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ESPIÕES DA TERRA

Autor
KURT MAHR

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
O primeiro contato, a primeira base...
será o prenuncio de uma aliança?...

Os acontecimentos dos anos 2.326 e 2.327 provam de forma inequívoca que,


apesar das milhares de naves-pesquisa que há anos exploram o espaço, as
amplidões da Galáxia com seus bilhões de sóis e planetas ainda são pouco
conhecidas.
Os terranos, governados por Perry Rhodan, praticam a Astronáutica há
vários séculos, de início em naves de transição e posteriormente nas naves
Kalupianas. Mas foi só em 2.326 que por um infeliz acaso “travaram”
conhecimento com a existência dos gafanhotos córneos e dos vermes do pavor.
Especialmente estes últimos, pois representam uma grande ameaça para a Via
Láctea.
Comandos especiais terranos, formados por cientistas, soldados,
especialistas e mutantes, já tiveram de registrar graves reveses nas tentativas de
desvendar o mistério dos vermes do pavor. Finalmente quatro membros da USO, o
chamado “Corpo de Bombeiros Galáticos”, comandado pelo Lorde-Almirante
Atlan, conseguiram estabelecer contato com um jovem verme do pavor do planeta
Euhja. Esta criatura revela o segredo de sua espécie e celebra com os terranos
uma aliança dirigida contra seus senhores, os benévolos, que, com suas frotas
espaciais invencíveis, formadas por naves revestidas com uma blindagem de
molkex, dominam um grande império estelar situado no setor leste da Galáxia.
Várias lutas no espaço já foram travadas entre os terranos e os estranhos
seres do leste da Galáxia, mas foi só no labirinto de Eysal que os homens e os
blues — nome que se deu aos desconhecidos em virtude de seu aspecto azulado —
se defrontaram frente a frente. Nessa oportunidade os terranos conseguiram
capturar um prisioneiro.
O prisioneiro é interrogado — e os Espiões da Terra partem para uma
aventura...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Major Torav Drohner — Chefe de um comando experimental.
Allan D. Mercant — Chefe da Segurança Galáctica.
Tako Kakuta e Fellmer Lloyd — Dois mutantes que são
iguaiszinhos aos blues — enquanto seus projetores
funcionarem...
Hauka Leroy — Imediato da nave Kopenhagen.
Hurut Iirp — Um blue que obedece ao comando da necessidade, não
às suas próprias tendências.
Ipotheey — Um comissário que se encontra com um espião da Terra.
Iul-Theer-Hij — Mestre da décima nona providência.
Prólogo

— Dentro em breve a Humanidade se verá diante de um


acontecimento decisivo. Talvez seja o acontecimento de conseqüências
mais graves que já se verificou em sua história.
— Refiro-me ao encontro com a raça dos blues. Ao confronto de dois
impérios galácticos: nosso império e o dos blues, situado para o lado leste
da Galáxia.
— De forma alguma pretendo minimizar a importância que deve ser
atribuída ao despertar da Humanidade para a navegação espacial e à sua
defrontação com o Império dos arcônidas. Acontece que esse processo não
acarretou derramamento de sangue, se bem que nem sempre foi pacífico.
No curso dos decênios a Terra foi entrando no grupo dos reinos estelares, e
atualmente a Humanidade terrana desempenha um imenso papel na vida
do Império Unido.
— No confronto que nos espera as coisas serão diferentes. Depois do
que vimos não podemos esperar que os blues sequer considerem a
possibilidade de uma coexistência pacífica. Seu modo de pensar é tão
diferente do nosso que muitas vezes nos vemos desorientados diante dos
seus processos intelectuais, motivo por que a tentativa de compreendê-los
fracassa nas fases iniciais.
— Não poderemos escapar à luta. Seremos atacados e teremos que
defender-nos. O inimigo é poderoso, mas apesar disso encaramos o futuro
com confiança. Há de chegar o dia em que os blues terão de reconhecer
que a tática por eles empregada para com seus planetas coloniais, não
poderá, em nosso caso, ser bem-sucedida. Vai chegar a hora em que
perceberão que devem estar preparados para desaparecer ou entender-se
com os outros. Não podemos prever qual das duas alternativas escolherão.
Mas temos esperança de que seu modo de pensar lhes ofereça uma
possibilidade de em meio a várias alternativas reconhecer a mais razoável.
— Esperamos que chegue o momento em que os dois impérios possam
conviver pacificamente, lado a lado. Mas entre esse momento e o agora,
senhores, ainda deverá haver muito sacrifício e luta.

Trecho do discurso do Administrador Geral, dirigido aos estudantes


da Academia de Astronautas de Alice Springs, Terra, em 1 o de março de
2.327.
1

A sala era clara e muito bem iluminada em todos os cantos. O silêncio, que só era
interrompido vez ou outra por um crepitar, um farfalhar ou uma palavra apressada, dava
uma impressão estranha em meio à luz ofuscante.
— Mais oxigênio!
O homem que disse isso usava jaleco branco e uma máscara que cobria metade de
seu rosto.
— Injeção!
Uma das figuras trajadas de branco que cercavam a mesa entrou em movimento. A
injeção foi aplicada.
— Massagem!
Uma pequena máquina começou a zumbir. Pertencia ao montão de aparelhos que
cobriam quase inteiramente o corpo deitado na mesma.
— Efeito?
O cosmomédico que se encontrava junto à extremidade superior da mesa examinou
um pedaço de papel que deslizava à sua frente, e sobre o qual cinco estiletes móveis
traçavam linhas há bastante tempo.
— Negativo!
Alguém soltou um suspiro.
— Dose máxima de oxigênio.
— Terceira injeção.
— Massagem mais dez traços da escala.
— Efeito?
— Negativo.
Um dos homens arrancou a máscara do rosto. Linhas profundas se haviam formado
em torno da boca.
— Sonda! — ordenou a voz. Desta vez falava mais claro que antes.
Uma chave emitiu um estalido. A atividade do organismo pertencente ao corpo
imóvel foi examinada no próprio local.
— Resultado?
— Negativo, sir.
Todos sabiam o que isso significava. As máscaras caíram. Os homens entreolharam-
se.
— Expirou — disse o homem que dera as ordens.
Baixou a cabeça. Alguém aproximou-se lenta e um pouco desajeitadamente e
pousou a mão em seu ombro.
— Não leve isso tão a sério, Frank. Você fez o que pôde.
Frank estava abatido.
— Isso não altera o fato de que o paciente mais importante que já entrou num
hospital terrano acaba de morrer — disse.
O outro não soube o que responder.
— Tirem os aparelhos — ordenou Frank, sem olhar para ninguém em particular.
Alguns pares de mãos entraram em movimento. Contatos foram retirados, sondas
foram guardadas cuidadosamente e aparelhos afastados sobre os suportes giratórios. A
cabeça do morto apareceu.
Era uma cabeça semelhante a uma bacia, com cinqüenta centímetros de diâmetro e
dez de altura. Nessa cabeça se viam olhos de gato um pouco oblíquos e placas auditivas
branco-acinzentadas nas têmporas. Mais nada.
Não se via que na parte posterior do crânio havia outro par de olhos.
***
Torav Drohner já ouvira muitas histórias sobre o Marechal Solar Mercant. Mas só
agora, que estava à sua frente, viu como esse homem era estranho.
Torav já sabia há bastante tempo que alguma coisa estava sendo preparada, para a
qual se precisaria de sua colaboração. Também tinha uma noção razoável do que se
tratava. Mas a convocação para comparecer à presença de Allan D. Mercant, Chefe da
Segurança Galáctica, deixara-o abalado. Teve a impressão de que subestimara
gravemente a importância da missão que tinha pela frente.
Naturalmente atendeu à convocação o mais depressa que pôde. Allan D. Mercant,
Marechal Solar e um dos “grandes veteranos” do tempo em que a Humanidade deu os
primeiros passos titubeantes em direção às estrelas, não dispunha de um lugar que
correspondesse à sua posição. Seu escritório ficava num edifício em que Torav Drohner
hesitara em entrar, já que acreditara que se tivesse enganado no endereço. O edifício
parecia um depósito de peças de casas pré-fabricadas. Era uma relíquia do tempo em que
a cidade de Terrânia crescera tão depressa que os materiais de construção não podiam ser
trazidos com a necessária rapidez. O galpão consistia numa gigantesca ante-sala,
completamente vazia, e no escritório, que ocupava cerca de trinta e cinco metros
quadrados na extremidade sul. Ninguém perguntou a Torav para onde ia. A porta da ante-
sala não estava trancada. Atravessou a mesma e a porta do escritório abriu-se à sua frente.
Entrou. Com certo espanto examinou as instalações espartanas, as vidraças sujas, a gaiola
com o periquito e o homem sentado atrás da escrivaninha. Mercant era pequeno e de
aspecto humilde. Uma faixa rala de cabelo cor de areia cercava a calva reluzente.
Mercant estava lendo um papel. Nem sequer levantou os olhos à entrada de Torav.
Apontou distraidamente para uma das cadeiras que se viam à frente da escrivaninha.
Torav sentou.
Cinco minutos já se haviam passado. A única coisa que se ouvia era o zumbido do
tráfego urbano e o “clic” produzido pelo periquito, quando o mesmo saltava de um
balanço para outro.
De repente Allan Mercant levantou os olhos. Fitou Torav com uma expressão de
desconfiança e disse com a voz aguda:
— O senhor acha que eu sou um sujeito intratável, caro jovem. Não é verdade.
Torav assustou-se. Realmente pensara coisa parecida. Seu pensamento girara antes
em torno da palavra “excêntrico” de que “intratável”. Mas qual era a diferença? Será que
o chefe de segurança sabia ler pensamentos? A seu respeito corriam as histórias mais
estranhas, e todas as capacidades imagináveis lhe eram atribuídas. Era claro que não se
podia acreditar em boatos desse tipo. Apesar disso, Torav resolveu que no futuro teria
mais cuidado com sua “caixa pensante”.
Ao que parecia Mercant não esperava resposta. Torav teve a impressão de que
estava sendo dissecado músculo por músculo, osso por osso, enfim, o corpo todo. Não
descobriu qual era o resultado da avaliação realizada por Mercant. O Marechal Solar
exibiu um rosto de jogador de pôquer.
— O senhor já foi informado sobre suas funções, jovem — constatou o marechal.
— Sabe que se trata de instalar uma base em solo inimigo. Mas ainda não sabe quem é o
inimigo, mas eu lhe direi: são os blues.
Dizia as coisas mais importantes e decisivas com a voz de quem lê uma previsão
meteorológica. Torav levou dois segundos para compreender o que acabara de lhe ser
explicado.
Uma base na área de influência dos blues! Só mesmo um lunático seria capaz de ter
uma idéia como esta. E só mesmo um suicida estaria disposto a executá-la.
Mercant abanou a cabeça.
— Não. As coisas não são tão ruins assim. Como sabe, os homens que realizaram
uma missão em Eysal trouxeram um blue como prisioneiro. Já sabemos muita coisa sobre
o império dos blues. Conhecemos sua língua, como também conhecemos suas estruturas
sociais. Conseguimos pesquisar, até certo ponto, seu modo de pensar. Sabemos que suas
naves inferiores são inferiores às nossas em todos os pontos, menos no que diz respeito à
blindagem de molkex. Quer dizer que não será uma viagem para o desconhecido. Além
disso, o senhor ainda não se encontra na rampa de decolagem. O prisioneiro continua a
ser interrogado. Neste momento um médico ara está lidando com ele e saberá extrair
dessa criatura as informações que ainda não nos pôde fornecer. Quando estiver partindo,
meu jovem...
Foi interrompido por um zumbido agudo.
— Telefone! — disse o periquito com a voz rouca.
Torav sobressaltou-se. Allan Mercant esticou a mão direita e comprimiu um botão
preso a um quadro de comando inclinado. Torav viu pelo reflexo projetado em seu rosto
que uma pequena tela acabara de iluminar-se. Mas não entendeu uma palavra do que
dizia a pessoa que acabara de ligar.
Mercant não disse uma palavra. Depois de algum tempo desligou o receptor. Ficou
calado por algum tempo e olhava fixamente para a frente. Finalmente levantou a cabeça,
lançou um olhar penetrante para Torav, como se quisesse sufocar-lhe as objeções logo no
início, e disse:
— O senhor está com azar, meu caro jovem. Terá de contentar-se com as
informações que já possuímos. O prisioneiro blue acaba de morrer.
***
Allan D. Mercant explicara a Torav Drohner que não tinha alternativa. Tratava-se de
uma operação militar, e Torav era major da Frota.
Torav Drohner possuía uma qualidade: conformava-se rápida e totalmente com as
coisas que não podia mudar. Não era que lhe faltasse iniciativa. Uma pessoa sem
iniciativa jamais chegaria a major da Frota. Também não era fatalista, se bem que muitas
vezes suas atitudes cínicas podiam dar a entender que era. Apenas possuía senso prático.
Deixava de lado as coisas, as idéias, os empreendimentos que sabia não serem
compensadores. Havia outras coisas que o distinguiam: o dom da crítica e uma
desconfiança instintiva, que muitas vezes o prevenia dos erros e dos perigos. Certas
pessoas costumavam dizer que Torav era um computador humano. Mas essas pessoas
estavam mal-informadas.
Quanto ao mais, Torav tinha um metro e oitenta de altura, ombros razoavelmente
largos, um rosto razoavelmente feio e de resto seu aspecto exterior fazia com que não
chamasse a atenção à primeira vista.
Esse mesmo Torav Drohner foi investido no comando do cruzador Kopenhagen e de
seus cento e cinqüenta e cinco tripulantes. Destes, cento e cinqüenta eram tripulantes
regulares da nave, ou seja, soldados, enquanto os outros cinco eram cientistas. Um grupo
como este costumava ser chamado de “comando especial”, expressão que se condensara
na sigla Coesp. Torav explicara aos homens o que era esperado deles. Não ficou zangado
ao notar que poderiam ter ficado tudo, menos entusiasmados. Depois disso pôs-se a
esperar pelas providências que Allan D. Mercant se dignasse a tomar em relação aos
preparativos que se tornavam necessários.
E as lágrimas brotaram-lhe dos olhos.
Na manhã do dia seguinte tiveram início as aulas hipnóticas. Todos os
conhecimentos obtidos do blue aprisionado foram gravados de forma indelével nos
cérebros dos homens. E parte desses conhecimentos foi transmitida a determinados
tripulantes. Dentro de uma semana estavam em condições de pensar, reagir e decidir da
forma que teria feito o blue, caso se concentrasse em determinada situação. Por estranho
que pudesse parecer, não se deram ao trabalho de ensinar-lhes a língua estranha. Isso se
explicava em parte pelo fato de os órgãos vocais humanos não serem capazes de formar
os sons dessa língua. Mas Torav era de opinião que, para ser bem-sucedido, precisaria ter
pelo menos alguns conhecimentos básicos.
O problema encontrou uma solução surpreendente.
Torav Drohner voltou a ser convocado à presença do Marechal Solar Mercant.
Desta vez, quando Torav entrou no escritório o periquito disse-lhe bom dia, Torav
viu nisso um bom sinal. Distraído como sempre, Mercant apontou-lhe uma cadeira.
Levou vários minutos para concluir a leitura dos papéis cobertos de letras pequenas. Só
depois disso pôde dedicar sua atenção ao major.
Levantou os olhos.
— O senhor partirá amanhã — disse em tom seco. — Às duas e cinqüenta, tempo
local.
Por pouco Torav não dá um salto. Mercant fitou-o com uma expressão de espanto.
— Santo Deus — gemeu. — O senhor está pensando com muita intensidade. Isso
dá dor de cabeça na gente.
Levantou-se.
— Pegue essa caixinha — ordenou, apontando para uma mesinha baixa que ficava
perto da janela.
Na mesinha só havia uma caixinha do tamanho de um maço de cigarros. Torav
pegou-a. Era de metal plastificado muito liso e possuía um botão semi-oculto numa das
faces mais estreitas.
— Aperte o botão e coloque a caixinha junto ao peito.
Torav obedeceu. Ao ser comprimido, o botão emitiu um estalo não muito forte.
Torav enfiou a caixinha no bolso. Virou o rosto e viu que Mercant estava pálido.
— Meu Deus, como isso assusta a gente — disse Mercant.
Uma vez recuperado o autocontrole, prosseguiu:
— Um gravador de fita acaba de ser ligado. Pronuncie a fórmula de cumprimento
dos blues, que costuma ser usada em Apas.
Torav obedeceu:
— Bênçãos do céu vermelho!
— Outra vez — ordenou Mercant.
— Bênçãos do céu vermelho! — repetiu Torav.
Mercant acenou com a cabeça. Parecia satisfeito. Comprimiu um dos botões do
quadro de comando que havia sobre sua mesa.
— Reproduzirei o que o senhor acaba de dizer — disse.
Torav pôs-se a escutar. A fita reproduziu duas seqüências ligeiras de sons
chilreantes. Foi só. Até parecia que Mercant regulara o toca-fitas para uma velocidade
excessiva.
— Ponha a mão no bolso e volte a comprimir o botão — ordenou Mercant. Quando
viu Torav levantar o braço, acrescentou apressadamente: — Um momento! Farei correr
novamente a fita. Observe a diferença. Pronto! Pode apertar o botão.
Torav obedeceu. Estava espantado e desconfiado ao mesmo tempo. Refletiu sobre o
significado daquilo. Uma voz interrompeu seus pensamentos: era sua própria voz!...
— Bênçãos do céu vermelho! — disse a voz duas vezes em seguida.
Torav ficou estupefato. Viu Mercant mover os lábios. Mas a única coisa que ouviu
foi um murmúrio surdo e distante. Não compreendeu uma única palavra. Nem sequer
conseguiu distinguir qualquer som articulado.
Finalmente Mercant chegou perto dele. Pôs a mão em seu bolso e viu-o comprimir o
botão pela terceira vez.
— Não tinha notado — disse com um sorriso embaraçado. — Desse jeito o senhor
não compreende o que eu digo. Bem, se as coisas ficarem sérias, isso de qualquer
maneira não será necessário. Vá para junto do espelho grande, meu filho.
O espelho estava pendurado perto da porta. À sua frente havia uma mesinha
redonda e duas poltronas confortáveis. Para chegar bem perto do espelho Torav teria que
aproximar-se de lado.
Afastou uma poltrona que lhe atrapalhava os passos e ficou de pé bem perto da
superfície de vidro. Achava que a atitude de Mercant era ridícula e que os truques que lhe
estavam sendo apresentados não eram sérios. Pouco lhe importava que Mercant
provavelmente pudesse ler seus pensamentos. Era bom que o marechal soubesse o que
pensava dele.
Olhou para sua imagem refletida no espelho.
Sentiu um calafrio. Por alguns segundos sentiu-se como se tivesse levado um
choque. Não havia dúvida de que aquilo que via no espelho era ele mesmo, pelo menos
dos pés aos ombros.
Torav ficou estupefato, porém, com o que viu acima dos ombros: deles saía um
pescoço muito fino, em forma de mangueira de jardim, e em cima do pescoço estava
presa uma cabeça larga e achatada, que tinha o aspecto de duas bacias encostadas pelas
bordas!
2

