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O PREÇO DO PODER

Autor
KURT BRAND

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Gucky sugestiona Perry —
e a vida de 17 terranos corre perigo.

Com o descobrimento na Lua de uma espaçonave arcônida acidentada,


foram lançados os alicerces para a unificação de toda a Humanidade terrana e,
desta unificação, surgiu o Império Solar. Ninguém podia supor, nem mesmo
Perry Rhodan, quantos esforços e firmeza de ânimo seriam necessários, no
correr dos anos, para manter este império frente aos ataques internos e externos.
A mais séria ameaça à Humanidade, que teve seu clímax na invasão dos
druufs e na batalha em defesa do Império Solar, pôde ser debelada graças ao
eficaz auxílio de Árcon. E a crise na política interna, provocada pelo desertor e
traidor Thomas Cardif, foi removida por Gucky.
Porém um desenvolvimento constante da Humanidade só será possível
quando houver uma paz definitiva na Galáxia — e até lá, parece haver ainda um
longo caminho...
O próprio Atlan, o imortal, que há pouco tempo substituiu a gigantesca
máquina eletrônica que costumava sufocar no nascedouro, com suas frotas
robotizadas, qualquer tentativa de revolução contra o poder central de Árcon, é
o primeiro a desejar a paz. Atlan, agora com o nome de Imperador Gonozal VIII,
e Perry Rhodan, o Administrador do Império Solar, já por simples instinto de
conservação, se apóiam mutuamente em suas aspirações.
Não faz muito tempo, foi assinado um pacto de assistência mútua entre
Árcon e a Terra. Assim, as velozes espaçonaves do Império Solar estão
preparadas para entrarem em ação em qualquer lugar da Galáxia, onde a paz e
a ordem forem perturbadas.
Nos últimos meses, a tranqüilidade de Rhodan andava um tanto abalada...
As ações praticadas por Cardif ainda continuavam tirando o sono do pai e
também de Atlan, o novo imperador de Árcon.
O administrador deseja (e é obrigado) aproximar-se do jovem Thomas.
Entretanto, para conseguir seu intento, Perry terá de pagar o Preço do Poder...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Perry Rhodan — Administrador do Império Solar.
Reginald Bell — Que não quer que ninguém saiba o que vem a ser
um trobel.
Gucky — O mutante de várias facetas, que não tem vida fácil em
Archetz.
Atlan — O solitário do tempo que se tornou imperador.
Thomas Cardif — Um prisioneiro dos saltadores.
Dr. Orge Olundson — Um etnólogo, que tem suas dores-de-
cabeça com o povo dos mentirosos.
Cokaze — Patriarca dos saltadores.
1

Os sóis do grupo estelar M-13 brilhavam e cintilavam conforme faziam há tempos


imemoriais. Comprimidos num espaço de cerca de duzentos e cinqüenta anos-luz de
diâmetro, apareciam, sob a forma de uma única esfera gigantesca, aos ocupantes das
naves vindas da Galáxia.
M-13 não era um conglomerado de cores, mas uma composição delas, que se
destacava contra o fundo negro do Universo. A luminosidade tépida — sempre era esta a
primeira impressão que M-13 transmitia aos homens que se dirigissem a Árcon.
M-13, o grupo estelar, formava o Grande Império, o império estelar dos arcônidas.
Englobando as mais diversas raças, era um império no qual viviam bilhões e bilhões de
inteligências, que, em parte, também se haviam tornado grandes, fortes, poderosas e ricas.
M-13 era um espetáculo de beleza quase irreal. Por outro lado, a aglomeração dos
sóis num espaço reduzidíssimo também representava uma demonstração de poder. Mas o
quadro era ilusório...
Como grupo estelar, M-13 dava a impressão de uma unidade orgânica. Mas o
Grande Império era nos dias atuais um reino estelar, cuja estrutura política ameaçava
esfacelar-se a qualquer momento.
Durante quinze milênios crescera, sempre sob a direção dos arcônidas. As
espaçonaves saíam do sistema M-13 e faziam avançar as fronteiras do império, em
direção às profundezas da Galáxia. Mas também chegou o dia em que a vitalidade quase
inesgotável dos arcônidas começou a secar tal qual uma fonte, e a decadência iniciou-se
na gigantesca organização.
O Grande Coordenador, o maior centro de computação positrônica, amalgamara o
poderio de Árcon, então em pleno processo de desintegração, lançando mão dos meios
mais brutais.
Atualmente o grande centro de computação funcionava apenas como órgão
executivo. Atlan, a criatura colocada acima do tempo, assumira os encargos e viu-se
obrigado a assistir, em atitude quase totalmente passiva, ao tremor de terra político que se
verificava no seio do império, pois, do contrário, teria passado à história como um ditador
sanguinário.
Mas as estrelas não tomavam o menor conhecimento de tudo isso. O raio branco-
azulado vindo do centro do sistema M-13 continuava a derramar sua luz tépida e suave,
conforme fazia há tempos imemoriais.

***

Pitter Breucken e seu amigo Klaas Vertieden estavam parados na comporta polar da
Burma, uma espaçonave esférica da classe Estado, com cem metros de diâmetro e uma
tripulação normal de cento e cinqüenta homens. Os dois observavam há muito tempo os
acontecimentos que se desenrolavam na periferia do espaçoporto. Quanto mais
observavam, maior era a insatisfação que sentiam.
— Olhe, Pitter, outros robôs — disse Klaas Vertieden, que tal qual seu amigo era
natural de Hilversum. — Você já viu um dos cem mil arcônidas legendários que teriam
sido despertados do sono hibernal? Devo confessar que nunca vi nenhum!
— O que vêm a ser cem mil pessoas nos planetas Árcon I, II e III? Apenas um pingo
numa chapa quente. É por isso que você vê os robôs por aqui. Se não fossem os homens
mecânicos, Árcon já teria falido há muito tempo.
— E mesmo agora não está muito longe disso. Hoje de manhã ouvi o comandante
palestrar com o chefe pelo rádio. Durante essa palestra não apenas foi mencionado que,
dentro em pouco, deixaremos este horrível planeta de robôs com seu gigantesco cérebro.
O chefe ainda disse que o império não passa de um amontoado de marmanjos
revoltados...
— Tenho certeza de que Perry Rhodan não usou esta expressão, Klaas. Mas veja!
Um carro está deixando a abóbada do computador gigante. Será que vem para cá?
O gigantesco edifício abobadado que abrigava o gigantesco centro de computação,
com suas dimensões de cem por cem quilômetros, dominava a paisagem desta parte de
Árcon III. Destacava-se contra o céu como se fosse uma montanha e, de ambos os lados,
era encoberto pelos complexos industriais.
Os dois jovens viram o carro aproximar-se numa corrida vertiginosa. De repente, o
veículo descreveu uma curva fechada para a direita e capotou. Uma ofuscante chama
branca saiu de seu interior. Com um forte trovão, o carro, que girava em torno de seu
próprio eixo, explodiu como se fosse um pequeno sol vermelho.
Por um instante Klaas Vertieden e Pitter Breucken pareciam pregados ao solo.
Quando quiseram correr para o local do desastre, as viaturas supervelozes da polícia
robotizada de Árcon III estavam aproximando-se de todos os lados e, dali a pouco, toda a
área ficou isolada.
— Caramba! — disse Klaas Vertieden, profundamente impressionado, muito
embora ainda há pouco tivesse proferido palavras pouco elogiosas a respeito do planeta
de robôs Árcon III.
— Lá na Terra a polícia ainda não age tão depressa — observou Pitter Breucken. —
Em compensação, é bem possível que nós, os terranos, sejamos um pouco mais felizes
que estes arcônidas. Você devia ver as linhas de montagem daqui, Klaas. Os robôs
fabricam naves espaciais como nós fabricamos automóveis! Sabe o que já fiz várias
vezes? Examinei a superfície deste mundo, mas até o momento não encontrei um torrão
de terra. Às vezes, quase chego a acreditar que os velhos arcônidas construíram este
mundo com ferro e aço, a fim de transformá-lo numa única fábrica. Em comparação com
este gigante industrial planetário, nossas indústrias lunares não passam de simples luzes
de lamparina.
— Não fale mal de nós mesmos! — disse Vertieden em tom de protesto. — Não
somos nenhuma lamparina. Por que estamos aqui? Porque Atlan precisa de auxílio. O
imperador já não sabe o que fazer.
— Klaas, às vezes você é bastante tagarela — disse Pitter. — Até parece que você
se esqueceu do filho de Perry Rhodan, esse desertor maldito! Foi o tal do Thomas Cardif
que meteu Atlan nessa situação difícil. O que acha que eu pensaria de você se não viesse
ajudar-me numa situação de emergência? Afinal, o chefe e Atlan são amigos...
Foram interrompidos pela voz metálica do alto-falante do sistema de
intercomunicação.
— Queiram apresentar imediatamente ao primeiro-oficial o relato do acidente. Os
relatos serão individuais.
Pitter Breucken deu um passo e colocou-se ao lado do sistema de intercomunicação.
Ligou a tela de imagem.
— Aqui fala o sargento Breucken do posto de artilharia número dois. Quero
apresentar meu relato ao primeiro-oficial...
— Venha pessoalmente, Breucken — interrompeu-o Joe Pasgin. — Há mais alguém
por aí?
— O sargento Vertieden, da divisão de conversores.
— Aguardo-os em meu camarote. É bom que saibam que o chefe se interessa pelo
acidente.
A tela escureceu. Vertieden e Breucken fitaram-se estupefatos.
— Perry Rhodan interessa-se por uma coisa dessas? — disse Klaas Vertieden. —
Gostaria de saber quem se encontrava no carro que explodiu...

***

— Agora o sujeito já recorre ao assassinato e aos atentados...


Perry Rhodan, um homem sempre muito controlado, caminhava nervosamente de
um lado para outro na sala do gigantesco computador positrônico, onde também se
encontravam Atlan e Reginald Bell. O Marechal Allan D. Mercant, um gênio no terreno
do serviço de segurança, que exercia as funções de chefe do Serviço de Defesa Solar,
acabara de sair da sala mobiliada ao estilo arcônida. A parede do lado esquerdo, com o
quadro de comando, de cinco metros por dois, era o único elemento que fazia concluir
que essa sala com suas instalações muito confortáveis não se destinava ao descanso das
pessoas que nela se encontrassem.
Perry Rhodan não parava de balançar a cabeça, enquanto andava nervosamente pela
sala. Fitou Atlan, que retribuiu seu olhar com uma tranqüilidade extraordinária.
— Ele não se esqueceu de nada do que aprendeu na Academia Espacial. Conhece a
estrutura interna do Império Solar como a palma de sua mão. Afinal, fizeram questão de
que aprendesse. E é frio e inescrupuloso...
— Sente-se, Perry! — disse Bell, em tom enérgico.
Ao ver que Rhodan hesitava, apontou para a poltrona livre.
Atlan empurrou-lhe um copo de bebida alcoólica.
Rhodan acomodou-se e esvaziou o copo de um só gole.
— Perry — disse Atlan, inclinando-se ligeiramente. — Temos de esperar. Neste
instante, o computador está calculando mais de quatro milhões de possibilidades. Ainda
ficaremos por mais algumas horas na incerteza.
— Acontece que você já conhece o resultado da interpretação, almirante! —
respondeu Rhodan, em tom deprimido.
Bell fungou com tamanha força que Atlan e Rhodan o fitaram. Num gesto
espalhafatoso mostrou a ponta do polegar direito. Antes que os outros pudessem dizer
uma palavra, o homem baixo de cabelos ruivos pôs-se a falar.
— Deixem que eu fale também. Não quero que vocês se espantem com meu
polegar. Desde a última festa de Ano Novo, fiquei supersticioso. Em toda a Via Láctea
não existe um único caso em que uma peça de vidro inquebrável se tenha quebrado e,
ainda por cima, causado ferimentos em alguém.
“Quebrei o cálice de conhaque, cortei o polegar nos cacos e, desde então, tenho um
medo tremendo deste ano de 2.044. Bem, a muito custo conseguimos arranjar as coisas,
com uma diferença de quarenta dias. Nossa situação, isto é, a de Atlan, bem como de
Perry, é em linhas gerais a seguinte: estamos caminhando na corda bamba, a cem metros
de altura, sem rede de proteção. E, em vez de espectadores que nem se atrevem de
respirar, lá embaixo existem rapazes que querem atirar em quem está em cima da corda.
“Mas nenhum desses espectadores se chama Thomas Cardif. Garanto-lhes isso,
apesar de meu polegar cortado e apesar de meu espírito supersticioso. Não é possível que
Thomas Cardif seja um vil criminoso, pois seu pai é Perry Rhodan.”
Era mais uma atitude típica de Reginald Bell. Não se exprimia com muita elegância,
mas em suas palavras não havia a menor ambigüidade, e realmente acreditava no que
acabara de dizer.
Continuava a mostrar o polegar direito a Rhodan e Atlan.
— Mister Bell — disse Atlan em tom áspero. — Guarde esse dedo. Metade da
Galáxia anda falando do seu tique. Nós...
— Tique? Essa é boa — interrompeu-o Bell. — E olhe que chegamos ao nível mais
baixo de nossa carreira. Acontece que não acredito, e realmente não corresponde aos
fatos, que Thomas tenha participado dessa tentativa de assassinato.
“Não quero remexer em coisas velhas, pois isso não nos adiantaria nada. O que nos
adianta é vermos um homem de vinte e cinco anos no papel que está desempenhando
neste momento. Esses ciganos estelares manhosos, os mercadores galácticos, já
encostaram esse rapazinho chamado Cardif contra a parede.
“Isso talvez eu possa afirmar.
“E mesmo que Thomas tenha fornecido aos saltadores as informações, em virtude
das quais aquele carro explodiu há duas horas, o rapaz não sabia que, com base nessas
informações, você, Perry, deveria ir pelos ares.”
— Como sabe disso? — perguntou Atlan, em tom irônico.
Bell fitou Perry, que ainda parecia ouvir as palavras de seu amigo, proferidas em
tom enfático. Depois olhou para Atlan.
— Atlan, meu saber não provém daqui! — bateu com o dedo na testa. Depois levou
a mão ao coração. — Vem é daqui. O senhor já conhece o romantismo dos terranos;
provavelmente até nos conhece melhor do que nós mesmos. Meu coração, isso pode
parecer uma idiotice, me disse que Thomas Cardif é incapaz de assassinar quem quer que
seja. Se este monstro positrônico afirmar o contrário, eu lhes provarei que estou com a
razão, e que esta máquina está enganada.
Apesar da gravidade da situação, Atlan soltou uma risada. Num gesto impulsivo
estendeu a mão a Bell. Quando este a apertou, disse:
— Mister Bell, bem que eu gostaria que nós, os arcônidas, também tivéssemos um
pouco de espírito romântico e fôssemos capazes de ouvir a linguagem do coração. Mas
receio que um coração arcônida não mais consiga falar.
Bell defendeu-se à sua maneira contra a franqueza de Atlan.
— Só falta o senhor me falar em sentimentos! Seria preferível que me dissesse
como foi possível um saltador vir parar em Árcon III. Um desses ciganos estelares deve
ter estado aqui e instalado a carga explosiva no veículo...
— Não poderia ter sido um homem do sistema solar, Mister Bell?
A resposta de Bell consistiu numa única palavra:
— Droga!
O comentário de Perry Rhodan foi mais longo.
— Allan D. Mercant acredita que, dentro de algumas horas, poderá dizer se as
suspeitas de Atlan têm algum fundamento.
— Nesse caso quero preparar-me para algumas surpresas — disse Bell em tom
deprimido.
Via-se perfeitamente que também acreditava que a bomba tivesse sido colocada por
alguém do sistema solar.
— Ainda bem que hoje já é o dia 21 de novembro, e que, dentro de quarenta dias, o
ano 2.044 chegará ao fim.

***

Os três estavam parados no setor de interpretação do computador e esperavam que


os últimos minutos escoassem. Há cerca de dez minutos, uma ligeira mensagem do
dispositivo positrônico informara-os de que, num prazo curtíssimo, a computação de
pouco mais de quatro milhões de possibilidades estaria concluída.
Todos eles — Atlan, Rhodan e Bell — estavam acostumados a introduzir
indagações extremamente complicadas num computador positrônico. Mas raras vezes um
cérebro positrônico recebia uma série de perguntas tão extensa e de importância tão
decisiva. Além do mais, as quatro milhões de possibilidades tinham de ser cotejadas uma
com a outra. Só mesmo a hipermatemática arcônida tornava possível a solução de um
problema desse tipo.
A sala onde se encontravam os três homens era simples e prática. No entanto, até
mesmo a técnica, em sua forma mais fria, recebera dos grandes cientistas, que há
milênios haviam construído e programado o enorme computador, um estilo que pairava
acima do tempo, e que infundia o sentimento de que, na época de sua construção, o
arcônida dominava a técnica, mas não era seu escravo.
Fora esse sentimento, aliado ao fato de que, hoje em dia, acontecia exatamente o
contrário no Império de Árcon, que fizera com que Reginald Bell tivesse uma disposição
nada amistosa face a essa maravilha única realizada por Árcon.
Sempre se rebelara contra a possibilidade de um grande reino estelar do tamanho do
Império de Árcon ser governado por um computador, e ninguém melhor que Atlan
conhecia as idéias de Bell a este respeito.
O almirante pensou nisso e sentiu-se invadido por uma sensação de vazio e algo
como o medo do futuro.
O ativador celular encontrava-se novamente em seu poder. Sua vida parecia
resguardada por vários séculos, talvez milênios. No entanto, vivera por tanto tempo sobre
a Terra que já não pensava exclusivamente em si mesmo.
Já podia contar com cem mil arcônidas cheios de vitalidade, nascidos no apogeu do
povo de Árcon.
Dentro de dois ou três anos, cada um deles seria uma sumidade no lugar que lhe
fosse atribuído. Mas o que significavam cem mil arcônidas enérgicos e ávidos de ação,
quando a massa popular degenerava cada vez mais e chegava a cultivar as más
qualidades, além de estar interessada exclusivamente em esquivar-se de qualquer
obstáculo e levar uma vida indolente, durante a qual não tivessem de cumprir nenhuma
obrigação?
Atlan sentiu alguém pousar a mão em seu ombro. Bell, que se encontrava a seu lado,
queria dizer-lhe alguma coisa.
— Imperador, esquecemos um detalhe. E esse detalhe consiste em nada menos de
cem mil arcônidas!
— Esquecemos? Quando? — Atlan parecia contrariado, pois não compreendera a
primeira nem a segunda das insinuações de Bell.
— Esquecemos que entre as cem mil pessoas que permaneceram adormecidas ao
longo do tempo existem algumas que se encontram em Árcon III. Não seria possível que
uma dessas pessoas tivesse colocado a bomba embaixo do carro? Por que a ovelha negra
só deve ser procurada entre os terranos?
Reginald Bell parecia muito sério. Enquanto formulava a última pergunta, proferida
em tom enfático, lançara um olhar penetrante para o almirante.
— Aguardemos para ver o que o computador tem a dizer — disse o arcônida,
esquivando-se à pergunta.
A resposta de Bell foi inequívoca:
— Não gostei de ouvir isso, arcônida. Uma resposta capenga como essa não
combina com o senhor.
— Mister Bell, acho que eu seria o último homem capaz de fazer qualquer esforço
para defender Thomas Cardif e...
— Pela eterna Via Láctea! — interrompeu Bell em tom contrariado. — Quem falou
em defender Thomas? Só se defende alguém que foi acusado, e por enquanto nem
chegamos a esse ponto. Ou será que o monstro positrônico também atribuiu a tentativa de
assassinato a esse rapaz?
Seu olhar caminhava entre Atlan e Rhodan, mas ninguém deu uma resposta.
Naquele instante ouviu-se, de forma quase inesperada, a voz metálica do gigantesco
centro de computação.
A voz monótona dizia:
— As perturbações políticas que atualmente põem em perigo a existência do Grande
Império são uma manifestação de sua existência.
Com um olhar de desprezo para o lugar de onde provinha a voz, Bell disse:
— Isso é um sofisma barato!
O computador positrônico prosseguiu:
— A autoria das agitações é de importância secundária; além disso, a influência de
Thomas Cardif não atinge o grau de intensidade que se atribui às suas ações.
“Enquanto Árcon não estiver em condições de enviar forças a todos os distritos do
império, qualquer ação contra os autores das desordens apenas constituirá um desgaste
inútil de forças, uma vez que a conseqüência normal da pressão é uma pressão em sentido
contrário...”
Bell tentou balbuciar alguma coisa, mas sua voz saiu tão alta que Perry Rhodan e
Atlan não poderiam deixar de ouvi-lo:
— O sentido de sua fala é tão obscuro que, face ao mesmo, os Sacos de Carvão da
Via Láctea parecem áreas de estacionamento fortemente iluminadas.
Mas logo aguçou o ouvido.
— Desde o fracasso do atentado contra Gonozal VIII, Thomas Cardif já não é o
espírito dirigente dos mercadores galácticos. O setor de interpretação afirma com 99,5
por cento de probabilidade que a influência exercida por Thomas Cardif sobre os
movimentos subversivos já não assume a menor importância. Todas as ações encetadas
após a tentativa de furto do ativador celular demonstram subitamente a ausência das
grandes linhas que sempre caracterizaram os atos de Cardif. Mas nem por isso diminui o
perigo das revoluções violentas, pois a evolução histórica do Grande Império já conduz
às mesmas.
“As investigações da polícia robotizada e a interpretação por nós levada a efeito
revelam que o atentado com explosivo, no qual foi destruído o carro-mensageiro do
imperador e vitimado um terrano, deve ser atribuído aos novos arcônidas. Supõe-se com
um grau de segurança de 67,45 por cento que cerca de um milésimo desses novos
arcônidas tiveram seus cérebros afetados em virtude da hibernação prolongada. O
atentado em si deve ser visto como ação isolada, que não tem qualquer sentido ou
objetivo definido. As conseqüências também foram diminutas.
“A pergunta sobre qual seja o planeta que constantemente fornece novos impulsos,
que visam à ruína econômica e ao apoio dos movimentos subversivos, só admite uma
única resposta baseada no processamento de todos os dados até agora recebidos, e
considerado o grande número de planetas habitados: planeta Archetz, pertencente ao
sistema de Rusuma.”
O grande centro de computação calou-se.
Dois homens do planeta Terra e um arcônida refletiam intensamente.
Archetz era o mundo central dos salta-dores. Archetz, que se fundira em grande
parte sob o furacão de fogo de três mil espaçonaves dos druufs, seria o quartel-general
dos subversivos?
Perry Rhodan nem pensou em fazer pouco-caso das informações que acabavam de
ser fornecidas pela gigantesca máquina positrônica. Pelo contrário. Estava disposto a
reconhecer que não estava bem informado sobre o planeta dos saltadores. Sendo assim,
não podia permitir-se qualquer contestação.
— Archetz? — repetiu em tom pensativo.
Essa palavra representava uma solicitação indireta para que Atlan se pronunciasse
sobre as palavras do computador gigante.
Bell adiantou-se ao novo imperador do Grande Império.
— Perry! — colocou as mãos sobre os ombros do amigo e, em seu rosto sério,
parecia haver uma súplica.
A pausa, que se seguiu ao nome do amigo, obrigaria qualquer um a aguçar o ouvido.
— Você acaba de ouvir da boca dessa grande caixa desalmada: todas as ações
encetadas após a tentativa de furto do ativa-dor celular demonstram subitamente a
ausência das grandes linhas que sempre caracterizaram os atos de Cardif.
“Neste momento, o computador não procura esconder a realidade, Perry! Seu filho é
um desertor. Violou seu juramento. Como Administrador-Geral do Império Solar, você
não pode passar por cima deste fato. Um dia, Thomas terá de ser responsabilizado por
isso. Mas você, como pai, deve construir a ponte que lhe permita assumir a
responsabilidade de seus erros.
“Perry, você e Thora falharam. E quem os acusou? Foi só sua consciência? Será que
você acha que, com isso, tudo está liquidado, meu velho? Isso não seria uma atitude
confortável demais? Será que Thomas deve ser atingido por todo o peso do castigo?
“Perry, não aceito sua passividade, não quero aceitar e não posso aceitar.
“Você deve fazer alguma coisa pelo rapaz! Será que seu filho, que é tão bem-dotado
quanto você, vai arruinar-se que nem um cão vadio?”
Ouviu-se um eco no interior da enorme sala vazia, situada no coração da gigantesca
abóbada.
Parecia um eco fantasmagórico.
Berrou de volta as palavras exaltadas de Reginald Bell, apenas em tom mais
abafado, mas por isso mesmo mais impressionante:
— ...arruinar-se que nem um cão vadio?
Atlan colocou-se entre os dois homens, tentando separá-los. Em seus olhos havia o
espanto de um homem sacudido por suas emoções.
— Mister Bell — disse em tom de súplica.
Fez um gesto de compreensão para aquele homem exaltado. Segurou o braço de
Perry Rhodan.
— Perry, você soube como lidar com os arcônidas, os saltadores, os aras, os druufs e
os tópsidas, e não sei mais quem. Também saberá lidar com seu filho. Desde quando o
ovo é mais inteligente que a galinha?
— O que querem que eu faça? — perguntou Rhodan, em tom penetrante.
Subitamente seus olhos cinzentos mostraram o brilho duro como o aço.
— Perry, você está bem no centro deste confronto com seu filho. Bell e eu apenas
acompanhamos os acontecimentos da periferia. Você deve juntar-se a nós, ocupar nossa
posição. Dessa forma encontrará um meio de construir a ponte que levará a Thomas.
Você é um homem que já acumulou suas experiências. Durante anos, eu o observei e o
invejei pela capacidade de conduzir os homens. Use sua capacidade, bárbaro. Procure e
encontre um caminho, mas esse caminho deverá deixar uma chance para seu filho.
Um gigantesco império estelar estava ameaçado de desmoronamento, depois de
mais de quinze mil anos de existência. E esses três homens, em cujas mãos continuava a
repousar, ao menos em certa extensão, o destino do Grande Império, conversavam
exaltadamente a respeito de um tenente desertor da Frota Solar. Sobre Thomas Cardif, o
filho de Perry Rhodan.
Atlan e Bell sabiam quanto Rhodan sofria pelo fato de seu filho único ser também
seu inimigo mais encarniçado e perigoso. Eram as únicas pessoas do grupo estelar M-13
e do sistema solar que compreendiam toda a extensão da tragédia.
Perry Rhodan não era nenhum super-homem. Para recuperar a forma de
antigamente, precisava de paz e equilíbrio interior. Não possuía nem uma coisa, nem
outra. Mas ainda possuía seu admirável auto-domínio.
Respirou profundamente e disse:
— Sim; é o que vou fazer.
2

