, ocultadas por trás da retórica da mo-
do Ocidente pela perspectiva de uma historiadora do dernidade, práticas econômicas dispensavam vidas
Islã – observa dois pontos cruciais. Ela ressalta a sin- humanas, e o conhecimento justificava o racismo e
gularidade das conquistas ocidentais em relação à a inferioridade de vidas humanas, que eram natu-
história conhecida até o século XVI, notando dois ralmente consideradas dispensáveis.
âmbitos salientes: a economia e a epistemologia. Entre os dois cenários descritos acima surgiu a
No âmbito da economia, a autora aponta: “a nova ideia da “modernidade”. Apareceu primeiro como
sociedade da Europa e suas colônias americanas ti- uma colonização dupla, do tempo e do espaço. Es-
nham uma base econômica diferente”, que consistia tou também argumentando que a colonização do
em reinvestir o superávit para aumentar a produção. espaço e do tempo são os dois pilares da civiliza-
A primeira transformação, segundo Armstrong, foi ção ocidental. A colonização do tempo foi criada
consequentemente a mudança radical no domínio pela invenção renascentista da Idade Média, e a
da economia, o que permitia que o Ocidente “repro- colonização do espaço foi criada pela colonização
duzisse os seus recursos indefinidamente” e é geral- e conquista do Novo Mundo (Dagenais, 2004).
mente associada ao colonialismo (2002, p. 142). A No entanto, a modernidade veio junto com a co-
segunda transformação, epistemológica, é geralmen- lonialidade: a América não era uma entidade exis-
te associada ao Renascimento europeu. O epistemo- tente para ser descoberta. Foi inventada, mapeada,
lógico aqui será ampliado para abranger tanto a ciên- apropriada e explorada sob a bandeira da missão
cia enquanto conhecimento como a arte enquanto cristã. Durante o intervalo de tempo entre 1500 e
significado. Armstrong localiza a transformação no 2000, três fases cumulativas (e não sucessivas) da
domínio do conhecimento no século XVI, quando modernidade são discerníveis: a fase ibérica e cató-
os europeus “realizaram uma revolução científica lica, liderada pela Espanha e Portugal (1500-1750,
que lhes deu maior controle sobre o meio ambiente aproximadamente); a fase “coração da Europa” (na
do que antes se havia conseguido” (2002, p. 142). acepção de Hegel), liderada pela Inglaterra, França
Sem dúvida, ela está certa ao destacar a relevância de e Alemanha (1750-1945); e a fase americana esta-
um novo tipo de economia (o capitalismo) e da re- dunidense, liderada pelos Estados Unidos (1945-
volução científica. Ambos cabem dentro do discurso 2000). Desde então, uma nova ordem global co-
progressista e correspondem à retórica celebratória meçou a se desenvolver: um mundo policêntrico e
da modernidade – ou seja, a retórica da salvação e da interconectado pelo mesmo tipo de economia.
novidade, baseada nas conquistas europeias durante Outra versão do que aconteceu entre 1500 e
o Renascimento. 2000 é a de que a grande transformação do século
Há, no entanto, uma dimensão oculta dos XVI no Atlântico – que conectou iniciativas euro-
eventos que aconteciam ao mesmo tempo, tanto no peias, escravizou africanos, desmontou civilizações (a
âmbito da economia como no do conhecimento: a Tawantinsuyu e a Anahuac, e a já decadente Maia) e
dispensabilidade (ou descartabilidade) da vida hu- envolveu o genocídio em Ayiti (que Colombo havia
mana, e da vida em geral, desde a Revolução Indus- batizado de Hispaniola em 1492) – foi a emergên-
trial até o século XXI. O intelectual e político afro- cia de uma estrutura de controle e administração de
-trindadense Eric Williams (1944, p. 32) descreveu autoridade, economia, subjetividade e normas e re-
sucintamente essa situação ao notar que lações de gênero e sexo, que eram conduzidas pelos
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europeus (atlânticos) ocidentais (a península ibérica, bel I contra a brutalidade dos espanhóis no Novo
Holanda, França e Inglaterra) tanto nos seus confli- Mundo, que ficaram conhecidas como a “lenda
tos internos como na sua exploração do trabalho e negra”) (Greer, Mignolo e Quilligan, 2007). Essas
expropriação de terras.3 Ottobah Cugoano (1787) foram as condições que induziram a emergência de
retratou vividamente esse cenário, no final do século uma matriz colonial de poder (MCP).
XVIII, quando descreveu a organização imperial do
comércio de escravos inscrita na emergência da eco-
nomia triangular do Atlântico: A formação e as transformações do “patrón
colonial de poder”
Esse tráfico de sequestrar e roubar homens foi
iniciado pelos portugueses no litoral da África, Na sua formulação original por Quijano, o
e como o acharam benéfico para os seus pró- “patrón colonial de poder” (matriz colonial de po-
prios propósitos malvados, eles logo se empe- der) foi descrito como quatro domínios inter-rela-
nharam em cometer maiores depredações. Os cionados: controle da economia, da autoridade, do
espanhóis seguiram o seu exemplo infame, e o gênero e da sexualidade, e do conhecimento e da
tráfico negreiro parecia-lhes bastante vantajo- subjetividade. Os eventos se desdobraram em duas
so, para proporcionar comodidade e afluência direções paralelas. Uma foi a luta entre Estados im-
através da sujeição cruel e escravidão dos ou- periais europeus, e a outra foi entre esses Estados e
tros. Os franceses e ingleses, e algumas outras os seus sujeitos coloniais africanos e indígenas, que
nações da Europa, enquanto fundavam assen- foram escravizados e explorados.