A sala de comando era circular e tinha pouco menos de dez metros de diâmetro. Do
lado oposto da escotilha principal via-se a superfície gigantesca de uma tela. A imagem
era tão nítida e livre de distorções que até se tinha a impressão de que alguém havia
aberto um buraco no casco da nave, pelo qual se poderia soltar para o espaço. Bem à
frente da tela, a dois metros de distância, ficavam os painéis de comando do piloto e do
co-piloto. Junto às paredes, de um e de outro lado da tela, viam-se outros painéis: o do
localizador, com uma tela reflexiva verde que tinha quase o tamanho da tela principal, o
do radioperador do qual partiam as ligações dos diversos aparelhos transmissores e
receptores, o do navegador com a mapoteca mecânica, o do imediato no qual se via uma
parede coberta de minúsculas telas, uma para cada compartimento de maiores dimensões
que havia na nave, além de uma série de muitos outros.
Havia permanentemente oito oficiais de serviço nessa sala, que era a mais
importante da nave Kopenhagen, mas a guarnição fora dobrada por ordem de Torav
Drohner. Fazia dez horas que a nave decolara da Terra. Entrara em vôo linear, em direção
ao setor em que, segundo as informações de Zodi, o blue capturado, deveria ficar o
sistema do sol Pahl com o planeta Apas. Nessas dez horas a Kopenhagen havia percorrido
mais de 71.000 anos-luz. O navegador, que ficara muito tempo sem trabalhar porque os
mapas dessa parte do setor leste da Galáxia eram incompletos, pôs-se a comparar a
disposição das constelações com a informação do prisioneiro. Constatou que Zodi
fornecera uma descrição precisa desse setor da Via Láctea, o que deixou Torav bastante
aliviado. O oficial de astronomia fez o que lhe cabia: confeccionou, com base nos
resultados que os instrumentos lhe forneceram durante o vôo linear, um mapa estelar
provisório da área, pelo qual o navegador poderia orientar-se dali em diante.
Finalmente Torav Drohner resolveu reduzir a velocidade da nave para abandonar a
segurança proporcionada pelo espaço linear e regressar ao universo einsteiniano. Devia
contar com a possibilidade de que a área estivesse infestada de naves dos blues. No fundo
não havia nada a recear, pois sabia que a capacidade de aceleração das unidades inimigas
era muito inferior à da Kopenhagen, que dessa forma era capaz de escapar a qualquer
nave dos estranhos seres azulados. Mas não era esta a finalidade da operação; o que se
pretendia era a instalação de uma cabeça-de-ponte no mundo inimigo, sem que seus
habitantes percebessem.
“Essa”, concluiu Torav, preocupado, “é sem dúvida a tarefa mais perigosa que já
me foi confiada.”
Já tinha um conhecimento bastante exato da importância que o Governo do Império
atribuía à investida. Pouco antes da decolagem, mais dois membros haviam sido
acrescentados à tripulação da Kopenhagen. Esses dois homens eram Tako Kakuta e
Fellmer Lloyd, que pertenciam ao Exército de Mutantes, diretamente subordinado ao
Administrador Geral. Como Perry Rhodan resolvera que dois dos elementos mais
valiosos de que dispunha deveriam participar da operação, não havia a menor dúvida de
que tinha o maior empenho em que a mesma fosse bem-sucedida. O aumento inesperado
da tripulação não merecera aplausos irrestritos de Torav Drohner. Era bem verdade que se
sentiu satisfeito com o auxílio inestimável que isso representava e a confiança nele
depositada, já que no curso da operação ficaria investido no poder de comando sobre dois
membros do famoso Exército de Mutantes. De outro lado, porém, sentia-se bastante
constrangido sempre que tinha que dar uma ordem a qualquer dos mutantes. Segundo os
registros, esses homens tinham pouco menos de quatrocentos anos. Carregavam dentro
do corpo minúsculos aparelhos que revigoravam constantemente o organismo e o
mantinham sempre em atividade. Cada um desses homens vivera treze vezes mais que
Torav, a contar pelos anos; na verdade, cada um vivera muito mais, pois não se podia
esquecer que a fase inicial da História do Império fora muito mais turbulenta que os dias
atuais. “Se é que existe uma relação entre a sabedoria e a idade,” conjeturou o major,
“por que diabo fui nomeado comandante desta nave, em vez de Kakuta ou Lloyd?”
Só não pôs o cargo de chefe da operação à disposição de Mercant, no último
instante, por uma questão de desencargo de consciência, porque tinha certeza de que as
decisões do Governo eram ainda mais sábias.
Era bem verdade que no momento não tinha tempo para refletir sobre problemas
psicológicos. Na poltrona que ficava à sua direita estava sentado o homem que o
substituía na pilotagem da nave, o Capitão Erin Loschmidt, enquanto à sua esquerda o co-
piloto fitava a tela, e ao lado do co-piloto também do lado esquerdo, encontrava-se seu
substituto. Todos estavam muito nervosos, à espera de que acontecesse alguma coisa, pois
sabiam que alguma coisa deveria acontecer por aqueles segundos.
Nos últimos instantes um sol salientara-se em meio à profusão de estrelas que, em
sua luminosidade compacta, que não era interceptada por qualquer tipo de atmosfera,
davam a impressão de uma parede sólida feita de luz. Pelos cálculos do astrônomo, a
distância que separava esse sol da nave era de cinqüenta horas-luz. Era um sol vermelho.
Tratava-se de uma estrela pertencente à classe M, e praticamente não havia nenhuma
dúvida de que não era outro senão Pahl, o astro central de Apas, o mundo dos blues. A
Kopenhagen avançava para ele em vôo normal. A velocidade relativa da nave era pouco
inferior a cinqüenta por cento da velocidade da luz. A nave deslocava-se em virtude da
força da inércia. Todos os propulsores estavam parados.
Erin Loschmidt era de estatura elevada e um homem bastante calmo. Examinou a
tela óptica e disse:
— Parece que está tudo em paz, não está mesmo?
Torav fitou-o de lado.
— Se fosse o senhor, não confiaria tanto nisso. Não se esqueça de que esta tela
dificilmente lhe proporcionará qualquer informação a este respeito.
Erin abanou calmamente a cabeça.
— Não foi o que eu quis dizer. Se não fosse assim, as ondas teriam reagido.
Torav girou a poltrona. As luzes estavam parcialmente obscurecidas. Na gigantesca
tela verde do sistema de rastreamento, a posição das minúsculas sondas-reflexo estava
assinalada por meio de pontinhos luminosos. Pai Horvath, o oficial de serviço no setor,
notou o olhar de Torav e abanou a cabeça.
As sondas não passavam de receptores que reagiam às freqüências usuais dos raios
goniométricos hipereletromagnéticos. Eram muito pequenas para, por si só, produzirem
um reflexo perceptível na tela da nave empenhada na localização, mas bastavam para
iluminar todo o setor espacial assim que fossem atingidas por uma das variedades usuais
de raios goniométricos. No linguajar dos técnicos, eram conhecidas como “sondas quatro
pi”, porque funcionavam em todas as direções com igual grau de sensibilidade. A
Kopenhagen espalhara aproximadamente trinta sondas desse tipo em torno da nave, num
raio de dez unidades astronômicas.
Torav voltou a girar a poltrona para a posição primitiva. Erin tinha razão. Não havia
motivo para preocupar-se. O sistema de rastreamento da nave estava desligado, pois era
provável que o inimigo possuísse aparelhos semelhantes que pudessem revelar a presença
de uma operação de rastreamento. Mas seria perfeitamente lógico acreditar que qualquer
espaçonave inimiga que se encontrasse nesse setor expedisse de vez em quando um raio
goniométrico. Portanto, o fato de não ter sido registrada a presença de um raio desse tipo
levava à conclusão de que não havia nenhuma nave inimiga por perto.
Torav travou a poltrona na posição normal, lançou um olhar rápido para os
instrumentos e virou-se para o lado, a fim de dar uma ordem ao co-piloto.
Porém a ordem não chegou a ser dada. O uivo do alarma dado pelo rastreamento
penetrava até a medula dos ossos. Torav deu um pontapé violento na trava da poltrona e
virou-se abruptamente. Um ponto luminoso verde-claro aparecia na tela de rastreamento,
muito além do círculo formado pelas sondas. Deslocava-se rapidamente. Torav teve a
impressão de que estava numa órbita.
De repente, as sereias silenciaram.
— É uma única nave, sir! — informou Pai Horvath, depois de observar o reflexo
por algum tempo. — Encontra-se a trinta e uma unidades astronômicas, em posição de
repouso relativo em relação ao sol. O raio goniométrico tem, na altura da sonda mais
próxima, um diâmetro de duas vezes dez na décima metros. Desloca-se...
Pai Horvath interrompeu-se. Até então só olhara para a tela, mas repentinamente
virou a cabeça e seus grandes olhos negros fitaram Torav.
— Em espiral, sir — disse, completando a frase. — O diâmetro é crescente.
Torav viu com os próprios olhos. O primeiro reflexo surgira na parte esquerda da
tela de rastreamento, mais ou menos a meia distância entre a borda e o centro. A tela
possuía uma ligeira luminescência. Além do reflexo propriamente dito via-se, um pouco
menos nítida, a trajetória percorrida no último minuto. Essa trajetória era abaulada para a
direita, ou seja, em direção ao centro da tela. Era bem verdade que voltava a descer para
descrever outro círculo, bem fora da esfera oca formada pelas sondas. No entanto, o
diâmetro dos círculos aumentava a olhos vistos. Durante a próxima circunvolução a trilha
do reflexo romperia o anel das sondas. E pela velocidade com que funcionava o
transmissor inimigo não poderia demorar mais de quinze minutos até que a espiral
atingisse o centro da tela.
Em outras palavras: até que a Kopenhagen fosse descoberta.
Torav Drohner praguejou baixinho. Precisava fazer isso para descontrair-se um
pouco. Depois mandou que Pai medisse os intervalos das trilhas de rastreamento de duas
circunvoluções consecutivas. Sempre havia um espaço considerável entre duas trilhas, e
esse espaço não era abrangido pelo rastreamento inimigo. Havia uma pequena chance de
que a Kopenhagen pudesse penetrar nesse espaço intermediário sem modificar sua
velocidade crítica, quando chegasse o momento crítico. Mas Pai, que já se recuperara do
susto, logo frustrou essas esperanças.
— Estamos bem no centro, sir — disse tão alto que todos ouviram.
As idéias atropelaram-se na cabeça de Torav. Poderia realizar uma ligeira correção
de curso. Bastaria que os propulsores funcionassem por alguns segundos com um
empuxo reduzido. O inimigo possuía rastreadores energéticos que registrariam
imediatamente qualquer atividade dos propulsores. Mas era possível que o dispêndio de
energia necessário à modificação da rota fosse tão pequeno que...
Torav abandonou a idéia. Muita coisa estava em jogo e por isso não poderia assumir
qualquer risco, por menor que fosse.
Além disso naturalmente não era impossível que o inimigo interrompesse a espiral
de rastreamento antes que a mesma tingisse a Kopenhagen e começasse tudo de novo.
Seria preferível só confiar numa chance como esta se a gente possuísse outra saída. Torav
sentiu os olhares dos outros. Sabia que esperava que lhes desse a solução.
Caramba, como...?
A trilha do reflexo continuou a caminhar pela tela. Pai aumentara a luminescência
da tela, fazendo com que duas voltas da espiral se tornassem visíveis ao mesmo tempo. A
trilha emitiu uma luminosidade ofuscante, no momento em que o raio de rastreamento
atingiu em cheio um dos sóis, mas logo voltou ao nível luminoso anterior, quando a
sonda voltou a captar o mesmo volume energético de antes. Na circunvolução seguinte o
reflexo se aproximou mais três unidades astronômicas da Kopenhagen. À medida que a
nave terrana passava pelo inimigo, a espiral ficava mais estreita, porém conservava o
comprimento primitivo. Por um instante Torav chegou a nutrir a esperança de que a
velocidade da Kopenhagen fosse suficiente para escapar ao perigo. Mas à medida que a
distância entre as duas naves diminuía, o intervalo entre duas espirais consecutivas se
reduzia. E, como o nível de atividade do aparelho inimigo não diminuísse, as chances da
nave terrana tornavam-se cada vez mais reduzidas.
Na sala de comando a tensão crescia cada vez mais. Não se ouvia nenhum ruído,
com exceção do leve zumbido provocado pelo gerador existente nas entranhas da nave,
que fornecia a energia necessária aos aparelhos, e do “clic” ocasional produzido por
algum disjuntor.
Torav sentiu-se desorientado. Fitava intensamente a tela do rastreador, na qual a
hiperonda inimiga traçava círculo após círculo, cada qual mais amplo que o anterior e
mais próximo ao centro.
Outro sol foi atingido em cheio e a trilha do reflexo iluminou-se intensamente por
alguns segundos.
De repente teve-se a impressão de que a inteligência de Torav Drohner apenas
precisava de iluminação óptica. Uma idéia surgiu em sua cabeça.
Não havia tempo a perder. Mais três ou quatro minutos e o feixe de ondas atingiria a
Kopenhagen e trairia sua presença. Torav virou-se repentinamente.
— Centro de comando de tiro! — disse sua voz áspera e penetrante em meio à
penumbra reinante no recinto circular.
— Comando de fogo de prontidão, sir! — respondeu alguém.
— Canhão conversor pronto para disparar?
— Pronto, sir.
— Dispare para o vetor de raio seis vezes dez na décima segunda... Pouco importa
que seja o pi ou o teta, mas é importante que seja bem longe da nave. Aguarde ordem de
abrir fogo. Entendido?
Algumas chaves estalaram numa seqüência rápida.
— Entendido, sir.
Torav observava a trilha do reflexo, que já completara outra circunvolução. Na
próxima atingiria em cheio a Kopenhagen. O círculo primitivo formado pela trilha
deformara-se por completo, transformando-se numa elipse. Mas por enquanto não havia o
menor sinal de que o inimigo tivesse a intenção de suspender a operação de busca.
Torav olhou para o relógio. O raio de rastreamento levava dez segundos para
completar uma circunvolução. Viu em sua imaginação os pescoços-mangueira e as
cabeças-bacia dos oficiais que deviam estar a bordo da nave inimiga, contemplando
atentamente a tela, preparados para registrar qualquer reflexo, por menor que fosse.
Torav sorriu. Teriam um reflexo. E que reflexo!
Recostou-se confortavelmente na poltrona, como se quisesse mostrar que a situação
não o deixava nem um pouco abalado. O oficial de comando de tiro fitou-o por entre a
semi-luz da iluminação de alarma. Deu um ligeiro olhar de esguelha para a tela de
rastreamento e, falando devagar, disse em tom calmo:
— X menos trinta segundos... Iniciar contagem!
Um relógio começou a tiquetaquear. Emitia um estalo forte por segundo. A trilha do
reflexo inimigo circulava na tela verde. Chegava cada vez mais perto... mais perto...
— Vinte — disse o oficial de comando de tiro.
Torav passou a língua pelos lábios. O canhão de conversão levaria ao alvo uma
carga nuclear desmaterializada, usando o hiperespaço como vetor. O alvo ficava em
algum lugar do espaço, a grande distância da Kopenhagen. A bomba materializaria e
explodiria no mesmo instante. Sua finalidade não consistia em destruir ou danificar o que
quer que fosse.
Apenas deveria distrair a atenção do inimigo.
A localização de uma forte descarga energética provavelmente o levaria a crer que
havia algo de interessante num setor diferente daquele que vinha sendo vasculhado.
Suspenderia o rastreamento em espiral e concentraria sua atenção no lugar em que
acabara de explodir a carga nuclear.
Restava ver se o inimigo cairia no truque.
— Dez — disse o oficial de comando de tiro.
Os dedos de Torav contraíram-se convulsivamente no ritmo da contagem.
Faltavam sete, seis, cinco, quatro... caramba!
Numa largura que chegava a ser insolente, a trilha do reflexo descia verticalmente
pela tela verde. Torav observou-a, contrariado. Mais uma circunvolução, e a Kopenhagen
seria irremediavelmente focalizada pelo inimigo.
— Dois... um... Fogo!
Um solavanco pareceu sacudir a nave, mas na verdade era apenas o baque surdo,
semelhante a um som cavo e seco, provocado pelo disparo do canhão conversor. Alguém
soltou um suspiro. Torav não tirava os olhos da tela verde. A trilha do reflexo foi subindo,
e, dentro de alguns segundos, descreveria uma curva, desceria na vertical e atingiria a
Kopenhagen.
Ouviu-se um zumbido grave vindo do painel do oficial de rastreamento.
— Localização energética! — disse Pai Horvath entre dentes. — A bomba explodiu.
Torav não lhe deu atenção. Olhava a trilha do reflexo, que entrou na curva, atingiu o
ponto culminante, voltou a descer e...
...E parou!
Torav atirou as mãos para a frente. Os dedos tocaram as chaves e os botões dos
propulsores lineares. O reflexo projetado na tela de rastreamento permaneceu por um
segundo no mesmo lugar. Depois desviou-se para a esquerda, aumentou rapidamente de
velocidade e só parou junto à borda da superfície luminosa verde.
Era o lugar em que acabara de explodir a carga nuclear.
Só por um segundo Torav entregou-se à alegria indômita provocada pelo êxito de
seu estratagema. Logo lembrou-se de suas obrigações. O hiperpropulsor entrou em
funcionamento. Chiados agudos de alerta encheram a nave. A Kopenhagen acelerou. Os
propulsores consumiram energias tremendas para envolver a nave numa bolha do semi-
espaço kalupiano, dentro do qual prosseguiria numa velocidade incrível e sem ser
detectada em direção ao destino.
Naturalmente o funcionamento dos propulsores produzia fortes campos energéticos.
Também era apenas natural que normalmente a posição da nave de guerra terrana seria
assinalada na tela de rastreamento do inimigo com a força de um holofote aceso numa
noite sem luar.
Acontece que a situação não era normal. A descarga energética resultante da
explosão provocava uma luminosidade milhares de vezes mais forte que a dos
propulsores. O inimigo concentrava suas atenções unicamente na tarefa de descobrir a
causa da súbita explosão.
A Kopenhagen estava em segurança.
3

Hurut Iirp estava andando de trenó.