Os jardins internos do palácio de cristal eram de uma beleza atordoante. No mundo


de cristal ou Árcon I, tudo identificava-se com a beleza.
Perry Rhodan fitava este mundo, de dentro de um conjunto de salas, que parecia ter
sido criado unicamente para manter afastadas as preocupações do dia-a-dia.
Atlan pigarreou às suas costas. Atlan, chamado de Gonozal VIII, imperador do
Grande Império. Perry virou-se.
— Este mundo de cristal é um veneno, Atlan. Produz o fleuma e...
— Concordo plenamente com você, bárbaro — interrompeu-o o imperador. —
Providenciarei para que o menor número possível de novos arcônidas conheça este
planeta. Acredito que aqui em Árcon I tenha sido atingido pelas saudades da Terra.
— O quê? Você? Um arcônida da velha estirpe fala em saudades? Você, que
cresceu entre as estrelas? — perguntou Rhodan em tom de espanto.
Atlan fez um gesto afirmativo.
— Cada mundo ou tem seu veneno ou vicia o indivíduo em algum ponto. A Terra
cria a saudade pela Terra. Se existe alguma coisa de que me arrependo, amigo, é de ter
vivido dez mil anos entre vocês. Por isso não tive muita dificuldade em compreender
Thomas Cardif. Assim sendo, tenho a impressão de que sei por que lhe veio a idéia de
mandar furtar meu ativador celular. Se fosse um terrano, não poderia deixar de odiar seu
filho, pois sua mentalidade me obrigaria a isso. Felizmente continuo a ser um arcônida.
Apesar do lance pelo qual quis pôr-me fora de ação através do furto do ativador celular,
eu o admiro. Só os mercadores galácticos parecem não ver mais nada de extraordinário
nele. Estas são as últimas notícias que recebemos, amigo. Foi por isso que eu o mandei
chamar.
Rhodan sentou-se à frente do imperador. A poltrona, que corporificava um estilo de
vida talhado unicamente para o gozo, amoldou-se automaticamente à postura de Rhodan.
Perry não estava disposto a suportar uma poltrona como aquela. As conferências se
haviam sucedido desde o amanhecer. Durante mais de duas horas, tempo padrão, falara
com Terrânia, e, por três vezes, teve que tomar decisões de graves conseqüências para
Árcon I.
Uma coisa muito rara aconteceu naquele momento.
Rhodan soltou uma praga e levantou-se abruptamente.
— Maldita poltrona! Devia ser queimada.
Não notou o sorriso de Atlan.
Voltou a sentar-se. Leu a última notícia, baixou o papel e lançou um olhar insistente
para o imperador. Este inclinou-se para frente.
— É a última. Chegou no momento em que você estava entrando, Perry.
— Também...?
Atlan fez que sim. Rhodan preferiu não perder mais nenhuma palavra.
O serviço secreto arcônida ainda sabia trabalhar. Todas as notícias provinham dali.
E essa mensagem referia-se a Archetz, o mundo dos saltadores, situado no sistema de
Rusuma.
A notícia também não dizia uma única palavra sobre Thomas Cardif. O serviço
noticioso do imperador não conseguira descobrir nada a seu respeito. Mas a isso se
contrapunha a informação de um agente, o saltador Sulok, que trabalhava para o Serviço
de Defesa Solar. Segundo tal informação, numa conversa de taverna fora mencionado que
o filho de Rhodan se encontrava em Archetz. O administrador-geral pensou nessa notícia,
enquanto colocava o papel sobre a mesa.
— Atlan, estou admirado porque nossos dados sobre o mundo dos saltadores não
incluíam a evolução mais recente dos acontecimentos.
O imperador contraditou-o em tom resoluto.
— Os dados que você dispunha eram bons; apenas acontece que, em nossa
interpretação, não havia sido considerada a atividade dos mercadores galácticos. Devem
ter transformado o planeta de Archetz, no curso dos últimos decênios, num gigantesco
complexo de subterrâneos, nos quais foram abrigadas a maior parte de sua indústria e
cerca de oitenta por cento da população do planeta. Esses saltadores astuciosos
aproveitaram-se dos pesados danos, causados na superfície, e da destruição de Titon, uma
metrópole de doze milhões de habitantes, e de mais de três cidades grandes, levada a
efeito pelos druufs, para camuflar suas atividades. Na superfície, Archetz é um mundo
destruído. Mas, em seu interior, abriga uma indústria pesada intata, dotada das mais
modernas fitas rolantes, que se destinam à produção em série de suas naves cilíndricas. O
desmoronamento econômico ocorrido na área de atividades dos mercadores galácticos e
dos aras não abalou esse núcleo de poder. Para usar as palavras de Bell: Caramba! Se
esse fato puder ser atribuído à iniciativa de Cardif, seu filho, Perry, só pode merecer
nossa admiração.
Os olhos cinzentos de Rhodan começaram a chamejar.
— Qual é o motivo dos constantes elogios, arcônida? O que pretendem conseguir
com isso?
— Apenas queremos ajudar-lhe, Perry. Você não deveria ver apenas o lado negativo
de Cardif. Pelos nossos deuses, bárbaro! Não me sinto nem um pouco entusiasmado pelo
fato de que Cardif se encontra do outro lado e tentou destruir-me, para causar a sua ruína,
Rhodan. Acontece que não posso negar a evidência dos fatos: você não poderia ter sido
mais eficiente no desencadeamento dessas ações. Perry, meu amigo, será que você não vê
que Cardif é um gênio tático? Conhece mais algum homem que disponha das mesmas
capacidades? Eu não conheço! E, tanto você como eu, precisamos de gente bem-dotada.
Rhodan exaltou-se.
— Atlan, o que é que vocês querem levar-me a fazer?
O Imperador Gonozal VIII sorriu amargurado.
— Se pudesse levá-lo a fazer alguma coisa, eu o faria. Acontece que você não pode
ser levado a fazer coisa alguma. Só, através de você mesmo, pode ser levado a fazer algo.
E, no momento, sente-se, talvez, incapaz. É o preço que temos de pagar pelo privilégio de
estarmos na ponta. Essa ponta é muito pequena; tão pequena que só uma pessoa cabe nela
de cada vez. E tão pequena que nela nem se pode ficar confortavelmente de pé. Temos de
nos equilibrar constantemente!
— Nem parece que você é um arcônida.
— Obrigado, Perry! — um brilho de felicidade surgiu nos olhos de Atlan. — Muitas
vezes eu gostaria que você estivesse no meu lugar. Invejo você, que é o administrador de
seu insignificante sistema planetário.
— É mesmo?
Foi só o que Rhodan teve a dizer. Seu olhar atingiu o rosto de Atlan.
— Num ponto eu não o compreendo, Atlan. Por que não pede insistentemente que
Thomas Cardif seja posto fora de ação? Ou por que não o faz? Afinal, ele está colocando
em risco a existência de seu império!
O Imperador Gonozal VIII ergueu-se lentamente. Contornou a mesa estreita e
comprida e parou à frente de Rhodan. Colocou a mão sobre o braço do administrador.
— Será que de repente não nos compreendemos mais, meu amigo? Mas se
interviesse agora, isso representaria o fim de nossa amizade. Como imperador do Grande
Império tenho o dever de fazê-lo. Mas, se um belo dia nós dois nos defrontarmos como
inimigos, meu reino estelar não terá nada a ganhar. E se eu me adiantasse à sua ação e
fizesse com que Thomas Cardif se defrontasse com as leis implacáveis de Árcon,
segundo as quais teria de ser condenado à morte, nós nos tornaríamos inimigos. Haveria
de chegar o dia em que você me acusaria por ter agido assim, a não ser que você nunca
tenha sido pai, e Thomas nunca tenha sido seu filho. Mas, se fosse assim, você já não
seria meu amigo, Perry...!
Os olhos amarelados de Atlan chamejavam. Sentia-se dominado por uma forte
comoção.
Perry Rhodan parecia pensativo. Subitamente levantou-se e disse:
— Providenciarei para que decolemos dentro de uma hora, a fim de regressar à
Terra. Se receber novas notícias sobre Archetz ou Thomas Cardif, faça o favor de
transmiti-las a mim.
— Quer dizer que voltaremos a encontrar-nos dentro de poucos dias, Perry?
Atlan compreendera perfeitamente. A notícia surpreendente de que, dentro de uma
hora, Perry pretendia voltar à Terra não representava outra coisa senão o primeiro passo
dado no sentido de eliminar Thomas Cardif do jogo dos mundos.
— Sim, Atlan. Dentro de poucos dias, voltarei para M-13...
3

Os cientistas de Terrânia encontravam-se em estado de alarma.


Perry Rhodan regressara há poucas horas do Império de Árcon, e não foi esta a
primeira vez em que seu regresso desencadeou uma atividade extraordinária.
Mais de cinco mil colaboradores, cada um deles um especialista de primeira ordem
em sua área, foram informados pelos chefes setoriais sobre a nova tarefa que devia ser
cumprida.
Quando os etnólogos se puseram a trabalhar, logo se sentiram tomados de espanto.
E o espanto transformou-se em pavor.
Foi o Dr. Orge Olundson quem primeiro lhe deu expressão.
— Se nos atrevermos a apresentar isto ao chefe, haverá um barulho tremendo!
Ninguém o contestou. Fitavam-se perplexos. O material de que dispunham era
extremamente escasso. Já haviam consultado o enorme computador positrônico do
supercouraçado Drusus, nave capitania de Rhodan. Recorreram às informações
armazenadas no mesmo, mas não descobriram nada que não soubessem antes.
Sua tarefa podia ser descrita da seguinte forma:

A 248 anos-luz de Árcon, fica o sistema solar de


Forit. O respectivo sol é pequeno e avermelhado. Possui
quatro planetas. O segundo é o planeta Solten, que está
habitado.
Precisamos de minuciosas informações étnicas,
etnográficas e etnológicas sobre os soltenses.

Acontece que, pelos padrões arcônidas, os soltenses deviam ser um povo tão
insignificante que o Grande Império acreditava ter dito tudo a seu respeito, ao consignar
as seguintes informações em seu catálogo etnológico:

Soltenses, ex-arcônidas, degenerados, tamanho médio


1 metro e 70 centímetros, curvatura da coluna em forma de
corcunda, testa saliente.
Matriarcado, demonismo.
Mentirosos.

O Dr. Orge Olundson, chefe da divisão de etnologia, tornara-se no curso de dois


decênios um grande conhecedor da etnologia arcônida. Naquele momento brincava com o
lápis. Traçou um círculo após o outro em torno da terceira frase do escasso material
informativo, frase esta formada exclusivamente pela palavra “mentirosos”. Parecia
perplexo.
— Acho que algum colega arcônida permitiu-se uma brincadeira — disse num
solilóquio. — Isso não existe. Será que todos os soltenses são mentirosos? — levantou a
cabeça, largou o lápis e olhou em torno. — Então, cavalheiros, como vamos continuar?
Alguém tem uma idéia de como poderemos conseguir mais material sobre os soltenses?
Na divisão médica de bioplástica reinava a mesma perplexidade. A única
informação relativa ao aspecto exterior dos soltenses consistia em algumas fotografias
mal tiradas. Não havia nenhum arquivo que fornecesse as informações de que
precisavam.
O Dr. Alfo Alvarez profetizou:
— Se eu explicar ao chefe que a tarefa que ele nos confiou não pode ser cumprida,
seremos todos despedidos. O que têm a dizer sobre isso?
O perito econômico para o comércio intergaláctico, Jean de Canin, não parecia
menos desolado:
— Pelos anéis de Saturno, onde poderei obter dados sobre o contrato de royalties
celebrado entre os soltenses e o chefe dos saltadores, Cokaze? Nunca ouvi falar sobre
isso, O senhor sabe de alguma coisa, Townless?
Townless também não sabia nada a respeito. Limitou-se a sacudir a cabeça e
continuou a morder o lápis. O estado de ânimo da divisão encontrava-se bem abaixo da
marca zero.
— Se eu aparecer à sua frente de mãos abanando, o chefe ficará furioso, Townless!
— lamentou-se Canin.
— Acontece que não posso arrancar as informações da ponta dos dedos, Canin —
respondeu Townless com a maior tranqüilidade. — Vou chamar os etnólogos. As
peculiaridades econômicas de um povo não deixam de ser características típicas.
Vejamos o que podem dizer-nos...
A central do sistema de intercomunicação respondeu. Townless pediu que o
ligassem com o Dr. Olundson.
Os traços da tela estabilizaram-se à frente de Townless. O rosto contrariado de
Olundson apareceu diante dele. Os dois não se conheciam pessoalmente.
Townless apresentou-se.
— Quem sabe se o senhor pode ajudar-nos, doutor? Temos necessidade urgente de
dados sobre os soltenses.
— Sobre os mentirosos? — perguntou Olundson.
— Sobre quem...? — estas palavras foram proferidas por Jean de Canin, que de um
salto se colocou ao lado de Townless. — Quem são os mentirosos, doutor?
O Dr. Orge Olundson respondeu com a maior impassibilidade:
— Os soltenses são mentirosos! É ao menos o que diz o catálogo etnológico
arcônida. De resto, também não sabemos de nada. Estamos boiando...
— Pois nós já estamos com água até o pescoço! — confessou Canin. — Um
momento! Já sei o que vou fazer. Vou entrar em contato com o Serviço de Defesa Solar.
Este deve dispor dos dados, doutor. Voltarei a chamar daqui a pouco. Combinado?
Estavam todos na mesma canoa. O Dr. Olundson confirmou com um gesto. Parecia
satisfeito.
A ligação com a divisão de arquivo do Serviço de Defesa Solar foi estabelecida num
instante.
Uma beleza feminina apareceu na tela. O francês que havia dentro de Jean de Canin
acordou. Não procurou dissimular a admiração que sentia diante de tamanha beleza, mas
nem por isso se tornou inoportuno. Sua atitude devia ser interpretada como um elogio
pela jovem bela e radiante do arquivo do Serviço de Defesa. Apesar disso, Canin falou
com a voz indiferente, quando pediu informações sobre os soltenses, uma raça que
habitava um sistema de quatro planetas, cujo centro era o sol Forit.
— Peço que nos forneça todos os dados que possui. O chefe confiou-nos uma tarefa
urgentíssima, que não podemos executar por falta de material. A senhora nos ajudará, não
é mesmo?
A jovem disse que sim. Sua imagem desapareceu da tela, mas a ligação não foi
interrompida. Townless fitou Canin e disse:
— Acho que vou pedir transferência... Não sabia que em Terrânia existem coisas tão
bonitas.
— Ah, é? — respondeu Canin. Depois permaneceu calado.
Esperaram.
Subitamente a imagem da jovem voltou a aparecer. Seu sorriso encantador
desaparecera. A voz perdera o timbre claro.
— Sinto muito — disse — mas também não possuímos dados sobre o sistema de
Forit. Apenas os que nos foram fornecidos pelos arcônidas. E estes o senhor já deve ter.
— Sim — respondeu Jean de Canin. — Já temos. Apenas acontece que não sabemos
o que fazer com tais dados. Em Solten não há nenhum agente nosso?
— Num mundo tão insignificante? Acho que o senhor está superestimando a
capacidade do Sistema de Defesa Solar, ou então está subestimando o tamanho do
Império de Árcon — disse a jovem com uma ligeira recriminação na voz.
Jean de Canin sorriu.
— Será que não poderíamos conversar mais demoradamente sobre isso hoje de
noite?
Não conseguiu dizer mais nada. Sem alterar seu sorriso encantador, a jovem disse:
— Meu filho mais novo, que tem oito meses, não permite que sua mãe faça uma
coisa dessas. Posso fornecer mais alguma informação?
Seu sorriso foi a última coisa que a tela reproduziu.

***

Às 14 horas e 20 minutos, tempo padrão, o Dr. Orge Olundson criou coragem e


pediu uma ligação com Reginald Bell.
— Sim, é urgente! — disse, para reforçar seu pedido. — E é muito importante.
Trata-se de uma tarefa urgentíssima e...
Viu-se interrompido:
— Ah, é a respeito de Solten? Olundson conhecia as normas relativas ao sigilo.
— Faça o favor de ligar-me imediatamente com Mr. Bell.
Dali a pouco, o rosto de Bell apareceu na tela. O amigo de Rhodan possuía uma
memória excelente para rostos e nomes. Já se encontrara em alguma oportunidade com o
Dr. Olundson. Reconheceu-o imediatamente e chamou-o pelo nome. Percebeu o suspiro
de alívio de Olundson.
— Então, onde é que o sapato o aperta, doutor? — perguntou com a maior
tranqüilidade.
Depois disso, Bell vez por outra soltava um “hum” ou um “ah, é?” mas não
interrompeu seu interlocutor. Só começou a falar quando o etnólogo concluiu seu relato e
informou quais eram as divisões sediadas em Terrânia, que estavam quebrando a cabeça
com aquilo.
— Exporei isso ao chefe e depois mandarei informá-lo. Ainda bem que o senhor ao
menos teve a coragem de falar comigo, pois do contrário teríamos perdido ainda mais
tempo.
Bell desligou.
— Temos de entrar em contato com Atlan, Perry! — disse ao entrar no gabinete de
Rhodan.
— Por quê? — a pergunta de Rhodan tinha sua razão de ser, pois fazia apenas
algumas horas que haviam saído de Árcon I, o mundo de cristal.
— Não dispomos de dados sobre o planeta Solten e nem sobre o povinho que o
habita. O etnólogo Dr. Olundson acaba de telefonar e disse que ninguém possui qualquer
informação sobre esse mundo, situado no sistema de Forit. Nem mesmo o Serviço de
Defesa possui dados. Só Atlan poderá ajudar-nos.
Perry Rhodan fez uma pergunta que deixou Bell estupefato.
— Escute. Quem teve essa idéia relativa aos soltenses, gorducho?
— Foi você! Pois eu nem sequer conheço esse povo de nome.
Fez uma pausa e fitou atentamente o amigo.
— Será que você não se lembra mais, Perry?
Bell ainda se lembrava perfeitamente de que não fazia muito tempo que um
determinado setor da memória de Perry sofrerá um forte bloqueio sugestivo. E esse
bloqueio fora causado por um homem completamente normal, que em virtude da injeção
de uma toxina dos aras, se transformara num sugestor tão potente.
De repente, Perry sorriu. Lera os pensamentos do amigo.
— Não se preocupe, Bell! De qualquer maneira, é estranho que eu não me lembre
quem ou o que despertou minha atenção para os soltenses. Isso me preocupa um pouco,
mas a hipótese da sugestão ou da hipnose está excluída.
— Tomara que você tenha razão. Vamos entrar em contato com Atlan?
— Deixe Atlan em paz. Este já carrega um peso muito grande com a dignidade de
imperador... Mas é graças a ele que podemos estabelecer contato direto com o grande
centro de computação. Entre em contato com Mercant. Ou melhor, vá à sua presença. Ele
lhe fornecerá os dados necessários. Depois disso, você terá de mexer-se mais um pouco e
ir até a grande estação de hiper-rádio. Uma vez lá, você botará todos para fora por algum
tempo e manipulará pessoalmente os controles. Utilize o processo negativo de
hipercomunicação.
Bell soltou um assobio.
— Coitados dos mercadores galácticos que forem especialistas em decodificação!
— soltou uma estrondosa gargalhada.
Imaginava como eles contemplariam em atitude de desespero as curvas de hiper-
rádio sobre o oscilógrafo sem conseguir compreender por que não obtinham um único
som que fizesse sentido, embora tivessem determinado o compasso de condensação e o
ritmo de distorção com a precisão de cinco casas decimais.
— Está bem, Perry — disse, ainda rindo. — Enquanto uso o processo negativo de
transmissão radiofônica não penso no meu dedo cortado e...
— Ponha-se daqui para fora, gorducho! — gritou Rhodan, mas não estava falando
tão sério como parecia.
— Aos poucos estou gostando novamente de você, Perry — disse Bell, sorrindo.
Rhodan interrompeu-o com um gesto, mas logo mudou de idéia:
— Não basta dizer sim; isso tem de vir do coração.
— Compreendo — Bell, de um instante para outro, tornara-se sério. — Thomas
deveria ter sido educado ao menos por algum tempo por meu pai. Foi um alto funcionário
da polícia. Quando me dava uma sova... Nem queira saber como estas lições foram
proveitosas. Bem, vamos passar uma esponja sobre isso. Vou falar com Mercant.
— Não se esqueça da conferência com os mutantes, marcada para as 16 horas e 10
minutos.
— Quer dizer que você insiste no projeto de Solten, embora não saiba quem lhe deu
essa idéia? — voltou a perguntar Bell, em tom insistente.
— Por enquanto sim!
Dali a pouco, Bell estava sentado à frente de Allan D. Mercant, chefe do Serviço de
Defesa Solar. Já haviam falado sobre os aspectos técnicos da comunicação com o
gigantesco computador positrônico de Árcon III. Naquele momento, Bell transmitia os
resultados de suas observações a Mercant, que o ouvia atentamente.
— Perry excluiu a possibilidade de uma influência hipnótica ou sugestiva. Acontece
que não consigo esquecer-me do que aconteceu comigo, Mercant, e neste momento eu
me lembro...
— Hum... de Thora e de sua recomendação de ir ao planeta de Honur. Compreendo
perfeitamente o que quer dizer, Bell. Acho que, se eu informar Marshall e pedir a ele que
tome todas as precauções, não deve ter nenhuma objeção.
Mercant costumava exprimir-se com toda discrição.
— Concordo plenamente — respondeu Bell. — Perry explodirá de raiva, quando
souber que mandamos vigiá-lo, mas o cuidado nunca é demais. Estou disposto a enfrentar
o barulho que ele vai fazer. E, Mercant, tudo isso apenas...
Mercant soltou um gemido e levantou os braços.
— Bell, deixe seu polegar de lado. Antes do fim do ano, o senhor ainda irá pôr toda
a Via Láctea louca com essa conversa.
Reginald Bell fitou atentamente a ponta do polegar direito.
— Quando lhe mostro meu polegar direito, Atlan também costuma ficar nervoso.
Ainda bem que às vezes existem meios bem mais simples de reforçar uma advertência...
Bell retirou-se, deixando para trás um chefe do Serviço de Defesa muito pensativo.
Este disse para si mesmo em voz baixa:
— O que será que o gordo quis dizer? Será que acredita nessa bruxaria, ou apenas
recorre a isso para evitar que os outros “durmam”? Costumava ser um homem
completamente normal, mas desde a festa do Ano Novo está sendo cavalgado pelo
demônio...
Estava fazendo uma injustiça a Bell. Este apenas temia à sua maneira o ano de
2.044, que estava chegando ao fim.