tamentos e colônias nas Índias Ocidentais ou O que sustenta as quatro “cabeças”, ou âmbi-
na América, prosseguiram da mesma maneira, tos inter-relacionados de administração e controle
e se juntaram “mano a mano” com os portu- (a ordem mundial), são as duas “pernas”, ou seja,
gueses e espanhóis para roubar e pilhar a Áfri- o fundamento racial e patriarcal do conhecimento
ca, assim como para destruir e desolar os habi- (a enunciação na qual a ordem mundial é legiti-
tantes do continente ocidental. mada). Explicarei que o fundamento histórico da
MCP (e consequentemente da civilização ociden-
A narrativa mostra um cenário dramático, atrás tal) foi teológico: a teologia cristã é responsável
do qual uma estrutura duradoura de administração por marcar no “sangue” a distinção entre cristãos,
e controle foi sendo colocada, enquanto esses tipos mouros e judeus. Apesar da disputa entre as três
de eventos se desdobravam nos séculos XVI e XVII. religiões ter uma longa história, esta foi reconfigu-
Controle e administração aqui significam que rada desde 1492, quando os cristãos conseguiram
os atores e as instituições que construíam o jogo expulsar os mouros e os judeus da península ibérica
também estabeleciam suas regras, sobre as quais as e forçar a conversão daqueles que queriam perma-
lutas para o poder decisório se desdobrariam. Os necer. Simultaneamente, a configuração racial entre
africanos e os indígenas estavam excluídos desse o espanhol, o índio e o africano começou a tomar
processo. Os desenhos globais e sua implementação forma no Novo Mundo. No século XVIII, o “san-
eram projetados pelas nações europeias do Atlânti- gue” como marcador de raça/racismo foi transferi-
co (aquelas mencionadas por Ottobah Cugoano). do para a pele, e a teologia foi deslocada pela filo-
Durante o processo, conflitos internos de interesse sofia secular e pelas ciências. O sistema lineano de
surgiram entre elas, pois todas – Espanha, Portu- classificação ajudou a causa. O racismo secular
gal, Holanda, França e Inglaterra – tinham interes- chegou a ser baseado na egopolítica do conheci-
se tanto no comércio de escravos africanos como mento; entretanto, aconteceu que os agentes e as
na terra e no trabalho indígena. Assim, durante o instituições que incorporavam a egopolítica secular
processo, as regras das diferenças internas imperiais do conhecimento eram, como aqueles que incor-
(entre Estados imperiais europeus) foram estabele- poravam a teopolítica do conhecimento, principal-
cidas (por exemplo, as invectivas lançadas por Isa- mente homens europeus e brancos. Então, a luta
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entre o teologismo (preciso deste neologismo aqui) porada não devido aos movimentos verdes, à teolo-
e o secularismo foi uma disputa entre parentes de gia da libertação ou ao anticapitalismo marxista, mas
uma mesma família. Proponentes de ambos eram pelo simples fato de ela ser inerente ao pensamento
cristãos, brancos e homens, e presumiam relações das comunidades, dos líderes e dos intelectuais in-
heterossexuais como a norma. Consequentemente, dígenas. Agora, isso faz parte da luta pelo controle
classificavam, também, as distinções de gênero e a da MCP, baseada no conceito de “natureza” ou, pelo
normatividade sexual. contrário, da luta pela desvinculação da matriz por
Em ambos os casos, a geopolítica e a corpo- meio da argumentação descolonial com base no con-
-política (entendidas como a configuração biográ- ceito de “pachamama”. Não há entidade que é “mais
fica de gênero, religião, classe, etnia e língua) da bem” entendida como um ou outro desses conceitos.
configuração de conhecimento e dos desejos epis- Há diferentes conceituações epistêmicas e políticas
têmicos foram ocultadas, e a ênfase foi colocada na na luta por futuros globais. A questão, portanto, não
mente em relação ao Deus e em relação à razão. As- é tanto onde “arquivamos” a natureza, mas quais são
sim foi configurada a enunciação da epistemologia os problemas que surgem na analítica da colonialida-
ocidental, e assim era a estrutura da enunciação que de da natureza (ou seja, do seu controle e adminis-
sustentava a matriz colonial. Por isso, o pensamen- tração) e no pensamento e na ação descoloniais sobre
to e a ação descoloniais focam na enunciação, se questões ambientais. Há esforços coordenados para
engajando na desobediência epistêmica e se desvin- contemplar, no sentido de que pensadores descolo-
culando da matriz colonial para possibilitar opções niais acadêmicos contribuímos, através das nossas
descoloniais – uma visão da vida e da sociedade que experiências limitadas e áreas do conhecimento, para
requer sujeitos descoloniais, conhecimentos desco- pensadores descoloniais no campo, ou seja, na socie-
loniais e instituições descoloniais. dade política e no Estado, como os casos da Bolívia
O pensamento descolonial e as opções desco- e, de certo modo, do Equador ilustram.
loniais (isto é, pensar descolonialmente) são nada Nós, estudiosos e pensadores descoloniais, po-
menos que um inexorável esforço analítico para en- demos contribuir não ao relatar para os estudiosos,
tender, com o intuito de superar, a lógica da colonia- intelectuais e líderes indígenas qual é o problema,
lidade por trás da retórica da modernidade, a estru- porque eles o conhecem melhor que nós, mas ao
tura de administração e controle surgida a partir da agir no domínio hegemônico da academia, onde a
transformação da economia do Atlântico e o salto de ideia de natureza como algo fora dos seres humanos
conhecimento ocorrido tanto na história interna da foi consolidada e persiste. Descolonizar o conheci-
Europa como entre a Europa e as suas colônias, como mento consiste exatamente nesse tipo de pesquisa.
veremos a seguir. Escusado será dizer que nenhum O próximo passo seria construir opções descolo-
livro sobre a descolonialidade fará diferença, se nós niais nas ruínas do conhecimento imperial. Dois
(intelectuais, estudiosos, jornalistas) não seguirmos exemplos vêm à mente.
a vanguarda da sociedade política global emergente Primeiro, quando em 1590 o padre jesuíta
(os denominados “movimentos sociais”). Tomemos, José de Acosta publicou a Historia natural y moral
por exemplo, a questão da “natureza” (que poderia de las Índias, a “natureza” era, na cosmologia euro-
também ser assinalada como o quinto domínio da peia cristã, algo para conhecer; entender a natureza
matriz colonial, em vez de considerá-la como par- era igual a entender o seu criador, Deus. Mas os
te do domínio econômico). Durante os últimos dez aimarás e os quíchuas não tinham essa metafísica;
anos,4 a questão da natureza tem sido debatida no por conseguinte, não havia conceito comparável ao
projeto modernidade/colonialidade. Deveríamos conceito europeu de “natureza”. Em vez disso, eles
considerar a natureza como um quinto âmbito ou, dependiam da pachamama, conceito que os cristãos
como sugeriu Quijano, como parte do âmbito eco- ocidentais desconheciam. A pachamama era o modo
nômico? Acontece que a contemplação da pachama- como os amauta quíchuas e os yatiris aimarás –
ma (“natureza”, para as mentes ocidentais) na nova os amauta e os yatiris eram os equivalentes intelec-
Constituição da Bolívia e na do Equador foi incor- tuais silenciados do teólogo (Acosta) – entendiam
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a relação humana com a vida, com a energia que ação de Marx) começou a se transformar em trabalho
engendra e mantém a vida, hoje traduzida como escravizado e depois assalariado. Casos semelhantes
mãe terra. O fenômeno que os cristãos ocidentais podem ser encontrados (para além da história da Eu-
descreviam como “natureza” existia em contradis- ropa e suas colônias) no mundo islâmico e na China.
