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o Sopro Divino:

Animação, Bonecoe Dramaturgia

Felisberto Sabinoda Costa

ntre os afrescosque se encontram no teto animação.A representaçãopictórica é síntesee


da CapelaSistina,destaca-se um que detém abundância, qualidades que configuram tam-
nosso olhar, que apela ao toque, e que foi bém o oficio do ator-manipulador ou anima-
nomeadoA Criaçãode Adão. Nele se vê a dor em toda a sua plasticidade.Uma imagem
figura divina estendendosua mão para um eficazconverte-seem estrutura dramática.
homem localizadonum plano mais abaixo.Tra- O encontro dasduasmãosrevelaespírito
ta-sede Adão. Michelângelo representou-ocom e matéria, portanto, conflito. A mão do criador
o rosto em perfil, retribuindo o olhar signifi~ é o elemento que se destacado contorno cere-
cante de Jeová,no qual parecemespelhar-seas bral, povoadocom anjos-personagens em latên-
intenções do Deus. Adão está despido, corpo cia. Portadorado sopro divino, chamapara si a
apoiado no chão, ressaltando-seas articulações criatura. Nota~se,contudo, que o pintor não se
e a forma corpórea,dotada de uma musculatu- limitou a mostrar-nosapenasa mão do criador,
ra definida. A sua mão toca o dedo do criador, mas todo o seu corpo, que participa de igual
cujas vestesparecemflutuar em companhia de modo do ato da manipulação-animaçãodo ho-
anjos celestiais. Em suma, o pintor tem nas mem. Deve-seentendermanipular, em seusen-
mãos o instante em que Adão é "animado" por tido etimológico de engendrar:gera1;produzi1;
Deus. dar origem(Cunha, 1982: 298-498). Em suma:
Entre as várias leituras possíveis dessa animar. Deus está animando o primeiro ho-
obra, evidencio~sque dizem respeitoao conhe- mem, ou seja,preenchendo~ocom alma, espiri-
cimento, à iluminação e à ânima ali configura- to, mente,valo1;coragemeforça (Cunha, 1982:
dos. Percebe~se ao fundo da criatura divina uma 82). Adão está nu, prostrado como "objeto",
forma ligeiramente oblonga, assemelhadaao tornando-se"sujeito dramático" atravésda mão
cérebrohumano. A paisagemcircundante con- de Deus. Dramático no sentido grego do ter-
tém somenteos elementosessenciais ao quadro. mo: açãopresente,o ser enquanto sendo com-
Analisada sob a ótica do teatro de animação,a partilhado por atorese público. Nesta perspec-
cena se ilumina. A imagem idealizadapor Mi~ tiva, Deus é ator, "agentedo ato", corporificado
chelângelo demonstra a criação em seu mais no personagemJeová.É também manipulador
amplo sentido, em particular, no próprio ato da ou animador, pois engendrao homem. Assim,

FelisbertoSabinoda Costaé professordo DepartamentodeArtesCênicasda ECA~USP;

111 I.
t
, o SoproDivino:Animação,Bonecoe Dramaturgia

ator e mànipulador são conceitos que não de- possatrabalhar melhor a sua ausência. É no apa-
vem ser pensados separadamente, uma vez que rente paradoxo ausência-presença que se funda-
para manipular/animar é necessário ser Deus, menta o trabalho corporal do ator enquanto
isto é, ator1. animador/manipulador. Corpo é volume, con-
Pensando-se na correspondência Deus- forme podemos constatar em Michelângelo: As
homem, exposta no afresco, nossa proposta é suasfiguras têm três dimensões...Adão torcendo a
tomá-Ia como paradigma para a construção da bacia, volta-se com elegância; os músculoscontra-
correlação animador-objeto Destarte, algumas em-seamplamente, tendo certos volumessido va-
questõespráticas podem ser lançadas a respeito lorizados,para dar uma melhor impressãode leve-
de manipulação, bonec%bjeto e dramaturgia. za natural... o corpo torna-separa ele uma lingua-
gem, não copia, cria (Upjohn, 1965: 125-6).
Assim, o ator-manipulador experiencia em seu
A Arte da Animação no Teatro corpo os possíveis movimentos que realizará
com o boneco. É necessário trabalhar as partes
Ainda com o foco na visão luminosa da posteriores, anteriores e laterais do corpo, bem
cena, começamos por destacar nela o papel dos como a atuação da força da gravidade. Cabe ao
corpos presentes. Experiências com o corpo são ator-animador, vencer a força da gravidade que
essenciaisao ator-manipulador e podem ser di- tende a desalinhar o boneco e, mediante o bi-
vididas em corpo-totalidade e corpo-segmento. nômio equilíbrio-desequilíbrio, lidar com a in-
Considerando que o homem é feito à imagem fluência da força-peso gravitacional. Entre os
e semelhança do seu criador, postulamos que o fatores envolvidos para mantermo-nos de pé,
mesmo fenômeno ocorre com o boneco em re- está inclusa a noção de eixo corporal, que será
lação ao homem. O boneco é constituído de transferida ao boneco quando da sua animação.
partes que configuram uma totalidade, tal qual Na manipulação, manter a verticalidade não sig-
o seu criador. Enquanto manipulador, o ator nifica deixá-Io ereto como um pedaço de ma-
compartilha com o boneco sua experiência de deira, mas trabalhar o eixo do boneco ao andar,
vida, doando-lhe os seus atributos vitais. levantar, correr, deitar etc. O eixo auxilia a man-
No afresco de Michelângelo, o corpo di- ter a ilusão de vida.
vino está presente, e o que atrai nosso olhar é a É importante que o ator-manipulado r te-
representaçãodo instante mítico da criação. No nha consciência da sua respiração e de como é
palco, a presença do criador só pode ser entre- necessáriaa transferência desseconceito ao bo-
vista no corpo animado do boneco - O ator- neco. Mesmo parado, o boneco precisa ter vida,
manipulado r, ao experenciar processos cinesté- caso contrário serásomente um objeto inerte em
sicosem seu próprio corpo -liberdades e restri- cena. Para o ator, a respiração é um movimento
çõesdos movimentos - estará compreendendo vitalício contínuo, embora possa haver algum
o universo cinético da sua criatura: o boneco. controle; entretanto, para o boneco, é mister o
Havendo cumplicidade, a doação torna-se mais ator-manipulador torná-Ia presente durante o
rica. É necessário ao ator-manipulado r cons- processo de manipulação, configurando-a num
cientizar-se da presença do seu corpo, para que movimento sutil. Além de respirar, o boneco