***

Enre, um gigante de mais de dois metros, de rosto bexiguento e cabelos


desgrenhados, que trajava apenas uma manta, contemplou a curva do oscilógrafo.
Era o especialista de hiper-rádio mais competente de Archetz. No curso dos últimos
decênios, enriquecera com as importantíssimas invenções que fizera nessa área.
Virou a cabeça e lançou um olhar desconfiado para Olgall.
— Afinal, isto é uma curva de hiper-rádio, e vocês vêm me dizer que não
conseguem extrair uma única palavra sensata da mesma?
Pela expressão do rosto de Olgall poder-se-ia ser levado a acreditar que ele estava
sendo martirizado por uma terrível dor de dente.
— Uma palavra? — continuou esbravejando. — O que conseguimos descobrir não
existe; nunca existiu! Até parece o berreiro dos demônios estelares. Ouça...!
Bateu furiosamente numa tecla.
No mesmo momento ouviu-se uma algazarra inconcebível. Não era nenhum choro,
nenhum crepitar produzido por perturbações do campo magnético, não era o grasnado ou
o uivo de ondas superpostas que interferissem umas nas outras. Também não era um
impulso deformado ou um raio distorcido, que surge muito raramente no tráfego de hiper-
rádio e faz com que, por algum motivo inexplicado, a mensagem seja irradiada em todas
as direções possíveis, menos naquela que deveria seguir.
Realmente parecia que os demônios haviam marcado um encontro na grande estação
subterrânea de hiper-rádio do planeta Archetz. Davam a impressão de berrarem a plenos
pulmões na sua língua.
— Desligue isso! Desligue! — berrou Enre, tapando os ouvidos.
Um sorriso presunçoso surgiu nos lábios de Olgall.
Desligou e perguntou em tom irônico:
— Então, acha que eu tenho razão ou não?
Enre estava fora de si.
— Quero a fita completa! — ordenou.
A fita era uma faixa perfurada de pequenas dimensões, fornecida pelo automático
positrônico que funcionava acoplado com o receptor. Num gesto apressado, Enre
empurrou a fita para dentro do aparelho de interpretação, que por meio de um processo
ótico tornava visíveis todos os impulsos, apresentando-os em forma de diagramas. Só
mesmo um perito experimentado seria capaz de extrair algum sentido da aparente
confusão resultante da representação pictórica de relações numéricas.
Enre concentrou-se sobre o quadro. Mandou que tudo fosse visualizado de novo.
Voltou a examinar o oscilógrafo, viu as amplitudes características e disse em tom
inseguro, como quem não tem muita certeza do que está dizendo:
— Isto é completamente normal, Olgall.
— Acontece que minha dor de ouvido não é normal, Enre — respondeu Olgall, em
tom mordaz. — Isto não me interessaria muito, se esta mensagem não tivesse sido
irradiada no curso de uma comunicação da Terra com o computador regente.
Enre estreitou a capa em torno do corpo. O alarma de Olgall arrancara-o da cama. O
único sinal disso eram os cabelos despenteados. Agora estava acordado como nunca
estivera. Estava à espreita: espreitava as próprias reflexões.
— Mais uma vez...
O novo exame não forneceu a menor indicação.
— Quer que mande tocar isso mais uma vez? — perguntou Olgall. — Se quiser,
sairei antes.
Enre não tinha a menor vontade de voltar a martirizar seus ouvidos. Lançou um
olhar pensativo para Olgall.
— Será que convém chamar o terrano? — perguntou em tom hesitante.
— O tal do filho de Rhodan? — perguntou Olgall em tom de espanto.
— Isso mesmo. Talvez ele nos forneça alguma informação sobre a nova técnica de
codificação usada pelos terranos. Mas se essa técnica tiver sido elaborada pelo
computador, também ele não nos poderá dizer nada.
Olgall balançou a cabeça.
— Pelo que dizem, o patriarca Cokaze já não tem muita simpatia por Cardif. Não
tenho a menor dúvida de que consentirá em libertar Cardif para este fim...
— Libertar? — repetiu o especialista em hiper-rádio. — Isso significa que...
— Ouvi dizer que sim. Não sei se é verdade...
Preferiu calar-se. Enre parecia indeciso.
— Olgall, dê-me outra fita que tenha aproximadamente o mesmo comprimento, a
fim de fazermos uma comparação...
Olgall sorriu.
— Já fiz isso, Enre! Mas fique à vontade.
Olgall tinha razão. Tanto no oscilógrafo como no aparelho de interpretação as duas
mensagens de hiper-rádio, examinadas ao mesmo tempo, não apresentaram qualquer
diferença. De repente Enre teve uma idéia.
— Olgall, os terranos interpuseram um fonovariador. É um processo velho.
Não havia mais nada que pudesse espantar Olgall. Já havia quebrado a cabeça a
respeito da mensagem de hipercomunicação que acabara de ser captada e não tinha a
menor esperança de que conseguiriam num curto espaço de tempo decifrar comunicações
de hiper-rádio desse tipo.
— O que vem a ser um fonovariador, Enre? Nunca ouvi falar nisso.
— Um aparelho que modifica os sons. Transforma, por exemplo, um A num U bem
profundo, ou faz aparecer determinada consoante em soprano, para da próxima vez
transformá-la num grasnado.
Olgall não tinha a menor vontade de perder mais tempo com essa mensagem
indecifrável.
— Deixo isso por sua conta, Enre! Não conheço nenhum fonovariador. Se os
terranos o construíram segundo o método positrônico das escolhas casuais... Bem, Enre,
divirta-se com as cento e vinte e três milhões de possibilidades. Eu...
Segurou-o pelo braço e apontou para o receptor, que continuava regulado para a
hiperfreqüência do computador regente.
Naquele momento estava sendo captada outra troca de mensagens entre a Terra e
Árcon III.
Enre desprendeu-se e dirigiu-se ao quadro de controle. Observou três instrumentos,
sem tirar os olhos dos mesmos. A seu lado, o setor de processamento trabalhava
silenciosamente, regulando-se para o compasso de concentração ou o ritmo de distorção
daquela transmissão de hiper-rádio.
— Mas nenhum elemento de referência para o fonovariador — disse Enre, em tom
de desapontamento.
Seguiram-se outros cotejos de dados. O compasso de condensação e o ritmo de
distorção mais uma vez haviam sido determinados com uma precisão de cinco casas
decimais. Um minúsculo aparelho esticava os impulsos condensados, convertendo-os ao
comprimento normal e, ao mesmo tempo, a distorção era eliminada. Só faltava ligar o
oscilógrafo.
— Pare! — berrou Olgall e bateu de punho cerrado na tecla principal de suprimento
de energia. — Isso é insuportável, até mesmo baixinho. O que será que esses terranos
inventaram desta vez?
— Talvez tenham sido os arcônidas — observou Enre.
Essa observação provocou a contradita de Olgall.
— Os arcônidas? Nunca! Mas agora também já acredito que devemos chamar o
filho de Rhodan. Se há alguém que possa colocar-nos na pista certa, é ele. Quer falar com
Cokaze, Enre?

***
Naquela hora, Bell dispunha de uma extraordinária capacidade de previsão. Depois
da segunda troca de hipermensagens com Árcon III mandou que o levassem da estação de
rádio ao arranha-céu em que funcionava a administração. Trazia no bolso uma quantidade
enorme de dados sobre os soltenses. Mas nem pensava nisso. Seus pensamentos giravam
em torno dos saltadores. Sempre que não se sentia muito contente com eles, chamava-os
de ciganos estelares.
Agora devia divertir-se com eles, pois soltava uma risada silenciosa e feliz. Até
chegou a esfregar as mãos e acenou com a cabeça, mas preferiu não largar as rédeas da
fantasia.
E nem poderia imaginar que as duas hipermensagens irradiadas para Árcon III, sob
o processo negativo, haviam colocado o Conselho Revolucionário de Archetz em estado
de tensão.

***

Enre encontrava-se perante uma assembléia dos patriarcas, composta de doze


pessoas. Estavam 145 quilômetros abaixo da superfície de Archetz. Eram duas horas da
madrugada, tempo padrão. Os doze patriarcas haviam sido arrancados do sono, mas a
essa hora ninguém se lamentava por ter sido privado do calor agradável da cama.
Fitavam ansiosamente o rosto de Enre. O maior especialista em hiper-rádio de que
dispunham os mercadores galácticos não compreendia por que o Conselho
Revolucionário fora convocado às pressas. E também não compreendia por que seu relato
provocara tamanho alvoroço entre os experimentados patriarcas.
Atual e Ortece, proprietários do Banco dos Mercadores Galácticos de Titon,
cochichavam entre si. O patriarca Cokaze, que desde o dia em que tivera de exercer
pressão contra esses dois homens passara a gostar deles cada vez menos, acompanhava a
palestra cochichada com um desagrado cada vez maior e, ao mesmo tempo, prestava
atenção ao que Enre tinha a dizer.
Cokaze cutucou Gatru, que se encontrava à sua direita. O patriarca Gatru era o
proprietário das mais modernas linhas de montagem subterrâneas, que produziam de dez
a trinta mil naves cilíndricas por dia, trabalhando pelo sistema de faixa contínua.
— Olhe os banqueiros — cochichou Cokaze.
Gatru soltou um resmungo e também passou a observar discretamente os dois
sócios.
O movimento subversivo era chefiado por doze patriarcas, que ainda não haviam
desistido do plano de eliminar o poder dos arcônidas e substituir o Império dos Arcônidas
pelo Reino dos Saltadores.
Acontece que não eram doze homens que estavam sentados em torno da mesa em
ferradura, mas treze. O décimo terceiro era o filho de Perry Rhodan, Thomas Cardif, um
desertor da Frota Solar que se transformara no pior inimigo do pai.
Só dedicava um ódio mortal a seu progenitor. Via nele o assassino de Thora, sua
mãe. Um boato infame que subitamente começara a correr em Plutão, encontrara seu
caminho até o filho de Rhodan. Quando a batalha dos druufs em torno da Terra estava em
pleno andamento, aproveitara a oportunidade para abandonar o mundo de gelo de Plutão
e estabelecer contato com o patriarca Cokaze. Só conhecia um objetivo: a destruição de
Rhodan.
E possuía a capacidade de atingir esse objetivo, pois era filho de Rhodan.
Cokaze foi o primeiro mercador galáctico que reconheceu o valor de Thomas
Cardif. Os dois banqueiros sentiram esse fato, quando Cardif os obrigou a desencadear de
uma hora para outra uma inflação que traria a ruína econômica do império.
O Banco, como costumava ser designado pelos arcônidas, era, face aos seus
recursos e influência, cem vezes mais forte que o banco oficial de Árcon.
O primeiro golpe parecia ter atingido o império em cheio, mas seguiu-se o ataque
totalmente inesperado de uma frota dos druufs composta de três mil naves, que
transformara a superfície do importantíssimo planeta Archetz num campo de destroços.
Uma única pessoa não se impressionara com isso: Thomas Cardif. Este usou todo o
poder persuasivo de sua personalidade para levar os saltadores a desferirem o segundo
golpe. Mas estes só aceitaram parte do plano taticamente bem elaborado: o atentado
contra Atlan, que recentemente se tornara o Imperador Gonozal VIII, do qual mandaram
furtar o ativador celular. Tratava-se de uma cápsula maravilhosa, vinda do planeta
Peregrino, e que permitira que Atlan não envelhecesse no curso dos últimos dez mil anos.
O atentado fracassara. Depois de uma luta de vida e morte, o ativador celular de
Atlan fora tirado de Segno Kaata, o anti.
Em virtude desse fracasso, Cardif passara a ocupar uma posição secundária junto
aos patriarcas. Sua presença por ocasião do relato de Enre resultará unicamente do pedido
do especialista, que desejava interrogar Cardif sobre o novo sistema de codificação dos
terranos.
Naquele dia, a assembléia estava sendo dirigida por Gatru.
— O que tem a dizer sobre isso, Cardif? — falou, pedindo que manifestasse sua
opinião sobre a exposição de Enre.
Thomas Cardif, a imagem fiel de seu pai. Seu rosto era igual, iguais eram seus
gestos, igual ainda era sua capacidade de alcançar imediatamente uma visão de conjunto
de qualquer questão e extrair dela as conclusões corretas. Mas faltava-lhe a maturidade de
caráter, o autodomínio que já distinguiam o jovem Perry Rhodan, enquanto este ainda
servia na Força Espacial dos Estados Unidos, antes que entrasse na primeira Stardust e
voasse até a Lua em companhia de Bell, Fletcher e o Dr. Manoli.
Cardif levantou-se. Seus olhos de arcônida, que eram uma herança da mãe,
chamejavam.
— Não conheço o novo método de codificação da Terra. Na minha opinião, tal
método não representa um acontecimento capaz de abalar o mundo. Mas o fato de que a
Terra fala diretamente com o computador, embora Atlan se encontre no mundo de cristal,
deveria merecer o máximo de nossa atenção...
— Obrigado! — interrompeu Gatru, em tom áspero. — Não lhe pedimos que nos
apresentasse sugestões, apenas queríamos saber o que sabia a respeito do novo método de
codificação.
Thomas Cardif sorriu. Abriu a boca para fazer uma observação mordaz, mas logo
voltou a fechá-la e sentou-se. Mesmo quando já estava acomodado há algum tempo,
continuava a fitar Gatru, mas de maneira estranha, numa mistura de escárnio, cólera e
compaixão.
Gatru, que era um rei entre os clãs dos saltadores e um dos melhores clientes do
Banco, era um homem frio, como todo comerciante e grande industrial. Não iria
conformar-se por muito tempo em ser alvo do olhar de Cardif. Enquanto Fugir, um
patriarca dos clãs unidos de Alton-Fugir, fazia perguntas a Enre, Gatru virou-se para um
dos robôs e disse:
— Leve-o!
Um sorriso traiçoeiro surgiu no rosto de Ortece e Atual, diretores do Banco, quando
dois braços de aço de um robô arrancaram Thomas Cardif da poltrona e o retiraram da
sala.
Cokaze, um homem martirizado por sentimentos contraditórios, era o único que não
concordava com essa evolução dos acontecimentos. Ficou tão aborrecido com o sorriso
traiçoeiro dos banqueiros que se deixou dominar pela cólera. E foi neste estado que se
dirigiu a Gatru:
— Isso teria sido necessário? Será que você ainda não conhece esse terrano?
Gatru respondeu em tom indignado:
— Se você faz questão absoluta de ser considerado um idiota por esta assembléia, o
problema é seu, Cokaze. Mas nem por isso nós também somos idiotas. Acho que a
permanência na Terra não lhe fez bem.
A barba bem tratada de Cokaze parecia tremer. Seus punhos se cerraram. Os olhos
chamejaram de raiva, mas o patriarca não respondeu.
— Sua toupeira cega — disse e reclinou-se na poltrona, cruzando os braços sobre o
peito.
Permitira-se entrar em choque com o patriarca mais rico de Archetz, e sabia que
podia permitir-se uma coisa dessas. Tinha atrás de si os patriarcas que passavam a vida
entre as estrelas, nas naves de seu clã. Qualquer mercador galáctico via nos membros de
sua raça, que viviam em Archetz, um grupo de toupeiras cegas. Era a pior ofensa que
podia ser dita a um habitante do mundo de Archetz.
Gatru virou-se abruptamente em sua poltrona. Os olhos estreitaram-se. Suas mãos
crisparam-se para agarrar Cokaze.
— Faça isso se tiver coragem, Gatru! — disse Cokaze. — Atreva-se a tocar em
mim, e dentro, de uma semana você poderá paralisar suas linhas de montagem. Nenhum
saltador comprará uma única de suas naves! Não se esqueça de que você depende de nós,
não nós de você. Para mim, esse terrano bem vale uma briga com um indivíduo como
você.
Na pequena sala, situada 145 quilômetros abaixo da superfície de Archetz, passou a
reinar um silêncio completo. Todos estavam ansiosos para ouvir o que Cokaze tinha a
dizer a Gatru. O velho chefe de clã olhou em torno, admirado. Todos o fitavam com os
rostos tensos. Cokaze soltou uma risada de escárnio:
— Isso mesmo; prestem atenção! Gatru mandou retirar o terrano. Não concordei
com isso. Por quê? Porque o terrano foi o único que reconheceu o que há de importante
no relato de Enre: o contato direto entre a Terra e o computador regente de Árcon III, sem
a interferência de Atlan.
“Será que vocês ainda não compreenderam o que isso significa para nós? Perry
Rhodan é o segundo imperador de Árcon. Qualquer pessoa que possa usar o saber e o
poder do gigantesco computador positrônico é um pouco mais forte que nós. Ou será que
deveremos sentar em cima de um monte de escombros fumegantes e exclamar: este é o
novo Império dos Saltadores? Será que não podemos ter outra idéia, senão a de atacar
Árcon com todas as naves de que podemos dispor? O que poderemos ganhar com isso?
Apenas um monte de escombros! E acabamos de pôr para fora a única pessoa capaz de
apontar-nos um outro caminho, menos sanguinolento e mais seguro, que possa conduzir
ao nosso objetivo.
“Quero mencionar mais um detalhe.
“Tomem cuidado. É possível que um dia Perry Rhodan bata à nossa porta, e então
apenas poderemos levantar os braços.”
Enre, que ficara fascinado com as palavras de Cokaze, amaldiçoou o momento em
que Olgall o arrancara do sono, para trabalhar com uma mensagem indecifrável.
Acreditara que os homens, em cujas mãos confluíam os fios que dirigiam os
movimentos subversivos, formassem um grupo de grandes cabeças, de pessoas
equilibradas, mas agora teve de reconhecer, cheio de perplexidade, que as coisas eram
muito diferentes.
Só se sentia impressionado com um dos patriarcas: Cokaze!
E este se retirava da pequena sala.

***

O Dr. Orge Olundson e seus colaboradores haviam extraído os pontos importantes


das extensas informações sobre os soltenses, transformando-as num conjunto harmônico
e facilmente compreensível. Mas ainda havia um ponto que não lhe agradava.
Ali, nas informações fornecidas pelo gigantesco centro de computação, também
estava escrito! Os soltenses são um povo de mentirosos!
O Dr. Orge Olundson lançou um olhar preocupado para o relógio. Estava na hora de
enviar o relatório ao chefe. Num gesto hesitante colocou sua assinatura depois das outras.
— Um povo de mentirosos... — disse para si mesmo, balançando a cabeça. — Se
isso é verdade, o que ainda não acredito, só posso fazer votos de que o chefe não tenha
escolhido os soltenses para serem nossos amigos. Um povo de mentirosos... É incrível!