Parecia aborrecido.
O trenó deslizava uns dez centímetros acima da areia lisa. Dessa forma Hurut não
teria motivo de queixa. Acontece que pouco abaixo da superfície estavam ocultos
pequenos depósitos de minérios pesados altamente concentrados, cujo intercâmbio
térmico com o ar atmosférico era diferente do da areia pura. Isso produziria variações na
densidade do ar, que faziam com que o trenó de Hurut saltitasse que nem um bode kirst
enfurecido. Hurut sentiu-se tonto de tanto estar sendo sacudido.
E não era só: preferiria executar durante três dias uma dose dupla desses exercícios
a balançar pelo deserto durante alguns décimos dias, com os olhos da frente ardendo e os
de trás cansados, tudo isso apenas porque devia procurar um animal de pêlos pretos que
certo cientista afirmava ter visto há pouco tempo.
Hurut tinha certeza de que ele realmente o vira. Pois agora, que fazia dois décimos
de dia que partira de seu posto, acabara de encontrar o rastro na areia. Na verdade, seria
sensacional se em Kohnla fosse descoberta alguma forma de vida animal mais evoluída
que as esponjas do deserto, presas ao local. E a sensação seria ainda maior se o animal
descoberto fosse um mamífero peludo. Dali se concluiria que as pesquisas até então
realizadas em Kohnla, que era o sexto planeta do sol Pahl, haviam deixado de lado fatos
importantes.
Só havia um problema. Naquele momento Hurut Iirp sentia-se dominado por uma
forte indiferença, sentia-se como um empregado subalterno, que só se interessa por um
aspecto de seu trabalho: o dinheiro que o mesmo lhe proporcionará.
Hurut descobriu uma moita cinzenta de rosas da areia, junto à linha do horizonte, e
dirigiu o trenó para a mesma. Parou, colocou o veículo no chão e saltou. As rosas da areia
proporcionavam uma proteção bastante escassa contra os raios dardejantes do sol daquele
sistema desconhecido. Mas era preferível descansar aqui que na areia lisa, pensava ele.
Hurut tirou as provisões, preparou uma bacia de mingau, encheu as mãos com a
massa marrom-acinzentada e começou a enfiá-la na boca. Enquanto isso sua cabeça em
forma de bacia executava movimentos rítmicos.
A atividade despendida em alimentar-se deixou Hurut cansado, fazendo-o recolocar
as provisões no trenó. Depois disso, pelo que recordaria posteriormente, deveria ter caído
para trás na sombra e adormecido.
Seja como for, sua próxima impressão dataria de um movimento em que o sol já ia
bem mais próximo à linha do horizonte do que estava gravado em sua memória. Além
disso um terrível rugir e trovejar desceu pelo violeta límpido da atmosfera. Ainda
sonolento, Hurut compreendeu que algum perigo se aproximava.
Levantou-se de um salto e correu para o trenó. Ainda não estava bem acordado.
Levou mais tempo que de costume para colocar o motor em funcionamento. Tentou
contornar a moita, mas ficou preso nos galhos longos e flexíveis das roseiras da areia.
Teve muito trabalho para libertar-se. Quando finalmente conseguiu, o ruído já se tornara
tão forte que as placas auditivas esvoaçavam junto às suas têmporas. Ergueu as mãos
trêmulas e apertou os lados da cabeça. Sem ninguém para manejá-lo, o trenó saiu em
disparada. A areia subiu atrás de Hurut, assinalando o caminho do veículo descontrolado.
De repente o deserto iluminou-se. Hurut atirou a cabeça para trás e viu uma
gigantesca estrela ofuscante no céu violeta. Fora essa estrela que provocara o ruído tão
medonho. Hurut pensou que talvez fosse uma espaçonave. De tão assustado que estava
nem se lembrou de que seria ridículo pensar que uma nave pudesse errar o caminho a
ponto de pousar no deserto em vez do campo de pouso, que ficava dez lliits ao leste.
Só pensou em escapar à zona de radiações mortíferas que toda nave espalhava ao
pousar. Segurou a direção do trenó, olhou para o alto com uma expressão de pânico e
controlou o curso do veículo de maneira a afastar-se em linha reta do aterrador ponto
brilhante.
O blue estava ofegante. A excitação começava a forçar-lhe os pulmões. O ar de
Kohnla era extremamente rarefeito. Até mesmo uma pessoa indisposta conseguia respirá-
lo sem o auxílio de algum aparelho. Hurut apalpou os arredores, à procura da máscara de
condensação, que devia estar no meio da bagagem. Finalmente a encontrou, mas
enquanto se esforçava para retirá-la, alguns outros objetos caíram do trenó. Hurut fez um
movimento apressado para segurá-los Nessa ocasião soltou a direção. O trenó fez uma
curva repentina para a direita. A mudança foi tão rápida que Hurut foi atirado fora do
veículo, que prosseguiu seu caminho, zumbindo fortemente. Hurut ficou deitado de
costas na areia. A única coisa que conseguira salvar fora a máscara de condensação.
Colocou-a no rosto com mãos trêmulas. Quis levantar-se para ver se por acaso o
trenó desgovernado não vinha novamente em sua direção, só conseguindo, porém, pôr-se
de joelhos. O rugido vindo do objeto brilhante fechou-se em cima dele como se fosse
uma abóbada impenetrável. Hurut fechou os quatro olhos. Uma onda de ar abrasador
abateu-se sobre ele.
Caiu para trás e perdeu os sentidos...
***
Quem sai do vôo linear em alta velocidade para emergir a uns dez milhões de
quilômetros de um sol chamejante nunca mais se esquece da experiência. A Kopenhagen
estaria perdida se não fosse pilotada por um astronauta tão competente como Torav
Drohner.
Sem perturbar-se com a visão terrível projetada nas telas, Torav só levou alguns
segundos para determinar a rota exata da nave. Constatou que a Kopenhagen se
precipitaria quase exatamente no centro do sol, se alguma coisa não acontecesse nos
próximos quinze segundos.
Face a isso arriscou uma manobra perigosa. Efetuou uma mudança de rota de
aproximadamente setenta graus a uma velocidade relativa de quarenta por cento da
velocidade da luz. O neutralizador antigravitacional foi forçado muito além do limite de
tolerância, mas resistiu. A Kopenhagen passou obliquamente ao lado do sol. No momento
de maior aproximação, a distância que a separava das camadas superiores da atmosfera
turbilhonante de gases superaquecidos não era superior a oito e meio milhões de
quilômetros. Depois de alguns segundos angustiantes, durante os quais as máquinas da
nave deram o máximo, a Kopenhagen voltou a penetrar, para além do sol Pahl, no
ambiente frio e tranqüilo do espaço interplanetário. O perigo fora superado.
O oficial de astronomia colhera às pressas alguns dados sobre a posição dos
diversos planetas. Pahl possuía um total de onze. O planeta número quatro era Apas, o
mundo central da raça dos apasenses, à qual pertencera Zodi. Ao passar pelo sol do
estranho mundo, Apasos ficara para trás, num ângulo oblíquo em relação à sua própria
linha de deslocamento, do lado oposto do sol, na posição pi cento e noventa e sete, na
expressão do astrônomo. De qualquer maneira, o pouso direto em Apas não estava nos
planos de Torav. Por isso ficou satisfeito ao constatar que, na direção de vôo da
Kopenhagen, havia cinco outros planetas do sol Pahl, cujos desvios em relação à rota da
nave eram mínimos, não ultrapassando os vinte e cinco graus. Escolheu como objetivo
provisório o planeta de Kohnla, que era o sexto pertencente ao sol vermelho. Segundo o
relato de Zodi, era um mundo desértico semelhante a Marte, no qual havia algumas bases
dos blues bastante afastadas umas das outras.
Dali a pouco o sistema de rastreamento iniciou a observação do planeta-destino. A
uma distância segura foram detectados cinco estabelecimentos dos blues. Segundo
informara Zodi, os mesmos destinavam-se principalmente às pesquisas ambientais
realizadas em Kohnla. Enquanto programava as manobras que se seguiriam, Torav
chegara à conclusão de que essas estações só dispunham dos aparelhos de rastreamento
mais corriqueiros, que, por exemplo, os informariam no devido tempo sobre a chegada
próxima de uma nave de abastecimento. Se a Kopenhagen escolhesse um local de pouso
adequado e durante a frenagem usasse exclusivamente os jatos-propulsores, não haveria
perigo de serem descobertos pelos blues — isso naturalmente se as hipóteses de Torav
fossem corretas.
Torav não teve alternativa. Teria de assumir o risco. A Kopenhagen desceu num
grande deserto, a mais de quinhentos quilômetros da base mais próxima dos blues. O
pouso foi realizado sem incidentes. Depois dele o encarregado do rastreamento levou
uma hora na operação de escuta realizada em torno da nave com uma série de
instrumentos ultra-sensíveis. Não descobriu o menor indício de qualquer atividade
suspeita.
Era praticamente certo que o inimigo não havia notado o pouso da nave terrana.
Torav Drohner soltou um suspiro de alívio, mandando depois que os homens se
pusessem a trabalhar.
***
Nas proximidades do local de pouso, os canhões térmicos da Kopenhagen fizeram
uma escavação em cujo interior seria abrigada a nave e o terminal do transmissor. A
Kopenhagen recolheu-se ao seu esconderijo. Um projetor estacionário instalado no fundo
derretido da escavação criou na altura da superfície desértica uma imagem fictícia, que
faria com que qualquer observador desinformado que olhasse do alto só visse a superfície
infinita de areia. Só haveria perigo se uma pessoa não informada fosse para a superfície
ilusória da abertura da caverna. A ilusão era apenas óptica. A exposição à gravitação de
Kohnla só correspondia a 0,7 vezes a normal, mas apesar disso poderia ser fatal à pessoa
descuidada. A escavação tinha duzentos metros de profundidade, e a menor queda que
uma pessoa nessas condições poderia sofrer seria de cinqüenta metros, pois terminaria na
parte superior do revestimento da nave.
Uma vez que as bases inimigas eram extremamente afastadas umas das outras, a
probabilidade da ocorrência de um acidente dessa espécie era extremamente reduzida.
Torav Drohner estava convencido de que a Kopenhagen se encontrava em absoluta
segurança.
Sentia-se um pouco orgulhoso porque a primeira fase da operação correra tão bem.
Até o momento o Marechal Mercant não tinha motivo de queixa.
No entanto, teria sido preferível que Torav não tivesse acreditado que a
probabilidade de noventa e nove por cento, calculada pelo computador de bordo,
correspondesse a um estado de certeza.
***
4 março 2.327, 08:30 Terrânia — Tempo de bordo.
No fundo da depressão artificial criada em pleno deserto via-se o corpo esguio em
forma de torpedo do barco auxiliar da Kopenhagen. O veículo estava pronto para decolar.
Nas últimas horas o aspecto da depressão se modificara consideravelmente. Uma galeria
foi aberta na face leste. Depois de avançar cem metros para o leste, a mesma foi ampliada
para transformar-se num pavilhão. Nesse pavilhão foi instalado o terminal do transmissor,
constituído por uma série de geradores de fusão e a grade do transmissor, que formava
uma das extremidades de um túnel transportador que atravessava a quinta dimensão. Na
galeria encontravam-se os retransmissores de hiper-rádio, que tornavam possível a
localização goniométrica do transmissor e, se necessário, sua ativação do lado de fora.
No interior da depressão os tripulantes da Kopenhagen, cansados da falta de espaço
na nave, haviam montado uma grande barraca pressurizada. Verificara-se que a atmosfera
de Kohnla era rarefeita demais para ser respirada. A permanência ao ar livre só era
possível com o uso de máscaras compressoras; se houvesse algum esforço físico, se
tornava necessário até um traje espacial completo. A barraca comprida, dotada de duas
eclusas de ar, oferecia muito mais espaço que os camarotes apertados da nave. Alguns
painéis auxiliares montados junto às paredes da barraca garantiam o contato ininterrupto
com os maquinismos principais da Kopenhagen. No centro da barraca havia mesas e
bancos, separados por espaços amplos, nos quais as pessoas podiam passear à vontade.
Por enquanto a maior parte da tripulação ficara livre da impressão de que a missão
realizada pela Kopenhagen fazia jus ao nome com o qual um pessimista a batizara logo
após a decolagem: comando suicida. O encontro com a nave de rastreamento inimiga
representara um momento crítico, mas já fora esquecido, pois o fato poderia ter
acontecido a qualquer momento num dos setores conhecidos da Galáxia. Os homens
sentiam-se confiantes e animados.
Com exceção dos quatro homens que naqueles minutos aguardavam a partida do
barco espacial: Torav Drohner, Tako Kakuta, Fellmer Lloyd e Hauka Leroy, imediato da
Kopenhagen.
Às 08:30, tempo de bordo, Kohnla distava 1,839 unidades astronômicas de Apas. O
barco espacial K-1 seria capaz de percorrer essa distância em setenta e um minutos, sem
que durante esse lapso de tempo houvesse uma modificação sensível na distância entre os
dois planetas.
Torav olhou para o relógio: faltavam três minutos para a partida.
Dali a setenta e quatro minutos estaria em Apas, se tudo corresse segundo os planos.
Erin Loschmidt, oficial da nave, assumira o comando do esconderijo instalado em
Kohnla. Os ocupantes da K-1 manteriam contato ininterrupto com ele. Era perfeitamente
possível que em Apas surgisse uma situação em que as tropas de Torav Drohner
precisassem do auxílio da Kopenhagen.
Torav estava sentado na poltrona do piloto da K-1. Hauka Leroy exercia as funções
de rastreador e navegador. Não havia muita navegação a ser feita. Em compensação a
responsabilidade de Hauka como rastreador era enorme. Dependeria dele que a K-1
conseguisse chegar ao destino sem ser notada.
Os mutantes Fellmer Lloyd e Tako Kakuta acomodaram-se em duas poltronas que
ficavam nos fundos da pequena cabine oval. Torav invejou-os pela calma que
demonstravam.
— Faltam trinta segundos, Torav. Daqui em diante ficarei com a boca calada. Boa
sorte, chefe!
Torav confirmou com um aceno de cabeça, como se Erin pudesse vê-lo. A mão
direita segurava firmemente a alavanca de partida, enquanto o cronômetro de contagem
regressiva caminhava para a marca zero assinalada em vermelho.
Ao empurrar a alavanca para a frente, Torav sentiu medo. O neutralizador
gravitacional mantinha constante o nível de gravidade no interior do pequeno veículo,
mesmo quando a K-1 acelerou ao máximo de sua capacidade.
Dali a alguns segundos Kohnla transformou-se numa bola vermelha destacada
contra o céu estrelado do cosmos, enquanto encolhia a olhos vistos.
A K-1 estava a caminho... e não havia mais nada que pudesse fazê-la voltar para
trás.
O posto insular de Guluup era inteiramente automatizado.
Isso decorria em parte do fato de que a indignação dos homens que tinham de servir
por vários décimos de ano numa ilha desolada andava par a par com o aumento da
segurança no setor de Pahl. Não se via por que obrigar as pessoas a suportarem um tédio
mortal, quando os robôs podiam cumprir, com menos iniciativa mas uma razoável dose
de segurança, o mesmo objetivo, que consistia em fazer a leitura dos rastreadores e tomar
cuidado para que em parte alguma houvesse um vôo de aproximação sem registro.
O argumento prevalecera, e há cinqüenta e oito anos não havia mais um ser
inteligente em Guluup, com exceção da equipe de inspeção, que ali ia uma vez por ano.
Os geradores instalados embaixo da ilha forneciam a energia aos instrumentos. As
indicações dos instrumentos eram transmitidas para o continente por via eletromagnética.
E, vale assinalar, isso era feito sem a menor demora. De qualquer maneira os receptores
instalados no continente estavam sobrecarregados, porém evitavam que fossem
sobrecarregados por informações sem importância. Por isso, havia em Guluup um centro
de processamento que fazia a verificação dos instrumentos e só transmitia informações
quando acontecesse alguma coisa que representasse um perigo real. Em Guluup estavam
instalados cerca de trezentos instrumentos de medição. O centro de processamento levava
dez segundos para realizar a leitura, e mais duzentos segundos para verificar se havia
necessidade de transmitir alguma notícia ao continente.
Desde a instalação do sistema automático, ocorrida há cinqüenta e oito anos, o posto
de Guluup nunca dera um pio. E, além dos duzentos e dez segundos de que precisava o
centro de processamento, haveria necessidade de pelo menos mais sessenta, que a
guarnição orgânica do posto instalado no continente levaria para compreender que
realmente houvera uma ocorrência séria.
E essa ocorrência séria verificou-se no dia 4 de março de 2.327 do calendário de um
planeta que os habitantes de Apas nem sequer conheciam pelo nome.
Os aparelhos automáticos registraram a presença de um objeto voador não
registrado, que corria a uma velocidade ilegal numa altitude de um décimo de lliit. O
objeto não respondeu ao sinal de identificação. Face à altura reduzida, desapareceu dentro
de alguns segundos sob o horizonte de rastreamento ocidental do posto de Guluup.
O sistema automático fez a classificação dos dados registrados pelos instrumentos e
constatou a ocorrência de um caso de emergência. Dispôs-se a elaborar um relatório em
código, que seria transmitido ao posto instalado no continente. Mas antes que tivesse
tempo para isso, uma bomba explodiu violentamente entre os componentes mais
sensíveis do posto. Uma bola incandescente branca derreteu as partes exteriores do posto,
e a onda de pressão que se seguiu varreu a ilha, que ficou vazia como se nunca tivesse
havido nada em sua superfície.
O posto insular deixara de existir, e com ele os conhecimentos relativos a um
misterioso objeto voador que não respondera ao código de identificação.
***
Hauka Leroy não teve maiores dificuldades em, durante o velocíssimo vôo de
aproximação, descobrir várias estações de rastreamento que vasculhavam os céus de
Apas. Face à sua finalidade, os instrumentos da K-1 eram hipersensíveis. Os raios de
rastreamento do inimigo eram captados por Hauka muito antes que o barco K-1
projetasse um reflexo sobre a tela inimiga.
Guiando-se pelas informações fornecidas por Hauka, Torav Drohner voara por um
corredor que não era atingido pelos mecanismos de rastreamento. Esse corredor
terminava sobre um oceano que se estendia de ambos os lados do equador de Apas. Torav
defrontava-se com uma alternativa. Poderia pousar no oceano e procurar um meio de
transporte que pudesse levar seu grupo para terra firme, ou então levaria a K-1
diretamente para lá. Neste último caso não poderia deixar de entrar na área de alcance de
duas estações que Hauka descobrira nesse setor da superfície do planeta.
Torav decidiu-se pela última alternativa. Voando o mais baixo possível, manteve a
K-1 numa rota que passava bem em cima de uma estação de rastreamento. O barco
espacial não possuía nenhum dispositivo de lançamento de bombas, muito embora tivesse
a bordo bombas nucleares para outras finalidades. E Torav não tinha certeza de que com
um único tiro conseguisse causar destruição suficiente nas instalações de rastreamento e
transmissão de mensagens, por mais cuidadosa que fosse a pontaria.
Só mesmo Tako Kakuta poderia salvar a situação. A faculdade da teleportação que o
mesmo possuía baseava-se no mesmo princípio físico do transmissor, com a diferença de
não exigir o lastro mecânico do mesmo. Essa faculdade permitia-lhe transportar-se quase
instantaneamente a qualquer lugar situado num raio de muitos milhares de quilômetros,
desde que tivesse uma concepção bastante clara do lugar ao qual pretendia dirigir-se.
Hauka notou que um dos aparelhos do posto registrou a aproximação da K-1. O
receptor expeliu uma série de zumbidos e chiados apressados. Na opinião de Torav era
uma intimação para que se identificassem. Não lhe deu a menor atenção.
Uma ilha surgiu na vastidão do oceano. A K-1 precipitou-se sobre a mesma. Tako
Kakuta observava a tela, segurando nos braços a bomba pronta para ser detonada. Só
dispunha de alguns segundos para gravar na memória as características do lugar. A K-1
passou por cima da ilha, e as estranhas construções desapareceram atrás da linha do
horizonte.
Tako desapareceu no mesmo instante. Pela primeira vez Torav testemunhou a
atuação de um teleportador. Lançou um olhar pensativo e prolongado para o lugar em que
pouco antes estivera Tako, com a bomba nos braços. Não tirava os olhos do lugar, até que
de repente viu novamente Tako sentado ali — desta vez sem a bomba.
O rosto largo e liso de criança do japonês sorria.
— Tudo bem — disse em voz baixa.
Atrás da K-1 a abóbada de uma nuvem branca de gases incandescentes ergueu-se
sobre a superfície do mar.
***
A K-1 pousou numa ampla estepe, num ponto que ficava longe de qualquer povo-
ação, a cerca de dezoito graus de latitude sul. Torav Drohner manobrou a nave para
abrigá-la atrás de uma enorme cadeia de montanhas. O corpo esguio de torpedo jazia
horizontalmente numa profunda depressão. Os quatro homens trabalharam durante várias
horas para, com os recursos disponíveis, fazerem uma camuflagem mais ou menos
eficiente. A obra por eles realizada faria honra a qualquer guerrilheiro terrano. Apesar
disso Torav Drohner não se entregava a ilusões no que dizia respeito à segurança do
barco. Qualquer veículo aéreo do inimigo, que por acaso dirigisse seus raios de
rastreamento para a superfície, seria capaz de descobrir o esconderijo.
Durante o vôo de aproximação Hauka Leroy estudara cuidadosamente a superfície
do planeta. Conhecia a situação de pelo menos vinte cidades grandes. Uma das maiores,
que possivelmente era a capital planetária, não ficava a mais de quatrocentos quilômetros
do esconderijo da K-1. Tarov escolhera essa cidade como objetivo inicial da operação. O
planador que a K-1 trazia a bordo percorreria o trecho rapidamente e em segurança.
Numa extensão de centenas de quilômetros ao norte do esconderijo a paisagem era vazia
e desolada. Conforme se constatara durante o vôo de aproximação, nessa parte do planeta
o tráfego aéreo era pouco intenso. O risco de o planador ser descoberto era desprezível.
Torav julgou necessário dizer mais algumas palavras aos homens, antes de se porem
a caminho.
— Já sabemos alguma coisa sobre os hábitos dos blues — principiou. —
Conhecemos seu modo de pensar, ao menos nos traços gerais. Possuímos um pequeno
projetor hipnomecânico, que permite a cada um transformar-se num blue. Além disso
possuímos uma porção de endereços que Zodi forneceu a seus médicos pouco antes de
morrer. Esses endereços são de pessoas que participam da revolução secreta contra o
domínio dos gatasenses. De início procuraremos esses endereços. Acho que pelo menos
uma das respectivas pessoas deve residir na cidade à qual nos dirigiremos.
“Manteremos contatos regulares entre nós. O código de pulsação de nossos micro
comunicadores é indecifrável. Por isso não existe motivo para que um de nós se coloque
em situação realmente difícil somente por não querer pedir socorro aos outros antes que
seja tarde. Em comparação, nossa situação é mais favorável que a de todos os comandos
enviados até agora pela Segurança Galáctica. Tako Kakuta e Fellmer Lloyd valem mais
que uma tropa espacial de desembarque.
“Ao que tudo indica, não enfrentaremos maiores problemas. Nossa tarefa consiste
em colher informações sobre a estrutura interna do império dos blues, sobre os
movimentos revolucionários e sobre a tecnologia dessa raça, inclusive no que diz respeito
à produção e ao processamento do molkex. Não podemos esperar que essas informações
estejam ao alcance do cidadão comum do planeta. E no início teremos de fazer-nos passar
por cidadãos comuns. Por mais brilhantes que possam parecer as perspectivas, temos
muito trabalho pela frente. E é um trabalho perigoso. Sabemos perfeitamente que, se nos
pegarem, os blues não perderão tempo. Seremos mortos. E, se não tivermos muito
cuidado, fiquem certos de que nos pegarão.”
Respirou profundamente. Fazia calor, e o suor porejava em sua testa. Por um
instante tinha-se a impressão de que pretendia dizer mais alguma coisa. Mas finalmente
fez um gesto e apontou para o planador.
— Vamos partir! — disse.
4

