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ESPIÕES DA TERRA
Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
O primeiro contato, a primeira base...
será o prenuncio de uma aliança?...
A sala era clara e muito bem iluminada em todos os cantos. O silêncio, que só era
interrompido vez ou outra por um crepitar, um farfalhar ou uma palavra apressada, dava
uma impressão estranha em meio à luz ofuscante.
— Mais oxigênio!
O homem que disse isso usava jaleco branco e uma máscara que cobria metade de
seu rosto.
— Injeção!
Uma das figuras trajadas de branco que cercavam a mesa entrou em movimento. A
injeção foi aplicada.
— Massagem!
Uma pequena máquina começou a zumbir. Pertencia ao montão de aparelhos que
cobriam quase inteiramente o corpo deitado na mesma.
— Efeito?
O cosmomédico que se encontrava junto à extremidade superior da mesa examinou
um pedaço de papel que deslizava à sua frente, e sobre o qual cinco estiletes móveis
traçavam linhas há bastante tempo.
— Negativo!
Alguém soltou um suspiro.
— Dose máxima de oxigênio.
— Terceira injeção.
— Massagem mais dez traços da escala.
— Efeito?
— Negativo.
Um dos homens arrancou a máscara do rosto. Linhas profundas se haviam formado
em torno da boca.
— Sonda! — ordenou a voz. Desta vez falava mais claro que antes.
Uma chave emitiu um estalido. A atividade do organismo pertencente ao corpo
imóvel foi examinada no próprio local.
— Resultado?
— Negativo, sir.
Todos sabiam o que isso significava. As máscaras caíram. Os homens entreolharam-
se.
— Expirou — disse o homem que dera as ordens.
Baixou a cabeça. Alguém aproximou-se lenta e um pouco desajeitadamente e
pousou a mão em seu ombro.
— Não leve isso tão a sério, Frank. Você fez o que pôde.
Frank estava abatido.
— Isso não altera o fato de que o paciente mais importante que já entrou num
hospital terrano acaba de morrer — disse.
O outro não soube o que responder.
— Tirem os aparelhos — ordenou Frank, sem olhar para ninguém em particular.
Alguns pares de mãos entraram em movimento. Contatos foram retirados, sondas
foram guardadas cuidadosamente e aparelhos afastados sobre os suportes giratórios. A
cabeça do morto apareceu.
Era uma cabeça semelhante a uma bacia, com cinqüenta centímetros de diâmetro e
dez de altura. Nessa cabeça se viam olhos de gato um pouco oblíquos e placas auditivas
branco-acinzentadas nas têmporas. Mais nada.
Não se via que na parte posterior do crânio havia outro par de olhos.
***
Torav Drohner já ouvira muitas histórias sobre o Marechal Solar Mercant. Mas só
agora, que estava à sua frente, viu como esse homem era estranho.
Torav já sabia há bastante tempo que alguma coisa estava sendo preparada, para a
qual se precisaria de sua colaboração. Também tinha uma noção razoável do que se
tratava. Mas a convocação para comparecer à presença de Allan D. Mercant, Chefe da
Segurança Galáctica, deixara-o abalado. Teve a impressão de que subestimara
gravemente a importância da missão que tinha pela frente.
Naturalmente atendeu à convocação o mais depressa que pôde. Allan D. Mercant,
Marechal Solar e um dos “grandes veteranos” do tempo em que a Humanidade deu os
primeiros passos titubeantes em direção às estrelas, não dispunha de um lugar que
correspondesse à sua posição. Seu escritório ficava num edifício em que Torav Drohner
hesitara em entrar, já que acreditara que se tivesse enganado no endereço. O edifício
parecia um depósito de peças de casas pré-fabricadas. Era uma relíquia do tempo em que
a cidade de Terrânia crescera tão depressa que os materiais de construção não podiam ser
trazidos com a necessária rapidez. O galpão consistia numa gigantesca ante-sala,
completamente vazia, e no escritório, que ocupava cerca de trinta e cinco metros
quadrados na extremidade sul. Ninguém perguntou a Torav para onde ia. A porta da ante-
sala não estava trancada. Atravessou a mesma e a porta do escritório abriu-se à sua frente.
Entrou. Com certo espanto examinou as instalações espartanas, as vidraças sujas, a gaiola
com o periquito e o homem sentado atrás da escrivaninha. Mercant era pequeno e de
aspecto humilde. Uma faixa rala de cabelo cor de areia cercava a calva reluzente.
Mercant estava lendo um papel. Nem sequer levantou os olhos à entrada de Torav.
Apontou distraidamente para uma das cadeiras que se viam à frente da escrivaninha.
Torav sentou.
Cinco minutos já se haviam passado. A única coisa que se ouvia era o zumbido do
tráfego urbano e o “clic” produzido pelo periquito, quando o mesmo saltava de um
balanço para outro.
De repente Allan Mercant levantou os olhos. Fitou Torav com uma expressão de
desconfiança e disse com a voz aguda:
— O senhor acha que eu sou um sujeito intratável, caro jovem. Não é verdade.
Torav assustou-se. Realmente pensara coisa parecida. Seu pensamento girara antes
em torno da palavra “excêntrico” de que “intratável”. Mas qual era a diferença? Será que
o chefe de segurança sabia ler pensamentos? A seu respeito corriam as histórias mais
estranhas, e todas as capacidades imagináveis lhe eram atribuídas. Era claro que não se
podia acreditar em boatos desse tipo. Apesar disso, Torav resolveu que no futuro teria
mais cuidado com sua “caixa pensante”.
Ao que parecia Mercant não esperava resposta. Torav teve a impressão de que
estava sendo dissecado músculo por músculo, osso por osso, enfim, o corpo todo. Não
descobriu qual era o resultado da avaliação realizada por Mercant. O Marechal Solar
exibiu um rosto de jogador de pôquer.
— O senhor já foi informado sobre suas funções, jovem — constatou o marechal.
— Sabe que se trata de instalar uma base em solo inimigo. Mas ainda não sabe quem é o
inimigo, mas eu lhe direi: são os blues.
Dizia as coisas mais importantes e decisivas com a voz de quem lê uma previsão
meteorológica. Torav levou dois segundos para compreender o que acabara de lhe ser
explicado.
Uma base na área de influência dos blues! Só mesmo um lunático seria capaz de ter
uma idéia como esta. E só mesmo um suicida estaria disposto a executá-la.
Mercant abanou a cabeça.
— Não. As coisas não são tão ruins assim. Como sabe, os homens que realizaram
uma missão em Eysal trouxeram um blue como prisioneiro. Já sabemos muita coisa sobre
o império dos blues. Conhecemos sua língua, como também conhecemos suas estruturas
sociais. Conseguimos pesquisar, até certo ponto, seu modo de pensar. Sabemos que suas
naves inferiores são inferiores às nossas em todos os pontos, menos no que diz respeito à
blindagem de molkex. Quer dizer que não será uma viagem para o desconhecido. Além
disso, o senhor ainda não se encontra na rampa de decolagem. O prisioneiro continua a
ser interrogado. Neste momento um médico ara está lidando com ele e saberá extrair
dessa criatura as informações que ainda não nos pôde fornecer. Quando estiver partindo,
meu jovem...
Foi interrompido por um zumbido agudo.
— Telefone! — disse o periquito com a voz rouca.
Torav sobressaltou-se. Allan Mercant esticou a mão direita e comprimiu um botão
preso a um quadro de comando inclinado. Torav viu pelo reflexo projetado em seu rosto
que uma pequena tela acabara de iluminar-se. Mas não entendeu uma palavra do que
dizia a pessoa que acabara de ligar.
Mercant não disse uma palavra. Depois de algum tempo desligou o receptor. Ficou
calado por algum tempo e olhava fixamente para a frente. Finalmente levantou a cabeça,
lançou um olhar penetrante para Torav, como se quisesse sufocar-lhe as objeções logo no
início, e disse:
— O senhor está com azar, meu caro jovem. Terá de contentar-se com as
informações que já possuímos. O prisioneiro blue acaba de morrer.
***
Allan D. Mercant explicara a Torav Drohner que não tinha alternativa. Tratava-se de
uma operação militar, e Torav era major da Frota.
Torav Drohner possuía uma qualidade: conformava-se rápida e totalmente com as
coisas que não podia mudar. Não era que lhe faltasse iniciativa. Uma pessoa sem
iniciativa jamais chegaria a major da Frota. Também não era fatalista, se bem que muitas
vezes suas atitudes cínicas podiam dar a entender que era. Apenas possuía senso prático.
Deixava de lado as coisas, as idéias, os empreendimentos que sabia não serem
compensadores. Havia outras coisas que o distinguiam: o dom da crítica e uma
desconfiança instintiva, que muitas vezes o prevenia dos erros e dos perigos. Certas
pessoas costumavam dizer que Torav era um computador humano. Mas essas pessoas
estavam mal-informadas.
Quanto ao mais, Torav tinha um metro e oitenta de altura, ombros razoavelmente
largos, um rosto razoavelmente feio e de resto seu aspecto exterior fazia com que não
chamasse a atenção à primeira vista.
Esse mesmo Torav Drohner foi investido no comando do cruzador Kopenhagen e de
seus cento e cinqüenta e cinco tripulantes. Destes, cento e cinqüenta eram tripulantes
regulares da nave, ou seja, soldados, enquanto os outros cinco eram cientistas. Um grupo
como este costumava ser chamado de “comando especial”, expressão que se condensara
na sigla Coesp. Torav explicara aos homens o que era esperado deles. Não ficou zangado
ao notar que poderiam ter ficado tudo, menos entusiasmados. Depois disso pôs-se a
esperar pelas providências que Allan D. Mercant se dignasse a tomar em relação aos
preparativos que se tornavam necessários.
E as lágrimas brotaram-lhe dos olhos.
Na manhã do dia seguinte tiveram início as aulas hipnóticas. Todos os
conhecimentos obtidos do blue aprisionado foram gravados de forma indelével nos
cérebros dos homens. E parte desses conhecimentos foi transmitida a determinados
tripulantes. Dentro de uma semana estavam em condições de pensar, reagir e decidir da
forma que teria feito o blue, caso se concentrasse em determinada situação. Por estranho
que pudesse parecer, não se deram ao trabalho de ensinar-lhes a língua estranha. Isso se
explicava em parte pelo fato de os órgãos vocais humanos não serem capazes de formar
os sons dessa língua. Mas Torav era de opinião que, para ser bem-sucedido, precisaria ter
pelo menos alguns conhecimentos básicos.
O problema encontrou uma solução surpreendente.
Torav Drohner voltou a ser convocado à presença do Marechal Solar Mercant.
Desta vez, quando Torav entrou no escritório o periquito disse-lhe bom dia, Torav
viu nisso um bom sinal. Distraído como sempre, Mercant apontou-lhe uma cadeira.
Levou vários minutos para concluir a leitura dos papéis cobertos de letras pequenas. Só
depois disso pôde dedicar sua atenção ao major.
Levantou os olhos.
— O senhor partirá amanhã — disse em tom seco. — Às duas e cinqüenta, tempo
local.
Por pouco Torav não dá um salto. Mercant fitou-o com uma expressão de espanto.
— Santo Deus — gemeu. — O senhor está pensando com muita intensidade. Isso
dá dor de cabeça na gente.
Levantou-se.
— Pegue essa caixinha — ordenou, apontando para uma mesinha baixa que ficava
perto da janela.
Na mesinha só havia uma caixinha do tamanho de um maço de cigarros. Torav
pegou-a. Era de metal plastificado muito liso e possuía um botão semi-oculto numa das
faces mais estreitas.
— Aperte o botão e coloque a caixinha junto ao peito.
Torav obedeceu. Ao ser comprimido, o botão emitiu um estalo não muito forte.
Torav enfiou a caixinha no bolso. Virou o rosto e viu que Mercant estava pálido.
— Meu Deus, como isso assusta a gente — disse Mercant.
Uma vez recuperado o autocontrole, prosseguiu:
— Um gravador de fita acaba de ser ligado. Pronuncie a fórmula de cumprimento
dos blues, que costuma ser usada em Apas.
Torav obedeceu:
— Bênçãos do céu vermelho!
— Outra vez — ordenou Mercant.
— Bênçãos do céu vermelho! — repetiu Torav.
Mercant acenou com a cabeça. Parecia satisfeito. Comprimiu um dos botões do
quadro de comando que havia sobre sua mesa.