***

O relatório do etnólogo foi o último a chegar às mãos de Perry Rhodan. Mas foi o
primeiro em que o administrador pôs as mãos.
No segundo parágrafo, primeira oração, leu o seguinte:
Os soltenses são um povo de mentirosos.
Depois de ler a frase duas vezes, Perry disse:
— Faça o favor de ver isto, Bell! Reginald Bell inclinou-se sobre o papel, sem
desconfiar de nada. O dedo de Perry apontava uma linha.
— Isso só pode ser uma piada de mau gosto — disse Bell. — Quem é o autor deste
relatório? Os etnólogos? Vou entrar em contato com essa gente. Vou dizer umas verdades
ao Olundson. É o cúmulo da desfaçatez! Como pode brindar-nos com uma coisa dessas?
Bell estava zangado, e a cólera era um estado de ânimo raramente notado em sua
pessoa, apesar de viver resmungando, praguejando e usando expressões pouco
convencionais. Estendeu a mão em direção ao microfone, a fim de entrar em contato com
o Dr. Olundson, mas Rhodan fez uma sugestão:
— Vamos dar uma olhada nos outros relatórios. Talvez encontremos nos mesmos
alguma coisa que possa esclarecer essa afirmativa inacreditável.
Dez minutos antes da hora marcada para a conferência com os mutantes, o Dr. Orge
Olundson entrou pela primeira vez em sua vida no gabinete de Perry Rhodan. Bell, com
sua voz trovejante, ordenara o comparecimento do etnólogo.
— Meu caro Olundson — principiou
Bell. — Parece que gosta de fazer piadas. O senhor acha que temos tempo para
aborrecer-nos com seus gracejos de mau gosto? Ora, veja! Os soltenses são um povo de
mentirosos...
Nem mesmo durante o debate com os parlamentares do Império Solar, quando
pesadas acusações foram formuladas contra ele e Rhodan, Bell chegara a falar tão alto.
O Dr. Orge Olundson estremeceu visivelmente, engoliu em seco e, num gesto
totalmente inesperado, aproximou-se de Reginald Bell!
— Por favor, Marechal Bell! — disse, oferecendo-lhe ostensivamente três fitas
perfuradas.
— O que quer que eu faça com isso? — gritou Bell.
— Quero que leia... e depois grite! Nesse instante, Bell percebeu que fora longe
demais.
— Quem foi que gritou, doutor? Talvez tenha usado expressões mais claras que de
costume...
Subitamente Bell pareceu ficar sem fôlego. Finalmente disse com a voz triste:
— É verdade, Perry! Os soltenses são um povo de mentirosos! Leia!
Enquanto Rhodan procurava familiarizar-se com o conteúdo da fita perfurada, Bell
lançou um olhar desajeitado para o etnólogo. Subitamente colocou a mão sobre o ombro
do cientista...
— Não leve a mal, doutor... Devo pedir desculpas por...
O etnólogo interrompeu-o apressadamente.
— Por quê? Pela experiência por que passei, ao notar que os semideuses do planeta
Terra continuam a ser humanos? Estaria disposto a pagar um preço muito mais elevado
por isso.
Até Rhodan levantou os olhos.
— Semideuses? — perguntou Bell.
— Isso mesmo. Os senhores não envelhecem. Nunca lhes ocorreu que com isso
causam pavor à população? Foram, por assim dizer, erigidos à condição de semideuses.
— Doutor...
Os olhos cinzentos de Rhodan fitavam-no com uma expressão séria.
— Ficamos-lhe muito gratos por ter chamado nossa atenção sobre um ponto a
respeito do qual nunca chegamos a refletir. Semideuses! Logo nós.. — soltou uma risada,
mas não foi uma risada alegre. — Os semideuses levam uma vida alegre e confortável.
Acontece que, nestes últimos anos, Mister Bell e eu tivemos exatamente uma semana de
férias. Quero fazer-lhe uma pergunta, doutor. O senhor acha que um semi-deus costuma
ser tão modesto como nós?
Não quis ouvir a resposta. Foi para junto do etnólogo e apertou-lhe a mão.
— Ficamos-lhe muito gratos pela indicação que acaba de nos fornecer, mas nem por
isso o senhor se livra de uma tarefa. Terá de explicar por que os soltenses são um povo de
mentirosos.
— Ora, sir, se eu soubesse a resposta a esta pergunta também me sentiria muito
melhor. Acontece que não sei. No material examinado só encontramos a palavra
mentirosos, e no material vindo de Árcon a mesma coisa foi expressa numa frase: os
soltenses são um povo de mentirosos. Mas em nenhum lugar se explica por que essa
afirmação é feita.
O Dr. Olundson retirou-se. Rhodan e Bell ainda dispunham de alguns minutos antes
da conferência.
O gorducho tinha alguma coisa na ponta da língua. Passou a caminhar à frente da
escrivaninha de Perry. De repente parou diante do amigo, respirou profundamente e
perguntou:
— Perry, você já se lembra de quem ou o que lhe deu essa idéia dos soltenses?
Naquele momento, o sexto sentido do gênio fizera Perry Rhodan reconhecer o que
se passava na mente do amigo.
— Você mandou vigiar-me?! — exclamou.
— Há algumas horas, Perry! E você ficará sob controle até que saiba o que lhe deu
essa idéia dos soltenses. Acho que estamos entendidos, não estamos, Perry?
— Entendo o sentido das suas palavras, Bell, mas não compreendo por que deu uma
ordem dessas às minhas costas.
Perry lançou um olhar penetrante para o amigo.
— Você acaba de usar uma expressão muito feia, Perry! — Bell sentou-se em
postura relaxada à frente de Rhodan, mas sua confortável posição não poderia dissimular
a gravidade da situação. — Aquilo que fiz há algumas horas, depois de conversar com
Mercant, foi feito por você, não contra você.
— Quer dizer que você suspeita de mim, Bell?
— Isso mesmo. Ou será que você já pode responder à minha pergunta?
— Não.
— Nesse caso tudo continuará como está.
— E se eu lhe ordenar que a vigilância de minha pessoa seja suspensa
imediatamente?
Bell sorriu.
— Você nunca fará uma coisa dessas. Como administrador... — não completou a
frase.
— Muito bem. Mas mudei de idéia sobre uma coisa. A conferência com os mutantes
será realizada só por mim. Volte a chamar o computador de Árcon III e peça-lhe que
indique os fundamentos em que se baseia para afirmar que os soltenses são um povo de
mentirosos. Se o computador não estiver em condições de dar esta informação, teremos
de incomodar Atlan. Preciso da informação até amanhã, às seis horas, tempo padrão.
— Será um prazo muito curto, caso Atlan tenha de recorrer a seu indolente serviço
de informações. Estou curioso para ver no que vai dar isso.
— E eu me sinto preocupado, Bell, pois essa informação sobre os soltenses é uma
coisa terrível. Insista junto a Atlan, explicando-lhe que temos necessidade absoluta dessa
informação antes da decolagem.
Bell retirou-se. A caminho da grande estação de hiper-rádio, parou no gabinete de
Allan D. Mercant.
— Ele adivinhou, Mercant! — enquanto dizia estas palavras, Bell entrou
precipitadamente no gabinete do chefe do Serviço de Defesa Solar.
O marechal levantou os olhos. Parecia espantado.
— Já? Qual foi a reação de Perry?
— Foi uma reação gelada, Mercant, tão gelada como raramente encontrei nele.
Aliás, o senhor sabe que os soltenses são um povo de mentirosos?
Bell já se encontrava na porta.
— São o quê?
Reginald Bell ficou satisfeito ao notar que até mesmo Allan D. Mercant perdera o
autocontrole.
— Feche a boca, Mercant! Antes que possa responder à sua pergunta, dizendo por
que os soltenses são um povo de mentirosos, terei de entrar em contato com o
computador de Árcon III, e se este também não souber, chamarei Atlan, ou melhor, Sua
Alteza.
— Um momento, Bell; não vá embora — gritou Mercant, quando Bell se dispôs a
sair. — Faça o favor de contar!
— Ah, então as coisas são assim? Estava na vez de Bell ficar espantado.
Quando o chefe do Serviço de Defesa se empenhava pessoalmente num assunto, o
caldo geralmente era muito mais grosso e menos saboroso do que se supunha. É que
Mercant possuía aquilo que se poderia chamar de faro natural.
Bell contou e Mercant ouviu-o em silêncio. Quando concluiu, o marechal levantou-
se.
— Irei com o senhor.
Na sala de comando de hiperfreqüência do grande emissor, antes de mais nada, Bell
cuidou de ficar a sós com Mercant. Dali a pouco, a mensagem negativa foi irradiada pela
onda do grande centro de computação. O conteúdo da mensagem resumia-se no seguinte:

Por que os soltenses são mentirosos?


Pedimos fundamentar,
(a) Rhodan.

Mercant notou o sorriso de Bell.


— Por que está rindo, Bell?
— É que estou imaginando os saltadores que devem estar à escuta, Mercant. Cairão
sobre a transmissão que nem uns abutres. Gostaria de ouvir as pragas que esses ciganos
estelares vão soltar, porque...
— Será que seu estoque ainda não é suficiente? — interrompeu Mercant. — O que
significa a palavra trobel?
— Santo Deus, onde foi que o senhor ouviu essa palavra? — perguntou Bell, em
tom de espanto.
— Onde poderia ser? Ouvi a palavra da boca de Gucky. Foi ontem. Esse rato-castor
passou uma descompostura num dos membros do Exército de Mutantes, e, no fim, ainda
o chamou de trobel. Isso significa...?
— Não é que esse sujeito andou lendo novamente os meus pensamentos? —
constatou Bell em tom seco.
— Nesse caso ele deve ler cada coisa... — respondeu Mercant em tom ambíguo. —
Acontece que ainda não sei...
— Fim de papo! A resposta chegou, Mercant. Vem de Árcon III.
Com uma pressa espantosa, Bell correu para junto do aparelho, pegou a fita
perfurada, que continha a resposta do computador gigante, e dirigiu-se a um pequeno
aparelho que não estava acoplado ao equipamento de rádio.
A caixinha em cujo interior desapareceu a fita perfurada transformou a mensagem
negativa que acabara de ser captada numa mensagem positiva. Enquanto isso destruía a
fita negativa, à medida que o texto era registrado na fita positiva.
— Droga! — disse Bell.
— Isso é uma expressão inequívoca! — observou Mercant, em tom irônico.
O gigantesco centro de computação respondera que não sabia informar por que os
soltenses seriam um povo de mentirosos.
— Atlan terá de entrar na dança! Uma vez preparada a fita perfurada para o impulso
concentrado, o pequeno aparelho lacrado elaborou o negativo.
Mercant acompanhou-o com os olhos. De repente disse:
— Essa idéia deveria acudir a qualquer pessoa que entende alguma coisa de hiper-
rádio, Bell!
Bell possuía grande capacidade, mas não costumava exibi-la. Na área do hiper-rádio
era um perito de primeira ordem.
Com o negativo na mão, lançou um olhar triste para Mercant.
— Veja, Mercant — disse com um amplo gesto de mão. — Por aqui não há nada
que possa representar um mistério para mim. Mas esta caixinha construída por nossos
engenheiros representa um livro fechado para mim. A expressão “negativo de hiper-
rádio” já é completamente errada. Tão errada e enganadora como se, por exemplo, eu
dissesse preto e quisesse dizer redondo. O senhor compreendeu?
— Pelo amor de Deus, Bell, transmita logo o impulso concentrado! Não quero ouvir
falar mais nisso, mas gostaria que o senhor me explicasse o que significa a palavra trobel.
— Antes tenho de contar-lhe alguma coisa sobre o processo do negativo de hiper-
rádio, Mercant. De acordo?
— Seu chantagista! — respondeu Mercant com um ligeiro sorriso. — Um belo dia
ainda descobrirei o que significa essa palavra...
— E eu torcerei o pescoço de Gucky, se tiver de passar por um vexame por culpa
dele — ameaçou Reginald Bell e transmitiu a indagação dirigida a Atlan.
“Aguarde”, dizia a resposta de Atlan. “Preciso mandar realizar investigações. (a)
Gonozal VIII.”
— Bem — começou Bell em tom de resignação. — Com a lentidão dos
dorminhocos arcônidas, poderemos preparar-nos para uma longa espera!
4

O rugido dos jato-propulsores instalados na protuberância equatorial da Drusus foi


crescendo, enquanto o supercouraçado deixava para trás o envoltório atmosférico da
Terra e ganhava velocidade.
A nave capitania da Frota Solar acabara de decolar numa missão especial. A ação
fora batizada com o nome Comando de Risco Solten.
John Marshall, o telepata mais competente do Exército de Mutantes, que exercia o
comando daquela tropa singular, entrou no camarote de Reginald Bell.
— Entre, Marshall — pediu Bell e pegou dois cálices de conhaque. — Ainda faltam
alguns minutos para a transição, e isso basta para um conhaque. O Dr. Manoli também é
de opinião que um ou dois goles de aguardente antes do salto pelo hiperespaço não
podem fazer mal a ninguém. Pois bem. À saúde!
— À saúde de quem? — perguntou Marshall, passando a mão pelo cabelo escuro.
— Pode ser à saúde dos soltenses, dos mentirosos — disse Bell em tom ruidoso,
dando a entender que a questão central que o afligia naquele momento, a indagação sobre
os motivos por que os soltenses foram designados por mentirosos, ainda não encontrara
solução.
— Será que não deveríamos beber à saúde de Gucky, Mister Bell? — perguntou o
mutante.
Bell estacou. Raramente Marshall mudava de assunto, quando não havia um bom
motivo para isso.
— Qual é a última que ele andou fazendo, John?
— Foi ele quem botou na cabeça do chefe a pulga dos soltenses. Foi o rato-castor!
Bell levantou-se como se uma bomba tivesse explodido perto dele.
— Uma pulga; essa é boa! Muito boa mesmo — disse num gemido. — Ora, Gucky,
você está com sorte por não estar aqui neste momento. Logo este! E eu mandei vigiar
Perry e por isso tive de passar o pior minuto de minha vida. Tive de ouvir de sua boca
que estou tramando às suas costas. E tudo isso por causa desse sujeito. John, o chefe já
sabe disso?
— Ainda não. Informá-lo-ei depois da transição.
— Não se preocupe. Terei o maior prazer em cuidar disso, John. Mas vamos
depressa... Viva!
Dali a trinta segundos teve início a desmaterialização e alteração estrutural,
provocando em todas as pessoas, que se encontravam na nave, a dor lancinante que se
seguia a tal processo. O farfalhar e o murmúrio do hiperespaço de quinta dimensão
penetrou no gigantesco veículo espacial esférico.
Reginald Bell gemeu e esfregou a nuca. Era onde costumava sentir a dor da
transição com maior intensidade. Marshall, que estivera encolhido, ergueu-se
cautelosamente, aspirando ruidosamente o ar. O movimento de expiração foi
acompanhado de um som de alívio.
— Maldito rato-castor! Que moleque!
O fato de terem percorrido num tempo zero uma distância de cerca de dez mil anos-
luz já não significava mais nada para os dois homens. Haviam passado por isso centenas
de vezes, e nessas oportunidades sempre experimentaram a dor da desmaterialização e da
rematerialização. Tudo isso pertencia a seu estilo de vida. Mas o que assumia mais
importância era a brincadeira que o rato-castor se permitira com o chefe.
— Há um nó nessa história, Marshall — disse Bell em tom pensativo. — Na minha
opinião, o rato gigante não seria capaz de cometer tamanha tolice. Até hoje Gucky nunca
se atreveu a entrar em choque com Perry ou fazer suas brincadeiras de mau gosto com
ele. Sabe mais alguma coisa, John?
— Não, só sei aquilo que já contei. Estava a caminho daqui, quando vi Gucky correr
furtivamente pelo convés. Quase automaticamente entrei em seus pensamentos e notei
quando mentalizou: Perry, o que deverei fazer para que você saiba que a idéia dos
soltenses foi minha? Naquele momento, Gucky já devia ter percebido que alguém
controlava seus pensamentos. Desapareceu num salto de teleportação. Foi só isso.
Bem devagar, Bell voltou a encher os cálices. Afastou a garrafa, deixou o suporte de
lado e balançou a cabeça.
— Marshall, não acredito que na Terra exista um único homem que tivesse a idéia
de haver em algum canto do Universo um povo chamado soltenses. Por isso fico me
perguntando como Gucky poderia saber desse povinho do Império de Árcon? Onde
adquiriu seus conhecimentos a esse respeito? E, para remate dessa história louca, ainda
acontece que se diz que os soltenses são um povo de mentirosos.
Bell tomou um grande gole. Parecia desesperado.
Naquele momento, Perry Rhodan chamou pelo sistema de intercomunicação de
bordo. Viu que John Marshall se encontrava no camarote de Bell.
— Gostaria de falar com vocês dois, Bell.
Dali a alguns minutos entraram no camarote de Rhodan. Bell olhou por acaso para o
sofá. Gucky parecia sentir-se muito bem acomodado.
Imediatamente a cólera apoderou-se da mente de Reginald Bell. O ar começou a
tremer acima do sofá, e Gucky desapareceu do camarote de Rhodan.
— Ora essa, onde está Gucky? — perguntou Rhodan em tom de espanto, ao ver que
o sofá estava vazio.
Isso representou a palavra de ordem de Bell.
Em todos os cantos da Drusus, os alto-falantes do sistema de chamada geral
começaram a soar.
Estavam à procura de Gucky! Havia uma ordem para que o mesmo se apresentasse
imediatamente ao administrador-geral. A ordem foi repetida incessantemente pelos alto-
falantes.
— Vocês andaram fazendo minha caveira com o chefe! — disse uma voz vinda do
sofá.
Era Gucky! Parecia uma flor murcha. Escondia seu dente roedor. Seus olhos de rato
não tinham descanso. O silêncio de Rhodan devia ser uma coisa terrível para ele. Naquela
hora, o rato-castor não se atreveria a recorrer aos seus dons telepáticos para ler os
pensamentos de Perry.
— Por que fizeram tanto espalhafato por minha causa, chefe? Será que minha
presença é mesmo indispensável?
Rhodan permaneceu em silêncio. Mas seus olhos cinzentos diziam bastante.
— Está bem... — Gucky recuperou o ânimo e desistiu instantaneamente da postura
desanimada.
Saiu de cima do sofá, esforçou-se para assumir uma pose militar à frente de Rhodan
e começou a piar.:.
— A idéia não é minha. Foi aquele cigano saltador... bem, foi Cokaze quem a deu a
mim...
— Já me sinto um pouco melhor! — exclamou Bell. Parecia respirar com
dificuldade e abriu o colarinho.
— Não seja tão convencido — disse Gucky, dirigindo-se a ele, o que constituía um
sinal evidente de que não se sentia muito culpado. — Durante minha visita à Cok I,
enquanto a nave cilíndrica ainda descrevia uma órbita em torno de Vênus, captei na
mente de Cokaze um pensamento sobre o sistema de Forit e o seu segundo planeta,
chamado Solten. O velho só sabe pensar em dinheiro. Naquele momento calculava
quanto os soltenses lhe deviam em royalties. Chegou à conclusão de que essa quantia lhe
permitiria adquirir mais três naves...
— Não seja tão prolixo, Gucky! — disse Bell em tom áspero.
— OK! Colhi a idéia e não me esqueci dela. Neste meio tempo liquidei certas
coisas. O chefe gostaria de saber como aproximar-se de Cardif. Logo engatei. Pensei na
fonte de renda de Cokaze. Pensei em mais alguns detalhes e... bem, já que você faz
questão de saber, gorducho, é bom que eu lhe diga isto: o plano da Ação Solten é todinho
meu, de A a Z. Bem, Perry, agora encoste-me à parede e mande que me fuzilem.
Falando a meia voz, Perry disse a Bell:
— Dê uma corrida até seu camarote e traga uma garrafa de conhaque. Preciso de
uma dose dupla e não tenho nenhum.
— Um momento — piou Gucky, e desapareceu.
Dali a vinte segundos, o rato-castor surgiu do nada, com a garrafa de conhaque de
Bell na mão.
— Vocês devem ter tido uma bebedeira daquelas. Em seu camarote há um cheiro de
cachaça...
— Chega! — Rhodan deu esta ordem em tom penetrante.
Sorveu um grande gole de conhaque e descansou o copo, sem dizer uma palavra.
Lançou um olhar insistente para o rato-castor.
— Foi você quem me sugestionou para que concebesse o plano, Gucky? Não
acredito!
— Você precisa acreditar, Perry. Nem eu mesmo sabia que era capaz de influenciá-
lo com tamanha facilidade. E não tive a intenção de fazê-lo. Apenas... bem, você sabe,
não pude resistir à tentação... li um pouco nos seus pensamentos, e comecei a preocupar-
me com você. Fiquei pensando sobre a melhor maneira de ir a Archetz para encontrar
Thomas. Comecei a raciocinar e, enquanto raciocinava, descobri que você acompanhava
meu pensamento.
“Perry, eu juro que tive medo. Não tive coragem de lhe dizer o que estava
acontecendo com você por minha causa. Mas não tenho culpa de que digam por aí que os
soltenses são um povo de mentirosos. Eu nem sabia disso.”
Bell cochichou a seu lado:
— Estou com vontade de torcer seu pescoço!
— Pois experimente! — advertiu Gucky com a maior tranqüilidade. — Se continuar
assim, procurarei o velho Mercant assim que regressarmos à Terra e lhe explicarei o que
significa a palavra trobel.
— O que foi que vocês disseram? — perguntou Rhodan, que se distraíra com essa
conversa particular entre Gucky e Bell.
— Nada de importante — apressou-se Bell em responder. — Você vê algum ponto
fraco no plano Solten, elaborado por Gucky?
Rhodan lançou-lhe um olhar desconfiado. A mudança de idéia de Bell fora repentina
demais. Quando fitou Marshall, só viu um rosto estreito e impenetrável. Gucky foi
bastante inteligente para conservar-se em segundo plano. Naquele momento não tinha a
ambição de estar no centro dos acontecimentos.
— O plano é excelente, mas o que Gucky fez é uma coisa terrível. Explique-me de
que modo conseguiu sugestionar-me, Gucky!
Gucky exultava intimamente. Perry Rhodan o chamara de Gucky, não de Tenente
Guck, o que era um sinal de que a trovoada já estava passando.
— Perry, nem tive a intenção de influenciá-lo, ao menos de forma consciente.
Se é que fiz uma coisa dessas, isso aconteceu porque de repente descobri que você
pensava através dos meus pensamentos. Concluí que minha força sugestiva era tão fraca
que conseguia passar por baixo do seu bloco de segurança. Por favor, não me faça jurar
três vezes de que realmente foi assim. É preferível acreditar logo. Apenas, não tive a
coragem de preveni-lo, e isso foi uma atitude pouco desleal. Vez por outra pensei:
Gucky, seu plano é tão bom. O chefe vai matar dois coelhos com uma só cajadada.
Primeiro fará secar uma das fontes de dinheiro do cigano estelar Cokaze, e, além disso,
através de Solten, conseguirá chegar a Archetz sem correr o menor perigo... Bem, Perry,
aí fiz uma das minhas. Está certo?
— O que é que você quis dizer ao falar na fonte de dinheiro? — perguntou Rhodan
com certa surpresa.
Gucky parecia crescer a olhos vistos.
— Bem, entre Cokaze e as chefes dos soltenses existe um tratado, segundo o qual as
naves dos soltenses trabalham para o clã dos saltadores e, se entendi bem o que Cokaze
estava pensando, pagam a ele, a título de royalties, dez por cento do movimento bruto.
Acho que não seria muito difícil dar oportunamente uma sacudidela em nosso amigo
Cokaze, a fim de levá-lo a desistir desses dez por cento. Com isso teríamos mais alguns
amigos no Império de Árcon.
— Hum — disse Bell — um povo de mentirosos.
— Isso já é outra coisa. Vou pensar em sua idéia, Gucky. Espero que você
compreenda que, em virtude dessa história, sua promoção será bastante demorada!
Gucky riu com o dente roedor solitário. Seus olhos chispavam como se tivessem
sido cromados.
— Ora essa, chefe — disse em tom imponente. — Você realmente acha que eu dou
muita importância a isso? Pouco importa que você me promova ou me rebaixe. O
principal é que não me tenha mandado embora. Mas agora também preciso de uma dose
dupla de conhaque. Bell, meu querido gorducho, acho que você não terá nenhuma
objeção, não é mesmo?
Bell limitou-se a gemer. Sabia perfeitamente que o rato-castor gostava de beber na
própria garrafa, e que suportava quantidades enormes de álcool.
— Caramba! — Rhodan fitou a garrafa vazia com uma expressão de perplexidade.
Gucky passou a pata pelo focinho, lambeu o dente roedor e disse em tom de
connaisseur:
— Bell, já tomei cachaça melhor que esta no seu camarote. Mas a que acabo de
tomar também não é nada má. Será que minha presença ainda é necessária? Acredito que
não...
Desapareceu imediatamente. O ar ainda estava tremendo, quando Rhodan dirigiu
uma pergunta ao telepata Marshall:
— John, o senhor acredita nas explicações de Gucky?
— Sim senhor, mas só porque foi Gucky que disse. Se fosse qualquer outra pessoa,
eu não acreditaria.

***

Enre, o especialista de hiper-rádio dos mercadores galácticos estabelecidos no


mundo de Archetz, tangia seus colaboradores ininterruptamente em direção à loucura. Ele
mesmo também não estava muito distante da mesma.
Quatro mensagens de hiper-rádio da Terra, dirigidas a Árcon, uma delas expedida
para o planeta da guerra e outra para o mundo de cristal, resistiam a todas as tentativas de
decifração.
— Isso nem são mensagens, são perturbações — afirmou um dos colaboradores.
Enre provou a todos que realmente se tratava de transmissões de hipercomunicação
vindas pelo hiperespaço, mas era só o que sabia. Apesar disso não desistiu. Ao meio-dia,
ordenou que todos os outros trabalhos fossem suspensos.
Ao anoitecer, descobriram a primeira pista.
— Enre! — fora seu colaborador mais antigo que gritara por ele. — Veja! As
posições de amplitude não são corretas...
Pareciam deslocadas; realmente estavam deslocadas. Pela meia-noite tiveram
certeza a este respeito. Enre mandara todos para casa, com exceção de seu representante.
O computador positrônico zumbia baixinho a seu lado. Aguardavam ansiosamente o
importante resultado da computação. A máquina deveria informá-los sobre o que
acontecera com a amplitude de hiper-rádio. Queriam saber por que cada uma das quatro
misteriosas mensagens, vindas do planeta Terra, só era formada de amplitudes
deslocadas.
O cartão de plástico caiu no receptáculo. Enre e seu representante estudaram-no
atentamente.
Ficaram pasmos. O computador afirmava que as amplitudes das quatro transmissões
de hiper-rádio não haviam sofrido qualquer deslocamento.
— Vou dormir! — exclamou Enre em tom de decepção e atirou o cartão perfurado
sobre a mesa.
— Eu não! — disse seu representante. — Quero saber que truque é este que os
terranos nos estão aplicando.
— Você conhece os terranos? — perguntou Enre.
— Não.
— Pois eu conheço. Ao menos um deles. O filho de Perry Rhodan. Por todos os
deuses, se todos os terranos forem como este, eles ainda nos darão muito o que pensar!
— Até parece que esse indivíduo o incomodou bastante!
— E não incomodou só a mim! — gritou Enre, em tom exaltado. — O Conselho
Revolucionário se dividiu por causa desse terrano. E por quê? Só porque o filho de
Rhodan ficou olhando demoradamente para o patriarca Gatru.
— E agora ele está preso?
— Quem? — perguntou Enre.
— O filho de Rhodan.
— Provavelmente está bem guardado lá embaixo. Talvez no dobro da profundidade
que estive esta noite. Nem imaginamos o que existe por lá. Nunca vi instalações
industriais tão grandes como as observadas hoje de noite. E olhe que, só quando o
elevador antigravitacional atravessava um espaço vazio, conseguia enxergar nitidamente.
Bem, isso não nos adianta nada. Faça um bom trabalho. Veja o que consegue fazer com
essas hipermensagens. Boa noite...