tinção à “cultura”; ademais, era concebida como Todos esses casos ao redor do mundo tinham dois as-
algo exterior ao sujeito humano. Para os aimarás e pectos em comum: o trabalho era necessário para se
os quíchuas, fenômenos (assim como os seres hu- viver e não era subjugado à MCP, que transformava
manos) mais-que-humanos eram concebidos como o trabalho vivo em escravidão e trabalho assalariado
pachamama, e nessa concepção não havia, e não (os trabalhos escravizado e assalariado tornaram-se
há ainda hoje, uma distinção entre a “natureza” e a naturalizados no processo de criar uma economia de
“cultura”. Os aimarás e os quíchuas se viam dentro acumulação, que é hoje reconhecida como mentalida-
dela, não fora dela. Assim, a cultura era natureza e de econômica capitalista). Antes disso, viver era a pre-
a natureza era (e é) cultura. Assim, o momento ini- condição necessária para trabalhar. Essa transformação
cial da revolução colonial foi implantar o conceito resultou no extensivo comércio escravo, que transfor-
ocidental de natureza e descartar o conceito aimará mou a vida humana em mercadoria – para o dono da
e quíchua de pachamama.5 Foi basicamente assim plantação, da mina e, mais tarde, da indústria.
que o colonialismo foi introduzido no domínio do O próximo passo foi a Revolução Industrial: o
conhecimento e da subjetividade. Vinte anos de- significado da “natureza” em Acosta e Bacon mudou,
pois de Acosta, Francis Bacon publicou o seu No- chegando a se referir a “recursos naturais”, o alimen-
vum Organum (1620), no qual propôs uma reor- to necessário para nutrir as máquinas da Revolução
ganização do conhecimento e declarou claramente Industrial que produziam outras máquinas (a ferro-
que a “natureza” estava “ali” para ser dominada pelo via e o automóvel), que, por sua vez, precisavam de
homem. Durante esse período, antes da Revolução mais alimento, carvão e óleo. A “catástrofe ambien-
Industrial, os cristãos ocidentais afirmavam o seu tal” começou nesse momento. Enquanto a regene-
controle sobre o conhecimento da natureza ao des- ração da vida antes da Revolução Industrial ainda
qualificar todos os conceitos existentes e igualmen- sustentava uma relação amigável entre o aculturado
te válidos de conhecimento, e ao ignorar conceitos homem ocidental e a integração do trabalho e da
que contradiziam o seu próprio entendimento da natureza sobre a qual ele construía a sua cultura, a
natureza. Ao mesmo tempo, se engajavam em uma distância aumentou após a Revolução Industrial e
economia de extração de recursos brutos (o ouro, a todas as outras civilizações foram cada vez mais re-
prata e outros metais) para um novo tipo de mer- legadas, nos olhos do homem ocidental, ao passado.
cado global. Também se empenhavam em uma ma- A “natureza” – amplamente concebida – se transfor-
croeconomia de plantação, colheita e regeneração mou em “recursos naturais”, enquanto a “natureza” –
(o açúcar, o tabaco, o algodão etc.) sem incentivos como substantivo concreto que nomeia o mundo
transgênicos, o que absorvia os bancos de Man- físico e não humano – se tornou no Novo Mundo
chester, Liverpool e Londres a tal ponto que obter a base para o cultivo de açúcar, tabaco, algodão etc.
empréstimos dos banqueiros de Gênova (como era Em outras palavras, o conceito passou a se referir à
a norma na Espanha na primeira metade do século fonte dos recursos naturais (o carvão, o óleo, o gás)
XVI) tornou-se desnecessário. que abasteciam as máquinas da Revolução Indus-
Segundo, uma vez que a “natureza” se tornou um trial. Ou seja, a “natureza” se tornou repositório para
conceito estabelecido, a relação do homem com a na- a materialidade objetivada, neutralizada e basica-
tureza deslocou o conceito medieval europeu de tra- mente inerte que existia para a realização das metas
balho, assim como todas as outras ideias e usos de econômicas dos “mestres” dos materiais. O legado
trabalho no Tawantinsuyu (a qual Guaman Poma dessa transformação permanece nos dias atuais, em
de Ayala dedicou os últimos quarenta e tantos dese- nossa presunção de que a “natureza” é o fornecedor
nhos da sua Nueva corónica y buen gobierno [1616]). de “recursos naturais” para a sobrevivência diária:
Trabalhar para viver (ou o trabalho vivo, na conceitu- a água como mercadoria engarrafada. No Ocidente,
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a mutação da natureza para recursos naturais foi um de interdependência. Seguem mais exemplos que
sinal de progresso e modernização e, ao mesmo tem- desenvolvi em outros estudos (Mignolo, 2000a,
po, um sinal de que outras civilizações estagnaram 2000b, 2008).7
e estavam sendo ultrapassadas pelo Ocidente. Tais Primeiro, a lógica da colonialidade (ou seja, a
imagens eram simplesmente construções narrativas, lógica que sustentava os diferentes âmbitos da ma-
ou seja, eram supostamente realidades representadas triz) passou por etapas sucessivas e cumulativas que
no domínio do conhecimento, e o conhecimento era foram apresentadas positivamente na retórica da
a ferramenta básica e poderosa usada tanto para con- modernidade: especificamente, nos termos da sal-
trolar a autoridade quanto para ser transferida como vação, do progresso, do desenvolvimento, da mo-
mercadoria. O conhecimento na MCP era uma faca dernização e da democracia. A etapa inicial dispôs
de dois gumes: por um lado, era a mediação para a a retórica da modernidade como salvação. A salva-
ontologia do mundo, assim como um modo de ser ção era focada em salvar almas pela conversão ao
no mundo (a subjetividade); por outro lado, uma vez cristianismo. A segunda etapa envolveu o controle
que o conhecimento era concebido imperialmente das almas dos não europeus através da missão ci-
como o verdadeiro conhecimento, se tornou uma vilizatória fora da Europa, e da administração de
mercadoria para ser exportada àqueles cujo conhe- corpos nos Estados-nações emergentes através do
cimento era alternativo ou não moderno, segundo a conjunto de técnicas que Foucault analisou como a
teologia cristã e, depois, a filosofia secular e as ciên- biopolítica. Assim, a colonialidade era (e ainda é)
cias. Essa combinação foi tão suficientemente eficaz, a metade complementária e perdida da biopolíti-
em termos de acumulação de riqueza e poder, que, ca. Essa transformação da retórica da salvação e da
até o final do século XIX, a China e a Índia tiveram lógica do controle se tornou prevalecente durante
que confrontar o fato de que os homens e as insti- o período do Estado-nação secular. A teopolítica
tuições ocidentais as viam como (isto é, construíam transformou-se em egopolítica. A terceira etapa – a
o conhecimento de tal modo que chegaram a vê-las etapa que continua hoje – começou no momento
como) atrasadas historicamente; e a história, para o em que as corporações e o mercado se tornaram
Ocidente, era igual à modernidade. Dessa forma, o dominantes, a biotecnologia substituiu a eugênica,
conhecimento ocidental tornou-se uma mercado- e a publicidade (bombardeando a TV, as ruas, os
ria de exportação para a modernização do mundo jornais e a internet) deslocou o rádio. Consequen-
não ocidental. temente, o cidadão europeu saudável e a minoria
A “colonialidade” envolveu a “natureza” e os saudável das colônias, que eram administradas e
“recursos naturais” em um sistema complexo de controladas pela eugênica no século XIX e na pri-
cosmologia ocidental, estruturado teologicamente meira metade do século XX, agora foram converti-
e secularmente. Também fabricou um sistema dos em “consumidores-empresários” da sua própria
epistemológico que legitimava os seus usos da saúde, pelos usos da biotecnologia conivente com a