O Comissário Ipotheey, pertencente ao Comitê das Dezoito Prudências, foi o


primeiro a receber a notícia da destruição do posto insular de Guluup. Ipotheey era o
perito mais graduado de onze dessas dezoito prudências, e uma dessas onze prudências
dizia respeito ao resguardo da propriedade material e espiritual do governo.
Quando recebeu a notícia, Ipotheey estava fazendo um dos exercícios a que estava
acostumado. Seguro a uma barra pendurada abaixo do teto, queixava-se à criatura
marinha vermelha de ser extremamente infeliz.
Não era que Ipotheey — ou quem quer que fosse, com exceção de alguns “matutos”
atrasados — acreditasse na criatura marinha vermelha. Nem formulou a queixa como o
necessário fervor. Se a criatura marinha não existia, não havia por que relatar-lhe as
próprias desgraças a fim de desviar a inveja que a mesma sentia para com os seres felizes.
Não era nada disso. Tal qual todos os apasenses cultos, Ipotheey estava convencido
de que o exercício consistente em pendurar-se de uma barra era muito importante para a
musculatura da nuca. Assim Ipotheey realizava diariamente essa série de exercícios, a fim
de manter a agilidade da nuca e a mobilidade do pescoço.
Antes que a tela 3-D se iluminasse, o videofone emitiu alguns sons chilreantes. Era
o sinal de que a notícia que estava para ser transmitida era urgente e importante. Ipotheey
interrompeu imediatamente os exercícios, deixou-se cair e, passando por uma fresta
estreita, dirigiu-se ao interior de sua escrivaninha circular. A tela mostrava o rosto de um
homem que Ipotheey nunca vira. O comissário sentiu-se aliviado ao notar que o crânio
desse homem não apresentava o brilho fosco do revestimento que formava a máscara
protetora, reservada a uma classe de homens com os quais preferia não manter relações.
— Um funcionário muito baixo dirige-se a um funcionário sublime, senhor —
principiou o desconhecido.
— Está certo, está certo — chiou Ipotheey e fez um gesto de impaciência. — Quero
que o funcionário baixo deixe disso e logo apresente seu relato.
— O posto insular de Guluup explodiu, senhor. O tempo exato é o seguinte: dia de
hoje, quatro décimos de dia, sete centésimos de dia, contagem geral.
Ipotheey virou a cabeça e por um instante contemplou a barra presa ao teto. Agora
realmente havia alguma coisa de que poderia queixar-se à criatura vermelha do mar.
Acontece que isso não adiantaria muito. Face aos colegas da décima nona prudência até
mesmo as criaturas mais eminentes eram impotentes.
— Como aconteceu isso? — gritou para o jovem funcionário.
— Explicarei em palavras rápidas, senhor — respondeu o jovem em tom solícito. —
Nossa estação registrou uma forte luminosidade e uma onda de pressão. Uma e outra
vinham da direção em que fica Guluup. Procuramos entrar em contato com o posto, mas
este não respondeu. Enviamos um barco de reconhecimento. O mesmo constatou que a
ilha está vazia e abandonada. Na superfície reinavam temperaturas bastante superiores ao
ponto de ebulição, em alguns pontos o mar fervia e o solo da ilha estava vitrificado.
Ainda se constatou uma atividade extremamente intensa de partículas nucleares. Se me
permite, ainda lhe transmitirei a conclusão a que chegou meu mestre, senhor... Diz que
um dos reatores da estação explodiu e arrastou tudo na explosão.
Ipotheey meneou a cabeça num gesto de agradecimento. O par de olhos dianteiro
estava semicerrado de tão abatido que ficara.
— Aguardo novas notícias dos funcionários inferiores — disse. — Os mesmos
devem inspecionar o lugar assim que isso seja possível, a fim de verificar se existem
indícios de sabotagem.
O homem cuja imagem estava sendo projetada na tela colocou a mão na borda da
cabeça, a título de cumprimento.
Ipotheey teve a impressão de que teria de subir necessariamente ao teto para contar
suas mágoas à criatura marinha durante cinco décimos de dia. Mas como já afirmara: isso
não lhe adiantaria nada.
Era o membro mais poderoso do comitê. Onde prudências constituíam sua
especialidade, e as sete restantes lhe estavam subordinadas. Mas ainda existia a décima
nona, que era a mais importante de todas, na qual nenhum nativo de Apas ou de qualquer
planeta secundário poderia colaborar.
Era a prudência para a cooperação interestelar e a defesa do Império.
Os especialistas, mestres e colaboradores dessa prudência eram todos nativos do
planeta primário Gatas. Os gatasenses acreditavam que eram os senhores do Império.
Ipotheey não poderia deixar de confessar que por enquanto ainda eram. Seus espiões e
encarregados estavam em todo os planetas secundários, e era tão certo como o fato de que
a barra estava pendurada sob o teto que desde o primeiro momento acreditariam que a
destruição do posto de Guluup resultará de um ato de sabotagem.
Ipotheey chilreava enquanto se deixava cair na cadeira giratória, onde todo o círculo
da escrivaninha estava ao seu alcance. Lançou um olhar triste pela grande janela do sul,
enquanto os olhos traseiros contemplavam o arquivo que ficava junto à parede norte.
Infelizmente Ipotheey não possuía olhos do lado da cabeça, pois se os possuísse
teria visto a porta da parede oeste abrir-se. O homem que acabara de acionar o
mecanismo da porta — evidentemente com um transmissor de impulsos em código, pois
não era qualquer pessoa que podia entrar sem mais nem menos no gabinete de Ipotheey
— trazia sobre as vestes a massa marrom flexível de um forte traje protetor. Parou por
algum tempo na soleira e fitou
Ipotheey com os olhos muito abertos, nos quais se via uma expressão de raiva e
escárnio.
— Está aí uma prova — disse finalmente — de que as dezoito prudências não são
suficientes para o Império. O comissário mais graduado entrega-se aos seus sonhos, em
vez de tomar as providências necessárias diante do último incidente, que é extremamente
inquietante.
Falou tão alto que, ao estremecer de susto, Ipotheey quase quebra o pescoço.
Antes que Ipotheey se recuperasse do susto, o marrom sentou. Acomodou-se numa
cadeira que ficava do outro lado da escrivaninha e fitou o comissário com uma expressão
de desafio.
Ipotheey já o conhecia. Já tivera numerosos contatos com ele, porém nunca tivera
simpatia por ele. O marrom era Iul-Theer-Hij. O nome tríplice constituía uma das
características dos gatasenses. Era mestre da décima nona prudência e não havia ninguém
que o excedesse em ambição e arrogância.
Ipotheey fez um elogio mental às pequenas criaturas violetas do céu, a fim de
acalmar o sistema nervoso que se encontrava numa fase negativa. Só depois disso olhou
para Iul-Theer-Hij.
— Faz-me uma visita... Por quê? Ipotheey usou propositadamente o tratamento que
marcava o marrom como um ser inferior, e esqueceu intencionalmente a forma usual de
cumprimento.
Iul-Theer-Hij mostrou-se senhor da situação. Respondeu como se Ipotheey fosse um
homem que pensava como ele:
— Os comissários ouviram falar na destruição do posto de Guluup, da mesma
forma que eu ouvi. Sabem perfeitamente que só pode ser sabotagem. Acontece — fez
uma ligeira pausa e moveu os sete dedos da mão direita — acontece que esta vez a
sabotagem não pode ter sido praticada por membros dos movimentos subversivos
apasenses.
“Isso é uma novidade”, constatou Ipotheey. “Até então este homem sempre
responsabilizou os revolucionários de Apas por todos os incidentes desagradáveis que se
verificaram.”
— Pergunto ao mestre — respondeu Ipotheey em tom compenetrado — o que o
leva a concluir que se trata de um ato de sabotagem.
O marrom fez um gesto de desdém, estendendo os braços para os lados.
— Tudo que acontece por aqui é sabotagem. Não vim para discutir questões de
princípio com o comissário. Quero explicar-lhe o que está acontecendo. Um posto de
rastreamento foi destruído. Compreendeu? A finalidade desse posto consistia em detectar
qualquer tráfego aéreo não registrado, especialmente o que viesse do espaço. Conclui-se
que a destruição só pode ter por fim possibilitar a realização de vôos não registrados.
Sabemos perfeitamente que o movimento subversivo de Apas está restrito a um espaço
bastante limitado. Não lida com a navegação espacial. — Um dos seus olhos piscou,
numa expressão de escárnio odiento. — Ainda não chegou a um estágio em que possa
conspirar em conjunto com algum grupo de outro planeta. Por isso no presente caso o
ataque só pode ter partido de fora.
Levantou-se. A mão direita fez um movimento lento em direção à cabeça. Iul-Theer-
Hij estava insinuando que a palestra logo chegaria ao fim. Ipotheey sentiu-se
desorientado.
— E o que sugere que seja...?
O marrom interrompeu-o em tom pouco amável.
— Não estou aqui para fazer sugestões aos comissários — chiou. — Vim para
explicar que este caso será submetido à alta comissão da décima nona providência, caso o
senhor não o esclareça dentro de dois dias. Tenho certeza de que o senhor sabe o que
significa isso.
Retirou-se.
Ipotheey lançou um olhar para a barra pendurada ao teto.
Iul-Theer-Hij tinha razão. O comissário sabia o que significava a ameaça de
submeter o caso à alta comissão.
Demissão, confisco de bens, proibição de atividades políticas, exílio.
E não havia a menor perspectiva de esclarecer o caso Guluup dentro de dois dias,
mesmo que estivesse interessado nisso.
Ciciou baixinho para manifestar sua preocupação e refletiu para encontrar um meio
de fazer com que Iul-Theer-Hij esperasse mais algum tempo. Pelo menos até que ele
mesmo soubesse o que tinha acontecido em Guluup. O marrom tinha razão. A revolução
de Apas nada tinha que ver com o incidente. Se tivesse, Ipotheey saberia.
Talvez conseguisse explicar a Iul-Theer-Hij que seria impossível realizar uma
investigação minuciosa antes que o solo da ilha esfriasse. Além disso as radiações
nucleares ativas representavam um perigo que não podia ser desprezado. O mestre não
poderia deixar de compreender isso. Podia ser ambicioso, mas nem por isso deixava de
possuir senso objetivo. Não exigiria o impossível.
Ipotheey afastou os olhos da porta e virou o rosto para a janela. Pôs-se a refletir
sobre se devia ligar logo para Iul-Theer-Hij ou se convinha deixar isso para depois.
Só então viu o homem que estava sentado numa cadeira, perto da janela.
***
Torav Drohner fez o planador pousar fora da cidade. Esconderam o veículo numa
floresta natural e iniciaram o restante do percurso a pé. Por enquanto não possuíam
quaisquer recursos monetários, motivo por que nem sequer poderiam usar os meios de
transporte coletivo. No bolso que ficava na altura do peito traziam os pequenos projetores
hipnomecânicos. Não só os transeuntes, mas também eles mesmos tinham a impressão de
serem verdadeiros blues... e era uma situação à qual teriam de habituar-se.
O relato do prisioneiro Zodi dera-lhes uma primeira impressão sobre o aspecto das
cidades apasenses. Agora tiveram a segunda impressão, e viriam que teriam de corrigir a
imagem que haviam formado. Tinham-se vinculado por um tempo muito longo às trilhas
seguidas pelo pensamento humano.
A arquitetura dos apasenses não conhecia ângulos. Da mesma maneira que os olhos
dos blues eram capazes de abranger todo o círculo visual, seus edifícios também
permitiam a visão simultânea para todos os lados. Em outras palavras, a forma circular
predominava. As residências, os depósitos, os edifícios de escritórios, todos eles se
distinguiam pela área, pela altura, mas não no perfil básico. Vez por outra viam-se torres
estreitas, parecidas com agulhas, que se erguiam a várias centenas de metros e
terminavam numa cobertura abobadada, lembrando os arranha-céus terranos. Mas a
forma mais encontrada era a dos edifícios amplos e relativamente baixos, com amplas
coberturas parabólicas sobrepostas, que quase chegavam a lembrar o Pão de Açúcar
terrano.
As ruas eram de uma amplidão impressionante. Formavam golfos entre as diversas
construções redondas, motivo por que não possuíam propriamente um alinhamento. As
ruas e as praças confundiam-se numa mesma identidade urbanística. Ao olho humano os
cruzamentos eram verdadeiros lagos. O trânsito fluía com uma regularidade que só era
possível a quem possuísse quatro olhos.
O princípio do tráfego ao menos tivera seu ponto de partida nesse fato. Torav não
demorou a descobrir que o tráfego de Apas utilizava as microondas, da mesma forma que
o terrano. Os veículos, que sem exceção eram redondos e abobadados, moviam-se sob a
compulsão de um campo gravitacional artificial e se mantinham cerca de trinta
centímetros acima do solo. No centro da cidade, a velocidade média nas faixas centrais
das ruas era de cerca de duzentos quilômetros por hora. As manobras de desvio eram
realizadas com uma rapidez e segurança que só poderia ser alcançada por um sistema
eletrônico de comando automático.
Pelos letreiros de alguns edifícios Torav concluiu que o nome da cidade era Puhit.
Face às observações feitas por Hauka Leroy durante o vôo de aproximação, não era de
esperar que o nome fosse diferente. Puhit era a maior cidade de Apas e servia de sede ao
governo. Três das cinco pessoas cujo nome fora mencionado por Zodi deviam residir em
Puhit.
Por motivos psicológicos Torav esperou algumas horas, para que ele e seus
companheiros se acostumassem ao estilo de vida da cidade. O tráfego de pedestres era
bastante intenso. Não havia calçadas ou fitas transportadoras, mesmo acima do solo. Os
transeuntes andavam pela beira das ruas. Os quatro olhos conferiam-lhes uma segurança
que o pedestre terrano nunca alcançara na longa história do tráfego urbano do planeta. Os
terranos estavam em situação desvantajosa. O hipno-projetor conferia-lhes o aspecto dos
blues, mas nem por isso lhes proporcionava dois olhos adicionais.
Os problemas com que o pequeno grupo se defrontava eram, no início, de duas
espécies: tinham necessidade de dinheiro, e precisavam estabelecer contato com um dos
revolucionários cujo nome lhes fora indicado por Zodi. A situação tornou-se mais difícil
porque Torav Drohner não sabia qual dos problemas deveria enfrentar em primeiro lugar.
Parecia lógico dirigir-se antes de mais nada a um dos elementos de ligação. Diante do
auxílio externo que a revolução obteria, esse elemento deveria ter o maior prazer de
proporcionar apoio financeiro aos terranos. Mas justamente porque a idéia parecia tão
lógica — segundo as regras da lógica terrana — Torav logo a abandonou. Era possível
que o pensamento dos blues seguisse trilhas diferentes.
Torav não levou muito tempo para descobrir que o melhor meio de obterem
dinheiro era com o furto. A idéia podia ser tudo, menos simpática. Teve de fazer um
grande esforço para convencer-se de que estava travando uma guerrilha contra o império
dos blues, e de que o furto e o assassinato só são atos imorais quando praticados por um
paisano.
Apesar disso sentiu-se um tanto amargurado. Fez questão de que o assunto fosse
liquidado quanto antes. Naturalmente a tarefa seria executada pelos dois mutantes.
Fellmer Lloyd, que possuía o dom parapsíquico da telepatia e da localização dos modelos
intelectuais, escolheria a vítima mais rica. A Tako Kakuta caberia esperar até que a vítima
chegasse a um lugar mais isolado, quando então a golpearia em dois rapidíssimos
hipersaltos.
Fellmer Lloyd não teve a menor dificuldade em descobrir um lugar das
proximidades em que os pensamentos dos blues giravam principalmente em torno de
questões financeiras. Tratava-se de uma instituição bancária situada do outro lado da rua.
Os terranos utilizaram as passarelas para cruzar a rua, encontraram o banco, que estava
instalado num edifício baixo, mas surpreendentemente amplo, e ficaram parados por
algum tempo junto à entrada principal do mesmo, a fim de que Fellmer tivesse
oportunidade de escolher uma vítima.
Fellmer levou apenas alguns minutos para descobrir o homem certo. Transmitiu aos
cochichos a descrição de um blue que acabara de retirar uma grande importância em
dinheiro e se dirigia à cidade. Usava traje marrom de uma só cor, parecido com um
uniforme, e tinha altura superior à média. A descrição de Fellmer permitiu que o homem
fosse reconhecido assim que atravessou uma série de portas de vidro altas e estreitas,
dirigindo-se à rua. Torav assustou-se. Fellmer tinha razão. O traje que o homem usava era
um uniforme. A cor marrom era a de um revestimento escuro de molkex, que o blue trazia
sobre as vestes.
Segundo os relatos de Zodi, em Apas e nos outros planetas secundários os
revestimentos protetores de molkex só eram usados pelos membros da polícia secreta.
Por alguns segundos Torav teve na ponta da língua a palavra que teria feito com que
Tako Kakuta, o teleportador, recusasse diante da tarefa. Um membro da polícia secreta
seria um adversário muito perigoso, o risco seria muito grande.
Mas depois teve uma idéia instantânea, que se afastava das regras da lógica. Pensou
que num caso como este a pessoa atingida pelo roubo seria a pessoa certa — um
representante do Poder Central contra o qual se dirigia a investida. Cedeu ao argumento
emocional infelizmente, conforme verificaria depois. Tako Kakuta observou atentamente
o marrom, enquanto o mesmo entrava num carro abobadado que se aproximou, vindo do
centro da rua. O carro desceu por um instante, para proporcionar ao passageiro a
possibilidade de entrar confortavelmente. O homem uniformizado desapareceu sob a
cobertura abobadada. O veículo entrou em movimento e logo atingiu à faixa central da
rua, onde se afastou em alta velocidade.
Tako seguiu-o com os olhos durante dois ou três segundos. Acenou com a cabeça.
Torav, Hauka e Fellmer fecharam, o melhor que podiam, um círculo em torno dele.
Tako desapareceu depois de ter se certificado de que não estava sendo observado
por qualquer pessoa estranha.
Os segundos foram passando. Quinze... trinta... quarenta e cinco...
Torav começou a suar. Não era possível que Tako levasse tanto tempo. Alguma
coisa devia ter acontecido. Talvez o marrom estivesse alerta e não deixasse que lhe
tirassem tão facilmente a bolsa com o dinheiro.
Um minuto já se havia passado quando Tako voltou.
Havia uma queimadura em suas vestes, na altura do estômago. Segurava, porém,
uma bolsa na mão direita.
— Vamos embora! — disse apressadamente. — É um sujeito esperto e muito ágil.
Tive que brigar com ele antes que me entregasse a bolsa. Atirou em mim. Provavelmente
a esta hora está movendo toda a Galáxia para recuperar seu dinheiro.
Felizmente a bolsa era pequena. Torav conseguiu escondê-la sob as amplas vestes
de blue. Saíram andando depressa, mas não precipitadamente. Afastaram-se do banco.
Precisariam chegar a um lugar em que pudessem examinar calmamente a presa. O
sistema financeiro dos blues era complicado, e por isso convinham verificar que espécie
de dinheiro tinham nas mãos antes de começar a gastá-lo.
Mal haviam andado uns cem metros, ouviu-se meia dezena de sereias que chiavam
e assobiavam. O tráfego de veículos ficou quase paralisado. Só os pedestres continuavam
a caminhar. Torav notou que mais adiante uma fileira de veículos pintados em cores vivas
descrevia ziguezagues entre os carros particulares. A operação de busca destinada a
localizar os ladrões estava em pleno andamento. Torav sentiu-se aliviado ao constatar que
a operação se restringia a um setor da rua que se estendia uns quinhentos metros ao norte.
Por mais ágil e esperto que fosse o membro da polícia secreta, o mesmo não poderia
imaginar que o ladrão tivesse percorrido mais que alguns metros.
Torav e seu grupo não foram molestados. Entraram numa rua lateral que se dirigia
para o leste. Essa rua terminou numa área coberta por uma espécie de parque. Tal qual os
habitantes das cidades terranas, os blues usavam os parques como locais de recreação.
Havia gente que passeava nos caminhos retos e bem tratados.
Finalmente encontraram um lugar em que poderiam examinar o conteúdo da bolsa
marrom sem que ninguém os observasse. Torav era entendido nos sistema financeiro
apasonense. Contou um total de quatorze mil unidades, soma cujo poder de compra
correspondia aproximadamente ao de oito mil solares. Era mais do que um grupo de
quatro pessoas conseguiria gastar nos poucos dias que duraria a operação sem despertar a
atenção. A distribuição entre os diversos tipos de dinheiro correspondia perfeitamente aos
desejos de Torav. A maior parte, mais precisamente, onze mil unidades consistiam em
cédulas de valor médio. Um montão de moedas de pequeno valor, no total de mil solares,
serviria às despesas diárias, enquanto as duas mil unidades restantes, consistentes em
duas peças de mil solares, seriam despendidas a longo prazo.
Torav resolveu ficar com o dinheiro miúdo indispensável. As peças gravadas,
formadas por discos redondos de plásticos com o valor impresso, todos de cor amarelo e
de tamanhos variáveis, eram perigosas. Era possível que alguém as levasse ao banco, e
nesse caso os registros computadorizados constatariam imediatamente que as peças
pertenciam ao produto do roubo. Torav pegou umas cinqüenta unidades em dinheiro
miúdo. O resto foi enterrado por Tako Kakuta num lugar situado fora da cidade, para o
qual se teleportou às pressas. Além do dinheiro enterrou a bolsa cinzenta. Depois do
regresso de Tako foi iniciada a busca do mais importante dos três revolucionários que,
segundo as informações de Zodi, vivia em Puhit. O nome e a profissão da pessoa
procurada eram conhecidos, e não se precisava de mais nada para encontrá-la. Em Apas
existiam os chamados centros de informações, que no fundo eram centros telefônicos,
que ficavam à disposição de quem estivesse à procura de um endereço, mesmo que não
quisesse fazer uma ligação de videofone. Esses centros estavam instalados em edifícios
pequenos, situados na beira das ruas. Em cada um deles havia cinco cabines de videofone
e uma ante-sala na qual eram encontrados os códigos de videofone e os livros de
endereços. Os livros eram enfeixados à maneira típica da civilização dos blues — na
extremidade superior, que nem as folhinhas de parede dos terranos. A folha lida era
levantada e virada para trás. Essa maneira de folhear os livros adaptava-se ao
comprimento e à mobilidade dos braços dos blues e de suas mãos de sete dedos.
Seguindo a maneira de enfeixar os livros, os caracteres silábicos claros e simples estavam
dispostos em colunas, de cima para baixo e da esquerda para a direita.
Não demoraram a descobrir o endereço da pessoa que procuravam. A mesma
ocupava um cargo elevado e tinha como residência oficial o mesmo edifício em que
ficava seu escritório.
Torav arriscou-se a pegar um táxi. O veículo era dirigido automaticamente. A única
coisa que o passageiro precisava fazer era indicar o endereço e, à chegada, pagar a tarifa
indicada por um aparelho no painel oval. Era tudo tão simples e, conforme Torav
constatou com um ligeiro mal-estar, tão semelhante aos táxis automáticos da Terra. O
carro aceitava moedas de prazo médio, ou seja, aquelas que só seriam resgatadas dentro
de dez dias ou mais. Torav soltou um suspiro de alívio ao ver confirmada essa informação
do prisioneiro Zodi. Nunca poderiam atrever-se a pegar um veículo que só aceitasse o
pagamento em dinheiro amarelo, prontamente resgatável.
O carro levou apenas alguns minutos para levá-los ao edifício em que muito
provavelmente devia estar a pessoa que procuravam. Tratava-se de uma das raras torres.
Era um edifício redondo de pouco menos de cinqüenta metros de diâmetro e pelo menos
quatrocentos de altura. O escritório do homem com o qual pretendiam entrar em contato
ficava no septuagésimo quarto pavimento, enquanto seu apartamento ficava no
centésimo. Apenas dois terços do dia de quase vinte e nove horas haviam passado. Era de
supor que o conhecido de Zodi ainda estivesse no escritório.
Na entrada principal do edifício não havia nenhum controle. Qualquer pessoa podia
entrar na torre. Tako despediu-se dos companheiros e saiu andando.
O comissário das dezoito prudências teria uma grande surpresa.
Tako estava curioso para ver a reação de Ipotheey.
5

— Problemas — disse o homem que se encontrava junto à janela sem muita ênfase.
— Os comissários só têm problemas. No fundo são a favor da revolução, mas sempre
chegam situações em que prezam mais a camisa que o paletó. E sempre procuram
encontrar um meio de servir aos dois lados ao mesmo tempo.
Ipotheey levantou-se de um salto.
— Mentira! — chiou. — O visitante de baixa condição não compreende...
Interrompeu-se em meio à frase. Agiu assim em parte por causa do gesto de
desprezo que o desconhecido fez com a cabeça, em parte porque corria perigo de trair-se.
Não conhecia a pessoa com quem estava falando. Como iria responder perante a mesma à
acusação de trair a revolução?
— Não sou nenhum visitante de baixa condição, senhor comissário — disse o
desconhecido. Pela primeira vez Ipotheey viu a queimadura em suas vestes. — À minha
entrada o senhor já deveria ter percebido que disponho de recursos consideráveis.
De repente uma luz nasceu no espírito de Ipotheey. O desconhecido aparecera
subitamente no meio da sala. Ele mesmo ficara durante todo o tempo de olho na porta. E
ninguém passara por ela desde o momento em que Iul-Theer-Hij se retirara da sala. A
janela não podia ser aberta do lado de fora. Como, pelas criaturas verdes das areias, o
desconhecido havia entrado ali?
— Quem... quem é o visitante desconhecido? — gaguejou Ipotheey, apavorado e
decepcionado ao mesmo tempo.
— Heph-Mall-Thou, alto comissário da Resistência Secreta. O comissário nunca
ouviu falar nisso. O tempo ainda não estava maduro para que os verdadeiros combatentes
recorressem à colaboração de seu grupo.
A essa altura o desconhecido falava em tom enérgico, e pelo tratamento que usava
dava a entender que em sua opinião Ipotheey não ocupava posição superior à sua.
Ipotheey preferiu não discutir essa opinião.
— Eu... eu... nós nunca ouvimos falar no seu grupo, senhor.
— É claro que não. O comissário e seus homens fazem o trabalho pequeno. Só vê
Apas; mais nada. Nossas atividades desenvolvem-se numa base interestelar. Nossa hora
está chegando. Todas as providências foram tomadas. Minha viagem tem por fim
prevenir os grupos de resistência locais para o que vai acontecer e exigir seu auxílio.
— Auxílio? Para quê?
— O primeiro estágio do plano que tem por fim livrar os mundos secundários dos
espiões do mundo central está prestes a entrar na fase da execução. Isso só pode ser feito
às escondidas se os organismos secretos que controlam as rotas das naves da décima nona
prudência forem bloqueadas instantaneamente. Nem um único agente deve escapar.
Nosso poder é enorme, mas não basta para que possamos resistir por muito tempo a um
ataque cerrado da frota deste império. O início da revolução deve ser mantido em segredo
enquanto isso for possível.
Ipotheey sentiu-se como nos momentos em que era cantada a canção dirigida à
criatura marrom das matas, quando tinha aqueles sonhos confusos.
— Quais... quais são os recursos de que dispõem, senhor? — perguntou em tom
indeciso.
— A expedição de Alathuy já voltou e foi bem-sucedida — respondeu Heph-Mall-
Thou. — Possuímos quantidades suficientes de massa protetora. E nossos canhões são
mais eficientes que os da frota. Dispomos de duas mil espaçonaves fortemente armadas e,
por enquanto, de cem mil homens. Precisamos de mais gente, para tripular as naves... e
bloquear os centros de controle de rotas. Apas deve destacar quatro mil revolucionários
para a frota da Resistência e manter de prontidão outros dez mil homens, para bloquear os
centros de controle.
Ipotheey chilreou, apavorado. Nunca ouvira falar em Alathuy. E, apesar das
atividades revolucionárias, estava tão condicionado às trilhas de pensamento tradicionais
que, por um instante, teve a impressão de que a aquisição ilegal da massa protetora era
um sacrilégio. Além disso a exigência de fornecer quatro mil homens deixou-o abalado,
pois sabia perfeitamente que em todo o planeta de Apas não havia mais de dezoito mil
revolucionários militantes.
— O último algarismo citado pode ser reduzido — acrescentou Heph-Mall-Thou.
— Mas para que isso possa ser feito torna-se necessário informar nossa gente sobre a
situação dos centros de controle de rota, sobre suas guarnições, em resumo: sobre tudo
aquilo de que precisa um atacante para ocupar esses centros e colocá-los fora de
atividade.
Ipotheey balançou a cabeça, num gesto afirmativo, sem saber com o que estava
concordando.
Heph-Mall-Thou levantou-se.
— Voltarei — disse em tom resoluto. — Digamos, daqui a sete décimos de dia. Até
lá o comissário terá certeza de que o movimento subterrâneo de resistência de Apas
dispõe de quatorze mil homens, ou terá presentes as informações necessárias. Sabe
perfeitamente que se torna necessário agir implacavelmente.
Ipotheey também se levantou. Heph-Mall-Thou estava parado junto à janela. O par
de olhos frontal parecia olhar para a cidade.
— Tenha mais um pouco de paciência — implorou Ipotheey. — Tenho um
problema com o pessoal da décima nona prudência. Querem...
Heph-Mall-Thou fez um gesto totalmente inesperado: virou a cabeça.
Por um momento Ipotheey ficou tão perplexo que se esqueceu do que pretendia
dizer. Teve de refletir apressadamente para lembrar-se.
— Dizem que a destruição do posto insular de Guluup foi um ato de sabotagem. Se
o caso não for esclarecido em dois dias, serei submetido ao Alto Comissariado da décima
nona prudência.
Heph-Mall-Thou interrompeu-o.
— O comissário deve esquecer isso. O cumprimento da exigência da décima nona
prudência pode ser adiado, pelo menos por três dias. Até lá teremos conseguido o que
queríamos.
Balançou a cabeça para Ipotheey e disse:
— Que o céu vermelho o abençoe!
No mesmo instante desapareceu do lugar em que estivera.
Ipotheey deixou-se cair na poltrona e pôs-se a refletir. Os pensamentos
atropelavam-se, e não havia dois que se encadeassem para formar o início de uma
seqüência lógica. Levantou-se, saiu pela fresta da escrivaninha e deitou no chão
acolchoado.
Deitado de bruços, passou as mãos por cima da cabeça e cobriu as placas auditivas.
Depois encolheu as pernas curtas, fazendo com que as solas dos pés tocassem o chão ao
lado do corpo.
Nessa posição iniciou o exercício da angústia, invocando a criatura branca da
clareza. Na Terra esse procedimento seria chamado de Ioga.
A invocação da criatura branca durou quase um décimo de dia.
Depois disso seu cérebro se iluminou. As idéias enfileiraram-se harmoniosamente,
esboçando em traços seguros a imagem dos últimos acontecimentos. De repente Ipotheey
compreendeu o que deveria fazer.
Voltou à escrivaninha e comprimiu o código audiovisual de Iul-Theer-Hij no
videofone.
O mestre da décima nona prudência atendeu imediatamente. Fitou Ipotheey e disse:
— Já esperava o chamado do comissário. O caso de Gullup já foi...
Ipotheey atreveu-se a interromper o marrom.
— Ainda não — respondeu. — Mas sei que há criaturas estranhas em Apas. São
cegas dos olhos traseiros. Se não estão na posição correta, têm de virar a cabeça para ver
a gente.
***
Na parte nordeste da cidade havia um setor destinado a abrigar as pessoas que
moravam sozinhas. O bairro era formado quase exclusivamente por edifícios de
apartamentos de altura média, mas muito compridos na linha lateral. Cada grupo de
edifícios era dirigido por um consórcio dos particulares que eram seus proprietários. Ali
se alugavam apartamentos. O aluguel era de cinqüenta a duas mil unidades por dez dias,
conforme o prazo da locação.
Torav encontrou dois apartamentos apropriados. As negociações realizadas com o
encarregado do proprietário, que residia no pavimento térreo do mesmo edifício,
correram normalmente. Seu nome era Epethultik e, a julgar pela estatura e pelo aspecto
da pele, já estava entrando na fase senil. Atendia aos fregueses atrás de um balcão
semicircular instalado no hall de sua residência, de onde podia ver o hall de entrada do
edifício. Aceitava moeda de prazo médio sem fazer perguntas e por isso não exigia um
ágio superior a cinco por cento. Para não despertar a atenção, e uma vez que dispunha de
dinheiro fácil, Torav alugou os apartamentos por cinco períodos de cinco dias, embora
tivesse certeza de que não iria ocupar os apartamentos por mais que um décimo desse
prazo.
As unidades haviam sido construídas no estilo típico dos blues. Como os edifícios
fossem redondos, as peças dos apartamentos tinham o formato de segmentos de círculo.
Na periferia do círculo as grandes janelas ovais permitiam uma visão ampla para a
cidade. Na parte interna do círculo saíam portas para o poço do elevador principal, que
estabelecia juntamente com alguns poços secundários a ligação vertical de um pavimento
para outro.
As instalações eram estranhas. Apesar da descrição fornecida por Zodi, os terranos
levaram uma hora para descobrir a finalidade dos diversos aparelhos. Tal qual acontecia
nos edifícios terranos, também aqui cada residência era uma máquina automática de
morar, em cujo interior os numerosos aparelhos e instrumentos cumpriam num espaço de
tempo muito breve qualquer desejo do ocupante, quer se tratasse de uma lauta refeição
com especialidades vindas de mundos estranhos ou uma coisa mais simples, como um
banho numa banheira de pedra artificial que tinha o formato de uma esfera cortada no
quarto superior.
Tako Kakuta apareceu no momento em que Torav, Hauka e Fellmer concluíram suas
investigações. Apresentou um breve relato. Não tinha a menor dúvida de que Ipotheey
arranjaria os documentos necessários dentro do prazo que lhe fora indicado. A segurança
terrana sabia de antemão que Ipotheey não seria capaz de mobilizar quatorze mil homens.
— A propósito: ele não sabia da existência de Alathuy — acrescentou Tako. — É
interessante.
Torav confirmou com um gesto.
— Mas era de esperar. Uma pessoa que se envolve num movimento como este deve
ficar na penumbra.
Alathuy era o blue apelidado de Zodi, que falecera em virtude do interrogatório
psíquico que os médicos aras haviam realizado na Terra. O mesmo realizara uma
expedição secreta para Eysal, com algumas dezenas de naves, pois pretendia conseguir
um bom suprimento de molkex para a revolução contra o domínio de Gatas. A Segurança
Galáctica tivera conhecimento da operação, e infelizmente a frota gatasense também.
Uma luta foi travada nos céus de Eysal, e o grupo de cientistas terranos que atuavam
nesse planeta mal conseguiria escapar às conseqüências dessa luta. O resultado da batalha
era completamente desconhecido, mas era de supor que os gatasenses tivessem saído
vitoriosos, pois possuíam superioridade de forças.
O fato de Ipotheey ignorar a existência de Alathuy tornava mais plausível a suspeita
que os especialistas da Segurança Galáctica haviam manifestado logo após o
interrogatório de Zodi. Os nomes citados pelo mesmo não eram os revolucionários
militantes. Tratava-se de gente que simpatizava com o movimento, mas não estava
informada sobre os detalhes do mesmo. Zodi não quis arriscar-se a revelar os nomes dos
seus verdadeiros colaboradores. A revolução de Apas vinha sendo preparada num terreno
muito quente, e qualquer descuido poderia custar a vida de todos, e frustrar para sempre
os anseios de independência de Apas.
Tako ainda informou que antes de sua entrada no gabinete de Ipotheey um homem
de uniforme marrom saíra do mesmo.
Conforme admitira o próprio Ipotheey, a visita fora motivada pela destruição do
posto insular de Guluup.
Torav interrompeu-o com um gesto.
— Não vamos preocupar-nos com isso. Não podemos prestar nenhuma ajuda direta
a Ipotheey, mas daqui a dois dias nossa operação estará em pleno andamento, e a polícia
secreta terá que cuidar de coisas mais importantes. Ipotheey ainda escapará bem.
Hauka Leroy não participou da palestra. Revistara todas as peças, à procura de
aparelhos de escuta e objetivas; era especializado no assunto.
— Nada — disse ao voltar. — Será que já podemos desligar os projetores? Já não
agüento ver essas cabeças de bacia.
Torav deu uma risada. Transmitido pelo projetor, o ruído parecia ser um borbulhar
alegre. Hauka viu Torav erguer a mão direita. Tocou num ponto das vestes em que o
pequeno projetor se encontrava oculto sob o campo hipnomecânico.
No mesmo instante a imagem de blue apagou-se e Hauka viu sentado à sua frente o
Torav Drohner que lhe era conhecido.
6

Devagar, muito devagar, Hurut Iirp foi recuperando os sentidos.