— Reproduzirei o que o senhor acaba de dizer — disse.
Torav pôs-se a escutar. A fita reproduziu duas seqüências ligeiras de sons
chilreantes. Foi só. Até parecia que Mercant regulara o toca-fitas para uma velocidade
excessiva.
— Ponha a mão no bolso e volte a comprimir o botão — ordenou Mercant. Quando
viu Torav levantar o braço, acrescentou apressadamente: — Um momento! Farei correr
novamente a fita. Observe a diferença. Pronto! Pode apertar o botão.
Torav obedeceu. Estava espantado e desconfiado ao mesmo tempo. Refletiu sobre o
significado daquilo. Uma voz interrompeu seus pensamentos: era sua própria voz!...
— Bênçãos do céu vermelho! — disse a voz duas vezes em seguida.
Torav ficou estupefato. Viu Mercant mover os lábios. Mas a única coisa que ouviu
foi um murmúrio surdo e distante. Não compreendeu uma única palavra. Nem sequer
conseguiu distinguir qualquer som articulado.
Finalmente Mercant chegou perto dele. Pôs a mão em seu bolso e viu-o comprimir o
botão pela terceira vez.
— Não tinha notado — disse com um sorriso embaraçado. — Desse jeito o senhor
não compreende o que eu digo. Bem, se as coisas ficarem sérias, isso de qualquer
maneira não será necessário. Vá para junto do espelho grande, meu filho.
O espelho estava pendurado perto da porta. À sua frente havia uma mesinha
redonda e duas poltronas confortáveis. Para chegar bem perto do espelho Torav teria que
aproximar-se de lado.
Afastou uma poltrona que lhe atrapalhava os passos e ficou de pé bem perto da
superfície de vidro. Achava que a atitude de Mercant era ridícula e que os truques que lhe
estavam sendo apresentados não eram sérios. Pouco lhe importava que Mercant
provavelmente pudesse ler seus pensamentos. Era bom que o marechal soubesse o que
pensava dele.
Olhou para sua imagem refletida no espelho.
Sentiu um calafrio. Por alguns segundos sentiu-se como se tivesse levado um
choque. Não havia dúvida de que aquilo que via no espelho era ele mesmo, pelo menos
dos pés aos ombros.
Torav ficou estupefato, porém, com o que viu acima dos ombros: deles saía um
pescoço muito fino, em forma de mangueira de jardim, e em cima do pescoço estava
presa uma cabeça larga e achatada, que tinha o aspecto de duas bacias encostadas pelas
bordas!
2
A sala de comando era circular e tinha pouco menos de dez metros de diâmetro. Do
lado oposto da escotilha principal via-se a superfície gigantesca de uma tela. A imagem
era tão nítida e livre de distorções que até se tinha a impressão de que alguém havia
aberto um buraco no casco da nave, pelo qual se poderia soltar para o espaço. Bem à
frente da tela, a dois metros de distância, ficavam os painéis de comando do piloto e do
co-piloto. Junto às paredes, de um e de outro lado da tela, viam-se outros painéis: o do
localizador, com uma tela reflexiva verde que tinha quase o tamanho da tela principal, o
do radioperador do qual partiam as ligações dos diversos aparelhos transmissores e
receptores, o do navegador com a mapoteca mecânica, o do imediato no qual se via uma
parede coberta de minúsculas telas, uma para cada compartimento de maiores dimensões
que havia na nave, além de uma série de muitos outros.
Havia permanentemente oito oficiais de serviço nessa sala, que era a mais
importante da nave Kopenhagen, mas a guarnição fora dobrada por ordem de Torav
Drohner. Fazia dez horas que a nave decolara da Terra. Entrara em vôo linear, em direção
ao setor em que, segundo as informações de Zodi, o blue capturado, deveria ficar o
sistema do sol Pahl com o planeta Apas. Nessas dez horas a Kopenhagen havia percorrido
mais de 71.000 anos-luz. O navegador, que ficara muito tempo sem trabalhar porque os
mapas dessa parte do setor leste da Galáxia eram incompletos, pôs-se a comparar a
disposição das constelações com a informação do prisioneiro. Constatou que Zodi
fornecera uma descrição precisa desse setor da Via Láctea, o que deixou Torav bastante
aliviado. O oficial de astronomia fez o que lhe cabia: confeccionou, com base nos
resultados que os instrumentos lhe forneceram durante o vôo linear, um mapa estelar
provisório da área, pelo qual o navegador poderia orientar-se dali em diante.
Finalmente Torav Drohner resolveu reduzir a velocidade da nave para abandonar a
segurança proporcionada pelo espaço linear e regressar ao universo einsteiniano. Devia
contar com a possibilidade de que a área estivesse infestada de naves dos blues. No fundo
não havia nada a recear, pois sabia que a capacidade de aceleração das unidades inimigas
era muito inferior à da Kopenhagen, que dessa forma era capaz de escapar a qualquer
nave dos estranhos seres azulados. Mas não era esta a finalidade da operação; o que se
pretendia era a instalação de uma cabeça-de-ponte no mundo inimigo, sem que seus
habitantes percebessem.
“Essa”, concluiu Torav, preocupado, “é sem dúvida a tarefa mais perigosa que já
me foi confiada.”
Já tinha um conhecimento bastante exato da importância que o Governo do Império
atribuía à investida. Pouco antes da decolagem, mais dois membros haviam sido
acrescentados à tripulação da Kopenhagen. Esses dois homens eram Tako Kakuta e
Fellmer Lloyd, que pertenciam ao Exército de Mutantes, diretamente subordinado ao
Administrador Geral. Como Perry Rhodan resolvera que dois dos elementos mais
valiosos de que dispunha deveriam participar da operação, não havia a menor dúvida de
que tinha o maior empenho em que a mesma fosse bem-sucedida. O aumento inesperado
da tripulação não merecera aplausos irrestritos de Torav Drohner. Era bem verdade que se
sentiu satisfeito com o auxílio inestimável que isso representava e a confiança nele
depositada, já que no curso da operação ficaria investido no poder de comando sobre dois
membros do famoso Exército de Mutantes. De outro lado, porém, sentia-se bastante
constrangido sempre que tinha que dar uma ordem a qualquer dos mutantes. Segundo os
registros, esses homens tinham pouco menos de quatrocentos anos. Carregavam dentro
do corpo minúsculos aparelhos que revigoravam constantemente o organismo e o
mantinham sempre em atividade. Cada um desses homens vivera treze vezes mais que
Torav, a contar pelos anos; na verdade, cada um vivera muito mais, pois não se podia
esquecer que a fase inicial da História do Império fora muito mais turbulenta que os dias
atuais. “Se é que existe uma relação entre a sabedoria e a idade,” conjeturou o major,
“por que diabo fui nomeado comandante desta nave, em vez de Kakuta ou Lloyd?”
Só não pôs o cargo de chefe da operação à disposição de Mercant, no último
instante, por uma questão de desencargo de consciência, porque tinha certeza de que as
decisões do Governo eram ainda mais sábias.
Era bem verdade que no momento não tinha tempo para refletir sobre problemas
psicológicos. Na poltrona que ficava à sua direita estava sentado o homem que o
substituía na pilotagem da nave, o Capitão Erin Loschmidt, enquanto à sua esquerda o co-
piloto fitava a tela, e ao lado do co-piloto também do lado esquerdo, encontrava-se seu
substituto. Todos estavam muito nervosos, à espera de que acontecesse alguma coisa, pois
sabiam que alguma coisa deveria acontecer por aqueles segundos.
Nos últimos instantes um sol salientara-se em meio à profusão de estrelas que, em
sua luminosidade compacta, que não era interceptada por qualquer tipo de atmosfera,
davam a impressão de uma parede sólida feita de luz. Pelos cálculos do astrônomo, a
distância que separava esse sol da nave era de cinqüenta horas-luz. Era um sol vermelho.
Tratava-se de uma estrela pertencente à classe M, e praticamente não havia nenhuma
dúvida de que não era outro senão Pahl, o astro central de Apas, o mundo dos blues. A
Kopenhagen avançava para ele em vôo normal. A velocidade relativa da nave era pouco
inferior a cinqüenta por cento da velocidade da luz. A nave deslocava-se em virtude da
força da inércia. Todos os propulsores estavam parados.
Erin Loschmidt era de estatura elevada e um homem bastante calmo. Examinou a
tela óptica e disse:
— Parece que está tudo em paz, não está mesmo?
Torav fitou-o de lado.
— Se fosse o senhor, não confiaria tanto nisso. Não se esqueça de que esta tela
dificilmente lhe proporcionará qualquer informação a este respeito.
Erin abanou calmamente a cabeça.
— Não foi o que eu quis dizer. Se não fosse assim, as ondas teriam reagido.
Torav girou a poltrona. As luzes estavam parcialmente obscurecidas. Na gigantesca
tela verde do sistema de rastreamento, a posição das minúsculas sondas-reflexo estava
assinalada por meio de pontinhos luminosos. Pai Horvath, o oficial de serviço no setor,
notou o olhar de Torav e abanou a cabeça.
As sondas não passavam de receptores que reagiam às freqüências usuais dos raios
goniométricos hipereletromagnéticos. Eram muito pequenas para, por si só, produzirem
um reflexo perceptível na tela da nave empenhada na localização, mas bastavam para
iluminar todo o setor espacial assim que fossem atingidas por uma das variedades usuais
de raios goniométricos. No linguajar dos técnicos, eram conhecidas como “sondas quatro
pi”, porque funcionavam em todas as direções com igual grau de sensibilidade. A
Kopenhagen espalhara aproximadamente trinta sondas desse tipo em torno da nave, num
raio de dez unidades astronômicas.
Torav voltou a girar a poltrona para a posição primitiva. Erin tinha razão. Não havia
motivo para preocupar-se. O sistema de rastreamento da nave estava desligado, pois era
provável que o inimigo possuísse aparelhos semelhantes que pudessem revelar a presença
de uma operação de rastreamento. Mas seria perfeitamente lógico acreditar que qualquer
espaçonave inimiga que se encontrasse nesse setor expedisse de vez em quando um raio
goniométrico. Portanto, o fato de não ter sido registrada a presença de um raio desse tipo
levava à conclusão de que não havia nenhuma nave inimiga por perto.
Torav travou a poltrona na posição normal, lançou um olhar rápido para os
instrumentos e virou-se para o lado, a fim de dar uma ordem ao co-piloto.
Porém a ordem não chegou a ser dada. O uivo do alarma dado pelo rastreamento
penetrava até a medula dos ossos. Torav deu um pontapé violento na trava da poltrona e
virou-se abruptamente. Um ponto luminoso verde-claro aparecia na tela de rastreamento,
muito além do círculo formado pelas sondas. Deslocava-se rapidamente. Torav teve a
impressão de que estava numa órbita.
De repente, as sereias silenciaram.
— É uma única nave, sir! — informou Pai Horvath, depois de observar o reflexo
por algum tempo. — Encontra-se a trinta e uma unidades astronômicas, em posição de
repouso relativo em relação ao sol. O raio goniométrico tem, na altura da sonda mais
próxima, um diâmetro de duas vezes dez na décima metros. Desloca-se...
Pai Horvath interrompeu-se. Até então só olhara para a tela, mas repentinamente
virou a cabeça e seus grandes olhos negros fitaram Torav.
— Em espiral, sir — disse, completando a frase. — O diâmetro é crescente.
Torav viu com os próprios olhos. O primeiro reflexo surgira na parte esquerda da
tela de rastreamento, mais ou menos a meia distância entre a borda e o centro. A tela
possuía uma ligeira luminescência. Além do reflexo propriamente dito via-se, um pouco
menos nítida, a trajetória percorrida no último minuto. Essa trajetória era abaulada para a
direita, ou seja, em direção ao centro da tela. Era bem verdade que voltava a descer para
descrever outro círculo, bem fora da esfera oca formada pelas sondas. No entanto, o
diâmetro dos círculos aumentava a olhos vistos. Durante a próxima circunvolução a trilha
do reflexo romperia o anel das sondas. E pela velocidade com que funcionava o
transmissor inimigo não poderia demorar mais de quinze minutos até que a espiral
atingisse o centro da tela.
Em outras palavras: até que a Kopenhagen fosse descoberta.