***

O Coronel Baldur Sikermann, comandante da Drusus, depois da quarta transição fez


a nave capitania penetrar cada vez mais profundamente no pequeno sistema de Forit,
sempre sob uma total proteção contra a localização. Entrou em posição de espera nas
órbitas do quarto e do terceiro planeta. O rastreador de massa da quinta dimensão estava
com a guarnição dobrada, enquanto os rastreadores estruturais, o telêmetro e outros
instrumentos, que poderiam decidir a conservação ou a destruição da nave esférica de
1.500 metros de diâmetro, contavam com guarnição triplicada.
As escotilhas das torres de canhões encontravam-se abertas, as guarnições estavam
postadas atrás das armas, prontas para disparar.
O estado de prontidão: isso significava que todos os ocupantes da nave usavam traje
espacial. Apenas o capacete estava jogado para trás.
Na gigantesca tela panorâmica brilhava a fascinante aglomeração de estrelas do
grupo M-13. Por maior que fosse a tela, com a ampliação que estava sendo usada, não era
capaz de exibir todo o sistema. Nenhum dos homens da sala de comando dava atenção ao
espetáculo. Ninguém tinha o espírito embotado diante dessa beleza irreal, mas todos eles
dedicavam-se exclusivamente à sua tarefa, que não lhes deixava tempo de contemplar
mais uma vez um quadro que já fora contemplado outras vezes.
O sistema de Forit, que ficava a 248 anos-luz do mundo central do grupo estelar, já
gravitava na zona rarefeita, onde as estrelas eram menos numerosas. Forit era um
pequeno sol avermelhado. Possuía quatro planetas pequenos e insignificantes. Dois deles
eram mundos de pedra, sem vida. Só o segundo planeta sustentava uma forma de vida
humanóide. Era habitado pelos soltenses, um povo de cinqüenta milhões de indivíduos.
Segundo dizia o almanaque etnológico de Árcon, era um povo de mentirosos. No mundo
mais próximo ao sol só viviam animais.
Os soltenses propriamente ditos, que descendiam dos arcônidas, haviam passado por
um processo de degenerescência física. Também a ordem social transformara-se no
contrário do que fora antes. Da condição patriarcal passara-se para um matriarcado
extremado. A mulher era tudo, o homem estava reduzido à condição de animal de
trabalho. Até mesmo como pai de seus filhos assumia uma importância puramente
biológica.
A mesma coisa acontecera com a religião desse povo. Há muitos anos os
antepassados dos soltenses, como também eram conhecidos, ainda acreditavam nos
deuses de Árcon, mas os soltenses da atualidade praticavam um demonismo que consistia
na veneração de apavorantes figuras fantasmagóricas. Todas elas tinham a configuração
masculina.
Os etnólogos de Rhodan não conseguiram explicar a contradição: o matriarcado de
um lado, e de outro, exclusivamente os demônios masculinos.
Os dados dos arcônidas, que costumavam manter um registro minucioso de cada
povo, eram de uma espantosa escassez em relação aos soltenses.
Será que nos últimos milênios os arcônidas passaram a temer o povo de Solten?
— Parece que a espera vai ser longa — disse Sikermann, dirigindo-se ao co-piloto.
Com uma ligeira ironia na voz acrescentou:
— Quem sabe se as mulheres soltenses condenaram seus homens à prisão domiciliar
e proibiram que os mesmos saíssem à rua?
A Drusus gravitava em queda livre em torno do terceiro planeta. Seus gigantescos
propulsores zumbiam em ponto morto. A maior parte das unidades energéticas da nave
estava em posição de reserva. Apenas os dutos energéticos trabalhavam, levando cem por
cento de sua carga às torres de artilharia.
O planeta número 3 do sistema de Forit passou lentamente pela tela panorâmica. Era
um mundo sem atmosfera, um mundo sem formações rochosas perceptíveis. Tinha 2.460
quilômetros de diâmetro, mas sua gravitação chegava a 2,31G.
O supersensível rastreador estrutural da Drusus registrava ininterruptamente abalos
estruturais tão distantes que ninguém lhes deu atenção.
— Qual é mesmo o tamanho da frota dos soltenses? — perguntou alguém que se
encontrava na sala de comando.
Um homem que se achava junto ao computador positrônico de bordo respondeu:
— Pouco menos de cinco mil naves. Isso explicava por que até então os terranos e
os soltenses nunca se haviam encontrado. Aquela frota minúscula desaparecia que nem
uma partícula de pó, em meio às frotas gigantescas de outros povos. Subitamente, Dando,
um suaili que tinha pele quase branca, irrompeu numa risada borbulhante. Essa risada de
Dando era inimitável. Mas o motivo da hilaridade continuou desconhecido, até que o
Coronel Sikermann se aborreceu, porque a risada o distraía no trabalho.
— Bem, Dando, quando o senhor vai parar de rir? — perguntou o Coronel
Sikermann, que se encontrava na poltrona do piloto, sem virar a cabeça.
Dando ficou borbulhando por mais alguns segundos e disse:
— Pronto, coronel, já parei! É que estou gostando dos soltenses.
— O quê? Sua risada teve algo a ver com eles? — perguntou Baldur Sikermann,
mais interessado.
— Naturalmente, coronel — disse Dando, exibindo uma dentadura natural muito
branca. — Se eu fosse um homem soltense, também mentiria até não poder mais. Esses
pobres-diabos só podem mentir, pois do contrário se tornarão ridículos no interior de seu
império, como já são ridículos, vivendo num matriarcado.
— Pela grande Via Láctea... — Baldur Sikermann tentou cocar a cabeça, mas o
capacete espacial jogado para trás frustrou sua tentativa. Virou-se ligeiramente para o co-
piloto. — Pode assumir!
Levantou-se e parou ao lado da sua poltrona.
— Dando, quem foi que lhe deu essa idéia?
O suaili já estava rindo de novo.
— Queira desculpar, coronel. Imagine que um soltense tem de perguntar à mulher se
pode ir para a cama. Como um coitado destes tem de mentir quando chega a outros
mundos, onde os homens mandam! É claro que lá também quer fazer o papel do homem
forte e, com isso, cai de um extremo no outro e acaba sendo desmascarado como
mentiroso. Se tiver muito azar, terá de ocultar à sua cacique-comandante que em outros
mundos andou desempenhando o papel de senhor da criação e... e, segundo as
informações que nos foram fornecidas por Árcon, leva uma sova medida por padrões bem
determinados. Mas não ri disso, coronel.
O rosto de Sikermann exprimiu espanto. Balançou a cabeça com tamanha energia,
que Dando se apressou em dizer:
— Coronel, foram apenas minhas reflexões.
Rhodan, Bell e Marshall esperavam com uma impaciência cada vez maior que
houvesse um encontro com uma das naves dos soltenses. Quando o intercomunicador
chamou, Bell disse em tom de alívio:
— Finalmente!
O rosto de Sikermann que aparecia na tela parecia confirmar suas previsões, mas
dali a pouco Bell parecia muito espantado.
O Coronel Baldur Sikermann transmitiu a Rhodan o resultado das reflexões do
tenente.
— Obrigado, Sikermann — respondeu Rhodan. — Transmita meus agradecimentos
ao Tenente Dando. Acho que suas reflexões representam a solução do enigma. Pobres-
diabos... — acrescentou e sacudiu a cabeça cheio de pena.
— Nessa situação, eu também me transformaria num mentiroso — disse Bell, que
só estava pensando em voz alta.
De repente levou um susto e, dirigindo-se a Rhodan, perguntou:
— Você continua fiel ao plano?
— Naturalmente, Bell — respondeu Rhodan.
— É um plano excelente... — disse Bell em tom de escárnio. — Esse maldito rato-
castor realmente tramou alguma coisa formidável. Quero que ele vá para o inferno.
— Gucky... Gucky... Gucky! — disse John Marshall, proferindo três vezes o nome
do rato-castor.
— O que é que vocês querem? — perguntou Rhodan, e seus olhos cinzentos
pareciam sorrir. — Nós não queremos, ou melhor, nós não precisamos conhecer tudo o
que é possível? Pois bem, vamos saber como se sente um soltense. Acontece que eu
também não gostaria de ser comandado por uma... como foi mesmo que Dando se
exprimiu?... por uma cacique-comandante.
Subitamente Rhodan deu uma risada e olhou para Bell.
— Mas acho que, para você, isso não faria mal, gorducho.
Reginald Bell nunca seria um homem fino. Sua resposta veio com a força de uma
erupção vulcânica.
— Perry, se você desculpar mais uma arbitrariedade dessa estátua de anão mal-
nascido...
— Será que ultimamente você deu para sofrer da psicose das modificações de gênio,
gorducho, ou será que a estátua de anão voltou a fazer chantagem com você? Não poderia
fazer o favor de explicar o que significa a palavra trobel?
Enquanto Rhodan formulava a pergunta, Bell levantou-se, foi até a porta e sem
virar-se disse:
— Preciso dar uma olhada na sala de comando...
Fechou a porta com alguma violência.
— Cuidado, chefe — advertiu Marshall com um sorriso alegre. — Mister Bell está
prestes a explodir!
— Já sei, John, mas ainda não sei o que significa a palavra trobel. O senhor sabe?
— Também não sei. O Marechal Mercant também me fez esta pergunta.
— A mim também...

***

A bordo da Drusus teve início a quinta hora de espera. Os homens que guarneciam
os rastreadores estruturais bocejaram, sua atenção foi diminuindo. Mas de repente
concentraram-se. Seus aparelhos de localização haviam dado um sinal. O Tenente Brack,
que guarnecia o telêmetro, falou antes dos outros:
— Uma nave espacial! Distância: 2,4 milhões de quilômetros, coronel!
— Rota... — e os números se atropelaram.
Os dados foram introduzidos no computador de bordo, que realizou o
processamento.
As unidades energéticas da Drusus modificaram sua regulagem da posição de
reserva para a de plena carga.
Na sala de comando de tiro, soou uma sereia e quatro luzes vermelhas começaram a
piscar ameaçadoramente.
Prontidão rigorosíssima.
Os jatos-propulsores da Drusus soltaram um gemido, como se respirassem
profundamente, e com um rugido liberaram suas forças.
A Drusus saiu do estado de queda livre e passou a seguir uma rota. No mesmo
instante teve início o ribombo dos geradores antigravitacionais. As unidades energéticas
de números 11, 12, 13 e 14 transmitiram todo seu potencial energético ao dispositivo de
proteção contra a localização. Só as naves das classes Stardust e Império eram capazes de
criar campos protetores contra a localização de dimensões tão extensas e conservar a
estabilidade dos mesmos.
— Nave desconhecida corta nossa rota em... — e mais uma vez seguiram-se dados,
graus e indicações de tempo.
Baldur Sikermann moveu uma chave que transmitiu ao computador positrônico a
ordem de regular a rota da Drusus.
A distância, que os separava da nave desconhecida, diminuía constantemente.
— Qual é o tipo da nave? Quanto tempo ainda terei de esperar por isso? —
perguntou o coronel, em tom impaciente.
— Ainda nos faltam dois dados. Parece que... coronel, é um tipo soltense. Tem
formato de charuto. Não há dúvida!
— Obrigado — Baldur Sikermann inclinou-se levemente em direção ao microfone.
— Setor de comando de tiro! Com ordem um, abrir fogo.
A confirmação parecia um eco:
— Com ordem um, abrir fogo.
Mas os canhões da Drusus ainda permaneceram em silêncio. Para que surgisse a
ordem um, tornava-se necessário que o super-couraçado se aproximasse mais da espaço-
nave desconhecida.
O corpo da Drusus começou a ressoar. Essa ressonância surgia sempre que os
propulsores de uma nave esférica trabalhavam a plena potência. Nem mesmo os
arcônidas haviam conseguido evitar essa ressonância, que tornava qualquer vôo
prolongado, com a aceleração máxima, num verdadeiro martírio.
O oficial de comando de tiro não ouviu a ressonância. Lia as distâncias fornecidas
pelo computador de bordo e fitava os visores de seu quadro de comando. De repente, viu
que as torres de canhões continuavam apontadas para o minúsculo alvo.
Subitamente a indicação de distância foi transmitida em algarismos verdes.
O computador positrônico de bordo sabia tão bem quanto o Coronel Sikermann ou o
oficial de comando de tiro o que vinha a ser a ordem um.
O canhão de pulsações no 4 também recebeu o sinal verde, que liberava o fogo.
Fogo contínuo de três segundos.
Consumo de energia 104. Era o consumo mínimo para esse tempo e distância. O
controle energético da unidade de geradores no 2 registrou o dispêndio apenas no
registrador gráfico diagramático, mas não nos instrumentos. Os ponteiros não se
moveram.
O oficial de comando de tiro transmitiu uma informação lacônica à sala de
comando, onde se encontrava o Coronel Sikermann:
— Impacto total depois da ordem um!
Na sala de comando da Drusus, ninguém se admirou com o fato de que apesar do
impacto a pequena espaçonave em forma de charuto prosseguiu imperturbavelmente no
seu vôo. A ampliação máxima da tela especial não revelou qualquer tipo de avaria na
nave dos soltenses.
Na sala dos mutantes, Ras Tschubai, o teleportador alto e esbelto de pele escura, viu
o mesmo quadro em sua tela. Acima da borda superior desta, funcionava um contador de
comando ótico, que indicava a distância que o separava da nave desconhecida.
Quando o aparelho mostrou o número trezentos mil, Ras Tschubai fechou o
capacete espacial. Assim que atingiu o número duzentos e cinqüenta mil sua cadeira
esvaziou-se de repente.
— Foi embora! — disse o telecineta Tama Yokida, em tom seco.

***

Ras Tschubai voltou a materializar-se na sala de comando da espaçonave dos


soltenses, que não tinha mais de oitenta metros de comprimento e apresentava o formato
de um charuto. Ao tornar-se visível, segurava a arma de impulsos e o projetor hipnótico,
mas não precisou desse equipamento.
Os quatro soltenses paralisados — dois nas poltronas dos pilotos e dois estendidos
no chão — não tomaram conhecimento de sua presença. Tschubai lançou um olhar
ligeiro para aqueles estranhos homens de testas salientes, sob as quais os olhos quase
desapareciam. Os quatro traziam o cabelo negro penteado à maneira de pôneis. Quando o
olhar de Ras Tschubai caiu na barba dos homens, ele não pôde deixar de rir, apesar da
tensão que sentia. A barba daqueles homens estava arrumada em numerosas trancas
muito bem feitas, endurecidas por meio de algum fixador, que se destacavam da pele
como os aguilhões de um porco-espinho.
A corcova que aparecia na coluna fazia com que parecessem mais baixos do que
realmente eram. Eram esbeltos e de quadris finos, e seu tamanho não ultrapassava o
tamanho médio dos terranos.
Ras Tschubai permaneceu por algum tempo na tosca sala de comando da
espaçonave. Revistou um camarote atrás do outro. Já havia encontrado quinze homens,
mas não vira nenhuma das mulheres soltenses que esperara achar por ali.
Nos quatro compartimentos de carga, cheios até o teto de peles perfumadas que
exalavam um perfume inebriante, não encontrou ninguém. Mas na sala dos propulsores e
dos reatores avistou o décimo sexto e o décimo sétimo soltense, que também haviam sido
paralisados pelo raio de pulsações da Drusus.
Uma vez no estreito corredor da espaçonave, o teleportador ligou o telecomunicador
de seu traje espacial.
— Chamando a Drusus. Tripulação de dezessete homens, nenhuma mulher. Efeito
do raio de pulsações inalterado a cem. Procurarei desligar os propulsores. É só.
Enquanto Ras Tschubai voltava a entrar na sala de comando da pequena nave
mercante, tirava um dos soltenses do assento de piloto, colocando-o no chão e procurava
familiarizar-se com o sistema de comando da nave cargueira, a Drusus desacelerou
fortemente e aproximou-se do pequeno veículo espacial.
De repente, os geradores de raio de tração começaram a funcionar na gigantesca
usina energética, produzindo o gemido característico. A nave dos soltenses parecia ter
sido agarrada por uma mão gigantesca. Foi freada antes que Ras Tschubai, que se
encontrava na sala de comando, tivesse tempo para colocar o regulador de marcha
sincronizado na posição zero.
Dali a trinta minutos, a pequena nave encontrava-se no interior de um dos hangares
da Drusus. Dois comandos sanitários levaram os corcundas paralisados ao hospital da
nave. De repente uma angustiosa falta de espaço fez-se sentir em todos os camarotes da
Lorch-Arto, a nave dos soltenses.
Os especialistas de Rhodan examinaram os dados relativos à nave e seus planos de
construção, enquanto a Drusus acelerava novamente, afastando-se do sistema de Forit e
dirigindo-se a um setor espacial pouco navegado, onde as estrelas eram muito raras.
Durante toda a operação o dispositivo antilocalização permaneceu ligado.
O computador de bordo encontrava-se trabalhando exclusivamente para o comando
especial. Seus membros estavam se familiarizando com a língua planetária dos soltenses.
Uma hora depois, passariam a dominar sua gramática, seu vocabulário e sua sintaxe.
— Era só o que faltava — disse Bell, quando lhe falaram no treinamento hipnótico
que lhe ensinaria a língua desse povo por meio do processo sugestivo criado pelos
arcônidas.
Rhodan, Marshall, Gucky, além de Tako Kakuta e Ras Tschubai, que eram
teleportadores, e ainda o sugestor Ishibashi e o telecineta Yokida também se submeteram
ao treinamento hipnótico. Dali a meia hora saíram da escola hipnótica, dominando
perfeitamente a língua escrita e falada dos soltenses. Fellmer Lloyd, o localizador e
telepata, André Noir, o hipno, e mais três homens formavam o segundo grupo que teria
de submeter-se a esse tratamento. O terceiro e último grupo estava aguardando sua vez.
Os bioplásticos esperavam Rhodan e os homens que já haviam feito o curso.
Com Gucky os bioplásticos não puderam fazer nada. Continuou a ser o que sempre
fora: Gucky, o rato-castor.
Mas os homens transformaram-se em soltenses. Soltenses corcundas com as
características testas salientes.
Os bioplásticos dirigidos pelo Dr. Tschai Toung, um cientista e técnico em
máscaras, de descendência chinesa, estavam ansiosos para demonstrar com seu trabalho o
que sabiam fazer.
— Ainda falta a barba modelo ouriço — disse Tschai Toung, preparando o vice-
administrador para a fase seguinte do procedimento.
Mais uma vez, Bell não soube responder como um homem fino. Gucky irritava-o até
a medula dos ossos. Vivia rindo com seu dente roedor, divertindo-se à custa do gorducho.
Na divisão de detalhes da gigantesca Drusus, havia um movimento febril. A
designação detalhe dizia menos do que deveria dizer. Com exceção do centro de
Terrânia, era a mais genial oficina de falsificadores da Galáxia, com a qual nem mesmo o
Grande Império poderia medir-se.
A divisa que reinava por lá era a seguinte: nada é impossível.
E essa divisa não representava nenhum exagero. As imitações feitas ali eram tão
perfeitas que podiam resistir a qualquer controle dos arcônidas, por mais rigoroso que
fosse. E era justamente isso que se queria.
No hospital da Drusus só havia dezesseis soltenses. Por meio dos melhores
medicamentos fabricados pelos aras os médicos terranos haviam libertado os corcundas
do efeito paralisante do raio pulsador. Mas, para evitar que a terapia entrasse num estágio
incontrolável, aplicaram por cautela a hipnose que, durante o processo de regeneração,
era eliminada automaticamente.
Os soltenses não acordariam antes de trinta horas.
O décimo sétimo encontrava-se na sala dos bioplásticos, sob triplo controle médico.
Era usado como modelo para os artistas que trabalhavam lá, modelo este que serviria para
transformar em soltenses todos os membros do Comando de Risco, a começar pelo chefe
do Império Solar.

