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O LUSO TROPICALISMO

REFLEXÕES SOBRE A CULTURA POLÍTICA LUSO-BRASILEIRA

Thais Pimentel Cabral

___________________________________________________
Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais e
Ciencia Poítica

SETEMBRO, 2010

1
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em Relações Internacionais e Ciencia Poítica, com especialização em
Ciencia Política, realizada sob a orientação científica de Cristina Montalvão
Sarmento e Lucia Maria Paschoal Guimarães.

2
Dedico este trabalho à memória de Paulo Henrique Machado, professor e historiador
petropolitano, que com seu exemplo desde os tempos da escola, cativou meu primeiro
amor às ciências humanas. Que este singelo registro relembre à família e aos amigos o
grande homem e a referência que ele foi.

3
AGRADECIMENTOS

Dedico agradecimento especial ao meu esposo, Anderson R. Webler Soares, que


mais do que um homem, é o meu melhor amigo; sempre disposto a apoiar meus sonhos
e projetos. Reconheço, também, o apoio de todos os familiares e amigos, de ambas as
margens atlânticas, que nos momentos de saudade sempre me incentivaram e
fortaleceram. Agradeço à professora Lúcia Maria Paschoal Guimarães, que desde a
graduação me orienta e instrui de forma admirável, encorajando-me neste mestrado. E à
orientadora Cristina Montalvão Sarmento, que me acolheu prontamente, possibilitando
este intercâmbio entre Brasil e Portugal.

4
RESUMO

O trabalho pretende discutir como o luso-tropicalismo, apesar de ter perdido


expressão ideológica e credibilidade no campo científico, contribuiu decisivamente para
a formação da auto-imagem em que Brasil e Portugal melhor se revêem e projetam.
Mais do que uma teoria sobre a relação entre Portugal e os trópicos, o luso-tropicalismo
constitui, nos respectivos imaginários nacionais, a experiência de Portugal no mundo e a
originalidade e legitimidade da nação brasileira. A tese de Freyre toca de forma íntima
as identidades nacionais dos dois países e lhes confere uma singularidade relevante para
a nova conjuntura internacional, que se afigurou no final do século XX. O trabalho
defende que o luso-tropicalismo ganhou novas formas, menos explicitas, em
comparação ao período colonial português, mas centrais e marcantes nos discursos
político-culturais que vem movimentando as relações luso-brasileiras e criando uma
nova imagem para política externa de ambos os países. Nessa perspectiva, o luso-
tropicalismo reaparece sob roupagem dinâmica a reorientar a política de Brasil e
Portugal, servindo de base para o discurso de aproximação e cooperação entre os povos
lusófonos.

PALAVRAS-CHAVE: Luso-Tropicalismo, Brasil e Portugal.

DISSERTAÇÃO

Autor: Thais Pimentel Cabral

5
ABSTRACT

The paper discusses how the Luso-tropicalismo, although it lost credibility and
ideological expression in the scientific field, contributed decisively to the formation of a
self-image that Brazil and Portugal better review and project.
More than a theory about the relationship between Portugal and the tropics, the
Luso-tropicalismo is in their national imaginary, the experience of Portugal in the world
and the originality and legitimacy of the Brazilian nation.
Freyre's thesis touches so intimately the national identities of both countries and
gives them a unique relevance to the new international situation, which appeared in the
late twentieth century.
The paper argues that the Luso-tropicalismo gained new dimensions, less
explicitly, against the Portuguese colonial period, but in central and salient political and
cultural discourse that is moving the Luso-Brazilian relations and creating a new image
for the foreign policy of both countries.
From this perspective, the Luso-tropicalismo reappears under guise dynamics to
reorient the policy of Portugal and Brazil, serving as a basis for the argument of
rapprochement and cooperation among Lusophone people

KEYWORDS: Luso-Tropicalismo, Brazil and Portugal.

DISSERTATION

AUTHOR: Thais Pimentel Cabral

6
ÍNDICE

Introdução .......................................................................................................................... 09

Capítulo I: A Cultura Política Luso-Brasileira e o Luso-Tropicalismo ........................... 13

I. 1. Cultura Política. A Trajetória de um Conceito............................................................13

I. 2. Possíveis Diálogos e Pontes Teóricas ...........................................................................23

I. 3. Uma Cultura Política Luso-Brasileira e o Luso-Tropicalismo..................................31

Capítulo II: O Surgimento do Luso-Tropicalismo e a Validade das Idéias..................... 41

II. 1. O Pensamento de Gilberto Freyre...............................................................................41

II. 2. O Mundo que o Português Criou e os Fundamentos do Luso-Tropicalismo. ...47

Capítulo III: O Contexto Luso-Tropical e as Relações Luso-Brasileiras ........................ 55

III. 1. Gilberto Freyre e o Estado Novo. .............................................................................55

III. 2. Recepção e Críticas ao Luso-Tropicalismo...............................................................63

III. 3. A década de 1950 e a Estratégia Retórica da Afetividade......................................70

III. 4. As Viagens de Freyre no Além-Mar...........................................................................76

Capítulo IV: As Reconfigurações do Último Século e a Sobrevivência das Idéias Luso-


Tropicais............................................................................................................................. 89

IV. 1. A Descolonização Africana e o Pragmatismo Responsável ..................................89

IV. 2. As Transições Democráticas e a Ressonância do Luso-Tropicalismo ................99

IV. 3. Os Discursos Lusófonos e as Políticas Atlânticas.................................................112

Considerações Finais..................................................................................................................124

Bibliografia ...................................................................................................................... 129

Fontes ............................................................................................................................... 134

Lista de Figuras................................................................................................................ 135

7
Figura I

8
Introdução

A problemática desenvolvida neste trabalho de conclusão do curso de mestrado


em Ciência Política e Relações Internacionais, com especialização em Ciência Política,
originou-se nas investigações realizadas desde os tempos da graduação em História na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Por meio do Programa de Iniciação
Científica, tive contato com projetos que contemplavam temáticas sobre as relações
luso-brasileiras. A partir daí, minhas escolhas acadêmicas vincularam-se ao estudo da
história política e cultural do Brasil e de Portugal no século XX.
Gilberto Freyre incorporou-se a meus interesses após o curso da disciplina de
Historiografia, quando o autor, suas teses e obras me foram apresentados, gerando
grande reflexão e inquietação histórico-identitária. Logo em seguida, debrucei-me sobre
seus livros Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, O Mundo que o Português
Criou e Aventura e Rotina. Paralelamente, aprofundei leituras, de modo a compor o
contexto em que se inseriam tais contribuições e sistematizei as fontes levantadas nas
atividades de iniciação científica da qual participava.
Ao apresentar os projetos e os resultados das pesquisas em congressos,
seminários e encontros, percebi que entre especialistas tanto brasileiros quanto
portugueses a problemática da natureza peculiar do colonizador português e de sua
ligação com os trópicos despertavam debates. Percebi, também, que o período
republicano, em especial o Estado Novo e o seu desfecho, gerava calorosas discussões.
Como trabalho de conclusão do Bacharelado e da Licenciatura em História, apresentei
monografia intitulada Gilberto Freyre e as Relações Luso-Brasileiras, 1 um estudo que
abordou o impacto das teses de Gilberto Freyre acerca da colonização portuguesa nos
trópicos nos meios intelectual e político de Brasil e Portugal até meados do século XX.
Durante uma estada no Recife, pude visitar a Vivenda de Apipucos, Casa Museu
Magdalena e Gilberto Freyre. Lá, o desejo de fazer Freyre objeto de estudo intensificou-
se, pois tive contato com seus espaços, livros, medalhas e títulos. Aprendi, por exemplo,
que Gilberto Freyre era um dos possuidores de um exemplar autêntico, de capa em
prata, de Os Lusíadas de Camões e que recebeu inúmeras condecorações de famílias
reais de todo o mundo – inclusive o título de “Sir” da rainha da Inglaterra. A atmosfera

1
CABRAL, Thais Pimentel. Gilberto Freyre e as Relações Luso-Brasileiras. Monografia (Graduação em
História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
IFCH/UERJ. Rio de Janeiro, 2007.

9
de Apipucos despertou maior fascinação e vontade de conhecer e entender ainda mais
esse intelectual tão intrigante e polêmico.
De família rica, com laços aristocráticos, Gilberto de Mello Freyre nasceu no
Recife em 15 de março de 1900, filho de D. Francisca de Mello Freyre e do educador,
Juiz de Direito e catedrático de Economia da Faculdade de Direito do Recife Dr.
Alfredo Freyre. Aos 18 anos, foi para os Estados Unidos, estudar na Universidade de
Baylor, onde se formou Bacharel em Artes em 1920, quando partiu para Nova Iorque, a
fim de cursar pós-graduação na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de
Columbia. Retornou ao Brasil em 1924 e entrou em contato com a sociedade intelectual
brasileira. Em 1930, exilou-se na Europa em razão do cargo de oficial de gabinete do
Governador de Pernambuco, Estácio de Albuquerque Coimbra. Na viagem por mar,
tomou o seu primeiro contato com o continente africano, que lhe daria mais subsídios
para a confecção de Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933.
Deputado Federal Constituinte pela União Democrática Nacional (UDN) em
1946, sua vida política foi marcada pela ação contra o racismo. Em 1942, foi preso no
Recife por ter denunciado nazistas e racistas no Brasil. Reagiu à prisão, juntamente com
seu pai – ambos foram soltos no dia seguinte, por interferência do general Góes
Monteiro. Em 1954, apresentou propostas para eliminar as tensões raciais na
Assembléia Geral das Nações Unidas. Freyre foi um homem comum, e um intelectual
versátil, que como estudioso das ciências humanas buscou explicar questões complexas
da natureza do homem.
Este trabalho visa examinar, através de alguns conceitos da Ciência Política e da
História das Idéias Políticas, a cultura política luso-brasileira por meio do luso-
tropicalismo. Os momentos históricos escolhidos foram aqueles do século XX que
demonstraram tensões, interesses nacionais e adaptações políticas que as diferentes
conjunturas implicaram na dinâmica internacional. As décadas de 1930, 1950, 1970 e
1990 foram selecionadas como chaves para observar o desenvolvimento político, as
leituras e as utilizações do luso-tropicalismo. Maior enfoque, contudo, será dado ao
período pós-1970 – as décadas antecedentes serão analisadas para efeitos de
contextualização. O estudo, portanto, centrou-se no corte temporal compreendido entre
1970 e 1990, focalizando algumas situações do alvorecer do século XXI que
evidenciaram alterações na política externa brasileira e portuguesa, principalmente pela
subida ao poder de novos governantes e a institucionalização da Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa.

10
A história do colonialismo português no século XX e do luso-tropicalismo foi
marcada pela evidente polarização ideológica: de um lado, os que se alinhavam ao
regime instituído pelo Estado Novo Português, que resistia às transformações e insistia
na realidade pluricontinental e multirracial da nação portuguesa. De outro, os que se
opunham à ditadura fascista e colonialista existente em Portugal e suas colônias e que,
fortalecidos pela eclosão dos movimentos de libertação nacional dos anos de 1960,
procuravam denunciar a falácia de um colonialismo de cinco séculos e a suposta
continuidade espiritual existente entre a metrópole e os territórios ultramarinos.
De certa maneira, a nova produção bibliográfica, a partir da década de 1990,
pelo distanciamento do tempo histórico, possibilita a superação mitos, estereótipos e
clichês a respeito do luso-tropicalismo na história colonial portuguesa. A nova geração
de pesquisadores tem como representantes, entre outros, os historiadores Hugo Rogelio
Suppo, Cláudia Castelo, Williams da Silva Gonçalves e Adriano Freixo, o antropólogo
Omar Ribeiro Thomaz e o cientistas políticos Waldir Rampinelli e Adriano Moreira.
As fontes analisadas no presente trabalho centram-se em torno das obras coevas
dos principais teóricos da cultura política e da história das idéias políticas, de maneira a
introduzir o luso-tropicalismo nas reflexões almejadas. Ademais, sua natureza
determinou a consulta permanente às obras de Freyre e de alguns autores sobre o tema,
assim como à imprensa e a revistas culturais.
Desse modo, este estudo deseja inquirir como ocorreu a adequação do luso-
tropicalismo em momentos políticos confluentes de Brasil e Portugal na segunda
metade do século XX. Almeja, também, indagar como, durante essas décadas, o luso-
tropicalismo se inseriu nos debates sobre as identidades nacionais, em especial no Brasil
e em Portugal, e direcionou a política dos dois países em relação o Atlântico Sul; como
a falta de um consenso do passado histórico entre os países lusófonos obstrui a
relevância da CPLP; como a relação particular entre Brasil e Portugal, em especial na
política externa dos dois países, demonstra momentos de proximidade e indiferença e
inclusive de certa competição; como a representação luso-tropical reveste o Brasil de
uma singularidade necessária para o exercício de sua liderança no eixo sul; e até que
ponto Portugal recuperou o luso-tropicalismo através da lusofonia, como mediador de
suas antigas colônias e a União Européia.
Os resultados da investigação foram organizados em quatro capítulos. No
primeiro, busca-se entrelaçar o conceito de cultura política, evidenciando suas origens
na Ciência Política, e nos pressupostos e abordagens da História das Idéias Políticas,

11
inserindo neste corpo teórico o luso-tropicalismo como tendência reflexiva da cultura
política luso-brasileira. Já no segundo capítulo, apresenta-se como o luso-tropicalismo
se estruturou, através do percurso intelectual de Gilberto Freyre e das suas principais
obras, que culminaram na formulação da tese luso-tropicalista. Além disso, os
momentos da recepção, apropriação e envolvimento político e ideológico da teoria são
expostos, com o intuito de percebermos o raio de influencia das idéias político-culturais
do luso-tropicalismo na história contemporânea luso-brasileira.
Contextualizando os momentos políticos demarcados, procura-se, no terceiro
capítulo, demonstrar como, na segunda metade do século XX, as relações luso-
brasileiras encontraram no luso-tropicalismo caminho para a continuidade da tradição
política. Mesmo com as alterações na dinâmica dos valores internacionais e com as
mudanças conjunturais em cada país, pode-se perceber como a influência do luso-
tropicalismo se alargou, progressivamente, do campo cultural, para o político e deste
para as mentalidades.
No último capítulo, observa-se que o luso-tropicalismo sofreu momentos de
descrédito e hibernação frente ao advento das independências africanas e das
democracias da chamada “terceira onda” – pelas quais Brasil e Portugal foram
atingidos. De alguma forma, contudo, o luso-tropicalismo enraizou-se, perpetuando-se
numa imagem apreciável à cultura política luso-brasileira, que o reutiliza de maneira
recorrente para interligar a comunidade lusófona nos seus sentidos e representações
históricas. Nessa senda, é interessante não somente expor os diversos aspectos do luso-
tropicalismo, mas, por meio de alguns discursos e falas políticas oficiais, confrontá-los,
de modo a surpreender o vocabulário, as expressões e a linguagem política tributária às
idéias e aos conceitos luso-tropicais.
Neste trabalho, recorre-se, como opção, a abundantes citações de textos, em
muito fiéis à ortografia e aos idiomas originais – compreendendo o universo
diferenciado da língua portuguesa nos quadrantes Brasil, Portugal e África. Além disso,
ressalta-se que a escrita discorre-se em português do Brasil; também como uma
tentativa de buscar um intercâmbio cultural luso-brasileiro. Afinal, apesar da
proximidade histórica e lingüística, as relações entre Brasil e Portugal carecem de
empenho e investimento político. Nesse sentido, a presente iniciativa é emblemática:
uma estudante brasileira, de formação em Portugal no Mestrado em Relações
Internacionais e Ciência Política, curso pelo qual defende esta dissertação, sem qualquer
auxilio ou incentivo de nenhum dos dois governos.

12
Capítulo I

A Cultura Política Luso-Brasileira e o Luso-Tropicalismo

I. 1 – Cultura Política: A Trajetória de um Conceito

A ciência política, ainda que tenha sofrido influências de disciplinas como a


antropologia e a psicologia, tem suas raízes mais profundas fincadas em três ciências
sociais: a história, a sociologia e a economia. Sua formulação recente emergiu em meio
a um contexto muito específico: a Segunda Guerra Mundial e a luta ideológica entre o
Leste e o Oeste.
Esse período conturbado fez com que as reflexões políticas recuassem, ao
mesmo tempo em que a grande diáspora européia revigorava as ciências sociais nos
EUA. De fato, durante a década de 1940, ocorreu na América um debate teórico entre
cientistas sociais a fim de forjar, no interior das ciências humanas, uma nova disciplina
que tivesse como objeto de estudo as diferentes formas de governança política,
democrática ou totalitária. Nas décadas seguintes, os politólogos buscaram erguer uma
estrutura conceitual que englobasse o futuro político dos países recém-independentes da
Ásia e da África e também integrar, numa análise comparativa, a evolução política das
Américas Central e do Sul.
O poder e seus contornos foram identificados como o grande objeto de pesquisa.
As modalidades de aquisição e utilização do poder, sua concentração e distribuição, sua
origem e legitimidade de exercício e mesmo o seu sentido enquanto poder político
permaneceram no centro de todas as discussões, mesmo com a constante (re)definição
do objeto de análise da disciplina; conseqüência da constante elaboração de novas
técnicas e métodos em busca do máximo caráter cientifico. 2 Coincidindo em seu objeto
com outras áreas das ciências sociais – como a sociologia política, a história política e a
filosofia política –, a ciência política ganharia autonomia ao tratar o mesmo fenômeno
partido do político para o social, e não ao contrário. 3

2
PASQUINO, Gianfranco. Curso de Ciência Política. Caiscais: Principia, 2002, p. 13.
3
MALTEZ, Adelino. Sobre a ciência política. Lisboa: Inst. Sup. de Ciências Sociais e Políticas, D. L.,
1994, p. 104.

13
O conceito de cultura política inaugurou uma área de conhecimento da ciência
política a partir do clássico livro de Gabriel Almond e Sidney Verba (1963 [1989]), The
civic culture: political attitudes and democracy in Five countries. Apesar de estudos
anteriores já tangenciarem a cultura política, como destaca Barquero, “(...) embora já
estivessem presentes, no horizonte da política clássica desde os estudos de Platão,
Aristóteles e Sócrates a preocupação com a capacidade política dos cidadãos e seu
papel na sociedade”, 4 a redescoberta desse conceito na década de 1960 está
intimamente atrelada ao surgimento da ciência política como disciplina no século XX.
De acordo com Almond, o avanço na metodologia estatística e das ciências
sociais – que proporcionaram novas possibilidades de estudos focados no indivíduo,
inexistentes ou precárias até então, como o survey –, juntamente com o
desenvolvimento das teorias sociais dos séculos XIX e XX – que concorreram para o
embasamento das pesquisas sobre cultura política a partir de 1960 –, impulsionaram o
início dos estudos de cultura política. A tradição sociológica de Max Weber, Talcott
Parsons e outros, a psicologia social de Lippman, Wallas e Lazarsfeld, bem como a
contribuição de cientistas sociais como Ruth Benedict, Margaret Mead e Harold
Lasswell, contribuíram explicitamente com a fundamentação teórica do conceito de
ciência política que se formava.
Um retorno ao século XIX indica que Alex Tocqueville já teria identificado a
presença de uma cultura cívica participativa, ao observar as peculiaridades da
democracia na América. No entanto, mais tarde, o conceito de cultura cívica ganhou
contribuições da antropologia norte-americana, da “escola da personalidade e cultura” e
foi moldada a teoria do caráter nacional. 5
Na conjuntura política e social vivida pelos autores americanos, a cultura
política assumia um forte viés normativo, tornado-se necessário postular uma relação
causal entre a internalização da cultura política, o comportamento individual, as
características e o modo de operação dos sistemas políticos. Dessa forma, a estrutura
política e suas dimensões resultariam de uma determinada cultura política. Em cada país
prevaleceria um conjunto específico de atitudes e tendências políticas que constituiriam
uma cultura política. As diferentes culturas políticas seriam, portanto, fenômenos

4
BAQUERO, M. Cultura política e democracia: Os desafios das sociedades contemporâneas. Porto
Alegre: Ed UFRGS, 1994, p. 4.
5
KUSCHINIR, Karina & CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: cultura
política e antropologia da política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, nº 24, 1999, p. 230.