Torav Drohner praguejou baixinho. Precisava fazer isso para descontrair-se um
pouco. Depois mandou que Pai medisse os intervalos das trilhas de rastreamento de duas
circunvoluções consecutivas. Sempre havia um espaço considerável entre duas trilhas, e
esse espaço não era abrangido pelo rastreamento inimigo. Havia uma pequena chance de
que a Kopenhagen pudesse penetrar nesse espaço intermediário sem modificar sua
velocidade crítica, quando chegasse o momento crítico. Mas Pai, que já se recuperara do
susto, logo frustrou essas esperanças.
— Estamos bem no centro, sir — disse tão alto que todos ouviram.
As idéias atropelaram-se na cabeça de Torav. Poderia realizar uma ligeira correção
de curso. Bastaria que os propulsores funcionassem por alguns segundos com um
empuxo reduzido. O inimigo possuía rastreadores energéticos que registrariam
imediatamente qualquer atividade dos propulsores. Mas era possível que o dispêndio de
energia necessário à modificação da rota fosse tão pequeno que...
Torav abandonou a idéia. Muita coisa estava em jogo e por isso não poderia assumir
qualquer risco, por menor que fosse.
Além disso naturalmente não era impossível que o inimigo interrompesse a espiral
de rastreamento antes que a mesma tingisse a Kopenhagen e começasse tudo de novo.
Seria preferível só confiar numa chance como esta se a gente possuísse outra saída. Torav
sentiu os olhares dos outros. Sabia que esperava que lhes desse a solução.
Caramba, como...?
A trilha do reflexo continuou a caminhar pela tela. Pai aumentara a luminescência
da tela, fazendo com que duas voltas da espiral se tornassem visíveis ao mesmo tempo. A
trilha emitiu uma luminosidade ofuscante, no momento em que o raio de rastreamento
atingiu em cheio um dos sóis, mas logo voltou ao nível luminoso anterior, quando a
sonda voltou a captar o mesmo volume energético de antes. Na circunvolução seguinte o
reflexo se aproximou mais três unidades astronômicas da Kopenhagen. À medida que a
nave terrana passava pelo inimigo, a espiral ficava mais estreita, porém conservava o
comprimento primitivo. Por um instante Torav chegou a nutrir a esperança de que a
velocidade da Kopenhagen fosse suficiente para escapar ao perigo. Mas à medida que a
distância entre as duas naves diminuía, o intervalo entre duas espirais consecutivas se
reduzia. E, como o nível de atividade do aparelho inimigo não diminuísse, as chances da
nave terrana tornavam-se cada vez mais reduzidas.
Na sala de comando a tensão crescia cada vez mais. Não se ouvia nenhum ruído,
com exceção do leve zumbido provocado pelo gerador existente nas entranhas da nave,
que fornecia a energia necessária aos aparelhos, e do “clic” ocasional produzido por
algum disjuntor.
Torav sentiu-se desorientado. Fitava intensamente a tela do rastreador, na qual a
hiperonda inimiga traçava círculo após círculo, cada qual mais amplo que o anterior e
mais próximo ao centro.
Outro sol foi atingido em cheio e a trilha do reflexo iluminou-se intensamente por
alguns segundos.
De repente teve-se a impressão de que a inteligência de Torav Drohner apenas
precisava de iluminação óptica. Uma idéia surgiu em sua cabeça.
Não havia tempo a perder. Mais três ou quatro minutos e o feixe de ondas atingiria a
Kopenhagen e trairia sua presença. Torav virou-se repentinamente.
— Centro de comando de tiro! — disse sua voz áspera e penetrante em meio à
penumbra reinante no recinto circular.
— Comando de fogo de prontidão, sir! — respondeu alguém.
— Canhão conversor pronto para disparar?
— Pronto, sir.
— Dispare para o vetor de raio seis vezes dez na décima segunda... Pouco importa
que seja o pi ou o teta, mas é importante que seja bem longe da nave. Aguarde ordem de
abrir fogo. Entendido?
Algumas chaves estalaram numa seqüência rápida.
— Entendido, sir.
Torav observava a trilha do reflexo, que já completara outra circunvolução. Na
próxima atingiria em cheio a Kopenhagen. O círculo primitivo formado pela trilha
deformara-se por completo, transformando-se numa elipse. Mas por enquanto não havia o
menor sinal de que o inimigo tivesse a intenção de suspender a operação de busca.
Torav olhou para o relógio. O raio de rastreamento levava dez segundos para
completar uma circunvolução. Viu em sua imaginação os pescoços-mangueira e as
cabeças-bacia dos oficiais que deviam estar a bordo da nave inimiga, contemplando
atentamente a tela, preparados para registrar qualquer reflexo, por menor que fosse.
Torav sorriu. Teriam um reflexo. E que reflexo!
Recostou-se confortavelmente na poltrona, como se quisesse mostrar que a situação
não o deixava nem um pouco abalado. O oficial de comando de tiro fitou-o por entre a
semi-luz da iluminação de alarma. Deu um ligeiro olhar de esguelha para a tela de
rastreamento e, falando devagar, disse em tom calmo:
— X menos trinta segundos... Iniciar contagem!
Um relógio começou a tiquetaquear. Emitia um estalo forte por segundo. A trilha do
reflexo inimigo circulava na tela verde. Chegava cada vez mais perto... mais perto...
— Vinte — disse o oficial de comando de tiro.
Torav passou a língua pelos lábios. O canhão de conversão levaria ao alvo uma
carga nuclear desmaterializada, usando o hiperespaço como vetor. O alvo ficava em
algum lugar do espaço, a grande distância da Kopenhagen. A bomba materializaria e
explodiria no mesmo instante. Sua finalidade não consistia em destruir ou danificar o que
quer que fosse.
Apenas deveria distrair a atenção do inimigo.
A localização de uma forte descarga energética provavelmente o levaria a crer que
havia algo de interessante num setor diferente daquele que vinha sendo vasculhado.
Suspenderia o rastreamento em espiral e concentraria sua atenção no lugar em que
acabara de explodir a carga nuclear.
Restava ver se o inimigo cairia no truque.
— Dez — disse o oficial de comando de tiro.
Os dedos de Torav contraíram-se convulsivamente no ritmo da contagem.
Faltavam sete, seis, cinco, quatro... caramba!
Numa largura que chegava a ser insolente, a trilha do reflexo descia verticalmente
pela tela verde. Torav observou-a, contrariado. Mais uma circunvolução, e a Kopenhagen
seria irremediavelmente focalizada pelo inimigo.
— Dois... um... Fogo!
Um solavanco pareceu sacudir a nave, mas na verdade era apenas o baque surdo,
semelhante a um som cavo e seco, provocado pelo disparo do canhão conversor. Alguém
soltou um suspiro. Torav não tirava os olhos da tela verde. A trilha do reflexo foi subindo,
e, dentro de alguns segundos, descreveria uma curva, desceria na vertical e atingiria a
Kopenhagen.
Ouviu-se um zumbido grave vindo do painel do oficial de rastreamento.
— Localização energética! — disse Pai Horvath entre dentes. — A bomba explodiu.
Torav não lhe deu atenção. Olhava a trilha do reflexo, que entrou na curva, atingiu o
ponto culminante, voltou a descer e...
...E parou!
Torav atirou as mãos para a frente. Os dedos tocaram as chaves e os botões dos
propulsores lineares. O reflexo projetado na tela de rastreamento permaneceu por um
segundo no mesmo lugar. Depois desviou-se para a esquerda, aumentou rapidamente de
velocidade e só parou junto à borda da superfície luminosa verde.
Era o lugar em que acabara de explodir a carga nuclear.
Só por um segundo Torav entregou-se à alegria indômita provocada pelo êxito de
seu estratagema. Logo lembrou-se de suas obrigações. O hiperpropulsor entrou em
funcionamento. Chiados agudos de alerta encheram a nave. A Kopenhagen acelerou. Os
propulsores consumiram energias tremendas para envolver a nave numa bolha do semi-
espaço kalupiano, dentro do qual prosseguiria numa velocidade incrível e sem ser
detectada em direção ao destino.
Naturalmente o funcionamento dos propulsores produzia fortes campos energéticos.
Também era apenas natural que normalmente a posição da nave de guerra terrana seria
assinalada na tela de rastreamento do inimigo com a força de um holofote aceso numa
noite sem luar.
Acontece que a situação não era normal. A descarga energética resultante da
explosão provocava uma luminosidade milhares de vezes mais forte que a dos
propulsores. O inimigo concentrava suas atenções unicamente na tarefa de descobrir a
causa da súbita explosão.
A Kopenhagen estava em segurança.
3
— Problemas — disse o homem que se encontrava junto à janela sem muita ênfase.
— Os comissários só têm problemas. No fundo são a favor da revolução, mas sempre
chegam situações em que prezam mais a camisa que o paletó. E sempre procuram
encontrar um meio de servir aos dois lados ao mesmo tempo.
Ipotheey levantou-se de um salto.
— Mentira! — chiou. — O visitante de baixa condição não compreende...
Interrompeu-se em meio à frase. Agiu assim em parte por causa do gesto de
desprezo que o desconhecido fez com a cabeça, em parte porque corria perigo de trair-se.
Não conhecia a pessoa com quem estava falando. Como iria responder perante a mesma à
acusação de trair a revolução?
— Não sou nenhum visitante de baixa condição, senhor comissário — disse o
desconhecido. Pela primeira vez Ipotheey viu a queimadura em suas vestes. — À minha
entrada o senhor já deveria ter percebido que disponho de recursos consideráveis.
De repente uma luz nasceu no espírito de Ipotheey. O desconhecido aparecera
subitamente no meio da sala. Ele mesmo ficara durante todo o tempo de olho na porta. E
ninguém passara por ela desde o momento em que Iul-Theer-Hij se retirara da sala. A
janela não podia ser aberta do lado de fora. Como, pelas criaturas verdes das areias, o
desconhecido havia entrado ali?
— Quem... quem é o visitante desconhecido? — gaguejou Ipotheey, apavorado e
decepcionado ao mesmo tempo.
— Heph-Mall-Thou, alto comissário da Resistência Secreta. O comissário nunca
ouviu falar nisso. O tempo ainda não estava maduro para que os verdadeiros combatentes
recorressem à colaboração de seu grupo.
A essa altura o desconhecido falava em tom enérgico, e pelo tratamento que usava
dava a entender que em sua opinião Ipotheey não ocupava posição superior à sua.
Ipotheey preferiu não discutir essa opinião.
— Eu... eu... nós nunca ouvimos falar no seu grupo, senhor.
— É claro que não. O comissário e seus homens fazem o trabalho pequeno. Só vê
Apas; mais nada. Nossas atividades desenvolvem-se numa base interestelar. Nossa hora
está chegando. Todas as providências foram tomadas. Minha viagem tem por fim
prevenir os grupos de resistência locais para o que vai acontecer e exigir seu auxílio.
— Auxílio? Para quê?
— O primeiro estágio do plano que tem por fim livrar os mundos secundários dos
espiões do mundo central está prestes a entrar na fase da execução. Isso só pode ser feito
às escondidas se os organismos secretos que controlam as rotas das naves da décima nona
prudência forem bloqueadas instantaneamente. Nem um único agente deve escapar.
Nosso poder é enorme, mas não basta para que possamos resistir por muito tempo a um
ataque cerrado da frota deste império. O início da revolução deve ser mantido em segredo
enquanto isso for possível.
Ipotheey sentiu-se como nos momentos em que era cantada a canção dirigida à
criatura marrom das matas, quando tinha aqueles sonhos confusos.
— Quais... quais são os recursos de que dispõem, senhor? — perguntou em tom
indeciso.
— A expedição de Alathuy já voltou e foi bem-sucedida — respondeu Heph-Mall-
Thou. — Possuímos quantidades suficientes de massa protetora. E nossos canhões são
mais eficientes que os da frota. Dispomos de duas mil espaçonaves fortemente armadas e,
por enquanto, de cem mil homens. Precisamos de mais gente, para tripular as naves... e
bloquear os centros de controle de rotas. Apas deve destacar quatro mil revolucionários
para a frota da Resistência e manter de prontidão outros dez mil homens, para bloquear os
centros de controle.
Ipotheey chilreou, apavorado. Nunca ouvira falar em Alathuy. E, apesar das
atividades revolucionárias, estava tão condicionado às trilhas de pensamento tradicionais
que, por um instante, teve a impressão de que a aquisição ilegal da massa protetora era
um sacrilégio. Além disso a exigência de fornecer quatro mil homens deixou-o abalado,
pois sabia perfeitamente que em todo o planeta de Apas não havia mais de dezoito mil
revolucionários militantes.