De início não teve a menor idéia do que lhe acontecera. Sentia-se doente e abatido.
Não havia um lugar em que seu corpo não doesse.
As recordações foram voltando aos poucos. O trenó, quebrado em duas partes,
estava oculto sob a areia fresca, perto do lugar em que se encontrava Hurut. Este
lembrou-se do trovão que ouvira e da luz ofuscante que descera das alturas.
Ergueu-se o melhor que pôde e olhou em torno. De todos os lados estendia-se o
areal levemente ondulado do deserto. Não havia nenhuma indicação de que naquelas
horas tivesse acontecido algo de extraordinário. E a hipótese de Hurut, segundo a qual o
fenômeno que observara fora uma espaçonave em manobra de pouso, sofrerá um grande
abalo. Não se via o menor sinal de uma nave. Logo, esta não existia.
Hurut examinou as vestes e o número reduzido de pequenos instrumentos que trazia
nos bolsos. A roupa estava rasgada, mas os aparelhos continuavam a funcionar. Hurut
examinou o cronômetro e viu que ficara inconsciente por quase um décimo de dia. Pegou
o pequeno transmissor, e, quando já tinha comprimido a tecla de chamada, lembrou-se de
uma coisa.
O que diria às pessoas a quem dirigiria seu pedido de socorro? Que vira uma luz
forte descer do céu? E que o trovão o derrubara juntamente com o trenó?
Voltou a guardar o transmissor e levantou-se. Nunca sentira dores tão fortes. Por
algum tempo apoiou-se em uma perna e proferiu a fórmula de maldição dirigida à
criatura negra do espaço. Essa fórmula condensou toda a raiva que sentia pela situação de
desamparo em que se encontrava.
Depois disso sentiu-se bem melhor e logo saiu andando na direção da qual viera.
Um trenó que se desloca pouco acima da areia do deserto deixa uma pista
característica, formada pela areia atingida pela sucção e atirada para ambos os lados. A
trilha se parecia com a esteira de um barco estarrecido em meio ao movimento.
Quer dizer que Hurut seguiu a própria pista. Depois de algumas dezenas de passos
chegou a um lugar em que a mesma estava encoberta. Isso o deixou preocupado e
satisfeito ao mesmo tempo. Deixou-o preocupado porque representava um obstáculo à
ação que pretendia desenvolver, e deixou-o satisfeito porque constituía uma prova de que
há pouco uma coisa extraordinária devia ter acontecido por ali, pois não soprava o menor
vento, e nestas condições a trilha deveria permanecer intacta por vários dias.
O trecho encoberto não se estendia por mais de uma dezena de passos. Atrás dele a
trilha era perfeita e intacta. Até parecia que surgira há poucos segundos. Hurut encontrou
outros trechos encobertos, mas todos eles eram estreitos e não perturbaram sua
caminhada. Marchou pelo deserto mais ou menos durante meio décimo de dia. O sol já ia
baixando, e Hurut perguntou-se se ainda encontraria alguma coisa naquele dia.
De repente viu uma segunda trilha à sua esquerda. A mesma formava um ângulo
agudo com a sua e devia cortá-la umas três ou quatro dezenas de passos ao oeste. Ao
chegar mais perto, Hurut descobriu um trecho encoberto muito extenso, que ocultava o
ponto de interseção.
Parou e pôs-se a refletir. Cantou uma canção dirigida à criatura alva da claridade e
logo soube o que significava isso que tinha pela frente.
A trilha que vinha do oeste também era sua. Fora produzida pelo trenó antes que
surgisse aquela luz, no momento em que seguia em direção à moita. Hurut lembrou-se
que, ao ser acordado pelo trovão, fugira da moita, seguindo quase exatamente para o
leste, ou seja, na direção da estação.
Tudo ficou bem claro. Só havia uma coisa que não compreendia.
A moita em cuja sombra descansara havia desaparecido.
Muito desconfiado, Hurut começou a caminhar ao longo do trecho encoberto, onde
estava oculta a interseção das duas trilhas e, ao que parecia, a moita. Não havia o menor
sinal de que por ali tivesse soprado uma tempestade forte ou que tivesse acontecido
alguma coisa capaz de produzir uma modificação tão pronunciada no terreno.
Hurut dirigiu outra canção à criatura alva. Desta vez a canção foi mais comprida.
Mas ao que parecia sua capacidade de concentração estava esgotada, pois quando chegou
ao fim da canção sabia tanto quanto soubera antes.
Dirigiu-se ao lugar em que a trilha estava encoberta.
Teve a sensação de quem se encontra na beira de uma rocha íngreme e dá um passo
no ar. O chão não o sustentou. Era como se não existisse.
Hurut caiu num buraco escuro. Chilreou e chiou de medo. Depois de alguns
segundos de queda bateu em alguma coisa. O corpo esguio levou uma terrível pancada.
Mais uma vez Hurut Iirp perdeu os sentidos.
***
Uma noite já se passara. Torav só dormira umas poucas horas, mas assim mesmo o
descanso o revigorara. Tomou banho na banheira esférica e deixou que a idéia
tranqüilizadora de que por enquanto ninguém havia dado com sua pista agisse por
bastante tempo sobre seu espírito.
“Na verdade isso é de admirar”, pensou. Quatro homens equipados somente com
máscaras hipnomecânicas descem num planeta totalmente estranho. Roubam o dinheiro
de um membro da polícia secreta, martirizam a consciência de um alto funcionário, e, no
dia seguinte, ainda não estão presos. E não era só. Nem sequer desconfiavam deles.
Torav estava muito bem-disposto quando voltou à sala em que Hauka Leroy, um
homem baixo, de cabelos negros, estava preparando uma espécie de lanche com
alimentos concentrados e água de Apas. Dali a alguns minutos os dois mutantes vieram
de seu apartamento. O mingau feito por Hauka foi muito elogiado. Mas Hauka
interrompeu os elogios com um gesto de desprezo e disse:
— Vocês podem gostar disso, mas o fato é que eu mal consigo tragar esse tipo de
comida. Seria capaz de pagar dez solares por um ovo mexido com bacon e uma xícara de
café.
— Sem pão? — perguntou Tako em tom de escárnio.
— Sem pão! — confirmou Hauka.
— Está bem — disse Torav. — Apenas quisemos ser gentis. Por mim esse mingau
pode ir para o inferno.
— Está vendo? — disse Hauka com um sorriso, apontando para o rosto de Torav. —
Isso já soa melhor.
Depois do lanche voltaram a discutir os planos para aquele dia. Tako Kakuta, o
teleportador, tinha um encontro marcado com Ipotheey. Uma vez de posse das
informações que lhe seriam fornecidas pelo comissário, voltaria ao ponto de onde havia
saído, para que pudessem resolver qual seria o projeto que oferecia maiores chances. A
finalidade da operação consistia em obter, se possível e da forma mais rápida e fácil,
todos os dados relativos à posição do mundo central dos gatasenses. Tornava-se
necessário verificar cuidadosamente qual dos centros de controle de rota era o mais
acessível.
A tarefa de Fellmer Lloyd consistiria em andar por perto do edifício de
apartamentos durante a ausência de Tako e estudar os pensamentos dos blues que se
encontrassem pelos arredores. Na opinião de Torav, era o meio mais simples de descobrir
se havia algum perigo.
Para Hauka Leroy não havia nenhum plano específico. Hauka impôs a si mesmo
uma tarefa, por sua própria conta. Resolveu estudar os mecanismos das portas de alguns
edifícios isolados e desocupados, que sem dúvida também deveriam existir em Puhit.
Torav sorriu e admitiu que em certas circunstâncias o conhecimento das travas eletrônicas
poderia representar uma vantagem. Torav ficou em casa. Não gostava disso. Ficar
escondido e inativo enquanto os outros faziam o trabalho era um procedimento que não
correspondia ao seu gênio. Mas alguém teria de cuidar da casa, e no fundo era bem mais
desagradável ficar esperando na incerteza do que permanecer em atividade, mesmo que
essa atividade envolvesse um perigo considerável.
Os homens puseram-se a caminho.
Tako Kakuta ficou com Torav, até que chegasse a hora. Depois disso desapareceu da
maneira que lhe era peculiar, e que nunca deixava de provocar uma sensação
desagradável em Torav.
Este puxou para junto da janela uma das cadeiras estreitas de encosto alto e ficou
observando a rua. A janela possuía uma espécie de cornija do lado de dentro. Torav
colocou o mini comunicador e o projetor hipnomecânico sobre a mesma, a fim de poder
alcançar esses aparelhos sem perda de tempo. Esperava que só precisasse do mini
comunicador, mas não tinha muita certeza.
Procurou imaginar o que estava acontecendo com Tako. A essa hora devia estar
sentado à frente do comissário e provavelmente fazia um gesto arrogante ao tomar
conhecimento de que Ipotheey não tinha condições de arranjar os quatorze mil homens,
motivo por que pretendia fornecer as informações necessárias sobre os centros de
controle de rota. Torav não se preocupava com Tako. Era o homem indicado para a tarefa
que lhe fora confiada. Mesmo que houvesse um imprevisto, ainda poderia sair do aperto
por meio da paracapacidade da teleportação.
Torav estava tranqüilo.
***
O que realmente aconteceu com Tako diferia bastante daquilo que Torav imaginava.
Tako materializou-se perto da janela do gabinete de Ipotheey. Percebeu à primeira
vista que o comissário estava sentado atrás da escrivaninha. Não havia mais ninguém.
Tako ficou satisfeito ao constatar que Ipotheey se assustou quando o viu aparecer de
repente.
— Sete décimos de dia passaram — disse Tako. — Os comissários ouviram a
mensagem do movimento secreto de resistência e lhe deram a necessária atenção.
Isso devia soar como uma afirmação, não como uma pergunta. Ipotheey fez um
gesto distraído de assentimento. Tako sentou sem ser convidado.
— Quero que você compreenda — disse Ipotheey, dando a entender, pela forma de
tratamento, que achava que o visitante era uma pessoa de posição mais elevada — que
em Apas a revolução não está tão bem organizada como seu movimento secreto de
resistência parece estar, senhor. Não consegui reunir quatorze mil homens. Dessa forma
tenho em mãos, conforme suas instruções, os dados relativos aos quatorze centros de
controle de rotas existentes em nosso planeta.
Tako fez como se isso o deixasse contrariado.
— Vejo que o comissário não quer dar uma grande contribuição para a causa
comum — queixou-se. — Parece que os homens de Apas não estão imbuídos do
verdadeiro espírito revolucionário.
Ipotheey defendeu-se da acusação.
— Você não pode deixar de considerar, senhor, que me deu pouco tempo para
resolver o problema. Somos vigiados constantemente pelos homens da décima nona
prudência. Precisaria pelo menos de um período de dez dias para reunir o número de
homens que você exige.
O comissário implorava às criaturas do sonho para que o desconhecido não notasse
que estava exagerando. Era possível que já tivesse descoberto que em Apas não havia
mais de mil e oitocentos revolucionários.
Tako resolveu contemporizar.
— Está bem. Já contávamos com esse tipo de problema. O conhecimento dos
centros de controle de rota permite ao movimento secreto de resistência dar o golpe
independentemente da cooperação dos grupos locais. O comissário pode entregar os
dados.
Ipotheey inclinou-se para a frente. Tako viu-o acionar um contato embutido num
pequeno quadro de comando que se via sobre a escrivaninha redonda. Ouviu-se um
estalido. O comissário acabara de abrir uma gaveta. Virou-se com a cadeira e começou a
revirar uma pequena gaveta.
Sem que soubesse por que e de onde, Tako de repente teve a impressão de algum
perigo que se aproximava. À sua frente Ipotheey folheava pacificamente as pilhas de
papéis que acabara de retirar da gaveta.
Tako olhou para o lado. Viu que a porta de um dos armários embutidos, que à sua
entrada estivera fechada, agora estava aberta. Quis levantar-se de um salto, mas foi
impedido.
Um martelo elétrico imaginário atingiu-o no crânio. O cérebro irradiou uma dor
lancinante, que se espalhou por todo o corpo. Foi a última impressão que Tako sentiu por
algum tempo.
***
Hauka Leroy pegou um táxi para ir aos bairros periféricos. Face à velocidade
tremenda que o veículo desenvolvia, a viagem não demorou mais de trinta minutos.
Hauka mandou que o veículo parasse numa rua na qual apenas havia alguns edifícios
velhos e baixos que, segundo parecia, estavam vazios.
Pagou a tarifa e ficou satisfeito em receber de troco algumas moedas de curto prazo.
Mal desceu, o carro voltou a movimentar-se tão apressadamente que Hauka sentiu
perfeitamente o deslocamento do ar.
Descreveu uma curva fechada e voltou à cidade. Perplexo, Hauka seguiu-o com os
olhos por algum tempo. Geralmente os táxis apasenses costumavam ser mais amáveis
com os clientes. “Quem sabe se alguém fez um chamado urgente nas proximidades?”,
pensou Hauka.
Notou que estava enfiando automaticamente o troco no mesmo bolso em que
guardava o outro dinheiro. Retirou apressadamente a mão e depositou as moedas
amarelas em outro lugar. Tanto em Apas como nos outros mundos, o sistema financeiro
dos blues era bastante estranho. Evidentemente se formara numa base totalmente diversa
do sistema terrano. Seguia o princípio de “dê-me aquilo de que preciso, que eu pagarei
assim que tiver os recursos necessários”. Segundo informara Zodi, houvera períodos
prolongados na história do mundo originário Gatas em que por motivos ainda
desconhecidos o sistema do “compre agora e pague depois” era a mola propulsora de
toda a economia. Esse princípio explicava a situação atual do sistema da moeda
disponível e semi-disponível dos blues.
A rigor só as peças gravadas amarelas eram dinheiro. Uma vez recebidas por
alguém, podiam ser encaminhadas ao banco, que fornecia a quitação através de um
crédito na conta corrente do depositante. Naturalmente as moedas de plástico também
podiam permanecer no bolso do dono pelo tempo desejado, ou utilizados em pagamentos.
Os espécimes azuis, de prazo médio, tinham certa semelhança com as letras de
câmbio de prazo médio usadas no sistema monetário terrano. Eram numeradas ê a própria
numeração fixava, mediante um sistema simples e bem estudado, a data em que podiam
ser despendidas. Não era que uma peça azul só pudesse ser usada em determinado dia.
Evidentemente havia muitos dias em que isso era possível, mas em relação a cada peça
esses dias ficavam tão distantes uns dos outros que o banco podia verificar imediatamente
se o termo de pagamento já havia chegado. O prazo a ser observado entre o recebimento
de uma peça azul e sua apresentação ao banco era de pelo menos dez dias. Dessa forma a
pessoa obrigada ao pagamento tinha a possibilidade de fazer uma compra e reunir o
respectivo numerário nos dez dias seguintes, para depositá-lo em sua conta.
Os espécimes vermelhos, de longo prazo, representavam mais um passo no
intercâmbio creditício para pagamento em data remota. Essas peças só podiam ser
resgatadas depois de dez períodos de dez dias. Geralmente as peças gravadas vermelhas
eram de elevado valor, de quinhentas unidades para cima.
Hauka, que durante seu treinamento estudara dois semestres de economia galáctica,
tinha certeza de que, se surgisse uma emergência, o sistema financeiro dos blues lhes
traria dificuldades. Bastava dizer que era totalmente inapropriado para o intercâmbio
comercial com os mundos não pertencentes aos blues. Era bem verdade que os cabeças
de bacia nunca se haviam defrontado com esse problema. Durante suas investidas contra
o Império Unido os mesmos deviam estar convencidos de que sairiam vitoriosos da
guerra, e por isso mesmo imporiam seu sistema financeiro aos povos subjugados.
Hauka caminhou lentamente pela rua vazia. Já era quase meio-dia, e o calor
aumentava a cada minuto. A temperatura média de Apas era muito mais elevada que a da
Terra. Hauka começou a transpirar.
Logo se certificou que as casas que ladeavam a rua estavam vazias. A falta completa
de ornamento e a concepção puramente finalista das construções levava à conclusão de
que se tratava de velhos armazéns. Para Hauka isso era indiferente. Não estava
Interessado no que havia dentro da casa, mas somente no mecanismo que trancava as
portas.
Passou por umas dez construções velhas e feias antes de dobrar para a direita e
forçar caminho entre uma faixa larga de vegetação de quase dois metros de altura,
dirigindo-se à entrada de uma das casas circulares. A confusão do capim e dos arbustos
protegia-o perfeitamente para o lado da rua. Era praticamente impossível que alguém o
observasse enquanto lidava com o mecanismo da porta.
Não se sentiu muito decepcionado ao ver que a porta estava aberta. Olhou para o
recinto que ficava atrás da mesma e viu a poeira que cobria o soalho dividido em
segmentos numa altura de vários centímetros. Mais nos fundos havia outras portas, mas
estas não lhe interessavam. Fez a porta engatar na fechadura, abriu o pequeno estojo de
ferramentas que trazia no bolso e pôs-se a refletir sobre qual seria o instrumento que
melhor entraria na fresta estreita e alta pela qual, segundo parecia, deveria ser introduzida
a chave.
Levou uns dez minutos para trancar a porta. Nesse tempo aprendeu alguma coisa
sobre o mecanismo da fechadura. Tinha certeza de que não gastaria mais que isso para
abrir a porta.
O trabalho dava-lhe certo prazer. Lembrou-se dos conselhos de certos amigos, que
lhe haviam dito que com sua habilidade extraordinária poderia trabalhar como ladrão e
arrombador de cofres, ganhando dez vezes mais do que ganhava na Frota espacial.
Passou a ponta do indicador e do polegar suavemente pela alça achatada do instrumento
em forma de chave, enquanto o lado do dedo médio passava pela rebarba, imprimindo um
movimento lento e constante de rotação ao instrumento.
De repente encontrou resistência. Parou como se tivesse levado um choque. Sem
fazer força, enfiou o instrumento mais meio centímetro na fenda. Fez uma forte pressão
com os dedos, girando-o para a esquerda. Ouviu-se um estalo e um rangido — e a porta
abriu-se.
Hauka endireitou a coluna, que doía, e passou o lenço pela testa, que estava coberta
de suor. Conseguira. O mecanismo de trava era mais complicado do que imaginara.
Apesar disso fora bem-sucedido.
Nesse instante veio o golpe, sem o menor aviso.
Alguma coisa dura e pontuda parecia atingir seu crânio. Fez um esforço para virar a
cabeça, mas a dor sugava a força dos seus músculos e paralisava seus centros nervosos.
Cheio de espanto, Hauka viu o chão aproximar-se de repente.
O espanto logo foi afogado num estado de inconsciência.
— Há algo de errado, Torav — disse a voz calma de Fellmer Lloyd. — Num raio de
duzentos metros há pelo menos três blues cujos pensamentos giram em torno de nós. E
não são pensamentos muito amistosos.
Torav segurava o mini comunicador junto à boca.
— Você pode identificá-los, Fellmer?
— Não. Está havendo interferências na recepção. Há muitos cérebros por perto.
Seria capaz de identificá-los caso se aproximassem a quinze metros.
Torav olhou pela janela. Sentia-se preocupado. Fellmer Lloyd estava do lado oposto
da rua, junto à entrada de outro edifício de apartamentos. Torav reconheceu-o pelo
desenho verde-cinza de suas vestes.
— Mantenha-me informado, Fellmer — pediu. — Ficarei observando você.
Informá-lo-ei assim que aparecer algo de suspeito.
— Está certo.
O tráfego do meio-dia fluía pela rua. Veículos acoplados realizavam manobras
arriscadíssimas para mudar de faixa. Qualquer forasteiro que não se concentrasse
inteiramente nos movimentos dos veículos seria incapaz de descobrir mais ordem nesse
torvelinho que na lufa-lufa de um formigueiro.
Fellmer Lloyd começou a andar. Afastou-se da entrada do edifício e foi entrando
tranqüilamente na reentrância que a rua formava entre duas das construções
arredondadas. Torav perdeu-o de vista.
— Se você ficar escondido, não poderei ajudar — queixou-se. — Fique num lugar
em que possa vê-lo.
— Um momento! — respondeu Fellmer. — Já consegui determinar a direção que
vem de uma das faixas de vibrações mentais. Talvez consiga pegar o sujeito.
Ficou calado.
— Será que realmente já sabem de tudo? — perguntou Torav.
Fellmer não respondeu logo. Trinta segundos se passaram. Torav teve medo de que
alguma coisa tivesse acontecido ao mutante. De repente a voz do mutante saiu do
pequeno receptor. Desta vez soava nervosa.
— Não existe a menor dúvida. Preste atenção, Torav. Já sabem que viemos de fora.
Acham que temos alguma coisa a ver com a destruição do posto insular. Receberam
ordem de prender-nos. São da polícia secreta. A única coisa que os detém é o medo.
Espere...
Torav ouvia ansioso. Fellmer manteve-se calado por um tempo infinitamente longo.
Torav não se atrevia a dirigir-lhe a palavra. O mutante concentrava-se no modelo de
vibrações mentais do inimigo. Qualquer interferência, por menor que fosse, o perturbaria.
— Torav? — disse a voz saída do receptor.
— Sim...
— Há outras pessoas atrás de Tako e Hauka. Sabem que somos quatro.
Torav sobressaltou-se.
— Também sabem onde estamos...?
— Não; nem desconfiam. Foram mandados todos ao mesmo tempo. Querem que
sejamos presos na mesma hora, para que nenhum de nós possa prevenir os outros.
Torav obrigou-se a permanecer calmo.
— Avisarei Hauka e Tako.
Fellmer ficou calado. Torav comprimiu dois botões do mini comunicador e ficou
esperando. O segundo botão faria soar o código de chamada. Tako e Hauka responderiam
dentro de alguns segundos. Tako, que estava entretido numa palestra, só responderia por
meio de um breve sinal.
Trinta segundos se passaram... um minuto Torav voltou a comprimir o botão de
chamada, mais uma vez sem resultado.
— Nada, não é mesmo? — perguntou Fellmer.
— Nada — respondeu Torav com a voz rouca.
— Quer dizer que já os pegaram — constatou o mutante em tom indiferente. —
Cuidado! Os dois homens que andam por aqui estão-se aproximando.
Torav sobressaltou-se.
— Dois homens? — perguntou. — Há pouco eram três.
Ouviu uma manifestação de surpresa de Fellmer.
— É mesmo! — exclamou em tom de perplexidade. — Eram...
Torav não percebeu o que aconteceu depois disso. O receptor emitiu uma série de
ruídos crepitantes. Até parecia que o mini comunicador de Fellmer estava rolando por
uma encosta íngreme e comprida.
De repente não ouviu mais nada. Torav comprimiu cuidadosamente o botão de
desligar. A coisa mais errada que poderia fazer nesse momento era chamar o mutante.
Provavelmente o aparelho deste ainda estava funcionando.
Mas Fellmer Lloyd já fora posto fora de ação. O terceiro homem, que conseguira
subtrair-se à sua atenção, acabara por atingi-lo.
***
Nessas circunstâncias Torav Drohner chegou à conclusão de que a coisa mais
inteligente que poderia fazer era dar o fora o mais depressa possível. Face às informações
recebidas de Fellmer, calculou que, se quisessem agir discretamente, os agentes inimigos
levariam pelo menos dez minutos para chegar à porta do seu apartamento. Talvez
conseguisse sair de casa antes que chegassem.
Colocou o pequeno projetor no bolso e transformou-se num blue. Enfiou o mini
comunicador na única peça de bagagem que trazia na mão. Tratava-se de uma peça
intermediária entre um pacote e uma pasta, do tipo usado em Apas. Os outros também
haviam levado seus aparelhos, e por isso não havia mais nada nos dois apartamentos que
pudesse dar uma indicação sobre a origem dos estranhos forasteiros que ali haviam
estado.
“Até parece que isso tem alguma importância”, pensou Torav, contrariado. “Afinal,
já pegaram três dos nossos.”
No momento em que se aproximava da porta, ouviu o zumbido agudo do aparelho
de chamada que substituía a campainha. Torav assustou-se. Colocou a bagagem no chão,
segurou a arma que trazia escondida numa dobra das vestes e disse em voz alta:
— Dou as boas-vindas aos desconhecidos e peço que entrem.
O mecanismo acústico reagiu às suas palavras. A porta abriu-se. Torav soltou um
suspiro de alívio. Viu uma criatura do sexo feminino. Por enquanto Torav só pôde
reconhecê-la como tal pelo colorido e talhe das vestes.
— Peço que meu senhor desculpe o incômodo — principiou a moça da raça dos
blues e transpôs a soleira da porta. — Já toquei o zumbidor por várias vezes, mas você
não respondia.
Torav enfureceu-se com sua falta de cautela. Só acionara o projetor há alguns
segundos. Era claro que antes disso não poderia ter ouvido o zumbido cuja amplitude de
ondas se situava no centro da faixa do ultra-som.
— Peço que a encantadora dama me perdoe — respondeu, numa tentativa de
reparar a falta por meio da cortesia. — Estava absorto nos meus pensamentos.
A moça não entrou na jogada. Continuava a enfatizar sua condição de criatura
inferior.
— Pediram que avisasse meu senhor de que o zelador foi substituído hoje de
manhã. Sou a sucessora.
Torav meneou a cabeça. O gesto correspondia à mesura terrana.
— Fico satisfeito em saber disso — disse.
Na verdade, teria preferido que a moça tivesse feito sua visita um pouco mais tarde,
quando já não estivesse presente. Se não desse logo o fora, os agentes secretos ainda o
pegariam.
— Estava de saída — prosseguiu, um tanto embaraçado, ao notar que a moça não
saía do lugar.
A moça recuou para o corredor.
— Quero que meu senhor me perdoe — respondeu apressadamente e um tanto
assustada. — Não queria prendê-lo.
Torav passou por ela. A porta fechou-se atrás dele. Atravessou o corredor circular,
em direção ao elevador mais próximo. Não sabia por que, mas a presença da moça, que
se mantinha imóvel perto da porta, deixava-o nervoso.
— Meu senhor! — chamou a moça de repente.
Torav virou-se abruptamente.
No mesmo instante percebeu seu erro. Mas já era tarde. Uma tremenda pancada fez
retumbar seu crânio, fazendo-o perder os sentidos.
7

