Professional Documents
Culture Documents
___________________________________________________
Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais e
Ciencia Poítica
SETEMBRO, 2010
1
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em Relações Internacionais e Ciencia Poítica, com especialização em
Ciencia Política, realizada sob a orientação científica de Cristina Montalvão
Sarmento e Lucia Maria Paschoal Guimarães.
2
Dedico este trabalho à memória de Paulo Henrique Machado, professor e historiador
petropolitano, que com seu exemplo desde os tempos da escola, cativou meu primeiro
amor às ciências humanas. Que este singelo registro relembre à família e aos amigos o
grande homem e a referência que ele foi.
3
AGRADECIMENTOS
4
RESUMO
DISSERTAÇÃO
5
ABSTRACT
The paper discusses how the Luso-tropicalismo, although it lost credibility and
ideological expression in the scientific field, contributed decisively to the formation of a
self-image that Brazil and Portugal better review and project.
More than a theory about the relationship between Portugal and the tropics, the
Luso-tropicalismo is in their national imaginary, the experience of Portugal in the world
and the originality and legitimacy of the Brazilian nation.
Freyre's thesis touches so intimately the national identities of both countries and
gives them a unique relevance to the new international situation, which appeared in the
late twentieth century.
The paper argues that the Luso-tropicalismo gained new dimensions, less
explicitly, against the Portuguese colonial period, but in central and salient political and
cultural discourse that is moving the Luso-Brazilian relations and creating a new image
for the foreign policy of both countries.
From this perspective, the Luso-tropicalismo reappears under guise dynamics to
reorient the policy of Portugal and Brazil, serving as a basis for the argument of
rapprochement and cooperation among Lusophone people
DISSERTATION
6
ÍNDICE
Introdução .......................................................................................................................... 09
Considerações Finais..................................................................................................................124
7
Figura I
8
Introdução
1
CABRAL, Thais Pimentel. Gilberto Freyre e as Relações Luso-Brasileiras. Monografia (Graduação em
História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
IFCH/UERJ. Rio de Janeiro, 2007.
9
de Apipucos despertou maior fascinação e vontade de conhecer e entender ainda mais
esse intelectual tão intrigante e polêmico.
De família rica, com laços aristocráticos, Gilberto de Mello Freyre nasceu no
Recife em 15 de março de 1900, filho de D. Francisca de Mello Freyre e do educador,
Juiz de Direito e catedrático de Economia da Faculdade de Direito do Recife Dr.
Alfredo Freyre. Aos 18 anos, foi para os Estados Unidos, estudar na Universidade de
Baylor, onde se formou Bacharel em Artes em 1920, quando partiu para Nova Iorque, a
fim de cursar pós-graduação na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de
Columbia. Retornou ao Brasil em 1924 e entrou em contato com a sociedade intelectual
brasileira. Em 1930, exilou-se na Europa em razão do cargo de oficial de gabinete do
Governador de Pernambuco, Estácio de Albuquerque Coimbra. Na viagem por mar,
tomou o seu primeiro contato com o continente africano, que lhe daria mais subsídios
para a confecção de Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933.
Deputado Federal Constituinte pela União Democrática Nacional (UDN) em
1946, sua vida política foi marcada pela ação contra o racismo. Em 1942, foi preso no
Recife por ter denunciado nazistas e racistas no Brasil. Reagiu à prisão, juntamente com
seu pai – ambos foram soltos no dia seguinte, por interferência do general Góes
Monteiro. Em 1954, apresentou propostas para eliminar as tensões raciais na
Assembléia Geral das Nações Unidas. Freyre foi um homem comum, e um intelectual
versátil, que como estudioso das ciências humanas buscou explicar questões complexas
da natureza do homem.
Este trabalho visa examinar, através de alguns conceitos da Ciência Política e da
História das Idéias Políticas, a cultura política luso-brasileira por meio do luso-
tropicalismo. Os momentos históricos escolhidos foram aqueles do século XX que
demonstraram tensões, interesses nacionais e adaptações políticas que as diferentes
conjunturas implicaram na dinâmica internacional. As décadas de 1930, 1950, 1970 e
1990 foram selecionadas como chaves para observar o desenvolvimento político, as
leituras e as utilizações do luso-tropicalismo. Maior enfoque, contudo, será dado ao
período pós-1970 – as décadas antecedentes serão analisadas para efeitos de
contextualização. O estudo, portanto, centrou-se no corte temporal compreendido entre
1970 e 1990, focalizando algumas situações do alvorecer do século XXI que
evidenciaram alterações na política externa brasileira e portuguesa, principalmente pela
subida ao poder de novos governantes e a institucionalização da Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa.
10
A história do colonialismo português no século XX e do luso-tropicalismo foi
marcada pela evidente polarização ideológica: de um lado, os que se alinhavam ao
regime instituído pelo Estado Novo Português, que resistia às transformações e insistia
na realidade pluricontinental e multirracial da nação portuguesa. De outro, os que se
opunham à ditadura fascista e colonialista existente em Portugal e suas colônias e que,
fortalecidos pela eclosão dos movimentos de libertação nacional dos anos de 1960,
procuravam denunciar a falácia de um colonialismo de cinco séculos e a suposta
continuidade espiritual existente entre a metrópole e os territórios ultramarinos.
De certa maneira, a nova produção bibliográfica, a partir da década de 1990,
pelo distanciamento do tempo histórico, possibilita a superação mitos, estereótipos e
clichês a respeito do luso-tropicalismo na história colonial portuguesa. A nova geração
de pesquisadores tem como representantes, entre outros, os historiadores Hugo Rogelio
Suppo, Cláudia Castelo, Williams da Silva Gonçalves e Adriano Freixo, o antropólogo
Omar Ribeiro Thomaz e o cientistas políticos Waldir Rampinelli e Adriano Moreira.
As fontes analisadas no presente trabalho centram-se em torno das obras coevas
dos principais teóricos da cultura política e da história das idéias políticas, de maneira a
introduzir o luso-tropicalismo nas reflexões almejadas. Ademais, sua natureza
determinou a consulta permanente às obras de Freyre e de alguns autores sobre o tema,
assim como à imprensa e a revistas culturais.
Desse modo, este estudo deseja inquirir como ocorreu a adequação do luso-
tropicalismo em momentos políticos confluentes de Brasil e Portugal na segunda
metade do século XX. Almeja, também, indagar como, durante essas décadas, o luso-
tropicalismo se inseriu nos debates sobre as identidades nacionais, em especial no Brasil
e em Portugal, e direcionou a política dos dois países em relação o Atlântico Sul; como
a falta de um consenso do passado histórico entre os países lusófonos obstrui a
relevância da CPLP; como a relação particular entre Brasil e Portugal, em especial na
política externa dos dois países, demonstra momentos de proximidade e indiferença e
inclusive de certa competição; como a representação luso-tropical reveste o Brasil de
uma singularidade necessária para o exercício de sua liderança no eixo sul; e até que
ponto Portugal recuperou o luso-tropicalismo através da lusofonia, como mediador de
suas antigas colônias e a União Européia.
Os resultados da investigação foram organizados em quatro capítulos. No
primeiro, busca-se entrelaçar o conceito de cultura política, evidenciando suas origens
na Ciência Política, e nos pressupostos e abordagens da História das Idéias Políticas,
11
inserindo neste corpo teórico o luso-tropicalismo como tendência reflexiva da cultura
política luso-brasileira. Já no segundo capítulo, apresenta-se como o luso-tropicalismo
se estruturou, através do percurso intelectual de Gilberto Freyre e das suas principais
obras, que culminaram na formulação da tese luso-tropicalista. Além disso, os
momentos da recepção, apropriação e envolvimento político e ideológico da teoria são
expostos, com o intuito de percebermos o raio de influencia das idéias político-culturais
do luso-tropicalismo na história contemporânea luso-brasileira.
Contextualizando os momentos políticos demarcados, procura-se, no terceiro
capítulo, demonstrar como, na segunda metade do século XX, as relações luso-
brasileiras encontraram no luso-tropicalismo caminho para a continuidade da tradição
política. Mesmo com as alterações na dinâmica dos valores internacionais e com as
mudanças conjunturais em cada país, pode-se perceber como a influência do luso-
tropicalismo se alargou, progressivamente, do campo cultural, para o político e deste
para as mentalidades.
No último capítulo, observa-se que o luso-tropicalismo sofreu momentos de
descrédito e hibernação frente ao advento das independências africanas e das
democracias da chamada “terceira onda” – pelas quais Brasil e Portugal foram
atingidos. De alguma forma, contudo, o luso-tropicalismo enraizou-se, perpetuando-se
numa imagem apreciável à cultura política luso-brasileira, que o reutiliza de maneira
recorrente para interligar a comunidade lusófona nos seus sentidos e representações
históricas. Nessa senda, é interessante não somente expor os diversos aspectos do luso-
tropicalismo, mas, por meio de alguns discursos e falas políticas oficiais, confrontá-los,
de modo a surpreender o vocabulário, as expressões e a linguagem política tributária às
idéias e aos conceitos luso-tropicais.
Neste trabalho, recorre-se, como opção, a abundantes citações de textos, em
muito fiéis à ortografia e aos idiomas originais – compreendendo o universo
diferenciado da língua portuguesa nos quadrantes Brasil, Portugal e África. Além disso,
ressalta-se que a escrita discorre-se em português do Brasil; também como uma
tentativa de buscar um intercâmbio cultural luso-brasileiro. Afinal, apesar da
proximidade histórica e lingüística, as relações entre Brasil e Portugal carecem de
empenho e investimento político. Nesse sentido, a presente iniciativa é emblemática:
uma estudante brasileira, de formação em Portugal no Mestrado em Relações
Internacionais e Ciência Política, curso pelo qual defende esta dissertação, sem qualquer
auxilio ou incentivo de nenhum dos dois governos.
12
Capítulo I
2
PASQUINO, Gianfranco. Curso de Ciência Política. Caiscais: Principia, 2002, p. 13.
3
MALTEZ, Adelino. Sobre a ciência política. Lisboa: Inst. Sup. de Ciências Sociais e Políticas, D. L.,
1994, p. 104.
13
O conceito de cultura política inaugurou uma área de conhecimento da ciência
política a partir do clássico livro de Gabriel Almond e Sidney Verba (1963 [1989]), The
civic culture: political attitudes and democracy in Five countries. Apesar de estudos
anteriores já tangenciarem a cultura política, como destaca Barquero, “(...) embora já
estivessem presentes, no horizonte da política clássica desde os estudos de Platão,
Aristóteles e Sócrates a preocupação com a capacidade política dos cidadãos e seu
papel na sociedade”, 4 a redescoberta desse conceito na década de 1960 está
intimamente atrelada ao surgimento da ciência política como disciplina no século XX.
De acordo com Almond, o avanço na metodologia estatística e das ciências
sociais – que proporcionaram novas possibilidades de estudos focados no indivíduo,
inexistentes ou precárias até então, como o survey –, juntamente com o
desenvolvimento das teorias sociais dos séculos XIX e XX – que concorreram para o
embasamento das pesquisas sobre cultura política a partir de 1960 –, impulsionaram o
início dos estudos de cultura política. A tradição sociológica de Max Weber, Talcott
Parsons e outros, a psicologia social de Lippman, Wallas e Lazarsfeld, bem como a
contribuição de cientistas sociais como Ruth Benedict, Margaret Mead e Harold
Lasswell, contribuíram explicitamente com a fundamentação teórica do conceito de
ciência política que se formava.
Um retorno ao século XIX indica que Alex Tocqueville já teria identificado a
presença de uma cultura cívica participativa, ao observar as peculiaridades da
democracia na América. No entanto, mais tarde, o conceito de cultura cívica ganhou
contribuições da antropologia norte-americana, da “escola da personalidade e cultura” e
foi moldada a teoria do caráter nacional. 5
Na conjuntura política e social vivida pelos autores americanos, a cultura
política assumia um forte viés normativo, tornado-se necessário postular uma relação
causal entre a internalização da cultura política, o comportamento individual, as
características e o modo de operação dos sistemas políticos. Dessa forma, a estrutura
política e suas dimensões resultariam de uma determinada cultura política. Em cada país
prevaleceria um conjunto específico de atitudes e tendências políticas que constituiriam
uma cultura política. As diferentes culturas políticas seriam, portanto, fenômenos
4
BAQUERO, M. Cultura política e democracia: Os desafios das sociedades contemporâneas. Porto
Alegre: Ed UFRGS, 1994, p. 4.
5
KUSCHINIR, Karina & CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: cultura
política e antropologia da política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, nº 24, 1999, p. 230.
14
históricos e sociais; fruto das tradições e representações das instituições políticas e
sociais de cada lugar.
Como bem observa Almond, o conceito de cultura política estava delimitado às
disposições dos cidadãos em relação aos assuntos políticos: “O termo ‘cultura política’
referia-se às orientações especificamente políticas, às atitudes com respeito ao
aparelho político, suas diversas partes e o papel dos cidadãos na vida pública”. 6
Através desse conceito, pretendia-se o afastamento das explicações mais em voga da
ciência política naquela época, ainda presas às origens judicialistas da disciplina e
marcadas por uma forte ênfase no estudo das instituições políticas. Por extensão,
pretendia-se chegar à caracterização daquilo que seria a cultura política de uma nação,
definida pelo mesmo autor como “(...) a distribuição particular de padrões de
orientação política com respeito a objetos políticos entre os membros da nação”. 7 A
partir de então, a ciência política se aproximava das correntes sociológicas e do
comportamentalismo dentro das perspectivas pós-positivista e pós-behaviorista. 8
Os trabalhos sobre cultura política nesse momento centravam-se, sobretudo, na
problemática da estabilidade democrática dos países e no exame das condições culturais
para o estabelecimento da democracia, esta “(...) entendida como o sistema norte-
americano, em contraposição ao socialismo soviético”. 9 Essa nova perspectiva de
análise sobre a cultura política, mais sistemática em relação à abordagem teórica e ao
instrumental metodológico, possibilitou o despontar de uma nova área de estudo na
ciência política: os estudos empíricos de política comparada.
Numa época marcada pela ascensão dos EUA, que assumiam sua posição
hegemônica de modelo político para o mundo, e pelo choque da humanidade frente às
conseqüências dos regimes autoritários e da II Guerra Mundial, os limites entre os
conceitos de cultura política confundem-se com os de cultura cívica. A influência do
contexto gerou uma relação entre “cultura cívica” e democracia, por meio do conceito
de cultura política, em que a principal idéia defendida era a de que a cultura cívica,
como uma forma específica de cultura política, estaria mais propensa ao surgimento e
ao desenvolvimento estável de regimes democráticos. Os teóricos da política comparada
6
ALMOND, G. “The Intellectual History of the Civic Culture Concept”. In: ALMOND, G. & VERBA,
S. The Civic culture revisited. Newbury Park: Sage, 1980, p. 1-32; p. 12.
7
Ibidem, p. 13.
8
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 9.
9
CASTRO, H. C. O. Democracia e mudanças econômicas no Brasil, Argentina e Chile: um estudo
comparativo de cultura política. 2000. 172 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, [2000], p. 17.
15
analisaram o desenvolvimento da política como um processo linear, considerando fases
que teriam um fim político ocidentalizado no capitalismo e na democracia, num
momento oportuno para a consolidação das democracias liberais, então praticadas nos
EUA e nos países europeus.
Para demonstrar isso, Almond e Verba realizaram um estudo em cinco países,
identificando elementos específicos de cultura política que seriam combinações distintas
de três “tipos puros”: a cultura paroquial, a cultura súdita e a cultura participativa. Tais
orientações seriam avaliadas a partir de diferentes fatores políticos, que iriam desde
sentimentos mais genéricos, passando por processos políticos e administrativos,
chegando até o papel do indivíduo.
Conhecida como a corrente “desenvolvimentista” dos estudos políticos, a
pesquisa de Almond e Verba considerava a possibilidade de haver etapas ou níveis no
desenvolvimento político, desde uma “cultura paroquial”, característica de estruturas
políticas tradicionais, passando por uma “cultura súdita”, própria de estruturas políticas
autoritárias, até se tornar uma “cultura ativa”, característica de estruturas liberal-
democráticas. Tal diferenciação gerou grande polêmica, pois a relação de causalidade
entre cultura e estrutura política estabelecia a existência de uma democracia estável ou
não, em determinada sociedade, que estaria condicionada pela sustentação de uma
cultura cívica: “(...) em geral, culturas paroquial, súdita ou participante seriam mais
congruentes, respectivamente, com uma estrutura política tradicional, com uma
estrutura autoritária centralizada e com uma estrutura política democrática”. 10
O arranjo mais adequado ao surgimento e à manutenção estável de um regime
democrático estaria na combinação denominada de cultura cívica, cujos representantes
empíricos mais próximos seriam os Estados Unidos e o Reino Unido. Em 1970, Almond
distinguiu quatro tipos de sistemas políticos com base na qualidade da cultura política:
os sistemas anglo-americanos, os continentais, os pré-industriais e os totalitários. 11
Nesse período, ou seja, por volta da década de 1960, até meados da década de 1970, são
claramente delineadas as linhas fundamentais ao longo das quais viria a seguir a ciência
política: de um lado, a modernização e o desenvolvimento político, de outro, o
empirismo da política comparada.
Após a publicação pioneira, diversos autores passaram a adotar a cultura política
como um referencial teórico e metodológico para o estudo de fenômenos políticos. No
10
ALMOND, G. Op. Cit., p. 20.
11
PASQUINO, Gianfranco. Op. Cit., p. 21.
16
entanto, esse crescimento do campo também foi acompanhado por uma forte onda de
críticas, conforme afirma Castro:
A principal e mais séria crítica diz respeito aos pressupostos da obra The
Civic Culture, ou seja, a postulação de um determinado tipo de cultura
política como requisito necessário e absoluto para a constituição e
consolidação da democracia, no caso, a cultura cívica existente nos Estados
Unidos e na Grã-Bretanha. 12
12
CASTRO, H. C. O. Op. Cit., p. 39.
13
MOISÉS, J. A. Os brasileiros e a democracia. São Paulo: Ática, 1995, p. 93.
17
direção, Lane propunha o uso da categoria de cultura política não como um esquema
classificatório, “(...) mas como um método de análise de certo grupo, tentando articular
um modelo de interpretação da sua rede de crenças”. 14
Mais recentemente, certo número de politólogos tem procurado mostrar a
importância da cultura política contra as abordagens atualmente correntes em termos da
escolha racional. 15 Outros ainda têm tentando conciliar a pesquisa antropológica com o
quadro construtivista utilizado na ciência política contemporânea. 16 De qualquer modo,
nas décadas de 1980 e 1990, a incidência maior de trabalhos de ciência política recaiu
sobre a problemática dos processos de transição dos regimes autoritários, totalitários e
pós-totalitários para regimes democráticos, um setor de grande interesse analítico e
político, com contributos por vezes esclarecedores, como O’Donnel, Schmitter e
Whitehead (1986); Gunther, Diamandorous e Puhle (1995); Linz e Stepan (1996); Rose,
Misher e Haerpfer (1998).
Deve-se ter em vista que é inerente a toda a ciência, independente do ramo a
qual pertence, passar por marchas de construção e reconstrução de suas bases; teorias,
abordagens e métodos que evidenciam as transformações e anseios humanos ao longo
do tempo. De acordo com Pasquino:
(...) como fez notar recentemente com alguma amargura o próprio Almond
(1990), nem mesmo as teorizações mais originais deviam deixar de
reconhecer os méritos dos precursores, de se confrontar com as teorias que as
precedem e de aspirar ao crescimento da ciência política por meio de um
processo de crítica e revisão, que não de esquecimento, de tudo quanto foi
anteriormente feito e escrito. 17
14
RENNÓ, L. “Teoria da Cultura Política: Vícios e Virtudes”. BIB, Rio de Janeiro, n. 45, p. 71-92, 1º
semestre de 1998, p. 86.
15
A teoria da escolha racional entrou na Ciência Política a partir da Economia, como resultado dos
trabalhos pioneiros de Anthony Downs, James Buchanan, Gordon Tullock, George Stigler e Mancur
Olson. Embora esses autores tenham discordado em inúmeros aspectos entre si, todos adotaram uma
interpretação particularmente materialista da teoria da escolha racional. Para eles, os agentes sociais
estariam interessados na maximização da riqueza, de votos, ou de outras dimensões mais ou menos
mensuráveis em termos de quantidades e sujeitas a constrangimentos de recursos materiais. FEREJOHN,
John; PASQUALE, Pasquino. “A teoria da escolha racional na Ciência Política: Conceitos de
racionalidade em teoria política”, Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 16 nº 45 fevereiro/2001.
16
Inúmeros trabalhos aliam métodos da antropologia, como o survey, para uma espécie de pesquisa de
campo junto ao quadro das teorias construtivistas que sustentam às evidências empíricas.
17
PASQUINO, Gianfranco. Op. Cit., p. 25.
18
Com efeito, é no quadro da investigação, pelos historiadores do político no
decorrer da história, que o fenômeno da cultura política surgiu oferecendo
uma resposta mais satisfatória do que qualquer das propostas até então, quer
se tratasse da tese marxista da explicação determinista pela sociologia, da
tese idealista pela adesão a uma doutrina política, ou de múltiplas teses
avançadas pelos sociólogos do comportamento e mesmo pelos
psicanalistas. 18
Por razões ligadas à gênese e à identidade, a ciência política teve certa relutância
em elaborar caminhos por onde os fatores culturais fossem suficientemente demarcados
para propor conceituações e efetivas hipóteses de teste, pois as análises culturais eram
vistas como teorizações “softs” e insuficientes que ofereciam riscos às pretensões
científicas da disciplina. Assim, dentro da grande teoria em que a ciência política se
moldava, a cultura era tratada como uma categoria residual, por ser considerada de
natureza subjetiva e propensa a certa indefinição frente a esquemas e quadros de
medição e operacionalização.