“natureza” para gerar quantidades maciças de farmacologia. A insistência bem conhecida do ex-
“produtos” agrícolas, primeiro, e quantidades -presidente George W. Bush em privatizar o segu-
maciças de “recursos naturais” após a Revolução ro saúde e fazer cada cidadão virar um empresário
Industrial. O primeiro ainda foi o período da privado e consumidor de “avanços” farmacêuticos
regeneração; com o segundo, entramos no perí- e biotecnológicos já foi muito bem documentada,
odo da reciclagem. A revolução industrial e tec- em fatos e argumentos, na descrição da política da
nológica também possibilitou a industrialização própria vida feita por Nikolas Rose (2007). Uma
de “produtos” agrícolas e a mercantilização do consequência da etapa corporativa no controle de
alimento e da vida.6 corpos e na conversão dos cidadãos em consumi-
Já é possível, através de pesquisa conduzida dores de saúde (ou seja, da política da própria vida,
recentemente, traçar as etapas e transformações da em vez da biopolítica) é que engendrou a “máfia
matriz colonial ao longo dos últimos 500 anos, em médica”. A etapa da política da própria vida nos
cada um dos seus âmbitos e em relações mútuas países desenvolvidos é mesmo bem diferente. Aqui
COLONIALIDADE  9

a modernidade não pode ser separada do desenvol- gar do pensamento em geral e das disciplinas como
vimento, como vimos na epígrafe de Wang Hui. a filosofia e o aspecto filosófico de todo o conhe-
Nikolas Rose, às vezes apologeticamente e às vezes cimento, reduzindo-os a um pacote tecnológico
de má-fé, reconhece que a política da própria vida de opções. No entanto, isso está acontecendo com
é basicamente implementada por países desenvol- apenas uma pequena porcentagem da população
vidos, ou seja, é comercializada para a minoria de global: a população que tem “o privilégio e o be-
consumidores da classe média e da elite da Europa nefício” de recursos econômicos e energéticos que
Ocidental e dos Estados Unidos. Para o resto do os permitem “aproveitar” a tecnologia. Há, quem
mundo (com exceção da elite de cada país no cír- sabe, cerca de 80% da população mundial para
culo de ocidentalização), a mutação tem sido da ci- quem a tecnologia não está disponível, e a questão
vilização para o desenvolvimento: a salvação através para o futuro seria se eles teriam acesso aos menus
da conversão ao cristianismo, ou através do assen- tecnológicos. Haverá sempre uma taxa de exclusão
timento à civilização ocidental enquanto se trans- de pelo menos 80%? Ou esses 80% se tornarão
formava em desenvolvimento econômico, o que foi conscientes de que formam a maioria da população
uma conversão aos princípios econômicos ociden- do planeta e talvez construam um mundo em que a
tais, como os do Consenso de Washington. tecnologia estará a serviço da humanidade, em vez
Segundo, no âmbito da epistemologia, a co- dos homens e mulheres estarem a serviço da tecno-
lonialidade tinha o seu fundamento na teologia, logia? Esses serão os primeiros momentos da educa-
ou seja, na teopolítica do conhecimento. O secu- ção descolonial.8 Por enquanto, a reocidentalização
larismo deslocou o Deus como fiador do conhe- significa que os seres humanos continuarão a estar
cimento, colocando o homem e a razão no lugar a serviço da tecnologia e, portanto, a reprodução da
de Deus, e centralizou o ego. A egopolítica (a cos- MCP se manterá.9
mologia abrangente sobre a qual a biopolítica foi Eu forneci duas percepções em retrospecto so-
fundamentada), então, deslocou a teopolítica (cuja bre a lógica da colonialidade, um esquema de sua
preocupação era o controle da alma, não do corpo), estrutura e alguns exemplos de seu fundamento
mas, em última análise, ambas juntaram forças para histórico e sua transformação ao longo dos 500
manter o controle epistêmico e político da matriz anos do nascimento e das histórias da civilização
colonial. Carl Schmitt (1985) viu claramente que ocidental e sua expansão imperial. Escusado será
a teologia política não é uma questão metafísica, dizer que estou afirmando que a MCP é a verdadei-
mas uma estrutura bem fundamentada e baseada ra estrutura fundamental da civilização ocidental.
em categorias de conhecimento, visão e configu- Agora darei alguns detalhes mais específicos sobre
ração institucional. A revolução tecnológica junto os níveis em que a lógica da colonialidade opera.
com os valores corporativos que eram priorizados É possível identificar uma série de nós histórico-
na Europa Ocidental e nos Estados Unidos (deixo -estruturais específicos, em que podemos ver a es-
o Japão de lado por enquanto) fizeram com que a trutura hierárquica de cada um deles. O conceito
própria administração se tornasse o principal cen- quijaniano de nós histórico-estruturais heterogêne-
tro da vida social e do conhecimento. Os valores os é entendido como um estado em que qualquer
corporativos requerem a eficiência: quanto mais se par de itens é provavelmente relacionado de duas
produz, quanto maiores os ganhos, tanto mais feliz ou mais maneiras divergentes. Em uma fórmula pe-
se deveria estar. A tecnologia tem treinado os seus dagógica, se poderia dizer que nós histórico-estru-
próprios especialistas, que são pagos para “melho- turais são heterárquicos, mas, para dizer isso, temos
rar” a administração tecnológica de tudo. No caso que descolonizar o conceito de heterarquia (que é
da formação e educação, a revolução tecnológica definida em termos universais) e entender heterar-
está criando um novo tipo de sujeito, cujo “conhe- quias atravessadas pelas diferenças coloniais e im-
cimento” consiste em passar o tempo empacotando periais. Quando fazemos isso, a heterarquia desco-
o “conhecimento” segundo as opções tecnológicas lonizada transforma-se em nós histórico-estruturais
do menu. O “pensamento tecnológico” toma o lu- heterogêneos, atravessadas por diferenças coloniais
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 94

e imperiais (Grosfoguel, 2008). Nós modificamos, A mcp então opera em uma série de nós
assim, o terreno epistêmico para descrever mais histórico-estruturais heterogêneos e interconecta-
profundamente a matriz colonial como uma es- dos, que são atravessados por diferenças coloniais
trutura lógica que sublinha a totalidade da civili- e imperiais e pela lógica subjacente que assegura
zação ocidental e como uma lógica administrativa essas conexões: a lógica da colonialidade. Nós
que agora já se estendeu para além dos atores que a histórico-estruturais significam que nenhum é
criaram e administraram. Aliás, de certo modo, é independente de qualquer outro, como qualquer
a matriz colonial que tem administrado os atores nó é provavelmente relacionado de duas ou mais
e todos nós. Estamos todos na matriz, cada nó é in- maneiras divergentes. A analítica da colonialidade
terconectado com todos os demais, e a matriz não (o pensamento descolonial) consiste no trabalho
pode ser observada ou descrita por um observador inexorável de desvendar como a matriz funcio-
localizado fora da matriz que não pode ser obser- na, e a opção descolonial é o projeto inexorável
vado – esse observador será ou o Deus da teologia de tirar todos da miragem da modernidade e da
cristã ou o sujeito da razão secular. armadilha da colonialidade. Todos são conectados
Voltando aos nós histórico-estruturais hetero- pela lógica que gera, reproduz, modifica e man-
gêneos, através dos quais desloquei a heterarquia e tém hierarquias interconectadas. Por isso, começo
o terreno epistêmico em transformação: enumerarei com o nó histórico-estrutural racial, em que as
primeiro tais nós e depois prosseguirei com alguns diferenças coloniais e imperiais foram ancoradas.