1 Existem algumas práticas atomísticasem que a correlaçãoator e manipulador tendem a uma concep-
ção mais diluída destesdois fatores, como, por exemplo, o teatro japonês Bunraku e algumasencena-
çõesdo Grupo Giramundo.

.
~
sala preta

necessitapulsar como uma estrela,emitindo luz ção.Embora não sejaa única possibilidadepara
!1j: e irradiando existência.Parao ator, o impulso é animar um objeto, a mão desempenhaum pa-
:~:~-:; a energiainterna da qual seorigina o movimen- pel fundamental.
J
., ~~"i~:~ to, e é essaidéiaquedeveestarpresentena ma- Acredito ser um suportevaliosopara o
~~:}-;-c nipulação do boneco, possibilitando a quem o ator-manipulador o conhecimento do Método
~C"'~:Y-.c observaacreditarna suarealidadefísica.Seo ato Laban2.Conforme ele observa:talvez não seja
~1;:,~;- de criaçãosedá, a platéia compraz-seem perce- muito inusitadointroduzir aqui a idéia desepen-
~~fc:, -.c ber o momento do impulso e a efetivaçãodo saremtermosde movimento,emoposição a sepen-
~c~c : gesto. É um instante mágico porque pleno de sar empalavras... estetipo depensamentonão se
~.11 vida. As experiênciasque têm como foco o cor- prestaà orientaçãono mundo exterio?;comoofaz
~J po do ator-manipulador sãoúteis quanto a cla- opensamento atravésdaspalavras,masantesaper-
;
:§ rezae precisãodos movimentos porque permi- feiçoa a orientaçãodo homemem seumundo in-
~ li tem-no compreenderque a manipulaçãode um terio?;onde continuamenteos impulsossurgeme
" "' bonecopode ter como referenciala estruturado buscamuma vdlvula de escape, nofaze?;no repre-
-;j .'"
~ t:1 corpo humano, sem que se constitua uma sim- sentare no dançar (Laban, 1978: 42). Esserefe-
~ ~ pIescópia de ~eusmov~~en:os.O ~rabalhocor- re~cial ~ útil ao ator que tra~alhacon: teatro de
;~~
~ poral proporCIonaa utIlIzaçaodo tonus adequa- ammaçao,uma vez que movImentoe Imagemfa-
01 11 do à manipulação. Muitos atores-manipulado- zemo teatrode bonecos (Amaral, 1993: 73).
, c!
~ '1 res acabamcolocando tensãodesnecessária nas No teatro de animação,o objeto plástico
i
J ~ mãosou em outras partesdo corpo, emperran- permeia a interface ator-platéia. Há de se con-
~ !j do a fluidezdosseusmovimentose, consequen- siderara relevância
dessesignovisualrelaciona-
. ~,
c
temente, os do boneco. . da à neutralid~de~doator-animador. ? objetoé
.. :'~ Além do trabalho com o corpo-totalIda- que faz a medIaçaoentre o ator-mampulador e
l de, é aconselháveldedicar-seao corpo-segmen- o público. Ele é o foco da ação.Issonão impos-
, tação. O ator-manipuladororganizao seucor- sibilita que em determinadomomentoo ani-
;;
-c-c
po de acordo com a técnicaem questão,poden- mador tome para si essaposição.Em Michelân-
;~,?]~ do expressar-se
num ritmo e manipular o objeto gelo, Deus anima o homem, ato que é direcio-
}~~~ em outro, elaborandodiversasformasde disso- nado a um provávelespectador.Entre estee
~~
,"~ ..c
ciação.O atornecessita
tornaro corpoaptopara Deusinterpõe-se
Adão.
.':;,,':C" a manipulação,qualquer que ela seja.O objeti- O ator-manipulador trabalha com os
~;~ vo d~s~~dinâmica é ex~lorá-Io~isando out:as conceitos de falta e pr~enchim~nto. A? bone-
; :;~ possIbIlIdades de mOVImentaçaoe sensaçao. co, falta a chamaessencIal,ou seja,movImento,
~!
"l,
Segmentaro corpo é direcioná-lo para um de- vida. Ele é o Adão-objeto estendidona monta-
1~! terminado propósito. Neste sentido, é impor- nha. O ator-animador é Jeová, o portador da
" 11 tante observarque: uma derivaçãodevida à di- energia que fluirá pela sua mão animando o