Broadly, our discipline has used one of two strategies to with culture. On the
one hand it has sought to conceptualize “political culture”, a concept that
suggests a double agenda: identifying those cultural factors, or political
“values”, that most directly influence political behavior and development and
18
RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma História Cultural. Lisboa: Estampa,
1998, p. 349.
19
PASQUINO, Gianfranco. Op. Cit., p. 14.
19
studying the processes of socialization that result in certain forms of political
dynamics. 20
Our view is that culture is not merely an additional dimension of politics that
requires attention. It is quite simply one of the key fundaments of social life,
the matrix within which that which we understand as political action takes
place. In other words, the field of politics itself has to be examined within its
appropriate cultural milieu, as it were. Far from being a residual category,
culture is in some sense that which constitutes the coordinates, the mapping,
or the very blueprint of politics. 22
20
CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Culture Troubles: Politics and the Interpretation of
Meaning. Chicago: University of Chicago Press, 2006, p. 10.
21
Ibidem.
22
Ibidem, p. 21.
20
torna-se ainda mais obscuro. Acima de tudo, o que a tentativa de ligar a
política à cultura precisa é de uma perspectiva menos ansiosa da primeira e
uma perspectiva menos estética da última. 23
23
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 206.
24
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 82.
25
Ibidem, p. 84.
26
Ibidem, p. 111.
27
Ibidem, p. 85.
21
structures publicly unfold”, 28 a cultura política dever ser percebida como uma
construção histórica que se adapta e se transforma em sintonia tanto com os
acontecimentos, quanto com as atitudes dos indivíduos e dos grupos, cujos objetivos ela
define e redefine. A cultura política compõe-se não só pelas tradições e crenças que
fundamentam as práticas possíveis no interior de um sistema político, mas abrange
também o imaginário que assegura a identidade e delimita as fronteiras da comunidade
a que pertence certo grupo, legitimando e desqualificando tanto as suas reivindicações
quanto os seus simbolismos, por meio dos quais exprimem seus valores e reforçam seus
vínculos.
A cultura política abarca as representações que ligam politicamente um grupo de
pessoas a uma visão comum do passado. Ao mesmo tempo, projeta noções
compartilhadas sobre o presente e o futuro, fornecendo os elementos que justificam os
processos institucionais e as estratégias adotadas para a renovação e para a contestação
política, em que se fixam culturalmente os referenciais e os significados dos termos que
determinam as características dessa mesma cultura política.29 Assumindo-se, por
conseguinte, tal perspectiva, a análise da cultura política – concebida como o conjunto
das práticas políticas e culturais de um determinado grupo em um momento histórico
específico – possibilita distinguir os interesses e os propósitos políticos que se
estruturam no seu interior.
Apesar de aparentemente óbvio, o conceito de cultura política é o que melhor
traduz a ligação inseparável entre cultura e política. Seguindo essa breve reavaliação
sobre as origens da ciência política e a utilização do conceito de cultura política, buscar-
se-á definir as referências teóricas e metodológicas interdisciplinares que melhor
direcionarão a análise da temática do presente trabalho, tendo em vista uma sólida
pesquisa histórica e o uso de fundamentos de outras ciências sociais de apropriada
relevância. O exercício é tão somente, portanto, uma tentativa de tomar exemplos que
encaminhem as reflexões acerca da cultura com a ciência política, não se pretendendo
traçar fronteiras rígidas e intransponíveis.
28
GEERTZ, apud CHABAL, Patrick e DALOZ, Jean-Pascal. Culture Troubles: Politics and the
Interpretation of Meaning. Chicago: University of Chicago Press, 2006. p. 25.
29
SIRINELLI, Jean-François. “De la demeure à l’agora. Pour une histoire cuturelle du politique”. In:
BERNSTEIN, Serge & MILZA, Pierre (dir.). Axes et méthodes de l’histoire politique. Paris: PUF, 1998,
p. 391
22
I. 2 – Possíveis Diálogos e Pontes Teóricas
Como a mais antiga e a mais recente das ciências do homem, 30 a ciência política
dispõe, por um lado, de um vigoroso instinto de defesa, e por outro, ambiciona novas
fronteiras. 31 Segundo José Adelino Maltez,
30
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 100.
31
Ibidem, p. 108.
32
Ibidem, p. 34.
33
CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Op. Cit., p. 24 e 34.
34
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p.15.
35
CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Op. Cit., p. 86.
23
determined by the contextual factors most relevant to the case studies under
examination. 36
36
Ver CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Op. Cit., p. 31.
37
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 39.
38
Idem.
39
RIOUX, Jean-Pierre& SIRINELLI, Jean-François. Op. Cit.
24
influentes na medida em que podem, a depender de sua fundamentação sociológica, da
coerência interna, da plausibilidade retórica e do apelo estético, num sentido intelectual,
sobreviver aos acontecimentos conjunturais
Isto posto, busca-se uma nova abordagem, baseada nas relações entre história,
arranjo cultural e ação política, a fim de verificar como a cultura política luso-brasileira,
através da noção de luso-tropicalismo, encontrou mecanismos para se ajustar e adaptar
aos reveses do tempo. Embora tenha servido como argumento ao regime salazarista para
legitimar a permanência de Portugal no ultramar, o luso-tropicalismo assegurou sua
“sobrevivência” ao se impor num plano “extra-colonial”, visto que, mesmo no período
desagregador pós-guerra fria, continuou a oferecer uma representação essencial que
penetrou a tradição política e cultural luso-brasileira.
Se por um lado o luso-tropicalismo perdeu expressão ideológica e credibilidade
no campo científico, por outro, de alguma forma, contribuiu decisivamente para a
formação da auto-imagem em que Brasil e Portugal melhor se revêem e se projetam.
Mais do que uma teoria sobre a relação entre Portugal e os trópicos, o luso-tropicalismo
constitui, de fato, nos respectivos imaginários nacionais, a experiência de Portugal no
mundo e a originalidade e a legitimidade da nação brasileira. A tese formulada por
Gilberto Freyre toca de forma íntima as identidades nacionais dos dois países e lhes
confere singularidade frente aos panoramas internacionais.
40
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 46.
41
Ver BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. 6ª ed., São Paulo: Papirus, 2005.
25
Dessa maneira, a noção de imaginário liga-se ao termo memória social, sendo
este entendido não só como um sistema de armazenamento de imagens, mas também
como uma ação daquele que recorda. Afinal, memória pressupõe esquecimento, numa
seqüência de restabelecimento ativo de retenção, reordenação e supressão, dentro de um
movimento fluido e flexível de rede de idéias. 42
42
SARMENTO, Cristina Montalvão. Os Guardiões dos Sonhos: Teorias e Práticas Políticas dos Anos
60. Lisboa: Colibri, 2008, p. 71.
43
Ibidem, p. 71.
26
recepção de imagens e idéias mentais e verbais, num repertório político e social que
atinge níveis diversificados de construção de representatividades. 44
O circuito do imaginário político forma-se lentamente a partir de longas
permanências e ocorrências políticas que encontram conexão mais diretamente nos
modos automáticos de pensar e sentir relacionados aos mitos e às visões culturais de
mundo – ou das mentalidades, como dizem os historiadores que enfocam essa
perspectiva social. Tal arcabouço de idéias, presente nas sociedades e em corrente
movimentação, regula o cotidiano em suas várias geometrias de relações humanas, por
espelhar a realidade histórica e mítica do percurso existencial que um grupo faz de si
mesmo.
As fórmulas políticas, reguladas interiormente por mudanças operadas em seus
pressupostos, assumem um lugar autônomo no plano da cultura, orientando a mutação,
o avanço e a harmonização de novos conceitos proeminentes. São o resultado de um
impacto mais vasto, que pode estar relacionado com aspectos de conjuntura política e
econômica que envolvem toda cultura em correlação com as outras culturas externas
dominantes em voga. As idéias funcionam numa marcha constante de interpenetração e
45
de arrumação político-cultural que condiciona a evolução da cultura política. E nesse
sentido, o luso-tropicalismo se insere em nas reflexões desenvolvidas no presente
trabalho, ao levar em consideração esse exercício voluntário e obrigatório da cultura
política na formação e reformulação das idéias políticas, já que sempre serviu como
estrutura para um imaginário e linguagem confluente entre Brasil e Portugal.
Somente pelo desvendamento político pode-se desmascarar o apelo à
legitimidade política de um novo discurso político, seus motivos inconscientes, as idéias
subentendidas em seus argumentos teóricos que ecoam a vivência de um grupo e as suas
aspirações culturais. Na cultura política, encontra-se o ponto em que a cultura se
manifesta em forma de discursos políticos legitimadores. A partir destes, o valor das
idéias e sua atuação na edificação de novas demandas e respostas sociais encontram seu
reduto nas organizações que visam a esmerá-las, legitimá-las e colocá-las em prática
como forma de pensamentos com interesse de correlação comum e consensual e que se
projetam. Assim, as instituições e suas atividades intelectuais manejam os efeitos e
desenham os fins que as idéias representam.
44
Ver CHARTIER, Roger. “Por uma sociologia histórica das práticas culturais”. In: A História Cultural
– entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.
45
SARMENTO, Cristina Montalvão. Op. Cit., p. 84.
27
A análise política para conhecer os processos políticos, (constituídos pelo
conjunto dos meios institucionalizados e ritualizados pelos quais uma
sociedade reestrutura constantemente, pela confirmação ou pela contestação,
a hierarquia dos interesses e dos valores que a identificam como uma
sociedade específica, na medida em que estão estes processos que dão forma
e vida aos aspectos culturais dinâmicos de integração e conflito, de
homogeneidade e heterogeneidade), necessita assumir a importância dos
processos simbólicos e míticos na exteriorização das práticas sociais
ritualizadas, referentes ao saber e ao saber-fazer de qualquer cultura e
sociedade. 46
46
SARMENTO, Cristina Montalvão. Op. Cit., p. 143.
28
três séculos: de 1500 a 1870. Cria-se, assim, desde o século XVI, um caldeamento
étnico e, mais importante, um perfil cultural que se pode definir luso-brasileiro”. 47
Para se desenvolve, no interior da ciência política, a evolução temporal da
política e a sua validade contemporânea, é necessário ater-se à dimensão histórica dos
processos de construção social e cultural da realidade e às identificações imaginárias
legítimas e institucionais que dão sentido à imagem política e cultural de uma sociedade
ou grupo. A concepção antropológica de Geertz oferece boas noções. Ao se debruçar
sobre a cultura, contudo, deve-se recorrer à história e a suas ferramentas com o intuito
de dar sentido ao passado e de tornar o presente mais inteligível.
Nessa osmose de campos – em que se pretende revelar a cultura política luso-
brasileira por meio do luso-tropicalismo nos domínios das idéias, representações,
símbolos e imaginários – a análise de discurso, de suas repercussões político-culturais
na opinião pública e das instituições que o sustentam, mostra-se útil ao desenvolvimento
da problemática deste trabalho. Imaginários, representações e discursos estabelecem
estreitas junções, entre si e com o meio político. Tentar perceber a relação entre as
categorias reais da sociedade e a instrumentalização de recursos simbólicos como fonte
de legitimação constitui um importante passo para elucidação da arquitetura do poder.
Nessa perspectiva, lançar-se-á mão da história das idéias políticas para
estabelecer íntima conexão entre o passado e o presente mediante a conjugação das
permanências e transformações enquanto elementos inerentes a um mesmo devir.48 A
história das idéias políticas detecta as idéias e a cultura política, compreendendo as
concepções que englobam os respectivos acontecimentos, factuais e intelectuais. A
ligação entre cultura e política através história das idéias centra-se nas idéias
culturalmente aceitas e dinâmicas, suas utilizações e atualizações políticas. Desse modo,
as tradicionais indagações acerca da “natureza política” tendem a ser substituídas por
outras relacionadas à “significância das idéias políticas”, como estas se articulam umas
as outras, são transmitidas e recebidas, num processo mais geral de produção de sentido.
O tempo e seus desdobramentos contínuos e descontínuos demonstram a
coerência da própria noção de idéia, pois as idéias têm história, na medida em que suas
formulações e sensos variam. Os conceitos, ao contrário, ajustam-se à definição mais
47
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Diálogo Portugal-Brasil século XXI: novas realidades,
novos paradigmas. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2008, p. 62.
48
Ver CASTRO, Zília Osório de. "Da História das Idéias a História das Idéias Políticas". In: Revista de
História e Teoria das Ideias, II Série, Vol. VIII, Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade
Nova de Lisboa [CHC-UNL], 1996, p. 11-21.
29
abstrata a que correspondem os seus sentidos, sendo função das idéias estimular
contradições que levem a questionar a pertinência ou a adequação que o conceito
implica e podem ser pensadas naquele período.
49
CASTRO, Zília Osório de. Op. Cit., p. 14.
50
Ibidem, p. 16.
30
portuguesas. De fato, esse sentimento inspirou e contribuiu para a criação institucional
da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Podemos perceber, como se referiu
Pierre Bourdieu, que
Importa investigar o que alguns autores americanos têm designado por belief
system. Este corpo de idéias não é apenas reservado ao estudo da história das
idéias políticas pois podemos considerá-las, conforme sublinhou Meynaud,
como ideologia, e esta reflete um conjunto de conceitos existenciais que
orientam a luta pela captura, manutenção e exercício do poder político. 52
51
MALTEZ, Adelino. Op. Cit. p. 41.
52
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 27 e 28.
53
IBN KHALDUNI opud BASTOS, Élide Rugai. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico: entre Dom
Quixote e Alonso El Bueno. Bauru/SP: EDUSC, 2003, p. 108.
31
Após a união com a Espanha, em 1640, com o despertar de um sentimento
nativista luso-brasileiro, 54 Brasil e Portugal ostentaram uma afinidade cultural, social e
política inexistente nas demais áreas de exploração colonial. E, se as turbulências
vividas no Velho Mundo no final do século XVIII inflamaram o separatismo da
América hispânica, estimularam também a aproximação luso-brasileira, derrubando, na
prática, as barreiras entre colônia e metrópole. Em1822, como aponta Neves,
54
Sobre essa questão ver MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 63. Em que Sinval Medina
relata o movimento armado iniciado por luso-brasileiros em 1645, que culminou nove anos depois com a
expulsão dos holandeses, não só de Pernambuco, mas também de Angola.
55
NEVES, Lúcia Bastos P. das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-
1822). Rio de Janeiro: Revan/FAPERJ, 2003, p. 414 e 415.
56
Guimarães, Lúcia Maria Paschoal (Org.). Afinidades Atlânticas: impasses, quimeras e confluências nas
relações luso- brasileiras. Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2009.
57
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 67.
32
O luso-tropicalismo emergiu como uma teoria que pretendia explicar a
constituição da população brasileira na amálgama baseada não somente no cruzamento
tríplice entre portugueses, índios e negros, mas também em um sentido de história que
abrangia mais de três de séculos (de 1500 a 1870), solidificando um perfil cultural entre
58
Brasil e Portugal que reproduzia e fundamentava a cultura política luso-brasileira
numa mesma unidade de pensamento e ação.
59
Assim, “o modo português de estar no mundo” ilustrou e avivou a idéia da
necessidade de uma comunidade luso-brasileira, que mais tarde se estendeu e se
articulou aos povos de língua portuguesa, mas que guardou em sua origem uma
idealização luso-brasileira. Prova disso foi o comentário escrito por Pinhandara Gomes,
em 1962, para homenagear os vinte e cinco anos de publicação de Casa Grande &
Senzala: “(...) considerá-la a primeira grande pedra lançada, no domínio da
inteligência, para a construção do edifício ainda pouco adiantado que é o Tratado de
Amizade e Consulta Luso-Brasileiro”. 60
O Tratado de Amizade e Consulta, assinado em 1953 e ratificado em 1955,
advém da visão luso-tropical freyriana de que o “bloco luso-brasileiro” deveria
diferenciar-se em relação ao exterior por meio de uma identidade comunitária.
“Consciente das afinidades espirituais, morais, étnicas e lingüísticas que, após mais de
três séculos de história comum, continuam a ligar a Nação Brasileira à Nação
Portuguesa, do que resulta uma situação especialíssima para os interesses recíprocos
dos dois povos”. 61 Nessa direção, o Tratado pretendia ter proeminência em nível
mundial, aludindo à natureza étnica comum, que garantia as afinidades espirituais entre
Portugal e Brasil, através de uma Comunidade Luso-Brasileira.
58
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 62
59
“(...) um conceito introduzido no discurso acadêmico nacional, nos anos 50, por Adriano Moreira, mas
que rapidamente se operacionaliza e reproduz no discurso do Estado Novo. Pressupõe que o povo
português tem uma maneira particular, específica, de se relacionar com os outros povos, culturas e
espaços físicos, maneira que o distingue e individualiza no conjunto da humanidade. Essa ‘maneira’ é
geralmente qualificada com adjetivos que implicam uma valoração positiva: ‘tolerante’, ‘plástica’,
‘humana’, ‘fraterna’, ‘cristã’”. CASTELO, Cláudia. “O modo português de estar no mundo” In: O luso-
tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa. (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 13.
60
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da Fraternidade: Brasil-Portugal. Lisboa: Editora
Imprensa de Ciências Sociais, 2003, p. 90.
61
CASTRO, Zília Maria Osório de; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO,
Cristina Montalvão (ed.). Tratados do Atlântico Sul: Portugal-Brasil, 1825-2000. Lisboa: Instituto
Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2006, p. 269.
33
livremente nos dois países, resguardadas as limitações impostas pela
segurança nacional e saúde pública. Ficava assim, claramente marcado o
tratamento especial a que os portugueses teriam direito no Brasil, e vice-
versa. Na prática, o tratado propunha o estabelecimento de uma supra-
nacionalidade para os cidadãos de ambas as nações. 62
34
qual Portugal afigurava a pátria mãe de todo o complexo sócio-psicológico. 64 A luso-
tropicologia deveria se tornar pragmática e funcional, no campo político, econômico e
cultural.
O sociólogo brasileiro acreditava na existência de sociedades luso-tropicais que,
no seu conjunto, formavam uma civilização com traços próprios, que as diferenciavam e
individualizavam. No mundo criado pelo português, as afinidades de sentimento e de
cultura sobrepunham-se às questões de soberania. Por ta razão, previa-se que a
comunidade luso-tropical continuaria existindo em outras configurações políticas –
como no período posterior à independência das colônias.
De fato, esse “espírito luso-tropical” configura-se como característica política de
Brasil e Portugal. Afinal, ambos precisam politicamente dos valores e imagens culturais
que estão vinculados à idéia e ao sentido de luso-tropical. O contexto em que Portugal
se encontrava, sem grandes proporções territoriais e demográficas, confrontado pela
pujança econômica e cultural da Espanha no espaço ibérico e na Organização do
Tratado do Atlântico Norte (NATO), fez vir à tona o velho sentimento português de
rivalidade com seu único vizinho fronteiriço, resgatando a antiga lembrança do gesto
“do vassalo contra o suserano”. 65
Integrado à União Européia, mas na contramão da tendência fragmentadora e
supranacional desta instituição. A pátria lusitana ainda se reconhece pelo culto à
memória ancestral de seu povo, e por sua narrativa própria como uma das nações mais
antigas da Europa, naquilo que melhor a personaliza: a maritimidade portuguesa. E o
Brasil funciona no imaginário político e cultural português como a maior prova desta
maritimidade, pois a nação brasileira dá corpo e expressão à cultura, à história e à língua
portuguesa no mundo.
64
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 34.
65
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 55.
66
CASTRO, Zília Maria Osório de; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO,
Cristina Montalvão (ed.). Op. Cit., p. 321.
35
O Brasil, com uma extensa dimensão demográfica e territorial, vem
consolidando sua liderança na América do Sul. Contudo, ainda é afligido pela grande
abstração política em relação ao seu papel e lugar na América Latina, visto que,
conforme destacam Medina e Medina, existem duas Américas Latinas: o Brasil e a
América hispânica.
67
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 56.
68
FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 14 e 15.
69
CASTRO, Zília Maria Osório de; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO,
Cristina Montalvão (ed.). Op. Cit., p. 15.
36
Consulta foi demonstrativo dessa relação entre Brasil e África, que antes perpassava,
sobretudo, por Portugal:
70
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Do lirismo ao pragmatismo: a dimensão
multilateral das relações luso-brasileiras (1974-1976). Lisboa: ISCTE, 2008 [Proveniente do Prémio
CES/09], p. 21 e 22.
71
Ibidem, p. 22.
72
O contexto bipolar pode ser entendido como uma fase em que duas superpotências, os Estados Unidos
e a antiga União Soviética, disputavam áreas de influencia no mundo, respectivamente, capitalista e
comunista.
37
tropical nos projetos de Lusofonia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP). A língua surge como instrumento da formação de espaços políticos
73
estruturados e a defesa da língua pressupõe, também, a defesa e a manutenção de um
fator de identificação que une incontestavelmente Portugal, Brasil e África. A cultura
de um povo reflete-se de forma máxima e nítida na língua em que é compartilhada, pois
nela se encontra o lugar de memória coletiva; o sentido de pertença de um grupo,
comunidade ou raça. A língua funciona como prática vívida de identidade e
reconhecimento cultural e político.
73
CASTRO, Zília Maria Osório de; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO,
Cristina Montalvão (ed.). Op. Cit., p. 312.
74
SARMENTO, Cristina Montalvão. Os Guardiões dos Sonhos: Teorias e Práticas Políticas dos Anos
60. Lisboa: Colibri, 2008, p. 71.
75
Ver ROSA, Manuel Amante da. “O Atlântico Sul perante os novos desafios” In: Portugal, os Estados
Unidos e a África Austral. Lisboa: Fundação Luso-Americana/Instituto Português de Relações
Internacionais, Julho de 2006, p. 260.