14
históricos e sociais; fruto das tradições e representações das instituições políticas e
sociais de cada lugar.
Como bem observa Almond, o conceito de cultura política estava delimitado às
disposições dos cidadãos em relação aos assuntos políticos: “O termo ‘cultura política’
referia-se às orientações especificamente políticas, às atitudes com respeito ao
aparelho político, suas diversas partes e o papel dos cidadãos na vida pública”. 6
Através desse conceito, pretendia-se o afastamento das explicações mais em voga da
ciência política naquela época, ainda presas às origens judicialistas da disciplina e
marcadas por uma forte ênfase no estudo das instituições políticas. Por extensão,
pretendia-se chegar à caracterização daquilo que seria a cultura política de uma nação,
definida pelo mesmo autor como “(...) a distribuição particular de padrões de
orientação política com respeito a objetos políticos entre os membros da nação”. 7 A
partir de então, a ciência política se aproximava das correntes sociológicas e do
comportamentalismo dentro das perspectivas pós-positivista e pós-behaviorista. 8
Os trabalhos sobre cultura política nesse momento centravam-se, sobretudo, na
problemática da estabilidade democrática dos países e no exame das condições culturais
para o estabelecimento da democracia, esta “(...) entendida como o sistema norte-
americano, em contraposição ao socialismo soviético”. 9 Essa nova perspectiva de
análise sobre a cultura política, mais sistemática em relação à abordagem teórica e ao
instrumental metodológico, possibilitou o despontar de uma nova área de estudo na
ciência política: os estudos empíricos de política comparada.
Numa época marcada pela ascensão dos EUA, que assumiam sua posição
hegemônica de modelo político para o mundo, e pelo choque da humanidade frente às
conseqüências dos regimes autoritários e da II Guerra Mundial, os limites entre os
conceitos de cultura política confundem-se com os de cultura cívica. A influência do
contexto gerou uma relação entre “cultura cívica” e democracia, por meio do conceito
de cultura política, em que a principal idéia defendida era a de que a cultura cívica,
como uma forma específica de cultura política, estaria mais propensa ao surgimento e
ao desenvolvimento estável de regimes democráticos. Os teóricos da política comparada

6
ALMOND, G. “The Intellectual History of the Civic Culture Concept”. In: ALMOND, G. & VERBA,
S. The Civic culture revisited. Newbury Park: Sage, 1980, p. 1-32; p. 12.
7
Ibidem, p. 13.
8
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 9.
9
CASTRO, H. C. O. Democracia e mudanças econômicas no Brasil, Argentina e Chile: um estudo
comparativo de cultura política. 2000. 172 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, [2000], p. 17.

15
analisaram o desenvolvimento da política como um processo linear, considerando fases
que teriam um fim político ocidentalizado no capitalismo e na democracia, num
momento oportuno para a consolidação das democracias liberais, então praticadas nos
EUA e nos países europeus.
Para demonstrar isso, Almond e Verba realizaram um estudo em cinco países,
identificando elementos específicos de cultura política que seriam combinações distintas
de três “tipos puros”: a cultura paroquial, a cultura súdita e a cultura participativa. Tais
orientações seriam avaliadas a partir de diferentes fatores políticos, que iriam desde
sentimentos mais genéricos, passando por processos políticos e administrativos,
chegando até o papel do indivíduo.
Conhecida como a corrente “desenvolvimentista” dos estudos políticos, a
pesquisa de Almond e Verba considerava a possibilidade de haver etapas ou níveis no
desenvolvimento político, desde uma “cultura paroquial”, característica de estruturas
políticas tradicionais, passando por uma “cultura súdita”, própria de estruturas políticas
autoritárias, até se tornar uma “cultura ativa”, característica de estruturas liberal-
democráticas. Tal diferenciação gerou grande polêmica, pois a relação de causalidade
entre cultura e estrutura política estabelecia a existência de uma democracia estável ou
não, em determinada sociedade, que estaria condicionada pela sustentação de uma
cultura cívica: “(...) em geral, culturas paroquial, súdita ou participante seriam mais
congruentes, respectivamente, com uma estrutura política tradicional, com uma
estrutura autoritária centralizada e com uma estrutura política democrática”. 10
O arranjo mais adequado ao surgimento e à manutenção estável de um regime
democrático estaria na combinação denominada de cultura cívica, cujos representantes
empíricos mais próximos seriam os Estados Unidos e o Reino Unido. Em 1970, Almond
distinguiu quatro tipos de sistemas políticos com base na qualidade da cultura política:
os sistemas anglo-americanos, os continentais, os pré-industriais e os totalitários. 11
Nesse período, ou seja, por volta da década de 1960, até meados da década de 1970, são
claramente delineadas as linhas fundamentais ao longo das quais viria a seguir a ciência
política: de um lado, a modernização e o desenvolvimento político, de outro, o
empirismo da política comparada.
Após a publicação pioneira, diversos autores passaram a adotar a cultura política
como um referencial teórico e metodológico para o estudo de fenômenos políticos. No

10
ALMOND, G. Op. Cit., p. 20.
11
PASQUINO, Gianfranco. Op. Cit., p. 21.

16
entanto, esse crescimento do campo também foi acompanhado por uma forte onda de
críticas, conforme afirma Castro:

A principal e mais séria crítica diz respeito aos pressupostos da obra The
Civic Culture, ou seja, a postulação de um determinado tipo de cultura
política como requisito necessário e absoluto para a constituição e
consolidação da democracia, no caso, a cultura cívica existente nos Estados
Unidos e na Grã-Bretanha. 12

Resultantes dessa formulação, as críticas se concentraram no caráter


etnocêntrico do estudo em questão e acabaram por desqualificar o trabalho como um
todo. O grande mérito da obra consistia na proposta de examinar as atitudes e as
orientações individuais como parte do arcabouço de explicação dos fenômenos
políticos, ainda que voltando suas atenções para a defesa de uma determinada cultura
como a mais apropriada ao regime democrático.
Devido ao sentido teleológico, esse padrão de pesquisa acabou sendo
considerado prejudicial e limitado por seu viés generalista e reducionista. A crítica
central à tradição dos estudos de cultura política incidia sobre certo caráter determinista
culturalista implícito nas hipóteses originais de estudo, visto que, inicialmente,
acreditava-se na existência de uma cultura política nacional, própria de cada povo, que
era transmitida como legado de geração em geração, e numa hierarquia das culturas
políticas nacionais, que se alinhariam com as normas e valores das democracias liberais
do ocidente. O conceito de cultura política está entendido, em The civic culture:
political attitudes and democracy in Five countries, como uma variável independente de
qualquer outro fator e esta opção metodológica. Como afirma Moisés, implicou tratar a
cultura política “(...) como um deus ex machina, isto é, como se a existência de valores
políticos pudesse ocorrer sem a necessidade de identificarem-se as suas causas”. 13
Apesar de seguidas críticas, o interesse sobre o tema ressurgiu na década de
1980, numa perspectiva que buscava afastar-se da noção de cultura cívica. Alguns
autores trabalharam esse conceito focando a relação entre identidades sociais e políticas.
Eckstein, por exemplo, tentou relacionar a mudança política com a cultura, desfazendo a
noção “vaga” de cultura e distinguindo atitudes políticas de orientações culturais.
Trabalhos posteriores, como os de Inglehart, Putnam e Pharr, defenderam uma
abordagem para a cultura política como instrumental analítico para pesquisar as crenças,
os valores legítimos dos diferentes conjuntos existentes nas sociedades. Na mesma

12
CASTRO, H. C. O. Op. Cit., p. 39.
13
MOISÉS, J. A. Os brasileiros e a democracia. São Paulo: Ática, 1995, p. 93.

17
direção, Lane propunha o uso da categoria de cultura política não como um esquema
classificatório, “(...) mas como um método de análise de certo grupo, tentando articular
um modelo de interpretação da sua rede de crenças”. 14
Mais recentemente, certo número de politólogos tem procurado mostrar a
importância da cultura política contra as abordagens atualmente correntes em termos da
escolha racional. 15 Outros ainda têm tentando conciliar a pesquisa antropológica com o
quadro construtivista utilizado na ciência política contemporânea. 16 De qualquer modo,
nas décadas de 1980 e 1990, a incidência maior de trabalhos de ciência política recaiu
sobre a problemática dos processos de transição dos regimes autoritários, totalitários e
pós-totalitários para regimes democráticos, um setor de grande interesse analítico e
político, com contributos por vezes esclarecedores, como O’Donnel, Schmitter e
Whitehead (1986); Gunther, Diamandorous e Puhle (1995); Linz e Stepan (1996); Rose,
Misher e Haerpfer (1998).
Deve-se ter em vista que é inerente a toda a ciência, independente do ramo a
qual pertence, passar por marchas de construção e reconstrução de suas bases; teorias,
abordagens e métodos que evidenciam as transformações e anseios humanos ao longo
do tempo. De acordo com Pasquino:

(...) como fez notar recentemente com alguma amargura o próprio Almond
(1990), nem mesmo as teorizações mais originais deviam deixar de
reconhecer os méritos dos precursores, de se confrontar com as teorias que as
precedem e de aspirar ao crescimento da ciência política por meio de um
processo de crítica e revisão, que não de esquecimento, de tudo quanto foi
anteriormente feito e escrito. 17

No campo da história, de acordo com Rioux e Sirinelli, o emprego do conceito


de cultura política registrou-se concomitantemente com a renovação da história política,
empreendida por René Remond junto à Universidade de Paris X-Nanterre e o Instituto
de Estudos Políticos de Paris, em meados do século XX.

14
RENNÓ, L. “Teoria da Cultura Política: Vícios e Virtudes”. BIB, Rio de Janeiro, n. 45, p. 71-92, 1º
semestre de 1998, p. 86.
15
A teoria da escolha racional entrou na Ciência Política a partir da Economia, como resultado dos
trabalhos pioneiros de Anthony Downs, James Buchanan, Gordon Tullock, George Stigler e Mancur
Olson. Embora esses autores tenham discordado em inúmeros aspectos entre si, todos adotaram uma
interpretação particularmente materialista da teoria da escolha racional. Para eles, os agentes sociais
estariam interessados na maximização da riqueza, de votos, ou de outras dimensões mais ou menos
mensuráveis em termos de quantidades e sujeitas a constrangimentos de recursos materiais. FEREJOHN,
John; PASQUALE, Pasquino. “A teoria da escolha racional na Ciência Política: Conceitos de
racionalidade em teoria política”, Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 16 nº 45 fevereiro/2001.
16
Inúmeros trabalhos aliam métodos da antropologia, como o survey, para uma espécie de pesquisa de
campo junto ao quadro das teorias construtivistas que sustentam às evidências empíricas.
17
PASQUINO, Gianfranco. Op. Cit., p. 25.

18
Com efeito, é no quadro da investigação, pelos historiadores do político no
decorrer da história, que o fenômeno da cultura política surgiu oferecendo
uma resposta mais satisfatória do que qualquer das propostas até então, quer
se tratasse da tese marxista da explicação determinista pela sociologia, da
tese idealista pela adesão a uma doutrina política, ou de múltiplas teses
avançadas pelos sociólogos do comportamento e mesmo pelos
psicanalistas. 18

A recente retomada historiográfica do político apoiou-se em matrizes


antropológicas e manteve troca incessante com as demais ciências sociais, em particular
a sociologia histórica compreensiva de Max Weber, George Simmel e Alfred Schutz.
Foi feita uma releitura dos termos clássicos do vocabulário sociológico em meio à
afirmação da história cultural, que buscava reconsiderar as noções fundamentais de sua
base analítica. O encontro entre história e cultura política aconteceu quando os estudos
históricos passaram a considerar cada vez mais as individualidades, revendo os
conceitos macro-sociológicos e seus possíveis determinismos.
Segundo Pasquino, o distanciamento entre história política e ciência política se
teria dado quando:

Uma primeira ruptura epistemológica ocorreu, provavelmente, com


Maquiavel, quando este fez referência à história, mas também à a observação
direta, declarando em particular que pretendia descrever o mais
objetivamente possível a ‘realidade efetiva’. Desde então, muitos estudiosos
seguiram Maquiavel utilizando o método da observação: é a clássica analise
da democracia na América feita por Tocqueville. Mas não será por isto que a
história irá perder o seu papel de fonte privilegiada de material sobre o qual
se fundam generalizações e teorias. 19

Por razões ligadas à gênese e à identidade, a ciência política teve certa relutância
em elaborar caminhos por onde os fatores culturais fossem suficientemente demarcados
para propor conceituações e efetivas hipóteses de teste, pois as análises culturais eram
vistas como teorizações “softs” e insuficientes que ofereciam riscos às pretensões
científicas da disciplina. Assim, dentro da grande teoria em que a ciência política se
moldava, a cultura era tratada como uma categoria residual, por ser considerada de
natureza subjetiva e propensa a certa indefinição frente a esquemas e quadros de
medição e operacionalização.

Broadly, our discipline has used one of two strategies to with culture. On the
one hand it has sought to conceptualize “political culture”, a concept that
suggests a double agenda: identifying those cultural factors, or political
“values”, that most directly influence political behavior and development and

18
RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma História Cultural. Lisboa: Estampa,
1998, p. 349.
19
PASQUINO, Gianfranco. Op. Cit., p. 14.

19
studying the processes of socialization that result in certain forms of political
dynamics. 20

Na prática, a ciência política negligenciou aspectos históricos e antropológicos


ao empregar a noção de cultura política a fim de satisfazer critérios rígidos, tais como:
ser relevante para o estudo político das modernas sociedades ocidentais industrializadas
e se relacionar causalmente com a teoria grande geral implantada, que na maioria dos
casos exigia que o conceito fosse significativo para a compreensão do desenvolvimento
político ocidental.
Reavaliando o uso da cultura nas analises políticas, Patrick Chabal e Jean-Pascal
Daloz, em Culture Troubles: Politics and the Interpretation of Meaning, 21 revisitaram o
conceito de cultura na incorporação teórica da ciência política. Defenderam que aquela
somente poderia ser entendida se examinada como um ambiente, um cenário em
constante movimento no qual o comportamento humano segue uma série de recursos
particulares, contraditórios e heterodoxos. Nas palavras dos autores:

Our view is that culture is not merely an additional dimension of politics that
requires attention. It is quite simply one of the key fundaments of social life,
the matrix within which that which we understand as political action takes
place. In other words, the field of politics itself has to be examined within its
appropriate cultural milieu, as it were. Far from being a residual category,
culture is in some sense that which constitutes the coordinates, the mapping,
or the very blueprint of politics. 22

No interior de uma comunidade existe uma pluralidade de culturas políticas,


com zonas de intersecção que equivalem a valores compartilhados. Uma cultura política
predominante se mostra ampla em sua área de valores partilhados e bastante segura para
refletir a maior parte das outras culturas políticas da ocasião, tanto em oposição quanto
em comunhão. Essa interpenetração entre culturas políticas distintas em suas origens
indica que, longe de constituir uma marcha, sinônimo de tradição política, vivencia-se
um fenômeno evolutivo que corresponde a um dado momento, reconhecível na história
por seu aparecimento, composição e evolução. Sobre a relação entre cultura e política,
Geertz ressalta:

Na corrente de acontecimentos que formam a vida política e a teia de crenças


que a cultura abarca é difícil encontrar um meio-termo. De um lado, tudo
parece um amontoado de esquemas e surpresas: de outro, uma vasta
geometria de julgamentos estabelecidos. É extremamente obscuro o que une
esse caos de incidentes a esse cosmos de sentimentos, e como formulá-lo

20
CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Culture Troubles: Politics and the Interpretation of
Meaning. Chicago: University of Chicago Press, 2006, p. 10.
21
Ibidem.
22
Ibidem, p. 21.

20
torna-se ainda mais obscuro. Acima de tudo, o que a tentativa de ligar a
política à cultura precisa é de uma perspectiva menos ansiosa da primeira e
uma perspectiva menos estética da última. 23

É importante recordar que a ciência política em Portugal procede, em certa medida,


dos estudos científicos do ambiente da política colonial ultramarina com elementos
importados do realismo norte-americano acoplados à metodologia luso-tropicalista de
Gilberto Freyre, 24 necessária ao contexto e à realidade colonial portuguesa frente à
conjuntura internacional. Os conceitos operacionais da ciência política norte-americana
europeizaram-se por influência da filosofia reflexiva das escolas politológicas francesas.
Em terras lusitanas, os primeiros sinais da ciência política foram marcados pela
preocupação com a política internacional e com a política colonial ultramarina 25 no que
tange ao poder político, como afirma Adriano Moreira, sempre marcado pelo objetivo
estratégico das forças em conflito. 26

(...) a política externa portuguesa sempre foi essencialmente determinada pela


política colonial, dado que, para esta poder estabelecer-se, importava um
conhecimento e uma reflexão sobre os fatores políticos da conjuntura
internacional, com a análise das doutrinas e métodos de governo e estudo das
tendências internacionais (...) a política ultramarina necessitava de socorrer-
se dos métodos da política internacional, praticando a análise a partir das
relações de poder (power politics), o estudo das constantes do
comportamento (behavioral methods) e recorrendo àquilo que os mesmos
autores consideravam como as técnicas da ciência política. 27

Os ventos da história da descolonização portuguesa e da terceira “onda” de


democratizações, que então incluiu Portugal e Brasil, implicaram efeitos não somente
no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, como era inevitável. O
surgimento da ciência política em Portugal revela peculiaridades específicas de uma
cultura política enraizada nos valores e sentimentos que traduzem a existência histórica
de um povo que encontrou no luso-tropicalismo sua maior expressão e fonte de ligação
como outras culturas políticas.
Entendendo como Geertz ao afirmar que “culture, here, is not cults and customs,
but the structures of meaning through which men give shape to their experience; and
politics is not coups and constitutions, but one of the principal arenas in which such

23
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 206.
24
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 82.
25
Ibidem, p. 84.
26
Ibidem, p. 111.
27
Ibidem, p. 85.

21
structures publicly unfold”, 28 a cultura política dever ser percebida como uma
construção histórica que se adapta e se transforma em sintonia tanto com os
acontecimentos, quanto com as atitudes dos indivíduos e dos grupos, cujos objetivos ela
define e redefine. A cultura política compõe-se não só pelas tradições e crenças que
fundamentam as práticas possíveis no interior de um sistema político, mas abrange
também o imaginário que assegura a identidade e delimita as fronteiras da comunidade
a que pertence certo grupo, legitimando e desqualificando tanto as suas reivindicações
quanto os seus simbolismos, por meio dos quais exprimem seus valores e reforçam seus
vínculos.
A cultura política abarca as representações que ligam politicamente um grupo de
pessoas a uma visão comum do passado. Ao mesmo tempo, projeta noções
compartilhadas sobre o presente e o futuro, fornecendo os elementos que justificam os
processos institucionais e as estratégias adotadas para a renovação e para a contestação
política, em que se fixam culturalmente os referenciais e os significados dos termos que
determinam as características dessa mesma cultura política.29 Assumindo-se, por
conseguinte, tal perspectiva, a análise da cultura política – concebida como o conjunto
das práticas políticas e culturais de um determinado grupo em um momento histórico
específico – possibilita distinguir os interesses e os propósitos políticos que se
estruturam no seu interior.
Apesar de aparentemente óbvio, o conceito de cultura política é o que melhor
traduz a ligação inseparável entre cultura e política. Seguindo essa breve reavaliação
sobre as origens da ciência política e a utilização do conceito de cultura política, buscar-
se-á definir as referências teóricas e metodológicas interdisciplinares que melhor
direcionarão a análise da temática do presente trabalho, tendo em vista uma sólida
pesquisa histórica e o uso de fundamentos de outras ciências sociais de apropriada
relevância. O exercício é tão somente, portanto, uma tentativa de tomar exemplos que
encaminhem as reflexões acerca da cultura com a ciência política, não se pretendendo
traçar fronteiras rígidas e intransponíveis.