Desta vez Hurut Iirp reagiu um pouco mais depressa. Não parecia ter ficado
inconsciente por muito tempo. Olhou para cima e viu um pedaço circular de céu violeta,
quase negro. Se não via todo o céu, isso acontecia porque estava deitado num buraco.
Era um buraco enorme. Hurut admirou-se de que os mapas das áreas adjacentes à
estação não o registrassem.
Logo encontrou uma coisa que o deixou muito mais admirado.
Estava deitado sobre uma chapa de metal plastificado. Ao primeiro relance tivera a
impressão de que era plana. Mas agora viu que na verdade era abaulada. Encontrava-se
próximo ao ponto mais elevado da curvatura. A superfície lisa descia para todos os lados,
até o lugar em que parecia tocar nas bordas do buraco.
Hurut dirigiu uma prece à criatura branca da clareza. Receava que a mesma pudesse
zangar-se e recusar seu auxílio, porque ele já a molestara tantas vezes no mesmo dia. Mas
desta vez ainda demonstrou sua boa-vontade. Iluminou os pensamentos de Hurut,
explicando-lhe que se encontrava no topo de uma gigantesca esfera de metal plastificado.
Na verdade a superfície abaulada não tocava nas bordas do buraco. Apenas dava esta
impressão a quem se encontrasse no lugar em que estava.
E a criatura branca da clareza não ficou só nisso. De repente Hurut compreendeu
por que o buraco não estava registrado nos mapas. É que surgira há pouquíssimo tempo.
Alguém o abrira para esconder a esfera. Que esfera seria essa, que era tão grande, e que
alguém se dava ao trabalho de esconder?
Por mais limitadas que fossem as faculdades mentais de Hurut Iirp, o mesmo sabia
perfeitamente que a forma esférica era a mais econômica para uma espaçonave.
Então era uma espaçonave, e uma espaçonave muito estranha, pois do contrário
teria um revestimento de massa protetora.
De repente Hurut compreendeu o que deveria fazer. Levantou o braço dolorido e
enfiou a mão no bolso. Agarrou a caixinha redonda que era uma das peças mais
importantes de seu equipamento com os sete dedos ao mesmo tempo e tirou-a. Tremeu de
medo de que o mecanismo complicado tivesse sido danificado com as numerosas quedas
e abalos. Sua mão tremia enquanto girava o botão anguloso de regulagem.
Mas logo a luz de controle acendeu-se e Hurut passou a respirar mais tranqüilo.
Nesse momento nem se lembrou de que se encontrava numa situação muito
perigosa. Afinal, a base sobre a qual estava sentado era abaulada para baixo e
perigosamente lisa. Bastaria um movimento em falso, e escorregaria pela curvatura da
esfera, precipitando-se nas profundezas.
Na verdade, nem pensava nisso. Sentiu-se dominado por um enorme nervosismo.
Uma espaçonave incrivelmente estranha pousara em Kohnla. Se a nave era tão esquisita e
diferente de tudo quanto já tinha visto, como não seriam as pessoas vindas na mesma?
Hurut aproximou a caixinha redonda da boca, que ficava na extremidade inferior do
pescoço e disse:
— Um funcionário de baixa categoria chamando o chefe da estação. Quando eu lhe
disser o que acabo de encontrar, meu senhor não acreditará. Uma nave estranha pousou
em pleno deserto. Cavaram um grande buraco para escondê-la...
***
Finalmente Torav Drohner viu-se numa peça de móvel que logo identificou como
sendo uma cama. Sentia-se muito mal. Sua cabeça zumbia tão forte que parecia que
estavam fazendo uma corrida de automóveis em seus sulcos cerebrais.
Com um grande esforço conseguiu deitar de lado. Viu um homem sentado em sua
cama. De início os contornos desse homem eram confusos, mas a curiosidade começou a
abafar a sensação de mal-estar e Torav reconheceu Hauka Leroy.
Ao que parecia Hauka tivera o mesmo destino que ele. Era ao menos o que se
deduzia da expressão de seu rosto.
Torav olhou em torno e constatou que se encontrava numa sala em forma de
segmento de círculo. Na parede externa havia uma grande janela, pela qual penetrava a
luz.
Na parede lateral oposta havia outra cama, com a parte inferior voltada para a
janela. Entre a cama e a parede em que ficava a janela havia uma porta alta e estreita.
Torav virou a cabeça e viu uma porta igual na parede à qual estava encostada sua cama.
Na estreita parede dos fundos havia uma terceira porta. Fora as camas, a mobília consistia
numa mesa redonda, que ficava no centro da sala, e em duas cadeiras. A mesa estava
apoiada sobre uma coluna cilíndrica de cerca de um metro de diâmetro. As cadeiras
haviam sido colocadas de tal forma que cada uma delas ficava de costas para uma das
camas.
O formato da sala era rigorosamente simétrico. Uma reta imaginária traçada do
centro da porta dos fundos ao centro das janelas a dividiria em duas partes idênticas.
Torav não se sentiu nada à vontade, pois lembrou-se de que na Terra essa simetria
finalista costumava ser usada principalmente nas celas das prisões.
Vencendo a resistência dos nervos e dos músculos, levantou-se num movimento
vigoroso. Ainda trazia sobre o corpo as vestes de plástico pertencentes ao equipamento
padrão dos astronautas. A roupa ampla de blue, talhada à moda de Apas, lhe fora tirada.
Torav logo se certificou de que juntamente com essa roupa lhe haviam tirado as armas, o
projetor e o mini comunicador.
Foi à janela. Hauka seguiu-o com os olhos. Por enquanto ninguém dissera uma
palavra. Torav viu uma área ensolarada pavimentada com pedras, que ficava uns quinze
metros abaixo do lugar em que se encontrava e se estendia até um muro de altura
considerável, que se estendia bem ao longe. Esse muro, que descrevia uma curva suave,
tomava todo o campo de visão. Provavelmente era circular como todos os edifícios de
Apas.
Para além do muro Torav viu os contornos pouco nítidos de uma cadeia de
montanhas baixas coberta de bruma. Parecia que entre o muro e as montanhas o terreno
era quase todo plano. Isso seria uma desvantagem, caso conseguissem fugir do edifício
em que se encontravam.
Torav virou a cabeça.
— Então? — perguntou. — O que houve?
Hauka fez um gesto de que não sabia.
— Sei tanto quanto você. Alguém me deu uma pancada pelas costas na cabeça.
Quando acordei, estava deitado nessa cama.
Torav apalpou a cabeça.
— Não existe o menor sinal — constatou. — Não foi nenhuma pancada. Suponho
que tenha sido um choque nervoso. Devem possuir armas de choque. — Apontou para
uma das portas laterais. — O que há atrás dessa porta?
— O banheiro e coisas parecidas — respondeu Hauka.
— É uma prisão confortável. E ali?
— Não sei. Essa porta está trancada. Deve ser a entrada.
— Trancada? — perguntou Torav em tom de espanto. — Pensei que você soubesse
lidar com fechaduras.
— Sei mesmo. Infelizmente esta fechadura é muito complicada. Além disso você
sabe que fui interrompido abruptamente quando tentava familiarizar-me com a técnica de
travamento de portas dos apasenses. Finalmente estou sem minha caixinha de
ferramentas. E com as unhas não posso fazer muita coisa.
Torav interrompeu-o com um gesto.
— Tem alguma idéia de onde estamos? Sabe o que aconteceu com Tako e Fellmer?
E o que essa gente quer de nós? Nas mãos de quem caímos? E o que pretendem fazer
conosco?
Hauka abanou a cabeça.
— A resposta a todas as perguntas é: não sei. Acordei no máximo dez minutos antes
de você.
Torav sentou na beira da cama. Levou algum tempo procurando cigarros nos bolsos,
mas não havia nenhum. Finalmente apoiou o queixo nas mãos e pôs-se a refletir. Hauka
não o perturbou. Alguns minutos se passaram num silêncio absoluto, um quarto de hora,
meia hora...
Finalmente Torav levantou os olhos.
— Quer dizer que nos pegaram — principiou, fazendo uma constatação que para
Hauka não passava de uma verdade corriqueira. — Não sabemos como deram com nossa
pista. No primeiro dia tudo parecia estar em ordem. É perfeitamente possível que pelo
menos uma das peças de dinheiro roubadas chegou ao banco antes da hora e foi
identificada. Mas não acredito muito nisso. Talvez o comissário que recebeu a visita de
Tako tenha farejado alguma coisa. Acho isso mais provável.
— Mas ele não é um revolucionário? — interrompeu Hauka.
— Isso mesmo. Colabora com outros blues que pretendem derrubar o domínio dos
gatasenses. Provavelmente suas idéias sobre uma possível colaboração com criaturas não
pertencentes à sua raça não são as mesmas. Pelo que soubemos de Zodi, para qualquer
blue o forasteiro mais amistoso é uma criatura cem vezes mais repugnante que o mais
repugnante dos indivíduos de sua raça. Isso quase chega a torná-los humanos. Talvez
Ipotheey tenha percebido que Tako não é nenhum blue.
— Mas como? Torav sorriu.
— É simples. Eu mesmo virei a cabeça quando alguém me chamou. Para um blue
essa reação deve ser muito esquisita. Uma criatura que possui quatro olhos não precisa
disso.
— Ah — fez Hauka.
— De qualquer maneira estamos presos
— disse Torav com um suspiro. — Provavelmente somos prisioneiros da polícia
secreta gatasense. Não temos possibilidade de entrar em contato com a Kopenhagen ou
com os dois mutantes. Ao que tudo indica, encontramo-nos num lugar afastado na cidade,
e o edifício em que estamos praticamente não oferece a menor possibilidade de fuga. —
Levantou-se. — Parece que estamos mesmo na pior.
Começou a andar de um lado para o outro da sala. Foi à janela, voltou pelo outro
lado da mesa, fez meia-volta junto à porta dos fundos e caminhou novamente em direção
à janela. Quando estava passando pela quarta vez junto à mesa aconteceu uma coisa
inesperada.
Uma área redonda da parede, que ficava acima da cama de Hauka, iluminou-se de
repente. Torav teve a atenção despertada pelo lampejo não muito forte que atravessou a
sala. Aquela mancha da parede, que antes não se distinguia do resto, transformou-se
repentinamente numa tela de imagem.
Uma esperança louca eletrizou Torav quando viu o crânio marcante de um terrano.
Mas a ilusão durou apenas um segundo. Logo foi substituída pela perplexidade.
A cabeça projetada na tela era o crânio anguloso de campônio, coberto de cabelos
negros, que pertencia a Hauka Leroy.
***
Hurut Iirp quase não teve forças para explicar ao chefe da estação que não se
encontrava no estado de delírio provocado por práticas ilícitas, mas via nitidamente
diante dos seus olhos o quadro que estava descrevendo.
Depois disso os acontecimentos tiveram seu curso. Hurut advertiu expressamente do
perigo representado pelo solo enganador do deserto, na parte superior do buraco. Não
conseguiu fornecer uma descrição exata do tipo de solo, mas deixou claro que quem se
aproximasse demais acabaria por cair no buraco.
O chefe da estação pediu a Hurut que tivesse um pouco de paciência e garantiu-lhe
que o socorro seria enviado logo. Elogiou-o por causa da circunspeção com que agira.
Dali em diante Hurut enfrentaria as provações mais duras sem queixar-se, pois durante os
longos anos de sua carreira de funcionário nunca lhe acontecera ser elogiado por um
superior de alta categoria.
Hurut foi informado em linhas gerais sobre tudo que se fez para salvá-lo. A estação
enviou vinte trenós com quatro homens fortemente armados em cada um, que cercaram o
buraco. Outros dez trenós levaram equipamentos especiais, que permitiriam aos homens
entrar no buraco sem enfrentar maiores riscos. Hurut não pôde ver isso, mas acreditava
que fosse assim, porque seu superior lhe dizia.
Nem desconfiava de que na verdade apenas cinco trenós saíram da estação, e de que
não seria transportado nenhum equipamento especial, pois ninguém entraria no buraco.
Os homens que iam nos trenós só estavam fortemente armados porque ninguém poderia
prever o que sobraria dos desconhecidos depois que fosse desferido o golpe principal.
Esse golpe partiria de cinco naves de guerra da frota de Gatas, que naquele
momento operavam no setor de Apas e foram chamadas às pressas para Kohnla, a fim de
transformar o buraco juntamente com a espaçonave desconhecida numa cratera de lava
incandescente.
Do ponto de vista dos acontecimentos cósmicos, a vida e a segurança da criatura de
cabeça em forma de bacia que estava grudada à nave esférica, toda amedrontada,
ocupavam uma posição secundária.
Quem sentiria falta de um homem como Hurut Iirp?
***
— Vejo que estão surpresos — disse a cabeça que falava com a voz de Hauka. —
Mas tenho certeza de que não demorarão a compreender o que aconteceu. Estamos de
posse dos seus projetores. Não compreendemos completamente o princípio de seu
funcionamento, mas conseguimos inverter a polarização dos mesmos. Agora cumprem
uma finalidade diferente. Usados por um membro de nossa raça, fazem com que o mesmo
pareça ser um dos seus. Suponho que neste momento, quanto ao aspecto exterior, seja
idêntico a um dos senhores. Torav recuperou-se do susto.
— É verdade — confirmou. — O senhor me compreende?
— Sim; compreendo perfeitamente. O equipamento funciona em ambos os sentidos.
Mas não vamos perder tempo. Devo-lhes uma explicação. Meu nome é Iul-Theer-Hij.
Sou mestre da décima nona prudência e cidadão do mundo principal de Gatas. A
operação dirigida contra os senhores foi comandada por mim.
Parecia sentir-se orgulhoso por isso. Era ao menos o que dava a entender o tom de
sua voz. “Se bem que nestas coisas deve-se pensar bem antes de formular um juízo”,
pensou Torav. Afinal, Iul-Theer-Hij estava falando sua língua, que o projetor
transformava num intercosmo inteligível.
— Os senhores agiram com muita inteligência — prosseguiu o mestre — mas nem
por isso foram bastante inteligentes. Os senhores mesmos descobriram um dos erros que
cometeram, conforme ouvi há pouco. Realmente, um dos nossos não vira a cabeça
quando alguém lhe dirige a palavra. O comissário Ipotheey teve a atenção despertada por
esse desvio de comportamento quando pela primeira vez conversou com um dos homens
que agiam sob suas ordens. Ipotheey é um homem pouco importante, que favorece a
revolução às escondidas e pensa que não sabemos disso. Mas sabe observar as coisas.
Deu uma descrição precisa do incidente, e dessa forma chegamos à conclusão de que,
além de pertencer a uma raça estranha, o homem que o visitou é uma das raras criaturas
privilegiadas que dispõem de faculdades parapsíquicas e paramecânicas.
“Da palestra mantida com Ipotheey deduzimos que os senhores não vieram com a
intenção de estabelecer contatos pacíficos. Tivemos de impedir que fizessem alguma
coisa que nos prejudicasse. O homem que conversou com Ipotheey escapou à
perseguição. Vasculhamos toda a cidade e acabamos encontrando o lugar em que os
senhores haviam fixado moradia. Começamos a observá-los.
“Naquela altura já havíamos recebido informações de um colega que foi roubado
misteriosamente em seu carro, tendo ficado sem o dinheiro que retirara do banco pouco
antes. Os movimentos do ladrão combinavam perfeitamente com a descrição fornecida
por Ipotheey. Já tínhamos bastante certeza.
“Na manhã do dia seguinte, quando começamos a cercar o edifício em que
moravam os senhores, nossos aparelhos constataram que havia entre os senhores não
apenas uma pessoa, mas duas que possuíam dons parapsíquicos. Registramos a presença
de emanações cerebrais telepáticas. Esse fato dificultou nosso trabalho, pois o telepata
podia ler nossos pensamentos a qualquer momento e antecipar-se à nossa ação. Teríamos
que pô-lo fora de ação. Um dos nossos homens foi munido de um bloqueio somático que
os telepatas pertencentes ao seu grupo não poderiam romper. Dessa forma esse perigo
fora afastado.
“Outro dos homens pertencentes ao seu grupo pegou um carro e foi a um bairro
periférico. Chamamos de volta pelo caminho mais rápido o táxi que o mesmo havia
usado e examinamos as moedas com que pagara a corrida. Nossas suspeitas
confirmaram-se. Essas moedas pertenciam ao produto do roubo cometido no dia anterior.
“O quarto homem de seu grupo ficou no apartamento. Supúnhamos que tivesse sido
prevenido pelo telepata. Tentaria abandonar o edifício. Pretendíamos levar avante a
operação com toda calma e discrição, mas a essa altura teríamos de agir depressa.
Enviamos uma funcionária que deveria deter o inimigo enquanto nossos homens
ocupavam o edifício às pressas. Aproveitamos a oportunidade para realizar mais um teste.
Constatamos que ao ser chamado esse homem virará a cabeça pela forma que Ipotheey
havia descrito.
“A operação foi um sucesso absoluto. Já sabemos de onde vêm e temos uma boa
idéia sobre o grau de evolução de sua tecnologia. Na série de interrogatórios que terão
pela frente descobriremos como pensam e vivem e por que vieram para Apas. Esses
conhecimentos nos serão úteis dentro em breve, quando começarmos a subjugar o resto
da Galáxia.”
Depois dessa fala impressionante a cabeça de Iul-Theer-Hij permaneceu na tela por
mais alguns segundos. Depois disso a mesma apagou-se.
Torav permaneceu imóvel. Ouviu Hauka mover-se atrás dele.
— Que surpresa! — disse, perturbado. Torav não respondeu. Hauka ficou parado.
Provavelmente estava perto da janela.
— Esse sujeito parece bastante convencido, não é mesmo? — principiou de novo.
— Quer subjugar o resto da Galáxia! E pensa que pode fazer isso sem mais nem menos.
Torav virou a cabeça.
— Cale a boca ao menos por um minuto! — gritou. Depois murmurou: — Tenho
uma idéia...
8