38
programa dos três D’s, descolonização, democracia e desenvolvimento, 76 fundindo-se
com o objetivo de integração européia que orientou e dominou a política interna e
externa do país. Plenamente integrado, Portugal vem buscando corrigir alguns
desequilíbrios de percurso, pois as antigas coordenadas geo-estratégicas como a
autonomia peninsular e as relações intercontinentais perderam seus contornos.
Ainda atormentado pelo velho dilema entre o Atlântico e pela ligação mais
próxima com a Europa, a pátria de Camões vem se esforçando para reformular sua
política externa na dinâmica internacional de modo a não desperdiçar a sua posição
estratégica e sua habilidade histórica como mediador entre a Europa e o Atlântico Sul.
Nesse ponto, torna-se conveniente a relação particular e privilegiada que a antiga
metrópole mantém com sua ex-colônia sul-americana.
As atuais configurações políticas e econômicas, com a conformação de uma
nova ordem mundial de mercados abertos e globais e a emergência progressiva de
outros participantes no desenho mundial, têm imposto ao Brasil limites e mudanças
sensíveis no seu papel regional e global. O valor do Atlântico Sul e o crescimento
petrolífero de suas margens se apresentam como questões sensíveis à política externa
77
brasileira, que visa a superar o mito de “liderança natural” e exercer função
preponderante no eixo sul. Para isso, contudo, é necessária uma postura política
coerente que ultrapasse suas contradições políticas e identitárias internas. Por isso, as
relações com Portugal em relação à cultura e à língua fazem-se imprescindíveis para
criação de um perfil coeso e seguro.
Nessa perspectiva, o luso-tropicalismo fornece uma grade comum que contém,
de forma mais aclarada, os processos nacionais de formação política e cultural de
Portugal e Brasil. Serve como manancial de idéias não somente para os discursos
políticos que revestem as ligações entre Brasil e Portugal, mas também para os relativos
às suas relações bilaterais e aos de cariz interno, em que as suas identidades devem ser
relembradas. E ainda orienta aqueles discursos em que as singularidades dos dois países
têm de ser evidenciadas no cenário internacional, como caráter de relevância e
diferenciação das duas nações no aspecto mundial. Por isso, visa-se buscar os nexos
entre as idéias contidas nos discursos e as formas pelas quais elas exprimem um
76
Ver FRANCO, Manuela. “Petróleo em Português? Em Prol de uma Política Africana”. In: Ação e
Defesa, nº 114, Verão de 2006, 3ª série, p. 15-33, Instituto de Defesa Nacional, Lisboa. E CASTRO, Zília
Òsorio de; SILVA, Júlio Rodrigues da & SARMENTO, Cristina Montalvão (ed.). Op. Cit.
77
Ver SARAIVA, José Flávio Sombra. “A África na ordem internacional do século XXI: mudanças
epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?” Rev. bras. polít. int., v. 51, n. 1, p. 87-104, 2008.
39
conjunto de determinações extratextuais, isso é, imaginárias e identitárias, em que se
assentam as culturas políticas nacionais. No caso de Portugal e Brasil, buscam-se os
elos associáveis que transfiguram uma cultura política luso-brasileira, que tem sua
maior expressão no luso-tropicalismo.
40
Capítulo II
78
Premiado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ver GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal.
“Debaixo da imediata proteção imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)”.
In: Revista do IHGB, a.156, n. 388, p. 459-613, 1995.
79
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. De Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2000.
80
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2003.
41
brasileira. Sob a ótica do culturalismo, valorizou a mestiçagem e a contribuição do
negro, até então rejeitadas e depreciadas. Freyre revelou a maneira como foram criados
os antagonismos que compõem a ordem social no Brasil. Uma descrição minuciosa dos
particularismos do cotidiano colonial e o detalhismo impressionante sobre os mais
variados aspectos da vida social entre colonos e escravos foram marcas do seu trabalho.
A literatura romântica do século XIX, centrada na figura do indígena, construiu
uma visão idealista do homem brasileiro. Mais tarde, essa visão foi substituída pela
busca do reconhecimento da realidade brasileira, em um movimento que acompanhava
as grandes matrizes da literatura universal. 81 As questões sobre as origens do povo
brasileiro estavam no centro das discussões, na medida em que a constituição do povo
era a raiz da formação da nacionalidade – que, por sua vez, era a marca necessária para
a configuração de uma nação frente a outra. Nesse momento, reconhecia-se no Brasil a
existência do Estado, mas pretendia-se, ainda, formar uma nação.
A influência dos modelos europeu e americano havia trazido para o Brasil uma
idéia de atraso e uma tendência negativa de que o destino e o futuro do país estavam
fadados à impossibilidade de desenvolvimento em direção ao progresso. 82 Gilberto
Freyre rompeu com a tradição herdada da antropologia européia, lançando mão de uma
nova interpretação sobre o Brasil, mais próxima da memória social. Optou por um
recurso oposicionista e associativo de forma proposital, a fim de construir sua tese sobre
o Brasil a partir do misto, do híbrido e da mestiçagem. 83 Efeito dual na construção de
toda a sua argumentação. Seus títulos, a exemplo de Casa Grande & Senzala; Ordem e
Progresso; Aventura e Rotina, já anunciam como será estruturada a problemática da
construção da identidade nacional.
81
FREYRE, Gilberto. Op. Cit.
82
Ver, NAXARA, Márcia Regina Capelari. “Estrangeiro em sua própria terra”. In: Representações do
Brasileiro, 1870-1920. São Paulo: Annablume, 1998. No início do século XX, o progresso era entendido
como uma força avassaladora que sucumbia os povos "atrasados", que não estavam aptos a acompanhar
seu ritmo. A teoria fatalista no Brasil justificava-se, portanto, porque esse fim era irrevogável. E o
pessimismo se fundamentava em relação às condições do Brasil diante do progresso da humanidade. O
Brasil era visto próximo da barbárie. Após a abolição da escravidão, vários projetos políticos procuravam
extirpar do Brasil toda a ligação africana, pois a África representava o atraso e o primitivo na escala
“evolutiva civilizacional”. O Brasil buscava se consolidar como nação em relação à Europa, baseada na
civilização e na raça branca, considerada o exemplo do mais alto grau de desenvolvimento alcançado pelo
gênero humano.
83
Talvez o recurso combinado fosse um reflexo da dialética hegeliana entre senhor e escravo, pois Freyre
afirmava que assim como o branco português, o negro africano também agiu como colonizador. Contudo,
se a formação da sociedade brasileira baseou-se em antagonismos, como os conflitos entre os opostos
foram apaziguados? Gilberto Freyre respondeu: “(...) entre tantos antagonismos têm-se condições de
confraternização e mobilidades sociais peculiares ao Brasil: a miscigenação”. FREYRE, Gilberto. Casa
Grande & Senzala. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 116.
42
As origens sociais, a biografia e o percurso intelectual de Gilberto Freyre,
claramente estimularam o seu interesse pelo estudo das relações raciais e da sociedade
patriarcal no Brasil. Descendente de famílias aristocratas, proprietárias de engenhos,
que haviam perdido valor na dinâmica social e econômica do país após a abolição da
escravatura e a proclamação da República, Freyre cresceu nos resquícios do passado dos
senhores de engenhos, das casas-grandes e das senzalas.
Desde a infância, teve contato com a língua inglesa, devido à dificuldade de se
alfabetizar em português. Aprendeu a ler com um preceptor inglês, E. O. Williams, e
depois ingressou no colégio americano Gireath, fundado por missionários baptistas do
sul dos Estados Unidos. Em 1916, proferiu sua primeira conferência pública sobre
Spencer e o problema da educação no Brasil, 84 e no ano seguinte concluiu seus estudos,
tendo como paraninfo o diplomata Manuel de Oliveira Lima.
Aos dezoito anos, partiu para os Estados Unidos da América com uma bolsa
concedida pela Igreja Baptista e bacharelou-se em artes pela Universidade de Baylor no
Texas. Em 1920, seguiu para Nova Iorque para cursar o mestrado em Ciências Políticas
na Universidade de Columbia, onde teve contato com os professores Franz Boas,
Franklin Giddings, Edwin Seligman, William R. Shephered e Jonh Basset Moore. 85
Tomara como fontes para a escritura da sua dissertação de mestrado, intitulado Social
life in Brazil in the middle of the 19th century, relatos de viajantes e de memorialistas,
testemunhos da imprensa e depoimentos orais, o que já revelava a peculiaridade das
fontes e da escrita do autor.
Como pertencia aos setores políticos identificados com a Primeira República,
Freyre foi exilado do Brasil por causa da chamada “Revolução de 1930”, e Casa
Grande & Senzala começou a ser escrito em Portugal. Confrontado pelas diferenças
entre as relações raciais e sociais existentes no Brasil, o autor decidiu aprofundar os
seus estudos sobre a formação da sociedade patriarcal brasileira e sobre a miscigenação.
Inspirado por autores hispânicos como Ortega y Gasset, ao procurar conhecer a
estrutura e o funcionamento da sociedade para, então, compreender a sua história,
Gilberto Freyre encontrou em Ibn Khaldun as bases para o seu pensamento e,
definitivamente, a antinomia entre raça e cultura. Buscando a compreensão do que se
denominava África Menor – o norte do continente africano –, Ibn Khaldun apontava
84
FREYRE, Gilberto. Tempo Morto e Outros Tempos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 9.
85
Ver CASTELO, Cláudia.“O modo português de estar no mundo”. In: O luso-tropicalismo e a ideologia
colonial portuguesa. (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 20 e 21.
43
para o fato de os intelectuais europeus não terem apreendido sua natureza, pois
abordavam este objeto a partir de idéias forjadas no mundo ocidental, de caráter
universalizante, que não abrangia os particularismos que atravessavam aquela
sociedade. Segundo Ibn Khaldun: “(...) a parcial uniformidade e parcial diferença -
porque todo novo povo, ao triunfar, se amoldava ao vencido, porém conservando
também seus usos. Por isso não existiam épocas consecutivas completamente iguais,
nem completamente desiguais”. 86 Tratava-se de uma dinâmica em que a sociedade
A tese central de Freyre em Casa Grande & Senzala espelhou essas idéias, uma
vez que partia da premissa da cooperação entre grupos aparentemente opostos: a
consideração do escravo negro e do indígena, vencidos no processo de distribuição do
poder; a imbricação do velho e do novo; a simultaneidade dos tempos presente, passado
e futuro; luta e confraternização. Logo no inicio da obra, sobre a tríplice herança
cultural brasileira – ameríndia, européia e africana – Freyre afirma:
86
IBN KHALDUN apud BASTOS, Élide Rugai. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico. Entre Dom
Quixote e Alonso El Bueno. Bauru/SP: EDUSC, 2003, p. 94.
87
Ibidem, p.95.
88
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 8.
44
sombra, ou pelo menos a pinta”, 89 do indígena e do negro. O autor ainda foi além e
afirmou que tal herança, principalmente do negro africano, os brasileiros traziam na
alma. No trecho abaixo, escrito na primeira pessoa do plural, Freyre procurou, de forma
envolvente, despertar no leitor uma reflexão identitária:
(...) da escrava ou da sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que
nos deu de comer, ele própria amolengando na mão o bolão de comida. Da
negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-
assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira
tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da
cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi
nosso primeiro companheiro de brinquedo. 90
89
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 331.
90
Ibidem, p. 283.
91
Ver Ibidem.
45
O ponto a fixar – na opinião do autor – é exatamente o nenhum exclusivismo
de tipo no passado étnico do povo português; a sua antropologia mista desde
remotos tempos pré e proto-históricos; a extrema mobilidade que lhe tem
caracterizado a formação social. 92
Seria absurdo pretender que as formas políticas não se relacionam com uma
instituição de vida social e de vida econômica da força e da amplitude do
patriarcado agrária e escravocrata. Oficialmente este teria morrido de vez no
Brasil um ano antes de iniciar-se período republicano, sociologicamente não
morreu; já ferido de morte pela abolição, acomodou se a república e durante
anos viveram ainda patriarcado semi-escravocrata e república federativa
quase tão um simbioticamente como outrora patriarcado escravocrata Império
unitário. Várias sobrevivências patriarcais ainda hoje convivem com o
brasileiro das áreas mais marcadas pelo longo domínio do patriarcado e
escravocrata agrário e mesmo para pastoril - e mesmo afetado pela
imaginação neo-européia (italiana, alemã, polonesa, etc.) ou japonesa ou pela
industrialização da vida nacional brasileira (...). 93
Gilberto Freyre imprimia, assim, a sua marca intelectual com a defesa do Brasil
mestiço, condizente com os trópicos, original e legítimo. Ao mesmo tempo, justificava
a formação do povo brasileiro por meio de uma especial capacidade lusitana: a de se
92
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 30 e 31.
93
Ibidem, p. 104.
94
Ver, ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala na Obra de Gilberto
Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
95
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p.54.
46
relacionar com os outros povos, notadamente os das regiões tropicais, pela apetência
dos portugueses à miscigenação, à tolerância, à plasticidade e à fraternidade.
96
MIRANDA, Rachel de. Além-Mar Aventura e Rotina: o Lugar do Brasil no Mundo Luso-Tropical de
Gilberto Freyre, 2002, 80f Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002, p. 55.
47
(1933) como a primeira obra onde foram lançados os fundamentos da teoria luso-
tropical e O luso e o trópico (1961) como o livro no qual a tese luso-tropicalista se
encontrou no seu estado acabado. 97
O Mundo que o Português Criou e Casa Grande & Senzala problematizaram a
proximidade de Portugal em relação ao continente africano, apontando uma indecisão
étnica e cultural frente à África. A amplitude das influências africana e moura sobre
Portugal e a singular predisposição do português para a colonização híbrida e
escravocrata foi explicada por Freyre, em grande parte, por seu passado étnico e cultural
de povo indefinido entre Europa e África.
97
Ver CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 13.
98
FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p.14.
99
Ibidem, p. 49.
100
Cabe ressaltar que Freyre diferenciou o português do castelhano em suas heranças ibéricas: “Houve
desde remotos dias no Português uma espécie de ‘franciscanismo’ ou de ‘lirismo’ (...) em contraste com o
comportamento hierático e dramático do Castelhano”. FREYRE, Gilberto. Integração Portuguesa nos
Trópicos, Col. ECPS, n.º 6, Lisboa, JIU, 1958, p. 52.
101
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 30.
48
segundo Freyre, que deslocou para um novo continente os africanos indispensáveis para
a lavoura. Foi esse povo que, constatando que a falta de riquezas significativas
imediatamente exploráveis na nova terra, orientou-se para a agricultura, contrariando a
vocação mercantil. O mesmo povo, em uma colonização quase sem mulheres brancas,
numa disposição “sem preconceitos”, 102 misturou-se prontamente com as índias e
posteriormente com as africanas, produzindo uma grande colonização, pela iniciativa
individual e pela organização familiar. Gilberto Freyre concluiu que os portugueses
triunfaram onde os outros europeus falharam:
102
FREYRE, G. Op. Cit., p. 56.
103
FREYRE, G. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 14 e 15.
49
América. Incluir o Brasil neste “mundo luso-ibérico” significaria entender a
singularidade cultural brasileira como inerente não apenas a uma comunidade nacional,
mas também transnacional: aquela que uniria Portugal e todas as colônias e províncias
onde se falasse o português, mesmo depois de suas independências. 104
Freyre sustentava que a favor dessa unidade de cultura deveriam trabalhar todos
aqueles que, acima dos regionalismos, acreditavam em um complexo social maior que
necessitava de uma linguagem comum. Propunha o intercâmbio de informações e uma
cooperação entre pesquisadores dos dois países lusófilos no entendimento de questões
históricas, antropológicas e culturais de interesses afins. 105 Brasileiros conhecidos em
Portugal e na África portuguesa, como Manuel Bandeira, José Lins do Rego e Jorge
Amado são citados como militantes na tentativa de se fortalecer a língua comum. Era
necessário esclarecer e avivar, perante todos os povos alheios, os elementos de cultura e
as muitas identidades de sentimentos que faziam dos portugueses e dos luso-
descendentes 106 uma unidade de expressão e cultura.
Eça de Queiroz é tão nosso — tão dos brasileiros — quanto dos portugueses;
tão do nosso conjunto de valores transnacionais quanto Camões e Vieira, O
mesmo está acontecendo hoje com certos “regionalistas” brasileiros nos quais
os portugueses se encontram, a despeito dos indianismos, dos africanisrnos,
dos pernambucanismos, dos caipirismos que eles empregam. 107
104
Ver MIRANDA, Rachel de. Op. Cit.
105
Nesse contexto, Gilberto Freyre citou o Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura como exemplo de
instituição que já se dispunha na cooperação dos países luso-descendentes e o Dr. Manuel Múrias, diretor
do Arquivo Histórico Colonial de Lisboa: “(...) me parece que deve ser no sentido de procurarmos todos
conservar, ao lado do ponto de vista regional ou nacional, o transnacional quando se fizer a
sistematização de esforços, já haverá essa coincidência de orientação, essa antecipação de colaboração”.
FREYRE, G. Op. Cit., p.81.
106
Termo usado por Freyre, ver Ibidem.
107
Ibidem, p.67.
50
com a mesma intensidade que no Brasil nuns pontos, talvez com menor
vivacidade noutros. O que não deixará de haver entre luso-descendentes
serão (...) essas provas de vigor e híbrido na esfera da cultura. Vigor híbrido
não na parte das “sub-raças”, mas das culturas, ou “sub-culturas. 108
(...) interpretar a sua produção intelectual no período não tanto como uma
alternativa conservadora, mas como um outro modernismo, eventualmente
108
FREYRE, Gilberto. O mundo que o português criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 53.
109
Ver MIRANDA, Rachel de. Op. Cit.
110
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p.70.
111
Ver, Ibidem.
51
distinto daquela postura a um só tempo nacionalista e modernizadora que se
tornava gradualmente hegemônica entre nós. 112
112
ARAÚJO, Ricardo Benzaquén de. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala na Obra de Gilberto
Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994, p. 21.
113
Ibidem, p.48.
114
BASTOS, Élide Rugai. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico. Entre Dom Quixote e Alonso El
Bueno. Bauru/SP: EDUSC, 2003, p. 142.
52
sociais e culturais das diferentes raças formadoras da população brasileira,
configurando-se de modo indelével a sociedade.
O conjunto composto por Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e
Ordem e Progresso constituiu o que Freyre identificou como “Introdução à história da
sociedade patriarcal no Brasil”. Assim, em Casa-grande & Senzala, analisou o Brasil
do período colonial, correspondendo ao estudo da formação nacional e da constituição
do povo brasileiro; em Sobrados e mucambos, direcionou-se ao exame do século XIX,
desde a vinda da corte portuguesa até o período republicano, descrevendo a decadência
do patriarcado rural e o desenvolvimento das cidades. Por fim, em Ordem e Progresso,
enfocou as últimas décadas do século XIX e as três primeiras do século XX, analisando
a desintegração da sociedade patriarcal no quadro da transição do trabalho escravo para
o trabalho livre e as pressões modernizantes.
É importante assinalar que na trilogia foram desenvolvidas idéias originais sobre
a sociedade brasileira e determinados períodos da história nacional. Questionava-se
como, na mudança de um regime para outro, se mantinha a organicidade da sociedade e
a unidade nacional. Se no Império a simbiose monarquia e patriarcado favoreceu uma
ordem de certa forma democrática, no momento republicano, o que possibilitaria sua
continuidade?
Responder a tais indagações foi a grande finalidade das referidas obras. Freyre
acreditava que a chave estava nas forças simultaneamente de equilíbrio e de conflito que
atravessam a sociedade: de um lado, a permanência de certos ritos que compunham a
legitimidade do sistema e permitiam sua reprodução; de outro, mudanças resultantes da
decadência do patriarcado e da alteração da composição étnica da população como
produto da vinda de imigrantes, que alteraram a face da sociedade brasileira. Assim, as
transformações de caráter cultural, econômico, social e político — linguagem, crenças,
moda, higiene, sanitarismo, urbanização, instituições, deslocamento regional da
economia — transformaram significativamente o perfil da comunidade nacional.
Como bem salientou Ricardo Benzaquén, Gilberto Freyre foi por vezes
contraditório, ambíguo e via de regra não conclusivo. Contudo, isso revelou a face
complexa do autor, para quem a imprecisão e a ambivalência traziam estética e recurso
essenciais à construção dos argumentos. Freyre assinalava para os críticos o fato de ser
um pensador de tradição ibérica, 115 o que marcaria o seu perfil intelectual de
115
Ver, FREYRE, Gilberto. Op. Cit..
53
ajustamento da palavra à personalidade, e não o contrário, traço que o tornava mais um
escritor de campo do que de gabinete e o autorizava a descrever e interpretar a realidade
sob uma perspectiva sensível e personalista.
De fato, foi apresentado ao público um tratamento interdisciplinar inédito e até
certo ponto revolucionário para a época, em cada um dos temas abordados: a criança, a
mulher, o patriarcalismo, a religião, a língua, a culinária, a raça, a cultura, o índio, o
europeu, o africano, a economia, a ecologia e a família, impactanto os estudos sociais e
culturais da segunda metade do século XX. Gilberto Freyre rompeu com preconceitos,
fontes e lugares comuns, oferecendo uma abordagem original, marcada pela erudição e
pela pesquisa científica, devidamente alinhavadas por uma linguagem próxima do estilo
literário e acessível ao grande público. Tem-se, portanto, uma espécie de obra de
transposição de uma realidade que o autor tentou captar e compartilhar em sua
totalidade, sem simplificações e reducinismos, buscando a criação de um consenso
social e até certo ponto político sobre os valores nacionais e luso-tropicais.