***

Três horas depois do treinamento hipnótico, o Comando de Risco Solten estava


pronto para entrar em ação.
Dezessete soltenses subiram a bordo da Lorch-Arto. Gucky fez pairar à sua frente
um recipiente, que o transportou.
Rhodan e Bell não tiveram maiores dificuldades em familiarizar-se rapidamente
com a construção algo estranha da Lorch-Arto, já que a concepção fundamental dessa
nave em forma de charuto também tivera sua origem numa forma arcônida. Apesar disso
demorou algumas horas até que Rhodan comunicasse pelo rádio que desejavam sair do
hangar.
Mais uma vez, um potente raio de tração segurou a pequena Lorch-Arto e largou-a
no espaço, longe dos campos protetores da Drusus.
A nave dos mentirosos começou a acelerar lentamente. Os homens da sala de
comando do supercouraçado permaneceram em silêncio, enquanto acompanhavam o
mergulho da nave cargueira no negrume do espaço. Parecia que queria contornar o grupo
estelar M-13 numa curva bem ampla, mas os localizadores incorruptíveis da Drusus
diziam que a Lorch-Arto seguia diretamente para Archetz, um importante planeta dos
saltadores.
Poucas das pessoas a bordo da Drusus sabiam por que Rhodan arriscava a si e aos
seus melhores mutantes nessa perigosa missão. E os poucos que estavam informados a
este respeito perguntavam-se: será que o chefe encontrará Thomas? E, se encontrar,
haverá uma reconciliação entre pai e filho?
5

O espaçoporto de Lus, situado em Archetz, um mundo dos saltadores, quase não


fora danificado durante o ataque dos druufs. Era o único que podia ser usado
independentemente de maiores reparos.
Depois de fazer uma consulta pelo tele-comunicador, a Lorch-Arto foi encaminhada
a Lus. Há duas horas pousara na vaga 2.005. Quando tocou o solo, a polícia espaço
portuária dos saltadores já a aguardava.
— Ninguém sai da nave! Mostrem os documentos! Abram as escotilhas de carga!
O destacamento policial dos saltadores subiu a bordo com cinco robôs de guerra.
Estes foram postados diante das comportas, enquanto onze mercadores galácticos
revistavam todos os cantos da Lorch-Arto.
— O que é isso? — perguntou o comandante soltense, numa débil tentativa de
protesto.
— Quando você voltar para casa, pergunte a sua mulher, Maixpe — respondeu o
saltador em tom sarcástico. — Talvez ela esteja bem-humorada e só lhe aplique cinco
bordoadas em vez das dez que você merece por sua pergunta idiota.
Três saltadores que se encontravam por ali soltaram estrondosas gargalhadas e
lançaram um olhar para os dois corcundas que se achavam na sala de comando.
— Saia do caminho! — disse um deles em tom áspero, empurrando violentamente
um soltense muito “compacto”.
— Trobel! — disse um soltense em tom indignado, mas logo se abaixou
covardemente, sob o olhar ameaçador do saltador.
— Malditos mentirosos! — observou o saltador e pôs-se a controlar os documentos
da carga.
A Lorch-Arto trazia uma carga de peles de odd. Eram as peles perfumadas do
primeiro mundo de Forit. Uma boa pele valia uma fortuna. Uma exploração predatória,
que já durara vários séculos, reduzira bastante o número dos odds, animais de pêlo de um
metro e meio de comprimento, com seis pés, corpo de cobra e uma cabeça que lembrava
um buldogue. Por isso, nos últimos 50 anos, o preço das peles desses animais do primeiro
planeta tivera um aumento de oitocentos por cento.
— Para quem são estas peles? Logo vi... Só poderiam ser para Cokaze. Esse velho
anda metido em todas — constatou o saltador, em tom contrariado.
Continuou a examinar os documentos de carga em atitude desconfiada.
O comandante da espaçonave em forma de charuto perguntou em tom submisso:
— Posso telefonar para o patriarca Cokaze, senhores?
— Aqui você pode ainda menos que em casa, seu corcunda! — gritou furiosamente
o chefe do destacamento policial. — Cale essa boca! Até sinto uma dor no ouvido,
quando ouço esse intercosmo que você fala! Fique quieto até que terminemos o controle.
— Sim senhor. Seja o que meu senhor ordenar — disse o comandante com o corpo
humildemente curvado, fazendo de conta que não via as mãos de seu primeiro-oficial,
que era aquele homem compacto, crisparem-se de raiva.
— Ei, soltense, que rota foi essa que você seguiu?
Exageradamente solícito, Maixpe inclinou-se sobre o registro de rota.
— Oh, meu senhor, tivemos um encontro com uma nave da frota do superpesado
Onkto. Tivemos de mudar de rota e dirigir-nos ao quartel-general. Tivemos de dar trinta
odds para poder passar. Que os demônios tenham pena de mim e me façam inventar uma
boa desculpa, para eu apresentá-la ao Grande Conselho das Mães...
— Dê o fora! — o saltador estava enjoado dessas maneiras submissas do soltense.
— Saiam ambos! Depressa, seus...
Gritou um palavrão, resmungou mais alguma coisa e prosseguiu no exame dos
documentos.
No estreito convés os dois pretensos soltenses viram-se a sós; eram Perry Rhodan e
Reginald Bell.
O gordo deu vazão à sua raiva:
— Já não tolero isso. Que servilismo! Que tolice foi essa que você disse a respeito
do Grande Conselho das Mães?
Não tiveram oportunidade para conversar. Um saltador saiu do depósito de peças
sobressalentes, viu-os e os chamou.
— Abram o renovador de ar. Depressa! — ordenou.
Tratava-se do recipiente que Gucky fizera pairar à sua frente, por meio de suas
forças telecinéticas, quando se dirigia para a Lorch-Arto, que então ainda se encontrava
no hangar da Drusus. E, enquanto permanecessem nesse planeta, esse recipiente seria a
casa de Gucky. Nenhum saltador devia ver o rato-castor. Gucky poderia deleitar-se com a
fama de ser ainda mais conhecido que o próprio Perry Rhodan, no interior do Império de
Árcon.
E, naquele momento, Gucky se encontrava dentro do pretenso aparelho de
renovação de ar.
Rhodan procurou contactar os pensamentos do rato-castor, mas não captou nenhum
impulso.
— Abra a tampa, seu corcunda mentiroso! — berrou o saltador, apontando a arma
de impulsos.
Isso levou Bell a apressar-se. E o gorducho tremia... de raiva.
A tampa foi levantada e colocada de lado. O saltador aproximou-se com gestos
grosseiros e pisou no pé de Bell. Este recuou apressadamente e caiu por cima de um
equipamento energético. Engolindo a praga que ia soltar, ergueu-se e teve de se
conformar com o sorriso de deboche do saltador.
Ao levantar-se, Bell desmanchou-se em mesuras e disse no pior intercosmo
possível:
— Meu senhor é tão bom para mim... Diante de tamanha bajulação, o saltador
sacudiu-se de nojo. Examinou o interior do aparelho. Entretanto não notou que faltavam
algumas chaves de controle.
Não se viu o menor sinal de Gucky.
Ele se afastara!
O saltador saiu ruidosamente e bateu a porta que dava para o depósito de peças
sobressalentes.
— Perry — cochichou Bell. — Não agüento esse tratamento por muito tempo!
Gucky apareceu, saindo do nada.
— Tenho de voltar para dentro desta caixa apertada, patrão? — perguntou dirigindo-
se a Rhodan.
Este limitou-se a acenar com a cabeça.
Gucky enfiou-se na caixa. Rhodan e Bell voltaram a colocar a tampa e trancaram o
recipiente.
— Precisamos aparecer na sala de comando, Bell...
Entraram no momento em que o comandante do destacamento contactava-se com o
clã de Cokaze. O filho mais velho deste aparecia na tela.
— Fomos avisados da remessa — disse o futuro chefe do clã. — Não existe a menor
dúvida. Acho que todo mundo sabe que os soltenses voam com uma licença nossa. Para
que servem esses controles demorados?
Sob seu ponto de vista, o filho mais velho de Cokaze estava dizendo a verdade. Mas
não desconfiava de que o aviso não viera do segundo planeta, pois fora expedido pela
Drusus.
Até então o Serviço de Defesa de Rhodan funcionara perfeitamente.
E agora o filho de Cokaze também descobriu os dois soltenses.
Conhecia Maixpe e Trexca, o primeiro-oficial da Lorch-Arto. Rhodan e Bell
transpiravam fortemente sob a cobertura de bioplástico.
— Ora, saltador — respondeu o comandante do destacamento policial. — O senhor
sabe perfeitamente que, a partir do momento em que se manifestaram as agitações no
Grande Império, recebemos ordens de exercer um controle mais rigoroso em Archetz.
Vamos liberar a nave e sua tripulação. Disponha dela, saltador!

***

Quando o último compartimento de carga da Lorch-Arto já havia sido quase


totalmente esvaziado das preciosas peles de odd, ocorreu uma forte explosão na sala de
máquinas da nave cargueira.
A explosão abriu um buraco de cinco metros por sete na popa, buraco este do qual
saíram chamas que se erguiam ruidosamente.
O alarma de radiações uivou no interior da Lorch-Arto.
Os dezessete soltenses, que em suas casas e diante das mulheres ávidas de mando
não podiam abrir a boca, demonstraram um extraordinário sangue-frio perante a
catástrofe. Mas se não fosse o auxílio das naves vizinhas com seu equipamento de
combate ao incêndio, a Lorch-Arto se teria derretido.
A luta contra as energias liberadas durou dez minutos. Houve novas explosões que
produziram temperaturas de milhares de graus. Finalmente o perigo que ameaçava a
velha nave cargueira foi removido.
Mas esta não mais poderia decolar. Teria de ser levada a um estaleiro dos salta-
dores, a fim de receber um novo mecanismo propulsor.
— O que é que eu vou contar ao Grande Conselho das Mães? — perguntou Maixpe
com a voz chorosa, dirigindo-se ao membro mais velho do clã dos Cokaze.
Mas logo empertigou-se e disse em tom grandiloqüente:
— Que nada! Direi ao conselho que ele não entende nada de acidentes deste tipo e
deve ficar bem calado. Será que é isto que eu vou fazer, Trexca?
— Não exagere, Maixpe. Até parece que você faz questão de ser considerado um
mentiroso — gritou o saltador. — Quando estiver em casa, não se atreverá a dizer uma
única palavra e suportará tranqüilamente a surra que vão aplicar em você. Afinal, vocês
não são homens; são soltenses. Mas nossos engenheiros ainda não conseguiram descobrir
a causa dessa explosão nos propulsores, Maixpe. É estranho!
— Isso mesmo — confirmou Maixpe. — É estranho! Será que a polícia saltadora
pregou-nos uma peça?
— Você está louco, soltense! — repreendeu-o o filho mais velho de Cokaze. —
Faremos a prestação de contas depois que meu clã tiver pago o conserto de sua nave,
senão nos próximos quinze dias você e sua tripulação gastarão todo o dinheiro em farras.
— Ora essa! Precisamos de dinheiro — interveio Trexca, aliás, Bell. — Em Archetz
sempre há muita coisa para fazer.
Executou o movimento internacionalmente conhecido de levantar o copo.
— Seu beberrão! — disse Maixpe, mas também solicitou um adiantamento.
— Está bem. Primeiro providenciarei para que sua nave seja levada a um estaleiro
— disse o saltador. — Depois farei um pagamento por conta. De acordo?

***

Tal qual o espaçoporto, a cidade de Lus quase não fora danificada pelo ataque dos
druufs.
Seus locais de vida noturna continuavam a tentar os astronautas a desperdiçarem o
dinheiro ganho com tanta dificuldade. Os hábeis saltadores fizeram desse tipo de tentação
uma verdadeira indústria. Quando se tratava de lucrar, não conheciam escrúpulos.
Os dezessete terranos disfarçados de soltenses submergiram no frenesi dos
divertimentos.
Com os bolsos cheios de dinheiro, que em virtude da inflação não valia muita coisa,
atiraram-se aos braços dessa indústria dedicada à exploração dos forasteiros.
— Ei, mentiroso, venha cá. Vamos tomar um trago.
— Será que hoje o queridinho da mamãe pode arriscar um joguinho?
Em todo lugar eram molestados, mas também costumavam ser olhados com uma
compaixão misturada de escárnio. Saltadores embriagados, que por anos a fio haviam
voado de um mundo para outro e agora, que se encontravam em Archetz, tinham chão
firme sob os pés por alguns dias, convidaram-nos a beberem.
Perry Rhodan e Bell estavam sentados à mesa com três jogadores apaixonados.
— Não arrisque demais! — disse Perry Rhodan em soltense, dirigindo-se ao gordo.
Ele mesmo ia jogando cada vez mais alto, assim que as cartas eram distribuídas.
Graças à sua débil faculdade telepática e à capacidade de ler nos rostos dos outros,
quase sempre descobria o jogo dos parceiros.
Dali a duas horas pararam. Os saltadores fitaram com um ar de espanto os soltenses
que haviam ganho todo o dinheiro que traziam
— Amanhã lhes darei revanche — propôs Maixpe, aliás Rhodan, em tom gentil.
— Agradeço! — resmungou um dos saltadores. — Essa revanche me sairá muito
cara.
As coisas não foram muito diferentes na mesa em que se fazia o jogo do tol, onde
trinta saltadores, aras e ekhônidas, e um soltense, todos possuídos pelo demônio do jogo,
perseguiam o tremeluzir da lâmina prismática, iluminada pela luz indireta.
O soltense ganhava sempre.
O banqueiro começou a transpirar. Pela terceira vez modificou discretamente a
regulagem positrônica, a fim de que nos próximos vinte jogos pudesse recuperar os
prejuízos da banca.
John Marshall, que já se acostumara à barba trançada e não fechava mais os olhos
por causa da sombra projetada pela saliência da testa, divertiu-se a valer.
“Você não perde por esperar, meu velho”, pensou. “Seus truques não lhe
adiantarão mais nada. A mim você não engana.”
No último instante apostou em prisma 4, verde 3. Era uma possibilidade entre cento
e trinta.
Prisma 4, verde 3 acabara de pensar o banqueiro. E, na atitude típica de um
banqueiro de jogo, o saltador cruzara os braços diante do peito a fim de, por meio de um
telecomando mental, transmitir ao dispositivo automático da mesa de jogo o lance
correspondente a prisma 4, verde 3. O impulso foi emitido um décimo de segundo antes
do momento em que Marshall atirou um pacote de notas sobre o campo ainda livre.
Os homens soltaram berros de surpresa, as mulheres gritavam. Em todos os olhos
lia-se a ganância e a inveja pela sorte tremenda do soltense.
O ganho de cento e trinta por um foi pago ao corcunda. O banqueiro tivera de buscar
dinheiro, e jogou maços e mais maços de dinheiro na mesa, à frente de Marshall. Tinha o
rosto pálido como cera. Suas mãos tremiam. A sorte ininterrupta do soltense deixava-o
apavorado. Mais três corcundas juntaram-se a ele. Um deles disse para todos ouvirem que
sua arma de impulsos recebera uma carga nova na manhã daquele dia.
John Marshall abandonou a mesa de tol, acompanhado por três companheiros.
Trazia uma fortuna no bolso.
Às 30 horas e 30 minutos, tempo padrão, nem um único dos dezessete soltenses se
encontrava no bairro de vida noturna. Estavam sentados em torno de uma mesa, num
botequim de astronautas, e conversavam calmamente em soltense. Não precisavam
preocupar-se com a possibilidade de alguém ouvir a palestra. Com exceção de alguns
lingüistas, não havia no Império arcônida ninguém que dominasse sua língua.
— Então, nada! — constatou Maixpe, aliás, Rhodan. — Não contava mesmo com
um êxito ou sequer uma pista. Amanhã Mister Reginald Bell e eu tentaremos, levados por
Tschubai, conhecer a parte subterrânea da cidade. Marshall, escolha homens que possam
agir em Titon...
— Acontece que Titon, a capital do planeta, é um monte de escombros! —
ponderou Trexca, aliás, Bell.
— Só a parte situada na superfície — retificou Rhodan. — Com exceção das vítimas
humanas, o ataque dos druufs contra o planeta de Archetz teve o efeito de uma picada de
agulha. Este planeta é um segundo Árcon III. E acho que já sabemos o que essa gente
pretende fazer, não sabemos, Lloyd?
O mutante localizador confirmou com um gesto.
— E o anãozinho Gucky pode dormir à vontade? — observou Bell, em tom
contrariado.
— Pode — disse Rhodan laconicamente, dando por encerrada a palestra.
Às 31 horas e 45 minutos, tempo padrão, a central subterrânea da polícia de
estrangeiros de Archetz recebeu a seguinte informação: os dezessete soltenses foram para
o hotel e ficaram em seus quartos.
Acontece que essa informação já não era verdadeira.
Os dois teleportadores, Ras Tschubai e Tako Kakuta, haviam levado André Noir e
Fellmer Lloyd a Titon, num salto de teleportação, a fim de que estes verificassem se o
bairro de vida noturna da capital do planeta também continuava intacto.
— Na minha opinião o chefe está andando muito devagar — disse André Noir,
enquanto voltava ao hotel, acompanhado pelos três companheiros. — A cidade de Lus
não é o lugar adequado para procurar Thomas Cardif. Se é que ele se encontra em
Archetz, só pode estar na parte subterrânea de Titon. Nenhum de vocês tem vontade de ir
comigo?

***

A máscara de bioplástico de Rhodan ocultava seu aborrecimento, mas o


desaparecimento — quase total — dos olhos embaixo da protuberância da testa dizia
bastante.
A medida que André Noir prosseguia no seu relato, mais contrariado se sentia.
Deixaram-se levar pela corrente dos transeuntes. Vez por outra eram separados, mas logo
se reencontravam, e Noir prosseguia no seu relato sobre a excursão noturna à parte
subterrânea de Titon.
— Ah, é? — foi só o que Rhodan teve a dizer.
Continuavam a falar em soltense. Essa língua não conhecia a palavra sir.
— Senhor — disse o teleportador Ras Tschubai, que se encontrava ao lado de
Rhodan. — Na noite passada só resolvemos sobre o que deve ser feito hoje e...
Rhodan interrompeu-o. Parou junto a um ponto de táxis planadores. Noir, Tschubai,
Kakuta e Lloyd cercavam-no, enquanto Bell e os outros onze homens entravam num
planador, a fim de visitar o estaleiro em que sua nave estava sendo reparada.
— Não compreendo os senhores — disse Rhodan, em tom penetrante. — Seu
procedimento negligente é inexplicável. Não sei quais foram suas intenções, mas é
inacreditável que, no momento em que estávamos dormindo no hotel, sem saber de nada,
os senhores nos tenham exposto a um perigo mortal. Quando voltarmos à Terra,
conversaremos melhor sobre o caso. No momento não tenho mais nada a dizer.
Rhodan dirigiu-se ao planador mais próximo. Os quatro mutantes que acabavam de
ser repreendidos seguiram-no em silêncio.
Não disseram uma única palavra, enquanto o planador se dirigia velozmente para a
área periférica da cidade de Lus, onde as faixas de montagem se estendiam uma ao lado
da outra, e o espaço entre as mesmas estava ocupado com extensos complexos
industriais.
A uma altura de mil e duzentos metros, contemplaram esse centro de indústria
pesada. Estendia-se até o horizonte distante e continuava a espalhar-se que nem o feixe
de luz de um holofote, a fim de entremear-se com outros distritos industriais, de ambos os
lados das últimas áreas residenciais.
Esforçaram-se em vão para descobrir alguma marca de destruição, deixada pelo
ataque das naves dos druufs. Essa área do planeta não sofrerá qualquer dano com o
ataque inesperado dos monstros.
Naquele momento, os cinco homens — muito bem mascarados de soltenses — viam
a mesma coisa! Só em Árcon III havia algo parecido!
Apesar de todos os esforços, a Terra ainda não estava em condições de apresentar
algo equivalente, muito embora não estivesse muito distante o dia em que a lua terrana
estivesse escavada a muitas centenas de quilômetros de profundidade e se visse
transformada num só complexo industrial.
O regulador automático de rota do planador fez o veículo descer sobre o terreno do
estaleiro, onde a Lorch-Arto aguardava o momento em que os robôs trabalhadores dos
saltadores lhe dessem um novo mecanismo de propulsão.
Naquele momento, dois engenheiros do clã de Cokaze estavam saindo da Lorch-
Arto. Sacudindo a cabeça de espanto, declaravam que não sabiam explicar o que poderia
ter explodido na sala de máquinas da nave cargueira.
Rhodan não lhes poderia dizer que essa explosão era obra dos especialistas do
Serviço Secreto Terrano, e que ele e seus homens não tinham muita pressa em sair de
Archetz. Desempenhava com uma perfeição cada vez maior o seu papel de soltense.
Os dois engenheiros saltadores já não suportavam as bazófias arrepiantes de
Maixpe-Rhodan. Um deles interrompeu-o em tom bonachão:
— Pode desistir, soltense. Pare de mentir. Você está com medo de voltar para Solten
e justificar-se perante o Grande Conselho das Mães.
— Acontece que na última noite os demônios compadeceram-se de nós, meus
senhores! — disse Rhodan em tom animado, enquanto se desmanchava em tamanhas
mesuras que Bell lhe deu as costas, soltando uma praga em voz baixa. — Ganhei uma
fortuna no jogo de baralho e meu engenheiro ganhou vinte fortunas na mesa de tol.
Vamos...
— Sim, sim; está bem! — interrompeu o outro saltador em tom contrariado, dando-
lhe as costas.
Não acreditava na história dos ganhos no jogo, que o comandante espacial sol-tense
acabara de lhe contar. Conhecia perfeitamente a exploração desenfreada e
desavergonhada a que os astronautas estavam sujeitos no bairro de vida noturna.
Os terranos subiram a bordo da Lorch-Arto para mudar de roupa. Os trajes soltenses
não eram apropriados para a ação a ser desenvolvida nas próximas horas. O macacão, que
costumava ser usado principalmente pelos ekhônidas durante suas viagens espaciais,
prestaria serviços muito melhores.
Bell praguejou contra a incômoda barba de trancinhas e disse que era uma
caricatura, quando Rhodan o interrompeu com a exclamação:
— Gucky não está aqui!
O aparelho de renovação de ar, que servia de esconderijo a Gucky, estava vazio.
Rhodan pediu a Marshall e ao localiza-dor Fellmer Lloyd que comparecessem ao
depósito de peças sobressalentes. Em poucas palavras explicou a situação.
— Procurem descobrir onde Gucky se meteu! — ordenou.
Marshall foi o primeiro a desistir. Recorreu às suas faculdades telepáticas, mas não
conseguiu localizar o rato-castor. Dali a pouco, o mutante Lloyd também confessou que
não conseguira encontrá-lo.
— Provavelmente o rato-castor bloqueou seus impulsos mentais. Ninguém melhor
que ele para isso...
De repente, Fellmer Lloyd estacou e levantou a cabeça.
— Senhor — disse apressadamente, usando a língua soltense, tal qual faziam seus
companheiros. — A polícia dos saltadores vem para cá. Deverá pousar dentro de três
minutos. O que terá acontecido?
Rhodan, Bell e Marshall fitaram atentamente o localizador. Além de saber
identificar os modelos de vibrações cerebrais, Lloyd era capaz de localizá-las e verificar
quem vinha, por que vinha, e se suas intenções eram boas ou más.
Naquele instante, examinou as intenções da polícia dos saltadores que se
aproximava numa aeronave.
— Senhor, isso deve ter algo a ver com Gucky. Aqui em Lus, em Titon, em Mold e
em Fror, coisas inexplicáveis têm acontecido, sempre nas profundidades. Aqui no
estaleiro também. Foi hoje de manhã. Três robôs voaram pelo ar e bateram contra um
conversor de aço, distante cinco quilômetros. Não, não desconfiam diretamente de nós.
Querem verificar se estamos todos a bordo.
Mold e Fror também eram cidades importantíssimas do mundo dos saltadores.
Rhodan parecia um tanto perplexo.
— Marshall, o que está acontecendo com seus mutantes? Na noite passada
Tschubai, Lloyd, Noir e Kakuta deram um passeio por conta própria. E agora é Gucky. E
olhe que ele sabe perfeitamente que em hipótese alguma deve ser visto.
— Meu polegar! — observou Bell. — Este maldito ano 2.044...
— Vá para o inferno com essa história ridícula do polegar. Não a suporto mais,
gorducho. Não me venha mais com essa bobagem! — disse Rhodan, em tom furioso.
— A polícia está subindo a bordo — anunciou Lloyd, o localizador.
Logo o destacamento ocupou a nave.
“Por que estão aqui? Desde quando? A que hora saíram do centro de Lus? Como
chegaram aqui?”
Centenas de perguntas desabaram sobre os dezessete homens. Cada um deles foi
interrogado por um saltador. E sempre numa sala separada.
A situação de Rhodan e seus homens tornava-se cada vez mais crítica. Marshall
indagou por via telepática se deveria colocar em ação os mutantes dos diversos setores.
Na opinião de Rhodan, a situação ainda não era tão perigosa que justificasse a
utilização dos mutantes.
— Aguarde, Marshall.
Rhodan, ou melhor, o comandante Maixpe, estava sendo interrogado por dois
policiais saltadores. E os dois homens da polícia de estrangeiros entendiam de seu
serviço...
— Acho que deveríamos enviar uma hipermensagem a Solten e pedir informações
sobre a tripulação desta nave cargueira — sugeriu um dos saltadores.
Isso não deveria acontecer em hipótese alguma.
— Marshall, chame André Noir! — disse Rhodan ao comandante de seu Exército de
Mutantes, usando a via telepática. — Os dois saltadores que me interrogam pretendem
enviar uma hipermensagem para Solten, a fim de pedir informações a nosso respeito.
Entendido?
— Entendido, chefe.
— Cuidarei disso imediatamente — falou o outro saltador. — Usarei o radiofone
para pedir à grande estação de hiper-rádio que cuide disso. Acho que a resposta...
Soltense, eu gostaria de saber onde você aprendeu o jogo de bando-bando.
Não se falou mais na hipermensagem que seria enviada para Solten. E o policial que
acabara de fazer a sugestão não se espantou nem um pouco com isso.
Noir, o hipno, que estava sendo interrogado no compartimento de carga número 2,
conseguira realizar a concentração quase inacreditável que se tornava necessária para
aplicar aos dois homens da polícia de estrangeiros, que se encontravam na sala de
comando, um bloqueio hipnótico tão forte que só dali a quinze dias começaria a ceder,
liberando a recordação do fato de que há dias tiveram a intenção de chamar o planeta
Solten.
Enquanto isso, Rhodan, transformado no comandante Maixpe, forneceu uma
explicação prolixa de como aprendera o bando-bando. Afirmou que todos o temiam, já
que era um jogador que ganhava sempre.
— Oh, deuses! — berrou subitamente um dos saltadores. — Por que puseram no
mundo um mentiroso como este? Soltense corcunda... Procure falar a verdade ao menos
uma única vez. Você tem um jogo, Anxga?
Ao que parecia, vez por outra os dois membros da polícia de estrangeiros não
levavam muito a sério as atribuições de seu cargo.
As cartas foram distribuídas. As apostas começaram a ser feitas, e Rhodan logo as
forçou para o alto...
O complicado jogo com suas inúmeras possibilidades estava em pleno andamento.
Rhodan apostou na antepenúltima folha.
— Seu convencido! — exclamou o grande saltador.
Anxga sorriu. Parecia satisfeito. Ganhou a jogada. E também ganhou a jogada
seguinte. Parecia que o soltense tinha perdido o jogo. Foi quando mostrou a última carta
aos saltadores.
— Ganhei, meus senhores. Perdoem. Querem mais um jogo?
A bajulação misturava-se ao atrevimento.
— Vamos continuar! — disse Anxga. Durante a quarta rodada, Anxga largou as
cartas com uma praga.
— Ora esta! A gente acredita que estes mentirosos sempre mentem, e quando a
gente pensa que está diante de mais uma mentira deles, eles já nos lograram.
— Meu grande senhor — disse Maixpe, em tom servil. — Poderia fazer o favor de
repetir a frase? Não compreendi muito bem. Mas acho que ganhei mais este jogo. O
senhor largou as cartas. É o que dizem as regras do jogo, não é mesmo, meus senhores?
Dali a uma hora, vinte e três saltadores pertencentes à polícia de estrangeiros
deixaram a Lorch-Arto.
Ao entrarem na viatura policial, que logo decolou, Anxga e seu colega ainda
esbravejavam contra os soltenses, aquele povo de mentirosos.
Rhodan não deixou que seus homens refletissem sobre o incidente.
— Onde está Gucky? O que será que esse sujeito andou fazendo?
Suas perguntas ficaram sem respostas. Os funcionários da polícia de estrangeiros só
haviam pensado de forma fragmentária nos acontecimentos misteriosos, aparentemente
sobrenaturais, que se desenrolaram em Titon, Lus, Mold e Fror.