— O último algarismo citado pode ser reduzido — acrescentou Heph-Mall-Thou.
— Mas para que isso possa ser feito torna-se necessário informar nossa gente sobre a
situação dos centros de controle de rota, sobre suas guarnições, em resumo: sobre tudo
aquilo de que precisa um atacante para ocupar esses centros e colocá-los fora de
atividade.
Ipotheey balançou a cabeça, num gesto afirmativo, sem saber com o que estava
concordando.
Heph-Mall-Thou levantou-se.
— Voltarei — disse em tom resoluto. — Digamos, daqui a sete décimos de dia. Até
lá o comissário terá certeza de que o movimento subterrâneo de resistência de Apas
dispõe de quatorze mil homens, ou terá presentes as informações necessárias. Sabe
perfeitamente que se torna necessário agir implacavelmente.
Ipotheey também se levantou. Heph-Mall-Thou estava parado junto à janela. O par
de olhos frontal parecia olhar para a cidade.
— Tenha mais um pouco de paciência — implorou Ipotheey. — Tenho um
problema com o pessoal da décima nona prudência. Querem...
Heph-Mall-Thou fez um gesto totalmente inesperado: virou a cabeça.
Por um momento Ipotheey ficou tão perplexo que se esqueceu do que pretendia
dizer. Teve de refletir apressadamente para lembrar-se.
— Dizem que a destruição do posto insular de Guluup foi um ato de sabotagem. Se
o caso não for esclarecido em dois dias, serei submetido ao Alto Comissariado da décima
nona prudência.
Heph-Mall-Thou interrompeu-o.
— O comissário deve esquecer isso. O cumprimento da exigência da décima nona
prudência pode ser adiado, pelo menos por três dias. Até lá teremos conseguido o que
queríamos.
Balançou a cabeça para Ipotheey e disse:
— Que o céu vermelho o abençoe!
No mesmo instante desapareceu do lugar em que estivera.
Ipotheey deixou-se cair na poltrona e pôs-se a refletir. Os pensamentos
atropelavam-se, e não havia dois que se encadeassem para formar o início de uma
seqüência lógica. Levantou-se, saiu pela fresta da escrivaninha e deitou no chão
acolchoado.
Deitado de bruços, passou as mãos por cima da cabeça e cobriu as placas auditivas.
Depois encolheu as pernas curtas, fazendo com que as solas dos pés tocassem o chão ao
lado do corpo.
Nessa posição iniciou o exercício da angústia, invocando a criatura branca da
clareza. Na Terra esse procedimento seria chamado de Ioga.
A invocação da criatura branca durou quase um décimo de dia.
Depois disso seu cérebro se iluminou. As idéias enfileiraram-se harmoniosamente,
esboçando em traços seguros a imagem dos últimos acontecimentos. De repente Ipotheey
compreendeu o que deveria fazer.
Voltou à escrivaninha e comprimiu o código audiovisual de Iul-Theer-Hij no
videofone.
O mestre da décima nona prudência atendeu imediatamente. Fitou Ipotheey e disse:
— Já esperava o chamado do comissário. O caso de Gullup já foi...
Ipotheey atreveu-se a interromper o marrom.
— Ainda não — respondeu. — Mas sei que há criaturas estranhas em Apas. São
cegas dos olhos traseiros. Se não estão na posição correta, têm de virar a cabeça para ver
a gente.
***
Na parte nordeste da cidade havia um setor destinado a abrigar as pessoas que
moravam sozinhas. O bairro era formado quase exclusivamente por edifícios de
apartamentos de altura média, mas muito compridos na linha lateral. Cada grupo de
edifícios era dirigido por um consórcio dos particulares que eram seus proprietários. Ali
se alugavam apartamentos. O aluguel era de cinqüenta a duas mil unidades por dez dias,
conforme o prazo da locação.
Torav encontrou dois apartamentos apropriados. As negociações realizadas com o
encarregado do proprietário, que residia no pavimento térreo do mesmo edifício,
correram normalmente. Seu nome era Epethultik e, a julgar pela estatura e pelo aspecto
da pele, já estava entrando na fase senil. Atendia aos fregueses atrás de um balcão
semicircular instalado no hall de sua residência, de onde podia ver o hall de entrada do
edifício. Aceitava moeda de prazo médio sem fazer perguntas e por isso não exigia um
ágio superior a cinco por cento. Para não despertar a atenção, e uma vez que dispunha de
dinheiro fácil, Torav alugou os apartamentos por cinco períodos de cinco dias, embora
tivesse certeza de que não iria ocupar os apartamentos por mais que um décimo desse
prazo.
As unidades haviam sido construídas no estilo típico dos blues. Como os edifícios
fossem redondos, as peças dos apartamentos tinham o formato de segmentos de círculo.
Na periferia do círculo as grandes janelas ovais permitiam uma visão ampla para a
cidade. Na parte interna do círculo saíam portas para o poço do elevador principal, que
estabelecia juntamente com alguns poços secundários a ligação vertical de um pavimento
para outro.
As instalações eram estranhas. Apesar da descrição fornecida por Zodi, os terranos
levaram uma hora para descobrir a finalidade dos diversos aparelhos. Tal qual acontecia
nos edifícios terranos, também aqui cada residência era uma máquina automática de
morar, em cujo interior os numerosos aparelhos e instrumentos cumpriam num espaço de
tempo muito breve qualquer desejo do ocupante, quer se tratasse de uma lauta refeição
com especialidades vindas de mundos estranhos ou uma coisa mais simples, como um
banho numa banheira de pedra artificial que tinha o formato de uma esfera cortada no
quarto superior.
Tako Kakuta apareceu no momento em que Torav, Hauka e Fellmer concluíram suas
investigações. Apresentou um breve relato. Não tinha a menor dúvida de que Ipotheey
arranjaria os documentos necessários dentro do prazo que lhe fora indicado. A segurança
terrana sabia de antemão que Ipotheey não seria capaz de mobilizar quatorze mil homens.
— A propósito: ele não sabia da existência de Alathuy — acrescentou Tako. — É
interessante.
Torav confirmou com um gesto.
— Mas era de esperar. Uma pessoa que se envolve num movimento como este deve
ficar na penumbra.
Alathuy era o blue apelidado de Zodi, que falecera em virtude do interrogatório
psíquico que os médicos aras haviam realizado na Terra. O mesmo realizara uma
expedição secreta para Eysal, com algumas dezenas de naves, pois pretendia conseguir
um bom suprimento de molkex para a revolução contra o domínio de Gatas. A Segurança
Galáctica tivera conhecimento da operação, e infelizmente a frota gatasense também.
Uma luta foi travada nos céus de Eysal, e o grupo de cientistas terranos que atuavam
nesse planeta mal conseguiria escapar às conseqüências dessa luta. O resultado da batalha
era completamente desconhecido, mas era de supor que os gatasenses tivessem saído
vitoriosos, pois possuíam superioridade de forças.
O fato de Ipotheey ignorar a existência de Alathuy tornava mais plausível a suspeita
que os especialistas da Segurança Galáctica haviam manifestado logo após o
interrogatório de Zodi. Os nomes citados pelo mesmo não eram os revolucionários
militantes. Tratava-se de gente que simpatizava com o movimento, mas não estava
informada sobre os detalhes do mesmo. Zodi não quis arriscar-se a revelar os nomes dos
seus verdadeiros colaboradores. A revolução de Apas vinha sendo preparada num terreno
muito quente, e qualquer descuido poderia custar a vida de todos, e frustrar para sempre
os anseios de independência de Apas.
Tako ainda informou que antes de sua entrada no gabinete de Ipotheey um homem
de uniforme marrom saíra do mesmo.
Conforme admitira o próprio Ipotheey, a visita fora motivada pela destruição do
posto insular de Guluup.
Torav interrompeu-o com um gesto.
— Não vamos preocupar-nos com isso. Não podemos prestar nenhuma ajuda direta
a Ipotheey, mas daqui a dois dias nossa operação estará em pleno andamento, e a polícia
secreta terá que cuidar de coisas mais importantes. Ipotheey ainda escapará bem.
Hauka Leroy não participou da palestra. Revistara todas as peças, à procura de
aparelhos de escuta e objetivas; era especializado no assunto.
— Nada — disse ao voltar. — Será que já podemos desligar os projetores? Já não
agüento ver essas cabeças de bacia.
Torav deu uma risada. Transmitido pelo projetor, o ruído parecia ser um borbulhar
alegre. Hauka viu Torav erguer a mão direita. Tocou num ponto das vestes em que o
pequeno projetor se encontrava oculto sob o campo hipnomecânico.
No mesmo instante a imagem de blue apagou-se e Hauka viu sentado à sua frente o
Torav Drohner que lhe era conhecido.
6
Desta vez Hurut Iirp reagiu um pouco mais depressa. Não parecia ter ficado
inconsciente por muito tempo. Olhou para cima e viu um pedaço circular de céu violeta,
quase negro. Se não via todo o céu, isso acontecia porque estava deitado num buraco.
Era um buraco enorme. Hurut admirou-se de que os mapas das áreas adjacentes à
estação não o registrassem.
Logo encontrou uma coisa que o deixou muito mais admirado.
Estava deitado sobre uma chapa de metal plastificado. Ao primeiro relance tivera a
impressão de que era plana. Mas agora viu que na verdade era abaulada. Encontrava-se
próximo ao ponto mais elevado da curvatura. A superfície lisa descia para todos os lados,
até o lugar em que parecia tocar nas bordas do buraco.
Hurut dirigiu uma prece à criatura branca da clareza. Receava que a mesma pudesse
zangar-se e recusar seu auxílio, porque ele já a molestara tantas vezes no mesmo dia. Mas
desta vez ainda demonstrou sua boa-vontade. Iluminou os pensamentos de Hurut,
explicando-lhe que se encontrava no topo de uma gigantesca esfera de metal plastificado.
Na verdade a superfície abaulada não tocava nas bordas do buraco. Apenas dava esta
impressão a quem se encontrasse no lugar em que estava.
E a criatura branca da clareza não ficou só nisso. De repente Hurut compreendeu
por que o buraco não estava registrado nos mapas. É que surgira há pouquíssimo tempo.
Alguém o abrira para esconder a esfera. Que esfera seria essa, que era tão grande, e que
alguém se dava ao trabalho de esconder?
Por mais limitadas que fossem as faculdades mentais de Hurut Iirp, o mesmo sabia
perfeitamente que a forma esférica era a mais econômica para uma espaçonave.
Então era uma espaçonave, e uma espaçonave muito estranha, pois do contrário
teria um revestimento de massa protetora.
De repente Hurut compreendeu o que deveria fazer. Levantou o braço dolorido e
enfiou a mão no bolso. Agarrou a caixinha redonda que era uma das peças mais
importantes de seu equipamento com os sete dedos ao mesmo tempo e tirou-a. Tremeu de
medo de que o mecanismo complicado tivesse sido danificado com as numerosas quedas
e abalos. Sua mão tremia enquanto girava o botão anguloso de regulagem.
Mas logo a luz de controle acendeu-se e Hurut passou a respirar mais tranqüilo.
Nesse momento nem se lembrou de que se encontrava numa situação muito
perigosa. Afinal, a base sobre a qual estava sentado era abaulada para baixo e
perigosamente lisa. Bastaria um movimento em falso, e escorregaria pela curvatura da
esfera, precipitando-se nas profundezas.
Na verdade, nem pensava nisso. Sentiu-se dominado por um enorme nervosismo.
Uma espaçonave incrivelmente estranha pousara em Kohnla. Se a nave era tão esquisita e
diferente de tudo quanto já tinha visto, como não seriam as pessoas vindas na mesma?
Hurut aproximou a caixinha redonda da boca, que ficava na extremidade inferior do
pescoço e disse:
— Um funcionário de baixa categoria chamando o chefe da estação. Quando eu lhe
disser o que acabo de encontrar, meu senhor não acreditará. Uma nave estranha pousou
em pleno deserto. Cavaram um grande buraco para escondê-la...
***
Finalmente Torav Drohner viu-se numa peça de móvel que logo identificou como
sendo uma cama. Sentia-se muito mal. Sua cabeça zumbia tão forte que parecia que
estavam fazendo uma corrida de automóveis em seus sulcos cerebrais.
Com um grande esforço conseguiu deitar de lado. Viu um homem sentado em sua
cama. De início os contornos desse homem eram confusos, mas a curiosidade começou a
abafar a sensação de mal-estar e Torav reconheceu Hauka Leroy.