Seja como for, o luso-tropicalismo não serviria apenas de instrumento político
para os governos português e brasileiro. Sua propagação, positiva ou negativa, abriria
caminhos em várias direções, sobretudo nos domínios das ciências sociais e no âmbito
das instituições politico-culturais. Tal disseminação ainda contribuiria para o
enraizamento de uma imagem lusófona ainda sustentada e reproduzida, especialmente,
por Brasil e Portugal.
54
Capítulo III
116
Ver SUPPO, Hugo R. “Gilberto Freyre e a Imagem do Brasil no Mundo”. Cena Internacional, Ano 5,
nº 2, Dez/2003, p. 40-58.
117
Ver Ibidem.
118
Ibidem, p. 45.
119
Ver SUPPO, Hugo R. Op. Cit., p. 45.
55
No ano de 1939, em viagem ao extremo sul do Brasil, Gilberto Freyre entrou em
contato com a gente e a paisagem daquela região. Ficou impressionado com o
abrasileiramento do alemão e de outros colonos, percebendo o processo de
nacionalização através do gesto, do ritmo do andar e da prática de atos tradicionalmente
brasileiros. Esse abrasileiramento, segundo ele, fazia-se quase sempre pela pressão do
ato sobre o espírito, ou seja, alemão ou o italiano começavam a se nacionalizar pela
prática de uma série de pequenos atos brasileiros. A liturgia e o ritual diário acabavam
por persuadir suas raízes e almas de imigrantes. Mereceu destaque, ainda, o fato de que
todos esses imigrantes, de diversas nacionalidades, trariam suas contribuições culturais.
O Brasil caminhava para se tornar uma cultura plural. 120
120
Quando retornou de viagem, um jornalista perguntou sobre sua impressão das “populações coloniais”
do sul. Freyre respondeu que, a seu ver, tais populações deveriam ficar separadas. Apesar de serem
grupos europeus, representavam um perigo para a cultura luso-brasileira. Para Gilberto Freyre, o Brasil
não existia sem a formação portuguesa; Portugal tinha direitos lingüísticos e culturais, pois quando
colonizou parte da América, firmou nos trópicos uma civilização com elementos predominantemente
europeus e cristãos. FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio,
1940, p. 39.
121
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 40 e 41.
56
favoráveis e concretas existentes: a história em comum e a familiaridade entre os
intelectuais portugueses e brasileiros. 122
122
Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. “Relações Culturais Luso-Brasileiras: alguns pontos de
confluência.” In.: Convergência Lusíada. Rio de Janeiro, 24: 256-264, 2º semestre de 2007.
123
Ibidem, p. 136.
124
Ver CASTELO, Cláudia.“O modo português de estar no mundo”. In: O luso-tropicalismo e a
ideologia colonial portuguesa. (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 45.
125
Ibidem, p. 46.
57
Com o intuito de penetrar na mentalidade política e cultural da época, o novo
conceito de Império, a um tempo naturalista e ontológico, 126 foi divulgado em diversos
textos e discursos. O ministro das colônias Armindo Monteiro (1931-1935), grande
teórico da política imperial portuguesa, concebeu o Império como uma unidade de
sentimentos históricos acima dos interesses políticos e econômicos. De acordo com
Cláudia Castelo:
Portugal pode ser apenas uma nação que possui colônias ou pode ser um
Império. Este será a realidade espiritual de que as colônias sejam a
corporização. A par da extensão territorial, o Império resulta, sobretudo, da
existência de uma mentalidade particular. Funda-se esta, essencialmente, na
certeza que a nação possui do valor da obra que já realizou, na vontade de a
prosseguir ininterruptamente, na convicção que pode prossegui-la, vencendo
todas as dificuldades. 127
126
ROSAS, Fernando. O Estado Novo (1926-1974). Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 287.
127
Ver CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 47.
128
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da fraternidade: Brasil-Portugal - Do Tratado de
Amizade Ao Caso Delgado. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/Universidade de Lisboa, 2003.
129
Gilberto Freyre foi um dos delegados oficiais do governo brasileiro nesses eventos, contudo suas
conferências foram lidas por Manuel Murias, pois Freyre teve de regressar prematuramente ao Rio de
Janeiro por problemas de doença na família. Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. Afinidades Atlânticas:
Impasses, quimeras e confluências nas relações luso-brasileiras. Rio de Janeiro: Quartet, 2009, p. 139.
130
Ver Ibidem.
58
Ao Brasil é devida referência especial, (...) havemos de pedir ao Brasil que
venha a Portugal no momento em que festejaremos os nossos oitocentos anos
de idade ajudar-nos a fazer as honras da Casa; que erga o seu padrão de
História ao lado do nosso; que não seja apenas nosso hóspede de honra, mas
como da família. 131
Entre dois de junho e dois de dezembro de 1940, Portugal vivenciou uma série
de festejos a propósito de celebrar a passagem do oitavo e do terceiro centenários da
fundação do Reino (1139) e da Restauração (1640), respectivamente. Embora não esteja
em nossos propósitos discutir as motivações de natureza político-ideológicas que
levaram o Estado salazarista a promover aquelas celebrações, convém ressaltar que a
política cultural desenvolvida por Antônio Ferro e posta em execução pelo Secretariado
133
de Propaganda Nacional buscava elevar o espírito do povo português, valorizando-o
não apenas como grupo étnico, mas também por sua cultura, pela força de produção,
pela capacidade civilizadora e pela unidade independente no concerto das nações. 134
Sua consecução assentava-se sobre três pilares: o uso da cultura como símbolo da
nacionalidade e meio de propaganda, de modo a engrandecer a obra de governo de
Salazar; a tentativa de conciliar a velha tradição e os valores lusitanos com a
modernidade simbolizada pelo advento do Estado Novo; e o estabelecimento de uma
cultura nacional e popular com base nas raízes e nos ideais forjados pelo regime
salazarista. 135
131
SALAZAR, Antonio de Oliveira. “Independência de Portugal - Nota oficiosa da Presidência do
Conselho”. Revista dos Centenários, Lisboa, 1:3, janeiro de 1939.
132
VARGAS, Getúlio. “Discurso”, pronunciado em 17 de junho de 1939, no Real Gabinete Português de
Leitura. A Ação dos portugueses do Brasil na Exposição do Mundo Português (...). Rio de Janeiro: [s.n],
1940.
133
Ver TORGAL, Luís Reis. História e ideologia. Coimbra: Livraria Minerva, 1989, p. 194. (Coleção
Minerva - História nº 3). Ver, também, LEONARD, Yves. Salazarismo e Fascismo. Tradução de Catarina
Horta Salgueiro. Lisboa: Editorial Inquérito, 1998, p.95-96.
134
Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. “À Sombra das Chancelarias: A Preparação do Congresso Luso-
Brasileiro de História (Lisboa, 1940)”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro: IHGB, a. 168, n. 437, p. 49-66, out./dez. 2007.
135
Ver ROSAS, Fernando. O Estado Novo nos anos trinta: 1928-1938. Lisboa: Editorial Estampa, 1986.
E ROSAS, Fernando. “Salazar e o Salazarismo: Um caso de longevidade”. In: Salazar e o Salazarismo.
Lisboa: Publicações D. Quixote, 1989.
59
Uma das principais ações concretizadas nos festejos das Comemorações
Centenárias foi a Exposição do Mundo Português, pois segundo o próprio Salazar a
Exposição representaria: “(...) uma síntese da nossa ação civilizadora, da nossa ação
na história do mundo, mostrando, por assim dizer, todas as pegadas e vestígios de
Portugal no globo”. 136 O Brasil foi único país estrangeiro com pavilhão próprio na
Exposição, o que ressalta o seu lugar de evidência, pois assim o Brasil exibiria sua
história, cultura e feições modernas.
136
ALMEIDA, José Carlos. “Portugal, o Atlântico e a Europa. A identidade nacional, a (re)imaginação
da nação e a construção européia”. In: Nação e defesa, nº. 107, 2ª. Série, 2004. p 147-172.
137
A expressão é de Fernando Catroga. Cf. CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história”. In:
CATROGA, Fernando; TORGAL, Luís R. & MENDES, J. A. História da História em Portugal: da
Historiografia à Memória Histórica (séculos XIX e XX). Lisboa: Temas e Debates e Autores, 1998, p.
268-269.
138
Figura proeminente na vida intelectual portuguesa. Presidiu a Comissão Nacional que coordenou as
Comemorações Centenárias e foi editor da Revista dos Centenários.
139
A Revista dos Centenários, fonte documental da maior importância, foi o instrumento de divulgação
da comissão organizadora das Comemorações. Nela foram apresentados os programas e preparativos para
a celebração lusitana, além de servir de veículo para convocação dos portugueses dispersos pelo mundo,
para participarem e colaborarem na grande festa, em especial, os portugueses do Brasil. COMISSÃO
NACIONAL DOS CENTENÁRIOS. Revista dos Centenários, Lisboa: C. N. C., n os 1-22, Janeiro de
1939 – Dezembro 1940, p. 13.
60
nação irmã, que partilha gloriosamente o nosso patrimônio histórico e
lingüístico. 140
140
COMISSÃO NACIONAL DOS CENTENÁRIOS. Revista dos Centenários, Lisboa: C. N. C., n os 1-
22, Janeiro de 1939 – Dezembro 1940, p. 16 e 17.
141
TORGAL, Luís Reis. História e ideologia. Coimbra: Livraria Minerva, 1989, p.189 (Coleção
Minerva- História nº 3).
142
Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. “À Sombra das Chancelarias: A Preparação do Congresso Luso-
Brasileiro de História (Lisboa, 1940)”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro: IHGB, a. 168, n.437, p. 49-66, out./dez. 2007.
143
O aposto aparece seguido ao nome de Getúlio Vargas, acima de uma imagem do busto presidente em
alto relevo, superposta na fachada principal do Pavilhão Brasileiro, na Exposição Histórica do Mundo
Português.
144
Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. Op. Cit.
61
estreitaram neste período a fim de que fossem mantidas as tradições históricas e
nacionais. Conforme já mencionado, tanto Getúlio Vargas quanto Antônio de Oliveira
Salazar desenvolviam políticas públicas direcionadas à valorização da nacionalidade,
apoiadas em determinadas concepções pragmáticas da história.
A presença do Brasil nos Centenários não era mais só uma questão de exaltação
nacionalista, era também uma necessidade estratégica. A aliança entre os governos
português e brasileiro, firmada na ocasião dos centenários, consolidaria a amizade,
podendo Portugal contar com o Brasil em horas de incertezas como no pós-guerra ou no
período de descolonização. Assim como em 1808, mais uma vez Portugal voltava-se
para o Atlântico nas angustiosas horas de perigo e insegurança, tendo no Brasil seu
porto seguro.
Gilberto Freyre se depara com este quadro político-ideológico. Sua idéias foram,
num primeiro momento, repugnadas pelos ideólogos dos Estados Novos, tanto
português quanto brasileiro, por serem consideradas demasiado radicais e
transgressoras. Os únicos casos de reconhecimento imediato tiveram lugar no campo
145
CORTE-REAL, João. “Um documento secular passado no Rio de Janeiro”, Congresso do Mundo
Português – Memórias e comunicações apresentadas ao Congresso Luso-Brasileiro de História. Lisboa:
[s.n.], 1940, v. IX, p. 192.
62
cultural. 146 O antropólogo Antônio Augusto Mendes Correia, por exemplo, em sua
comunicação no Congresso Luso-Brasileiro, “O elemento português na demografia do
Brasil”, exaltou a tese de Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre expondo que:
Das velhas armadas, das antigas caravelas, dos frágeis veleiros de outros
tempos, dos modernos transatlânticos, até os trágicos destroços de naufrágios,
aportaram, por mais de quatro séculos, à costa brasileira, milhares, milhões
de compatriotas nossos, formigueiro humano que deu à formação, ao
engrandecimento e à glória do Brasil o melhor do seu esforço. Não lhes
pertence todo o mérito da assinalada epopéia sul-americana. Tiveram
colaborações preciosas, de outros elementos étnicos, de fatores naturais
incontestáveis, de circunstâncias históricas. Embora os séculos, o meio e os
cruzamentos não hajam destruído os nossos colonos e emigrantes e nos seus
descendentes as virtualidades germinais, uma flama interior que é herança
biológica imortal, há, de certo na vida e na população brasileiras elementos
importantes de diferenciação relativamente à vida e a população da antiga
metrópole. Mas as diferenças não excluem afinidades que nenhum capricho
do destino ou vontade terrena alcançara jamais suprimir ou sequer desfigurar.
São afinidades de raça, de língua, de civilização, de história, de fé, as quais
garantem, através de milênios e de todos os episódios e vicissitudes, a
realidade e a permanência de uma bela unidade moral luso-brasileira. 147
Tanto no Brasil quanto em Portugal, Gilberto Freyre foi alvo de muitas críticas
públicas. A publicação de Casa Grande & Senzala gerou, entre a intelectualidade ultra-
reacionária pernambucana, certa polêmica em relação a Gilberto Freyre e sua obra, o
que, de antemão, demarcaria o destino polêmico do autor. Termos como “imundo”,
“infame” e “obsceno” foram freqüentemente utilizados para se referir ao autor em
jornais e revistas da época.
146
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 48.
147
Congresso Luso-Brasileiro de História. Volume XI Tomo III – p. 256-257.
63
demagógico e revolucionário, visto que estimulava a luta de raças, preparatória para a
luta de classes. 148
(...) os pais das normalistas precisam ler essa obra da mais descabelada
pornografia para saberem o que Pinto ensina às suas alunas da Escola
Normal. O caso, pela extrema gravidade, está a exigir severas providências
do diretor da Escola e do secretário de Educação. 150
148
Ver RIVAS, Lêda. “A mística do mestre: oito anos após a sua morte, Gilberto Freyre ainda provoca
polêmica”. Diário de Pernambuco. Recife, 22 fev. 1999.
149
Ver Ibidem.
150
Ibidem.
151
Ibidem.
64
apontou Casa Grande & Senzala como um “vasto arsenal de pornografia, salpicado cá
e lá de blasfêmias próprias e alheias, blasfêmias religiosas e científicas”. 152
152
RIVAS, Lêda. Op. Cit.
153
Ibidem.
154
A autora apresenta de forma detalhada as críticas e recepções, no campo cultural e político, das teses
de Gilberto Freyre em Portugal. CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 80.
155
Ibidem.
65
No prefácio da primeira edição de O Mundo que o Português Criou, escrito por
Antônio Sérgio, ficou clara a crítica e a difícil aceitação entre os portugueses de alguns
aspectos da tese de Casa Grande & Senzala. Segundo o autor:
66
harmonioso e fraterno, numa base igualitária, entre portugueses e nativos. Monteiro,
imbuído do darwinismo social, desvalorizava as culturas não européias em prol de uma
unidade nacional ou de uma civilização luso-tropical.
Deste modo, a concepção imperial dominante não era compatível com a idéia
de fusão de elementos diversos numa nova civilização luso-tropical. Portugal
tinha o dever histórico de impor às ‘raças inferiores’ os valores da civilização
ocidental e do cristianismo, mas desse contacto civilizador teria de sair sem
mácula. O processo era impositivo e unilateral. A possibilidade de se realizar
em África uma simbiose étnica e cultural equilibrada repugnava ao
exacerbado nacionalismo lusitano. Em nome da pureza da ‘raça’, da religião
e da cultura portuguesas, a experiência brasileira não se podia repetir no
império colonial português. 158
O conjunto de críticas ora salientado põe em evidência o quanto Casa Grande &
Senzala repercutiu nas no âmbito nacional. Recorde-se que, na década de 1930,
questões sobre o caráter nacional estavam em foco tanto no Brasil e em Portugal. Em
Portugal, um pequeno número de puristas rejeitava a mestiçagem, não só pelo
entendimento das desvantagens biológicas da mistura das raças, mas principalmente
pelos males causados pela dissolução de estilos tradicionais de cultura nos seus aspectos
religiosos, étnicos e estéticos.
Nos círculos culturais africanos, Gilberto Freyre também foi lido e debatido. O
grupo da revista cabo-verdiana, Claridade, fundada em 1936, reconhecia o estudo do
sociólogo pernambucano da seguinte maneira:
158
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 86.
159
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da fraternidade: Brasil-Portugal - Do Tratado de
Amizade Ao Caso Delgado. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/Universidade de Lisboa, 2003, p. 91.
160
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 80.
67
Nas ilhas crioulas, Casa Grande & Senzala inspirou um novo padrão literário e
de representação do universo de Cabo-Verde. O grupo Claridade aderiu e disseminou
aquelas teorias, aludindo ao modelo verificado no Brasil,
161
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 82.
162
Ibidem, p. 83.
163
MEDINA, João. Gilberto Freyre contestado: o lusotropicalismo criticado nas colónias portuguesas
como alíbi colonial do salazarismo. Revista USP. São Paulo: SIBi/USP, n. 45, março/abril/maio 2000, p.
51.
164
CABRAL, Amilcar. “Prefácio” In: DAVIDSON, Basil. Révolution en Afrique: la libération de la
Guinée portugaise. trad. Brigitte Simon; introd. Amilcar Cabral. Paris: Éditions du Seuil, 1969, p. 11 e12.
68
cristocêntrica que eurocêntrica do português que o diferenciasse como colonizador, isso
principalmente pela prática escravocrata que perdurou por mais de três séculos.
Apontando que na África a mestiçagem teve certa força no passado, mas que havia se
perdido com o colonialismo praticado, sobretudo, após 1920, o autor defendia que o
luso tropicalismo não era válido para explicar a formação do Brasil e era, na mesma
medida, falso para as circunstâncias do colonialismo português na África.
Gilberto Freyre e sua grande obra Casa Grande & Senzala surgiram num
período em que o mundo era impactado por grandes mudanças na dinâmica das relações
políticas e raciais entre as nações. Era um momento de redefinição de bases universais,
valores e apreciações sobre a história dos homens e das diferenças políticas e culturais.
O fim da II Guerra Mundial gerou a condenação dos nacionalismos políticos e de raça, e
de alguma forma abriu espectro a liberdade e a independência. O luso-tropicalismo
ganharia assim nova leitura, já que de maneira incontornável instigava uma realidade
lusófona.
165
ANDRADE, Mario pinto de (FELE, Buanga). Qu’est-ce que ‘le tropicalismo?. In: Revista Présence
Africaine. v. 9, n. 5, out.-nov., 1955, p. 30.
166
Ibidem, p. 27 e 28.
69
III. 3 – A década de 1950 e a Estratégica Retórica da Afetividade
Surgem então dois sistemas novos que divergem em seus fins: a assimilação, que
visa integrar a colônia na vida da metrópole buscando uma unidade política, moral e
econômica, e a autonomia, em que a metrópole prepara a colônia para a independência.
Nesse ponto, “a solidariedade não nos parece que possa servir de fundamento para o
exercício da actividade colonizadora”. 168
167
RAMPINELLI, Waldir José. As Duas Faces da Moeda. As Contribuições de JK e Gilberto Freyre ao
Colonialismo Português. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004, p. 21.
168
Ibidem, p. 56.
70
integradas num complexo único de história, sentimento e cultura, perfeitamente
qualificado cientificamente pelo luso-tropicalismo e exemplificado na existência do
Brasil. Não obstante, o contexto de guerra fria e de rivalidade ideológica entre dois
grandes blocos econômicos permitiu que as atenções se desviassem e que Portugal
mantivesse, por mais algum tempo, suas concepções políticas.
169
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 79.
170
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da fraternidade: Brasil-Portugal - Do Tratado de
Amizade Ao Caso Delgado. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais / Universidade de Lisboa, 2003, p. 81.
71
Ocidente, temos bem garantido o nosso lugar, e o único problema que nos
põe é saber se nos manteremos à altura das nossas responsabilidades. 171
A África, e não a Ásia, era o que, portanto, estava em jogo para Salazar. A
aliança com os nacionalistas conservadores europeus e com o Brasil se lhe
afiguravam como as peças fundamentais para sua estratégia colonialista. Ao
Brasil, como se verá mais adiante, estava reservado um papel fundamental
nessa estratégia. Em virtude de sua condição de grande ex-colônia, situada do
Atlântico Sul, com fortes ligações com a África, o apoio brasileiro as teses
salazaristas era considerado absolutamente indispensável. Um apoio que até
1961 não será negado e que se inicia com o contencioso indiano. 173
171
GONÇALVES, Williams da Silva. Op. Cit., p. 78.
172
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 40.
173
GONÇALVES, Williams da Silva. Op. Cit., p. 80.
174
“No que diz respeito à realização do Plano de Metas, as prioridades eram os setores de energia e
transportes. Nesse sentido, sua política econômica representou uma mudança face à política
industrialista iniciada por Getúlio Vargas. Para este, a arrancada de industrialização brasileira deveria
iniciar-se com uma sólida base de industrias de bens de equipamento. Kubitschek deslocou a ênfase para
a industria de bens de consumo duráveis, particulamente os automóveis, que, ao lado da nova capital
[Brasília], se tornavam o símbolo dessa política industrialista”. Ibidem p. 58
175
Sobre os ocidentalistas e os nacionalistas: “O primeiro, de ideologia liberal conservadora, lutava
para manter o Brasil adstrito ao bloco ocidental e era favorável a uma aliança duradoura com Portugal.
O segundo, de ideologia desenvolvimentista, percebia as mudanças do sistema internacional como um
fenômeno benéfico para o Brasil, que assim teria ampliadas as oportunidades de efetivar sua condição
de Estado independente, sem, no entanto, definir uma política especifica para Portugal”. Ibidem, p. 19.