exemplos para ilustrar as suas inter-relações. A or- As diferenças coloniais e imperiais também mol-
dem em que irei apresentá-los pode ser modificada, daram relações patriarcais, uma vez que as relações
pois alguns argumentarão que a economia e as rela- hierárquicas sexuais dependem muito, no mundo
ções de classe são o fundamento das hierarquias em moderno/colonial, da classificação racial. Uma
sociedades, e outros argumentarão que é a classificação mulher branca nas colônias, por exemplo, está em
racial e a subjetividade e o controle particular do co- uma posição para dominar um homem negro, e
nhecimento que possibilitam tal hierarquia através das uma mulher negra, nas colônias, provavelmente se
diferenças coloniais e imperiais. Lembre-se de que a juntaria ao seu etnicamente explorado companhei-
matriz colonial (que se manifesta na retórica da mo- ro macho, em vez de se juntar à mulher branca
dernidade, que esconde a lógica da colonialidade) é que o explora e domina. Vamos, então, enumerar
equivalente à civilização ocidental como tem sido alguns nós histórico-estruturais, tendo em mente
construída nos últimos 500 anos, originando-se no que cada nó não se trata de uma instância univer-
Atlântico e depois expandindo-se e invadindo ou- sal, e sim que cada um deles está constantemente
tras civilizações, justificada pelas diferenças coloniais sendo articulado através da diferença colonial e
e imperiais. Assim, a matriz colonial é construída e imperial (Grosfoguel, 2008):
opera sobre uma série de nós histórico-estruturais
heterogêneos, ligados pela “/” (barra) que divide e 1. Uma formação racial global, cujo ponto de
une a modernidade/colonialidade, as leis imperiais/ origem foi a Espanha cristã na sua classifica-
regras coloniais e o centro/as periferias, que são as ção dupla e simultânea: os mouros e os judeus
consequências do pensamento linear global no fun- da Europa, e os índios e os africanos do outro
damento do mundo moderno/colonial. A sua legiti- lado do Atlântico (Greer, Mignolo e Quilligan,
midade é ancorada nos princípios de conhecimentos 2007).
diversos, assim como no aparato da enunciação, que 2. Uma formação particular de classe global, em
consiste em categorias de pensamento, atores sociais que uma diversidade de formas de trabalho (a
e instituições sustentados pela continuidade da edu- escravidão, a semisservidão, o trabalho assala-
cação. O pensamento e a ação descoloniais começam riado, a produção de mercadorias simples etc.)
pela analítica dos níveis e dos âmbitos em que pode- coexistiriam e se organizariam com base no
rá ser eficaz no processo da descolonização e liber‑ capital como fonte da produção de mais-valia
tação da matriz colonial. pela venda de mercadorias por lucro no merca-
COLONIALIDADE  11

do mundial. Essa estrutura global particular se diferentes, que os espanhóis (e os europeus,


originou no século XVI. em geral, sejam cristãos ou seculares) foram ou
3. Uma divisão internacional do trabalho entre incapazes de ver ou indispostos a aceitar. Não
centro e periferia em que o capital organizava havia a homofobia, já que os povos indígenas
o trabalho na periferia em torno de formas co- não pensavam através desses tipos de categorias
ercivas e autoritárias (Wallerstein, 1974). A di- (Sigal, 2002; Marcos, 2006).
visão internacional do trabalho era sustentada 8. Uma hierarquia espiritual/religiosa que privi-
pela ordenação do direito internacional (Fran- legiava espiritualidades cristãs em detrimento
cisco de Vitória e Hugo Grócio) nos séculos de espiritualidades não cristãs/não ocidentais
XVI e XVII (Anghie, 2008). foi institucionalizada na globalização da Igreja
4. Um sistema interestatal de organizações Cristã (católica e depois protestante). Do mes-
político-militares controladas por homens mo modo, a colonialidade do conhecimento
euro-americanos e institucionalizado em ad- traduziu outras práticas éticas e espirituais ao
ministrações coloniais (comparável a Otan) redor do mundo como “religião”, uma inven-
(Wallerstein, 1979). ção que também foi aceita por “nativos” (o
5. Uma hierarquia racial/étnica global que pri- hinduísmo foi inventado como religião somen-
vilegiava pessoas europeias em detrimento de te no século XVIII) (Masuzawa, 2005).
pessoas não europeias (Quijano, 1993, 2000). 9. Uma hierarquia estética (a arte, a literatura, o
Enquanto organizações político-militares eram teatro, a ópera) que, através das suas respectivas
conhecidas na Europa e outras partes do mun- instituições (os museus, as escolas das belas ar-
do, no século XVI as organizações político-mi- tes, as casas de ópera, as revistas lustrosas com
litares ficaram entrincheiradas com o direito reproduções esplêndidas de pinturas), adminis-
internacional (Anghie, 2008). tra os sentidos e molda as sensibilidades ao esta-
6. Uma hierarquia de gênero/sexo global que pri- belecer as normas do belo e do sublime, do que
vilegiava homens em detrimento de mulheres é arte e do que não é, do que será incluído e
e o patriarcado europeu em detrimento de do que será excluído, do que será premiado e do
outras formas de configuração de gênero e de que será ignorado (Kant, 1960; Mignolo e
relações sexuais (Garza Carvajal, 2003; Trexler, Tlostanova, 2012; Mignolo, 2012; Tlostanova,
1995; Sigal, 2000; Enloe, 2001; Tlostanova, 2010a).