28
GEERTZ, apud CHABAL, Patrick e DALOZ, Jean-Pascal. Culture Troubles: Politics and the
Interpretation of Meaning. Chicago: University of Chicago Press, 2006. p. 25.
29
SIRINELLI, Jean-François. “De la demeure à l’agora. Pour une histoire cuturelle du politique”. In:
BERNSTEIN, Serge & MILZA, Pierre (dir.). Axes et méthodes de l’histoire politique. Paris: PUF, 1998,
p. 391

22
I. 2 – Possíveis Diálogos e Pontes Teóricas

Como a mais antiga e a mais recente das ciências do homem, 30 a ciência política
dispõe, por um lado, de um vigoroso instinto de defesa, e por outro, ambiciona novas
fronteiras. 31 Segundo José Adelino Maltez,

A ciência política como ciência cultural, antes de inventar novas palavras e


novos conceitos, deve ter humildade e o sentido realista de recolher os
símbolos existentes. Conforme as palavras de Eric Voegelin, começa
inevitavelmente a partir do rico conjunto de auto-interpretações da sociedade
e prossegue através do esclarecimento crítico dos símbolos sociais
preexistentes. 32

De maneira tocante, as pesquisas antropológicas sobre cultura, por seus esforços


de releitura do conceito em análises políticas e sociais, marcaram as ciências sociais no
decorrer do século XX, acarretando inovações profundas nos temas e nas escolhas
teóricas e metodológicas.
Patrick Chabal e Jean-Pascal Daloz, 33 ambos ancorados na antropologia
interpretativa de Geertz, propuseram, em seus trabalhos de política comparada,
caminhos diferenciados para o estudo da cultura política. Assumiu-se o conceito como
um sistema de significados essencialmente semiótico, e não primariamente como
valores que podiam ser classificados em relação a outros. Para os autores, Geertz, assim
como Max Weber, acreditava que o homem é um animal preso às teias de significado
que ele mesmo teceu a partir da sua apreciação e que só poderiam ser identificadas por
intermédio de uma ciência interpretativa ou compreensiva.34 Os seres humanos, desde o
nascimento, herdariam códigos culturais que seriam relevantes à sua existência e seriam
transmitidos aos seus descendentes. A defesa por uma abordagem semiótica está
alicerçada na possibilidade de decifrar os códigos ou “teias de significado”, como
Geertz assinalou, e não como “uma ciência experimental em busca de lei, mas uma
interpretação em busca de significado”. 35

Interpretation, therefore, is far from arbitrary. It is, we would argue,


scientific, in that it requires a systematic approach: the discipline use of
theories and concepts as instruments for the ‘translation’ of the material to
hand. Hence the ‘art’ of interpretation is for us based on clearly identifiable
methods, which can be explained and, more importantly, replicated. The
way(s) in which those methods are applied, on the other hand, ought to be

30
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 100.
31
Ibidem, p. 108.
32
Ibidem, p. 34.
33
CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Op. Cit., p. 24 e 34.
34
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p.15.
35
CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Op. Cit., p. 86.

23
determined by the contextual factors most relevant to the case studies under
examination. 36

Considerando que o modelo Geertiziano percebe a cultura como estruturas de


significado socialmente estabelecidas, entrelaçadas em signos de sentidos ou de
símbolos interpretáveis em suas circunstancialidades, a cultura é vista como um
conjunto de formas simbólicas. Através do isolamento dos seus elementos,
especificando suas relações internas e caracterizando o todo de forma geral, seria
possível identificar, além dos símbolos básicos em torno dos quais a cultura é enraizada
e organizada, as estruturas as quais subordina e os princípios ideológicos profundos nos
quais está arraigada.
E nesse aspecto, a política ocupa lugar central. Trata-se de um locus privilegiado
que permite identificar como as idéias, os significados, os símbolos, ou seja, como a
maneira pela qual a cultura e suas manifestações se adéquam e se transformam em
determinados mecanismos de poder na sociedade. Com efeito, o político “(...) é sempre
o reflexo de uma imagem que a sociedade faz de si mesma”, 37 preso a uma rede cultural
de convenções e representações onde, “como salienta Lévi-Strauss, os símbolos podem
ser mais reais do que aquilo que simbolizam”. 38
Em consonância com tais pressupostos, Jean-Pierre Rioux e Jean-François
Sirinelli, em Para uma História Cultural, 39 trazem uma reflexão acerca da cultura
política e de seus objetos. Acreditando que toda cultura é a cultura de um grupo, pela
historicidade e complexidade de sua formação, a cultura política, assim como a própria
cultura, se expressa pela leitura individual, compartilhada e evolutiva da realidade
coletiva. Por isso, as produções simbólicas dos grupos demonstram discursos que
difundem temas, modelos e modos de raciocínio que tornam a sociedade sensível à
recepção de idéias e à adoção de comportamentos convenientes, que, pela prática social,
acabam por ser interiorizados culturalmente.
Nessa senda, abandonando a dicotomia de análise entre sociedades modernas e
tradicionais, sustenta-se, no presente trabalho, que a cultura política reflete de forma
obliqua e indireta a tradição de um grupo. Discerni-la, portanto, tende a ser muito mais
um ato interpretativo/compreensivo de seus sintomas do que a reconstituição
classificatória de suas causas. As estruturas culturais anunciadas na política são

36
Ver CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Op. Cit., p. 31.
37
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 39.
38
Idem.
39
RIOUX, Jean-Pierre& SIRINELLI, Jean-François. Op. Cit.

24
influentes na medida em que podem, a depender de sua fundamentação sociológica, da
coerência interna, da plausibilidade retórica e do apelo estético, num sentido intelectual,
sobreviver aos acontecimentos conjunturais
Isto posto, busca-se uma nova abordagem, baseada nas relações entre história,
arranjo cultural e ação política, a fim de verificar como a cultura política luso-brasileira,
através da noção de luso-tropicalismo, encontrou mecanismos para se ajustar e adaptar
aos reveses do tempo. Embora tenha servido como argumento ao regime salazarista para
legitimar a permanência de Portugal no ultramar, o luso-tropicalismo assegurou sua
“sobrevivência” ao se impor num plano “extra-colonial”, visto que, mesmo no período
desagregador pós-guerra fria, continuou a oferecer uma representação essencial que
penetrou a tradição política e cultural luso-brasileira.
Se por um lado o luso-tropicalismo perdeu expressão ideológica e credibilidade
no campo científico, por outro, de alguma forma, contribuiu decisivamente para a
formação da auto-imagem em que Brasil e Portugal melhor se revêem e se projetam.
Mais do que uma teoria sobre a relação entre Portugal e os trópicos, o luso-tropicalismo
constitui, de fato, nos respectivos imaginários nacionais, a experiência de Portugal no
mundo e a originalidade e a legitimidade da nação brasileira. A tese formulada por
Gilberto Freyre toca de forma íntima as identidades nacionais dos dois países e lhes
confere singularidade frente aos panoramas internacionais.

(...) os membros de cada sociedade conferem significado à estrutura a que


pertencem, às suas relações internas e com outras comunidades e ao facto
global da sua permanência, ou com aquilo que, para o mesmo autor, são as
sociedades que se auto-interpretam como um pequeno mundo (kósmion), ao
atribuírem um significado à sua existência. 40

O conceito de tradição, junto às discussões em torno de memória ou consciência


social, pode ser compreendido como capital cultural ou simbólico de reprodução
cultural. 41 As identidades e os consensos se estabelecem e se solidificam numa dinâmica
de internalização de memória coletiva e individual, cuja proporção demonstra ser
inexaurível. Em sua longa duração, a cultura política reflete as especificidades e as
contradições dos movimentos sociais e políticos em seus aspectos simbólicos de adesão
e rejeição a determinados projetos de poder e autoridade política que caracterizam uma
visão ou imaginário do mundo.

40
MALTEZ, Adelino. Op. Cit., p. 46.
41
Ver BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. 6ª ed., São Paulo: Papirus, 2005.

25
Dessa maneira, a noção de imaginário liga-se ao termo memória social, sendo
este entendido não só como um sistema de armazenamento de imagens, mas também
como uma ação daquele que recorda. Afinal, memória pressupõe esquecimento, numa
seqüência de restabelecimento ativo de retenção, reordenação e supressão, dentro de um
movimento fluido e flexível de rede de idéias. 42

A memória social é uma rede de idéias constituída por imagens, palavras,


sons e narrativas donde resulta uma particular composição e uma estrutura
própria. Uma história é uma espécie de contentor natural da memória, uma
maneira de sequenciar um conjunto de imagens, através de conexões lógicas
e semânticas. A memória tem uma simplicidade de sintática própria para a
transmissão oral que implica um pré-conhecimento tradicional da ação das
personagens. Tem um determinado contexto narrativo. A memória utiliza a
intuição do enredo, porque é também uma busca ativa de significado. Esta é a
razão por que ao difundir-se também se altera. 43

De modo inegável, o luso-tropicalismo liga-se à traumática história do


colonialismo português no século XX, marcada pela evidente polarização ideológica
dos que se alinhavam ao regime instituído pelo Estado Novo Português. Resistia-se às
transformações e insistia-se na realidade pluricontinental e multirracial da nação
lusíada. Aqueles que se opunham à ditadura fascista e colonialista existente em Portugal
e em suas colônias, fortalecidos pela eclosão dos movimentos de libertação nacional da
década de 1960, procuravam denunciar a falácia de um colonialismo de cinco séculos e
a suposta continuidade espiritual existente entre a metrópole e os territórios
ultramarinos. Por isso, o luso-tropicalismo passou por ocasiões de fortes críticas e de
descrédito. Paradoxalmente, contudo, demonstrou-se de certa maneira sempre presente
como uma teoria, em si independente, que ilustra e satisfaz recorrentemente as
representações culturais necessárias que mantêm as relações entre Brasil, Portugal e o
espaço atlântico.
Conforme aponta o historiador Roger Chartier, a cultura política se insere num
âmbito de concorrências e competições que são verdadeiras lutas de representações,
cujo desafio concentra-se na obtenção de poder e dominação. Dessa forma, inúmeras
apropriações simbólicas são lançadas e testadas de acordo com os interesses sociais,
com as imposições, as resistências políticas, as motivações e as necessidades que se
confrontam no terreno político. Neste ponto, considerar-se-á a esfera do imaginário
como um universo complexo e interativo que abrange a produção, a circulação e a

42
SARMENTO, Cristina Montalvão. Os Guardiões dos Sonhos: Teorias e Práticas Políticas dos Anos
60. Lisboa: Colibri, 2008, p. 71.
43
Ibidem, p. 71.

26
recepção de imagens e idéias mentais e verbais, num repertório político e social que
atinge níveis diversificados de construção de representatividades. 44
O circuito do imaginário político forma-se lentamente a partir de longas
permanências e ocorrências políticas que encontram conexão mais diretamente nos
modos automáticos de pensar e sentir relacionados aos mitos e às visões culturais de
mundo – ou das mentalidades, como dizem os historiadores que enfocam essa
perspectiva social. Tal arcabouço de idéias, presente nas sociedades e em corrente
movimentação, regula o cotidiano em suas várias geometrias de relações humanas, por
espelhar a realidade histórica e mítica do percurso existencial que um grupo faz de si
mesmo.
As fórmulas políticas, reguladas interiormente por mudanças operadas em seus
pressupostos, assumem um lugar autônomo no plano da cultura, orientando a mutação,
o avanço e a harmonização de novos conceitos proeminentes. São o resultado de um
impacto mais vasto, que pode estar relacionado com aspectos de conjuntura política e
econômica que envolvem toda cultura em correlação com as outras culturas externas
dominantes em voga. As idéias funcionam numa marcha constante de interpenetração e
45
de arrumação político-cultural que condiciona a evolução da cultura política. E nesse
sentido, o luso-tropicalismo se insere em nas reflexões desenvolvidas no presente
trabalho, ao levar em consideração esse exercício voluntário e obrigatório da cultura
política na formação e reformulação das idéias políticas, já que sempre serviu como
estrutura para um imaginário e linguagem confluente entre Brasil e Portugal.
Somente pelo desvendamento político pode-se desmascarar o apelo à
legitimidade política de um novo discurso político, seus motivos inconscientes, as idéias
subentendidas em seus argumentos teóricos que ecoam a vivência de um grupo e as suas
aspirações culturais. Na cultura política, encontra-se o ponto em que a cultura se
manifesta em forma de discursos políticos legitimadores. A partir destes, o valor das
idéias e sua atuação na edificação de novas demandas e respostas sociais encontram seu
reduto nas organizações que visam a esmerá-las, legitimá-las e colocá-las em prática
como forma de pensamentos com interesse de correlação comum e consensual e que se
projetam. Assim, as instituições e suas atividades intelectuais manejam os efeitos e
desenham os fins que as idéias representam.

44
Ver CHARTIER, Roger. “Por uma sociologia histórica das práticas culturais”. In: A História Cultural
– entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.
45
SARMENTO, Cristina Montalvão. Op. Cit., p. 84.

27
A análise política para conhecer os processos políticos, (constituídos pelo
conjunto dos meios institucionalizados e ritualizados pelos quais uma
sociedade reestrutura constantemente, pela confirmação ou pela contestação,
a hierarquia dos interesses e dos valores que a identificam como uma
sociedade específica, na medida em que estão estes processos que dão forma
e vida aos aspectos culturais dinâmicos de integração e conflito, de
homogeneidade e heterogeneidade), necessita assumir a importância dos
processos simbólicos e míticos na exteriorização das práticas sociais
ritualizadas, referentes ao saber e ao saber-fazer de qualquer cultura e
sociedade. 46

Na verdade, entre um programa político e a situação que lhe permite origem


existe sempre uma distância considerável, já que se passa do domínio do concreto para
o domínio do discurso – que comporta uma gama idéias e uma linguagem codificada. O
discurso torna-se uma fonte rica para o estudo do fenômeno da cultura política, pois no
espaço entre o problema e o discurso situa-se a mediação política. Palco das forças
políticas, o discurso tem como uma de suas funções primordiais articular, na linguagem
que lhe é própria, necessidades e expectativas de uma comunidade. A mediação política
funciona como uma espécie de tradução, que exibe maior ou menor fidelidade ao
modelo que se pretende exprimir. É precisamente nesse espaço que o politólogo deve
tentar perceber a distância fundamental entre a realidade e o discurso.
Pode-se, assim, demarcar de forma antecipada as décadas de 1930, 1950, 1970 e
1990 como referências que exemplificam muito claramente impactos sensíveis nas
memórias e imaginários políticos de Brasil e Portugal. Os debates e discursos gerados
pelas diversas leituras, as utilizações e os resgates do luso-tropicalismo, suas evoluções
e seus pontos de convergência num passado compartilhado entre Portugal e Brasil
sempre se mostraram fundamentais para as suas bases políticas.
Os momentos selecionados foram marcos de consciência histórica na medida em
que ambos os países deram ensejo a esforços de reflexão em torno do discurso de sua
história comum e de suas relações políticas específicas e primordiais. Buscava-se,
durante todo esse tempo, a institucionalização de uma comunidade transnacional que
desse corpo à unidade lusófona no mundo e que ecoaria o luso-tropicalismo revestido de
novas tendências políticas. Isto permite afirmar que não existe política sem alusão a
uma cultura e a um determinado horizonte de valores, pois “(...) a constituição da
população brasileira baseada no trinômio português, índio, negro, abrange mais de

46
SARMENTO, Cristina Montalvão. Op. Cit., p. 143.

28
três séculos: de 1500 a 1870. Cria-se, assim, desde o século XVI, um caldeamento
étnico e, mais importante, um perfil cultural que se pode definir luso-brasileiro”. 47
Para se desenvolve, no interior da ciência política, a evolução temporal da
política e a sua validade contemporânea, é necessário ater-se à dimensão histórica dos
processos de construção social e cultural da realidade e às identificações imaginárias
legítimas e institucionais que dão sentido à imagem política e cultural de uma sociedade
ou grupo. A concepção antropológica de Geertz oferece boas noções. Ao se debruçar
sobre a cultura, contudo, deve-se recorrer à história e a suas ferramentas com o intuito
de dar sentido ao passado e de tornar o presente mais inteligível.
Nessa osmose de campos – em que se pretende revelar a cultura política luso-
brasileira por meio do luso-tropicalismo nos domínios das idéias, representações,
símbolos e imaginários – a análise de discurso, de suas repercussões político-culturais
na opinião pública e das instituições que o sustentam, mostra-se útil ao desenvolvimento
da problemática deste trabalho. Imaginários, representações e discursos estabelecem
estreitas junções, entre si e com o meio político. Tentar perceber a relação entre as
categorias reais da sociedade e a instrumentalização de recursos simbólicos como fonte
de legitimação constitui um importante passo para elucidação da arquitetura do poder.
Nessa perspectiva, lançar-se-á mão da história das idéias políticas para
estabelecer íntima conexão entre o passado e o presente mediante a conjugação das
permanências e transformações enquanto elementos inerentes a um mesmo devir.48 A
história das idéias políticas detecta as idéias e a cultura política, compreendendo as
concepções que englobam os respectivos acontecimentos, factuais e intelectuais. A
ligação entre cultura e política através história das idéias centra-se nas idéias
culturalmente aceitas e dinâmicas, suas utilizações e atualizações políticas. Desse modo,
as tradicionais indagações acerca da “natureza política” tendem a ser substituídas por
outras relacionadas à “significância das idéias políticas”, como estas se articulam umas
as outras, são transmitidas e recebidas, num processo mais geral de produção de sentido.
O tempo e seus desdobramentos contínuos e descontínuos demonstram a
coerência da própria noção de idéia, pois as idéias têm história, na medida em que suas
formulações e sensos variam. Os conceitos, ao contrário, ajustam-se à definição mais

47
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Diálogo Portugal-Brasil século XXI: novas realidades,
novos paradigmas. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2008, p. 62.
48
Ver CASTRO, Zília Osório de. "Da História das Idéias a História das Idéias Políticas". In: Revista de
História e Teoria das Ideias, II Série, Vol. VIII, Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade
Nova de Lisboa [CHC-UNL], 1996, p. 11-21.

29
abstrata a que correspondem os seus sentidos, sendo função das idéias estimular
contradições que levem a questionar a pertinência ou a adequação que o conceito
implica e podem ser pensadas naquele período.