72
Antes mesmo de tomar posse do governo, Juscelino Kubitscheck visitou
Portugal e firmou sua posição política de incondicional adesão ao país. Ao ser indagado
sobre o litígio entre Portugal e a União Indiana, deixou claro o apoio ao colonialismo
português: “o meu governo vai aumentar a solidariedade com Portugal no caso de Goa
e em todos os terrenos”. 176 E deu fim aos temores dos resquícios da política
anticolonialistas de Getúlio Vargas, 177 apesar dos prejuízos que a concorrência dos
produtos primários africanos poderia causar ao Brasil.
176
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 42.
177
A política externa do segundo governo Vargas combinou nacionalismo e condenação as
desigualdades estruturais do sistema econômico internacional, tendo inclusive confrontos com os
interesses americanos. Em relação aos movimentos da Tunísia, do Marrocos e da Guiana Inglesa, Getúlio
Vargas, coerentemente com a sua política ideológica nacionalista, condenava a política colonialista
européia: “Vemos com simaptia os movimentos nacionalistas de povos que anseiam pela sua completa
emancipação política e econômica, continuando em nossa orientação adversa ao imperialismo
escravizador e ao colonialismo tentacular, que visam apenas locupletar-se com a miséria das nações
subdesenvolvidas”. Ibidem, p. 27.
178
GONÇALVES, Williams da Silva. Op. Cit., p. 17.
179
Ibidem, p. 18
73
O Brasil apoiou a posição portuguesa dentro da ONU, principalmente na
Quarta Comissão, onde se tratava o debate referente à colonização, chegando
o nosso representante – Donatello Grieco – afirmar taxativamente que “tocar
em Portugal era tocar no Brasil”. E endossava a tese de Salazar de que o país
não possuía colônias, mas províncias ultramarinas, recorrendo inclusive à
história dos dois países ao lembrar que quando D. João VI se estabelecera no
Rio de Janeiro, em 1808, nenhum decreto fora expedido para que se fizesse
tal transferência, já que “na lei portuguesa o Brasil era Portugal”, assim como
hoje é hoje Portugal qualquer território português na África ou na Ásia. 180
74
O Tratado de Aliança e Consulta beneficiou, maiormente, a pátria lusitana. A
justificativa política do governo brasileiro era de que a permanente consulta entre os
dois países diante dos problemas internacionais de interesse comum equivalia à inclusão
do Brasil na participação das relações européias.
A política externa de Kubitscheck pode ser vista como incongruente, visto que o
presidente lançou a Operação Pan-Americana (OPA), 184 rompeu com o Fundo
Monetário Internacional (FMI), e simultaneamente, apoiou o colonialismo português na
ONU e ratificou o Tratado de Amizade e Consulta. O governo JK, apesar das críticas,
permaneceu em sua posição a favor de Portugal, alimentando o fortalecimento das
relações luso-brasileiras por diversas razões de tendência ideológica e histórico-afetivas.
Seu desejo de industrialização e modernização buscava enquadrar o Brasil aos países
desenvolvidos e aos valores ocidentais, sendo a aliança com Portugal satisfatória para
esses propósitos.
184
Operação lançada em 1958, no contexto da defesa do Ocidente, na qual o Brasil apoiou para a maior
projeção do país e integração da América Latina. RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 69 e 74.
185
Ibidem, p. 146 e 147.
75
fortes mudanças políticas que convulsionavam o mundo eram anúncio do que estava por
vir.
186
Para Norberto Bobbio, a prática intelectual centra-se justamente o exercício do que chama de “poder
ideológico” nas sociedades que caracteriza os intelectuais. Existe nas sociedades, argumenta, “ao lado do
poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o
poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se
necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e
transmissão de idéias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da
palavra”. BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na
sociedade contemporânea. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. da UNESP, 1997, p. 11.
187
Ibidem, p. 21-22
188
Ibidem, p. 18.
76
trocarmos algumas idéias sobre o que os intelectuais que se reconhecem em
uma determinada parte política fariam ou deveriam fazer. 189
189
BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 69-70.
190
Ibidem, p. 80.
191
Ibidem, p. 70.
192
Ibidem, p. 11.
193
Ibidem, p. 12.
77
O objetivo aqui não é discutir as ligações entre o trabalho intelectual e a política.
Uma breve sondagem sobre tal relação, contudo, parece adequar-se para a análise do
contexto das viagens de Freyre no além-mar lusitano.
194
“Antes de formalizar o convite, Sarmento Rodrigues fala com Salazar e procura informar-se sobre a
posição do Governo brasileiro relativamente a Gilberto Freyre. (...) Falei com o Presidente do Conselho
que acha bem. No entanto, precisava assegurar-me que o homem não seja mal visto ou hostil ao governo
do seu país, porque nesse caso não o poderíamos ostensivamente tratar bem”. O projeto da viagem de
Freyre prosseguiu com o aval mais do que positivo por parte do governo brasileiro. CASTELO, Cláudia.
Op. Cit., p. 88 e 89.
195
Ibidem, p. 87.
196
Ibidem, p. 89.
197
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 11.
78
nitidamente apolítica poderia ter sido minha resposta a esse convite
excepcional que de início me colocou na situação de homem de estudo a
quem se pediu que viesse no Ultramar Português com o inteira independência
e até com olhos sociológica mente clínicos. 198
Em 1953, foram lançados dois livros: Aventura e Rotina, 201 um diário científico
das suas anotações etnográficas durante a viagem, e Um brasileiro em terras
portuguesas, 202 coletânea das conferências e discursos proferidos durante as visitas. As
obras produzidas serviram para corroborar as premissas teóricas da existência de um
mundo de características lusófonas. As idéias centrais do luso-tropicalismo, explicitadas
de forma teórico-formal, acabavam muitas vezes sendo recriações da versão original
pela política colonial portuguesa, em prol do nacionalismo salazarista e da defesa do
dissimulado império, sobretudo, calcadas nos valores culturais, civilizacionais e cristãos
lusitanos. As críticas à realidade colonial, como os fatos de censura e racismo, ficaram à
margem nos trabalhos de campo de Freyre. 203 Contudo, pode-se perceber o que parecia
198
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 11.
199
Destacam-se o Diário de Notícias, Diário de Lisboa, Século, A Voz de São Tomé e A Voz de Angola.
CASTELO, Cláudia. OP. Cit., p. 90 e 91.
200
Freyre contatou os mais variados círculos políticos e intelectuais portugueses, no entanto: “Só os
velhos camaradas de portugueses de Esquerda não o procuram”. . FREYRE, Gilberto. Aventura e
Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 90.
201
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
202
FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1953.
203
As críticas à visita oficialmente político-científica de Freyre não tardaram. Tomaz Ribeiro Colaço,
intelectual português exilado no Brasil, denunciou dizendo: “Porque o seu nome por tantos títulos
respeitado e respeitável, acaba de ser fraudulentamente usado ao serviço daquele totalitarismo [que
domina Portugal], e assim apresentado sob uma luz falsa à intelectualidade e ao povo da minha terra”.
CASTELO, Cláudia Op. Cit., p. 92. Por parte do Brasil, a escritora Raquel de Queiroz, na revista O
Cruzeiro, acusou Gilberto Freyre de ter alienado a sua independência ao ter aceitado o convite do regime
79
ser o propósito de Gilberto Freyre e a sua articulação no jogo político de Brasil e
Portugal. Adiante, seguem algumas considerações sobre o conteúdo de Aventura e
Rotina, apresentadas num esforço de apreensão das intenções e da atmosfera que
cercava o autor.
A trajetória de Freyre foi sempre guiada pelo roteiro bem traçado do comando de
Lisboa. Os Ministérios do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros encarregaram-se, logo,
do itinerário do viajante, juntamente com o apoio da Polícia Internacional e de Defesa
do Estado (PIDE), que cuidava da locomoção e dos cenários apropriados a análise
conveniente de estudo. Desde a escolha das pessoas para o acompanhamento de Freyre
até as orientações, a agenda, a seleção dos lugares propícios, a observância “do modo
português de estar no mundo”; tudo passava pelo crivo das autoridades portuguesas.
Gilberto Freyre percorreu todas as províncias portuguesas, à exceção de Macau e Timor,
pois, por razões políticas, não interessava apresentar áreas onde a língua portuguesa não
fosse predominante e a mestiçagem fosse pouco expressiva. 204
Entre agosto de 1951 e fevereiro de 1952, Freyre foi recebido por comitês que o
aguardavam em diversas regiões do país (pela primeira vez no Algarve, em Trás-os-
Montes; revendo o Alentejo, o Ribatejo, o Minho, o Douro, Lisboa, Porto, Coimbrada e
Alcobaça). Na África, visitou a Guiné portuguesa – hoje Bissau –, Angola, Senegal e
Moçambique. Na Ásia, esteve em Goa, Diu, Damão, Bombaim, Nanica e Sofala. Das
ilhas atlânticas, visitou Cabo Verde e São Tomé. Os locais que freqüentou eram sempre
bem apresentados e as visitações, limitadas. Gilberto Freyre deixou subentendidas em
suas anotações essas condições, pois reconhecia a precariedade das colônias e a
repressão do regime salazarista. 205
O sociólogo confirmava que seu esforço intelectual por toda a viagem era o de
comprovar a suposição da unidade de um universo particular, além da validade de uma
nova ciência que ele começava a formular: a luso-tropicologia. Em sua excursão,
buscava provar que a intensa troca de valores, já desvendada ao “penetrar” no interior
das Casas Grandes e Senzalas, provocada pelo contato nem sempre igualitário, mas
quase sempre íntimo entre o colonizador português, negros escravos e os nativos no
português: “(...) ao passar por Angola, pouco ou nada viu da realidade dessa terra africana”. A autora,
ao se referir às práticas evidentes de racismo na Cia. de Diamantes de Angola.
204
CASTELO, Cláudia Op. Cit., p. 61.
205
Ver MIRANDA, Rachel de. Além-Mar Aventura e Rotina: o Lugar do Brasil no Mundo Luso-Tropical
de Gilberto Freyre, 2002, 80f. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002, p. 52.
80
Brasil, teria sido a mesma para todo “O Mundo que o Português Criou”. Depois de
visitar a Guiné e Cabo Verde, o autor se mostrou convencido de que o português era um
povo com rara capacidade para realizar novas combinações de raças e de culturas, que
em essência tendem a se conservar lusitanas. Antes de voltar ao Brasil, num discurso
proferido no Ministério do Ultramar, afirma ter confirmado na África e no Ocidente
suas antecipações sobre a fecunda obra colonizadora do português. 206
206
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 89.
207
Ver MIRANDA, Rachel de. Op. Cit., p.56.
208
Ver Ibidem.
81
costumes ou tendências que parecem às vezes peculiares ao Brasil tem origens
lusitanas”. 209
Motivado por esse desejo, Freyre percebeu, por exemplo, que a fala cabo-
verdiana soava mais como o português “brasileiro” do que com a língua do colonizador.
Já o futebol angolano, surpreendentemente, desenvolvia-se usando a ginga dos negros
sul-americanos como espelho. A compleição física e a fala dos goenses, por sua vez,
lembravam tanto a dos mestiços brasileiros, que não haveria como se argumentar contra
a constância, apesar das diferenças, das misturas étnicas e culturais entre o luso e o
trópico.
209
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.141.
210
Ver Ibidem.
211
Ver Ibidem.
212
Ibidem, p.17
82
permanecesse, mesmo com as modernizações. A cidade se renovaria sem apagar seu
passado nem modificar sua paisagem de maneira deformadora. Para Freyre, mesmo em
declínio, a possibilidade de estabilidade ou de equilíbrio dos antagonismos que iam se
acentuando em Lisboa era um fator fundamental da capacidade de permanência da
intercomunicação cultural, não apenas em Portugal, mas também na dispersão da
mistura pelas varias colônias. 213
213
Ver FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 17.
214
Ibidem, p. 260.
83
português, tão íntimo quanto o travado no Brasil, foram acentuados pelo tipo de clima,
de vegetação e pelo homem tropical, mais próximo do Brasil do que da África. Até
mesmo na fala e nos gestos, Freyre identificava esta proximidade:
(...) o mesmo, o seu sorriso que não têm a exuberância do africano nem as
reservas do europeu. Também a fala: (...) a ação tropical sobre a língua
européia parece vir sendo a mesma nas duas áreas; a mesma, também, a
simplificação, na língua do invasor português, das duras complexidades se
sons, para que os povos tropicais mais facilmente os vinham adquirindo e
conservando. 215
215
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 320.
216
Ver Ibidem.
217
Ibidem, p.266.
218
Ibidem, p. 281.
84
As reações à Aventura e Rotina foram bastante duras, 219 primeiro, pelo contágio
político da obra. Segundo, pelas comparações prematuras e demasiado forçadas. E
terceiro, pela obra não ter se revelado tão original e inspiradora quanto Casa grande &
Senzala. Logicamente, as críticas que se direcionam a Aventura e Rotina também
estavam fundamentadas nas implicações políticas do uso do luso-tropicalismo, em
especial aos interesses legitimadores de Salazar no âmbito internacional. Sabia-se da
necessidade da continuidade do contato entre Portugal e as províncias ultramarinas, em
nome da língua e da história comum, e de certa sintonia cultural e afetiva. Deste modo,
o apego à teoria luso-tropical como interpretação totalizante e funcional da presença
portuguesa em territórios tropicais tornou-se moeda corrente entre os que legitimavam a
manutenção do poder colonial português.
219
Podem-se destacar manifestações contrárias a Aventura e Rotina do escritor cabo-verdiano, Baltasar
Lopes e do diretor da Cia de Diamantes de Angola, Ernesto Vilhena.
85
portuguesa para a colonização nos trópicos. 220 Temia-se que as premissas do luso-
tropicalismo se confundissem com “estímulos à desnacionalização”, resultando na
diluição da cultura portuguesa e na perda da identidade nacional.
De acordo com a mesma autora, Norton de Matos também não era totalmente
favorável ao luso-tropicalismo. Embora reconhecesse a importância da leitura das obras
de Gilberto Freyre e da língua como fator de identidade nacional, era contrário à
reprodução da experiência brasileira em Angola, em Moçambique e na Guiné.
Considerava que na formação do Brasil “houve um esforço comum de gente branca da
Metrópole, de índios brasileiros e dos escravos pretos da África”, que resultou numa
fusão étnica e cultural equilibrada. Na África, não haveria a possibilidade de simbiose
luso-tropical; devia-se moldar o outro à imagem e semelhança do “eu” português.221
220
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 95.
221
Ibidem, p. 95.
222
Ibidem, p. 98.
86
Universal e Internacional de Bruxelas em 1958 é um exemplo. Na obra, sugestivamente
intitulada Portugal. Oito séculos de história ao serviço da valorização do homem e da
aproximação aos povos, publicada por iniciativa do Comissariado Português da
Exposição, encontramos com facilidade referências a doutrina luso-tropical. Orlando
Ribeiro, no artigo Um povo na terra, explica que “Português não é (...) um conceito de
raça, mas antes uma ‘unidade de sentimento e de cultura que aproximou homens de
várias origens”. Adriano Moreira procura demonstrar que se deve a Portugal:
223
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 97.
224
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 61.
225
Adriano Moreira, na qualidade de professor e diretor do ISEU, depois ISCSPU, e como também
diretor do CEPS da JIU, adjunto ao referido instituto, em 1955-56, introduz o estudo do luso-tropicalismo
na cadeira de Política Ultramarina no curso de Altos Estudos Ultramarinos. CASTELO, Cláudia. Op. Cit.,
p. 101 e 102.
87
sólida, sobretudo, com os posicionamentos políticos das duas nações nos Estados Novos
e durante a década de 1950.
88
Capítulo IV
226
SARAIVA, José Flávio Sombra. “A África e o Brasil: Encontros e Encruzilhadas”. Ciências e Letras,
n.º 21/22, Porto-Alegre, Faculdade Porto-Alegrense de Educação, 2001, p. 139.
227
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Do lirismo ao pragmatismo: a dimensão
multilateral das relações luso-brasileiras (1974-1976). Lisboa: ISCTE, 2008 (Proveniente do Prémio
CES/09), p. 23.
89
mundo, o regime português fechava-se sobre si”. 228 No plano internacional, Quadros e
João Goulart assumiram uma política externa mais autônoma em relação ao Ocidente, a
fim de propiciarem novas alianças econômicas e políticas. 229 A relativa inflexão da
ordem bipolar permitiu rearranjos no sistema internacional menos dependentes das duas
superpotências e nesse sentido, a aproximação com o bloco socialista, o
aprofundamento dos laços com o Terceiro Mundo e o crescente apoio ao direito à
autodeterminação dos povos despertaram a atenção da diplomacia brasileira quanto à
África promissora do futuro.
Apesar da inércia do governo brasileiro frente ao início da guerra colonial em
Angola, as divergências ao apoio incondicional ao colonialismo português não tardaram
a se tornar notáveis nas relações luso-brasileiras. O confronto de interesses e a
fragilidade identitária colocavam em questão o papel do Brasil em relação à África e o
real significado da amizade com Portugal. “Entre 1961 e 1964 a posição brasileira na
ONU em relação às colónias portuguesas oscilou entre a abstenção e o apoio à
independência de Angola. Esta ambiguidade traduz o desequilíbrio entre os grupos
conservadores e os progressistas presentes na Administração brasileira”. 230
Sob ditadura militar a partir de 1964, o Brasil se afinou novamente com a
estratégia ocidental de contenção do comunismo. O Atlântico Sul tornou-se um espaço
de atuação direta do Brasil em termos de segurança, 231 pois era vulnerável à influencia
soviética. Dessa forma, o apoio a Portugal mais uma vez estava assegurado. Apesar do
recuo nas relações com os países africanos, que se inspiravam em movimentos de
libertação de esquerda, o Brasil assumiu nova tendência perante a África sem, contudo,
perpassar por Portugal.
228
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 23.
229
A Política Externa Independente empreendida pelo Governo de Jânio Quadros (1961) e pelo de João
Goulart (1961-1964) consistia numa nova estratégia de inserção internacional. Foi posta em prática pelos
chanceleres Afonso Arinos de Melo e San Tiago Dantas, que propunham o distanciamento do conflito
Leste-Oeste e maior posicionamento a nível Norte-Sul. Dessa forma, sob menos influência americana, o
Brasil assume uma postura mais terceiro-mundista. Sobre a Política Externa Independente e
internacionalização da economia brasileira ver: LAFER, Celso, Paradoxos e Possibilidades: Estudos
Sobre a Ordem Mundial e Sobre a Política Exterior do Brasil num Sistema Internacional em
Transformação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982; AMADO, Luiz & BUENO, Clodoaldo. História
da Política Exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.
230
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 24. “Em Janeiro de 1962 o Brasil
votou favoravelmente à Resolução 1742 da ONU que apelava à criação de instituições políticas livres e à
transferência de poderes em Angola”.
231
A defesa do Atlântico Sul caberia a três capitais livres e ocidentais presentes no hemisfério sul:
Brasília, Lisboa e Pretória. SARAIVA, José Flávio Sombra. O Lugar da África. A Dimensão Atlântica da
Política Externa Brasileira (de 1947 a nossos dias). Brasília: Universidade de Brasília, 1996, p. 118.
90
O governo de Castelo Branco (1964-67) optou pela vertente da política externa
voltada para o alinhamento com o Ocidente no confronto geopolítico. Contudo, o
contexto político de repressão militar no Governo de Costa e Silva recorreu a certas
diretrizes de política exterior adotadas anteriormente ao golpe, priorizando os ideais
nacional-desenvolvimentistas e deixando de fundo na agenda diplomática o conflito
leste-oeste. Carvalho afirma que tais alterações teriam permitido o reaparecimento da
política africana do Itamaraty lentamente, o que implicaria na revisão das relações com
Portugal. Se Brasília ainda votava favoravelmente a Lisboa na ONU, gradualmente o
continente africano ganharia importância nas estruturas do ministério das Relações
Exteriores, constituindo uma de suas principais linhas de ação nos anos seguintes. 232
232
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 26.
233
Idem.
234
Ibidem, p. 27.
91
Janeiro e Luanda. No entanto, a investida foi infeliz, uma vez que o governo Médici
pretendia esgueirar-se da adesão e mediar uma solução negociada.235
As relações luso-brasileiras encontravam-se em descompasso, já que o
alargamento da política externa brasileira era incompatível com os interesses
portugueses. O governo de Lisboa se isolava em seus objetivos de defesa nacional, sem
levar em conta o desgaste do posicionamento internacional do Brasil em seu benefício.
A ambigüidade em relação ao regime português não poderia continuar por muito tempo.
Um impasse político interno do regime português impedia o governo de pôr termo à
guerra colonial e empreender uma efetiva liberalização política e econômica, o que
impossibilitava o início de um novo padrão de relacionamento bilateral.
Por sua vez, o presidente Garrastazu Médici preferiu estabelecer acordos e
relações com o Oriente Médio e com a África Negra. Em 1972, a PETROBRAS foi
pioneira em quebrar o bloqueio internacional à recém-nacionalizada Iraq Petroleum
Company (IPC), celebrando com ela um contrato. Além disso, o Brasil demonstrava
interesse em constituir ligações entre a PETROBRAS e a Nigerian National Oil
Corporation (NNOC), mas a ambigüidade de Brasília em relação à questão colonial
figurava-se como um empecilho. 236
No mesmo ano, o chanceler Mário Gibson Barboza empreendeu viagens por
diversos territórios africanos, consolidando seu posicionamento de que o Brasil deveria
tender mais para a África do que para Portugal. Convencido e determinado a disseminar
tal estratégia, o ministro brasileiro declarou o ano de 1972 como o Ano da África – o
que despertou resposta imediata de descontentamento por parte de seu homólogo
português Rui Patrício.