;,; minuição do espaçoforçard a passassemao mimo objeto. Assim, o ator-manipulador lida com o
~ dasmãoseà marionete.~ECOQ, ~987: 20 Des- p~e~n~?imento:Ele é o responsávelpelo "sopro
~ ta forma, pode-seamplIar e reduzIr o campo de dIVInO que anImará o boneco.A centelhaque
:l atuação do corpo como participante na anima- deflagra o processo.

2 Há outros trabalhos corporais bastanteeficazes,como o Ai Ki Do, técnica marcial que envolve harmo-
nia e energiavital, o processodesenvolvidopor KlaussVianna, alguns exercíciospreparat6rios do balé
clássicoentre outros.

!li
o SoproDivino:
~

O ator-manipulador deve observar o boneco. Caso contrário, um ou outro estará


foco-olhardo boneco. O olhar de Adão é preci- morto em cena.
so. No seu perfil, ressalta-setambém o nariz, Em Michelângelo não há gestosdesneces-
queé fundamental no processodo olhar do bo- sários,somenteprecisão.Gestosexatosenrique-
neco.Adão parecemirar o Criador, contrafeito, cem a movimentaçãodo boneco, elesconstitu-
como se soubesseque a vida comporta muitas em dramaturgia. Há de se ter o cuidado com a
atribulações(Upjohn, 1965: 124-5). O olhar simplesilustraçãogestualde um texto por inter-
funciona como um farol, sinalizando o cami- médio do boneco,redundando-senum pleonas-
nho a ser trilhado pela platéia, o terceiro ele- mo involuntário. Em A CriaçãodeAdão, Miche-
mento integrante do fenômeno da animação. lângelo coloca em cenasomenteatoresimpres-
Conforme já observaraStanislavskiem suasex- cindíveis.Não há gratuidadeem suaelaboração.
periênciasrelacionadasao ator: osolhossãoo es- Da mesmaforma, o bonecoé utilizado pela sua
pelhodaalma (Stanislavski,1967: 195). O mes- necessidadee essencialidade. Em cena, ele sur-
mo sepode dizer do olhar do boneco: é o espe- preendecom gestos,situaçõese palavras.
lho da suaânima. Ao ator-manipulador é indispensável
Na técnicajaponesaBunraku, o manipu- experimentar. Michelângelo ousa ao trabalhar
lador-mestre é quem seguraa cabeçado bone- na Capela Sistina: Umfeito ftsico sempreceden-
co.Estaé consideradaa suaparte principal. Em tes,suaconclusãotransformou-ode uma certafor-
Deus,Michelângelo coloca o cérebrona ato da ma, noprimeiro pintor 'moderno:sendoque tan-
'criação. Isto é bastante significativo, pois é o to a concepção quanto a execuçãoeram obra de
ator-manipuladorquem "preenche"a cabeçado uma únicapessoa(Upjohn, 1965: 39). A Cria-
boneco,que não permaneceausente,no senti- çãodo Homem pode ser lida como criaçãodivi-
do de estarlimitado somenteaos movimentos. na e humana, uma vez que Michelângelo é o
O pensamentoconstitui-se num fluxo ininter- criador que dá vida ao toque divino ao repre-
rupto de imagens,conectadoà vida do boneco sentá-Io.Postoque a vida flui num movimento
e dialogandointeriormente com este. contínuo, o mesmo deve se dar com o teatro
Deus e Adão estãosintonizados durante que sefazvida. O ator-animador lida com o im-
o ato da criação. Percebe-seuma sintonia fina ponderável, tomando-o possível,transforman-
entre o sujeito Deus e o objeto Adão. A reci- do o ato de animar numa experiênciaepifânica,
procidadedos olhares é um indício dessarela- consciente de que tudo o que ocorre no mo-
çãocriadorae criativa. Da mesmaforma, o ator- mento é teatro, tão somenteteatro, masanima-
manipulador permanece pari passu com o do, vivo!

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I sala preta

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ReferênciasBibliográficas

AMARAL, Ana Maria. TeatrodeFormasAnimadas.SãoPaulo,Edusp, 1993.


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CUNHA, Antônio Geraldo. Diciondrio Ett'mológicoda Llngua Portuguesa,Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1982.
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GIRAUD, P.A Linguagemdo Corpo.SãoPaulo,Atica, 1993.
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Le Théâtredu Geste.
Paris,Bordas,1987.

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