Ao que parecia Hauka tivera o mesmo destino que ele. Era ao menos o que se
deduzia da expressão de seu rosto.
Torav olhou em torno e constatou que se encontrava numa sala em forma de
segmento de círculo. Na parede externa havia uma grande janela, pela qual penetrava a
luz.
Na parede lateral oposta havia outra cama, com a parte inferior voltada para a
janela. Entre a cama e a parede em que ficava a janela havia uma porta alta e estreita.
Torav virou a cabeça e viu uma porta igual na parede à qual estava encostada sua cama.
Na estreita parede dos fundos havia uma terceira porta. Fora as camas, a mobília consistia
numa mesa redonda, que ficava no centro da sala, e em duas cadeiras. A mesa estava
apoiada sobre uma coluna cilíndrica de cerca de um metro de diâmetro. As cadeiras
haviam sido colocadas de tal forma que cada uma delas ficava de costas para uma das
camas.
O formato da sala era rigorosamente simétrico. Uma reta imaginária traçada do
centro da porta dos fundos ao centro das janelas a dividiria em duas partes idênticas.
Torav não se sentiu nada à vontade, pois lembrou-se de que na Terra essa simetria
finalista costumava ser usada principalmente nas celas das prisões.
Vencendo a resistência dos nervos e dos músculos, levantou-se num movimento
vigoroso. Ainda trazia sobre o corpo as vestes de plástico pertencentes ao equipamento
padrão dos astronautas. A roupa ampla de blue, talhada à moda de Apas, lhe fora tirada.
Torav logo se certificou de que juntamente com essa roupa lhe haviam tirado as armas, o
projetor e o mini comunicador.
Foi à janela. Hauka seguiu-o com os olhos. Por enquanto ninguém dissera uma
palavra. Torav viu uma área ensolarada pavimentada com pedras, que ficava uns quinze
metros abaixo do lugar em que se encontrava e se estendia até um muro de altura
considerável, que se estendia bem ao longe. Esse muro, que descrevia uma curva suave,
tomava todo o campo de visão. Provavelmente era circular como todos os edifícios de
Apas.
Para além do muro Torav viu os contornos pouco nítidos de uma cadeia de
montanhas baixas coberta de bruma. Parecia que entre o muro e as montanhas o terreno
era quase todo plano. Isso seria uma desvantagem, caso conseguissem fugir do edifício
em que se encontravam.
Torav virou a cabeça.
— Então? — perguntou. — O que houve?
Hauka fez um gesto de que não sabia.
— Sei tanto quanto você. Alguém me deu uma pancada pelas costas na cabeça.
Quando acordei, estava deitado nessa cama.
Torav apalpou a cabeça.
— Não existe o menor sinal — constatou. — Não foi nenhuma pancada. Suponho
que tenha sido um choque nervoso. Devem possuir armas de choque. — Apontou para
uma das portas laterais. — O que há atrás dessa porta?
— O banheiro e coisas parecidas — respondeu Hauka.
— É uma prisão confortável. E ali?
— Não sei. Essa porta está trancada. Deve ser a entrada.
— Trancada? — perguntou Torav em tom de espanto. — Pensei que você soubesse
lidar com fechaduras.
— Sei mesmo. Infelizmente esta fechadura é muito complicada. Além disso você
sabe que fui interrompido abruptamente quando tentava familiarizar-me com a técnica de
travamento de portas dos apasenses. Finalmente estou sem minha caixinha de
ferramentas. E com as unhas não posso fazer muita coisa.
Torav interrompeu-o com um gesto.
— Tem alguma idéia de onde estamos? Sabe o que aconteceu com Tako e Fellmer?
E o que essa gente quer de nós? Nas mãos de quem caímos? E o que pretendem fazer
conosco?
Hauka abanou a cabeça.
— A resposta a todas as perguntas é: não sei. Acordei no máximo dez minutos antes
de você.
Torav sentou na beira da cama. Levou algum tempo procurando cigarros nos bolsos,
mas não havia nenhum. Finalmente apoiou o queixo nas mãos e pôs-se a refletir. Hauka
não o perturbou. Alguns minutos se passaram num silêncio absoluto, um quarto de hora,
meia hora...
Finalmente Torav levantou os olhos.
— Quer dizer que nos pegaram — principiou, fazendo uma constatação que para
Hauka não passava de uma verdade corriqueira. — Não sabemos como deram com nossa
pista. No primeiro dia tudo parecia estar em ordem. É perfeitamente possível que pelo
menos uma das peças de dinheiro roubadas chegou ao banco antes da hora e foi
identificada. Mas não acredito muito nisso. Talvez o comissário que recebeu a visita de
Tako tenha farejado alguma coisa. Acho isso mais provável.
— Mas ele não é um revolucionário? — interrompeu Hauka.
— Isso mesmo. Colabora com outros blues que pretendem derrubar o domínio dos
gatasenses. Provavelmente suas idéias sobre uma possível colaboração com criaturas não
pertencentes à sua raça não são as mesmas. Pelo que soubemos de Zodi, para qualquer
blue o forasteiro mais amistoso é uma criatura cem vezes mais repugnante que o mais
repugnante dos indivíduos de sua raça. Isso quase chega a torná-los humanos. Talvez
Ipotheey tenha percebido que Tako não é nenhum blue.
— Mas como? Torav sorriu.
— É simples. Eu mesmo virei a cabeça quando alguém me chamou. Para um blue
essa reação deve ser muito esquisita. Uma criatura que possui quatro olhos não precisa
disso.
— Ah — fez Hauka.
— De qualquer maneira estamos presos
— disse Torav com um suspiro. — Provavelmente somos prisioneiros da polícia
secreta gatasense. Não temos possibilidade de entrar em contato com a Kopenhagen ou
com os dois mutantes. Ao que tudo indica, encontramo-nos num lugar afastado na cidade,
e o edifício em que estamos praticamente não oferece a menor possibilidade de fuga. —
Levantou-se. — Parece que estamos mesmo na pior.
Começou a andar de um lado para o outro da sala. Foi à janela, voltou pelo outro
lado da mesa, fez meia-volta junto à porta dos fundos e caminhou novamente em direção
à janela. Quando estava passando pela quarta vez junto à mesa aconteceu uma coisa
inesperada.
Uma área redonda da parede, que ficava acima da cama de Hauka, iluminou-se de
repente. Torav teve a atenção despertada pelo lampejo não muito forte que atravessou a
sala. Aquela mancha da parede, que antes não se distinguia do resto, transformou-se
repentinamente numa tela de imagem.
Uma esperança louca eletrizou Torav quando viu o crânio marcante de um terrano.
Mas a ilusão durou apenas um segundo. Logo foi substituída pela perplexidade.
A cabeça projetada na tela era o crânio anguloso de campônio, coberto de cabelos
negros, que pertencia a Hauka Leroy.
***
Hurut Iirp quase não teve forças para explicar ao chefe da estação que não se
encontrava no estado de delírio provocado por práticas ilícitas, mas via nitidamente
diante dos seus olhos o quadro que estava descrevendo.
Depois disso os acontecimentos tiveram seu curso. Hurut advertiu expressamente do
perigo representado pelo solo enganador do deserto, na parte superior do buraco. Não
conseguiu fornecer uma descrição exata do tipo de solo, mas deixou claro que quem se
aproximasse demais acabaria por cair no buraco.
O chefe da estação pediu a Hurut que tivesse um pouco de paciência e garantiu-lhe
que o socorro seria enviado logo. Elogiou-o por causa da circunspeção com que agira.
Dali em diante Hurut enfrentaria as provações mais duras sem queixar-se, pois durante os
longos anos de sua carreira de funcionário nunca lhe acontecera ser elogiado por um
superior de alta categoria.
Hurut foi informado em linhas gerais sobre tudo que se fez para salvá-lo. A estação
enviou vinte trenós com quatro homens fortemente armados em cada um, que cercaram o
buraco. Outros dez trenós levaram equipamentos especiais, que permitiriam aos homens
entrar no buraco sem enfrentar maiores riscos. Hurut não pôde ver isso, mas acreditava
que fosse assim, porque seu superior lhe dizia.
Nem desconfiava de que na verdade apenas cinco trenós saíram da estação, e de que
não seria transportado nenhum equipamento especial, pois ninguém entraria no buraco.
Os homens que iam nos trenós só estavam fortemente armados porque ninguém poderia
prever o que sobraria dos desconhecidos depois que fosse desferido o golpe principal.
Esse golpe partiria de cinco naves de guerra da frota de Gatas, que naquele
momento operavam no setor de Apas e foram chamadas às pressas para Kohnla, a fim de
transformar o buraco juntamente com a espaçonave desconhecida numa cratera de lava
incandescente.
Do ponto de vista dos acontecimentos cósmicos, a vida e a segurança da criatura de
cabeça em forma de bacia que estava grudada à nave esférica, toda amedrontada,
ocupavam uma posição secundária.
Quem sentiria falta de um homem como Hurut Iirp?
***
— Vejo que estão surpresos — disse a cabeça que falava com a voz de Hauka. —
Mas tenho certeza de que não demorarão a compreender o que aconteceu. Estamos de
posse dos seus projetores. Não compreendemos completamente o princípio de seu
funcionamento, mas conseguimos inverter a polarização dos mesmos. Agora cumprem
uma finalidade diferente. Usados por um membro de nossa raça, fazem com que o mesmo
pareça ser um dos seus. Suponho que neste momento, quanto ao aspecto exterior, seja
idêntico a um dos senhores. Torav recuperou-se do susto.
— É verdade — confirmou. — O senhor me compreende?
— Sim; compreendo perfeitamente. O equipamento funciona em ambos os sentidos.
Mas não vamos perder tempo. Devo-lhes uma explicação. Meu nome é Iul-Theer-Hij.
Sou mestre da décima nona prudência e cidadão do mundo principal de Gatas. A
operação dirigida contra os senhores foi comandada por mim.
Parecia sentir-se orgulhoso por isso. Era ao menos o que dava a entender o tom de
sua voz. “Se bem que nestas coisas deve-se pensar bem antes de formular um juízo”,
pensou Torav. Afinal, Iul-Theer-Hij estava falando sua língua, que o projetor
transformava num intercosmo inteligível.
— Os senhores agiram com muita inteligência — prosseguiu o mestre — mas nem
por isso foram bastante inteligentes. Os senhores mesmos descobriram um dos erros que
cometeram, conforme ouvi há pouco. Realmente, um dos nossos não vira a cabeça
quando alguém lhe dirige a palavra. O comissário Ipotheey teve a atenção despertada por
esse desvio de comportamento quando pela primeira vez conversou com um dos homens
que agiam sob suas ordens. Ipotheey é um homem pouco importante, que favorece a
revolução às escondidas e pensa que não sabemos disso. Mas sabe observar as coisas.
Deu uma descrição precisa do incidente, e dessa forma chegamos à conclusão de que,
além de pertencer a uma raça estranha, o homem que o visitou é uma das raras criaturas
privilegiadas que dispõem de faculdades parapsíquicas e paramecânicas.
“Da palestra mantida com Ipotheey deduzimos que os senhores não vieram com a
intenção de estabelecer contatos pacíficos. Tivemos de impedir que fizessem alguma
coisa que nos prejudicasse. O homem que conversou com Ipotheey escapou à
perseguição. Vasculhamos toda a cidade e acabamos encontrando o lugar em que os
senhores haviam fixado moradia. Começamos a observá-los.
“Naquela altura já havíamos recebido informações de um colega que foi roubado
misteriosamente em seu carro, tendo ficado sem o dinheiro que retirara do banco pouco
antes. Os movimentos do ladrão combinavam perfeitamente com a descrição fornecida
por Ipotheey. Já tínhamos bastante certeza.
“Na manhã do dia seguinte, quando começamos a cercar o edifício em que
moravam os senhores, nossos aparelhos constataram que havia entre os senhores não
apenas uma pessoa, mas duas que possuíam dons parapsíquicos. Registramos a presença
de emanações cerebrais telepáticas. Esse fato dificultou nosso trabalho, pois o telepata
podia ler nossos pensamentos a qualquer momento e antecipar-se à nossa ação. Teríamos
que pô-lo fora de ação. Um dos nossos homens foi munido de um bloqueio somático que
os telepatas pertencentes ao seu grupo não poderiam romper. Dessa forma esse perigo
fora afastado.