2010b; Oyesumi, 1997). Um sistema que im- 10. Uma hierarquia epistêmica que privilegiava o
pôs o conceito de “mulher” para reorganizar as conhecimento e a cosmologia ocidentais em
relações de gênero/sexo nas colônias europeias, detrimento dos conhecimentos e das cosmo-
efetivamente introduzindo regulamentos para logias não ocidentais foi institucionalizada no
relações “normais” entre os sexos, e as distin- sistema universitário global, nas editoras e na
ções hierárquicas entre o “homem” e a “mu- Encyclopedia Britannica, tanto no papel quanto
lher” (Lugones, 2008, 2010; Tlostanova, 2008; na internet (Mignolo, 1995, 2000b; Quijano,
Suárez Navaz e Hernández, 2008). 2007).
7. Consequentemente, o sistema colonial inven- 11. Uma hierarquia linguística, entre as línguas eu-
tou também as categorias “homossexual” e ropeias e as línguas não europeias, privilegiava
“heterossexual” (por exemplo, a expressão fa- a comunicação e a produção do conhecimento
mosa e/ou infame de Bartolomeu de las Casas: teórico nas línguas europeias e subalternizava
“el pecado nefando”), assim como inventou as as línguas não europeias como apenas produto-
categorias “homem” e “mulher”. Essa inven- ras de folclore ou cultura, mas não de conheci-
ção faz com que a “homofobia” seja irrelevante mento/teoria (Mignolo, 2000b).
para descrever as civilizações Maia, Asteca ou 12. Uma concepção particular do “sujeito moder-
Inca, pois nessas civilizações as organizações no”, uma ideia do homem, introduzida no Re-
de gênero/sexo eram moldadas em categorias nascimento europeu, se tornou o modelo para
12  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 94

o humano e para a humanidade, e o ponto de tanto, a epistemologia fronteiriça emerge da exte-


referência para a classificação racial e o racismo rioridade (não o exterior, mas o exterior inventado
global (Quijano, 2000; Wynter, 2001). no processo de criar a identidade do interior, ou
seja, a Europa cristã) do mundo moderno/colonial,
Vamos tomar o exemplo da língua, do conhe- dos corpos espremidos entre as línguas imperiais
cimento, do racismo, da autoridade e da economia e aquelas línguas e categorias de pensamento ne-
criando nós histórico-estruturais heterogêneos, que gadas e expulsas da casa do conhecimento impe-
se transformam embora permaneçam mantendo a rial. Se explorarmos como a estética foi concebida
lógica da colonialidade: o contexto e o conteúdo e defendida, e como a arte foi praticada no século
mudam, porém, a lógica continua. Já argumentei XVIII, veremos que a hierarquia das línguas anda
esse ponto muitas vezes no passado. Seguindo a de- de mãos dadas com a hierarquia do conhecimento,
claração de Quijano, de que o eurocentrismo é uma da arte e da literatura. Entretanto, e desde o Renas-
questão não de geografia, mas de epistemologia, cimento, a literatura e a pintura compartilharam o
apoiei esse ditado com a observação de que o co- conceito da “representação” e a crença na conexão
nhecimento ocidental é fundamentado em duas direta entre “as palavras e as coisas”, como Foucault
línguas clássicas (grego e latim) e se desdobrou explicou. Consequentemente, a literatura e a pin-
nas seis línguas europeias modernas/coloniais tura estabeleceram as regras para o julgamento e a
e imperiais: o italiano, o espanhol e o português avaliação das expressões escritas e das figurações vi-
(as línguas vernáculas do Renascimento e do fun- suais não somente na Europa, mas, acima de tudo,
damento inicial da modernidade/colonialidade), no mundo não europeu. Enquanto as artes e as li-
o francês, o alemão e o inglês (as três línguas ver- teraturas já floresciam na Itália no século XV, esse
náculas que dominam a partir do Iluminismo até florescer era conectado ao bem-estar econômico da
hoje) (Mignolo, 2000b). O eurocentrismo (como Itália, que foi baseado em três cidades financeiras e
conhecimento imperial cujo ponto de origem foi comerciais: Florença, Veneza e Gênova. Esse funda-
a Europa) poderia ser encontrado e reproduzido mento foi crucial no século XVI, quando homens
nas colônias e ex-colônias, assim como em locais e instituições europeias começaram a povoar as
que não foram diretamente colonizados (rotas de Américas, fundando universidades e estabelecendo
dispersão). O eurocentrismo é, por exemplo, facil- um sistema de conhecimento, treinando os índios
mente encontrado na Colômbia, no Chile ou na para pintar igrejas e para legitimar os princípios e
Argentina, na China ou na Índia, o que não sig- práticas artísticos que eram conectados ao simbóli-
nifica que esses lugares são, na sua inteireza, eu- co, no controle da autoridade, e ao econômico, na
rocêntricos. Certamente, não. Não se dirá que a cumplicidade mútua entre a riqueza econômica e
Bolívia é na sua inteireza eurocêntrica. Porém, não os esplendores das artes. A partir do século XVII,
se poderia negar que traços de eurocentrismo es- as colônias europeias forneceram o material bruto
tão bem vivos na Bolívia, tanto na direita quanto para a fundação dos museus de curiosidades (Kuns-
na esquerda, politicamente e epistemicamente. As tkamera), que mais tarde separaram as peças do
mesmas considerações poderiam ser feitas com mundo não europeu (museus de história natural,
respeito à China. Será difícil convencer alguém de antropologia) dos museus de arte (principal-
de que a China é um país eurocentrado, embora mente europeia, a partir do Renascimento).
ninguém contestará que traços de eurocentrismo
estão bem vivos na China. A hierarquia linguísti-
ca na qual o eurocentrismo foi fundamentado – Futuros globais, opções descoloniais
que deixa fora do jogo o árabe, o híndi, o russo, o
urdo, o aimará, o quíchua, o bambara, o hebraico No meu livro The darker side of western mo-
etc. – controla o conhecimento não somente pela dernity (2011), estabeleço uma base de argumento
dominância das próprias línguas, mas também das ao delinear cinco trajetórias amplas que moldarão
categorias em que o pensamento é baseado. Por- futuros globais para as próximas décadas, talvez o
COLONIALIDADE  13

século XXI inteiro. Descrevo esses cinco projetos ros nomoi da terra: Pequim era o reino do meio,
como a reocidentalização, a reorientação da es- como eram Jerusalém para o judaísmo e, mais tar-
querda, a desocidentalização, a descolonialidade de, Meca e Medina para o Islã, Cuzco para os incas,
ou opção descolonial e a espiritualidade ou opção e Tenochtitlán para os astecas. Primeiro investigo a
espiritual. Não estou buscando um vencedor. Es- colonialidade e a colonização do tempo – ou seja,
sas trajetórias coexistem e coexistirão em relações o tempo ocidental. Se o Renascimento inventou a
conflitantes e/ou diplomáticas, e algumas serão Idade Média e a Antiguidade, instalando a lógica
compatíveis com outras e outras serão incompatí- da colonialidade ao colonizar o seu próprio passado
veis. Estou apenas dizendo que não há e não mais (e ao arquivá-lo como a sua própria tradição), o Ilu-
poderá haver um vencedor. O “terrorismo” e o minismo (e a crescente dominância dos britânicos)
“Wikileaks” são dois exemplos do ponto sem retor- inventou o Greenwich, remapeando a lógica da co-
no, e o ponto sem retorno é que não há mais lu- lonialidade e colonizando o espaço, localizando o
gar neste mundo para uma e apenas uma trajetória Greenwich como o ponto zero do tempo global.