***

Gucky ouviu quando os robôs dos saltadores entraram na Lorch-Arto. Também


entraram no depósito de peças sobressalentes da nave cargueira. Gucky recolhera-se ao
seu esconderijo — o aparelho de renovação de ar — e manteve-se à espera.
Nunca soubera fazer muita coisa com os impulsos positrônicos deformados dos
robôs, mas constatou que uma dessas máquinas devia ser um especialista, já que suas
emanações diferiam acentuadamente das dos outros.
Com isso, a desgraça desabou sobre Gucky...
Esse robô especializado, que os saltadores haviam construído para prestar serviço
em seus estaleiros, era apenas uma máquina de levantamento de estoque. Revistava peça
por peça de qualquer nave que entrasse no estabelecimento e fazia o levantamento dos
objetos existentes nos camarotes e compartimentos de carga, a fim de verificar, no caso
de eventuais reclamações dos tripulantes, se durante o tempo de permanência no estaleiro
ocorreu de fato algum furto ou outro prejuízo qualquer.
O robô especializado constatou que o aparelho de renovação de ar não estava em
perfeitas condições.
Gucky constatou que esse robô com seus recursos radioscópicos quase ilimitados
poderia representar um perigo para ele. Resolveu teleportar-se. Mas o azar grudara-se
nele. Rematerializou-se na cozinha de bordo, onde foi registrado simultaneamente por
três robôs de trabalho.
Gucky não perdeu tempo. Sabia que, em hipótese alguma, deveria ser visto, nem
mesmo por um robô. Acontecia que acabara de ser visto pelos robôs que se encontravam
no interior da nave. Portanto, deveriam ser destruídos, pois a memória positrônica
poderia denunciá-lo.
De repente as máquinas começaram a voar. Seus campos antigravitacionais não
conseguiam sobrepor-se ao ataque telecinético desfechado pelo rato-castor. Dirigiram-se
inexoravelmente para a grande comporta de carga, atravessaram-na e subiram
verticalmente. Gucky transmitiu-lhes um impulso artificial, a fim de poder libertá-los por
um segundo da força telecinética. Teleportou-se para fora, colocando-se sobre o telhado
ligeiramente abaulado de um dos estaleiros. Voltou a segurar os três robôs e viu ao longe
uma construção de aço em forma de semi-esfera.
Fez os robôs entrarem em mergulho e chocarem-se contra essa construção. E ele o
fez de forma tal, que os cérebros positrônicos instalados em suas cabeças metálicas foram
totalmente destruídos. Afinal, Gucky sabia qual era o melhor meio de destruir os homens
mecânicos.
Por enquanto o fato de que o vôo daqueles monstros de várias toneladas não poderia
deixar de ser observado não causou maiores preocupações a Gucky. Desapareceu de cima
do telhado e voltou a rematerializar-se a alguns quilômetros de profundidade, num dos
conjuntos industriais de Lus.
Viu-se entre o ribombo de gigantescas prensas. No momento em que suas patas de
rato-castor se levantaram para tapar os ouvidos, soaram as sirenes. As gigantescas
prensas, que fabricavam perfis destinados às espaçonaves, pararam de repente.
“Fiz soar o alarma”, pensou Gucky muito assustado e escondeu o dente roedor.
Não havia motivo para riso. A situação era muito séria.
“Como será que eles me localizaram?”, perguntou-se mentalmente. “Por via ótica?
Por meio de um detector de massa? Ou terá sido uma barreira de radiações?”
Gucky concentrou-se. Constatou a direção de que vinha maior volume de impulsos
mentais e, no mesmo instante, desapareceu de entre as prensas, para reaparecer na estação
de comando das fileiras quilométricas de prensas, atrás de um regulador magnético que
zumbia levemente.
— O quê? O aparelho não registra mais nada? Você tem certeza de que o detector
de massa está regulado entre o duzentos e dezessete e o duzentos e dezoito? — gritava
um saltador, em tom exaltado.
— Desapareceu. Até parece que foi apagado da face da terra. Não entendo mais
nada — respondeu outro mercador galáctico.
Dali a dez minutos, os dois saltadores foram interrogados por um comando que
acorreu às pressas. Mantiveram-se inflexíveis na afirmativa de que não tiveram
conhecimento da presença de qualquer pessoa não autorizada. E permaneceram firmes
em sua afirmativa, mesmo quando o computador positrônico lhes indicou, com precisão
de uma fração de segundo, o momento exato em que um ser vivo deveria ter aparecido
entre as prensas duzentos e dezessete e duzentos e dezoito.
Depois de algum tempo, até mesmo o comando teve suas dúvidas.
A massa, cuja presença fora detectada pelo aparelho, correspondia ao peso de uma
criança saltadora de cinco ou seis anos.
O mistério não encontrou solução.
Depois da sexta “pane”, Gucky começou a desanimar.
Encontrava-se na parte subterrânea da cidade de Mold. As construções da superfície
haviam sido totalmente destruídas por ocasião do bombardeio realizado pelos druufs.
A rematerialização de Gucky provocou o sexto alarma.
Praguejava que nem Bell. E tinha todo o motivo para isso. Também tinha motivo
para tributar sua admiração irrestrita aos dispositivos de segurança dos mercadores
galácticos.
Nenhuma pessoa não autorizada poderia penetrar no gigantesco império industrial
subterrâneo, sem ser vista ou detectada.
Ouviu as sereias de alarma.
Não sabia que suas várias aparições tinham dado origem a um alarma de âmbito
planetário.
Desde quando Archetz passou a ser o mundo central dos saltadores, nunca houvera
tantas prisões como naquele dia.
Por três vezes Gucky tivera que fugir de saltadores. Por três vezes os mercadores
galácticos foram presos. Por meio de suas energias telecinéticas, Gucky demolira três
estações de controle, paralisando uma série de linhas de montagem de cujas dimensões
não tinha a menor idéia.
Duzentos e quatorze quilômetros abaixo da superfície de Mold, a cidade destruída,
foi alcançado pelo sistema de vigilância ótica. Apesar de tudo, teve sorte no azar.
Em três das vinte telas supergrandes da central de segurança, apareceu a imagem de
um animal.
Oito saltadores estavam de serviço na central. Sete deles não conheciam o rato-
castor. O oitavo já o vira durante a transmissão de um noticioso. Quis refletir sobre quem
era esse animal, que lhe parecia conhecido, mas no momento não se lembrou de onde já o
vira.
Acontece que os outros sete mercadores galácticos ficaram tão exaltados que
perturbaram suas reflexões. Por isso a observação dos saltadores não foi transmitida
imediatamente à central planetária.
Era aí que estava a sorte de Gucky!
O rato-castor apareceu na central de segurança sem ser visto. Usou um
hipnoprojetor arcônida para apagar sua imagem da memória dos oito saltadores. Depois
pôs-se a brincar...
Não teve outra alternativa. Seu retrato estava armazenado na memória positrônica.
Oito saltadores mergulhados numa estranha letargia contemplaram com uma
indiferença total o quadro do computador positrônico de várias toneladas ser arrancado
das bases, flutuar em direção à usina energética pequena, mas superpotente, e cair sobre
esta com uma violência que não correspondia ao seu peso.
Gucky executou um salto de teleportação para fugir ao terrível fogo dos curto-
circuitos, que derreteu o computador positrônico numa questão de segundos,
transformando-o numa massa disforme.
A seguir, rematerializou-se no duto principal de purificação de ar do grande sistema
de cavernas.
Coberto de imundícies de todos os tipos e com as vias respiratórias obstruídas por
poeiras e finíssimas partículas metálicas, Gucky sentiu-se tangido por uma fortíssima
corrente de ar aquecido, que o empurrou para cima como se fosse uma folha seca. Pensou
que sua hora tivesse soado. Até parecia que estava morrendo sufocado naquela fedentina.
Só tinha um objetivo: voltar para a Lorch-Arto. Acreditava que, apesar dos robôs
inventariantes, estaria mais seguro por lá que naquele inferno de imundícies poeirentas e
malcheirosas.
Dezessete terranos disfarçados em soltenses viram um torvelinho de ar
tremeluzente, do qual saiu um rato-castor que tossia violentamente e sacudia o corpo.
Como estava Gucky? E que mau cheiro era aquele?
— Gucky! — gritou Rhodan em tom de espanto, recuando diante da nuvem
malcheirosa.
Gucky esfregou os olhos com as patinhas. As partículas de pó irritavam seus olhos e
as lágrimas escorriam abundantemente.
Tossia sem parar.
— Água!
Tako Kakuta teleportou-se até a cozinha de bordo e voltou com água. O rato-castor
sorveu o líquido como se estivesse morrendo de sede.
— Que gosto nojento! Quanta sujeira devo ter engolido!
No entanto a tosse de Gucky diminuía sensivelmente. O lacrimejamento também
tornou-se menos intenso.
— Será que sou eu que estou fedendo?
— perguntou de repente.
— Ora, não somos nós! — gritou Bell em tom indignado.
Gucky desapareceu, mas Marshall continuou telepaticamente grudado em seus
calcanhares.
— Está tomando um banho de chuveiro — disse.
O rato-castor voltou a surgir do nada, totalmente molhado.
— Oh, Perry... — principiou. — Desta vez realmente não tenho a menor culpa. Não
tenho mesmo. Não realizei nenhuma excursão por conta própria.
— Realmente? Pois apresente seu relato, Tenente Guck! A esta hora, já deve saber
que graças ao senhor fomos interrogados mais uma vez pela polícia de estrangeiros.
Gucky, que costumava tremer quando Rhodan omitia o ípsilon de seu nome e não
gostava que o tratassem pelo posto hierárquico, proferiu uma simples observação em
resposta à pergunta de Rhodan, que encerrava boa dose de recriminação:
— Não é de admirar que eu tenha mobilizado a polícia de estrangeiros...
— Caramba, Tenente Gucky! Quero seu relatório! Não estou interessado em ouvir
frases tolas. Este tipo de brincadeira fica proibido de uma vez por todas.
— O que foi que eu fiz? — indagou, tentando bancar o inocente.
Exibiu o dente roedor a Perry Rhodan, e não se abalou nem um pouco com a bronca
que acabara de levar.
Apresentou seu relato. Principiou da seguinte forma:
— Uma criança recém-nascida não pode ser mais inocente que eu. Mas nem sei por
que estou fazendo afirmações solenes, quando não tenho a menor necessidade disso.
Deixarei que os fatos falem por mim, Administrador-Geral do Império Solar...
Bell soltou um berreiro. Gucky não se incomodou nem um pouco. Dirigiu-se a
Marshall e, enquanto Bell ainda esbravejava, disse ao chefe dos mutantes:
— No momento, sua leitura de pensamentos não funciona, John. Você terá de
aguardar meu relato, tal qual um simples não-telepata. Esse gorducho ainda está
berrando?
Finalmente Gucky começou a contar. Além de relatar sua atuação arrojada, ofereceu
uma série de dados detalhados sobre o sistema de segurança dos saltadores.
O rato-castor sentiu-se como o senhor da situação.
— Então, Perry, você ainda vai me chamar de senhor e Tenente Guck, seu
administrador-geral do...
— Gucky, será que você não precisaria tossir mais um pouco para aprender a calar a
boca? — disse Rhodan.
Seu rosto feio de soltense riu, fazendo vibrar cada trancinha de barba.

***

Duzentos e setenta e quatro quilômetros abaixo da capital planetária destruída, o


patriarca Cokaze mandara que o levassem através do bairro operário. Não olhava para a
direita nem para a esquerda e nem se admirava com as agradáveis condições ambientais
que os seres de sua raça haviam criado artificialmente nesse planeta.
Só vez por outra aparecia a pedra cinzenta do teto da caverna. Nos outros lugares,
um céu ligeiramente nublado parecia pairar sobre os bairros residenciais. Este céu
irradiava uma mistura de luzes, colocando diante dos olhos dos eternos habitantes de
cavernas os encantos de um lindo dia de verão da superfície de Archetz.
Depois de uma viagem rapidíssima, o carro do trem expresso freou subitamente,
parou e abriu uma porta para que o patriarca descesse.
Uma grande praça revestida de plástico azulado era o ponto final. Apenas o semi-
círculo que fechava a praça pelo lado norte estava ladeado de casas. Do lado sul
começava o império do patriarca Gatru, o rei da indústria pesada de Archetz.
Cokaze teve de usar três elevadores antigravitacionais para chegar ao centro
administrativo do império de Gatru. Nunca estivera ali embaixo. Mas, apesar disso, logo
desistiu de admirar-se com a profusão de instalações de controle e de segurança.
Finalmente viu-se diante de Gatru.
Não se haviam encontrado mais, depois do bate-boca que travaram.
Fitaram-se com olhares que quase chegavam a ser hostis.
— Gatru, preciso falar com Thomas Cardif — pediu Cokaze.
— Não é possível, Cokaze — limitou-se Gatru a responder.
— Que interessante, Gatru!
O grande saltador manteve-se tranqüilo. Sem dizer uma palavra, mostrou a Gatru o
documento oficial que lhe concedia permissão para falar com Cardif.
Gatru nem olhou para o papel.
Cokaze sorriu.
— Será que Cardif faleceu de repente, por não ter suportado algum remédio dos
aras?
Gatru não reagiu à insinuação.
— Muito bem.
Cokaze parecia conformado com a derrota.
Retirou-se do escritório instalado com todo luxo imaginável, mas parou na porta.
Virou-se, voltou a sorrir e disse:
— É bom que você saiba, Gatru: os banqueiros Atual e Ortece dão mais valor às
idéias táticas de Cardif que à sua ação diletante. A esta hora, você já deve saber que a
revolta do planeta Hoond foi sufocada às onze horas, tempo padrão, pela frota robotizada
de Árcon. E a idéia de fazer com que a revolta voltasse a eclodir justamente ali foi sua. E
também foi sua a idéia de entrar em choque comigo. Mas a idéia de levá-lo à falência por
meio de um boicote é minha. E o velho Cokaze não é nenhum tagarela, Gatru. Posso
garantir-lhe isso.
Cokaze já formulara essa ameaça, mas Gatru sentiu que desta vez estava falando
sério. Sabia que Cokaze exercia uma influência tremenda sobre os outros clãs dos
astronautas saltadores.
— A respeito de que você deseja falar com Cardif? Sobre os acontecimentos
misteriosos que se verificaram em nossas usinas nos últimos cinco dias? Será que esse
terrano arrogante é um vidente?
Gatru formulara três perguntas. E por três vezes Cokaze exibira seu sorriso quase
irônico. Mas não respondeu às perguntas.
— Quando você estiver falando com o terrano, quero estar presente, Cokaze!
Não restava muito da atitude arrogante de Gatru. A ameaça de boicote formulada
por Cokaze deixara-o muito abalado.
— Você poderá estar presente, quando eu fizer a seguinte pergunta a Cardif, Gatru:
será que os terranos andam fazendo das suas em Archetz?
— Terranos em Archetz? Entre nós? Aqui embaixo? Você enlouqueceu, Cokaze?
Mais uma vez, o patriarca não reagiu às perguntas.
Caminharam um bom pedaço. Dali a meia hora, Cokaze formulou uma pergunta:
— A que profundidade nos encontramos, Gatru?
— Quinhentos e trinta e nove quilômetros.
— E que sistema defendido por barreiras de radiações é este? Será que é uma
prisão?
— Será que a gente vê alguma coisa? — retrucou Gatru, em tom áspero.
Atravessaram mais um controle positronicamente comandado e viram-se diante de
Thomas Cardif.
— Cokaze!
O tom de voz em que foi proferido este nome exprimia espanto e desprezo. Thomas
Cardif, que naqueles poucos dias de prisão se tornara ainda mais semelhante a Perry
Rhodan, não se levantou.
— Cardif...
— Patriarca Cokaze, você é um traidor! — interrompeu Thomas Cardif em tom
áspero. Seus olhos amarelos de arcônida chamejavam de cólera. — Sou um desertor, pois
violei meu juramento. E isso também não deixa de ser traição. Mas minha traição não
tem sua origem em motivos baixos e fúteis. Cokaze, você sabe perfeitamente por que sou
inimigo de Rhodan, por que não posso deixar de sê-lo, enquanto tiver um pinguinho de
honra. Meu objetivo consiste em abater o assassino de Thora, minha mãe. E qualquer
caminho me serve para alcançar esse objetivo. Vocês teriam lucrado com isso, seus
saltadores gananciosos! O sistema solar teria caído em suas mãos que nem uma fruta
madura, e... também... o Império de Árcon.
“Porém vocês não têm gabarito para aceitar uma perda. Vocês só pensam no lucro
imediato. Patriarca, acreditei que fosse meu aliado. O que foi que você fez quando nós
perdemos o primeiro round? Traiu-me em benefício dessas almas mercenárias. Permitiu
que eu ficasse preso. Prisão preventiva! Nem sei por que não estou rindo. Estou sendo
conservado, para um belo dia, depois da morte de Perry Rhodan, ser um administrador-
fantoche do Império Solar, por obra e graça sua. Quantas vezes ainda terei de dizer que
não tenho ambições políticas? Quero que o assassino de minha mãe seja passado pelas
armas. Depois disso não quero mais nada, absolutamente nada. Não estou interessado de
ser administrador. Procurem compreender! Afinal, não sou uma alma mercenária como
você, Cokaze! O que querem de mim?”
Nem Cokaze e nem Gatru conseguiram interromper a fala de Thomas Cardif. As
palavras passaram por seus lábios com a força de uma cachoeira.
— Cardif — principiou Cokaze, que se obrigou a ficar calmo. — Oportunamente
poderemos discutir sobre se eu o traí. Quando isso acontecer, você se convencerá de que
não o traí. Vou dizer-lhe por que viemos...
Relatou as destruições misteriosas que nos últimos cinco dias vinham ocorrendo
ininterruptamente nas instalações subterrâneas. Concluiu o relato com uma pergunta:
— Cardif, será que, face aos fatos que acabo de relatar, você pode informar se há
terranos em Archetz, e se os atos de destruição devem ser atribuídos aos mesmos?
“São os mutantes de Rhodan”, pensou Cardif muito assustado, mal Cokaze iniciou
seu relato. Mas logo adquiriu a calma fria que Perry Rhodan costumava guardar nas
situações difíceis.
— Bem, Cokaze, vejo que vocês estão precisando novamente de mim. Querem que
banque o traidor de meia-tigela e coloque o laço em torno do meu pescoço, não é? Não
estou interessado, Cokaze, pois gosto da vida aqui embaixo. Muito obrigado pela visita.
Nenhuma palavra e nenhum gesto traíam a conclusão depreendida do relato de
Cokaze: os mutantes de Rhodan haviam chegado a Archetz! Estavam à sua procura.
E Thomas Cardif tinha certeza de que o encontrariam.
Para ele, havia chegado o fim... ao menos por enquanto.
6

Oito dias depois da primeira excursão de Gucky às indústrias subterrâneas de


Archetz e depois dos primeiros atos de destruição que teve de praticar para salvar seu
couro de rato-castor, o rigoroso controle da polícia de estrangeiros tornou-se menos
intenso.
Fellmer Lloyd, o localizador, foi o primeiro a registrar o fato. Pouco depois, os
outros mutantes confirmaram a observação do localizador. De acordo com essas
observações, a desconfiada polícia dos mercadores galácticos eliminou os dezessete
tripulantes soltenses da nave Lorch-Arto do rol dos suspeitos. Em todo o planeta, não
havia nenhuma criatura cujo comportamento fosse mais inofensivo que o dos dezessete
soltenses, que tinham reservada uma boa sova, logo que voltassem para junto de suas
severas e autoritárias mulheres. Em compensação, o décimo oitavo tripulante, o Tenente
Gucky, pertencente ao Exército de Mutantes do Império Solar, desenvolveu uma
atividade assustadora.
Gucky estava irreconhecível. Dependendo exclusivamente de si mesmo, e sentindo
o peso da responsabilidade de ver colocado em suas mãos o destino dos melhores amigos
e do próprio sistema solar, desistira dos seus modos de duende. Antes de cada ação,
refletia sobre a melhor maneira de, usando os menores recursos possíveis, causar o maior
desassossego aos mercadores galácticos.
O número de suas ações crescia a cada dia que passava. E a cada dia que passava
familiarizava-se mais e mais com os labirintos subterrâneos do planeta Archetz. Mas o
que assumia maior importância era o conhecimento que adquirira a respeito dos
dispositivos de segurança. Acontecia apenas que não encontrava a menor pista de
Thomas Cardif, e isso o deixava muito preocupado, pois, para Rhodan e seus homens, o
tempo durante o qual poderiam permanecer em Archetz escoava-se inexoravelmente. Os
reparos da nave cargueira estavam prestes a ser concluídos.
Como fazia todos os dias, Gucky apresentava seu relatório a Rhodan por via
telepática. Sentado sobre o aparelho de renovação de ar que lhe servia de abrigo, roia
uma enorme cenoura. Enquanto mastigava gostosamente, irradiava seus pensamentos em
direção ao chefe.
— Mais uma vez nada, Perry! Não compreendo. Não encontro o menor indício que
aponte para Thomas. Afinal, não posso demolir todas as indústrias subterrâneas de Titon.
Essa tarefa ultrapassaria minhas forças.
Rhodan, que se encontrava em seu quarto de hotel, respondeu pela mesma via:
— Fomos avisados de que a nave cargueira ficará pronta amanhã, Gucky. Você
continua a recomendar que não lancemos mão dos mutantes? Gucky, lembre-se do que
sua resposta poderá significar para mim, para todos nós, inclusive para Thomas!
— Patrão, se você pergunta nesse tom, até mesmo a melhor cenoura perde o sabor.
Dê-me um pouco de tempo para responder. Iniciarei outra ação em Titon. Descerei ainda
mais. Deverei voltar dentro de uma hora. De acordo, Perry?
— De acordo, meu amiguinho. Fim da transmissão.
Gucky deixou cair a cenoura. Perry o chamara de meu amiguinho. Comovido,
esfregou os grandes e belos olhos de rato.
Antes de teleportar-se, removeu todos os vestígios de sua presença do aparelho de
renovação de ar. Quando voltou a materializar-se, encontrava-se a duzentos e setenta
quilômetros de profundidade. Pousou na central geral de segurança do sistema de
cavernas.
Gucky já descobrira como penetrar naqueles subterrâneos, sem desencadear
qualquer alarma. Em qualquer área, o único lugar a que poderia chegar sem ser notado
era a respectiva central de segurança.
Quatro saltadores estavam de serviço no lugar para o qual saltara. Dois deles
conversavam, enquanto os outros observavam as telas.
— Você é capaz de compreender uma coisa dessas, Lonk? — ouviu o saltador que
estava sentado atrás dos controles sincronizados perguntar.
Gucky examinou por via telepática o conteúdo da mente dos dois mercadores
galácticos. Por pouco não solta um assobio.
Pensavam e conversavam sobre a prisão e resmungavam contra o sistema de
segurança quintuplicada que há dois dias fora adotado no setor.
Muito tenso, Gucky manteve-se espreitando a mente dos dois saltadores. Mas estes
voltaram a falar sobre as misteriosas catástrofes, que naquele dia haviam ocorrido em oito
lugares diferentes de Titon.
De repente Gucky sentiu necessidade de falar com Perry Rhodan. Procurou
estabelecer comunicação com o chefe. O contato completou-se instantaneamente. Numa
questão de segundos, Gucky informou o chefe.
— Você não me disse que há três dias inspecionou a prisão de Titon, Gucky? —
perguntou Rhodan por via telepática.
— Sim, chefe, mas naquela oportunidade ainda não sabia que os ciganos estelares
têm duas prisões. Ainda não sei onde fica a outra. Será que o reforço do sistema de
segurança significa alguma coisa, Perry?
— Procure descobrir, mas tenha o máximo de cuidado. Há trinta minutos Bell vive
dizendo que a ponta do polegar direito está cocando.
— Ora, Perry! Será que até você deu para acreditar nessa idiotice? — perguntou
Gucky, com um espanto imenso.
— É que não quero perdê-lo, Gucky. Por isso resolvi avisá-lo. Tenha cuidado. Não
arrisque nada. Fim.