“Outro dos homens pertencentes ao seu grupo pegou um carro e foi a um bairro
periférico. Chamamos de volta pelo caminho mais rápido o táxi que o mesmo havia
usado e examinamos as moedas com que pagara a corrida. Nossas suspeitas
confirmaram-se. Essas moedas pertenciam ao produto do roubo cometido no dia anterior.
“O quarto homem de seu grupo ficou no apartamento. Supúnhamos que tivesse sido
prevenido pelo telepata. Tentaria abandonar o edifício. Pretendíamos levar avante a
operação com toda calma e discrição, mas a essa altura teríamos de agir depressa.
Enviamos uma funcionária que deveria deter o inimigo enquanto nossos homens
ocupavam o edifício às pressas. Aproveitamos a oportunidade para realizar mais um teste.
Constatamos que ao ser chamado esse homem virará a cabeça pela forma que Ipotheey
havia descrito.
“A operação foi um sucesso absoluto. Já sabemos de onde vêm e temos uma boa
idéia sobre o grau de evolução de sua tecnologia. Na série de interrogatórios que terão
pela frente descobriremos como pensam e vivem e por que vieram para Apas. Esses
conhecimentos nos serão úteis dentro em breve, quando começarmos a subjugar o resto
da Galáxia.”
Depois dessa fala impressionante a cabeça de Iul-Theer-Hij permaneceu na tela por
mais alguns segundos. Depois disso a mesma apagou-se.
Torav permaneceu imóvel. Ouviu Hauka mover-se atrás dele.
— Que surpresa! — disse, perturbado. Torav não respondeu. Hauka ficou parado.
Provavelmente estava perto da janela.
— Esse sujeito parece bastante convencido, não é mesmo? — principiou de novo.
— Quer subjugar o resto da Galáxia! E pensa que pode fazer isso sem mais nem menos.
Torav virou a cabeça.
— Cale a boca ao menos por um minuto! — gritou. Depois murmurou: — Tenho
uma idéia...
8
Hurut Iirp começou a ficar desconfiado quando recebeu ordem para dali em diante
usar ininterruptamente seu micro transmissor. Disseram-lhe que era indiferente o que
falasse para dentro do microfone, desde que dissesse alguma coisa.
Hurut perguntou a si mesmo o que significaria isso. Conhecia os procedimentos da
técnica de localização. Sabia que, quanto maior era a freqüência dos sinais recebidos,
mais fácil se tornava fazer a determinação goniométrica da posição do respectivo
transmissor. Mas por que iriam recorrer à goniometria? Afinal, ele lhes descrevera a
posição do buraco. Os dados fornecidos seriam suficientes para que qualquer membro da
guarnição da estação conseguisse orientar-se.
Só havia uma resposta. As pessoas que queriam saber exatamente onde ele se
encontrava não vinham da estação.
Hurut começou a inquietar-se. Por que não fora informado sobre isso? De onde
vinham as pessoas às quais se destinavam os sinais goniométricos? O que pretendiam
fazer quando chegassem ali?
Foi dizendo frase após frase para dentro do aparelho. Sabia que ninguém estava
interessado no sentido das suas palavras. Desfiou velhas canções. Olhava constantemente
para os lados, como se as coisas que o cercavam pudessem dar resposta às perguntas que
o martirizavam.
De início não deu atenção ao ponto vermelho que surgiu no céu, bem acima de sua
cabeça. Pensou que fosse uma estrela. Mas logo surgiu outro ponto, vermelho como o
primeiro. Hurut sabia perfeitamente que não havia duas estrelas vermelhas como estes
pontos, e que ficassem tão próximas umas das outras. O vermelho era a cor do sol do
sistema ao qual pertencia. Qualquer objeto que refletisse aquela luz a grande altura seria
vermelho.
De repente Hurut compreendeu. Eram espaçonaves! Queriam que falasse para
dentro de seu transmissor, para que as tripulações, que não conheciam a área, pudessem
localizar o buraco no meio do deserto. Essas tripulações vinham de Gatas e nunca haviam
posto os pés em Kohnla.
Hurut também compreendeu o que pretendiam fazer com ele. O chefe da estação
mentira. Não queriam salvá-lo. Queriam destruir a nave desconhecida, e pouco lhes
importava o que seria feito dele.
Se tivesse tempo para refletir sobre a situação talvez não lhe fosse impossível
tomado uma decisão que, para um blue. era uma coisa inconcebível. Mas não tinha
tempo. Graças aos seus esforços as naves conheciam ao menos a posição aproximada do
buraco. Mesmo que parasse de transmitir levariam apenas algumas frações de um décimo
de dia para descobrir a posição exata. E quando isso acontecesse... seria o fim.
Hurut entrou em atividade. O material liso dava-lhe um medo terrível, e a simples
idéia de perder o apoio e precipitar-se pela gigantesca esfera dava-lhe tonturas.
Não teve outra alternativa. Mesmo que caísse, não teria nada a perder. De qualquer
maneira morreria no décimo de dia que se seguiria. Seria muito mais razoável procurar
um acesso para o interior da nave e prevenir os desconhecidos. Se estes decolassem era
tempo, ainda poderiam escapar às naves dos gatasenses.
E talvez o levassem.
***
— Como é que ele nos compreende? Torav proferiu a pergunta como que num
latido, depois de ter refletido em silêncio por muito tempo.
Hauka assustou-se com a súbita irrupção e começou a cocar a cabeça.
— Por que não iria compreender-nos? — retrucou. — Afinal, nós o
compreendemos, não é mesmo?
— Por quê?
Ao que parecia Torav pretendia dar uma explicação mais pormenorizada. Notava-se
pelo seu rosto. Parecia nervoso, mas de repente o nervosismo desapareceu. Deixou cair os
ombros e disse com um suspiro:
— É claro que você tem razão. Está com os nossos projetores, e não precisa mais do
que isso.
A explicação não parecia convencer Hauka. O que era mesmo? Torav pretendia
dizer outra coisa.
O circuito de televisão! Iul-Theer-Hij ouvira Torav dizer como virará a cabeça
quando a moça o chamara. O aparelho trabalhava ininterruptamente, mesmo nos
momentos em que a tela permanecia invisível. E o blue possuía o projetor adaptado, por
meio do qual podia traduzir o intercosmo para sua própria língua.
Havia outro detalhe: o encadeamento lógico ainda não era completo. Hauka sentiu
que estava na pista do problema sobre o qual Torav pretendia falar. Iul-Theer-Hij tinha os
dois projetores, além dos de Tako e Fellmer. Usava-os para conversar com os
prisioneiros, se é que uma declaração de princípios pode ser chamada de conversa. Um
dos projetores fora adaptado para traduzir a língua dos blues para o intercosmo, em vez
de fazer o inverso, como acontecia antes.
Mas o outro projetor devia continuar nas condições em que estivera antes.
Continuava a traduzir o intercosmo para a língua dos blues, pois, se não fosse assim, Iul-
Theer-Hij não saberia sobre o que tinham conversado os prisioneiros.
De repente um véu parecia cair de cima dos olhos de Hauka. O segundo projetor só
podia estar no interior da sala em que se encontravam. Devia estar ao alcance das suas
mãos, junto à entrada do microfone do sistema de comunicação audiovisual. Os
microfones criados pela tecnologia dos blues eram diferentes dos terranos. A fala dos
blues processava-se por outra faixa de freqüência que a do Império Unido. As membranas
reagiam ao ultra-som, mas provavelmente eram maus transmissores para o som normal.
O intercosmo tinha de ser traduzido para a língua dos blues antes que a fala entrasse no
microfone.
Um dos projetores estava bem perto, a cerca de um metro de Hauka. Provavelmente
fora escondido na parede.
Seria realmente um?
O mesmo raciocínio aplicava-se ao processo que se desenvolvia em sentido inverso.
O microfone transmitia as palavras de Iul-Theer-Hij ao transmissor em sua versão
original. A tradução para o intercosmo só era realizada depois da saída do alto-falante. A
mesma coisa acontecia com a transmissão da imagem. Os blues haviam aproveitado as
horas durante as quais os prisioneiros estiveram inconscientes para instalar os dois
projetores na parede. Um deles transformava a língua dos blues em intercosmo e fazia
com que os terranos não vissem um blue, mas um homem do planeta Terra. O outro fazia
exatamente o inverso. Permitia que Iul-Theer-Hij compreendesse as palavras dos
prisioneiros e projetava a imagem de dois blues sobre a tela, sempre que conversava com
os terranos.
Hauka compreendeu imediatamente a importância da descoberta que acabara de
fazer. Se conseguissem apoderar-se dos dois projetores, seriam capazes de transformar-se
novamente em blues. Talvez fosse possível abrir a porta que levava para fora, e nesse
caso teriam alcançado um bom progresso.
Mas antes de mais nada teria que discutir o assunto com Torav. Como fazer isso, se
o inimigo os ouvia constantemente, e não se podia destruir o aparelho de escuta, já que
com isso o mesmo desconfiaria antes da hora?
Hauka lembrou-se da língua que falara em criança. Não sabia se Torav também a
dominava. Nos primeiros anos de vida todo terrano falava uma das línguas primitivas. Só
depois dos dez anos começavam a ensinar-lhe o intercosmo, uma língua que era falada e
compreendida em todo o Império Unido.
Hauka fora criado nas áreas de língua inglesa. Pelo nome de Torav não se podia
saber em que região da Terra o mesmo fora criado e qual era sua língua materna. “De
qualquer maneira vale a pena tentar”, pensou Hauka. Naturalmente Iul-Theer-Hij ficaria
desconfiado se seu receptor de repente transmitisse uma seqüência de sons que não
faziam o menor sentido. Mas sempre haveria tempo para tranqüilizá-lo.
Por enquanto tentaria enganar a técnica sofisticada dos aparelhos mecano-
hipnóticos por meio de um dos truques mais antigos da Humanidade.
Começou a falar em inglês:
— Escute, Torav. Já sei o que você pretendia fazer. Os dois projetores estão
escondidos na parede.
Foi por puro acaso que Erin Loschmidt se encontrava no convés E quando
começaram as pancadas. Erin estava à procura de certas peças sobressalentes para uma
cafeteira automática. Sabia que coisas ridículas como estas só podiam ser encontradas
nos depósitos mais afastados de uma nave — se é que podiam ser encontradas.
Enquanto vasculhava um dos depósitos, viu-se interrompido pelo estranho ruído.
Erin teve de refletir por algum tempo para tentar saber o que poderia ser a causa do
mesmo. Parecia um gongo que estivesse batendo bem ao longe. O ruído era fraco, mas no
silêncio dos conveses superiores tornava-se inconfundível. E vinha de fora. Alguém batia
com um objeto duro no casco da nave.
Erin logo chegou à conclusão de que algo devia estar errado se alguém tamborilava
a parte externa da nave na altura do convés E, ou seja, logo abaixo do zênite da esfera.
Interrompeu suas buscas e foi seguindo o ruído. Ficou escutando por alguns minutos e
descobriu que o mesmo vinha da eclusa de tripulantes do setor três. Abriu-a
cautelosamente, depois de pegar a arma, e esperou pelo que estava para acontecer.
A primeira coisa que viu à luz clara da abertura quadrática da escotilha externa foi a
cabeça em forma de bacia de um blue. Erin levantou a arma e esteve prestes a disparar,
mas logo uma mão de sete dedos passou ao lado da bacia e fez um gesto tranqüilizador.
Erin ao menos teve a impressão de que era e baixou a arma.
O blue desceu para a eclusa, revelando uma habilidade surpreendente. Finalmente
Erin o viu parado à sua frente. Era uma criatura alta, quase quebradiça, cujas pernas
robustas formavam um contraste marcante com o corpo esbelto.
— Está bem. O que é que você quer? — resmungou Erin, que ainda continuava
desconfiado.
O blue começou a chiar e chilrear, mas Erin não compreendeu nada. Além disso fez
gestos com ambas as mãos. Erin teve a impressão de que desejava escrever. Parecia
segurar um utensílio de escrita entre três dedos da mão direita, enquanto a mão esquerda
alisava o material sobre o qual seria escrito o texto. E parecia tão exaltado que Erin
chegou à conclusão de que não havia tempo a perder.
— Perfeitamente. Posso dar-lhe isso — disse e afastou-se, para dar passagem ao
visitante inesperado.
Levou o blue a um dos depósitos em que havia bobinas destinadas aos medidores
automáticos. Pegou uma delas e abriu-a no chão. Depois disso entregou seu estilete ao
blue e ficou curioso para ver o que este faria com o mesmo.