reinar sobre as outras. Imperium já encerrou o seu Depois examino a colonialidade (a lógica) e a colo-
percurso e futuros globais estão sendo construídos, nização (a lei) do espaço na Geografia, de Immanuel
onde muitas trajetórias e opções serão disponíveis; Kant. Também dou prosseguimento a The darker
no entanto, não haverá lugar para uma opção pre- side of the Renaissance, especificamente às partes em
tender ser única. A opção descolonial não visa ser que examinei a colonização do espaço. Na época em
a única opção. É apenas uma opção que, além de que Kant palestrava sobre a geografia (na segunda
se afirmar como tal, esclarece que todas as outras metade do século XVIII), o sentimento que Hegel
também são opções, e não simplesmente a verdade desenvolveu algumas décadas depois já estava em
irrevogável da história que precisa ser imposta pela vigor: tanto para Hegel quanto para Kant, a Alema-
força. Isso simplesmente é o tratado político, em nha era o equivalente do que foi Cuzco na organi-
uma frase, escrito pelo Exército Zapatista de Liber- zação de Tawantinsuyu, ou Pequim como o Reino
tação Nacional (EZLN): um mundo em que mui- do Meio na organização da China dinástica. A Ale-
tos mundos coexistirão. Após construir a base, o manha era, em outras palavras, a Cuzco e Pequim
argumento segue em direção ao pensamento desco- da Europa. Kant e Hegel se colocaram e estão bem
lonial, o fundamento histórico da descolonialidade instalados na secularização da epistemologia do
e a opção descolonial, explorando profundamente ponto zero: os observadores observando o vale
a geopolítica e a corpo-política do conhecimento do topo da montanha. Chamarei isso de panóptico?
confrontando (por exemplo, olhando nos olhos) Não necessariamente: descolonialmente, estou fa-
a teopolítica e a egopolítica do conhecimento (ou lando da húbris do ponto zero. Estou falando de histó-
seja, o conhecimento moderno/imperial). Em se- rias, condições, sensibilidades e epistemologias dife-
guida, ofereço leituras descoloniais de dois concei- rentes, uma vez que não acredito na universalidade
tos básicos da retórica da modernidade e da lógica de conceitos que têm sido úteis para dar conta de
da colonialidade: o espaço e o tempo. A coloniza- uma história local, mesmo se essa história local é
ção do tempo e do espaço são fundamentais para a o ponto de origem da ideia da modernidade e das
retórica da modernidade: o Renascimento coloni- rotas imperiais de dispersão. Mais uma vez, a
zou o tempo ao inventar a Idade Média e a Anti- geopolítica e a corpo-política do conhecimento
guidade, assim se colocando no presente inevitável coexistem com a egopolítica, em que a linguagem
da história e preparando o terreno para a Europa se e a experiência – o panóptico – foram trazidas à
tornar o centro do espaço. Hegel concluiu essa nar- tona. Continuando o argumento descolonial, e
rativa ao ter um personagem principal, o Espírito, considerando o contexto da revolução teórica dos
viajando do Oriente e pousando nos presentes da zapatistas, destaco a união do agir através do pensar
Alemanha e Europa, o centro do mundo. A retórica e do pensar através do agir, trocando e deslocando a
da modernidade desloca semelhantes concepções distinção entre a teoria e a prática. Há muitas ques-
anteriores do espaço e do tempo, os muitos primei- tões que se desdobraram desde a revolta inicial za-
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patista, dentro do próprio movimento, dentro do aceitar. Aceitá-lo somente requer, como declarou
México (por exemplo, la otra campaña, a criação Ottobah Cugoano, que nos coloquemos, enquan-
de Caracoles, o Festival de la Digna Rabia etc.), e to pessoas, Estados, instituições, no lugar onde ne-
fora das fronteiras do México (o governo de Evo nhum ser humano tem o direito de dominar e se
Morales, os movimentos indígenas do Equador).10 impor a outro ser humano. É simples assim, e tão
O meu argumento não é histórico ou sociológico, difícil. Para seguir nessa direção, precisamos mudar
mas teórico. Uma vez preparado o terreno, discuto os termos da conversa. Mudando os termos da con-
o cosmopolitismo e a opção descolonial. O ponto versa, e não apenas o conteúdo, significa pensar e
é que enquanto o cosmopolitismo de Kant foi con- agir descolonialmente. Muito precisa ser feito, mas
cebido centrifugamente (por exemplo, um mundo a crescente sociedade política global indica que as
cosmopolita desenhado e liderado pela Europa), o opções descoloniais aumentarão exponencialmente,
futuro exige o cosmopolitismo descolonial, em vez e assim contribuirão para remapear o fim da estrada
do cosmopolitismo imperial, pois quem mesmo le- para a qual a civilização ocidental e a matriz colo-
vará ao campo e mapeará, do topo do morro, uma nial de poder nos levaram.11 Mais uma vez, a meta
nova e boa ordem cosmopolita? O cosmopolitismo das opções descoloniais não é dominar, mas escla-
descolonial deveria ser pensado como localismo recer, ao pensar e agir, que os futuros globais não
cosmopolita, um oximoro certamente, mas um oxi- poderão mais ser pensados como um futuro global
moro que parte, se desvincula, da inclinação impe- em que uma única opção é disponível; afinal, quan-
rial dos legados cosmopolitas kantianos. O localis- do apenas uma opção é disponível, “opção” perde
mo cosmopolita nomeia o conector para projetos inteiramente o seu sentido.
globais e pluriversais, em que todos os Estados-na-
ções existentes e as organizações futuras que subs-
tituirão, deslocarão ou refarão as formas atuais dos Notas
Estados-nações, assim como a sociedade política
emergente, participarão (através de qualquer forma 1 A primeira publicação em inglês do trabalho feito
de organização) em um mundo verdadeiramente pelo coletivo desde 1998 aparece em 2007, em Cultu-
cosmopolita. Esse projeto global, sem líder único, ral Studies, 21 (2-3), uma edição especial sobre “Glo-
sem o G7, G8 ou G20, seria – ao contrário de Kant balization and the de-colonial option”.