***

A Lorch-Arto possuía um novo sistema de propulsão e os reparos do envoltório


externo da velha nave cargueira dos soltenses também haviam sido executados de forma
impecável. Os robôs haviam pilotado a espaçonave do estaleiro ao espaçoporto. Naquele
momento estava sendo entregue ao comandante Maixpe.
A administração do espaçoporto marcou a decolagem para as 7 horas e 50 minutos,
tempo padrão. Era um prazo extremamente curto, que nem sequer permitia um vôo de
experiência destinado a testar os novos propulsores. Rhodan e seus homens sabiam
perfeitamente que a polícia de estrangeiros ainda desconfiava dos soltenses.
Mas isso pouco importava.
O Comando de Risco Solten não fora bem sucedido. Não encontraram o menor
vestígio de Thomas Cardif. Os dezessete homens sabiam perfeitamente o que viria
depois. Árcon procuraria prender Thomas Cardif. Os mecanismos jurídicos do Grande
Império entrariam em funcionamento, e, mais dia menos dia, o agitador Thomas Cardif
seria triturado em suas engrenagens.
Bell viu o último saltador retirar-se da Lorch-Arto. Sob a testa de bioplástico,
lançou-lhe um olhar furioso. Num gesto inconsciente, esfregou a ponta do polegar direito
na palma da outra mão.
— Será que você não poderia deixar de fazer isso? — disse Rhodan, com ligeira
recriminação na voz.
Quem conhecesse Perry Rhodan saberia perfeitamente o que se passava naquele
instante na mente daquele homem.
Thomas Cardif, o filho rebelde, escapara definitivamente de suas mãos e caminhava
que nem um cego em direção à própria destruição. Rhodan refletiu sobre o que Atlan lhe
dissera a respeito das leis de Árcon. Até mesmo o imperador teria de cumprir as leis.
Estaria com as mãos atadas, quando uma corte arcônida condenasse Cardif à morte.
— O que foi que eu fiz? — perguntou Bell, em soltense.
Só depois disso deu-se conta do que estava fazendo.
— Ora! Maldito polegar! O que terá acontecido com ele? Diga-me uma coisa, Perry.
Gucky está ou não a bordo?
— Gucky?
O sistema de intercomunicação fez soar em todos os camarotes e compartimentos de
carga da Lorch-Arto a pergunta sobre o paradeiro de Gucky.
Gucky estivera a bordo, mas já não se encontrava na nave. Não estava no interior do
aparelho de renovação de ar.
Fellmer Lloyd, o localizador, Marshall e os outros telepatas foram convocados à
sala de comando.
— Procurem localizar Gucky! — ordenou Rhodan.
Mas quando não queria ser encontrado, o rato-castor isolava seus impulsos mentais,
e então todos os mutantes, inclusive Lloyd, o localizador, atingiam apenas o vazio.
Era o que estava acontecendo naquele instante...
E a Lorch-Arto teria que decolar dentro de cinco minutos, tempo padrão. Os novos
propulsores já estavam sendo aquecidos, as unidades energéticas corriam em ponto
morto. A Lorch-Arto estava pronta para decolar.
Bell viu Perry Rhodan dirigir-se ao pequeno aparelho de hipercomunicação.
— O que pretende fazer? — perguntou num pressentimento.
Sem virar-se, Rhodan respondeu em tom de desespero:
— Se além de Thomas ainda tivesse que perder Gucky, isso seria demais para mim.
Vou irradiar o sinal condensado que combinei com Árcon.
— E a grande estação de hiper-rádio deste querido planeta captará a mensagem e
saberá que estamos aqui! — disse Bell em tom de advertência.
— Os saltadores poderão perfeitamente pensar que transmitimos para Solten a
notícia do início do vôo. A mensagem não encerra qualquer sentido. Limita-se ao número
treze.
— Que bonito! — disse Bell em tom sarcástico e sacudiu a cabeça.
Lançou um olhar indagador para Fellmer Lloyd, o localizador.
— Nada, sir. Nenhum sinal de Gucky. Naquele instante foi expedido o sinal
combinado com Atlan.
— O que acontecerá agora, Perry? — indagou Bell.
— Não decolaremos. Avisaremos à direção do espaçoporto que há um defeito em
nosso sistema de propulsão. Com isso ganharemos trinta minutos. É mais ou menos o
tempo de que Atlan precisa para realizar uma transição até o planeta Archetz, a fim de
verificar o que está acontecendo por aqui.
— Perry! — Bell não conseguiu dizer mais que isso.

***

— Aqui fala o controle espaço portuário. Por que não decola, comandante Maixpe?
Era a voz severa de um saltador que saía do alto-falante. Perry Rhodan inclinou-se
para o microfone.
— Há problemas com os novos propulsores. Os jatos começam a funcionar com
atraso. Será que devo quebrar o pescoço já na decolagem, meu senhor? O que dirão
nossas mulheres se formos enterrados em Archetz e...
O mercador galáctico perdeu a paciência.
— Seus idiotas! — berrou a voz saída do alto-falante. — Desliguem os propulsores,
enviaremos uma... O quê?
Provavelmente fora interrompido por alguém que também se encontrava na sala de
rádio, pois seu rosto desapareceu da tela.
Bell sentiu quase fisicamente o desastre que se aproximava. Pensava constantemente
na grande estação de hiper-rádio de Archetz.
E foi de lá que veio a desgraça. O rosto do mercador galáctico voltou a aparecer na
tela.
— Para onde vocês enviaram a hiper-mensagem irradiada há poucos minutos, seus
mentirosos? A decolagem da nave fica proibida. Não se atrevam a decolar, pois nesse
caso transformaremos sua nave numa nuvem de gases.
— Meu senhor — respondeu Rhodan em tom submisso. — Não queremos decolar,
muito menos morrer. Apenas queremos voltar para junto de nossas queridas mulheres.
Anunciamos nossa partida de Archetz e...
— Será que vocês também avisaram Árcon, seus mentirosos? — esbravejou o
saltador. — Não venham me dizer que nossos rastreadores estruturais também mentem.
Não se esqueçam da proibição de decolar. Fim! — gritou o saltador e desapareceu da
tela.
— E a Frota Solar, Perry? — resolveu perguntar Bell.
— Permanecerá no sistema solar, meus senhores. Vamos deixar as coisas bem
claras. Sei perfeitamente o que estou arriscando juntamente com Atlan. Trata-se de meu
filho e também de Gucky. Mas trata-se principalmente de fazer com que os salta-dores
compreendam que o Imperador Gonozal VIII sabe enfrentar o mundo central dos
mercadores galácticos, e que o pacto de amizade entre Árcon e o Império Solar não é um
simples acordo de papel.
— É só o que...
O susto fez com que se espalhassem.
Gucky surgiu entre eles, mas não estava só.
Perry Rhodan viu-se diante de seu filho Thomas Cardif.
Gucky o trouxera num salto de teleportação; obrigara-o por meio de sua energia
telecinética a acompanhá-lo.
Os olhos albinóides avermelhados chamejaram de ódio quando Cardif viu-se à
frente do pai. Os lábios estavam firmemente cerrados e os cantos da boca puxados para
baixo.
Naquele instante, Perry Rhodan deu-se conta de que o caminho que leva ao coração
de uma pessoa às vezes é mais longo que o caminho que conduz às estrelas.
John Marshall teve um pressentimento desagradável. Recorreu à sua faculdade
telepática, mas esta não produziu qualquer resultado. Por acaso seu olhar caiu sobre a tela
do oscilógrafo.
Nela se via uma amplitude constante, que constituía o sinal característico de um
sinal goniométrico ininterrupto. E o traço era tão forte que até se tinha a impressão de que
o transmissor se encontrava na sala de comando da Lorch-Arto.
— Chefe! — seu braço apontava silenciosamente para o oscilógrafo que mostrava a
onda de hipertransmissão.
No mesmo instante, Rhodan acionou o hipercomunicador.
Por três vezes, o transmissor irradiou o número treze, sem qualquer cifragem, sem
condensador ou distorçor. Depois disso, Perry Rhodan virou-se e disse em tom tranqüilo:
— Thomas Cardif traz um transmissor goniométrico camuflado. Talvez saiba, talvez
não. Neste instante, os mercadores galácticos já sabem onde se encontra. Nosso papel de
soltenses chegou ao fim, senhores. Podemos desmascarar-nos e preparar-nos para passar
alguns instantes bem desagradáveis.

***

Gucky não teve a menor vontade de contar como fizera para encontrar Thomas
Cardif. E não havia tempo para isso.
— Estão chegando! — constatou Rhodan, em tom seco. — Se nos mexermos, os
mercadores não terão a menor contemplação: farão uso de suas armas de radiações.
Tenente Cardif, espero que o senhor saiba avaliar corretamente a situação em que se
encontra neste momento. Não tente arranjar incidentes. Gucky saberá impedi-los, não é
mesmo Gucky?
Fitou o rato-castor, mas o gesto com que este confirmou as palavras de Rhodan não
parecia muito entusiasmado. Mais uma vez teve a impressão de que Rhodan não sabia
lidar corretamente com seu filho.
Cardif não tomou conhecimento da advertência de Rhodan; permaneceu em
silêncio.
— Dois cruzadores cilíndricos pesados — constatou Rhodan, com um olhar para a
tela.
Os saltadores lançaram mão de todo o poder bélico de que dispunham, e o ultimato
para a rendição já estava chegando.
— Exigimos a rendição incondicional, Perry Rhodan, do contrário nós os
destruiremos.
O ultimato não poderia ser mais lacônico.
Alguém riu.
Foi Thomas Cardif.
— Vejam só. Ainda acabarei conseguindo o que quero. Obrigado, rato-castor, por
ter-me trazido para cá!
Seus olhos de arcônida chamejaram em direção a Perry Rhodan com um ódio que
não conhecia perdão.
O pai fitou o filho com uma expressão pensativa. Essa vaga de ódio, que se debateu
sobre ele, tornava vãs todas as esperanças de encontrar o caminho que conduzia ao
coração do filho.
— Concedemos-lhes cinco minutos, tempo padrão, para abandonarem a Lorch-Arto.
É o último aviso — disse a voz severa saída do alto-falante.
Tako Kakuta, o teleportador, encontrava-se ao lado do rastreador estrutural. Com
exceção de uns poucos abalos, que não assumiam maior importância, uma estranha calma
reinava no setor espacial do sistema de Rusuma. Provavelmente a frota de Atlan, que
representava a palha à qual se agarravam suas esperanças, chegaria tarde.
Dois cruzadores cilíndricos pesados, dezenove cruzadores leves e meia centena de
viaturas policiais fortemente armadas cercaram a pequena nave cargueira.
— Faltam quatro minutos — disse Rhodan com a voz tranqüila. — Também duvido
de que Atlan chegue a tempo. Quer dizer que teremos de entrar em ação. Deixe-me ver,
Kakuta.
O teleportador afastou-se do rastreador estrutural. Rhodan dedicou sua atenção ao
oscilógrafo que ficava atrás do rastreador.
Mexeu no telecomunicador, colocando-o regulado para a mesma freqüência do
mini-transmissor goniométrico que provavelmente se encontrava no corpo de Thomas
Cardif.
— O tempo, por favor — disse em tom calmo. Sua tranqüilidade foi contagiante.
— Três minutos e vinte segundos — respondeu John Marshall.
— O.K. Os teleportadores entrarão em ação. Objetivo: sala de rádio da
administração aeroportuária. Apliquem uma hipnose em Thomas Cardif. Rápido! Temos
pressa, senhores teleportadores!
Havia três teleportadores presentes: Gucky, Tako Kakuta e Ras Tschubai. Quinze
homens teriam de ser teleportados. E para isso dispunham de pouco mais de cento e
oitenta segundos. Apenas trinta e seis segundos para cada salto duplo. Era pouco, muito
pouco.
— Mister Bell, Cardif e eu iremos em último lugar — ordenou Rhodan.
Kitai Ishibashi aplicou o máximo de sua capacidade sugestiva no filho de Rhodan.
Ordenou-lhe que não fizesse nada contra o pai e Bell e também não fizesse nenhuma
tentativa de embaraçar a ação dos mutantes.
Thomas Cardif estava indefeso diante do ataque. Sem perceber, aceitou a compulsão
sugestiva.
— O tempo está ficando escasso — disse Bell, quando os três teleportadores
voltaram do primeiro salto, no qual haviam gasto mais de quarenta segundos.
— Há dezoito saltadores na sala — piou Gucky, exibiu em toda sua plenitude o
dente roedor e desapareceu com outro homem.
Os teleportadores foram recuperando a perda de tempo.
Estavam a caminho do quarto salto.
— A sala de rádio transformou-se num verdadeiro inferno — disse Tako Kakuta,
em tom exaltado, antes que saltasse com Kitai Ishibashi, que se agarrava fortemente a seu
corpo.
— Ainda dispomos de quarenta e dois segundos — disse Bell, em tom tranqüilo,
acompanhando a marcha dos segundos.
— Venha, gorducho. Quero levar você! — piou Gucky a seu lado.
A cintura de Thomas Cardif foi enlaçada pelos braços de Ras Tschubai. Tako
Kakuta estendeu a mão em direção a Rhodan.
— Um instante, Tako! — pediu Rhodan e, com um movimento da mão, acionou o
telecomunicador.
Naquele instante havia dois transmissores goniométricos em Archetz, o que Thomas
Cardif trazia no corpo e outro, com a mesma freqüência e os mesmos impulsos
permanentes, representado pelo telecomunicador da Lorch-Arto.
Quando Perry Rhodan materializou-se com Tako Kakuta na sala de rádio do
controle espaço portuário, Bell estava colocando fora de ação o último saltador com um
violento golpe de direita.
Gucky estava sentado diante do comando geral, e com a pata esquerda dava
ininterruptamente o alarma espacial.
— Gucky — ia gritar Rhodan, mas controlou-se no último instante e só pôde
espantar-se com a idéia genial do rato-castor.
Todo o planeta de Archetz estava sendo colocado em estado de alarma.
Alarma espacial! Um ataque vindo do espaço!
E, além disso, ainda dois impulsos goniométricos transmitidos na mesma
freqüência!
Os mercadores galácticos, que já deviam estar um tanto confusos pelo fato de
Rhodan se encontrar em seu mundo, acompanhado de um grupo de terranos, agora
estariam enlouquecendo em série, a não ser que possuíssem nervos extraordinários.
Os mutantes de Rhodan passaram ao ataque seguinte. Saltadores iam chegando de
outra seção. Procuravam forçar a entrada da sala de rádio e correram para dentro de um
feixe aberto de raios, disparado por meia dúzia de hipnoprojetores.
No campo de pouso, a Lorch-Arto desmanchou-se numa nuvem de gás vermelho-
amarelento. Os mercadores galácticos haviam perdido a cabeça e dispararam com
canhões pesadíssimos contra a velha nave cargueira do sistema de Forit.
De repente, um tremor de terra pareceu sacudir Archetz.
O grande edifício do controle espaço-portuário tremeu até os alicerces.
Bell soltou um grito.
— Chegaram!
Num gesto violento levantou o braço, que apontou para o céu.
Atlan estava chegando.
Árcon trazia seu poder.
Nem um único dos fortes planetários, que cercavam o planeta de Archetz, atreveu-se
a disparar um único tiro contra a frota de supercouraçados do Imperador Gonozal VIII.
Mais de trezentas espaçonaves esféricas de 1.500 metros de diâmetro desaceleraram
ao máximo e penetraram em alta velocidade nas camadas mais densas da atmosfera de
Archetz.
Desencadearam um verdadeiro furacão! Fizeram estremecer os edifícios de todo um
planeta, precipitaram-se em direção à superfície e obscureceram o céu. A três mil metros
acima de Archetz, uma nave enfileirava-se ao lado da outra. Era uma formidável
demonstração de poder.

***

— Os mercadores galácticos nunca esquecerão o que fizemos com eles — disse


Perry Rhodan, dirigindo-se a Bell, enquanto saíam, acompanhados por Thomas Cardif,
do edifício do controle espaço portuário.
Sem que ninguém os molestasse, se dirigiram à nave capitania de Atlan, a única a
pousar no planeta.
Numa raiva impotente, milhares de saltadores viram o odiado Rhodan caminhar
com mais alguns homens pelo concreto plástico do campo de pouso. Perry e seu grupo
dirigiram-se à comporta polar da nave arcônida e desapareceram no interior da mesma.
Cardif foi conduzido a um camarote individual. Dois robôs de guerra montaram
guarda à porta da pequena sala. Antes de mais nada, Rhodan e seus mutantes procuraram
livrar-se das máscaras soltenses. Sentiam-se satisfeitos porque pelo aspecto exterior já
não precisavam pertencer à classe dos homens dignos de compaixão daquele povo.
Enquanto os bioplásticos removiam cuidadosamente as máscaras, Rhodan deu uma
ordem a Bell, que estava deitado a seu lado.
— Liquide em Solten a questão da indenização a ser paga pela perda da Lorch-Arto.
Cuide também do problema dos dezessete soltenses, que ainda se encontram a bordo da
Drusus. Não quero que por nossa causa o Grande Conselho das Mães lhes aplique a pena
do açoite, nem que sofram qualquer prejuízo financeiro.
— Por que não manda Gucky fazer isso, Perry? Afinal, essa maldita idéia foi dele
— opôs-se Bell em tom enérgico.
Nos próximos vinte anos não queria que ninguém lhe falasse a respeito dos
soltenses.
— Se a situação fosse outra, eu mandaria Gucky, Bell. Acontece que lhe ensinou
certa palavra, trobel, e, além disso, permitiu que ele fizesse chantagem com você. O que
acha que Allan D. Mercant pensará de você se Gucky lhe contar que esta palavra,
pertencente ao vocabulário soltense...
— Se ele contar, eu lhe torço o pescoço — disse Bell, em tom indignado.
— Pois vá a Solten e liquide as coisas junto ao Grande Conselho das Mães. Nesse
caso pedirei a Gucky que não conte nada a Mercant.
— Bem — concordou Bell — se você não está fazendo chantagem, não sei mais o
que é chantagem. Está certo; irei a Solten.
— Tome cuidado para que as mulheres não lhe dêem uma surra.
A única reação de Bell consistiu num profundo suspiro.

***

Rhodan encontrava-se diante de Rhodan: pai e filho.


O bloqueio sugestivo que Ishibashi aplicara em Cardif fora retirado. Cardif voltara a
ser ele mesmo.
— Thomas — começou Rhodan, numa última tentativa de construir uma ponte. —
Não faz muito tempo que John Marshall me disse: “Se eu fosse Thomas Cardif, também
não lhe teria dado a mão junto ao mausoléu da Lua.” Para fundamentar estas palavras,
que me abalaram bastante, prosseguiu: “O senhor estendeu a mão a Thomas na qualidade
de administrador, não na de pai, pois nesse caso estaria faltando aos seus deveres de
administrador.” Mas agora, Thomas... nos muitos decênios durante os quais exerço o
poder, pela primeira vez utilizei-o para transgredir as leis feitas por mim, pois minha
intenção era encontrar o caminho que leva a você, e você o caminho que leva a mim...
— Isso é um sentimentalismo barato! Foi esta a resposta de Thomas Cardif.
Rhodan teve a impressão de que alguém lhe batera no rosto.
— Thomas, pense bem no que está dizendo.
— Quem assassinou minha mãe, administrador? Quem achou que ela era velha
demais? Quem foi que a mandou a Árcon, para vê-la regressar como cadáver? Foi você!
Só você! Queria livrar-se da mulher que estava envelhecendo. Seu covarde...
Ouviu-se um estalo.
O lado esquerdo do rosto de Thomas Cardif ficou vermelho.
— Sinto muito ter batido em você... — estas palavras de Rhodan foram proferidas
em tom apagado.
Cambaleando ligeiramente, dirigiu-se à porta.

***

— Sim! — disse o administrador-geral do Império Solar, e com esta palavra


enterrou suas esperanças.
O sim que acabara de proferir decidira o destino de Thomas Cardif.
— Amigo... — disse Atlan e abraçou-o. — O que adianta o poder, se devemos
continuar a ser humanos? Devíamos transformar-nos em máquinas frias, desalmadas e
brutais. Nesse caso, o ato de condenar o próprio filho à morte seria uma bagatela. Mas da
forma que são as coisas... bem, da forma que são as coisas, a gente pensa que o mundo
vai explodir e soterrar-nos em seus escombros. Mas isso não acontecerá, amigo. O mundo
nos obriga a continuarmos a viver e a exercer o poder. É este o preço do poder, amigo
Perry!
Estavam parados sob a abóbada gigantesca do computador positrônico de Árcon III.
Thomas Cardif achava-se deitado sob o hipnotron; parecia dormir.
O conjunto hipnótico teve com esse terrano um cuidado que nunca tivera com
ninguém. Camada após camada, foi montando um bloqueio hipnótico em seu cérebro. E
Thomas Cardif foi-se esquecendo de quem era ele, de onde vinha, quem eram seus pais.
Mas quanto ao resto, seu ser permaneceu intato: sua inteligência, seu saber, suas
qualidades. Dali a algumas horas, nem se deu conta de que acabara de sair de uma cova,
para a partir de determinado momento ver-se colocado em meio à vida.
Sua mente nunca indagava: de onde vim? o que me fez ficar isso que sou?
Se alguém lhe perguntasse pelo passado, ficava devendo a resposta. E uma pergunta
desse tipo jamais o deixaria exaltado. Limitava-se a balançar a cabeça e sorria como um
sonhador.
Thomas Cardif, o sonhador sorridente!
Esquecera-se de odiar.

***
**
*

Com a modificação do comportamento de Cardif, a


tranqüilidade de Perry e de todo o império retornou.
Gucky, o mais competente e também o mais
indisciplinado mutante, vai gozar férias em Vagabundo, seu
planeta de origem. Gozar não é o termo certo, pois em
Vagabundo o rato-castor vê-se envolvido num caos...
Em Forças Desencadeadas, título do próximo volume,
Gucky irá viver em meio a estranhos acontecimentos.

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