Considerar a idéia como atualização do conceito significa, tão só, situá-la no


devir histórico, ressaltando a relação que se vai estabelecendo entre a
definição (identificadora) e o definido (identificável), decorrente da evolução
do homem como ser pensante e sua adaptação às mutações circunstanciais. 49

Tendo em vista que o que é representativo não é necessariamente dominante e


que o que é dominante é representativo em múltiplas reproduções, os contextos
configuram-se como dimensões transformadoras e resistentes, em que as idéias
dinâmicas se tornam dominantes. As mudanças políticas podem ser entendidas como a
vitória de idéias diferentes sobre as vigentes, porém as vicissitudes da aplicabilidade
dessas novas idéias dependem do confronto com as dominantes e de um equilíbrio
possível entre o que se altera e o que perdura. A cada época, a prevalência de certas
idéias indica seu caráter operatório na conjuntura histórica e permite a inteligibilidade
do todo a partir da compreensão das particularidades que o constituem, e que as idéias,
de certo modo, refletem. O “mundo das idéias” conecta-se ao “mundo dos fatos”, 50
tendo a história das idéias políticas uma perspectiva dupla: privilegiar as idéias
políticas, como expressão de permanência e de evolução.
Sem dúvida, a realidade material transforma-se com mais rapidez do que a
realidade simbólica. Por essa razão, a releitura do luso-tropicalismo e sua
ressignificação nos novos quadros de globalização e integração, afastando-o das cargas
negativas de ideologia encomendada e forjada, não se transfigurou numa tarefa árdua
empregada de cima para baixo. Pelo contrário, mostrou-se quase sempre como um
impulso espontâneo de empatia e reconhecimento político e cultural que, no fundo,
revelou como a tese luso-tropical se acomodou à cultura política luso-brasileira e serviu
de apoio às mudanças de paradigmas das relações luso-brasileiras.
O luso-tropicalismo caracterizou de tal forma o imaginário luso-brasileiro que
superou os regimes e as posições políticas e partidárias, sendo incorporado de diversas
formas como fonte inesgotável de idéias políticas para os discursos e projetos das
décadas chaves no século XX. Estimulava-se o sentimento de cultura que a concepção
freyriana chamava de “Comunidade Luso-Afro-Brasileira” e que, portanto, poderia se
concretizar por meio de uma entidade supranacional após a libertação das possessões

49
CASTRO, Zília Osório de. Op. Cit., p. 14.
50
Ibidem, p. 16.

30
portuguesas. De fato, esse sentimento inspirou e contribuiu para a criação institucional
da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Podemos perceber, como se referiu
Pierre Bourdieu, que

(...) há palavras que designam instituições ou entidades colectivas que se


constituem como sujeitos históricos capazes de originar e realizar os seus
próprios fins. Trata-se de um método típico da filosofia teológica histórica
levando a que certas tomadas de posição sobre passado radiquem
freqüentemente em tomadas de posição latentes sobre o presente ou, mais
exatamente, contra os adversários intelectuais do presente e gerando uma
ilusão retrospectiva que conduz à ilusão teleológica. 51

Avançando para muito além daquilo que se encontra aparentemente exposto na


superfície, uma abordagem sob a ótica da semiótica enriquece as possibilidades de
tradução das idéias luso-tropicais nos contextos políticos. Essa teoria busca analisar o
caminho percorrido pelo discurso até que ele receba suas interpretações finais. A cadeia
de idéias complexas de um discurso; a presença de certas imagens; a predominância de
certas palavras; a maneira de organizar e apresentar a narrativa; as referências
intertextuais e intelectuais, sejam estas voluntarias, explícitas, implícitas ou
involuntárias, podem revelar a cultura política de um grupo independente daquele que
discursa. Tomam-se como referência as palavras da cientista política Cristina Sarmento:

Importa investigar o que alguns autores americanos têm designado por belief
system. Este corpo de idéias não é apenas reservado ao estudo da história das
idéias políticas pois podemos considerá-las, conforme sublinhou Meynaud,
como ideologia, e esta reflete um conjunto de conceitos existenciais que
orientam a luta pela captura, manutenção e exercício do poder político. 52

I. 3 – Uma Cultura Política Luso-Brasileira e o Luso-Tropicalismo.

Ligados indelevelmente por um caráter ibérico e latino, que lhes atribui um


modo único de pensar e sentir, 53 Portugal e Brasil desde sempre sustentaram suas
relações bilaterais com base numa amizade que excedia as simples relações
diplomáticas de um país para o outro. Afinal, suas relações se apóiam numa evocação
mútua histórica e afetiva incomparável.

51
MALTEZ, Adelino. Op. Cit. p. 41.
52
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 27 e 28.
53
IBN KHALDUNI opud BASTOS, Élide Rugai. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico: entre Dom
Quixote e Alonso El Bueno. Bauru/SP: EDUSC, 2003, p. 108.

31
Após a união com a Espanha, em 1640, com o despertar de um sentimento
nativista luso-brasileiro, 54 Brasil e Portugal ostentaram uma afinidade cultural, social e
política inexistente nas demais áreas de exploração colonial. E, se as turbulências
vividas no Velho Mundo no final do século XVIII inflamaram o separatismo da
América hispânica, estimularam também a aproximação luso-brasileira, derrubando, na
prática, as barreiras entre colônia e metrópole. Em1822, como aponta Neves,

(...) na raiz da cultura política da Independência, encontrava-se a idéia de


Império Luso-Brasileiro. Anunciada desde muito cedo e elaborada desde
finais do século XVIII, como antídoto aos temores gerados pela
independência das colônias inglesas da América e pela Revolução Francesa,
essa concepção era partilhada convictamente pelas elites de ambos os lados
do Atlântico. 55

O processo de separação conciliatório e amigável entre Brasil e Portugal – ao


contrário do restante da América e do ocorrido, posteriormente, na África portuguesa –,
evidencia a essência singular das relações luso-brasileiras, visto que a monarquia
continuou a estimular uma comunidade luso-brasileira. “Ao longo de quase um século
(1808-1889) os monarcas brasileiros e portugueses encarnam, com seus laços
familiares, a ‘comunidade de afetos’ que liga os dois povos”.
Tal comunidade se manteve por herança durante o século XX por meio da
atuação de intelectuais, diplomatas e exilados políticos, que alimentaram este
relacionamento através de um espaço público luso-brasileiro, que se constituiu nos
redutos acadêmicos, nas revistas de idéias e cultura e em outros círculos de
sociabilidade atlântica. 56 Durante os regimes republicanos, mesmo em períodos em que
as relações políticas estavam enfraquecidas, a tônica a respeito dos aspectos culturais
que unem os dois países foi sempre exposta, e por vezes, até mesmo idealizada na forma
de uma comunidade luso-brasileira.

A celebração do centenário da independência brasileira, em 1922, marcada


por um clima de resgate dos laços históricos, reacende o debate. As
afinidades entre os dois povos, ressaltadas – e um tanto idealizadas – na obra
de estudiosos brasileiros e portugueses (em especial Gilberto Freyre)
favorecem a idéia de uma confederação. A atmosfera favorável persiste com
as comemorações da restauração portuguesa em 1940. 57

54
Sobre essa questão ver MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 63. Em que Sinval Medina
relata o movimento armado iniciado por luso-brasileiros em 1645, que culminou nove anos depois com a
expulsão dos holandeses, não só de Pernambuco, mas também de Angola.
55
NEVES, Lúcia Bastos P. das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-
1822). Rio de Janeiro: Revan/FAPERJ, 2003, p. 414 e 415.
56
Guimarães, Lúcia Maria Paschoal (Org.). Afinidades Atlânticas: impasses, quimeras e confluências nas
relações luso- brasileiras. Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2009.
57
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 67.

32
O luso-tropicalismo emergiu como uma teoria que pretendia explicar a
constituição da população brasileira na amálgama baseada não somente no cruzamento
tríplice entre portugueses, índios e negros, mas também em um sentido de história que
abrangia mais de três de séculos (de 1500 a 1870), solidificando um perfil cultural entre
58
Brasil e Portugal que reproduzia e fundamentava a cultura política luso-brasileira
numa mesma unidade de pensamento e ação.
59
Assim, “o modo português de estar no mundo” ilustrou e avivou a idéia da
necessidade de uma comunidade luso-brasileira, que mais tarde se estendeu e se
articulou aos povos de língua portuguesa, mas que guardou em sua origem uma
idealização luso-brasileira. Prova disso foi o comentário escrito por Pinhandara Gomes,
em 1962, para homenagear os vinte e cinco anos de publicação de Casa Grande &
Senzala: “(...) considerá-la a primeira grande pedra lançada, no domínio da
inteligência, para a construção do edifício ainda pouco adiantado que é o Tratado de
Amizade e Consulta Luso-Brasileiro”. 60
O Tratado de Amizade e Consulta, assinado em 1953 e ratificado em 1955,
advém da visão luso-tropical freyriana de que o “bloco luso-brasileiro” deveria
diferenciar-se em relação ao exterior por meio de uma identidade comunitária.
“Consciente das afinidades espirituais, morais, étnicas e lingüísticas que, após mais de
três séculos de história comum, continuam a ligar a Nação Brasileira à Nação
Portuguesa, do que resulta uma situação especialíssima para os interesses recíprocos
dos dois povos”. 61 Nessa direção, o Tratado pretendia ter proeminência em nível
mundial, aludindo à natureza étnica comum, que garantia as afinidades espirituais entre
Portugal e Brasil, através de uma Comunidade Luso-Brasileira.

O acordo estabelecia a consulta mútua sobre os problemas internacionais de


interesse comum; os cidadãos de ambos os países seriam equiparados aos
respectivos nacionais em tudo que não contrariasse dispositivos
constitucionais; portugueses e brasileiros poderiam circular e se estabelecer

58
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 62
59
“(...) um conceito introduzido no discurso acadêmico nacional, nos anos 50, por Adriano Moreira, mas
que rapidamente se operacionaliza e reproduz no discurso do Estado Novo. Pressupõe que o povo
português tem uma maneira particular, específica, de se relacionar com os outros povos, culturas e
espaços físicos, maneira que o distingue e individualiza no conjunto da humanidade. Essa ‘maneira’ é
geralmente qualificada com adjetivos que implicam uma valoração positiva: ‘tolerante’, ‘plástica’,
‘humana’, ‘fraterna’, ‘cristã’”. CASTELO, Cláudia. “O modo português de estar no mundo” In: O luso-
tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa. (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 13.
60
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da Fraternidade: Brasil-Portugal. Lisboa: Editora
Imprensa de Ciências Sociais, 2003, p. 90.
61
CASTRO, Zília Maria Osório de; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO,
Cristina Montalvão (ed.). Tratados do Atlântico Sul: Portugal-Brasil, 1825-2000. Lisboa: Instituto
Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2006, p. 269.

33
livremente nos dois países, resguardadas as limitações impostas pela
segurança nacional e saúde pública. Ficava assim, claramente marcado o
tratamento especial a que os portugueses teriam direito no Brasil, e vice-
versa. Na prática, o tratado propunha o estabelecimento de uma supra-
nacionalidade para os cidadãos de ambas as nações. 62

A secular comunidade de afetos luso-brasileira tem raízes bem mais profundas


do que a partilha do idioma. No ano de 2000, por ocasião da comemoração dos
quinhentos anos do descobrimento do Brasil, renovou-se o Tratado de Amizade,
Cooperação e Consulta, reforçando a parceria excepcional entre os países. Brasil e
Portugal, mais do que sócios, são dependentes um do outro em suas faces internas e
externas, principalmente em suas políticas atlânticas. Por essa razão, o luso-tropicalismo
ocupa um lugar cativo na cultura política dos dois países.
As conjunturas do século XX se afiguraram marcadas pela formação de uma
nova configuração global e as duas nações atravessaram contextos que implicaram
redefinições identitárias. O luso-tropicalismo mostrou-se ressurgente como traço
marcante da cultura política luso-brasileira; ofereceu uma variedade de idéias políticas
que se manifestaram na evolução e na readaptação política, inevitável às transições
impostas às duas nações, e que possibilitaram que as relações luso-brasileiras
encontrassem os caminhos que levariam a uma continuidade histórica. Desse modo, os
países ditos “irmãos” encontraram saídas ligadas ao passado e à tradição comum para a
criação de alguns acertos aos diferentes interesses nacionais de suas políticas internas e
externas.
A idéia de que há um “modo português de estar no mundo”, presente em todas
as regiões de colonização portuguesa, reapareceu de forma tão intensa no centenário
passado, que mesmo os críticos acabaram, indiretamente, por reinterpretá-la – mesmo
sem assumi-la. De acordo com a expressão usada por Giddings, 63 Freyre acreditava que
a presença portuguesa no mundo gerou uma “consciência de espécie” que unia os luso-
descendentes, apesar das diferentes circunstâncias políticas e econômicas, sem anular as
distinções regionais que enriqueciam ainda mais o universo luso e sua teoria.
É importante notar que a tese de Gilberto Freyre sustenta-se na mestiçagem, que
não teria ocorrido apenas no sangue, mas também nos níveis culturais e psíquicos.
Nesse sentido, Gilberto Freyre esboçou uma “ciência” capaz de examinar e
compreender o modo português de estar no mundo e de se relacionar com os trópicos: a
luso-tropicologia, que abarcaria o conjunto transnacional de cultura luso-tropical, no
62
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 68.
63
Ver CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 34.

34
qual Portugal afigurava a pátria mãe de todo o complexo sócio-psicológico. 64 A luso-
tropicologia deveria se tornar pragmática e funcional, no campo político, econômico e
cultural.
O sociólogo brasileiro acreditava na existência de sociedades luso-tropicais que,
no seu conjunto, formavam uma civilização com traços próprios, que as diferenciavam e
individualizavam. No mundo criado pelo português, as afinidades de sentimento e de
cultura sobrepunham-se às questões de soberania. Por ta razão, previa-se que a
comunidade luso-tropical continuaria existindo em outras configurações políticas –
como no período posterior à independência das colônias.
De fato, esse “espírito luso-tropical” configura-se como característica política de
Brasil e Portugal. Afinal, ambos precisam politicamente dos valores e imagens culturais
que estão vinculados à idéia e ao sentido de luso-tropical. O contexto em que Portugal
se encontrava, sem grandes proporções territoriais e demográficas, confrontado pela
pujança econômica e cultural da Espanha no espaço ibérico e na Organização do
Tratado do Atlântico Norte (NATO), fez vir à tona o velho sentimento português de
rivalidade com seu único vizinho fronteiriço, resgatando a antiga lembrança do gesto
“do vassalo contra o suserano”. 65
Integrado à União Européia, mas na contramão da tendência fragmentadora e
supranacional desta instituição. A pátria lusitana ainda se reconhece pelo culto à
memória ancestral de seu povo, e por sua narrativa própria como uma das nações mais
antigas da Europa, naquilo que melhor a personaliza: a maritimidade portuguesa. E o
Brasil funciona no imaginário político e cultural português como a maior prova desta
maritimidade, pois a nação brasileira dá corpo e expressão à cultura, à história e à língua
portuguesa no mundo.

Em contrapartida para Portugal ser continental, implica ser profundamente


oceânico. O mar é uma das matrizes da identidade portuguesa. É-o no plano
do mito, da geografia, da história, da economia e da cultura. Em Portugal, o
que sempre contou foi a relação com o mar, que é a marcha da vida mais
além de si próprio. Foi através dos oceanos que Portugal chegou ao Mundo.
Mas é também através do mar, que o Mundo chega até ele. Hoje, o futuro do
de Portugal é indissociável da nova ordem mundial a que globalização apela,
num imaginário político inclusivo de uma Europa transatlântica, que, para
Portugal, inclui o Atlântico Sul e a relação privilegiada com o Brasil. 66

64
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 34.
65
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 55.
66
CASTRO, Zília Maria Osório de; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO,
Cristina Montalvão (ed.). Op. Cit., p. 321.

35
O Brasil, com uma extensa dimensão demográfica e territorial, vem
consolidando sua liderança na América do Sul. Contudo, ainda é afligido pela grande
abstração política em relação ao seu papel e lugar na América Latina, visto que,
conforme destacam Medina e Medina, existem duas Américas Latinas: o Brasil e a
América hispânica.

Quando falamos de América Latina, não falamos de um, mas de dois


conjuntos, que se contrapõem ao longo da história. Um conjunto é Brasil; o
outro, a América hispânica. Na maior parte da história do Brasil, a grande
ambição da diplomacia brasileira não tem sido integrar-se à América Latina.
Essa ambição quase nunca existiu na diplomacia brasileira. No passado,
como hoje, a ambição é integrar a América do Sul e não a América Latina. 67

Ao Brasil e à América Latina falta correlação histórica, pois as constituições


nacionais desenrolaram-se em filiações muito diferentes. No Brasil, não houve uma
divisão inconciliável entre crioulos e reinóis como na América espanhola. Além disso,
movimentos e processos muito particulares devido à sua configuração étnica, divisão
regional e modo de administração política, impossibilitaram uma correspondência
autêntica com o seu ambiente geográfico restrito. Por isso, o Brasil inclina-se muito a
Portugal e ao Atlântico Sul em busca de conexões legítimas com o seu passado e
história.
Tal inadequação de Portugal e do Brasil às suas delimitações continentais foi
elucidada por Gilberto Freyre, ao explicar a formação do povo português considerando
a influência da cultura mediterrânea e a ligação com a África. Freyre comparou
historicamente a colonização portuguesa com a dos outros europeus nas Américas e
evidenciou a adaptabilidade da colonização lusa – superior à colonização espanhola, por
não ter fomentado divisões políticas e um catolicismo dramático, e também à
colonização inglesa, por não ter introduzido rígidas separações religiosas e étnicas. 68
O Atlântico Sul, dotado de tantas representações luso-brasileiras, apresentou
reservas políticas no que tangia à África nas relações entre Brasil e Portugal. Afinal,
desde a independência brasileira, Portugal resguardou a sua soberania nos territórios
que lhe cabiam no continente africano. 69 Esse desempenho do Brasil como coadjuvante
atlântico se manteve até a década de 1950, sendo o Brasil o maior aliado na defesa
internacional dos interesses portugueses na África. O próprio Tratado de Amizade e

67
MEDINA, Cremilda & MEDINA, Sinval. Op. Cit., p. 56.
68
FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 14 e 15.
69
CASTRO, Zília Maria Osório de; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO,
Cristina Montalvão (ed.). Op. Cit., p. 15.

36
Consulta foi demonstrativo dessa relação entre Brasil e África, que antes perpassava,
sobretudo, por Portugal:

Nos seus termos estava estabelecido que todas as matérias internacionais de


interesse comum seriam resolvidas após consultas prévias e que a sua
aplicabilidade aos territórios coloniais era restrita. O Tratado acabava por
limitar a presença brasileira nas províncias ultramarinas e pretendia reduzir as
possibilidades de uma manifestação oficial do Itamaraty a favor da
emancipação das colónias africanas, condicionando juridicamente a sua
política externa à política colonial portuguesa. Isto é, na prática o Tratado não
implicava em reciprocidade pois pressupunha o apoio incondicional do Brasil
à posição portuguesa no Ultramar sem qualquer contrapartida política e
económica. Uma vez que os interesses estratégicos de Lisboa no Atlântico
Sul não estavam salvaguardados pela North Atlantic Treaty Organisation
(NATO), uma estreita aliança com o Governo brasileiro parecia ser
indispensável para a defesa das colónias africanas. 70

A ratificação do Tratado, contudo, não foi consensual no Brasil, pois existiam


vozes nacionalistas discordantes, que defendiam uma maior autonomia da política
externa brasileira, principalmente em relação a Portugal. Foi proposta a “criação de
uma Comunidade Luso-Afro-Brasileira que integrasse as colónias portuguesas na
esfera de influência do Brasil”. 71 Posteriormente, com o avanço do contexto bipolar 72

e com a instauração do regime militar no Brasil, foi reconsiderada a importância de


uma aliança em favor da proteção do Atlântico Sul e de uma Comunidade Luso-Afro-
Brasileira.
No entanto, tendente a uma política externa global, o Brasil pretendia a fusão do
discurso lusófono ao discurso ocidentalista, no sentido de uma Comunidade, buscando
exercer, de fato, presença e defendendo seu alcance e lugar, especialmente na África
portuguesa. Dessa maneira, após 1970, certas divergências diplomáticas e competições
em termos de soberania se evidenciaram, forçando Brasil e Portugal a reinterpretar suas
ligações e a encontrar novos paradigmas para as suas relações político-culturais.
O crescente destaque do continente africano na ordem mundial tem desafiado
Brasil e Portugal em suas posições. A África possui zonas de tradicional influência
lusíada que a antiga metrópole procura conservar. O Brasil, por sua vez, apresenta
inegável proximidade e correspondência histórico-cultural com o continente. As
estratégias nacionais de Brasil e Portugal parecem alinhar-se em torno da retórica luso-

70
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Do lirismo ao pragmatismo: a dimensão
multilateral das relações luso-brasileiras (1974-1976). Lisboa: ISCTE, 2008 [Proveniente do Prémio
CES/09], p. 21 e 22.
71
Ibidem, p. 22.
72
O contexto bipolar pode ser entendido como uma fase em que duas superpotências, os Estados Unidos
e a antiga União Soviética, disputavam áreas de influencia no mundo, respectivamente, capitalista e
comunista.