Hurut Iirp começou a ficar desconfiado quando recebeu ordem para dali em diante
usar ininterruptamente seu micro transmissor. Disseram-lhe que era indiferente o que
falasse para dentro do microfone, desde que dissesse alguma coisa.
Hurut perguntou a si mesmo o que significaria isso. Conhecia os procedimentos da
técnica de localização. Sabia que, quanto maior era a freqüência dos sinais recebidos,
mais fácil se tornava fazer a determinação goniométrica da posição do respectivo
transmissor. Mas por que iriam recorrer à goniometria? Afinal, ele lhes descrevera a
posição do buraco. Os dados fornecidos seriam suficientes para que qualquer membro da
guarnição da estação conseguisse orientar-se.
Só havia uma resposta. As pessoas que queriam saber exatamente onde ele se
encontrava não vinham da estação.
Hurut começou a inquietar-se. Por que não fora informado sobre isso? De onde
vinham as pessoas às quais se destinavam os sinais goniométricos? O que pretendiam
fazer quando chegassem ali?
Foi dizendo frase após frase para dentro do aparelho. Sabia que ninguém estava
interessado no sentido das suas palavras. Desfiou velhas canções. Olhava constantemente
para os lados, como se as coisas que o cercavam pudessem dar resposta às perguntas que
o martirizavam.
De início não deu atenção ao ponto vermelho que surgiu no céu, bem acima de sua
cabeça. Pensou que fosse uma estrela. Mas logo surgiu outro ponto, vermelho como o
primeiro. Hurut sabia perfeitamente que não havia duas estrelas vermelhas como estes
pontos, e que ficassem tão próximas umas das outras. O vermelho era a cor do sol do
sistema ao qual pertencia. Qualquer objeto que refletisse aquela luz a grande altura seria
vermelho.
De repente Hurut compreendeu. Eram espaçonaves! Queriam que falasse para
dentro de seu transmissor, para que as tripulações, que não conheciam a área, pudessem
localizar o buraco no meio do deserto. Essas tripulações vinham de Gatas e nunca haviam
posto os pés em Kohnla.
Hurut também compreendeu o que pretendiam fazer com ele. O chefe da estação
mentira. Não queriam salvá-lo. Queriam destruir a nave desconhecida, e pouco lhes
importava o que seria feito dele.
Se tivesse tempo para refletir sobre a situação talvez não lhe fosse impossível
tomado uma decisão que, para um blue. era uma coisa inconcebível. Mas não tinha
tempo. Graças aos seus esforços as naves conheciam ao menos a posição aproximada do
buraco. Mesmo que parasse de transmitir levariam apenas algumas frações de um décimo
de dia para descobrir a posição exata. E quando isso acontecesse... seria o fim.
Hurut entrou em atividade. O material liso dava-lhe um medo terrível, e a simples
idéia de perder o apoio e precipitar-se pela gigantesca esfera dava-lhe tonturas.
Não teve outra alternativa. Mesmo que caísse, não teria nada a perder. De qualquer
maneira morreria no décimo de dia que se seguiria. Seria muito mais razoável procurar
um acesso para o interior da nave e prevenir os desconhecidos. Se estes decolassem era
tempo, ainda poderiam escapar às naves dos gatasenses.
E talvez o levassem.
***
— Como é que ele nos compreende? Torav proferiu a pergunta como que num
latido, depois de ter refletido em silêncio por muito tempo.
Hauka assustou-se com a súbita irrupção e começou a cocar a cabeça.
— Por que não iria compreender-nos? — retrucou. — Afinal, nós o
compreendemos, não é mesmo?
— Por quê?
Ao que parecia Torav pretendia dar uma explicação mais pormenorizada. Notava-se
pelo seu rosto. Parecia nervoso, mas de repente o nervosismo desapareceu. Deixou cair os
ombros e disse com um suspiro:
— É claro que você tem razão. Está com os nossos projetores, e não precisa mais do
que isso.
A explicação não parecia convencer Hauka. O que era mesmo? Torav pretendia
dizer outra coisa.
O circuito de televisão! Iul-Theer-Hij ouvira Torav dizer como virará a cabeça
quando a moça o chamara. O aparelho trabalhava ininterruptamente, mesmo nos
momentos em que a tela permanecia invisível. E o blue possuía o projetor adaptado, por
meio do qual podia traduzir o intercosmo para sua própria língua.
Havia outro detalhe: o encadeamento lógico ainda não era completo. Hauka sentiu
que estava na pista do problema sobre o qual Torav pretendia falar. Iul-Theer-Hij tinha os
dois projetores, além dos de Tako e Fellmer. Usava-os para conversar com os
prisioneiros, se é que uma declaração de princípios pode ser chamada de conversa. Um
dos projetores fora adaptado para traduzir a língua dos blues para o intercosmo, em vez
de fazer o inverso, como acontecia antes.
Mas o outro projetor devia continuar nas condições em que estivera antes.
Continuava a traduzir o intercosmo para a língua dos blues, pois, se não fosse assim, Iul-
Theer-Hij não saberia sobre o que tinham conversado os prisioneiros.
De repente um véu parecia cair de cima dos olhos de Hauka. O segundo projetor só
podia estar no interior da sala em que se encontravam. Devia estar ao alcance das suas
mãos, junto à entrada do microfone do sistema de comunicação audiovisual. Os
microfones criados pela tecnologia dos blues eram diferentes dos terranos. A fala dos
blues processava-se por outra faixa de freqüência que a do Império Unido. As membranas
reagiam ao ultra-som, mas provavelmente eram maus transmissores para o som normal.
O intercosmo tinha de ser traduzido para a língua dos blues antes que a fala entrasse no
microfone.
Um dos projetores estava bem perto, a cerca de um metro de Hauka. Provavelmente
fora escondido na parede.
Seria realmente um?
O mesmo raciocínio aplicava-se ao processo que se desenvolvia em sentido inverso.
O microfone transmitia as palavras de Iul-Theer-Hij ao transmissor em sua versão
original. A tradução para o intercosmo só era realizada depois da saída do alto-falante. A
mesma coisa acontecia com a transmissão da imagem. Os blues haviam aproveitado as
horas durante as quais os prisioneiros estiveram inconscientes para instalar os dois
projetores na parede. Um deles transformava a língua dos blues em intercosmo e fazia
com que os terranos não vissem um blue, mas um homem do planeta Terra. O outro fazia
exatamente o inverso. Permitia que Iul-Theer-Hij compreendesse as palavras dos
prisioneiros e projetava a imagem de dois blues sobre a tela, sempre que conversava com
os terranos.
Hauka compreendeu imediatamente a importância da descoberta que acabara de
fazer. Se conseguissem apoderar-se dos dois projetores, seriam capazes de transformar-se
novamente em blues. Talvez fosse possível abrir a porta que levava para fora, e nesse
caso teriam alcançado um bom progresso.
Mas antes de mais nada teria que discutir o assunto com Torav. Como fazer isso, se
o inimigo os ouvia constantemente, e não se podia destruir o aparelho de escuta, já que
com isso o mesmo desconfiaria antes da hora?
Hauka lembrou-se da língua que falara em criança. Não sabia se Torav também a
dominava. Nos primeiros anos de vida todo terrano falava uma das línguas primitivas. Só
depois dos dez anos começavam a ensinar-lhe o intercosmo, uma língua que era falada e
compreendida em todo o Império Unido.
Hauka fora criado nas áreas de língua inglesa. Pelo nome de Torav não se podia
saber em que região da Terra o mesmo fora criado e qual era sua língua materna. “De
qualquer maneira vale a pena tentar”, pensou Hauka. Naturalmente Iul-Theer-Hij ficaria
desconfiado se seu receptor de repente transmitisse uma seqüência de sons que não
faziam o menor sentido. Mas sempre haveria tempo para tranqüilizá-lo.
Por enquanto tentaria enganar a técnica sofisticada dos aparelhos mecano-
hipnóticos por meio de um dos truques mais antigos da Humanidade.
Começou a falar em inglês:
— Escute, Torav. Já sei o que você pretendia fazer. Os dois projetores estão
escondidos na parede.
Foi por puro acaso que Erin Loschmidt se encontrava no convés E quando
começaram as pancadas. Erin estava à procura de certas peças sobressalentes para uma
cafeteira automática. Sabia que coisas ridículas como estas só podiam ser encontradas
nos depósitos mais afastados de uma nave — se é que podiam ser encontradas.
Enquanto vasculhava um dos depósitos, viu-se interrompido pelo estranho ruído.
Erin teve de refletir por algum tempo para tentar saber o que poderia ser a causa do
mesmo. Parecia um gongo que estivesse batendo bem ao longe. O ruído era fraco, mas no
silêncio dos conveses superiores tornava-se inconfundível. E vinha de fora. Alguém batia
com um objeto duro no casco da nave.
Erin logo chegou à conclusão de que algo devia estar errado se alguém tamborilava
a parte externa da nave na altura do convés E, ou seja, logo abaixo do zênite da esfera.
Interrompeu suas buscas e foi seguindo o ruído. Ficou escutando por alguns minutos e
descobriu que o mesmo vinha da eclusa de tripulantes do setor três. Abriu-a
cautelosamente, depois de pegar a arma, e esperou pelo que estava para acontecer.
A primeira coisa que viu à luz clara da abertura quadrática da escotilha externa foi a
cabeça em forma de bacia de um blue. Erin levantou a arma e esteve prestes a disparar,
mas logo uma mão de sete dedos passou ao lado da bacia e fez um gesto tranqüilizador.
Erin ao menos teve a impressão de que era e baixou a arma.
O blue desceu para a eclusa, revelando uma habilidade surpreendente. Finalmente
Erin o viu parado à sua frente. Era uma criatura alta, quase quebradiça, cujas pernas
robustas formavam um contraste marcante com o corpo esbelto.
— Está bem. O que é que você quer? — resmungou Erin, que ainda continuava
desconfiado.
O blue começou a chiar e chilrear, mas Erin não compreendeu nada. Além disso fez
gestos com ambas as mãos. Erin teve a impressão de que desejava escrever. Parecia
segurar um utensílio de escrita entre três dedos da mão direita, enquanto a mão esquerda
alisava o material sobre o qual seria escrito o texto. E parecia tão exaltado que Erin
chegou à conclusão de que não havia tempo a perder.
— Perfeitamente. Posso dar-lhe isso — disse e afastou-se, para dar passagem ao
visitante inesperado.
Levou o blue a um dos depósitos em que havia bobinas destinadas aos medidores
automáticos. Pegou uma delas e abriu-a no chão. Depois disso entregou seu estilete ao
blue e ficou curioso para ver o que este faria com o mesmo.
Hurut Iirp fez desenhos. A criatura branca da clareza parecia inspirá-lo, pois soube
pintar com toda nitidez a área ampla do deserto, o buraco em que estava escondida a nave
estranha, a armada de naves que descia sobre Kohnla — e os fulgores das explosões das
bombas que seriam lançadas em breve.
Erin Loschmidt compreendeu. E, como oficial dotado de senso de responsabilidade,
não perdeu tempo em reflexões sobre se o blue talvez o estivesse enganando.
Deu o alarma e mandou que o esconderijo fosse evacuado imediatamente.
Dali a cinco minutos a Kopenhagen estava pronta para entrar em combate e
preparava-se para a decolagem-relâmpago.
***
— Só diga o estritamente necessário — respondeu Torav em inglês, esforçando-se
para dar um tom indiferente à voz. — Precisamos apoderar-nos dos projetores. Quanto a
isso não existe a menor dúvida. E não será difícil. Basta percutir a parede e arrancá-los.
Provavelmente nem precisaremos de ferramentas. Mas no momento em que isso for feito
o estabelecimento entrará em rigoroso alerta. Nossos planos terão de ser elaborados
antecipadamente.
Hauka confirmou com um gesto. As horas que se seguiram foram consumidas em
reflexões. Vez por outra faziam algumas observações indiferentes em intercosmo, para
dar a impressão que dominavam tanto o inglês como a língua universal, e fosse apenas
natural que falassem ora um dos idiomas, ora o outro.
Não sabiam se com isso conseguiriam enganar Iul-Theer-Hij e seus guardas.
O plano foi tomando forma. O fato de terem viajado juntos durante quase quatro
anos na Frota do Império representou uma vantagem considerável. Bastavam ligeiras
insinuações para que se entendessem um ao outro. Provavelmente Iul-Theer-Hij não
conseguiria extrair muita coisa da conversa, mesmo que o projetor também fosse capaz
de traduzir as palavras inglesas.
Finalmente, quando quase três horas se haviam passado desde o discurso
bombástico de Iul-Theer-Hij, o plano estava pronto. Baseava-se na suposição de que o
mestre da décima nona prudência mobilizaria imediatamente uma equipe de manutenção,
quando constatasse que o equipamento de escuta fora inutilizado. Não poderia saber que,
logo após a investida, os prisioneiros se apoderariam dos dois projetores. Torav tinha
quase certeza que a inversão dos pólos de um dos aparelhos não demoraria mais que
alguns segundos. De qualquer maneira a equipe de manutenção não encontraria dois
terranos, mas dois blues, se bem que estes usariam vestes um tanto estranhas. Torav não
acreditava que todos os membros da equipe estivessem armados. Teriam de carregar as
ferramentas. Provavelmente haveria apenas um único vigilante, que ficaria de olho nos
prisioneiros enquanto os homens estivessem trabalhando. Esse vigilante seria dominado
nos primeiros momentos de surpresa.
Torav não se entregava a ilusões. Sabia que os pressupostos de seu plano não
incluíam todas as possibilidades. Talvez Iul-Theer-Hij resolvesse deixar o aparelho de
escuta destruído no estado em que se encontrasse. Nesse caso não apareceria nenhuma
equipe de manutenção, e Hauka teria de esforçar-se para decifrar a complicada fechadura
da porta. Uma infinidade de outras coisas poderiam inutilizar o plano. Mas tanto Torav
como Hauka eram de opinião que seria preferível assumir um risco dos mais perigosos a
ficarem parados, à espera de que a oportunidade favorável surgisse por si.
Para destruir o equipamento de escuta, bastaria despedaçar a tela de imagem
escondida na parede. Torav e Hauka resolveram que este último faria isto durante um
acesso de fúria simulado. Dessa forma talvez conseguissem enganar Iul-Theer-Hij por
mais alguns minutos sobre a verdadeira finalidade da ação.
O momento exato do acesso de fúria foi fixado e os dois homens puseram-se a
conversar, ora em intercosmo, ora em inglês, sobre coisas sem importância, como a fome
e o cansaço. Torav queixou-se de que não estavam recebendo comida, e Hauka achou que
era um absurdo que sua cama ainda não tivesse sido arrumada. Propositadamente usaram
argumentos ridículos, para que Iul-Theer-Hij tivesse algo com que quebrar a cabeça,
quando se informasse sobre a mentalidade terrana.
Ninguém deu atenção às suas queixas. Ninguém arrumou a cama de Hauka, e a
mesa, cuja grossa coluna devia conter um mecanismo de serviço automático, não
forneceu a menor quantidade de alimentos.
Depois de algum tempo Hauka levantou-se e foi à janela. Torav não lhe deu
atenção. Sentado junto à mesa, estava absorto em seus pensamentos.
De repente sobressaltou-se com o grito de Hauka.
— Torav, venha cá!
Hauka falara em intercosmo. Continuava parado junto à janela, de costas para
Torav. Lá fora devia haver alguma coisa que despertara sua atenção. Torav colocou-se a
seu lado e também olhou para fora. Nas últimas horas o sol mudara de posição. A sombra
do edifício no qual se encontravam projetava-se sobre a parte do pátio que viam da
janela.
E que sombra! Torav logo compreendeu por que Hauka ficara tão exaltado.
Considerada a posição do sol, chegava-se à conclusão de que o edifício não podia
ser muito alto. Pelos cálculos de Torav sua altura devia chegar a uns vinte metros. Em
compensação tinha pelo menos setenta metros de diâmetro. Ao contrário dos outros
edifícios de Apas, o telhado era plano. Seu sombreado consistia numa aresta suave.
Por cima dessa aresta via-se uma confusão de barras, círculos e objetos de ângulos
múltiplos. Alguns deles executavam movimentos constantes de rotação, enquanto outros
estavam rigidamente montados sobre os suportes. Uma única barra estreita subia bem
para o alto, fazendo com que sua sombra chegasse ao pé do muro que limitava o pátio.
Era uma antena...!
Mais que isso. As barras, as lâminas refletores de material rígido, que executavam
movimentos contínuos de rotação, certos detalhes, que mal se distinguiam em meio ao
sombreado, tudo isso formava um quadro harmônico do tipo que Torav Drohner e
qualquer outro astronauta já vira centenas de vezes nas proximidades dos portos
espaciais, se bem que com ligeiras variações, determinadas pela diferença de evolução
das diversas tecnologias.
Era uma instalação de telecomando!
A partir dali eram dirigidas as espaçonaves que chegavam e partiam. O campo
preciso e seguro do hiper-rastreamento colocava-os na rota certa, sem que para isso fosse
necessária qualquer interferência do comandante. Os dados relativos às rotas estavam
armazenados nas memórias eletrônicas, e dali podiam ser extraídos a qualquer momento,
a fim de fornecer os necessários vetores ao projetor de hipercampo.
Dados relativos às rotas...!
Torav virou-se lentamente para o lado e fitou Hauka. Ambos acenaram com a
cabeça. Seus olhos brilhavam com o entusiasmo de finalmente terem alcançado seu
objetivo — logo agora, que menos contavam com isso.
9

Iul-Theer-Hij observava os prisioneiros quase ininterruptamente. Em dois deles não


havia muita coisa que pudesse ser vista. Estavam inconscientes, e eram mantidos
artificialmente nesse estado. Possuíam faculdades parapsíquicas, e só mesmo o sol
vermelho seria capaz de dizer o que fariam quando recuperassem os sentidos.
Em compensação, os outros dois prisioneiros eram bem interessantes. Vez por outra
conversavam numa língua que o projetor não conseguia traduzir. Apesar disso Iul-Theer-
Hij mandou que a seqüência dos sons fosse gravada em fita, pois esperava que no futuro
esse registro lhe permitisse reconstituir a língua estranha.
De repente um deles teve um acesso de fúria destrutiva. Arrancou as pesadas botas
que trazia nos pés e pôs-se a bater com as mesmas na parede. Apesar do nervosismo, agia
com um método espantoso. Finalmente chegou ao lugar em que estava escondida a tela.
No mesmo instante a imagem projetada no receptor de Iul-Theer-Hij apagou-se.
O mestre da décima nona prudência soltou um chiado de surpresa e mandou que
uma equipe de manutenção consertasse os estragos. Pediu que o grupo se apresentasse a
ele, pois pretendia acompanhá-lo e controlar os prisioneiros de arma em punho, caso
demonstrassem qualquer vontade de fugir. Bem que Iul-Theer-Hij gostaria de encarregar
outra pessoa dessa tarefa, mas ele era o único policial secreto que se encontrava na
estação, com exceção de Jin-Keep-Jin, que depois de quatro décimos de dia de serviços
estafantes estava dormindo nos aposentos situados no pavimento inferior. Por outro lado,
preferia não confiar a incumbência a um piloto ou a um cientista.
Saiu na frente do grupo de quatro pessoas e foi caminhando pelo corredor em cuja
extremidade ficavam as celas dos prisioneiros. Abriu a porta e ficou de arma em punho.
Esperava ver os prisioneiros surpresos com a visita inesperada. Na verdade defrontou-se
com uma situação bem diferente.
A primeira coisa que viu foi a cabeça de um ser de sua raça. A mesma precipitou-se
de trás da porta, assim que esta se abriu, e foi seguida por um corpo esbelto, envolto em
vestes incríveis. Iul-Theer-Hij teve a impressão nítida de perigo, mas preferiu não atirar
no homem antes que soubesse o que estava acontecendo.
Com isso decidiu a luta. Sua cabeça estava desprotegida, e as marteladas que o
punho do desconhecido desferiu na mesma fizeram-no recuar para a parede oposta do
corredor. Estonteado, procurou levantar o braço com a arma para atirar, mas nesse
momento foi atingido por outro golpe demolidor na parte lateral do crânio, que o fez
tropeçar para o reino do esquecimento.
Os quatro trabalhadores acompanharam a cena, perplexos e sem compreender o que
estava acontecendo. Quando se recuperaram do susto, o desconhecido já se havia
apoderado da arma de Iul-Theer-Hil e os ameaçava com a mesma, obrigando-os a
entrarem na cela. Não pertenciam às classe privilegiada dos gatasenses, e por isso não
usavam envoltórios protetores. Por outro lado, não tinham a menor dúvida de que o
desconhecido atiraria se não fizessem o que dizia.
Os dois terranos levaram pouco mais de trinta segundos para dominar a situação.
Fora Torav que colocara o policial secreto fora de ação. Entregou a arma a Hauka, para
que o mesmo mantivesse os quatro trabalhadores sob controle. Enquanto isso tirou o
uniforme do blue inconsciente e colocou-o no próprio corpo. Era um pouco apertado, mas
Torav teve a impressão de que agüentaria no interior do mesmo.
Os planos para aquilo que seria feito depois da libertação já haviam sido elaborados.
Os quatro trabalhadores foram deixados na cela. Tiraram-lhes as ferramentas. Não
poderiam criar mais problemas. Se Hauka não conseguira abrir a porta com as mãos
desguarnecidas, muito menos eles. Torav e Hauka pegaram o blue inconsciente e
levaram-no ao lugar do qual tinha vindo, a julgar pelo ruído dos passos.
Por todos os lados reinava um estranho silêncio. Torav não esperara que no interior
do edifício houvesse uma atividade muito intensa, pois nesse caso teriam ouvido alguma
coisa no interior da cela. Mas o silêncio total deixou-o desconfiado. A posição de
comando parecia estar desguarnecida.
Colocaram o blue inconsciente no chão e Torav começou a abrir algumas portas de
ambos os lados do corredor. As salas que ficavam atrás dessas portas serviam à
administração. Havia escrivaninhas redondas e armários giratórios que também eram
redondos. Nestes últimos estavam guardados documentos e algumas calculadoras
automáticas. Em nenhuma das salas encontraram um único blue que fosse.
A sala que ficava atrás da sexta porta era bem diferente das que Torav havia visto.
Parecia uma sala de comando. As paredes estavam cobertas por painéis abaulados nos
quais se viam botões, chaves e instrumentos. No centro da sala havia uma mesa redonda,
também coberta de pequenos painéis, que parecia dominar o ambiente. Não havia
nenhuma janela. Em compensação via-se uma série de telas de imagem.
— É o lugar que procuramos — disse Torav em tom resoluto.
Arrastaram o prisioneiro pela porta e olharam em torno. Face aos relatórios de Zodi,
possuíam algum conhecimento da técnica de comando dos blues. Mas o equipamento que
se encontrava ali era tão variado e complexo que não seriam capazes de lidar com o
mesmo sem que alguém os orientasse.
Torav apontou para Iul-Theer-Hij, que jazia imóvel.
— Acorde-o! — ordenou.
Hauka tentou a sorte. Acariciou a cabeça-bacia, deu pancadinhas suaves nas placas
auditivas, massageou o pescoço em forma de mangueira... e finalmente foi bem-sucedido.
O blue abriu os olhos ovais.
— Pode ouvir-me? — perguntou Torav. Iul não respondeu. Torav puxou a arma e
apontou-a para a cabeça de Iul.
— Pode ouvir-me? — repetiu.
Era apenas um blefe. Não poderia dar-se ao luxo de matar o prisioneiro. Mas Iul não
parecia ter tanta certeza. Respondeu em tom titubeante:
— Sim, eu o ouço, senhor.
— Onde estão os outros prisioneiros?
— Neste mesmo corredor, uma porta antes da sua.
— Muito bem. Onde estão os objetos que nos tiraram?
— Na sala ao lado. — Fez um gesto vagaroso, apontando para uma portinha que
ficava entre dois painéis. Torav fez um sinal para Hauka. Este abriu a porta e voltou
dentro de alguns segundos, com o braço cheio de roupas, correias de prender armas e
instrumentos.
Iul respondeu prontamente a todas as perguntas que lhe foram dirigidas. Torav
descobriu o seguinte: a guarnição do centro de comando era formada por quatorze
homens. Entre estes havia dois policiais secretos, um dos quais era Iul, três cientistas, que
trabalhavam nos laboratórios instalados no subsolo na criação de um novo sistema de
controle de rotas, dois pilotos de espaçonaves que esperavam o momento de entrar em
ação e sete trabalhadores desqualificados. O centro de comando ficava a cerca de cem
quilômetros da cidade de Puhit, na direção sudeste, e o terreno plano que, segundo
supusera Torav, ficava atrás do muro, era um campo de pouco para naves interestelares
das rotas médias. No momento não havia nenhuma nave por lá, e a próxima chegada só
era esperada para dali a oito décimos de dias. O banco de dados eletrônico também ficava
no subsolo. Nele estavam armazenados dados sobre as rotas astronáuticas que levavam de
Apas para todos os mundos secundários do império dos blues e — aqui Iul hesitou pela
primeira vez — para o mundo central, cujo nome era Gatas.
Além do centro de controle em cujo interior se encontravam, havia mais onze. Apas
assumia uma importância especial no grupo dos mundos secundários, motivo por que
possuía um número tão grande de centros de comando e portos espaciais. Normalmente o
tráfego audiovisual entre os diversos centros de comando era insignificante. Não havia
nada sobre que se precisasse conversar. A transferência de alguma nave de um porto para
outro acontecia no máximo uma vez por ano.
“É uma situação ideal”, concluiu Torav. Quase chegava a ser ideal demais! A
guarnição da estação era pouco numerosa, e a estação era fraca. Qualquer intruso poderia
capturá-la com a maior facilidade e controlá-la por vários dias sem que lá fora se
percebesse nada. A situação só se explicava em virtude do auto-isolamento em que os
membros da polícia secreta gatasense costumavam permanecer nos mundos secundários.
Possuíam as armas mais eficientes e só eles usavam revestimento de massa protetora.
Eram odiados, mas não precisavam adotar cautelas especiais, pois ninguém se atreveria a
atacá-los. Além disso controlavam o tráfego interestelar, e se os habitantes de algum
planeta se atrevessem a destruir uma das centrais de controle de tráfego, a maior parte do
prejuízo seria suportada por eles mesmos.
O centro de controle era o objetivo ao qual se dirigiam os anseios do grupo de
comando terrano. Poderiam capturar prisioneiros valiosos. E seria fácil obter informações
sobre os mundos mais importantes dos blues, principalmente sobre o planeta central
Gatas. No fundo só havia um problema: os prisioneiros e as informações teriam de ser
levados são e salvos para bordo da Kopenhagen.
Torav Drohner não acreditava que isso fosse muito difícil. Mas não demoraria a
descobrir que neste ponto estava enganado...
***
A decolagem da Kopenhagen e o início do bombardeio quase foram simultâneos. A
nave acelerou ao máximo ao sair do buraco, e no mesmo instante os campos protetores se
iluminaram sob a ação dos primeiros impactos.
Erin Loschmidt não pretendia envolver-se numa luta com os gatasenses. Acelerando
constantemente, a Kopenhagen subiu ao céu. Erin regulou a rota de tal maneira que a
nave passou a oeste das unidades atacantes.
Embaixo deles o deserto começou a ferver. No lugar em que há uma fração de
segundo ainda se via o buraco, via-se agora o cogumelo luminoso de uma explosão
nuclear. Outro cogumelo, formado por vapores, subiu ao céu, e uma arrasadora
tempestade de areia varreu todo o deserto.
A tripulação não tivera tempo para recolher o equipamento que fora descarregado.
Lá embaixo desmanchava-se, na tormenta de fogo desencadeada pelas bombas, a
primeira estação transmissora terrana instalada em solo inimigo, antes que pudesse entrar
em ação. Erin Loschmidt fervia de raiva.
Evidentemente o inimigo notara a decolagem da nave. Suspendeu então o
bombardeio e iniciou a perseguição. Mas Erin não lhe deu nenhuma chance. Quando se
encontrava a cem mil quilômetros de Kohnla, a Kopenhagen penetrou no espaço linear.
Quem olhasse para as telas de imagem das naves gatasenses teria a impressão de
que ela se dissolvera no espaço.
***
Tako Kakuta e Fellmer Lloyd foram libertados de sua cela e levados à sala de
controle. Hauka já havia colocado seu disfarce. Qualquer pessoa que o visse deveria
supor, ao menos no primeiro instante, que era um verdadeiro blue. E Hauka não
permitiria que o fitassem por mais que um instante. Para isso carregava sua arma.
Tako e Fellmer estavam inconscientes. Iul informou que lhes haviam injetado
drogas, para mantê-los permanentemente num sono profundo. Tinham medo de suas
faculdades parapsíquicas.
Tako foi o primeiro a recuperar os sentidos. Estava esgotado e alquebrado em
virtude do choque dos nervos e do estado de inconsciência artificialmente provocado.
Torav expôs-lhe a situação. Afinal, naquele momento Tako era o homem mais importante.
Era o único que poderia trazer o barco espacial que lhes permitiria sair de Apas. Tako
concordou com tudo que lhe propuseram, mas pediu que lhe concedessem pelo menos
trinta minutos, para que pudesse descansar e restaurar as energias. Face à situação de
relativa segurança em que se encontravam, Torav não teve a menor dúvida em concordar
com isso.
Enquanto isso tratou pessoalmente de prender os três cientistas, os dois pilotos e o
agente da polícia secreta que estava dormindo. Iul-Theer-Hij forneceu-lhe uma descrição
detalhada dos recintos do subsolo. Não poderia errar o caminho. E o risco era bastante
reduzido, pois ninguém estava armado, com exceção de Jin-Keep-Jin, o policial.
Durante a ausência de Torav, Hauka, que continuava na sala de controle, cuidou
para que por lá não acontecesse nada de anormal. Não ocultava o fato de que essa tarefa
não lhe era nada simpática. Torav fez o possível para libertá-lo da mesma o quanto antes.
Regressou dentro de vinte minutos. À sua frente vinha um bando de prisioneiros com
cabeça em forma de bacia que, contrariando os hábitos dos blues, mantinham os braços
erguidos e não compreendiam o que estava acontecendo. Jin-Keep-Jin era um dos
membros do bando. Torav o surpreendera enquanto estava dormindo, motivo por que não
tivera nenhum problema.
Por uma questão de cautela os prisioneiros, que eram sete ao todo, foram
amarrados. Para isso Hauka usou pedaços de cabo encontrados num pequeno depósito
que ficava ao lado. No momento ninguém soube dar qualquer informação sobre o
paradeiro dos três trabalhadores restantes. Iul-Theer-Hij acreditava que estivessem
dormindo. De qualquer maneira não representavam nenhum perigo.
Tako Kakuta disse que já estava em condições de trazer o barco espacial. Torav
pediu-lhe que esperasse mais alguns minutos. Antes de mais nada queria informar à
Kopenhagen sobre os últimos acontecimentos e pedir a Erin Loschmidt que se
encontrasse a meio caminho com o barco espacial. Ligou o mini comunicador e chamou
Erin.
Erin não respondeu... Nem Erin, nem qualquer outro tripulante da Kopenhagen.
Torav tentou pela segunda, pela terceira vez.
Depois disso compreendeu que em Kohnla devia ter acontecido alguma coisa que os
planos não previam.
***
Tako estava a caminho. Fellmer Lloyd ainda não se havia recuperado dos efeitos das
drogas; continuava inconsciente. Os prisioneiros mantinham-se quietos. Hauka foi à sala
contígua e constatou que lá fora estava escurecendo.
Torav estava abatido. Durante as últimas horas a esperança e o desespero se haviam
alternado muitas vezes. Por isso já não estava em condições de ficar tranqüilo diante do
golpe que representava o desaparecimento da Kopenhagen. Ali estavam eles e tinham em
mãos sete prisioneiros e todas as informações que o Império Unido poderia desejar, e o
pior: não havia nenhuma nave que pudesse levá-los.
Torav repetiu o chamado de quinze em quinze minutos. Já o fizera três vezes, mas
não recebera resposta. A nave fora destruída, ou então se vira obrigada a abandonar
Kohnla e se recolhera por algum motivo ao espaço linear, provavelmente para escapar a
um grupo de naves gatasenses.
Hauka estava mexendo em alguns painéis de controle. Usou as técnicas que Iul-
Theer-Hij e Jin-Keep-Jin lhe forneceram depois da aplicação de certos procedimentos da
“arte de persuadir”. Conseguiu reproduzir na tela os recintos mais importantes do
edifício. Viu que os outros três trabalhadores realmente estavam dormindo em seus
alojamentos. Também conseguiu fazer um exame meticuloso do pavilhão em que estava
montado o banco eletrônico de dados. Sabia como lidar com os terminais de saída e
descobriu que as informações estavam armazenadas em finíssimos fios de níquel. A
utilização do fio de níquel ferro-magnético, no lugar das fitas usadas pelos terranos, era
uma das peculiaridades da técnica dos blues. O metal era submetido a um processo
especial. O campo magnético exterior permitia o ordenamento dos micro-setores da
estrutura metálica em diversas direções. Cada um desses ordenamentos direcionais
corporificava uma peça de informação. Esse tipo de armazenamento de dados superava o
armazenamento em fita usado nos computadores terranos. No entanto, ficava bem atrás
da técnica do armazenamento em átomos singulares, utilizada em certos aparelhos
especiais de fabricação terrana.
Torav chegou à conclusão de que os fios em que estavam armazenados os dados só
deveriam ser retirados no último instante. Era possível que, face à sua importância, os
bancos de dados estivessem acoplados a algum sistema de alarma de âmbito planetário.
Era bem verdade que Iul-Theer-Hij negava que fosse assim. Mas Torav não queria
assumir o menor risco. Preferia que o alarma só entrasse em funcionamento quando
tivesse uma chance razoável de escapar são e salvo às conseqüências do mesmo.
Enquanto Hauka se mantinha ocupado com suas brincadeiras técnicas e Torav
estava absorto em seus pensamentos ouviram de repente um gemido baixo. Já haviam
desligado seus projetores, pois não havia mais ninguém que devesse ser enganado sobre
sua verdadeira identidade. Além disso, era preferível que, ao despertar, Fellmer Lloyd se
deparasse com alguns rostos conhecidos.
E o gemido realmente partira de Fellmer, que estava recuperando os sentidos. Torav
agachou-se a seu lado e esperou que abrisse os olhos.
Fellmer sentiu-se tão fraco e abatido como Tako se sentira ao despertar. Torav
ergueu-o cautelosamente, encostou-o a um painel de comando e informou-o sobre o que
acontecera nesse meio tempo. A exaltação que o relato produziu no mutante parecia
acelerar o processo de recuperação. Assim que Torav concluiu sua exposição, Fellmer
conseguiu pôr-se de pé sem que ninguém o ajudasse.
— Alguma coisa está errada — constatou.
Olhou em torno e examinou os prisioneiros. Parecia tão desperto e ativo que dava a
impressão de nunca ter sido atingido por um raio de choque.
— Um instante, Torav! — disse e comprimiu as mãos contra as têmporas. — Não
demorarei a descobrir.
Torav também se levantou. O comportamento de Fellmer deixou-o nervoso. A única
conclusão que se poderia tirar do mesmo era que o mutante descobrira alguma coisa nos
pensamentos dos prisioneiros, que não correspondia às informações prestadas pelos
mesmos.
Finalmente Fellmer tirou as mãos da cabeça. Virou-se e fitou Torav.
— Eles mentiram — disse em tom sério. — Dentro de meia hora uma grande
espaçonave da frota gatasense deverá pousar aqui.
10