Hurut Iirp fez desenhos. A criatura branca da clareza parecia inspirá-lo, pois soube
pintar com toda nitidez a área ampla do deserto, o buraco em que estava escondida a nave
estranha, a armada de naves que descia sobre Kohnla — e os fulgores das explosões das
bombas que seriam lançadas em breve.
Erin Loschmidt compreendeu. E, como oficial dotado de senso de responsabilidade,
não perdeu tempo em reflexões sobre se o blue talvez o estivesse enganando.
Deu o alarma e mandou que o esconderijo fosse evacuado imediatamente.
Dali a cinco minutos a Kopenhagen estava pronta para entrar em combate e
preparava-se para a decolagem-relâmpago.
***
— Só diga o estritamente necessário — respondeu Torav em inglês, esforçando-se
para dar um tom indiferente à voz. — Precisamos apoderar-nos dos projetores. Quanto a
isso não existe a menor dúvida. E não será difícil. Basta percutir a parede e arrancá-los.
Provavelmente nem precisaremos de ferramentas. Mas no momento em que isso for feito
o estabelecimento entrará em rigoroso alerta. Nossos planos terão de ser elaborados
antecipadamente.
Hauka confirmou com um gesto. As horas que se seguiram foram consumidas em
reflexões. Vez por outra faziam algumas observações indiferentes em intercosmo, para
dar a impressão que dominavam tanto o inglês como a língua universal, e fosse apenas
natural que falassem ora um dos idiomas, ora o outro.
Não sabiam se com isso conseguiriam enganar Iul-Theer-Hij e seus guardas.
O plano foi tomando forma. O fato de terem viajado juntos durante quase quatro
anos na Frota do Império representou uma vantagem considerável. Bastavam ligeiras
insinuações para que se entendessem um ao outro. Provavelmente Iul-Theer-Hij não
conseguiria extrair muita coisa da conversa, mesmo que o projetor também fosse capaz
de traduzir as palavras inglesas.
Finalmente, quando quase três horas se haviam passado desde o discurso
bombástico de Iul-Theer-Hij, o plano estava pronto. Baseava-se na suposição de que o
mestre da décima nona prudência mobilizaria imediatamente uma equipe de manutenção,
quando constatasse que o equipamento de escuta fora inutilizado. Não poderia saber que,
logo após a investida, os prisioneiros se apoderariam dos dois projetores. Torav tinha
quase certeza que a inversão dos pólos de um dos aparelhos não demoraria mais que
alguns segundos. De qualquer maneira a equipe de manutenção não encontraria dois
terranos, mas dois blues, se bem que estes usariam vestes um tanto estranhas. Torav não
acreditava que todos os membros da equipe estivessem armados. Teriam de carregar as
ferramentas. Provavelmente haveria apenas um único vigilante, que ficaria de olho nos
prisioneiros enquanto os homens estivessem trabalhando. Esse vigilante seria dominado
nos primeiros momentos de surpresa.
Torav não se entregava a ilusões. Sabia que os pressupostos de seu plano não
incluíam todas as possibilidades. Talvez Iul-Theer-Hij resolvesse deixar o aparelho de
escuta destruído no estado em que se encontrasse. Nesse caso não apareceria nenhuma
equipe de manutenção, e Hauka teria de esforçar-se para decifrar a complicada fechadura
da porta. Uma infinidade de outras coisas poderiam inutilizar o plano. Mas tanto Torav
como Hauka eram de opinião que seria preferível assumir um risco dos mais perigosos a
ficarem parados, à espera de que a oportunidade favorável surgisse por si.
Para destruir o equipamento de escuta, bastaria despedaçar a tela de imagem
escondida na parede. Torav e Hauka resolveram que este último faria isto durante um
acesso de fúria simulado. Dessa forma talvez conseguissem enganar Iul-Theer-Hij por
mais alguns minutos sobre a verdadeira finalidade da ação.
O momento exato do acesso de fúria foi fixado e os dois homens puseram-se a
conversar, ora em intercosmo, ora em inglês, sobre coisas sem importância, como a fome
e o cansaço. Torav queixou-se de que não estavam recebendo comida, e Hauka achou que
era um absurdo que sua cama ainda não tivesse sido arrumada. Propositadamente usaram
argumentos ridículos, para que Iul-Theer-Hij tivesse algo com que quebrar a cabeça,
quando se informasse sobre a mentalidade terrana.
Ninguém deu atenção às suas queixas. Ninguém arrumou a cama de Hauka, e a
mesa, cuja grossa coluna devia conter um mecanismo de serviço automático, não
forneceu a menor quantidade de alimentos.
Depois de algum tempo Hauka levantou-se e foi à janela. Torav não lhe deu
atenção. Sentado junto à mesa, estava absorto em seus pensamentos.
De repente sobressaltou-se com o grito de Hauka.
— Torav, venha cá!
Hauka falara em intercosmo. Continuava parado junto à janela, de costas para
Torav. Lá fora devia haver alguma coisa que despertara sua atenção. Torav colocou-se a
seu lado e também olhou para fora. Nas últimas horas o sol mudara de posição. A sombra
do edifício no qual se encontravam projetava-se sobre a parte do pátio que viam da
janela.
E que sombra! Torav logo compreendeu por que Hauka ficara tão exaltado.
Considerada a posição do sol, chegava-se à conclusão de que o edifício não podia
ser muito alto. Pelos cálculos de Torav sua altura devia chegar a uns vinte metros. Em
compensação tinha pelo menos setenta metros de diâmetro. Ao contrário dos outros
edifícios de Apas, o telhado era plano. Seu sombreado consistia numa aresta suave.
Por cima dessa aresta via-se uma confusão de barras, círculos e objetos de ângulos
múltiplos. Alguns deles executavam movimentos constantes de rotação, enquanto outros
estavam rigidamente montados sobre os suportes. Uma única barra estreita subia bem
para o alto, fazendo com que sua sombra chegasse ao pé do muro que limitava o pátio.
Era uma antena...!
Mais que isso. As barras, as lâminas refletores de material rígido, que executavam
movimentos contínuos de rotação, certos detalhes, que mal se distinguiam em meio ao
sombreado, tudo isso formava um quadro harmônico do tipo que Torav Drohner e
qualquer outro astronauta já vira centenas de vezes nas proximidades dos portos
espaciais, se bem que com ligeiras variações, determinadas pela diferença de evolução
das diversas tecnologias.
Era uma instalação de telecomando!
A partir dali eram dirigidas as espaçonaves que chegavam e partiam. O campo
preciso e seguro do hiper-rastreamento colocava-os na rota certa, sem que para isso fosse
necessária qualquer interferência do comandante. Os dados relativos às rotas estavam
armazenados nas memórias eletrônicas, e dali podiam ser extraídos a qualquer momento,
a fim de fornecer os necessários vetores ao projetor de hipercampo.
Dados relativos às rotas...!
Torav virou-se lentamente para o lado e fitou Hauka. Ambos acenaram com a
cabeça. Seus olhos brilhavam com o entusiasmo de finalmente terem alcançado seu
objetivo — logo agora, que menos contavam com isso.
9
Então fora por isso que Iul se dispusera a responder tão prontamente a todas as
perguntas que lhe haviam sido formuladas. E também fora por isso que nenhum dos
prisioneiros oferecera a menor resistência. Todos sabiam que estavam para ser salvos.
Afinal, não era apenas a espaçonave que se preparava para pousar. Sem dúvida a mesma
notara a falta da costumeira indicação de rota e alarmara os outros centros de controle de
Apas. A essa hora centenas de agentes da polícia secreta estavam a caminho do centro de
controle situado a sudeste de Puhit. Além disso, havia a tripulação da grande espaçonave,
cujo pouso naturalmente seria retardado pela falta de indicação de rota, mas que nem por
isso deixaria de descer no planeta.
“Quer dizer que se encontravam numa armadilha construída por eles mesmos.”
Torav levou alguns minutos para reprimir o primeiro acesso de raiva cega que, se não se
controlasse, provavelmente teria custado a vida a Iul-Theer-Hij.
Depois disso começou a agir. Chamou Tako. Este já encontrara o barco espacial e o
preparava para a decolagem. O veículo estava intacto. Os blues não haviam descoberto
seu esconderijo. Torav preveniu o mutante do perigo que os ameaçava e lhe pediu que
trouxesse o barco o mais depressa possível. Só havia duas possibilidades: ou abandonar o
centro de controle antes da chegada da grande espaçonave, ou então teriam de lutar para
abrir caminho para fora do centro controle.
Torav não se iludiu quanto às chances que teriam nesta última hipótese: quase
nenhuma. O centro de controle não possuía qualquer tipo de armamento. O barco espacial
dispunha de um canhão térmico e de algumas bombas nucleares com o respectivo de
arremesso, mas diante de uma belo-nave galáctica, revestida com uma camada
impenetrável de molkex, isso representava mais ou menos a mesma coisa que um
canivete diante de um elefante.
Torav dirigiu outra mensagem à Kopenhagen. Ainda desta vez não obteve resposta.
— Talvez pudéssemos demorá-los um pouco — disse Fellmer de repente.
— Ótimo — respondeu Hauka em tom irônico. — Quando a nave pousar, saio e
digo: “Por aqui tudo em ordem. Não sou nenhum terrano, apenas usei um disfarce.
Procurem dar o fora o quanto antes, pois não os queremos por aqui.” Então, que tal?
Fellmer fitou-o com uma expressão pensativa e continuou calmo. Depois de algum
tempo disse:
— Se não tiver uma idéia brilhante é melhor calar a boca. Entendido?
Hauka pretendeu dar uma resposta áspera. Mas houve uma coisa nos olhos de
Fellmer que o convenceu de que mesmo com uma boca ligeira seria difícil enfrentar
quatrocentos anos de experiência acumulada.
— Precisamos tentar, Torav — repetiu o mutante. — Diga a Tako que o barco
deverá pousar junto ao muro, do lado sul do pátio. A tripulação da espaçonave não deve
ver o barco, pois neste caso será o fim.
Hauka caminhou pesadamente em direção aos painéis de controle. Ligou a única
tela grande que mostrava os arredores do centro de controle. O quadro deveria ser
crepuscular, pois o sol já se pusera.
No entanto, a tela iluminou-se com uma enorme torrente de luz despejada pelos
propulsores da espaçonave que estava pousando!...
***
Dentro de dez minutos, ou quinze no máximo, estaria firmemente ancorada sobre as
colunas de apoio e desembarcaria meia dúzia de veículos de esteira cheios de tripulantes.
Então começariam os problemas.
Torav transmitiu suas instruções às pressas. Fellmer e Hauka deveriam conduzir os
prisioneiros o mais depressa possível até a saída sul do edifício. Fellmer ficaria lá para
cuidar deles, até que Tako chegasse com o barco. Enquanto isso Hauka retiraria os fios de
armazenagem de dados dos bancos eletrônicos. Torav permaneceria por enquanto na sala
de comando, e resolveu que um dos prisioneiros ficaria com ele: Jin-Keep-Jin, o agente
da polícia secreta.
Torav fez mais uma tentativa de entrar em contato com a Kopenhagen. Fellmer e
Hauka já haviam levado os prisioneiros. Já não tinha muita esperança. No seu íntimo
tinha certeza de que os gatasenses haviam descoberto e destruído o cruzador.
Mas verificou que o receio fora prematuro. Desta vez a Kopenhagen respondeu
prontamente. O próprio Erin Loschmidt estava no aparelho. Torav relatou a situação, não
formulando qualquer pergunta sobre o que teria acontecido a Erin neste meio tempo.
Limitou-se a indagar se Erin poderia assumir o risco de levar a Kopenhagen de volta na
direção de Apas e manter-se em posição de espera a uma distância não superior a
quinhentos mil quilômetros. A resposta de Erin foi afirmativa. Com isso, para Torav, o
caso por enquanto estava liquidado. Dali em diante só tinha uma preocupação: levar o
barco espacial de sua preciosa carga sãos e salvos ao ponto de encontro.
Já havia colocado novamente o projetor de camuflagem. Jin-Keep-Jin ainda estava
algemado. Mas para aquilo que Torav pretendia fazer com ele o blue precisaria ter os
braços livres.