235
Ver CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 28. “Durante o encontro
bilateral de 1970, o chanceler Mário Gibson Barboza sondou o seu homólogo português acerca dessa
possibilidade. A resposta de Rui Patrício foi a de que o Ultramar era uma questão de ‘soberania
interna’, ‘insusceptível de ser discutida mesmo com um país irmão’”.
236
SANTANA, Carlos Ribeiro. “O Aprofundamento das Relações do Brasil Com os Países do Oriente
Médio Durante os Dois Choques do Petróleo da Década de 1970: Um Exemplo de Ação Pragmática”.
Revista Brasileira de Relações Internacionais, v.40, n.º 2, Brasília, s. e., 2006 (consulta eletrônica:
http://www.scielo.br/scielo.php?lng=es).
237
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 31.
92
A partir de 1973, a tradicional solidariedade internacional brasileira a Portugal
começou a ruir vertiginosamente diante dos estreitamentos com o mundo árabe e com o
continente africano. Os países da África Oriental acertaram com seus parceiros árabes
sanções econômicas e embargos petrolíferos ao Brasil por conta da posição do país em
relação a Angola e Moçambique. Além disso, na XXVIII Assembléia Geral das Nações
Unidas, os países africanos votaram contra o Brasil, e a favor da Argentina, sobre a
utilização de recursos naturais comuns às duas nações. 238 Dessa maneira, o Brasil
começou a sofrer retaliações frontais por sua disposição imprecisa com relação à
descolonização africana.
A visita do presidente Médici a Portugal poria fim às expectativas de apoio
incondicional do Brasil frente à descolonização, pois o posicionamento do governo em
relação à África configurava como essencial para uma estratégia mais autônoma do
Brasil em termos de política externa. O continente africano despertava, além de
correspondência regional, atração histórica ao Brasil e nessa altura, convinha ao país
exercer presença no eixo sul, tanto por conveniências econômicas como por sua
inserção internacional no concerto das nações.
Os rearranjos políticos da década de 1970 denotaram o luso-tropicalismo como
uma teoria insensata e incoerente em termos práticos, como em torno de uma
Comunidade Luso-Afro-Brasileira. Contudo, os desdobramentos da descolonização
permitiram que o Brasil firmasse novos modelos de relacionamento com a África,
redimensionasse sua habitual relação com Portugal e atualizasse a retórica luso-tropical
através da Lusofonia e da criação de uma comunidade de países de língua ou expressão
portuguesa.
A política pró-america dos dois primeiros governos militares deu lugar a uma
nova política externa, denominada pragmatismo responsável. O nome se devia à
relativa polarização ideológica que possibilitou, durante o governo de Ernesto Geisel
(1974-79), o aprofundamento da política de “não alinhamento automático” com os
Estados Unidos. As relações exteriores do Brasil, nesse momento, pautavam-se na
mundialização e na diversificação de parcerias e acordos bilaterais, que pretendiam dar
ao país um novo lugar no sistema internacional. Essa estratégia de internacionalização
política e econômica se adequava ao projeto nacional-desenvolvimentista, que buscava
238
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit, p. 34. “O delegado da Etiópia declarou
à delegação brasileira que a OUA ‘decidira demonstrar ao Brasil que teria de começar a pagar um alto
preço por não se dissociar, de vez e claramente, das posições portuguesas’”.
93
um novo padrão das relações entre o eixo norte e sul. Nessa perspectiva, o Brasil foi
primeiro país a reconhecer a independência de Angola, mesmo esta tendo sido feita pelo
MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), de orientação socialista. 239 Além disso,
o acordo nuclear entre Brasil e Bona, em 1975, abriu caminho, como modelo, para um
novo tipo de cooperação. 240
O pragmatismo responsável foi uma redefinição estratégica de política
internacional que pretendia creditar um novo padrão de dependência externa ao Brasil,
aprofundando as relações com alguns países da Europa Ocidental e da África. Nessa
altura, a vertente africana adotada pelo governo brasileiro procurava estreitar laços
econômicos e políticos com outros países em via de desenvolvimento, o que resultaria
em nova configuração das relações no hemisfério sul. Dessa forma, o Brasil projetava-
se como interlocutor entre o “primeiro” e o “terceiro mundo”, rejeitando a mediação
portuguesa. O Brasil pretendia inserir os mercados africanos em seu horizonte de
expansão econômica a fim de suprir a dependência energética do país. O passado de
cumplicidade com o colonialismo português traria para o país a imagem de multirracial
e defensor da autodeterminação e, por isso, aliado natural do continente africano. 241
Entre 1975 e 1976, uma série de oportunidades se ofereciam no espaço
Atlântico. Nesse sentido, a revitalização do Atlântico Sul e a aproximação com a África
Lusófona eram imperativas. Em janeiro de 1975, a imprensa já demonstrava consenso
sobre a emergência do continente africano no sistema internacional e sobre a atuação do
Brasil perante as mudanças que se afiguravam:
239
FREIXO, Adriano de. Minha Pátria é a Língua Portuguesa: a construção da idéia da lusofonia em
Portugal. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, p. 38.
240
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 51.
241
Ibidem, p. 51.
242
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 325. 03/03/75, p. 6.
94
governo brasileiro junto aos membros dos três movimentos de independência de
Angola. 243 Segundo os analistas do Jornal do Brasil, a opinião pública apoiava a
legitimidade das ações políticas do Brasil em África.
243
Os três movimentos eram: A Frente Nacional, O Movimento Popular e a União Nacional pela
Independência do país.
244
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 325. 03/03/75, p. 6.
245
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 325. 03/03/75. p 4.
246
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 82. A desconfiança ocorria pela
memória do apoio tácito brasileiro para com o colonialismo português e pela suspeita da tentativa de um
novo imperialismo vindo do Brasil.
247
Ibidem, p. 78.
95
Guiné e apoiou o seu ingresso na ONU. As declarações do Ministério das Relações
Exteriores demonstravam a grande satisfação do Brasil em apoiar a recente nação de
língua portuguesa. O reconhecimento da independência da Guiné foi uma prova da
liberdade diplomática que o Brasil vinha conquistando, pois a conjuntura era delicada
devido à crescente influencia soviética nos movimentos de emancipação política. 248
As relações luso-brasileiras chegaram ao ápice da contrariedade. Portugal
acreditava que o Brasil estava implantando uma política africana às suas custas. “No
Palácio das Necessidades, um diplomata disse a um correspondente do Estado de São
Paulo: Pode haver tratado de amizade, mas não há tratado de consulta”. 249 Tal crítica
reflete o mal-estar criado entre os governos devido ao fato de o Brasil ter comunicado
sua decisão de reconhecimento à Guiné-Bissau com apenas vinte e quatro horas de
antecedência – ou seja, sem dar qualquer abertura a uma negociação com Portugal.
Tanto o Brasil quanto os Estados Unidos tentavam recolocar suas atuações em
África. A política externa brasileira, mais autônoma, era relevada pelos EUA, já que o
país se apresentava como um aliado ocidental a exercer influencia conveniente sobre o
continente africano. Nesse sentido, o embaraço das decisões brasileiras em relação aos
territórios africanos de colonização portuguesa era negativo aos interesses e receios
americanos. No caderno Internacional, do Jornal do Brasil de Janeiro de 1975, o
secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, falou sobre a força do Brasil
para o futuro por conta da sua visita à América Latina:
248
A independência guineense foi proclamada unilateralmente pelo Partido Africano da Guiné e Cabo
Verde, de filiações esquerdistas. CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 82.
249
Ibidem, p. 85. O presidente da república portuguesa, António Spínola, sentiu-se chocado com a
decisão do governo brasileiro, especialmente após o envio da missão chefiada por Galvão de Melo ao
Brasil.
250
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXVI. nº 58. 05/06/76. p. 9.
96
particularmente gostaríamos de manter boas relações nos domínios que
acharmos mutuamente vantajosos. É certo que subsistem algumas
desconfianças, pois esperávamos que em nossa luta de libertação o Brasil
tomasse uma posição frontal contra o colonialismo. Mas, hoje entendemos
que nossas responsabilidades são diferentes e achamos que deveremos pelo
menos tentar ultrapassar certas barreiras para nos aproximarmos. 251
Qualquer que seja o grau de sutileza a que foi obrigado a usar para fazer face
a chegada da hora da independência angolana, o governo brasileiro parece ter
satisfeito sua maior preocupação, a de estar presente, ombro a ombro com
outros quatro Estados independentes de língua portuguesa (Moçambique,
Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) no momento exato do
nascimento do outro membro da comunidade afro-luso-brasileira rebatizada e
despojada de suas conotações colonialistas. 253
251
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXV. nº 215. 09/11/75. Caderno Especial. p. 1.
252
Idem.
253
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXV. nº 217. 11/11/75. p. 6.
254
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 323. 01/03/75. p. 3. Desejo de Almícar. “Luís
Cabral observou que a cultura brasileira, objeto de admiração de seu povo, teve suas raízes arrancadas
do solo africano, transportadas nos navios negreiros, com sangue e a dor dos escravos levados para as
97
As animosidades e os ressentimentos em nível político e cultural eram latentes,
por parte dos representantes africanos que conduziam as transformações políticas em
seus países. Nesse período de transição política, o luso-tropicalismo era visto como uma
ideologia colonialista romântica e ilusória. A língua se mostrava o único instrumento
capaz de recuperar a cooperação atlântica e de alterar os velhos padrões de
relacionamento entre os três continentes. O trecho abaixo, retirado de uma entrevista
com um dos membros do MPLA, é demonstrativo de como a questão lingüística era
encarada pela elite política:
(...) O português não deverá ser substituído como língua franca. Não seria
presumivelmente, do interesse angolano de todas as raças a perda da
identidade do idioma, ainda mais porque este aspecto transcende qualquer
filiação ideológica. (...) De nossa parte, como integrantes do mundo de
expressão portuguesa, é fundamental que se instale em Luanda um governo
amigo, disposto ao diálogo e a cooperação com o Brasil. 255
98
possibilitaram, com o passar do tempo, uma revisão das relações bilaterais e do
relacionamento com a África.
99
políticos que não se tornaram completamente democráticos. Cada onda de
democratização afetou certo número de países, num movimento de contágio político que
seguia os padrões de modernização política. No entanto, as aberturas democráticas
também impulsionaram algumas transições na direção não-democrática, como numa
onda reversa, pois nem todas as transições para a democracia ocorreram durante ondas
democráticas. Assim, a história não se desencadeou de forma unidirecional e as
mudanças políticas não se encaixaram em classificações temporais e contextuais
fechadas ou únicas.
A terceira onda teve início com o golpe de 25 de Abril de 1974 em Portugal e
possibilitou um implausível movimento a caminho da democracia no final do século
XX. Nos anos que se seguiram ao fim da ditadura portuguesa, regimes democráticos
substituíram regimes autoritários em aproximadamente cinqüenta países das diferentes
regiões geográficas. Em alguns deles, ocorreu considerável liberalização dos regimes
autoritários. Em outros, movimentos de democracia ganharam força e legitimidade.
O Brasil já havia tido uma experiência democrática na década de 1940, mas o
quadro limitado e instável levou o regime ao fracasso. Somente a partir da Revolução
dos Cravos pode-se considerar que o Brasil esteve inserido nessa onda democrática
encetada por Portugal. A transição brasileira, contudo, procedeu-se de forma contrária à
portuguesa. No Brasil, apenas na década de 1980 a sociedade civil se tornou
politicamente ativa, criticando a ditadura militar, reavaliando os preceitos democráticos
e seus objetivos e encontrando formas de confiança mínima nos velhos representantes
políticos do governo para a construção da democracia no país.
A conjuntura internacional foi fundamental para o desenvolvimento democrático
tanto no caso português quanto no caso brasileiro, porém, a dinâmica interna foi
essencial para a concretização das transições. A característica marcante do caso
português foi a vitória dos moderados 259 . O desenrolar dos fatos em Portugal após a
Revolução superou as expectativas, pois um país atrasado social e economicamente,
259
Ver MAXWELL, Kenneth. The making of Portuguese democracy. Cambridge, New York,
Melbourne: Cambridge, 1995.
100
vivendo um período único de instabilidade política, foi precursor da democratização nas
ditaduras da América Latina.
Portugal pode ser visto como o caso clássico de um país que sobreviveu ao cerco
dominante que o rodeava. Partilhando, desde longa data, a Península Ibérica com a
Espanha – tradicional rival da independência portuguesa – e o oceano com os britânicos,
o país tornou seu serviço diplomático mestre em postergar, confundir e encontrar modos
de proteger os interesses nacionais. 260 Por vezes, a situação interna de Portugal,
autoritário e salazarista, impediu a mudança política ao longo das décadas do XX. Em
outros momentos, o empecilho veio de fatores externos. Curiosamente, os motivos
internos e externos não chegaram a coincidir em um grau que ocasionasse uma
transformação significativa, o que permitiu que Portugal se mantivesse, até antes da
década de 1970, isolado e intransigente em sua posição colonialista.
Por volta de 1973, a classe militar já apresentava sinais de descontentamento, o
que gerou mobilizações com o chamado “Movimento dos Capitães” dos oficiais do
Exército. Em Dezembro do referido ano, tal movimento se tornou irreversível,
transformando-se em “Movimento de Oficiais das Forças Armadas” (MFA). Com uma
rapidez extraordinária e sem oferecer resistência, o regime que governava Portugal
desde os fins da década de 1920 foi derrubado. Em 26 de Abril de 1974, uma multidão
eufórica saiu às ruas, o programa do MFA foi afixado e suas promessas foram lidas com
avidez.
Embora a revolta de 25 de Abril possuísse poucas conotações revolucionárias na
época, também não foi um golpe de Estado comum. Derrubou a ditadura mais antiga da
Europa, prenunciou o fim do mais antigo império europeu na África e empurrou para o
primeiro plano um híbrido inquietante: um grupo de oficiais militares europeus,
profundamente influenciados pela teoria e pela prática das lutas de libertação fora da
Europa e que, no decorrer do tempo, passaram a se ver cada vez mais como uma
vanguarda revolucionária. Em 25 de Novembro de 1975, fez-se necessário um último
acerto, de modo a por fim aos sonhos comunistas da Revolução Portuguesa. O
260
Ver MAXWELL, Kenneth - The making of portuguese democracy. Cambridge, New York,
Melbourne: Cambridge, 1995.
101
Ocidente, atento, interveio no processo democrático português através do “Plano
Callaghan”. 261 Desse modo, com a assinatura do II Pacto MFA-Partidos e com o
sufrágio livre e universal dos centros de poder, deu-se fim à Revolução Portuguesa e
início à implantação da estrutura político- institucional do sistema democrático.
As guerras coloniais e as adaptações democráticas pelas quais passaram Brasil
e Portugal fizeram com que a política atlântica estagnasse por um período. O “retorno
ao atlântico” reapareceu como demanda política luso-brasileira no final da década de
1980 – apesar de Portugal estar interessado na sua integração à Europa, através da
Comunidade Econômica Européia (CEE). O Brasil, por sua vez, preocupava-se com a
estabilidade política, com as relações com os países do chamado “Primeiro Mundo” e
com a aproximação com a América do Sul para a criação de um mercado comum,
dentro das perspectivas de globalização e do neoliberalismo. 262
As profundas dificuldades políticas e econômicas de Portugal pós-25 de Abril e
a má impressão das guerras em solo africano e do passado de isolamento internacional
pela posição colonialista da nação fizeram com que Portugal virasse às costas para o
Atlântico como forma de superação política. Somente em 1990, com a “hora de
regressar à África”, 263 declarada pelo presidente português Mário Soares, Portugal,
integrado à União Européia, percebeu que as opções poderiam ser complementares e
estratégicas em termos de reinserção do país no cenário internacional. 264
Em A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 265 Adriano Moreira, autor
de vários trabalhos sobre o luso-tropicalismo e Portugal, faz uma reflexão pertinente a
respeito dos acontecimentos que sucederam à Revolução dos Cravos de 1974. A
261
Os países europeus demonstraram maior visão política e realismo na análise do problema português:
durante o período 1974-1975, pressionaram as autoridades revolucionárias a concretizarem a promessa de
realizar eleições livres, alertando-as acerca das conseqüências negativas que resultariam da sua não
concretização. Contudo, notou-se alguma divisão nos países europeus: o presidente francês Giscard
d’Estaing partilhava do pessimismo americano sobre o triunfo das forças moderadas; o chanceler alemão
Helmut Schmidt financiava Portugal, através do seu apoio ao Partido Socialista; os britânicos, liderados
por Harold Wilson e James Callaghan, apostavam em ajudar os oponentes do Partido Comunista
Português, nomeadamente o Partido Socialista, com o qual o Labour Party mantinha relações
privilegiadas, ao mesmo tempo em que mantinham abertos os contatos com algumas personalidades de
poder em Portugal.
262
FREIXO, Adriano de. Minha Pátria é a Língua Portuguesa: a construção da idéia da lusofonia em
Portugal. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, p. 50.
263
Ibidem, p. 42.
264
Ibidem. Capítulo 1: A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP: História e Perspectivas.
265
MOREIRA, Adriano (Coord.). Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – Cooperação. Lisboa:
Edições Almedina, 2001.
102
descolonização relativamente caótica, o envolvimento entusiasmado de Portugal no
projeto da integração européia, o trauma das guerras coloniais, as prolongadas e
desastrosas guerras civis que eclodiram em Angola e Moçambique, a situação difícil na
Guiné, em São Tomé e Príncipe e a relação indiferente com o Brasil, sobretudo na
década de 1980, mostraram que o luso-tropicalismo passou por um período de
descrédito. Somente em 1996, com o propósito de estimular a Lusofonia, que deriva
fundamentalmente do luso-tropicalismo de Freyre, foi criada a Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa (CPLP), por liderança do Brasil e de Portugal, mais uma vez
unidos em torno de interesses comuns.
Ainda que o contexto fosse adverso, em 1889, ocorreu a primeira reunião dos
Chefes de Estado e de Governo dos Países de Língua Portuguesa, no Maranhão, que
concebeu concretamente a futura comunidade através do Instituto Internacional de
Língua Portuguesa (IILP). O embaixador José Aparecido de Oliveira, político renomado
no Brasil durante o governo de Itamar Franco (1992-94), foi o principal articulador do
projeto de unificação ortográfica e de uma comunidade da língua portuguesa em Lisboa.
A partir dos esforços do diplomata, ocorreu, em 1994, a Primeira Reunião dos Ministros
das Relações Exteriores e dos Negócios Estrangeiros dos Países de Língua Portuguesa,
na qual foi sugerida a realização de uma Cimeira dos Chefes de Estado e de Governos,
propondo a constituição da Comunidade.
Após sucessivos impasses e negociações, a Cimeira aconteceu em Lisboa, em
Julho de 1996. Nela, os Chefes de Estado e de Governo dos sete países (Portugal,
Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe) que
adotavam o português como idioma oficial, criaram institucionalmente a Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como organização internacional que detinha a
Declaração Constitutiva e Estatutos próprios. Segundo Adriano de Freixo em Minha
Pátria é a Língua Portuguesa: a construção da idéia da lusofonia em Portugal, 266 o
intuito era a emergência de um foro multilateral que proporcionasse uma relação de
cooperação entre os países membros diante das relações internacionais, além de
difundirem projetos de promoção e difusão da língua portuguesa no mundo.
266
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 35. Ver também CPLP. Estatutos da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa. Disponível em: www.cplp.org.
103
O projeto de uma Comunidade Lusófona ou Luso-Afro-Brasileira retomou as
idéias dos intelectuais brasileiros e portugueses de diversos matizes ideológicos e
campos acadêmicos – como Gilberto Freyre, Joaquim Barradas de Carvalho, Adriano
Moreira, Agostinho da Silva e Darcy Ribeiro. Pelo menos desde a década de 1950, tais
idéias ressurgiram constantemente nos discursos luso-brasileiros de integração atlântica.
Cabe ressaltar, contudo, que mesmo constituída a CPLP, observam-se fragilidades em
termos de consolidação entre seus membros. 267 A onipresença da idéia de uma
especificidade lusófona, que rescalda nitidamente do luso-tropicalismo, mantém
paradigmas retóricos de relacionamento entre os três continentes, tornando fraca a
performance política e econômica da Comunidade.
Para Portugal, a CPLP recuperou a língua portuguesa como uma ponte que
resgatou a velha noção de grandeza territorial e de epopéia colonial. O vazio em relação
ao passado e à identidade tornava indispensável recobrar o discurso lusófono. Portugal
readquiria alguma especificidade frente às nações européias, em especial, à Espanha,
com a afirmação da língua portuguesa como a quinta ou sexta língua de expressão
mundial. Dessa maneira, ideologicamente, “a constituição da CPLP passa pelo
discurso calcado na idéia de uma herança cultural comum, enfatizando os laços
históricos que unem os países que a compõem, destacando a questão identitária, na
qual a Língua Portuguesa adquire um papel fundamental”. 268 O reconhecimento da
língua portuguesa a partir de uma comunidade com projeção externa restaurou os laços
modernos de Portugal com o Atlântico e restabeleceu a “consangüinidade” luso-afro-
barsileira tão bem estruturada no luso-tropicalismo.
A CPLP também ofereceu boas oportunidades econômicas a Portugal, já que o
país se apresentava como dependente dentro das trocas estabelecidas com comunidade
européia. O governo português poderia ser intermediário entre a União Européia (UE) e
os blocos regionais dos países lusófonos, como o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e
a Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral (SADCC).
267
Atualmente, a organização conta com o Timor Leste, como oitavo Estado-membro.
268
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 45.
104
Nessa perspectiva, as relações econômicas entre Portugal e os outros Estados-membros
da CPLP se intensificaram.