– pluriversal em vez de universal. 2 Quando uso a palavra capitalismo, é no sentido dado
Concluo o livro com uma abertura para a op- por Max Weber (1992 [1905], pp. 51-52): “O espírito
do capitalismo é usado aqui neste sentido específico,
ção descolonial e para ordens comunais planetárias.
é o espírito do capitalismo moderno... o capitalismo oci-
As “ordens” comunais planetárias são baseadas na dental europeu e americano”.
pluriversalidade como projeto universal no lugar de
3 Ayiti, nome indígena das ilhas onde habitaram os
uma “ordem global comunal” (uma comunidade
aruaques e tainos. Foi respeitosamente reinvestida por
ou comuna universal) que seria monocêntrica, uni- Jean-Jacques Dessalines, quando ele rebatizou Hispa-
versal, e endossaria a imperialidade da objetividade niola com o nome de Ayiti.
e da verdade sem parênteses. Essa premissa é funda- 4 N. T.: Trata-se da primeira década do ano 2000.
mental para entender o meu argumento, pois, caso
5 Ver meu comentário em Acosta (2002 [1590], pp.
se leia o meu argumento com as expectativas cria- 451-518).
das pela modernidade (a partir da esquerda e da di-
6 A esse respeito, ver, por exemplo, Castells (1997).
reita) – de que uma ordem global é necessária e de
que a ordem global se iguala a um único projeto –, 7 “Delinking epistemology” apareceu em Reartikulacija,
um projeto de arte do grupo Reartikulacija (Marina
então se perderá o ponto principal e ficará descar-
Gržinić, Staš Kleindienst, Sebastjan Leban e Tanja
rilado na sua interpretação. A ordem global que es- Passoni).
tou advogando é pluriversal, não universal, e isso
8 A Ley Educativa Avelino Siñani y Elizardo Pérez foi
significa tomar a pluriversalidade como um projeto recentemente aprovada na Bolívia. É claramente dito
universal em que todas as opções rivais teriam de se
COLONIALIDADE  15

e esclarecido que isso é uma lei descolonial para um Disponível em: <http://quod.lib.umich.edu/e/
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9 Ao contrário do propósito da Ley Educativa já mencio- DAGENAIS, J. (2004), “The postcolonial Laura”.
nada, a Universidade de Davos e, em geral, a universida- Modern Language Quarterly, 65 (3): 365-389.
de corporativa são exemplos claros da reocidentalização ENLOE, C. ([1989] 2001), Bananas, beaches
da educação e da reprodução da MCP. Ver Mignolo, “At
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10 Sobre isso, ver Walsh (2009).
burn: prosecuting sodomites in early modern
11 Uma pesquisa do Google sobre os termos “decolo-
Spain and Mexico. Austin, University of Texas
nial” (descolonial), “decoloniality” (descolonialidade)
e “decolonization of knowledge” (descolonização do
Press.
conhecimento) mostra um número crescente de en- GREER, M. R.; MIGNOLO, W. D. & QUILLI-
tradas nos últimos cinco anos. Antes desse período, GAN, M. (orgs.). (2007), Rereading the Black
encontrava-se pouco sobre “decoloniality” (descolo- Legend: the discourse of religious and racial diffe-
nialidade). A tendência acadêmica era para “postco- rence in the Renaissance Empires. Chicago, Uni-
loniality” (pós-colonialidade), particularmente nos versity of Chicago Press.
Estados Unidos. No antigo Terceiro Mundo, com a GROSFOGUEL, R. (2008), “Transmodernity,
exceção da Índia, a pós-colonialidade não tem muita border thinking and global coloniality”. Eu-
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COLONIALIDADE: O LADO MAIS COLONIALITY: THE DARKEST COLONIALITÉ: LE CÔTÉ le plus


ESCURO DA MODERNIDADE SIDE OF MODERNITY SOMBRE DE LA MODERNITÉ

Walter D. Mignolo Walter D. Mignolo Walter D. Mignolo

Palavras-chaves: Colonialidade; Moder- Keywords: Coloniality; Modernity; De- Mots-clés: Colonialité; Modernité; Pen-
nidade; Pensamento descolonial. colonizing thinking. sée Décoloniale.

Este texto argumenta que a “colonialida- This article arguments that “coloniality” Ce texte affirme que «Colonialité» est le
de” é o lado mais escuro da modernida- is the darkest side of Western modernity, côté sombre de la modernité occidentale,
de ocidental, uma matriz de poder que a matrix of power that emerged between un tableau de puissance qui a surgi entre
surgiu entre o Renascimento e o Ilumi- the Renaissance and the Enlightenment la Renaissance et l’illuminisme au cours
nismo durante a colonização das Améri- during the colonization of the Americas. de la colonisation des Amériques et qui
cas, e que está culminando com o neo- This process is culminating in the capi- est sanctionnée par le néolibéralisme ca-
liberalismo capitalista dos tempos atuais. talist neoliberalism of the present times. pitaliste de l’époque. Il établit en premier
Primeiro, estabelece a tese de que a co- Firstly, we establish the thesis that the lieu que la théorie que le Colonialité, un
lonialidade, um conceito que foi intro- coloniality, a concept introduced by the concept qui a été présenté par le socio-
duzido pelo sociólogo Anibal Quijano, sociologist Anibal Quijano, is the “hid- logue Anibal Quijano, est l’«agenda ca-
é a “pauta oculta” da modernidade. Em den agenda” of modernity. After that, the ché» de la modernité. Il explique ensuite
seguida, explica a origem desse “monstro origin of this “monster with four heads l’origine de ce «monstre à quatre têtes et
de quatro cabeças e duas pernas” e ana- and two legs” is explained, and the de- deux jambes» et analyse la formation et
lisa a formação e as transformações his- velopment and the historical transforma- les transformations historiques de ce «ta-
tóricas dessa “matriz colonial do poder”. tion of this “colonial matrix of power” bleau de puissance coloniale». En conclu-
Para concluir, oferece uma prévia do livro is analyzed. As as conclusion, we offer a sion, il offre un aperçu du livre The dark
The dark side of western modernity: global preview of the book The dark side of wes- side of western modernity: global futures,
futures, decolonial options, que vislumbra tern modernity: global futures, decolonial decolonial options, qui dévoile certains
certos “futuros globais” enquanto explora options, which catch glimpses of certain «futurs planétaires», tout en explorant les
possíveis “opções descoloniais”. “global futures”, while explores some possibles «options de décolonialité».
possible “decolonizing options”.

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