37
tropical nos projetos de Lusofonia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP). A língua surge como instrumento da formação de espaços políticos
73
estruturados e a defesa da língua pressupõe, também, a defesa e a manutenção de um
fator de identificação que une incontestavelmente Portugal, Brasil e África. A cultura
de um povo reflete-se de forma máxima e nítida na língua em que é compartilhada, pois
nela se encontra o lugar de memória coletiva; o sentido de pertença de um grupo,
comunidade ou raça. A língua funciona como prática vívida de identidade e
reconhecimento cultural e político.

As memórias de grupo também podem ser estruturadas a partir de um


elemento unificador da comunidade em relação ao exterior, reforçando a sua
própria identidade. A resistência ao exterior é comum aos grupos estáveis e
definidos, onde o campo da própria memória social é um dos fundamentos da
unidade de grupo. Esta pode girar em torno de conotações políticas de
movimentos e ideologias, que marcam o conflito constitutivo, da sua
identidade de grupo. A consciência de classe associada a uma consciência
política complexa pode resultar em memórias bem articuladas de grupo. 74

Como muitos outros países do quadro mundial, Portugal e Brasil se vêem


compelidos a manter a viabilidade coerente de várias pertenças: Portugal, a NATO e a
União Européia; Brasil: o MERCOSUL, tendo ainda de acompanhar os movimentos de
aliança nas Américas. Contudo, o luso-tropicalismo confere a expressão mais
satisfatória para o perfil da política interna e externa das duas nações e serve de baluarte
para guiar as relações atlânticas. O caráter mítico do Atlântico perpetua-se na
contemporaneidade por sua importância geopolítica, pois o Mar Oceano desenha um
triângulo com identidade própria que o distingue. Brasil e Portugal demonstraram
depender dessa memória histórica, como variável de seus conceitos estratégicos
nacionais e para constituição e evolução de suas culturas políticas. Daí advem a
necessidade de invocarem um ao outro na definição periódica desses conceitos através
dos quais o luso-tropicalismo se revela como a linguagem mais apropriada.
Como o geógrafo alemão Ratzel afirmou, Portugal sempre manteve uma relação
de “espaço vital” com o oceano. 75 Em outras palavras, o mar talvez seja a principal
matriz da identidade portuguesa. Nos últimos tempos, Portugal ocupou-se do dito

73
CASTRO, Zília Maria Osório de; SILVA, Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da & SARMENTO,
Cristina Montalvão (ed.). Op. Cit., p. 312.
74
SARMENTO, Cristina Montalvão. Os Guardiões dos Sonhos: Teorias e Práticas Políticas dos Anos
60. Lisboa: Colibri, 2008, p. 71.
75
Ver ROSA, Manuel Amante da. “O Atlântico Sul perante os novos desafios” In: Portugal, os Estados
Unidos e a África Austral. Lisboa: Fundação Luso-Americana/Instituto Português de Relações
Internacionais, Julho de 2006, p. 260.

38
programa dos três D’s, descolonização, democracia e desenvolvimento, 76 fundindo-se
com o objetivo de integração européia que orientou e dominou a política interna e
externa do país. Plenamente integrado, Portugal vem buscando corrigir alguns
desequilíbrios de percurso, pois as antigas coordenadas geo-estratégicas como a
autonomia peninsular e as relações intercontinentais perderam seus contornos.
Ainda atormentado pelo velho dilema entre o Atlântico e pela ligação mais
próxima com a Europa, a pátria de Camões vem se esforçando para reformular sua
política externa na dinâmica internacional de modo a não desperdiçar a sua posição
estratégica e sua habilidade histórica como mediador entre a Europa e o Atlântico Sul.
Nesse ponto, torna-se conveniente a relação particular e privilegiada que a antiga
metrópole mantém com sua ex-colônia sul-americana.
As atuais configurações políticas e econômicas, com a conformação de uma
nova ordem mundial de mercados abertos e globais e a emergência progressiva de
outros participantes no desenho mundial, têm imposto ao Brasil limites e mudanças
sensíveis no seu papel regional e global. O valor do Atlântico Sul e o crescimento
petrolífero de suas margens se apresentam como questões sensíveis à política externa
77
brasileira, que visa a superar o mito de “liderança natural” e exercer função
preponderante no eixo sul. Para isso, contudo, é necessária uma postura política
coerente que ultrapasse suas contradições políticas e identitárias internas. Por isso, as
relações com Portugal em relação à cultura e à língua fazem-se imprescindíveis para
criação de um perfil coeso e seguro.
Nessa perspectiva, o luso-tropicalismo fornece uma grade comum que contém,
de forma mais aclarada, os processos nacionais de formação política e cultural de
Portugal e Brasil. Serve como manancial de idéias não somente para os discursos
políticos que revestem as ligações entre Brasil e Portugal, mas também para os relativos
às suas relações bilaterais e aos de cariz interno, em que as suas identidades devem ser
relembradas. E ainda orienta aqueles discursos em que as singularidades dos dois países
têm de ser evidenciadas no cenário internacional, como caráter de relevância e
diferenciação das duas nações no aspecto mundial. Por isso, visa-se buscar os nexos
entre as idéias contidas nos discursos e as formas pelas quais elas exprimem um

76
Ver FRANCO, Manuela. “Petróleo em Português? Em Prol de uma Política Africana”. In: Ação e
Defesa, nº 114, Verão de 2006, 3ª série, p. 15-33, Instituto de Defesa Nacional, Lisboa. E CASTRO, Zília
Òsorio de; SILVA, Júlio Rodrigues da & SARMENTO, Cristina Montalvão (ed.). Op. Cit.
77
Ver SARAIVA, José Flávio Sombra. “A África na ordem internacional do século XXI: mudanças
epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?” Rev. bras. polít. int., v. 51, n. 1, p. 87-104, 2008.

39
conjunto de determinações extratextuais, isso é, imaginárias e identitárias, em que se
assentam as culturas políticas nacionais. No caso de Portugal e Brasil, buscam-se os
elos associáveis que transfiguram uma cultura política luso-brasileira, que tem sua
maior expressão no luso-tropicalismo.

40
Capítulo II

O Surgimento do Luso-Tropicalismo e a Validade das suas Idéias

II. 1 – O Pensamento de Gilberto Freyre

Após a independência do Brasil, surgiu a necessidade política de se elaborar um


mito nacional que transmitisse ao país recém emancipado o verdadeiro sentido de nação
e de povo. Necessitava-se de uma unidade cultural que correspondesse à identidade em
termos de imaginário e realidade social.
Nessa senda, o campo político se articulou intencionalmente com o intelectual.
Na fase do Império, durante a década de 1840, foi encomendado um projeto de escrita
para a história do Brasil, elaborado inicialmente por Von Martius. Este, apesar de
premiado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), não levou o projeto à
frente. O desafio foi então repassado à Varnhagem, 78 que elaborou, em sua
paradigmática obra História Geral do Brasil, o “mito da brasilidade: uma nação
harmoniosa pautada na democracia racial” – posteriormente, atualizado e sistematizado
por Gilberto Freyre. 79
A formulação da identidade brasileira foi sempre conjugada pelos campos
político e intelectual. Os intelectuais tornaram-se os novos intérpretes do Brasil, e nesse
circuito surgiram diversos nomes e trabalhos, na chamada geração de 1930. Entre eles,
estavam Gilberto Freyre, com Casa Grande & Senzala, Sérgio Buarque de Holanda
com Raízes do Brasil, e Caio Prado Jr., com a Formação do Brasil Contemporâneo.
A figura de Gilberto Freyre emerge com grande realce: um sociólogo brasileiro
que, na célebre obra Casa Grande & Senzala, 80 retratou o Brasil de forma inovadora e
impactante a partir de sua terra natal, a Zona da Mata de Pernambuco. Influenciado pela
antropologia cultural norte-americana, de onde provinha sua formação acadêmica, e
confrontando-a com a identidade brasileira, o autor remontou as relações sociais e o
cenário do Brasil colonial segundo as características dos povos formadores da sociedade

78
Premiado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ver GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal.
“Debaixo da imediata proteção imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)”.
In: Revista do IHGB, a.156, n. 388, p. 459-613, 1995.
79
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. De Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2000.
80
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2003.

41
brasileira. Sob a ótica do culturalismo, valorizou a mestiçagem e a contribuição do
negro, até então rejeitadas e depreciadas. Freyre revelou a maneira como foram criados
os antagonismos que compõem a ordem social no Brasil. Uma descrição minuciosa dos
particularismos do cotidiano colonial e o detalhismo impressionante sobre os mais
variados aspectos da vida social entre colonos e escravos foram marcas do seu trabalho.
A literatura romântica do século XIX, centrada na figura do indígena, construiu
uma visão idealista do homem brasileiro. Mais tarde, essa visão foi substituída pela
busca do reconhecimento da realidade brasileira, em um movimento que acompanhava
as grandes matrizes da literatura universal. 81 As questões sobre as origens do povo
brasileiro estavam no centro das discussões, na medida em que a constituição do povo
era a raiz da formação da nacionalidade – que, por sua vez, era a marca necessária para
a configuração de uma nação frente a outra. Nesse momento, reconhecia-se no Brasil a
existência do Estado, mas pretendia-se, ainda, formar uma nação.
A influência dos modelos europeu e americano havia trazido para o Brasil uma
idéia de atraso e uma tendência negativa de que o destino e o futuro do país estavam
fadados à impossibilidade de desenvolvimento em direção ao progresso. 82 Gilberto
Freyre rompeu com a tradição herdada da antropologia européia, lançando mão de uma
nova interpretação sobre o Brasil, mais próxima da memória social. Optou por um
recurso oposicionista e associativo de forma proposital, a fim de construir sua tese sobre
o Brasil a partir do misto, do híbrido e da mestiçagem. 83 Efeito dual na construção de
toda a sua argumentação. Seus títulos, a exemplo de Casa Grande & Senzala; Ordem e
Progresso; Aventura e Rotina, já anunciam como será estruturada a problemática da
construção da identidade nacional.

81
FREYRE, Gilberto. Op. Cit.
82
Ver, NAXARA, Márcia Regina Capelari. “Estrangeiro em sua própria terra”. In: Representações do
Brasileiro, 1870-1920. São Paulo: Annablume, 1998. No início do século XX, o progresso era entendido
como uma força avassaladora que sucumbia os povos "atrasados", que não estavam aptos a acompanhar
seu ritmo. A teoria fatalista no Brasil justificava-se, portanto, porque esse fim era irrevogável. E o
pessimismo se fundamentava em relação às condições do Brasil diante do progresso da humanidade. O
Brasil era visto próximo da barbárie. Após a abolição da escravidão, vários projetos políticos procuravam
extirpar do Brasil toda a ligação africana, pois a África representava o atraso e o primitivo na escala
“evolutiva civilizacional”. O Brasil buscava se consolidar como nação em relação à Europa, baseada na
civilização e na raça branca, considerada o exemplo do mais alto grau de desenvolvimento alcançado pelo
gênero humano.
83
Talvez o recurso combinado fosse um reflexo da dialética hegeliana entre senhor e escravo, pois Freyre
afirmava que assim como o branco português, o negro africano também agiu como colonizador. Contudo,
se a formação da sociedade brasileira baseou-se em antagonismos, como os conflitos entre os opostos
foram apaziguados? Gilberto Freyre respondeu: “(...) entre tantos antagonismos têm-se condições de
confraternização e mobilidades sociais peculiares ao Brasil: a miscigenação”. FREYRE, Gilberto. Casa
Grande & Senzala. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 116.

42
As origens sociais, a biografia e o percurso intelectual de Gilberto Freyre,
claramente estimularam o seu interesse pelo estudo das relações raciais e da sociedade
patriarcal no Brasil. Descendente de famílias aristocratas, proprietárias de engenhos,
que haviam perdido valor na dinâmica social e econômica do país após a abolição da
escravatura e a proclamação da República, Freyre cresceu nos resquícios do passado dos
senhores de engenhos, das casas-grandes e das senzalas.
Desde a infância, teve contato com a língua inglesa, devido à dificuldade de se
alfabetizar em português. Aprendeu a ler com um preceptor inglês, E. O. Williams, e
depois ingressou no colégio americano Gireath, fundado por missionários baptistas do
sul dos Estados Unidos. Em 1916, proferiu sua primeira conferência pública sobre
Spencer e o problema da educação no Brasil, 84 e no ano seguinte concluiu seus estudos,
tendo como paraninfo o diplomata Manuel de Oliveira Lima.
Aos dezoito anos, partiu para os Estados Unidos da América com uma bolsa
concedida pela Igreja Baptista e bacharelou-se em artes pela Universidade de Baylor no
Texas. Em 1920, seguiu para Nova Iorque para cursar o mestrado em Ciências Políticas
na Universidade de Columbia, onde teve contato com os professores Franz Boas,
Franklin Giddings, Edwin Seligman, William R. Shephered e Jonh Basset Moore. 85
Tomara como fontes para a escritura da sua dissertação de mestrado, intitulado Social
life in Brazil in the middle of the 19th century, relatos de viajantes e de memorialistas,
testemunhos da imprensa e depoimentos orais, o que já revelava a peculiaridade das
fontes e da escrita do autor.
Como pertencia aos setores políticos identificados com a Primeira República,
Freyre foi exilado do Brasil por causa da chamada “Revolução de 1930”, e Casa
Grande & Senzala começou a ser escrito em Portugal. Confrontado pelas diferenças
entre as relações raciais e sociais existentes no Brasil, o autor decidiu aprofundar os
seus estudos sobre a formação da sociedade patriarcal brasileira e sobre a miscigenação.
Inspirado por autores hispânicos como Ortega y Gasset, ao procurar conhecer a
estrutura e o funcionamento da sociedade para, então, compreender a sua história,
Gilberto Freyre encontrou em Ibn Khaldun as bases para o seu pensamento e,
definitivamente, a antinomia entre raça e cultura. Buscando a compreensão do que se
denominava África Menor – o norte do continente africano –, Ibn Khaldun apontava

84
FREYRE, Gilberto. Tempo Morto e Outros Tempos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 9.
85
Ver CASTELO, Cláudia.“O modo português de estar no mundo”. In: O luso-tropicalismo e a ideologia
colonial portuguesa. (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 20 e 21.

43
para o fato de os intelectuais europeus não terem apreendido sua natureza, pois
abordavam este objeto a partir de idéias forjadas no mundo ocidental, de caráter
universalizante, que não abrangia os particularismos que atravessavam aquela
sociedade. Segundo Ibn Khaldun: “(...) a parcial uniformidade e parcial diferença -
porque todo novo povo, ao triunfar, se amoldava ao vencido, porém conservando
também seus usos. Por isso não existiam épocas consecutivas completamente iguais,
nem completamente desiguais”. 86 Tratava-se de uma dinâmica em que a sociedade

(...) é a originariamente cooperação entre homens, que necessitam uns dos


outros. Mas é, ao mesmo tempo, luta entre os homens, a luta essencial que se
perpetua sobre a terra. (...) Destas duas dimensões primárias da vida social
emergem as duas grandes funções históricas: a cooperação cria a civilização,
a luta engendra por si mesma um poder moderador dos antagonismos - a
soberania. 87

A tese central de Freyre em Casa Grande & Senzala espelhou essas idéias, uma
vez que partia da premissa da cooperação entre grupos aparentemente opostos: a
consideração do escravo negro e do indígena, vencidos no processo de distribuição do
poder; a imbricação do velho e do novo; a simultaneidade dos tempos presente, passado
e futuro; luta e confraternização. Logo no inicio da obra, sobre a tríplice herança
cultural brasileira – ameríndia, européia e africana – Freyre afirma:

(...) tomando-se em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade, a


indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultante, é que bem se
compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização no Brasil, a
formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus
começos e ainda hoje sobre os antagonismos. 88

Essas contraposições de cultura, quando em ação, produziam resultados


positivos: uma cultura recebendo elementos da outra; enriquecendo-se ambas. Não se
tratava de um equilíbrio no sentido de estabilidade de convívio entre culturas, mas sim
de uma cultura nova em formação, que não seria inferior nem superior às que lhe deram
origem. O que estava em jogo era o reconhecimento da originalidade do povo brasileiro
formado pelo amálgama de várias culturas, e não resultante de uma mera fusão de
culturas importadas.
Em Casa Grande & Senzala, sobre o papel desempenhado pelo negro na vida
sexual e na família brasileira, Freyre afirmou que todo brasileiro trazia no corpo, “(...) a

86
IBN KHALDUN apud BASTOS, Élide Rugai. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico. Entre Dom
Quixote e Alonso El Bueno. Bauru/SP: EDUSC, 2003, p. 94.
87
Ibidem, p.95.
88
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 8.

44
sombra, ou pelo menos a pinta”, 89 do indígena e do negro. O autor ainda foi além e
afirmou que tal herança, principalmente do negro africano, os brasileiros traziam na
alma. No trecho abaixo, escrito na primeira pessoa do plural, Freyre procurou, de forma
envolvente, despertar no leitor uma reflexão identitária:

(...) da escrava ou da sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que
nos deu de comer, ele própria amolengando na mão o bolão de comida. Da
negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-
assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira
tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da
cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi
nosso primeiro companheiro de brinquedo. 90

Nessa breve exposição das influências freyrianas, podemos notar um ponto


marcante convergente nas obras de Freyre e dos autores hispânicos: o iberismo como
fator explicativo de certas particularidades, em especial dos portugueses. Para Ortega y
Gasset, o fato de o racionalismo burguês não ter emergido na Península Ibérica foi
conseqüência do encontro das culturas oriental e ocidental, uma vez que a Península
Ibérica carregava, além das heranças latinas, a influência da cultura mediterrânea, tendo
esta desencadeado as bases fundamentais para a formação de seus povos.
Gilberto Freyre afirmou a especificidade da sociedade brasileira destacando o
não europeísmo da sociedade ibérica. O ponto de maior relevo de sua reflexão incidiu a
respeito da ausência de uma racionalidade tipicamente burguesa, tanto entre os
portugueses quanto, por herança, entre os brasileiros. Ao construir essa argumentação, o
autor partiu de um traço aparentemente ingênuo dos portugueses vindos ao Brasil: a
rusticidade, elemento muitas vezes desprezado pelos analistas. Era um indicativo da
resistência à homogeneização burguesa, o que abria amplo espectro a aceitação de
inúmeras formas culturais dificilmente assimiláveis dentro do gabarito estrito de
civilização, conforme visto pelas sociedades industriais.
A rusticidade era um elemento a ser preservado, e gerava repulsa à validade
universal de algumas exigências da sociedade burguesa. As faces ibéricas da cultura e a
organização social impediram o rompimento, levando a conciliação dos contrários. Em
Casa Grande & Senzala, por exemplo, a utilização do “&” indica a acomodação, 91
quando o natural teria sido a ruptura de formas duais que se confrontam. A esse
respeito, Cláudia Castelo afirmou que:

89
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 331.
90
Ibidem, p. 283.
91
Ver Ibidem.