Contudo, as pretensões portuguesas em relação à CPLP permaneceram na
apelação histórico-retórica, e ultrapassaram as reais capacidades de ação. Afinal, em
relação aos anseios como intermediário atlântico, Portugal esbarrava em suas limitações
no sistema internacional e na UE. Ademais, as potências européias, que também eram
antigas metrópoles, mantinham ligações com o continente africano, exercendo,
inclusive, atração sobre ex-colônias portuguesas. Em outras palavras, a oferta
portuguesa de mediação política em termos práticos tornou-se dispensável dentro das
relações internacionais estabelecidas pelo continente europeu.
Além disso, os demais membros demonstravam desinteresse em relação ao
esforço da concretização efetiva e ao alargamento das propostas para a relevância da
CPLP. A adesão à Comunidade ocorreu mais pela retórica afetiva e histórico-cultural do
que por interesses políticos objetivos. Portugal se projetou para o centro da Comunidade
como “pátria-mãe”, haja vista a utilização do prefixo “luso”, que lhe investe conotação
e caracteriza culturalmente todos os outros membros. No entanto, o Brasil acabaria
exercendo demasiado peso na compleição da CPLP. Além de sintetizar em seu território
a junção dos três povos principais que a compõem, o país possui 80% dos falantes de
língua portuguesa presentes na Comunidade. O Brasil nunca buscou a liderança da
Comunidade, já que a CPLP encontra-se num plano secundário a seus anseios políticos.
Apesar do protagonismo brasileiro na concepção da CPLP, desde o início da
década de 1990 o Brasil abdicou de sua posição mais independente e adotou uma
política externa tendente às relações com o chamado “Primeiro Mundo” e empenhada
na integração latino-americana com o incentivo a criação do Mercosul. Durante a
administração de Fernando Henrique Cardoso, com o alinhamento a uma política
neoliberal, a estratégia de política externa não se alterou, sendo o mundo lusófono
relegado ao plano dos discursos e projetos. Até o governo de Luís Inácio Lula da Silva,
o Brasil manteve-se tímido em termos políticos e econômicos no espaço atlântico com a
África. A ausência de uma política nacional autônoma e mais desvinculada dos
interesses do capital externo fez com que o Estado brasileiro não priorizasse seu papel
no Atlântico sul dentro sistema internacional.
105
Do ponto de vista geopolítico, o Brasil pode vir a estabelecer um desenho
privilegiado com a África do Sul e com Angola, com trocas econômicas e atuação
política privilegiada, sobretudo em aspectos de segurança global. A nova versão da
política externa brasileira vem buscando um assento permanente no Conselho de
Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e para isso formulou uma política
de projeção do Brasil no eixo sul e junto ao G-20, defendendo condições de comércio e
de relações internacionais mais igualitárias entre os hemisférios. Nessa direção, o
desempenho político brasileiro no espaço comunitário da CPLP poderia otimizar as
pretensões da nação. O Itamaraty, contudo, continuou investindo e procurando apoio
junto às relações bilaterais e parcerias pontuais. A política externa brasileira em relação
à África se manteve com a mesma postura anterior:
(...) a política africana no Brasil foi perdendo importância, tendo sido adotada
uma prática de opções seletivas de parceiros naquele continente em que se
destacam a Nigéria, a África do Sul, e secundariamente, Angola. Com isso,
países como Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo
Verde, não representam áreas do Brasil na África, o que esvaziava o papel
que a CPLP poderia representar no âmbito da política externa brasileira. 269
269
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 52.
106
Européia e os Estados Unidos. Provas reais dessa lógica política foram os movimentos
de ingresso de Moçambique e da Guiné, respectivamente, À British Commonweath e à
África Francófona. 270
270
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 57.
271
Ibidem, p. 58.
272
Como foi o caso de Timor Leste, que adotou oficialmente o português e a religião católica, heranças
da colonização portuguesa, como forma de resistência política à assimilação à Indonésia, apesar de tais
opções político-culturais terem se restringido a uma elite política.
107
erigida sobre alicerces pouco sólidos, baseados em discursos por vezes míticos, que
não encontram muita fundamentação na realidade concreta”. 273
Esse “vício” derivaria fundamentalmente da teoria luso-tropicalista, que
distinguia Brasil e Portugal em suas configurações históricas e homogeneizava os
territórios africanos em muitas dimensões. Por tal razão, o luso-tropicalismo teria
servido de forma tão satisfatória à lógica política do colonialismo português. De certa
maneira, a CPLP reproduz a mentalidade do “modo português de estar no mundo” de
inspiração freyriana, que propõe esforços em torno de uma mitologia cultural comum.
Esse imaginário compartilhado de mais de quinhentos anos de história vivida e baseada
numa convivência multirracial e multicultural gerou uma matriz lusitana/lusófona de
ser, na qual o Brasil transfigura-se em expressão central, interligando a geografia do
idioma.
A idéia de lusofonia presente na CPLP é o resgate moderno dos pressupostos
político-culturais do luso-tropicalismo. A CPLP, pó meio da língua, deu corpo
institucional a essa identidade partilhada no triangulo lusófono, buscando alinhar União
Européia (EU), Mercosul e a União Africana (UA) num denominador comum:
273
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 61.
274
MACHADO, Maria Valentina da Silveira “A Hora da Lusofonia e os dez anos da CPLP”. In:
Reflexões Lusófonas. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2008, p. 39.
275
Ibidem, p.37
108
político, pois a propósito das independências africanas buscou apenas instrumentalizar
politicamente o conceito de comunidade luso-tropical. Em um conferencia no Real
Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, em 1962, o sociólogo mostrou-se
sensível às aspirações de independência dos povos de soberania portuguesa,
incentivando:
(...) o contacto mais estreito não com os comunistas soviéticos nem com os
liberais norte-americanos, mas com os brasileiros; só assim poderiam
preparar Angola e Moçambique para se converterem em membros duma
federação de países de língua portuguesa, já que estes povos se sentem mais
inclinados que outros para a democracia racial e social. 276
276
CASTELO, Cláudia. “O modo português de estar no mundo”. In: O luso-tropicalismo e a ideologia
colonial portuguesa. (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 26. Gilberto Freyre ainda
afirmou, em relação às emancipações africanas: “Comunidade luso-brasileira, dizem uns, parecendo não
admitir nessa comunidade senão duas presenças nacionais: a de Portugal e a do Brasil. Comunidade
lusotropical, venho há anos sugerindo que se diga, admitindo que as presenças nacionais passem das
duas que são hoje às três ou às quatro que possam vir a ser brasileiramente, fraternalmente,
josebonifaciamente, amanhã”.
277
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 147.
109
O primeiro instrumento institucional concebido dentro do que seria o espírito da
CPLP – o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) – já estava imbuído dos
ideais luso-tropicais que tentavam enquadrar um grupo identitário comum. O IILP tinha
por objetivos: defender e difundir a língua portuguesa; enriquecer a língua como veículo
de cultura, educação, informação e de acesso ao conhecimento científico e tecnológico;
desenvolver as relações culturais entre os lusófonos; incentivar a cooperação, a pesquisa
e o intercâmbio nos domínios da língua e da cultura; difundir o Acordo Ortográfico.
Nessa senda, as diretrizes, os Estatuto, a Declaração Constitutiva, os Órgãos, os
Interlocutores e as Cimeiras da CPLP ainda refletem as tônicas centrais da teoria luso-
tropicalista, que são utilizadas formalmente e retoricamente nas declarações e nos
documentos oficiais da Comunidade. 278 Os conceitos luso-tropicais de valorização da
especificidade lusófona em integrar raças e culturas como traço comum ainda são
recorrentes e advém nitidamente da teoria freyriana. A partir de um simples quadro,
podem-se visualizar as principais idéias ainda propagadas e compartilhadas pela CPLP e
nos discursos de lusofonia:
Conceito Significado
Iberismo Lusitanopossibilitou estímulo à miscigenação e a especificidade do caráter
português.
Cristianismo Mais cristocêntrico que etnocêntrico, conferiu fraternidade,
Fraternal solidariedade e tolerância.
Modo ou Espírito permitiu capacidade de adaptação, mobilidade, plasticidade e o
Português sucesso nos trópicos. Processos de assimilação e acomodação
ocorreram, permitindo a presença simultânea de traços psico-
sociais e culturais das diferentes raças formadoras.
278
Além das idéias e do próprio nome de Gilberto Freyre, Agostinho da Silva também é freqüentemente
citado nos documentos oficiais como um dos inspiradores da CPLP. “Agostinho da Silva – misto de
educador, filosofo e pensador, considerado como uma espécie de guia espiritual de parte da
intelectualidade brasileira e portuguesa deste século – formulou a concepção de uma ‘Comunidade
Luso-Afro-Brasileira’ bastante original e pessoal refletindo uma visão de caráter universalista, místico,
visionário, espiritualista, mítico e messiânico que remonta aos escritos de Joaquim de Fiore – na Idade
Média – sobre o ‘Reino do Espírito’ e os do Padre Antônio Vieira sobre o ‘Quinto Império’”. FREIXO,
Adriano de. Op. Cit., p. 139.
110
Conforme os novos tempos, os pilares da Comunidade em torno das idéias de
globalização, e de interdependência das relações exteriores reinterpretam a vertente
multiculturalista e multirracialista defendida e divulgada pelo luso-tropicalismo. Assim,
a CPLP defende oficialmente:
» Um consenso político-diplomático no que diz respeito à coordenação de
posições com vistas à promoção de interesses comuns em instituições
internacionais como a ONU ou em foros especializados. A adoção de estratégias
voltadas para o alcance dos objetivos da Comunidade, como a promoção da paz,
a consolidação da democracia, a segurança regional, inclusive a solução
negociada de conflitos internos em países membros;
» A cooperação para o desenvolvimento que inclui iniciativas nas áreas
econômica, comercial, empresarial, da ciência e da tecnologia, da administração
pública, do aperfeiçoamento institucional, da valorização de recursos humanos e
da promoção social. A união propicia para a criação de escalas e facilidades na
mobilização de financiamentos e esquemas de cooperação triangular e
multilateral;
» A defesa e a promoção da língua portuguesa em âmbito universal. Falada por
duzentos milhões de pessoas espalhadas pelo mundo, o idioma constitui a base
sólida para a projeção internacional. Em um mundo globalizado, em processo de
crescente homogeneidade, é igualmente importante a defesa da língua para a
preservação das diferenças culturais e de costumes, diminuindo a ameaça de
empobrecimento cultural da humanidade.
111
IV. 3 – Os Discursos Lusófonos e as Políticas Atlânticas
279
FALCON, F. R. “História das Idéias” In: CARDOSO, C. F. & VAINFAS, R. Domínios da história:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 95.
280
SARMENTO, Cristina Montalvão. Os Guardiões dos Sonhos: Teorias e Práticas Políticas dos Anos
60. Lisboa: Colibri, 2008. p. 64.
281
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003.
112
hermeneuticamente vertical ou literal, mas em uma leitura dos contextos pelos quais os
discursos foram motivados e realizados, buscando a percepção densa das circunstâncias
que geraram seus modos de argumentação.
Para o historiador britânico, o investigador que recorre aos discursos políticos
deve esforçar-se para analisar a retórica, seu conteúdo afetivo e efetivo, e para decifrar a
gramática profunda disposta – ou seja, os termos básicos e recorrentes, as ocasiões
típicas em que foram empregados, e o modo pelo qual se complementaram e
conjugaram para formar as idéias a serem propagadas, reconhecidas e acolhidas. Em sua
palavras:
282
POCOCK, John. Op. Cit., p. 31.
283
FALCON, F. R. Op. Cit., p. 97.
284
POCOCK, John. Op. Cit., p. 27.
113
voz de sua própria linguagem. “A performance do texto é a sua performance como
parole em um contexto de langue”. 285
Esta “fala” singular é proferida numa “língua” comum, que define os limites dos
enunciados possíveis, num dado momento e para certo grupo de receptores. A
linguagem, no sentido aqui usado, não é apenas uma maneira de falar prescrita, mas
também um tema de debate circunscrito para o discurso político. Neste ponto, podemos
ver que cada contexto lingüístico indica um contexto político, social ou histórico no
interior do qual a própria linguagem se estabelece e interage com a experiência
fornecendo as categorias, a gramática e a mentalidade por meio das quais a vivência tem
que ser percebida e dialogada. A linguagem política não é inocente, na medida em que
se estrutura nas representações do público a que se dirige e pertence, ao mesmo tempo
que, por um processo circular, dele resulta.
Na arena política desenvolvem-se pressões e encorajamentos que condicionam
os lances discursivos do interlocutor. A expressão “lance” sugere manobra tática, 286
pois, na prática, o autor percebe a atmosfera e encontra os argumentos lingüísticos
satisfatórios para a defesa, legitimação ou invalidação das idéias políticas. O discurso
político certamente se mostra objetivo e animado pelas necessidades do presente,
impelindo à procura pelos os indícios de que as palavras estariam sendo usadas de
outras formas como resultado das novas experiências.
As investigações sobre idéias em forma de discursos e textos devem se calcar
em dois segmentos: nos contextos em que a linguagem foi articulada e nos dos atos de
fala e de enunciação efetuados sobre o contexto oferecido pela própria linguagem. Por
isso, quanto mais provas puderem-se mobilizar para testar e confrontar as hipóteses aqui
levantadas, maios segurança há da engenhosidade interpretativa. A presente análise está
alicerçada num tipo de paralinguagem, ou metalinguagem, 287 como numa espécie de
diálogo que visará captar o implícito, as insinuações e potencialidades políticas do
discurso, numa metodologia indutiva e semiótica.
285
POCOCK, John. Op. Cit., p. 38.
286
Ibidem, p. 39.
287
Ibidem, p. 35.
114
significações e de sua produção, em outras palavras, em especificar como se
chega a significar alguma coisa. 288
115
Fomos sempre principalmente pela geografia, pela cultura e pela história, um
país europeu. Mas também somos um país Atlântico, e teremos de continuar
a sê-lo: a isso nos obriga a circunstancia de no Atlântico estarem situados
territórios portugueses como a Madeira e os Açores, partes integrantes da
nação; a isto nos obriga a necessidade imperiosa de mantermos as melhores
possíveis relações com os novos Estados de língua portuguesa virados para
esse oceano. Ora, neste contexto, e para lá de outras razões, a determiná-lo, o
Brasil – a grande nação do Atlântico Sul – não pode deixar de desempenhar
no quadro da política externa portuguesa um papel de importância
fundamental. 290
290
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXVI. nº 17. 25/04/76. p. 14 e 15.
291
Idem.
116
presidencial em 1987, demonstra que esta retórica histórica permaneceu nos discursos
políticos entre Brasil e Portugal, como prova dessa cultura política luso-brasileira que se
traduz luso-tropical.
Não foi por acaso que Camões escreveu Lusíadas. A epopéia portuguesa não
é um fato apenas literário – e o Brasil é um dos resultados do seu impetuoso
desenrolar. O mesmo Brasil é testemunha de que a expansão de Portugal não
foi uma arrancada cega, visando exclusivamente o lucro. A América
portuguesa manteve uma integridade física e geográfica que foi negada à
América espanhola. Também agora não devemos olhar apenas o lucro –
medido pela balança comercial. A relação Brasil-Portugal há muito que saiu
do estágio de conflitante (que, aliás, não durou). O que resta a fazer é tirar
partido de uma comunidade de língua e cultura que está representada até
mesmo na longínqua Ásia – e mesmo nos locais, como Goa, onde se
procurou extingui-la pela força. 292
292
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano XCVI. nº 346. 24/03/87. p. 10.
293
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano CVI. nº 101. 24/03/87. p. 6.
117
manifestou-se sobre o luso-tropicalismo, no Recife, em 1987, dizendo numa mensagem
pessoal que: “(...) a teoria foi mal aproveitada no tempo do antigo regime, mas
justamente eu quis demonstrar que a obra de Gilberto Freyre era admirada em
Portugal, não só por aqueles que eram partidários do colonialismo, como pelo
Portugal livre, democrático e moderno que eu represento”. 294 Em entrevista ao Jornal
de Brasília, em 30 de janeiro de 2000, o presidente português declarou
294
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 14.
295
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 180. Grifos meus.
118
costumada retórica dos afetos que o diz, mas a fria expressão numérica das
realidades econômicas. 296
Sua presença entre nós, nesta hora tão marcante de nossa vida nacional,
simboliza tudo aquilo que Portugal representa para o Brasil para os
brasileiros, na origem histórica, na cultura, na língua e, mais do que isso, nos
laços indissolúveis de uma amizade que é única. 297
296
CASTRO, Zília Osório de; SILVA, Júlio Rodrigues da & SARMENTO, Cristina Montalvão (ed.).
Tratados do Atlântico Sul (Portugal-Brasil, 1825-2000). Lisboa: Instituto Diplomático, 2006, p. 309.
297
Idem.
298
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano CXII. nº 220. 14/11/02. p. 5.
299
MALHEIRO, Afonso. “Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: formação e objectivos”. In: A
CPLP: DOSSIER ESPECIAL, Revista Politica Internacional, nº 13, Out/Inverno 1996. p. 32.
119
A adoção do português como idioma pelos outros seis países da CPLP
justificou-se por razões históricas, para as quais existiu sensibilidade e identificação, e
também por pretextos sócio-culturais, buscando, por meio do idioma, a união de etnias.
Foi assim nos casos africanos e no episódio em Timor: uma individualidade político-
patriótica a nível externo. A língua portuguesa investiu de identidade política e cultural
os países que dela partilham, consolidando imagem e representatividade condigna nos
organismos internacionais.
Nessa geopolítica da lusofonia, o Brasil tem papel central, não somente no setor
econômico, mas também nos setores político e cultural. O país, por seu peso especifico
no eixo sul e pelo pendor universalista de suas história e cultura, vem despertando, no
palco internacional, grandes expectativas e confiança. As mudanças mais significativas
na postura externa do Brasil em relação à África vieram, sobretudo, durante o governo
Lula, com a implantação prática da diplomacia regional (Unasul) e da orientação Sul-
Sul (África, em especial Austral, e o G3 – Brasil, África do Sul e Índia).
Luís Inácio Lula da Silva, como figura política do Brasil na década de 1980,
disputou algumas eleições presidências sempre com uma linha muito segura e
demarcada pelo seu passado humilde, que se fundiu com sua trajetória política de
fundação do PT (Partido dos Trabalhadores). Eleito em 2002 e com mandato renovado
até 2010, o presidente buscou freqüentemente em seus discursos se identificar com as
classes sociais baixas recorrendo a sua própria história e fazendo apelo aos
trabalhadores. Segundo Lula, em sua pagina oficial na internet, a vitória eleitoral de
2002 representou uma evolução política do Brasil, pois a esquerda brasileira formulou
alternativas políticas que o povo brasileiro amadurecido soube captar. Para o governo,
as eleições de Lula representaram desenvolvimento democrático para o Brasil, pois a
nação se reconheceu através do seu povo e da mobilização eleitoral, e traduziu isso
politicamente nas urnas. 300
Em relação à política externa, o governo Lula conduziu projetou no estrangeiro a
mesma imagem política veiculada internamente, ou seja, uma imagem carismática e
popularizada. Do ponto de vista da legitimação política da ação diplomática, grande
parte do discurso governamental, não apenas nessa área, mas principalmente nessa
vertente, tem se dedicado a enfatizar as diferenças em relação às posições e políticas do
governo anterior, geralmente para ressaltar rupturas e evidenciar a nova postura
300
MALHEIRO, Afonso. Op. Cit., p. 15.
120
governamental. A diplomacia do governo Lula já foi chamada de “ativa e altiva” por
seu próprio chanceler, o embaixador Celso Amorim. Certamente, tal política externa
trouxe a marca de um ativismo exemplar, evidenciado em dezenas de viagens e visitas
bilaterais do chefe de governo e seu chanceler, além da intensa participação, executiva e
técnica, em quase todos os foros relevantes abertos ao engenho e arte da diplomacia
brasileira, conhecida por ser extremamente profissional e bem preparada
substantivamente. 301
A maior parte das novas iniciativas se situou na vertente das negociações
comerciais internacionais e na busca de uma ativa coordenação política com atores
relevantes da política mundial, geralmente parceiros independentes no mundo em
desenvolvimento, com destaque para a Índia, a África do Sul e a China, ademais dos
países vizinhos da América do Sul. Do ponto de vista do conteúdo, a diplomacia do
governo Lula apresenta uma postura mais assertiva, mais enfática em torno da chamada
defesa da soberania da pátria e dos interesses nacionais, assim como de busca de
alianças privilegiadas no eixo Sul. 302
Porém, em seus discursos em relação à África e ao espaço lusófono, Lula
conserva a retórica luso-tropical, mantendo a cultura política luso-brasileira de
recorrência à história comum que interliga o triangulo Atlântico. Na celebração do
centenário da morte do escritor Machado de Assis, e na cerimônia da assinatura do
decreto que aprovara as mudanças ortográficas, o presidente exaltou a figura de
Machado: um escritor “mulato” representante dessa união indissolúvel entre Brasil,
Portugal e África. Nesse sentido, o escritor seria considerado um patrimônio da língua
portuguesa, compartilhado por oito países, por meio da CPLP. Na Academia Brasileira
de Letras (ABL), Lula defendeu que as mudanças ortográficas aproximam o mundo
lusófono e recordam suas raízes históricas. Ele mesmo sustentou a tese de que as
mudanças aproximam e recordam: “Quero destacar o imprescindível resgate dos
nossos laços substantivos com a África, em particular com a África de língua
portuguesa, que para nós representa mais, muito mais do que uma prioridade
geopolítica. Diz respeito à nossa alma, à nossa identidade como nação multiétnica e
multicultural, ao próprio destino da civilização brasileira”.
301
MALHEIRO, Afonso. Op. Cit., p. 15.