Torav pegou a arma, girou-a até que ficasse numa posição em que o gatasense
pudesse ver o botão de acionamento e disse:
— Daqui em diante, meu amigo, você fará exatamente o que eu disser. Já conhece
minha situação. Sabe que não titubearei em atirar assim que deixar de cumprir minhas
ordens. Prometo-lhe que em meu mundo terá um tratamento decente como prisioneiro e
que depois de certo tempo poderá voltar para Apas ou Gatas. Quer dizer que pode
escolher entre uma morte inútil e uma vida extremamente útil.
Jin balançou a cabeça, para dar a entender que havia compreendido as palavras de
Torav e que cumpriria suas ordens. Antes disso Torav não tivera tanta certeza. Desde o
início Jin-Keep-Jin dera a impressão de ter caráter mais firme e maior consciência do
dever que Iul-Theer-Hij. Era parecido a um dos funcionários teimosos que guarneciam os
postos avançados do Império Unido, que preferiam deixar que lhes arrancassem a cabeça
a fazer a menor concessão ao inimigo. Preferira ficar com Jin, porque Iul era um
funcionário mais graduado e por isso deveria ser capaz de fornecer mais informações.
Não havia a menor certeza de que a pessoa que ficasse com ele — e naturalmente
também ele mesmo — conseguisse fugir.
— Entre em contato com o comandante da nave — ordenou Torav. — Diga-lhe que
no interior do centro de comando estão alguns estranhos, que capturaram vários reféns.
Diga que a nave deve ficar lá fora e que os tripulantes não devem mexer-se enquanto a
situação no interior do centro de comando não for esclarecida.
Colocou-se ao lado de Jin e encostou a arma à sua têmpora.
O policial começou a manipular os botões e chaves. Uma tela pequena iluminou-se.
Mostrou uma sala que parecia semicircular, e que estava tão recheada de estranhos
aparelhos e peças de mobília que Torav teve dificuldade em imaginar que aquilo pudesse
ser a sala de comando de uma espaçonave. Uma cabeça de bacia apareceu na tela. Jin
começou a falar. O desconhecido interrompeu-o depois das primeiras palavras. Mas Jin
fez com que ele o ouvisse e expôs a história que Torav lhe mandara contar de forma
completa e absolutamente verossímil. O comandante da nave demonstrou compreensão
pela situação do centro de comando e prometeu aguardar. Ofereceu o envio de um barco
espacial com alguns soldados, mas Jin recusou sob a alegação de que os estranhos
poderiam notar a aproximação do barco e usar o fato como pretexto para matar os reféns.
Este argumento também foi aceito sem discussão.
Por alguns minutos reinou um silêncio profundo. Em meio a esse silêncio Tako
Kakuta pousou com o barco espacial. Fellmer Lloyd manteve-o a par sobre os
acontecimentos dos últimos minutos, no que tinha conhecimento dos mesmos. Tako fez a
aproximação pelo lado norte, passou pouco acima do muro e pousou no lado sul.
Provavelmente o nervosismo que reinou nesses momentos a bordo da nave gatasense
ajudou-o a não ser descoberto.
A última fase da fuga teve início. Neste momento, Torav refletiu: “Fellmer e Hauka
estão colocando os prisioneiros e os fios de armazenamento de dados a bordo do barco
espacial. Dali a oito ou dez minutos o mesmo estará pronto para decolar.”
“Oito ou dez minutos”, pensou Torav, bastante preocupado. “Tomara que consiga
agüentá-los até lá.”
Jin fitou-o de lado. Daria os vencimentos de um ano para saber o que se passa no
cérebro desse blue. Será que realmente era o prisioneiro inofensivo e submisso que fingia
ser?
A tela iluminou-se. O comandante da espaçonave estava chamando.
— Acabo de receber notícia — ouviu Torav — de que alguns contingentes de forças
policiais se aproximam, vindos do norte e do oeste. Foram alarmados por mim, quando
verifiquei que minha nave não estava recebendo o raio vetor. Acha que também devem
ser detidas?
Jin respondeu sem consultar Torav:
— Devem. Diga-lhes, senhor, que devem esperar. Daqui a pouco a situação no
centro de comando estará esclarecida.
Torav fitou atentamente a tela, a fim de observar a reação do gatasense. Será que o
mesmo estava disposto a acreditar nas tolices que Jin lhe contava?
A decisão foi tomada bem a seu lado. Por segundos sentira-se seguro demais. Por
um breve instante confiou na sua capacidade de avaliar Jin. Por um lapso muito breve de
toda a operação Torav Drohner concentrou sua atenção na trilha errada.
Uma sombra precipitou-se sobre ele. Uma pancada incrivelmente forte atingiu-o no
peito e deixou-o sem fôlego. Foi o crânio de Jin que o atingiu. Caiu ao chão. Quase no
subconsciente, ouviu o gatasense vociferar na tela, enquanto acompanhava a luta.
Torav sentiu a pressão forte dos dedos de Jin no braço direito. O blue tentava
apoderar-se da arma. Torav lutou contra a falta de ar e os anéis coloridos que executavam
uma dança louca diante de seus olhos. Ouviu Jin gritar:
— É tudo mentira, senhor! Este é um dos estranhos. Prenderam sete dos nossos e
estão prestes a fugir. Ajude-nos, senhor!
Finalmente Torav afastou-o com um empurrão. Conseguiu libertar o braço direito.
Pôs-se de pé, cambaleante. Jin estava de pé ao seu lado, com as pernas muito afastadas e
encostado a um dos painéis. A mão esquerda segurava uma pesada chave.
— É possível que os outros escapem — chiou — mas o senhor não. Cortarei a
corrente que abre as portas.
Torav ergueu o braço como se fosse um relâmpago. Enquanto fazia o movimento, o
projetor, que durante a luta saíra parcialmente do bolso, caiu ao chão. Dali em diante as
palavras de Jin transformaram-se num chilrear rouco.
Jin, porém, enganara-se quanto à capacidade de reação do terrano. Enquanto,
exausto e sem fôlego, procurava mover a chave que cortaria todo o suprimento de
eletricidade, Torav atirou.
***
O barco estava parado lá fora, a uma distância infinitamente grande de duzentos
metros. Não se via o menor sinal de Tako, Hauka e Fellmer. Em compensação Torav via
os gatasenses. Pequenos planadores em forma de bacia passaram por cima do muro. A
advertência de Jin pusera-os em polvorosa. Vinham do sul, e só por milagre ainda não
haviam descoberto o veículo que se mantinha à espera.
Torav saiu correndo. A maior parte do corpo estava protegida pelo revestimento de
molkex que tirara de Iul. Só a cabeça permanecia de fora. Torav sabia que praticamente
não tinha a menor chance. Se os planadores começassem a disparar, seus ocupantes
fariam pontaria sobre o homem que viam à sua frente, e não sobre determinada parte de
seu corpo.
O ar iluminou-se quando uma salva de tiros de radiações atingiu o chão bem à sua
frente e produziu um forte chiado. Uma lufada de ar quente deixou-o sem fôlego e atirou-
o para o lado. Caiu, fez um rolamento e voltou a pôr-se de pé. A mão direita segurava
firmemente a arma, para o caso de que alguém procurasse interpor-se em seu caminho.
Enquanto corria praguejava por estar numa situação tão desesperadora. Os planadores
estavam bem em cima de sua cabeça. Haviam-no descoberto e desciam em círculo.
Começou a correr em ziguezague. Os tiros chiavam à sua frente, atrás dele, em
todas as direções. Foi atingido duas vezes sobre o corpo. Mas o único efeito dos impactos
consistiu em atirá-lo para o lado, fazendo com que perdesse o equilíbrio. A blindagem de
molkex era impenetrável.
Faltavam cem metros para chegar ao barco. Nunca conseguiria. Já estava cercado
pelas salvas. Bastaria estreitar o círculo, e estaria liquidado. E também estaria liquidado
se saísse correndo para a frente. A única coisa que lhe restava era correr em ziguezague
no interior do círculo.
Para quê? Não havia a menor esperança.
A onda de pressão provocada pela explosão de uma salva atirou-o ao chão. Fez um
grande esforço e conseguiu erguer-se de joelhos. Permaneceu nessa posição até que os
pulmões martirizados conseguissem respirar de novo.
“Tako, dê o fora! Fellmer, você me ouve. Diga a Tako que dê o fora. A Kopenhagen
está à sua espera!”
Em toda vida nunca pensara com tamanho fervor. Fellmer, que era telepata, não
poderia deixar de entendê-lo.
E realmente entendeu. Mas o resultado foi bem diferente do que Torav esperava.
De repente o céu iluminou-se num branco ofuscante. O ribombo de uma forte
explosão desceu do alto. Peças de metal incandescente chiavam e resfolegavam ao atingir
o chão perto de Torav, que se levantou de um salto, avançou cambaleante... e viu outra
salva partir do barco que tinha a forma de um torpedo. Mais uma vez ouviu um estrondo
bem acima de sua cabeça. O tiro atingiu o alvo. Porém, uma coisa quente e dolorida
atingiu-o no crânio. Soltou um grito, sacudiu a cabeça e continuou a correr. O barco
espacial desprendeu-se do solo e veio em sua direção. Torav ouviu uma série de uivos e
chiados penetrantes à sua retaguarda. Eram os contingentes policiais que acabavam de
chegar e estavam entrando na luta.
O terceiro planador foi atingido. Torav ouviu um chiado vindo do alto. Eram os
outros veículos que se afastavam. A superioridade do poder de fogo dos terranos deixara-
os abalados. Em compensação os policiais chegavam cada vez mais perto. Torav ouviu-os
logo atrás de suas costas. Os tiros de radiações chiavam em torno dele. Não parou. Seria
inútil responder ao fogo. Os corpos dos perseguidores estavam totalmente cobertos de
molkex.
O barco espacial aproximou-se. Cresceu à frente de Torav sob a forma de uma
sombra compacta e gigantesca. Torav caiu para a frente, apoiou-se no metal frio e
esperou um segundo para aspirar o ar. Uma abertura iluminada surgiu à sua frente.
Segurou a borda inferior da mesma. Procurou puxar o corpo para cima, mas os músculos
amoleceram. Alguns pares de braços robustos estenderam-se, vindos de cima, e
arrastaram-no para o interior da pequena eclusa. A escotilha fechou-se imediatamente.
Torav deixou-se cair e estendeu-se no chão. Não houve nenhum golpe, nenhum
solavanco, mas assim mesmo percebeu que o barco estava sendo acelerado ao máximo.
A sensação de finalmente estar em segurança produziu o efeito de um choque
psicológico. Mais tarde se lembraria de que tentou pôr-se de pé. Mas dali em diante todas
as lembranças se apagaram.
Nas horas que se seguiram só acordou uma vez. Estava deitado numa cama
confortável e ouviu o rugido dos propulsores, vindo de longe. Parecia que o barco
passava por um túnel estreito. Por algum tempo foi incapaz de descobrir a causa do ruído.
Mas logo ouviu o ruído metálico dos suportes do hangar e compreendeu que a K-1 estava
novamente em segurança, a bordo da Kopenhagen.
***
Trecho extraído do boletim diário de 11 de março de 2.321, dirigido pelo
Administrador Geral aos membros do Grupo Administrativo Superior:
“O cruzador Kopenhagen regressou são e salvo de sua última missão. Ver grupo 12,
número 2 do registro STR,
“A missão rendeu seis prisioneiros: um agente da polícia secreta gatasense, dois
pilotos espaciais e três cientistas de Apas, que trabalhavam para o governo central
gatasense. Além disso, a equipe conseguiu apoderar-se de numerosas fitas de
armazenagem com dados astronáuticos. Em virtude de uma série de circunstâncias
infelizes a missão não deixou de ser notada pelo inimigo.
“No momento o grande centro de computação está interpretando os dados
armazenados nas fitas. Temos certeza quase absoluta de que as mesmas nos
proporcionarão dados sobre a posição exata do mundo central denominado Gatas.
“O interrogatório dos prisioneiros também está em andamento. Por enquanto o
resultado mais importante desse interrogatório é a confirmação de nossa suposição de que
oficialmente a extração e o processamento do molkex é um monopólio do mundo central
Gatas. Em todo o império gatasense não existe outro lugar em que essa matéria-prima
possa ser utilizada. Além dos seis blues, que oficialmente são considerados prisioneiros, a
Kopenhagen trouxe um sétimo ser dessa raça que, segundo informa o imediato da nave,
foi espontaneamente para bordo e trouxe informações sobre um perigo iminente, evitando
graves danos para o cruzador e sua tripulação.”
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