45
O ponto a fixar – na opinião do autor – é exatamente o nenhum exclusivismo
de tipo no passado étnico do povo português; a sua antropologia mista desde
remotos tempos pré e proto-históricos; a extrema mobilidade que lhe tem
caracterizado a formação social. 92

Mereceu também destaque na obra em questão a profunda relação entre essa


esfera política e a vida social. E, por analogia, entre as idéias e sua base social. Seguem
as palavras de Freyre:

Seria absurdo pretender que as formas políticas não se relacionam com uma
instituição de vida social e de vida econômica da força e da amplitude do
patriarcado agrária e escravocrata. Oficialmente este teria morrido de vez no
Brasil um ano antes de iniciar-se período republicano, sociologicamente não
morreu; já ferido de morte pela abolição, acomodou se a república e durante
anos viveram ainda patriarcado semi-escravocrata e república federativa
quase tão um simbioticamente como outrora patriarcado escravocrata Império
unitário. Várias sobrevivências patriarcais ainda hoje convivem com o
brasileiro das áreas mais marcadas pelo longo domínio do patriarcado e
escravocrata agrário e mesmo para pastoril - e mesmo afetado pela
imaginação neo-européia (italiana, alemã, polonesa, etc.) ou japonesa ou pela
industrialização da vida nacional brasileira (...). 93

Nessa linha, é possível compreender a importância, na década de 1930, da


discussão das teses sobre o patriarcalismo. Freyre, ao recordar a sobrevivência das
velhas formas de organização social, trouxe para o centro do debate o papel daqueles
setores que aparentemente haviam esgotado a sua importância econômica e política,
mas que conservavam fundamental função social: a manutenção da ordem. Ordem esta
secularmente garantida pelas gerações passadas, que foram desenvolvidas e
consolidadas pelas oligarquias familistas. 94
O conceito de patriacarlismo foi analisado como sendo um importante elemento
na miscigenação das culturas. Imprescindível para que essa realidade híbrida se tornasse
componente e compositora da realidade brasileira. Segundo as palavras do próprio
autor:

Essa categoria nos remete ao ideal de uma família extensa, híbrida e – um


pouco como no Velho Testamento – poligâmica, na qual senhoras e escravas,
herdeiros legítimos e ilegítimos convivem sob luz ambígua da intimidade e
da violência, da disponibilidade e da confraternização. 95

Gilberto Freyre imprimia, assim, a sua marca intelectual com a defesa do Brasil
mestiço, condizente com os trópicos, original e legítimo. Ao mesmo tempo, justificava
a formação do povo brasileiro por meio de uma especial capacidade lusitana: a de se

92
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 30 e 31.
93
Ibidem, p. 104.
94
Ver, ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala na Obra de Gilberto
Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
95
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p.54.

46
relacionar com os outros povos, notadamente os das regiões tropicais, pela apetência
dos portugueses à miscigenação, à tolerância, à plasticidade e à fraternidade.

II. 2 – O Mundo que o Português Criou e os Fundamentos do Luso-


Tropicalismo

As idéias de Gilberto Freyre ganharam maior amplitude e visibilidade com a


teoria luso-tropicalista, formalmente explicitada em conferências proferidas por ele
mesmo em 1937 nas universidades, no King's College, em Lisboa, Porto e Coimbra.
Depois de divulgadas no Brasil, essas conferências foram revistas e publicadas em 1940
em forma de livro com um título muito sugestivo: O Mundo que o Português Criou.
Partindo dos pressupostos de Casa Grande & Senzala, o “ser português” seria
um conjunto de características como plasticidade, ausência de preconceito racial e
catolicismo “tropicalizado”. Freyre expandiu, pela primeira vez, sua hipótese para o
equilíbrio de antagonismos: da “micro” realidade brasileira para uma mais abrangente,
que uniria todas as províncias, ilhas, países e continentes de presença portuguesa.
“Portugal, o Brasil, a África e a Índia portuguesa, a Madeira, os Açores e Cabo Verde
constituem (...) uma unidade de sentimentos e de cultura”. 96
A tônica de O Mundo que o Português Criou foi uma generalização do caso
brasileiro para todo mundo luso tropical, visto que, a essa altura, Freyre ainda não havia
realizado nenhuma pesquisa de campo nas colônias que fundamentasse sua suposição
teórica da unidade cultural e sentimental de populações tão diferentes como a dos
Açores, a da Goa portuguesa e a de Moçambique, por exemplo. Já se conseguia,
contudo, notar, nas conferências realizadas, uma clara intenção: formular a
lusotropicologia, ou seja, uma ciência interdisciplinar que expressasse nas relações entre
os portugueses e o trópico.
Em sua fase luso-tropical, Freyre aprofundou a discussão sobre a mestiçagem e a
identidade brasileira. A idéia de mistura, étnica e cultural, passou a ser analisada como
um encontro que levava a uma relação de complemento e reciprocidade entre metrópole
e colônias. O luso-tropicalismo estruturou-se par e passo com a trajetória intelectual e as
publicações de Gilberto Freyre. Desse modo, pode-se demarcar Casa Grande & Senzala

96
MIRANDA, Rachel de. Além-Mar Aventura e Rotina: o Lugar do Brasil no Mundo Luso-Tropical de
Gilberto Freyre, 2002, 80f Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002, p. 55.

47
(1933) como a primeira obra onde foram lançados os fundamentos da teoria luso-
tropical e O luso e o trópico (1961) como o livro no qual a tese luso-tropicalista se
encontrou no seu estado acabado. 97
O Mundo que o Português Criou e Casa Grande & Senzala problematizaram a
proximidade de Portugal em relação ao continente africano, apontando uma indecisão
étnica e cultural frente à África. A amplitude das influências africana e moura sobre
Portugal e a singular predisposição do português para a colonização híbrida e
escravocrata foi explicada por Freyre, em grande parte, por seu passado étnico e cultural
de povo indefinido entre Europa e África.

A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre requeime à


vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por
uma grande população branca, quando não predominando em regiões ainda
hoje de escrava; o ar da áfrica, um ar quente, oleoso, amolecendo nas
instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a
dureza doutrinária e moral da Igreja medieval; tirando os ossos ao
cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao
direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando
mas sem governar: governando antes a África. 98

Nessas obras, tornou-se nítida a valorização da colonização portuguesa no


Brasil. O português foi visto e apresentado como o único povo europeu capaz de
produzir uma obra colonizadora bem sucedida nos trópicos. Nas palavras de Freyre,
“um povo ralo e miúdo”, 99 que com seu espírito mercantil e cosmopolita produziu uma
verdadeira obra de colonização numa terra onde nada era fácil. 100

No comportamento do português sente-se a tensão entre duas culturas, a


européia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e fatalista... Só
levando em linha de conta esses antagonismos de cultura, e a flexibilidade, a
indecisão, a harmonia ou a desarmonia deles resultantes, é que se
compreende, na opinião de Gilberto Freyre, o especialíssimos carácter que
tomou a colonização do Brasil, sui generis da sociedade brasileira,
igualmente equilibrada desde sempre em antagonismo. Desse dualismo de
cultura e raça decorrem três características do povo português – mobilidade, a
miscibilidade e a aclimabilidade – analisadas nas primeiras paginas de Casa
Grande & Senzala. 101

A miscibilidade, a mobilidade e a aclimatação conferiram a capacidade para a


colonização portuguesa nos trópicos. Foi a flexibilidade do português, de grande mérito,

97
Ver CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 13.
98
FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p.14.
99
Ibidem, p. 49.
100
Cabe ressaltar que Freyre diferenciou o português do castelhano em suas heranças ibéricas: “Houve
desde remotos dias no Português uma espécie de ‘franciscanismo’ ou de ‘lirismo’ (...) em contraste com o
comportamento hierático e dramático do Castelhano”. FREYRE, Gilberto. Integração Portuguesa nos
Trópicos, Col. ECPS, n.º 6, Lisboa, JIU, 1958, p. 52.
101
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 30.

48
segundo Freyre, que deslocou para um novo continente os africanos indispensáveis para
a lavoura. Foi esse povo que, constatando que a falta de riquezas significativas
imediatamente exploráveis na nova terra, orientou-se para a agricultura, contrariando a
vocação mercantil. O mesmo povo, em uma colonização quase sem mulheres brancas,
numa disposição “sem preconceitos”, 102 misturou-se prontamente com as índias e
posteriormente com as africanas, produzindo uma grande colonização, pela iniciativa
individual e pela organização familiar. Gilberto Freyre concluiu que os portugueses
triunfaram onde os outros europeus falharam:

(...) de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos


trópicos com características nacionais e qualidades de permanência.
Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez se retardarem, como nas
possessões tropicais de ingleses, franceses e holandeses. Outros europeus,
estes brancos puros, dólico-louros habitantes de clima frio, ao primeiro
contato com a América equatorial sucumbiram ou perderiam a energia
colonizadora, a tensão moral, a própria saúde física, mesmo as mais rija,
como os puritanos colonizadores de Old Providence, os quais, da mesma
fibra que os pioneiros da Nova Inglaterra, na ilha tropical se deixaram
espapaçar nuns dissolutos e moleirões. Não foi outro resultado da emigração
de loyalistas ingleses da Geórgia, e de outros novos Estados da União
Americana, para as ilhas Bahamas, - duros ingleses que o clima tropical em
menos de cem anos amolegou em 'poor white trash'. O português, não; por
todas aquelas predisposições de raça, de mesologia e de cultura a que nós nos
referimos, não conseguiu vencer as condições de clima e solo desfavoráveis
ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria
de gente branca para a tarefa colonizadora, unindo-se com mulher de cor... O
colonizador português foi o primeiro, de entre os colonizadores modernos, a
deslocar a base da colonização tropical da pura extração de riqueza mineral,
vegetal ou animal – o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim, - para a
criação local de riqueza. 103

Rompe-se não somente com a idéia de degenerescência causada pela


mestiçagem, avaliando-a de maneira positiva, mas também com a corrente que,
demonstrando até certo complexo de inferioridade por não terem sidos colonizados
pelos holandeses, franceses ou ingleses, julgava negativamente a herança colonial
portuguesa. Segundo a análise de Freyre sobre a formação do povo brasileiro, o caráter
humano, e de certo modo o cristão, reagiu contra o caráter econômico através de um
dissolvente formidável: a mestiçagem. A mestiçagem se impôs como uma força física,
biológica e psicológica, sobre a qual nenhum outro elemento pôde prevalecer.
A singular mentalidade ibérica exposta em Casa Grande & Senzala ganhava
maior sentido para Freyre, pois constituíra o principal fator para a longevidade da
presença de indícios da cultura portuguesa nos territórios da África, da Ásia e da

102
FREYRE, G. Op. Cit., p. 56.
103
FREYRE, G. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 14 e 15.

49
América. Incluir o Brasil neste “mundo luso-ibérico” significaria entender a
singularidade cultural brasileira como inerente não apenas a uma comunidade nacional,
mas também transnacional: aquela que uniria Portugal e todas as colônias e províncias
onde se falasse o português, mesmo depois de suas independências. 104
Freyre sustentava que a favor dessa unidade de cultura deveriam trabalhar todos
aqueles que, acima dos regionalismos, acreditavam em um complexo social maior que
necessitava de uma linguagem comum. Propunha o intercâmbio de informações e uma
cooperação entre pesquisadores dos dois países lusófilos no entendimento de questões
históricas, antropológicas e culturais de interesses afins. 105 Brasileiros conhecidos em
Portugal e na África portuguesa, como Manuel Bandeira, José Lins do Rego e Jorge
Amado são citados como militantes na tentativa de se fortalecer a língua comum. Era
necessário esclarecer e avivar, perante todos os povos alheios, os elementos de cultura e
as muitas identidades de sentimentos que faziam dos portugueses e dos luso-
descendentes 106 uma unidade de expressão e cultura.

Eça de Queiroz é tão nosso — tão dos brasileiros — quanto dos portugueses;
tão do nosso conjunto de valores transnacionais quanto Camões e Vieira, O
mesmo está acontecendo hoje com certos “regionalistas” brasileiros nos quais
os portugueses se encontram, a despeito dos indianismos, dos africanisrnos,
dos pernambucanismos, dos caipirismos que eles empregam. 107

Freyre apontava uma unidade psicológica e ao mesmo tempo cultural entre


Portugal, Brasil, África e Índia portuguesas, Madeira, Açores e Cabo Verde que se teria
desenvolvido a partir da característica colonizadora da mestiçagem. Tal semelhança
gerou uma consciência de “espécie”; de integração entre Portugal e os luso-
descendentes, gerada pelo vigor híbrido comum. O homem português inovou, renovou e
se enriqueceu de aspectos novos da cultura criada por um contato dinâmico, ativo e
diferenciador. A mestiçagem proporcionou a igualdade, tanto quanto possível, de
oportunidades sociais e culturais, possibilitando uma democracia social.

A diferença em que se exprime já francamente a ação, antes renovadora que


corruptora da mestiçagem, sobre a cultura de sabor português. (...) Este
fenômeno, se já não se verifica em outras áreas de formação portuguesa - na
Índia, em Macau, em Cabo Verde - está - segundo parece - para se verificar:

104
Ver MIRANDA, Rachel de. Op. Cit.
105
Nesse contexto, Gilberto Freyre citou o Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura como exemplo de
instituição que já se dispunha na cooperação dos países luso-descendentes e o Dr. Manuel Múrias, diretor
do Arquivo Histórico Colonial de Lisboa: “(...) me parece que deve ser no sentido de procurarmos todos
conservar, ao lado do ponto de vista regional ou nacional, o transnacional quando se fizer a
sistematização de esforços, já haverá essa coincidência de orientação, essa antecipação de colaboração”.
FREYRE, G. Op. Cit., p.81.
106
Termo usado por Freyre, ver Ibidem.
107
Ibidem, p.67.

50
com a mesma intensidade que no Brasil nuns pontos, talvez com menor
vivacidade noutros. O que não deixará de haver entre luso-descendentes
serão (...) essas provas de vigor e híbrido na esfera da cultura. Vigor híbrido
não na parte das “sub-raças”, mas das culturas, ou “sub-culturas. 108

Em O Mundo que o Português Criou, o hibridismo foi analisado, num primeiro


instante, como um fenômeno, relativamente destacado, da própria mestiçagem.
Posteriormente, a idéia de vigor híbrido se funde com a de mestiçagem e, finalmente,
com a idéia de cultura ibérico tropical. 109 A questão antropológica e social da
mestiçagem constituía para Freyre um elemento essencial, pois era ao mesmo tempo o
elo entre o passado comum e os luso-descendentes e a chave para a compreensão dos
traços e tendências semelhantes. O autor forneceu um passado coerente pelo hibridismo
e realidade, e assim, uma identidade nova brasileira pautada pela noção positiva da
mestiçagem e diferença. Tal compreensão identitária foi compartilhada ao mundo
lusófono, numa tentativa de apreensão das diferenças e semelhanças que compõem os
povos de herança lusitana.

Impossível interpretar aquele passado e compreender esses traços, sem um


estudo mais largo e mais profundo do fato que, do ponto de vista sociológico,
é o fato central da historia da colonização portuguesa: a rápida e generalizada
mistura de raças e de culturas de que resultaram combinações e perspectivas
tão novas para o mundo moderno em geral e para o espírito ou a energia
portuguesa em particular. 110

Para os críticos de Freyre, sua abordagem promovia a representação de uma


imagem idílica do passado, capaz de ocultar a efetiva dominação, além de denegrir o
caráter europeu da colonização portuguesa. 111 Muitas críticas se prendiam à idéia de que
a sociedade colonial caracterizada por ele seria uma espécie de “paraíso tropical”, onde
as relações de harmonia e paz social entre senhores e escravos seriam muito mais de
aproximação do que antagonismos, ou ainda, mais de confraternização do que de
confronto.
O historiador e antropólogo Ricardo Benzaquén ressaltou as nuances e
ambigüidades de Freyre. Em Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala na Obra de
Gilberto Freyre nos Anos 30, reinterpretou a obra de Gilberto Freyre sob o seguinte
olhar:

(...) interpretar a sua produção intelectual no período não tanto como uma
alternativa conservadora, mas como um outro modernismo, eventualmente

108
FREYRE, Gilberto. O mundo que o português criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 53.
109
Ver MIRANDA, Rachel de. Op. Cit.
110
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p.70.
111
Ver, Ibidem.

51
distinto daquela postura a um só tempo nacionalista e modernizadora que se
tornava gradualmente hegemônica entre nós. 112

Benzaquén não ignorou a idéia de Freyre acerca da fronteira tênue e estreita


existente entre a Casa Grande e a Senzala, pois a miscigenação racial e principalmente a
cultural foram centrais na estrutura da obra e do pensamento freyriano. Contudo,
Benzaquen evidenciou, através de citações claras recortadas de Casa Grande &
Senzala, que também não foi ignorada, ou mesmo desconsiderada, a violência da
escravidão; o autor simplesmente não se limitou ao óbvio. Dessa maneira, acreditar que
a visão de Gilberto Freyre sobre a formação colonial brasileira baseou-se numa imagem
de “paraíso tropical” seria “concluir por uma meia verdade em seu sentido mais
literal”. 113
Gilberto Freyre estruturou sua análise na articulação Estado/Sociedade: “O
repentino triunfo republicano pôs alguns brasileiros em face do problema de seu futuro
nacional, ao mesmo tempo que os obrigou a considerar no seu passado, singularidades
que vinham sendo mal estudadas”. 114 A revalorização de elementos do passado
colonial e do período monárquico ocorreu a contraponto do novo. Aqueles traços da
tradição lusa, responsáveis pela ordem nacional, passaram a ser recuperados pelo
pensamento brasileiro.
Aproximando-se do pensador espanhol Unamuno, Freyre defendia que a cultura
brasileira encontraria direção para seu crescimento, consolidação e manutenção em seus
próprios elementos internos. A transferência de idéias estrangeiras, defendida por outros
ensaístas nas décadas de 1920 e 1930, teria um significado não só ilusório, mas também
trágico, que alteraria o rumo lógico e original da sociedade.
O hibridismo que caracterizou a formação nacional veio a tornar inócuas
quaisquer soluções externas ou elaboradas em patamares diferentes, ou seja, arranjos
sociais concebidos sobre outros valores que não os tipicamente brasileiros. Assim era o
caráter do iberismo, um original encontro entre o Oriente e o Ocidente que não permitia
a adoção das idéias liberais tipicamente européias. Freyre entendia a sociedade e o povo
brasileiro, a partir dos processos de assimilação e acomodação, como um corpo social
homogêneo. Esses processos possibilitaram a presença simultânea de traços psico-

112
ARAÚJO, Ricardo Benzaquén de. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala na Obra de Gilberto
Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994, p. 21.
113
Ibidem, p.48.
114
BASTOS, Élide Rugai. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico. Entre Dom Quixote e Alonso El
Bueno. Bauru/SP: EDUSC, 2003, p. 142.