Então fora por isso que Iul se dispusera a responder tão prontamente a todas as
perguntas que lhe haviam sido formuladas. E também fora por isso que nenhum dos
prisioneiros oferecera a menor resistência. Todos sabiam que estavam para ser salvos.
Afinal, não era apenas a espaçonave que se preparava para pousar. Sem dúvida a mesma
notara a falta da costumeira indicação de rota e alarmara os outros centros de controle de
Apas. A essa hora centenas de agentes da polícia secreta estavam a caminho do centro de
controle situado a sudeste de Puhit. Além disso, havia a tripulação da grande espaçonave,
cujo pouso naturalmente seria retardado pela falta de indicação de rota, mas que nem por
isso deixaria de descer no planeta.
“Quer dizer que se encontravam numa armadilha construída por eles mesmos.”
Torav levou alguns minutos para reprimir o primeiro acesso de raiva cega que, se não se
controlasse, provavelmente teria custado a vida a Iul-Theer-Hij.
Depois disso começou a agir. Chamou Tako. Este já encontrara o barco espacial e o
preparava para a decolagem. O veículo estava intacto. Os blues não haviam descoberto
seu esconderijo. Torav preveniu o mutante do perigo que os ameaçava e lhe pediu que
trouxesse o barco o mais depressa possível. Só havia duas possibilidades: ou abandonar o
centro de controle antes da chegada da grande espaçonave, ou então teriam de lutar para
abrir caminho para fora do centro controle.
Torav não se iludiu quanto às chances que teriam nesta última hipótese: quase
nenhuma. O centro de controle não possuía qualquer tipo de armamento. O barco espacial
dispunha de um canhão térmico e de algumas bombas nucleares com o respectivo de
arremesso, mas diante de uma belo-nave galáctica, revestida com uma camada
impenetrável de molkex, isso representava mais ou menos a mesma coisa que um
canivete diante de um elefante.
Torav dirigiu outra mensagem à Kopenhagen. Ainda desta vez não obteve resposta.
— Talvez pudéssemos demorá-los um pouco — disse Fellmer de repente.
— Ótimo — respondeu Hauka em tom irônico. — Quando a nave pousar, saio e
digo: “Por aqui tudo em ordem. Não sou nenhum terrano, apenas usei um disfarce.
Procurem dar o fora o quanto antes, pois não os queremos por aqui.” Então, que tal?
Fellmer fitou-o com uma expressão pensativa e continuou calmo. Depois de algum
tempo disse:
— Se não tiver uma idéia brilhante é melhor calar a boca. Entendido?
Hauka pretendeu dar uma resposta áspera. Mas houve uma coisa nos olhos de
Fellmer que o convenceu de que mesmo com uma boca ligeira seria difícil enfrentar
quatrocentos anos de experiência acumulada.
— Precisamos tentar, Torav — repetiu o mutante. — Diga a Tako que o barco
deverá pousar junto ao muro, do lado sul do pátio. A tripulação da espaçonave não deve
ver o barco, pois neste caso será o fim.
Hauka caminhou pesadamente em direção aos painéis de controle. Ligou a única
tela grande que mostrava os arredores do centro de controle. O quadro deveria ser
crepuscular, pois o sol já se pusera.
No entanto, a tela iluminou-se com uma enorme torrente de luz despejada pelos
propulsores da espaçonave que estava pousando!...
***
Dentro de dez minutos, ou quinze no máximo, estaria firmemente ancorada sobre as
colunas de apoio e desembarcaria meia dúzia de veículos de esteira cheios de tripulantes.
Então começariam os problemas.
Torav transmitiu suas instruções às pressas. Fellmer e Hauka deveriam conduzir os
prisioneiros o mais depressa possível até a saída sul do edifício. Fellmer ficaria lá para
cuidar deles, até que Tako chegasse com o barco. Enquanto isso Hauka retiraria os fios de
armazenagem de dados dos bancos eletrônicos. Torav permaneceria por enquanto na sala
de comando, e resolveu que um dos prisioneiros ficaria com ele: Jin-Keep-Jin, o agente
da polícia secreta.
Torav fez mais uma tentativa de entrar em contato com a Kopenhagen. Fellmer e
Hauka já haviam levado os prisioneiros. Já não tinha muita esperança. No seu íntimo
tinha certeza de que os gatasenses haviam descoberto e destruído o cruzador.
Mas verificou que o receio fora prematuro. Desta vez a Kopenhagen respondeu
prontamente. O próprio Erin Loschmidt estava no aparelho. Torav relatou a situação, não
formulando qualquer pergunta sobre o que teria acontecido a Erin neste meio tempo.
Limitou-se a indagar se Erin poderia assumir o risco de levar a Kopenhagen de volta na
direção de Apas e manter-se em posição de espera a uma distância não superior a
quinhentos mil quilômetros. A resposta de Erin foi afirmativa. Com isso, para Torav, o
caso por enquanto estava liquidado. Dali em diante só tinha uma preocupação: levar o
barco espacial de sua preciosa carga sãos e salvos ao ponto de encontro.
Já havia colocado novamente o projetor de camuflagem. Jin-Keep-Jin ainda estava
algemado. Mas para aquilo que Torav pretendia fazer com ele o blue precisaria ter os
braços livres.
Torav pegou a arma, girou-a até que ficasse numa posição em que o gatasense
pudesse ver o botão de acionamento e disse:
— Daqui em diante, meu amigo, você fará exatamente o que eu disser. Já conhece
minha situação. Sabe que não titubearei em atirar assim que deixar de cumprir minhas
ordens. Prometo-lhe que em meu mundo terá um tratamento decente como prisioneiro e
que depois de certo tempo poderá voltar para Apas ou Gatas. Quer dizer que pode
escolher entre uma morte inútil e uma vida extremamente útil.
Jin balançou a cabeça, para dar a entender que havia compreendido as palavras de
Torav e que cumpriria suas ordens. Antes disso Torav não tivera tanta certeza. Desde o
início Jin-Keep-Jin dera a impressão de ter caráter mais firme e maior consciência do
dever que Iul-Theer-Hij. Era parecido a um dos funcionários teimosos que guarneciam os
postos avançados do Império Unido, que preferiam deixar que lhes arrancassem a cabeça
a fazer a menor concessão ao inimigo. Preferira ficar com Jin, porque Iul era um
funcionário mais graduado e por isso deveria ser capaz de fornecer mais informações.
Não havia a menor certeza de que a pessoa que ficasse com ele — e naturalmente
também ele mesmo — conseguisse fugir.
— Entre em contato com o comandante da nave — ordenou Torav. — Diga-lhe que
no interior do centro de comando estão alguns estranhos, que capturaram vários reféns.
Diga que a nave deve ficar lá fora e que os tripulantes não devem mexer-se enquanto a
situação no interior do centro de comando não for esclarecida.
Colocou-se ao lado de Jin e encostou a arma à sua têmpora.
O policial começou a manipular os botões e chaves. Uma tela pequena iluminou-se.
Mostrou uma sala que parecia semicircular, e que estava tão recheada de estranhos
aparelhos e peças de mobília que Torav teve dificuldade em imaginar que aquilo pudesse
ser a sala de comando de uma espaçonave. Uma cabeça de bacia apareceu na tela. Jin
começou a falar. O desconhecido interrompeu-o depois das primeiras palavras. Mas Jin
fez com que ele o ouvisse e expôs a história que Torav lhe mandara contar de forma
completa e absolutamente verossímil. O comandante da nave demonstrou compreensão
pela situação do centro de comando e prometeu aguardar. Ofereceu o envio de um barco
espacial com alguns soldados, mas Jin recusou sob a alegação de que os estranhos
poderiam notar a aproximação do barco e usar o fato como pretexto para matar os reféns.
Este argumento também foi aceito sem discussão.
Por alguns minutos reinou um silêncio profundo. Em meio a esse silêncio Tako
Kakuta pousou com o barco espacial. Fellmer Lloyd manteve-o a par sobre os
acontecimentos dos últimos minutos, no que tinha conhecimento dos mesmos. Tako fez a
aproximação pelo lado norte, passou pouco acima do muro e pousou no lado sul.
Provavelmente o nervosismo que reinou nesses momentos a bordo da nave gatasense
ajudou-o a não ser descoberto.
A última fase da fuga teve início. Neste momento, Torav refletiu: “Fellmer e Hauka
estão colocando os prisioneiros e os fios de armazenamento de dados a bordo do barco
espacial. Dali a oito ou dez minutos o mesmo estará pronto para decolar.”
“Oito ou dez minutos”, pensou Torav, bastante preocupado. “Tomara que consiga
agüentá-los até lá.”
Jin fitou-o de lado. Daria os vencimentos de um ano para saber o que se passa no
cérebro desse blue. Será que realmente era o prisioneiro inofensivo e submisso que fingia
ser?
A tela iluminou-se. O comandante da espaçonave estava chamando.
— Acabo de receber notícia — ouviu Torav — de que alguns contingentes de forças
policiais se aproximam, vindos do norte e do oeste. Foram alarmados por mim, quando
verifiquei que minha nave não estava recebendo o raio vetor. Acha que também devem
ser detidas?
Jin respondeu sem consultar Torav:
— Devem. Diga-lhes, senhor, que devem esperar. Daqui a pouco a situação no
centro de comando estará esclarecida.
Torav fitou atentamente a tela, a fim de observar a reação do gatasense. Será que o
mesmo estava disposto a acreditar nas tolices que Jin lhe contava?
A decisão foi tomada bem a seu lado. Por segundos sentira-se seguro demais. Por
um breve instante confiou na sua capacidade de avaliar Jin. Por um lapso muito breve de
toda a operação Torav Drohner concentrou sua atenção na trilha errada.
Uma sombra precipitou-se sobre ele. Uma pancada incrivelmente forte atingiu-o no
peito e deixou-o sem fôlego. Foi o crânio de Jin que o atingiu. Caiu ao chão. Quase no
subconsciente, ouviu o gatasense vociferar na tela, enquanto acompanhava a luta.
Torav sentiu a pressão forte dos dedos de Jin no braço direito. O blue tentava
apoderar-se da arma. Torav lutou contra a falta de ar e os anéis coloridos que executavam
uma dança louca diante de seus olhos. Ouviu Jin gritar:
— É tudo mentira, senhor! Este é um dos estranhos. Prenderam sete dos nossos e
estão prestes a fugir. Ajude-nos, senhor!
Finalmente Torav afastou-o com um empurrão. Conseguiu libertar o braço direito.
Pôs-se de pé, cambaleante. Jin estava de pé ao seu lado, com as pernas muito afastadas e
encostado a um dos painéis. A mão esquerda segurava uma pesada chave.
— É possível que os outros escapem — chiou — mas o senhor não. Cortarei a
corrente que abre as portas.
Torav ergueu o braço como se fosse um relâmpago. Enquanto fazia o movimento, o
projetor, que durante a luta saíra parcialmente do bolso, caiu ao chão. Dali em diante as
palavras de Jin transformaram-se num chilrear rouco.
Jin, porém, enganara-se quanto à capacidade de reação do terrano. Enquanto,
exausto e sem fôlego, procurava mover a chave que cortaria todo o suprimento de
eletricidade, Torav atirou.
***
O barco estava parado lá fora, a uma distância infinitamente grande de duzentos
metros. Não se via o menor sinal de Tako, Hauka e Fellmer. Em compensação Torav via
os gatasenses. Pequenos planadores em forma de bacia passaram por cima do muro. A
advertência de Jin pusera-os em polvorosa. Vinham do sul, e só por milagre ainda não
haviam descoberto o veículo que se mantinha à espera.
Torav saiu correndo. A maior parte do corpo estava protegida pelo revestimento de
molkex que tirara de Iul. Só a cabeça permanecia de fora. Torav sabia que praticamente
não tinha a menor chance. Se os planadores começassem a disparar, seus ocupantes
fariam pontaria sobre o homem que viam à sua frente, e não sobre determinada parte de
seu corpo.
O ar iluminou-se quando uma salva de tiros de radiações atingiu o chão bem à sua
frente e produziu um forte chiado. Uma lufada de ar quente deixou-o sem fôlego e atirou-
o para o lado. Caiu, fez um rolamento e voltou a pôr-se de pé. A mão direita segurava
firmemente a arma, para o caso de que alguém procurasse interpor-se em seu caminho.
Enquanto corria praguejava por estar numa situação tão desesperadora. Os planadores
estavam bem em cima de sua cabeça. Haviam-no descoberto e desciam em círculo.
Começou a correr em ziguezague. Os tiros chiavam à sua frente, atrás dele, em
todas as direções. Foi atingido duas vezes sobre o corpo. Mas o único efeito dos impactos
consistiu em atirá-lo para o lado, fazendo com que perdesse o equilíbrio. A blindagem de
molkex era impenetrável.
Faltavam cem metros para chegar ao barco. Nunca conseguiria. Já estava cercado
pelas salvas. Bastaria estreitar o círculo, e estaria liquidado. E também estaria liquidado
se saísse correndo para a frente. A única coisa que lhe restava era correr em ziguezague
no interior do círculo.
Para quê? Não havia a menor esperança.
A onda de pressão provocada pela explosão de uma salva atirou-o ao chão. Fez um
grande esforço e conseguiu erguer-se de joelhos. Permaneceu nessa posição até que os
pulmões martirizados conseguissem respirar de novo.
“Tako, dê o fora! Fellmer, você me ouve. Diga a Tako que dê o fora. A Kopenhagen
está à sua espera!”
Em toda vida nunca pensara com tamanho fervor. Fellmer, que era telepata, não
poderia deixar de entendê-lo.
E realmente entendeu. Mas o resultado foi bem diferente do que Torav esperava.
De repente o céu iluminou-se num branco ofuscante. O ribombo de uma forte
explosão desceu do alto. Peças de metal incandescente chiavam e resfolegavam ao atingir
o chão perto de Torav, que se levantou de um salto, avançou cambaleante... e viu outra
salva partir do barco que tinha a forma de um torpedo. Mais uma vez ouviu um estrondo
bem acima de sua cabeça. O tiro atingiu o alvo. Porém, uma coisa quente e dolorida
atingiu-o no crânio. Soltou um grito, sacudiu a cabeça e continuou a correr. O barco
espacial desprendeu-se do solo e veio em sua direção. Torav ouviu uma série de uivos e
chiados penetrantes à sua retaguarda. Eram os contingentes policiais que acabavam de
chegar e estavam entrando na luta.
O terceiro planador foi atingido. Torav ouviu um chiado vindo do alto. Eram os
outros veículos que se afastavam. A superioridade do poder de fogo dos terranos deixara-
os abalados. Em compensação os policiais chegavam cada vez mais perto. Torav ouviu-os
logo atrás de suas costas. Os tiros de radiações chiavam em torno dele. Não parou. Seria
inútil responder ao fogo. Os corpos dos perseguidores estavam totalmente cobertos de
molkex.
O barco espacial aproximou-se. Cresceu à frente de Torav sob a forma de uma
sombra compacta e gigantesca. Torav caiu para a frente, apoiou-se no metal frio e
esperou um segundo para aspirar o ar. Uma abertura iluminada surgiu à sua frente.
Segurou a borda inferior da mesma. Procurou puxar o corpo para cima, mas os músculos
amoleceram. Alguns pares de braços robustos estenderam-se, vindos de cima, e
arrastaram-no para o interior da pequena eclusa. A escotilha fechou-se imediatamente.
Torav deixou-se cair e estendeu-se no chão. Não houve nenhum golpe, nenhum
solavanco, mas assim mesmo percebeu que o barco estava sendo acelerado ao máximo.
A sensação de finalmente estar em segurança produziu o efeito de um choque
psicológico. Mais tarde se lembraria de que tentou pôr-se de pé. Mas dali em diante todas
as lembranças se apagaram.
Nas horas que se seguiram só acordou uma vez. Estava deitado numa cama
confortável e ouviu o rugido dos propulsores, vindo de longe. Parecia que o barco
passava por um túnel estreito. Por algum tempo foi incapaz de descobrir a causa do ruído.
Mas logo ouviu o ruído metálico dos suportes do hangar e compreendeu que a K-1 estava
novamente em segurança, a bordo da Kopenhagen.
***
Trecho extraído do boletim diário de 11 de março de 2.321, dirigido pelo
Administrador Geral aos membros do Grupo Administrativo Superior:
“O cruzador Kopenhagen regressou são e salvo de sua última missão. Ver grupo 12,
número 2 do registro STR,
“A missão rendeu seis prisioneiros: um agente da polícia secreta gatasense, dois
pilotos espaciais e três cientistas de Apas, que trabalhavam para o governo central
gatasense. Além disso, a equipe conseguiu apoderar-se de numerosas fitas de
armazenagem com dados astronáuticos. Em virtude de uma série de circunstâncias
infelizes a missão não deixou de ser notada pelo inimigo.
“No momento o grande centro de computação está interpretando os dados
armazenados nas fitas. Temos certeza quase absoluta de que as mesmas nos
proporcionarão dados sobre a posição exata do mundo central denominado Gatas.
“O interrogatório dos prisioneiros também está em andamento. Por enquanto o
resultado mais importante desse interrogatório é a confirmação de nossa suposição de que
oficialmente a extração e o processamento do molkex é um monopólio do mundo central
Gatas. Em todo o império gatasense não existe outro lugar em que essa matéria-prima
possa ser utilizada. Além dos seis blues, que oficialmente são considerados prisioneiros, a
Kopenhagen trouxe um sétimo ser dessa raça que, segundo informa o imediato da nave,
foi espontaneamente para bordo e trouxe informações sobre um perigo iminente, evitando
graves danos para o cruzador e sua tripulação.”
***
**
*

Os blues têm suas desavenças internas,


mas sempre que se vêem diante de um
estranho, eles se unem.
Esta foi uma das informações trazidas
pelos homens que viajaram na Kopenhagen.
Por isso Perry Rhodan terá de procurar um
novo meio de aproximar-se dos blues.
Em junho de 2.327 chega a hora em que
isso deverá ser feito. A Estação Leste 1 está
preparada. É o trampolim para A Armadilha
de Gelo, título do próximo volume da série
Perry Rhodan.

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