302
SARAIVA, José Flávio Sombra.2008, “A África na ordem internacional do século XXI: mudanças
epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?” Rev. bras. polít. int., v. 51, n. 1, pp. 87-104. p. 90.
121
No novo contexto de atuação do Estado brasileiro, Lula tomou a iniciativa de
criar uma universidade da língua portuguesa, que funcionaria com a Universidade da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ou ainda Universidade Federal de
Integração Luso-Afrobrasileira, a fim de agregar o espaço lusófono. Segundo o
Secretário de Ensino Superior do Ministério da Educação do Brasil, Ronaldo Mota, a
língua portuguesa será o estandarte da nova universidade que visará integrar os oito
membros da CPLP – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,
Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
O Brasil pretende aproveitar seus recursos e sua dimensão como maior país de
língua portuguesa, para a formação de professores e nas áreas das Ciências da Saúde,
Física, Biologia, Engenharia, Tecnologia, Administração e Agronomia, em que os
países africanos têm mais interesse. Para Ronaldo Mota, o projeto da universidade da
língua portuguesa está inteiramente voltado para África e o Governo previu o início de
seu funcionamento em 2010, com capacidade para 10 mil estudantes. A cidade de
Fortaleza, capital do Estado do Ceará, foi escolhida para sediar universidade-sede, em
virtude da sua localização geográfica privilegiada – o lugar mais próximo entre Brasil,
Portugal e África – e do seu valor simbólico: a primeira região brasileira a ter abolido a
escravatura.
É importante ressaltar que a recente política externa brasileira tem buscado
destacar o país em suas duas principais frentes: América do Sul e África. E nesse
sentido, a nova universidade será a segunda criada pelo atual Governo brasileiro com o
objetivo de integrar o Brasil a outras nações. A primeira, anunciada em 2007, começou
a funcionar em 2008: chama-se Universidade Latino-Americana, construída em Foz do
Iguaçu, na Tríplice Fronteira; ponto de encontro entre Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai. O fato de essa política ter sido somente aprovada, e não ainda aplicada
dificulta a aplicação estrita de algum modelo de estudo das políticas públicas.
A partir dos pressupostos apresentados, que procuram descortinar o ideário, as
narrativas que dão forma ao discurso legitimador e às motivações dos atores nas suas
dimensões política, simbólica, ideológica, considera-se que a criação da universidade da
língua portuguesa culminou num processo socialmente mobilizado pelos atos públicos
do governo Lula. Tal processo envolve uma multiplicidade de atores e perspectivas
futuras que projetam o Brasil para a persecução de políticas públicas em setores
estrategicamente identificados e salvaguardados por sua política externa.
122
A Língua – como expressão político-cultural de um grupo – capacita a
unificação, em sentimentos, de um povo, do território de um país, a construção de um
Estado e a afirmação de um espaço. Gilberto Freyre já explicava e anunciava a
peculiaridade desse grupo lusófono, que pela língua e pela cultura de herança
portuguesa se particularizava, com características políticas, sociais e culturais
especificas. Nesse sentido, os pressupostos luso-tropicais se corporificaram através da
criação institucional da CPLP.
Mais do que uma tradição retórica e histórica, a lusofonia é uma questão de
estratégia geopolítica para Brasil e Portugal. A reativação do triângulo atlântico Brasil-
África-Portugal só foi possível porque, de alguma forma, no campo da tradição, das
mentalidades e da cultura política, todos os vértices comungam das idéias luso-tropicais
como a melhor forma de se identificarem nacionalmente e dentro de uma comunidade
que partilha a língua portuguesa. Por isso, as transformações que ocorreram permitiam
atualizar historicamente os valores do luso-tropicalismo, numa nova relação dotada de
significados condizentes com a cultura política luso-brasileira ou luso-tropical e com as
novas demandas políticas do quadro internacional renovado.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
124
diferenciação do português está, ao contrário, justamente na falta de essência. Por essa
razão, seria um grande equívoco classificar a imagem que Freyre traça do povo
português como essencialista.
A hipótese do historiador brasileiro Adriano Freixo se coaduna com a de
Castelo. O luso-tropicalismo teria criado toda uma estrutura simbólica, tanto de
projeção para o passado quanto para o futuro, necessária às recriações e ressignificações
míticas imperiais portuguesas. Assim, nos momentos de redefinição identitária pelos
quais passou Portugal, em especial no século XX, a pátria camoniana, amparada pelos
intelectuais, recorreu à tônica luso-tropical de valorização da história.
Ainda persistem as críticas sobre o ofuscamento das idéias luso-tropicais em
relação aos mecanismos de dominação e os preconceitos raciais até hoje vivenciados. O
luso-tropicalismo é acusado de ter criado o mito da “democracia racial” para as
sociedades atlânticas e miscigenadas. Seria o fortalecimento de um sistema ideológico
no qual o sentido lusitano é respaldado, e onde se veicula a noção de cultura brasileira
como a mais condizente com os trópicos e com as sociedades de passado colonial.
Nesse sentido, as argumentações de Eduardo Lourenço – identificando a
lusofonia como uma tentativa do “Império Revisitado” que através do espaço lingüístico
e do lusocentrismo tentam recobrar o domínio imperial – aliadas às de Alfredo
Margarido – evidenciando as contradições e limites deste projeto político-cultural em
torno da língua como um resgate de uma portugalidade saudosista e acrítica – revelam
as vozes dissonantes da lusofonia. A transposição do luso-tropicalismo para a lusofonia
fundamentou-se na idéia de “projeto Atlântico” como espaço da língua portuguesa, com
inspiração em Agostinho da Silva. Mas na reconfiguração de uma Comunidade Luso-
Afro-Brasileira, a arquitetura de Freyre foi remontada, pois o Brasil representa o futuro
e o passado de Portugal e o reflexo permanente para a África neste triangulo histórico
luso-tropical incontornável.
Desde a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, abriu-se a
possibilidade de o Brasil assumir a liderança do eixo triangular atlântico de expressão
portuguesa. Contudo, o país não tem demonstrado interesse e empenho em consolidar o
comando da Comunidade, investindo esforços em outras alianças internacionais e em
cooperações bilaterais. Espera-se que o Brasil, com sua atual postura externa mais
autônoma, associada ao seu peso demográfico – o maior Estado territorial dentre os
membros – e no contexto de estabilidade política e social vivido, assuma o
125
protagonismo e invista presença política e econômica, buscando maior destaque para
CPLP no âmbito internacional.
Por outro lado, Portugal sente-se como a “pátria mãe”; dono da língua e da
cultura que dão expressão à Comunidade, já que a CPLP advém da continuidade de “um
modo português de estar no mundo”. Sendo assim, admitiria uma liderança
compartilhada com o Brasil, baseada na relação político-afetiva única cultivada nas
relações luso-brasileiras.
Entre Brasil e Portugal, solidifica-se certa indiferença e desconhecimento mútuo
que impedem a complementaridade das ações políticas e econômicas em relação ao
espaço lusófono. A língua e história partilhadas dão a falsa sensação de identidade entre
os dois países, perdurando os velhos estereótipos e preconceitos sócio-culturais. E nessa
senda, faz-se necessário, na atual conjuntura, aprofundar-se o conhecimento das novas
realidades para a mudança dos paradigmas políticos e culturais entre os dois países para
a validade dos preceitos da lusofonia.
Os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), por razões ligadas
às feridas do passado colonial, depositam confiança e simpatia no Brasil para a
liderança da CPLP, em virtude da identificação étnico-histórica. De fato, a mestiçagem
como característica marcante e particular da sociedade brasileira passou a ser a
verdadeira imagem do que é ser brasileiro. A valorização do seu aspecto cultural,
contudo, não veio acompanhada da valorização do seu aspecto físico, uma vez que o
preconceito contra o negro e o mestiço, principalmente os menos favorecidos
economicamente, continua a existir no Brasil. Os negros ficaram, desde a abolição, à
margem – nas cidades, indústrias, educação, participação política, melhores empregos
etc. Os complexos e a falta de familiaridade em relação à África permanecem no pouco
prestígio das raízes africanas e no pouco conhecimento do continente, apesar dos
esforços de diversos movimentos sociais que buscam cultivar a negritude e valorizar a
herança africana no Brasil.
Após anos de afastamento das tradições africanas, o Brasil tenta reafirmar sua
construção como nação junto aos negros enquanto formadores da sociedade. Assim,
ações afirmativas – como cotas de vagas nas universidades reservadas a negros e
obrigatoriedade por lei da História da África nas escolas – denotam a tentativa de
resgate desse passado negligenciado. Demonstram, também, o alcance dos movimentos
sociais no país.
126
Na África, o Brasil exerce influência e serve de exemplo, enquanto país
industrializado, com inserção internacional, que abriga culturas variadas e uma
sociedade plural. Devido à proximidade e à correspondência histórica, o Brasil é tido
como um expressivo pólo cultural. Nota-se a grande influência da mídia e dos modelos
culturais brasileiros, sobretudo, em Angola. O governo brasileiro sempre manteve um
programa educacional eficaz com relação à África e atualmente direciona esforços, a
partir de suas empresas, para parcerias e cooperações sólidas em relação ao petróleo. No
entanto, o país tem demonstrado capacidade reduzida em afunilar o eixo Brasil-África
pelo Atlântico Sul.
A sociedade brasileira persiste num preconceito identitário que impede o país de
refletir sobre os debates africanos contemporâneos, perpetuando a ausência de esforços
significativos voltados para o acompanhamento da nova corrida para a África, na qual a
China se apressa como forte concorrente. Os meios de comunicação insistem em
apresentar uma África estereotipada (indolente e ditatorial) e por essa razão, empresas
nacionais ainda duvidam das possibilidades de agir em terreno africano de forma mais
duradoura, negando impulso à logística que a África requer e que o Brasil pode bem
oferecer. No entanto, a baixa apreciação da África por parte da mídia e de agentes
sociais e econômicos brasileiros não corresponde às recentes ações do governo
brasileiro.
A insensibilidade e adesão limitada à CPLP se circunscrevem nesses aspectos.
As idéias de encontro de culturas, de reciprocidade, integração e interpenetração
cultural esbarram justamente nessa falta de correspondência real entre as três principais
culturas que compõem a Comunidade. O luso-tropicalismo reaparece como a moderna
expressão da política tradicional portuguesa em busca do processo político de unidade e
entendimento entre povos e culturas diferentes. Todavia, somente para efeitos
simbólicos e retórico-discursivos. De costas voltadas para a realidade prática, a
comunidade luso-tropical de que falava Freyre nunca deixou de ser um mito e uma
aspiração, sendo o projeto de lusofonia e a criação da CPLP uma evidencia da tradição
político-cultural e intelectual luso-brasileira que confia e defende uma comunidade
especifica.
Os discursos lusófonos têm como marca indelével a origem e a significação no
imaginário político lusitano. Remontam às idéias da relação particular dos portugueses
com os outros povos e culturas, na velha vocação ecumênica e mítica dos navegadores e
descobridores. E nessa perspectiva, a lusofonia cai num vazio simbólico imensurável,
127
pois não parte das aspirações coletivas nem de um imaginário preexistente entre todos
os membros da Comunidade.
Brasil e Portugal, por razões de ordem histórica, que transcendem esse pequeno
apanhado de reflexões sobre os dois países no século XX, comungam dessa cultura
política e dos interesses que justificam a criação formal de uma comunidade lusófona. O
Brasil é o filho dileto da diáspora portuguesa. E para os dois países, faz-se importante a
valorização das suas imagens identitárias baseadas na convivência multirracial e
multicultural. No alvorecer do novo século, a mestiçagem, antes considerada um erro a
ser eliminado, torna-se cada vez mais reconhecida e corrente. Mesmo em países de
supremacia branca, como a França e Inglaterra, nota-se o crescente o número de
mestiços, na medida em que as populações de suas ex-colônias imigram para esses
países, sendo Portugal e, principalmente, o Brasil exemplos nesse sentido.
Contudo, a onipresença da especificidade lusófona, tão bem sustentada pelos
pressupostos científicos do luso-tropicalismo, ao contrário da francofonia, por exemplo,
manifesta o baixo desempenho de Brasil e Portugal frente à CPLP. A Comunidade
carece de uma política de intercambio cultural entre os países membros, o que a
secundariza. Por conta de um conjunto de tratados e acordos bilaterais das agendas
políticas nacionais, que se sobrepõem à Comunidade, nota-se uma incapacidade em
consubstanciar as iniciativas tomadas evidenciando numa dissociação entre a retórica
diplomática e a política externa. Para se ter uma idéia, não existe nem mesmo uma
política de imigração, vistos ou cidadania que privilegie os membros da CPLP entre os
países participantes, o que gera empobrecimento e inoperância da Comunidade.
128
BIBLIOGRAFIA
129
CASTRO, H. C. O. Democracia e mudanças econômicas no Brasil, Argentina e Chile:
um estudo comparativo de cultura política. 2000. 172 f. Tese (Doutorado em
Ciência Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, [2000].
CASTRO, Zília Osório de. "Da História das Idéias a História das Idéias Políticas". In:
Revista de História e Teoria das Ideias, II Série, Vol. VIII, Lisboa, Centro de
História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa [CHC-UNL], 1996.
______; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO, Cristina
Montalvão (ed). Tratados do Atlântico Sul: Portugal-Brasil, 1825-2000.
Lisboa: Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2006.
CATROGA, Fernando.“Ritualizações da história”. In: _______; TORGAL, Luís R. &
MENDES, J. A. História da História em Portugal: Da Historiografia à
Memória Histórica (séculos XIX e XX). Lisboa: Temas e Debates e Autores,
1998.
CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Culture Troubles: Politics and the
Interpretation of Meaning. Chicago: University of Chicago Press, 2006.
CHARTIER, Roger. “Por uma sociologia histórica das práticas culturais”. In: A
História Cultural – entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.
CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA. Memórias e comunicações
apresentadas ao Congresso Luso-Brasileiro de História. Volume XI, Tomo
III.
CORTE-REAL, João. “Um documento secular passado no Rio de Janeiro”. In:
Congresso do Mundo Português – Memórias e comunicações apresentadas
ao Congresso Luso-Brasileiro de História. Lisboa: [s.n.], 1940, v. IX.
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da Fraternidade: Brasil-Portugal.
Lisboa: Editora Imprensa de Ciências Sociais, 2003.
FEREJOHN, John & PASQUALE, Pasquino. “A teoria da escolha racional na Ciência
Política: Conceitos de racionalidade em teoria política”. In: Revista Brasileira
de Ciências Sociais. Vol. 16, n.º 45, fevereiro/2001.
FRANCO, Manuela. “Petróleo em Português? Em Prol de uma Política Africana”. In:
Ação e Defesa, nº 114, Verão de 2006, 3ª série, p. 15-33, Instituto de Defesa
Nacional, Lisboa.
FREIXO, Adriano de. Minha Pátria é a Língua Portuguesa: a construção da ideia da
lusofonia em Portugal. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
______. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2003.
______. Integração Portuguesa nos Trópicos, Col. ECPS, n.º 6, Lisboa, JIU, 1958.
______. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.
______. Tempo Morto e Outros Tempos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
______. Um brasileiro em terras portuguesas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da fraternidade: Brasil-Portugal - Do
Tratado de Amizade Ao Caso Delgado. Lisboa: Imprensa de Ciências
Sociais/Universidade de Lisboa, 2003.
130
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal (org.). Afinidades Atlânticas: impasses, quimeras
e confluências nas relações luso-brasileiras. Rio de Janeiro:
Quartet/FAPERJ, 2009.
______. “Debaixo da imediata proteção imperial: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1838-1889)”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro: IHGB, a. 156, n.º 388, p. 459-613, 1995.
______. “Relações Culturais Luso-Brasileiras: alguns pontos de confluência”. In:
Convergência Lusíada. Rio de Janeiro, 24: 256-264, 2º semestre de 2007.
______. “À Sombra das Chancelarias: A Preparação do Congresso Luso-Brasileiro de
História (Lisboa, 1940)”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro: IHGB, a. 168, n.437, p. 49-66, out./dez. 2007.
HUNTINGTON, Samuel P., The third wave: democratization in the late twentieth
century, London: University of Oklahoma Press, 1993
KUSCHINIR, Karina & CARNEIRO, Leandro Piquet. “As dimensões subjetivas da
política: cultura política e antropologia da política”. In: Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 13, nº 24, 1999.
LAFER, Celso. Paradoxos e Possibilidades: Estudos Sobre a Ordem Mundial e Sobre a
Política Exterior do Brasil num Sistema Internacional em Transformação,
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
MACHADO, Maria Valentina da Silveira “A Hora da Lusofonia e os dez anos da
CPLP”. In: Reflexões Lusófonas. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas,
2008.
MALHEIRO, Afonso. “Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: formação e
objectivos”. In: A CPLP: DOSSIER ESPECIAL, Revista Politica
Internacional, nº 13, Out/Inverno 1996.
MALTEZ, Adelino. Sobre a ciência política. Lisboa: Inst. Sup. de Ciências Sociais e
Políticas, D. L., 1994.
MAXWELL, Kenneth. The making of portuguese democracy. Cambridge, New York,
Melbourne: Cambridge, 1995.
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Diálogo Portugal-Brasil século XXI: novas
realidades, novos paradigmas. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa,
2008.
MEDINA, João. “Gilberto Freyre contestado: o lusotropicalismo criticado nas colónias
portuguesas como álibi colonial do salazarismo”. In: Revista USP. São Paulo:
SIBi/USP, n. 45, março/abril/maio 2000.
MIRANDA, Rachel de. Além-Mar Aventura e Rotina: o Lugar do Brasil no Mundo
Luso-Tropical de Gilberto Freyre. 2002, 80f. Dissertação (Mestrado em
História). Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
MOISÉS, J. A. Os brasileiros e a democracia. São Paulo: Ática, 1995.
MOREIRA, Adriano (coord.). Comunidade dos Países de Língua Portuguesa –
Cooperação, Lisboa: Edições Almedina, 2001.
NAXARA, Márcia Regina Capelari.“Estrangeiro em sua própria terra”. In:
Representações do Brasileiro, 1870-1920. São Paulo: Annablume, 1998.
131
NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da
independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan/FAPERJ, 2003.
PASQUINO, Gianfranco. Curso de Ciência Política. Caiscais: Principia, 2002.
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003.
RAMPINELLI, Waldir José. As Duas Faces da Moeda. As Contribuições de JK e
Gilberto Freyre ao Colonialismo Português. Florianópolis: Ed. UFSC, 2004.
______. “Reflexões Lusófonas”. In: A hora da Lusofonia e os dez anos da CPLP.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. De Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2000.
RENNÓ, L. Teoria da Cultura Política: Vícios e Virtudes. In: BIB, Rio de Janeiro, n. 45,
p. 71-92, 1º semestre de 1998.
RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma História Cultural.
Lisboa: Estampa, 1998.
RIVAS, Lêda. “A mística do mestre: oito anos após a sua morte, Gilberto Freyre ainda
provoca polêmica”. In: Diário de Pernambuco. Recife, 22 fev., 1999.
ROSA, Manuel Amante da. “O Atlântico Sul perante os novos desafios” In: Portugal,
os Estados Unidos e a África Austral. Lisboa: Fundação Luso-
Americana/Instituto Português de Relações Internacionais, Julho de 2006.
ROSAS, Fernando. O Estado Novo (1926-1974). Lisboa: Estampa, 1994.
SANTANA, Carlos Ribeiro. “O Aprofundamento das Relações do Brasil Com os Países
do Oriente Médio Durante os Dois Choques do Petróleo da Década de 1970:
Um Exemplo de Ação Pragmática”. In: Revista Brasileira de Relações
Internacionais, v.40, n.º 2, Brasília: s.e., 2006 [consulta eletrônica:
http://www.scielo.br/scielo.php?lng=es].
SARMENTO, Cristina Montalvão. Os Guardiões dos Sonhos: Teorias e Práticas
Políticas dos Anos 60. Lisboa: Colibri, 2008.
SARAIVA, José Flávio Sombra. “A África na ordem internacional do século XXI:
mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?” In: Revista
Brasileira de Política Internacional, v. 51, n.º 1.
______. O Lugar da África. A Dimensão Atlântica da Política Externa Brasileira (de
1947 a nossos dias). Brasília: Universidade de Brasília, 1996.
SIRINELLI, Jean-François. “De la demeure à l’agora. Pour une histoire cuturelle du
politique”. In: BERNSTEIN, Serge & MILZA, Pierre (dir.). Axes et méthodes
de l’histoire politique. Paris: PUF, 1998.
SALAZAR, Antonio de Oliveira “Independência de Portugal - Nota oficiosa da
Presidência do Conselho”. In: Revista dos Centenários. Lisboa, 1: 3, janeiro
de 1939.
SUPPO, Hugo R. “Gilberto Freyre e a Imagem do Brasil no Mundo”. In: Cena
Internacional. Ano 5, nº 2, Dez/2003.
TILLY, Charle. Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
TORGAL, Luís Reis. História e ideologia. Coimbra: Livraria Minerva, 1989 (Coleção
Minerva - História nº 3).
132
VARGAS, Getúlio. “A Ação dos portugueses do Brasil na Exposição do Mundo
Português...” Discurso pronunciado em 17 de junho de 1939, no Real
Gabinete Português de Leitura. Rio de Janeiro: [s.n.], 1940.
YVES, Leonard. Salazarismo e Fascismo. Trad. Catarina Horta Salgueiro. Lisboa:
Editorial Inquérito, 1998.
133
FONTES
134
Lista de Figuras
Figura I
Revista Ilustração Portuguesa. Lisboa: 1922. N.º 872, p. 1.
Disponível em:
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/IlustracaoPort/1922/N872/N872_item1/index.html
[Hemeroteca Digital - ContentE v.1.6 - 2009-05-19 T15:42:40]
135