52
sociais e culturais das diferentes raças formadoras da população brasileira,
configurando-se de modo indelével a sociedade.
O conjunto composto por Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e
Ordem e Progresso constituiu o que Freyre identificou como “Introdução à história da
sociedade patriarcal no Brasil”. Assim, em Casa-grande & Senzala, analisou o Brasil
do período colonial, correspondendo ao estudo da formação nacional e da constituição
do povo brasileiro; em Sobrados e mucambos, direcionou-se ao exame do século XIX,
desde a vinda da corte portuguesa até o período republicano, descrevendo a decadência
do patriarcado rural e o desenvolvimento das cidades. Por fim, em Ordem e Progresso,
enfocou as últimas décadas do século XIX e as três primeiras do século XX, analisando
a desintegração da sociedade patriarcal no quadro da transição do trabalho escravo para
o trabalho livre e as pressões modernizantes.
É importante assinalar que na trilogia foram desenvolvidas idéias originais sobre
a sociedade brasileira e determinados períodos da história nacional. Questionava-se
como, na mudança de um regime para outro, se mantinha a organicidade da sociedade e
a unidade nacional. Se no Império a simbiose monarquia e patriarcado favoreceu uma
ordem de certa forma democrática, no momento republicano, o que possibilitaria sua
continuidade?
Responder a tais indagações foi a grande finalidade das referidas obras. Freyre
acreditava que a chave estava nas forças simultaneamente de equilíbrio e de conflito que
atravessam a sociedade: de um lado, a permanência de certos ritos que compunham a
legitimidade do sistema e permitiam sua reprodução; de outro, mudanças resultantes da
decadência do patriarcado e da alteração da composição étnica da população como
produto da vinda de imigrantes, que alteraram a face da sociedade brasileira. Assim, as
transformações de caráter cultural, econômico, social e político — linguagem, crenças,
moda, higiene, sanitarismo, urbanização, instituições, deslocamento regional da
economia — transformaram significativamente o perfil da comunidade nacional.
Como bem salientou Ricardo Benzaquén, Gilberto Freyre foi por vezes
contraditório, ambíguo e via de regra não conclusivo. Contudo, isso revelou a face
complexa do autor, para quem a imprecisão e a ambivalência traziam estética e recurso
essenciais à construção dos argumentos. Freyre assinalava para os críticos o fato de ser
um pensador de tradição ibérica, 115 o que marcaria o seu perfil intelectual de

115
Ver, FREYRE, Gilberto. Op. Cit..

53
ajustamento da palavra à personalidade, e não o contrário, traço que o tornava mais um
escritor de campo do que de gabinete e o autorizava a descrever e interpretar a realidade
sob uma perspectiva sensível e personalista.
De fato, foi apresentado ao público um tratamento interdisciplinar inédito e até
certo ponto revolucionário para a época, em cada um dos temas abordados: a criança, a
mulher, o patriarcalismo, a religião, a língua, a culinária, a raça, a cultura, o índio, o
europeu, o africano, a economia, a ecologia e a família, impactanto os estudos sociais e
culturais da segunda metade do século XX. Gilberto Freyre rompeu com preconceitos,
fontes e lugares comuns, oferecendo uma abordagem original, marcada pela erudição e
pela pesquisa científica, devidamente alinhavadas por uma linguagem próxima do estilo
literário e acessível ao grande público. Tem-se, portanto, uma espécie de obra de
transposição de uma realidade que o autor tentou captar e compartilhar em sua
totalidade, sem simplificações e reducinismos, buscando a criação de um consenso
social e até certo ponto político sobre os valores nacionais e luso-tropicais.
Seja como for, o luso-tropicalismo não serviria apenas de instrumento político
para os governos português e brasileiro. Sua propagação, positiva ou negativa, abriria
caminhos em várias direções, sobretudo nos domínios das ciências sociais e no âmbito
das instituições politico-culturais. Tal disseminação ainda contribuiria para o
enraizamento de uma imagem lusófona ainda sustentada e reproduzida, especialmente,
por Brasil e Portugal.

54
Capítulo III

O Contexto Luso-Tropical e as Relações Luso-Brasileiras

III. 1 – Gilberto Freyre e o Estado Novo

O novo regime implantado por Vargas em 1937 tinha a pretensão de se firmar e


modernizar o país sobre bases bem definidas. Apesar da figura de Oliveira Vianna como
consultor jurídico do governo Vargas e das influências darwinistas, spencerianas e
positivistas que caracterizavam a concepção modernizadora do Estado – de que o povo
era naturalmente inferior e precisava ser conduzido ao aperfeiçoamento nacional –,
buscavam-se as verdadeiras raízes da nacionalidade brasileira. Para isso, temas
regionais foram resgatados e três modelos foram destacados: Cassiano Ricardo, com o
tema “São Paulo das Bandeiras”, Gilberto Freyre com “Pernambuco da Cana-de-
Açúcar, da Casa Grande e da Senzala”, e Alceu Amoroso Lima, com “A Alma da
Sociedade Mineira”. Dentre os modelos, o de Freyre ganhou visibilidade e prestigio
internacional, tendo sido, apesar das críticas, incorporado pelo Estado Novo. 116 O
117
modelo de Casa Grande & Senzala foi a única proposta capaz de apresentar uma
imagem renovadora, original e positiva da civilização brasileira, em que, concordando
com Suppor:

Num mundo crescentemente interdependente, onde as relações interculturais,


interraciais e interregionais são determinantes, a questão da miscigenação
aparece como a grande contribuição do Brasil ao mundo. A cultura brasileira
é única, não é nem fruto da integração, nem da assimilação, nem mesmo da
dominação, mas de um processo de “interpenetração”. 118

O caráter nacionalista do governo de Getúlio Vargas apreciava também a


discordância de Freyre em relação às correntes de análise anti-portuguesas sobre a
colonização brasileira. 119 Getúlio criou uma política cultural de raiz nacionalista,
tornando obrigatório, por exemplo, o ensino em língua portuguesa.

116
Ver SUPPO, Hugo R. “Gilberto Freyre e a Imagem do Brasil no Mundo”. Cena Internacional, Ano 5,
nº 2, Dez/2003, p. 40-58.
117
Ver Ibidem.
118
Ibidem, p. 45.
119
Ver SUPPO, Hugo R. Op. Cit., p. 45.

55
No ano de 1939, em viagem ao extremo sul do Brasil, Gilberto Freyre entrou em
contato com a gente e a paisagem daquela região. Ficou impressionado com o
abrasileiramento do alemão e de outros colonos, percebendo o processo de
nacionalização através do gesto, do ritmo do andar e da prática de atos tradicionalmente
brasileiros. Esse abrasileiramento, segundo ele, fazia-se quase sempre pela pressão do
ato sobre o espírito, ou seja, alemão ou o italiano começavam a se nacionalizar pela
prática de uma série de pequenos atos brasileiros. A liturgia e o ritual diário acabavam
por persuadir suas raízes e almas de imigrantes. Mereceu destaque, ainda, o fato de que
todos esses imigrantes, de diversas nacionalidades, trariam suas contribuições culturais.
O Brasil caminhava para se tornar uma cultura plural. 120

No entender de Freyre, o Brasil não deveria somente absorver a cultura luso-


brasileira, mas sim defendê-la e desenvolvê-la, pois ela seria a condição essencial da
vida da nação. Vargas também percebia a necessidade do fortalecimento das bases luso-
brasileiras. Ao receber os membros do Conselho de Imigração e Colonização, o
presidente ressaltou o direito do Brasil em optar pelas correntes emigratórias que mais
convinham. Deveria ser seguido o critério histórico da formação luso-brasileira.

O presidente Getúlio Vargas mostrou recentemente compreender a


necessidade de defesa daquele tronco, não tanto racial, quanto cultural, da
nossa sociedade e da própria organização política do Brasil: o tronco
português. O velho elemento lusitano cuja importância cedo se tornou clara
para mim, não através do entusiasmo literário ou de preocupação política,
mas em conseqüência do estudo: o estudo da nossa formação social libertado
do preconceito anti-português que por tanto tempo dominou a muitos dos
estudiosos brasileiros de assuntos de colonização e de história nacional. 121

As vidas políticas de Brasil e Portugal na década de 1930 atravessavam


contextos político-ideológicos semelhantes, marcados por forte afirmação nacionalista
com regimes batizados pela mesma designação: Estado Novo. Vargas e Salazar logo
afinaram os laços institucionais entre os seus países, aproveitando as vias mais

120
Quando retornou de viagem, um jornalista perguntou sobre sua impressão das “populações coloniais”
do sul. Freyre respondeu que, a seu ver, tais populações deveriam ficar separadas. Apesar de serem
grupos europeus, representavam um perigo para a cultura luso-brasileira. Para Gilberto Freyre, o Brasil
não existia sem a formação portuguesa; Portugal tinha direitos lingüísticos e culturais, pois quando
colonizou parte da América, firmou nos trópicos uma civilização com elementos predominantemente
europeus e cristãos. FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio,
1940, p. 39.
121
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 40 e 41.

56
favoráveis e concretas existentes: a história em comum e a familiaridade entre os
intelectuais portugueses e brasileiros. 122

O caráter nacionalista que ele [Getúlio Vargas] imprimiria à sua política de


governo, o levou a cercar, pouco a pouco da velha metrópole, no seu
entender, o berço das raízes étnicas e culturais da jovem nação americana.
Duas intervenções pontuais, dos então ministros Osvaldo Aranha e Gustavo
Capanema ilustram bem essa concepção. O primeiro advertia que (...) o
Brasil é amigo de todos, mas, filhos, só de Portugal. O segundo, fazendo-lhe
coro, afirmava que (...) os brasileiros se orgulhavam de ser portugueses na
América. 123

Esboçavam-se, assim, os traços de uma possível afinidade ideológica e de


projetos políticos, no qual Gilberto Freyre se encaixaria de forma conveniente. Vargas
buscava alterar a reputação e imagem do Brasil de país atrasado e etnicamente incapaz,
e Salazar procurava meios de contornar as pressões internacionais favoráveis à
autodeterminação das colônias portuguesas.

Portugal, isolado e recuado desde a Conferência de Berlim (1885) até o


Ultimato Britânico (1890), assistiu à falência do seu antigo argumento histórico, critério
de legitimidade para a realização de seus interesses no que tangia à ocupação do
território africano na corrida imperialista. No campo político, tornava-se freqüente
responder aos pleitos externos invocando o passado dos descobrimentos e a relação
privilegiada que os portugueses alegadamente mantinham com as regiões africanas e as
diversas culturas. A transição do século XIX para o XX implicou a definição uma nova
política colonial face ao crescente interesse das potências européias pela África. Em
1930, o Ato Colonial, inaugurou uma nova fase na administração colonial portuguesa:
imperial, nacionalista e centralizadora. 124

O Acto Colonial começa por reafirmar a vocação e o direito histórico de


Portugal à colonização: ‘É da essência orgânica da Nação Portuguesa
desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos
e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo
também a influência moral que lhes é adstrita pelo Padroado do Oriente’
(art.º 2.º). Depois esclarece que ‘os domínios ultramarinos de Portugal
denominam-se colônias e constituem o Império Colonial Português’ (art.º
3.º); este ‘é solidário nas suas partes componentes e com a metrópole’ (art.º
5º). Proíbe a alienação de qualquer parte dos territórios e direitos coloniais de
Portugal (art.º 7º). 125

122
Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. “Relações Culturais Luso-Brasileiras: alguns pontos de
confluência.” In.: Convergência Lusíada. Rio de Janeiro, 24: 256-264, 2º semestre de 2007.
123
Ibidem, p. 136.
124
Ver CASTELO, Cláudia.“O modo português de estar no mundo”. In: O luso-tropicalismo e a
ideologia colonial portuguesa. (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 45.
125
Ibidem, p. 46.

57
Com o intuito de penetrar na mentalidade política e cultural da época, o novo
conceito de Império, a um tempo naturalista e ontológico, 126 foi divulgado em diversos
textos e discursos. O ministro das colônias Armindo Monteiro (1931-1935), grande
teórico da política imperial portuguesa, concebeu o Império como uma unidade de
sentimentos históricos acima dos interesses políticos e econômicos. De acordo com
Cláudia Castelo:

Portugal pode ser apenas uma nação que possui colônias ou pode ser um
Império. Este será a realidade espiritual de que as colônias sejam a
corporização. A par da extensão territorial, o Império resulta, sobretudo, da
existência de uma mentalidade particular. Funda-se esta, essencialmente, na
certeza que a nação possui do valor da obra que já realizou, na vontade de a
prosseguir ininterruptamente, na convicção que pode prossegui-la, vencendo
todas as dificuldades. 127

Em suma, o Ato Colonial funcionava como o pacto colonial da fase mercantilista


e construía no plano doutrinário a ligação vital de Portugal, como nação soberana, ao
seu império colonial. 128 Nesse sentido, o Estado Novo lançou um conjunto de
iniciativas que pretendiam afirmar não só os direitos dos portugueses no além-mar,
como também a grandeza da ação civilizadora da Nação Portuguesa.

Assim, decorreram o I Congresso da História da Expansão Portuguesa no


Mundo e a Exposição Histórica da Ocupação, 129 ambos realizados no ano de 1937. E,
sem dúvida, o grande evento que procurou consolidar a imagem de Portugal como
multicontinental e multirracial foram as Comemorações Centenárias de 1940,
promovidas por ocasião do Duplo Centenário. A realização do Congresso Luso-
Brasileiro de História, durante as Comemorações, representou um importante
empreendimento do Estado salazarista com vistas ao estreitamento dos laços com o
Brasil por meio de uma política de relações culturais que procurava despertar um
sentimento luso-brasileiro de correspondência patriótica, baseando-se na existência de
um patrimônio comum, em que a história constituía um dos mais fortes esteios.130

Em 1938, ao anunciar as solenidades do Ano Áureo, Antonio de Oliveira Salazar


fez o seguinte pronunciamento:

126
ROSAS, Fernando. O Estado Novo (1926-1974). Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 287.
127
Ver CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 47.
128
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da fraternidade: Brasil-Portugal - Do Tratado de
Amizade Ao Caso Delgado. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/Universidade de Lisboa, 2003.
129
Gilberto Freyre foi um dos delegados oficiais do governo brasileiro nesses eventos, contudo suas
conferências foram lidas por Manuel Murias, pois Freyre teve de regressar prematuramente ao Rio de
Janeiro por problemas de doença na família. Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. Afinidades Atlânticas:
Impasses, quimeras e confluências nas relações luso-brasileiras. Rio de Janeiro: Quartet, 2009, p. 139.
130
Ver Ibidem.

58
Ao Brasil é devida referência especial, (...) havemos de pedir ao Brasil que
venha a Portugal no momento em que festejaremos os nossos oitocentos anos
de idade ajudar-nos a fazer as honras da Casa; que erga o seu padrão de
História ao lado do nosso; que não seja apenas nosso hóspede de honra, mas
como da família. 131

Getúlio Vargas respondeu-lhe no mesmo diapasão:

(...) o Brasil, carinhosamente convidado, comparecerá, e timbra em fazer não


como visitante cortês; mas como membro da família que, embora
politicamente separado, permanece fiel ao seu espírito e leal à sua amizade. A
antiga colônia associou-se às Comemorações Centenárias na qualidade de
nação irmã, participando da Exposição do Mundo Português e do Congresso
Luso-Brasileiro de História. 132

Entre dois de junho e dois de dezembro de 1940, Portugal vivenciou uma série
de festejos a propósito de celebrar a passagem do oitavo e do terceiro centenários da
fundação do Reino (1139) e da Restauração (1640), respectivamente. Embora não esteja
em nossos propósitos discutir as motivações de natureza político-ideológicas que
levaram o Estado salazarista a promover aquelas celebrações, convém ressaltar que a
política cultural desenvolvida por Antônio Ferro e posta em execução pelo Secretariado
133
de Propaganda Nacional buscava elevar o espírito do povo português, valorizando-o
não apenas como grupo étnico, mas também por sua cultura, pela força de produção,
pela capacidade civilizadora e pela unidade independente no concerto das nações. 134
Sua consecução assentava-se sobre três pilares: o uso da cultura como símbolo da
nacionalidade e meio de propaganda, de modo a engrandecer a obra de governo de
Salazar; a tentativa de conciliar a velha tradição e os valores lusitanos com a
modernidade simbolizada pelo advento do Estado Novo; e o estabelecimento de uma
cultura nacional e popular com base nas raízes e nos ideais forjados pelo regime
salazarista. 135

131
SALAZAR, Antonio de Oliveira. “Independência de Portugal - Nota oficiosa da Presidência do
Conselho”. Revista dos Centenários, Lisboa, 1:3, janeiro de 1939.
132
VARGAS, Getúlio. “Discurso”, pronunciado em 17 de junho de 1939, no Real Gabinete Português de
Leitura. A Ação dos portugueses do Brasil na Exposição do Mundo Português (...). Rio de Janeiro: [s.n],
1940.
133
Ver TORGAL, Luís Reis. História e ideologia. Coimbra: Livraria Minerva, 1989, p. 194. (Coleção
Minerva - História nº 3). Ver, também, LEONARD, Yves. Salazarismo e Fascismo. Tradução de Catarina
Horta Salgueiro. Lisboa: Editorial Inquérito, 1998, p.95-96.
134
Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. “À Sombra das Chancelarias: A Preparação do Congresso Luso-
Brasileiro de História (Lisboa, 1940)”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro: IHGB, a. 168, n. 437, p. 49-66, out./dez. 2007.
135
Ver ROSAS, Fernando. O Estado Novo nos anos trinta: 1928-1938. Lisboa: Editorial Estampa, 1986.
E ROSAS, Fernando. “Salazar e o Salazarismo: Um caso de longevidade”. In: Salazar e o Salazarismo.
Lisboa: Publicações D. Quixote, 1989.

59
Uma das principais ações concretizadas nos festejos das Comemorações
Centenárias foi a Exposição do Mundo Português, pois segundo o próprio Salazar a
Exposição representaria: “(...) uma síntese da nossa ação civilizadora, da nossa ação
na história do mundo, mostrando, por assim dizer, todas as pegadas e vestígios de
Portugal no globo”. 136 O Brasil foi único país estrangeiro com pavilhão próprio na
Exposição, o que ressalta o seu lugar de evidência, pois assim o Brasil exibiria sua
história, cultura e feições modernas.

O Brasil não só era a materialização do sucesso da ação civilizatória portuguesa,


como também integrava o Império Português enquanto um Império moral e espiritual.
De fato, a expressão “Império Português” correspondia ao imperativo da raça e
representava a consciência de Portugal sobre o seu destino histórico e o seu papel de
principal defensor do patrimônio espiritual português. Do ponto de vista simbólico, a
inserção brasileira nos festejos do duplo centenário servia prova positiva àqueles que
desqualificavam a colonização lusa, funcionaria como uma espécie de prova póstuma
das virtudes civilizadoras portuguesas. 137

A participação brasileira na festa das comemorações servia de antídoto às


138
críticas que denegriam a colonização portuguesa. Não por acaso, Júlio Dantas
escreveria na Revista dos Centenários: “(...) que o mundo seja testemunha do que é o
Brasil na História de Portugal – uma das suas páginas mais belas e sua mais
extraordinária realização, e do que é Portugal para o Brasil – a fonte inicial de sua
vida, a Pátria da própria Pátria”. 139

Em todos estes fragmentos do corpo universal da nação pulsa um coração


comum, velho de oito séculos, mas forte, rejuvenescido e orgulhoso do seu
ritmo épico. Que todos os portugueses pensem e sintam que as festas de 1940
são deles e para eles. Festas da grande família lusitana, nelas cabe o Brasil,

136
ALMEIDA, José Carlos. “Portugal, o Atlântico e a Europa. A identidade nacional, a (re)imaginação
da nação e a construção européia”. In: Nação e defesa, nº. 107, 2ª. Série, 2004. p 147-172.
137
A expressão é de Fernando Catroga. Cf. CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história”. In:
CATROGA, Fernando; TORGAL, Luís R. & MENDES, J. A. História da História em Portugal: da
Historiografia à Memória Histórica (séculos XIX e XX). Lisboa: Temas e Debates e Autores, 1998, p.
268-269.
138
Figura proeminente na vida intelectual portuguesa. Presidiu a Comissão Nacional que coordenou as
Comemorações Centenárias e foi editor da Revista dos Centenários.
139
A Revista dos Centenários, fonte documental da maior importância, foi o instrumento de divulgação
da comissão organizadora das Comemorações. Nela foram apresentados os programas e preparativos para
a celebração lusitana, além de servir de veículo para convocação dos portugueses dispersos pelo mundo,
para participarem e colaborarem na grande festa, em especial, os portugueses do Brasil. COMISSÃO
NACIONAL DOS CENTENÁRIOS. Revista dos Centenários, Lisboa: C. N. C., n os 1-22, Janeiro de
1939 – Dezembro 1940, p. 13.

60
nação irmã, que partilha gloriosamente o nosso patrimônio histórico e
lingüístico. 140

O Brasil se percebia “(...) como filho dileto da diáspora ultramarina


141
portuguesa” e os intelectuais e as autoridades brasileiras correspondiam aos anseios
da mãe-pátria. Essa postura pode ser observada pela atenção que o governo de Getúlio
Vargas conferiu aos festejos portugueses de 1940.

No âmbito da presidência da República, instituiu-se a Comissão Brasileira dos


Centenários de Portugal, presidida pelo Chefe da Casa Militar, o general Francisco José
Pinto, encarregado de coordenar todas as iniciativas e esforços para garantir uma
participação esmerada naquelas solenidades. Designadamente no que tangia à
Exposição Histórica do Mundo Português, onde o Brasil serviria de vitrine para a
Europa em seu pavilhão oportuno.

Diga-se de passagem, há registros do cuidado dispensado aos preparativos para


figurar na Exposição até mesmo no Diário de Vargas, 142 que aproveitou a oportunidade
e empenhou-se para projetar uma imagem positiva não apenas de si, “o fundador do
Estado Novo no Brasil”, 143 mas também da nação que administrava: jovem, moderna e
civilizada, possuidora de amplos potenciais de riqueza. 144 Esse perfil, sem equívoco,
correspondia às expectativas de Salazar. No fundo, para os dois governantes a
Exposição se afigurava conveniente aos seus propósitos nacionalistas e revivescentes.

O Congresso Luso-Brasileiro de História e as Comemorações Centenárias


procuravam reavivar a memória lusitana para construção de uma compreensão entre as
duas nações irmãs num mesmo sentimento e raça luso-brasileira. Para o Brasil
reascender a lusitanidade era conveniente, visto que, no conturbado início do século
XX, era imprescindível fortalecer os vínculos com Portugal dado o perigo de
desnacionalização frente às várias correntes imigratórias de diversas raças que vinham
ocupando o vastíssimo território brasileiro. Portanto, as relações luso-brasileiras se

140
COMISSÃO NACIONAL DOS CENTENÁRIOS. Revista dos Centenários, Lisboa: C. N. C., n os 1-
22, Janeiro de 1939 – Dezembro 1940, p. 16 e 17.
141
TORGAL, Luís Reis. História e ideologia. Coimbra: Livraria Minerva, 1989, p.189 (Coleção
Minerva- História nº 3).
142
Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. “À Sombra das Chancelarias: A Preparação do Congresso Luso-
Brasileiro de História (Lisboa, 1940)”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro: IHGB, a. 168, n.437, p. 49-66, out./dez. 2007.
143
O aposto aparece seguido ao nome de Getúlio Vargas, acima de uma imagem do busto presidente em
alto relevo, superposta na fachada principal do Pavilhão Brasileiro, na Exposição Histórica do Mundo
Português.
144
Ver GUIMARÃES, Lucia Maria P. Op. Cit.

61
estreitaram neste período a fim de que fossem mantidas as tradições históricas e
nacionais. Conforme já mencionado, tanto Getúlio Vargas quanto Antônio de Oliveira
Salazar desenvolviam políticas públicas direcionadas à valorização da nacionalidade,
apoiadas em determinadas concepções pragmáticas da história.

É relevante salientar que as fontes alocam o desenvolvimento da política de


aproximação cultural luso-brasileira num período de crise, por causa da II Guerra
Mundial, e por isso visavam à defesa da tradição colonial portuguesa e à manutenção
dos seus domínios na África e na Ásia. O duplo Centenário foi a oportunidade de
demonstrar a todos a eterna vocação lusitana, e que o Brasil era um exemplo de futuro
possível para os territórios do ultramar, mesmo sendo um país do encontro de três raças.
“(...) A Terra de Santa Cruz é a demonstração colossal de nosso poder colonizador;
significa o padrão das possibilidades portuguesas para o aparecimento de novos
mundos”. 145

Ao cooperar com o governo português, Getúlio Vargas pretendia demonstrar ao


mundo que o Brasil era um modelo de civilidade, generosidade e trabalho. Deste modo,
Vargas reformulou os programas de participação do Brasil nas Comemorações
Centenárias e procurou adaptá-lo, de modo a fazer a propaganda do seu projeto político.
Assim, a relação que se estabeleceu entre os dois países não era ingênua, antes
respondia a um jogo de interesses de Vargas e Salazar.

A presença do Brasil nos Centenários não era mais só uma questão de exaltação
nacionalista, era também uma necessidade estratégica. A aliança entre os governos
português e brasileiro, firmada na ocasião dos centenários, consolidaria a amizade,
podendo Portugal contar com o Brasil em horas de incertezas como no pós-guerra ou no
período de descolonização. Assim como em 1808, mais uma vez Portugal voltava-se
para o Atlântico nas angustiosas horas de perigo e insegurança, tendo no Brasil seu
porto seguro.

Gilberto Freyre se depara com este quadro político-ideológico. Sua idéias foram,
num primeiro momento, repugnadas pelos ideólogos dos Estados Novos, tanto
português quanto brasileiro, por serem consideradas demasiado radicais e
transgressoras. Os únicos casos de reconhecimento imediato tiveram lugar no campo

145
CORTE-REAL, João. “Um documento secular passado no Rio de Janeiro”, Congresso do Mundo
Português – Memórias e comunicações apresentadas ao Congresso Luso-Brasileiro de História. Lisboa:
[s.n.], 1940, v. IX, p. 192.

62
cultural. 146 O antropólogo Antônio Augusto Mendes Correia, por exemplo, em sua
comunicação no Congresso Luso-Brasileiro, “O elemento português na demografia do
Brasil”, exaltou a tese de Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre expondo que:

Das velhas armadas, das antigas caravelas, dos frágeis veleiros de outros
tempos, dos modernos transatlânticos, até os trágicos destroços de naufrágios,
aportaram, por mais de quatro séculos, à costa brasileira, milhares, milhões
de compatriotas nossos, formigueiro humano que deu à formação, ao
engrandecimento e à glória do Brasil o melhor do seu esforço. Não lhes
pertence todo o mérito da assinalada epopéia sul-americana. Tiveram
colaborações preciosas, de outros elementos étnicos, de fatores naturais
incontestáveis, de circunstâncias históricas. Embora os séculos, o meio e os
cruzamentos não hajam destruído os nossos colonos e emigrantes e nos seus
descendentes as virtualidades germinais, uma flama interior que é herança
biológica imortal, há, de certo na vida e na população brasileiras elementos
importantes de diferenciação relativamente à vida e a população da antiga
metrópole. Mas as diferenças não excluem afinidades que nenhum capricho
do destino ou vontade terrena alcançara jamais suprimir ou sequer desfigurar.
São afinidades de raça, de língua, de civilização, de história, de fé, as quais
garantem, através de milênios e de todos os episódios e vicissitudes, a
realidade e a permanência de uma bela unidade moral luso-brasileira. 147

O luso-tropicalismo de Freyre sempre foi alvo de críticas, em especial nas


décadas de 30 e 40. De qualquer modo, a partir da década de 50, foi incorporado no
discurso político oficial, de forma explícita e implícita, notadamente por parte do regime
português, devido aos crescentes ataques ao colonialismo.

III. 2 – Recepção e Críticas ao Luso-Tropicalismo

Tanto no Brasil quanto em Portugal, Gilberto Freyre foi alvo de muitas críticas
públicas. A publicação de Casa Grande & Senzala gerou, entre a intelectualidade ultra-
reacionária pernambucana, certa polêmica em relação a Gilberto Freyre e sua obra, o
que, de antemão, demarcaria o destino polêmico do autor. Termos como “imundo”,
“infame” e “obsceno” foram freqüentemente utilizados para se referir ao autor em
jornais e revistas da época.

Os extremistas de direita foram implacáveis nos julgamentos do livro e Freyre,


recém-chegado do exílio, amargava empastelamento do jornal que dirigia, A Província.
Neste período, foi um dos organizadores dos I Congresso Afro-Brasileiro de 1934,
sendo acusado por Afonso Arinos de Melo Franco, na imprensa do Rio de Janeiro, de

146
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 48.
147
Congresso Luso-Brasileiro de História. Volume XI Tomo III – p. 256-257.

63
demagógico e revolucionário, visto que estimulava a luta de raças, preparatória para a
luta de classes. 148

A vocação transgressora do autor chegaria mais longe quando, de forma pioneira


no Brasil, introduziu a palavra ecologia num texto longo em que defendia a floresta
amazônica e condenava a devastação do meio ambiente. Tal ousadia custou seu
enquadramento na Lei de Segurança Nacional e um processo no Departamento de
Ordem Política e Social (DOPS). Não suficiente, saiu publicado no mensário
Fronteiras, revista simpática ao movimento patriovinista que tinha como slogan
“Ordem: Autoridade: Nação”, dirigida pelo escritor Manoel Lubambo e pelo artista
plástico Vicente do Rego Monteiro, que Gilberto Freyre falava de ecologia porque os
brasileiros gostavam de palavras pomposas e que ele sabia como ninguém responder a
esse apetite. 149

A revista criticou Gilberto Freyre em várias edições, incitando até mesmo a


proibição da venda de Casa Grande & Senzala, que despertava o interesse do público
estudantil. Como exemplo, tem-se o caso do professor Estevão Pinto, que recomendou a
leitura da obra às alunas da Escola Normal do Recife. Em protesto, sob a autoria de
Rego Monteiro, o seguinte alerta foi veiculado pelo editorial:

(...) os pais das normalistas precisam ler essa obra da mais descabelada
pornografia para saberem o que Pinto ensina às suas alunas da Escola
Normal. O caso, pela extrema gravidade, está a exigir severas providências
do diretor da Escola e do secretário de Educação. 150

Em 1936, ano do lançamento de Nordeste, a revista exacerbou os ataques. “O


livro não passa de uma sociologia dos detalhes. Sociologia dos morcegos, da cobra, do
gato, da raposa, do guará e até do carrapato e do lacrau e do bicho-de-pé”. 151 Por sua
vez, a obra Sobrados e Mucambos, publicado no mesmo ano, foi recebida pelos
conservadores como mais um trabalho subversivo, de incentivo à luta de classes.

Gilberto Freyre participou do Congresso Eucarístico, em 1939, no qual se viu


exposto à execração pública, pois o professor José Cavalcante de Sá Barca, em discurso,

148
Ver RIVAS, Lêda. “A mística do mestre: oito anos após a sua morte, Gilberto Freyre ainda provoca
polêmica”. Diário de Pernambuco. Recife, 22 fev. 1999.
149
Ver Ibidem.
150
Ibidem.
151
Ibidem.

64
apontou Casa Grande & Senzala como um “vasto arsenal de pornografia, salpicado cá
e lá de blasfêmias próprias e alheias, blasfêmias religiosas e científicas”. 152

Quase que paralelamente, Manoel Lubambo voltava a investir em Fronteiras,


que circulou até 1940, sem dar tréguas a Freyre, cuja obra ganhava então dimensão e
reconhecimento internacionais. Como se pode notar em suas palavras:

Considero este livro como um ensaio dos mais perniciosos da sedução


comunista no Brasil. Seu intuito é predispor, de criar ambiente propício,
fazendo do brasileiro nato o resultado democrático da miscigenação,
reduzindo a uma porção mínima a participação ariana. Para ele, o brasileiro é
um produto afro-índio escravizado por uma minoria branca. Considero Casa
Grande & Senzala um livro pernicioso e dissolvente, antinacional,
anticatólico, anárquico e comunista. 153

Em Portugal, intelectuais de origens político-ideológicas muito diversas também


se manifestaram, entre eles: os salazaristas Osório de Oliveira e Manuel Múrias;
Malheiro Dias, monárquico conservador; padre Joaquim Alves Correia, católico
progressista; António Sérgio, João de Barros e Maria Archer, republicanos
oposicionistas. Em geral, todos expressaram reações positivas, apesar de não
convergentes, ao trabalho de Freyre, tendo em vista os interesses que compartilhavam
pelas questões coloniais e as relações luso-brasileiras. Os direitistas fizeram uma
interpretação nacionalista e até manipuladora da teoria freyriana, estimando a tônica da
especificidade da colonização lusitana. Mas por outro lado, como bem atenta Cláudia
Castelo, os esquerdistas foram mais críticos confrontando a realidade histórica com a
prática colonial. 154 De acordo com a autora,

As divergências aparecem em torno do termo ‘democracia social’ (repudiado


por Múrias, considerado passível de equívocos por Osório de Oliveira e
destacado por Nemésio) (...), da generalização do modelo brasileiro a todo o
‘mundo português’, que agrada Manuel Múrias e levanta dúvidas entre a
Maria Archer e António Sérgio. Segundo Sérgio, o êxito dos portugueses no
Brasil teria sido determinado pelas condições físicas do novo território e não
pela capacidade dos lusitanos se relacionarem com outros povos, numa base
de tolerância e reciprocidade cultural. Ficava assim explicado o fracasso
europeu e, nas entrelinhas, adivinhava-se o fracasso africano, de que Maria
Archer fala na Seara Nova, apontando-lhe outras causas. Uma política
colonial que desvaloriza a mestiçagem e a falta de amor no contacto dos
portugueses com os africanos. 155

152
RIVAS, Lêda. Op. Cit.
153
Ibidem.
154
A autora apresenta de forma detalhada as críticas e recepções, no campo cultural e político, das teses
de Gilberto Freyre em Portugal. CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 80.
155
Ibidem.

65
No prefácio da primeira edição de O Mundo que o Português Criou, escrito por
Antônio Sérgio, ficou clara a crítica e a difícil aceitação entre os portugueses de alguns
aspectos da tese de Casa Grande & Senzala. Segundo o autor:

(...) o sentenciarmos a respeito da grei portuguesa que ela é inajustável a


cultura européia - não será negar-lhe a plasticidade de espírito causa da sua
assimilação aos trópicos? O considerá-la abertas a toda sorte de influências
não redunda em inibir-nos de a conceder cerrada a influência do gênio e da
civilização na Europa? A não inadaptabilidade há nenhuma coisa - o dote de
não ser anti coisa alguma - não será a própria definição exata deste mesmo
conceito de plasticidade? Plásticos, como seremos nós anti-europeus? 156

O eminente ensaísta interrogou os leitores a respeito do caráter português,


inajustável à cultura européia, e sobre a já mencionada plasticidade do espírito
português. Este povo, por ser considerado disposto a influências, diminuía o gênio
civilizatório europeu transmitido por Portugal às suas colônias. Sobre o conceito de
plasticidade, questionava a possibilidade dos portugueses serem anti-europeus. Isso
posto, pode-se afirmar que António Sérgio destacou algo bastante relevante e revelador
sobre a mentalidade portuguesa e a recepção das idéias freyrianas. Afinal, se a maior
capacidade atribuída por Freyre aos portugueses para se adaptarem aos trópicos fosse
encarada como uma condição histórica, coerentemente, tornaria o português extra-
europeu dentro da própria Europa. Como conseqüência, assistir-se-ia ao seu insucesso
civilizatório ocidental, em comparação com as outras nações do continente.

No campo político, a teoria de Freyre era amplamente rejeitada, pois o governo


português investido dos mitos que fundavam o ideário do Império, que pressupunham
valores da raça portuguesa, repudiava a defesa da virtude da mestiçagem da colonização
portuguesa. Nesse sentido, Vicente Ferreira, procurador da Câmara Corporativa em
1935, insurgiu contra a obra de Gilberto Freyre classificando-a obra de pouco científica:

Em Portugal há quem o considere [o mestiçamento] uma característica da


raça. Gabamo-nos, até, da facilidade com que os portugueses se acasalam
com as mulheres, demonstração evidente – segundo os tais – das superiores
aptidões colonizadoras portuguesas! Erro grave, segundo nos parece!
Porventura erro necessário nos primeiros tempos da colonização do Brasil;
mas não deve, nas condições actuais de civilização de Angola e Moçambique
merecer aplausos e, ainda menos, incitamentos oficiais ou oficiosos. Pelo
contrário! 157

Apesar dos colonialistas, nas décadas de 1930 e 1940, exaltarem a alegação de


Freyre sobre a capacidade diferenciada dos portugueses para a colonização, o principal
ideólogo da “mística imperial”, Armindo Monteiro, não concebia o relacionamento
156
FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p.17.
157
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 84.

66
harmonioso e fraterno, numa base igualitária, entre portugueses e nativos. Monteiro,
imbuído do darwinismo social, desvalorizava as culturas não européias em prol de uma
unidade nacional ou de uma civilização luso-tropical.

Deste modo, a concepção imperial dominante não era compatível com a idéia
de fusão de elementos diversos numa nova civilização luso-tropical. Portugal
tinha o dever histórico de impor às ‘raças inferiores’ os valores da civilização
ocidental e do cristianismo, mas desse contacto civilizador teria de sair sem
mácula. O processo era impositivo e unilateral. A possibilidade de se realizar
em África uma simbiose étnica e cultural equilibrada repugnava ao
exacerbado nacionalismo lusitano. Em nome da pureza da ‘raça’, da religião
e da cultura portuguesas, a experiência brasileira não se podia repetir no
império colonial português. 158

O conjunto de críticas ora salientado põe em evidência o quanto Casa Grande &
Senzala repercutiu nas no âmbito nacional. Recorde-se que, na década de 1930,
questões sobre o caráter nacional estavam em foco tanto no Brasil e em Portugal. Em
Portugal, um pequeno número de puristas rejeitava a mestiçagem, não só pelo
entendimento das desvantagens biológicas da mistura das raças, mas principalmente
pelos males causados pela dissolução de estilos tradicionais de cultura nos seus aspectos
religiosos, étnicos e estéticos.

No Brasil, o nacionalismo estreito proveio de um pequeno número de lusófobos


que apoiava certos mitos de raça. Eram aqueles descendentes da Europa do norte,
arianistas que reprovavam os portugueses pela condição mestiça de grande parte da
população brasileira e pela falta de espírito europeu, vendo na nova imigração européia
a verdadeira solução para o país. Freyre os caracterizava pela nostalgia da colonização
holandesa, pelo entusiasmo com a civilização alemã e a atribuição do progresso de São
Paulo a predominância de imigrantes europeus, de maneira especial os italianos. 159

Nos círculos culturais africanos, Gilberto Freyre também foi lido e debatido. O
grupo da revista cabo-verdiana, Claridade, fundada em 1936, reconhecia o estudo do
sociólogo pernambucano da seguinte maneira:

Há pouco mais de vinte anos [em 1936], eu [Baltasar Lopes] e um grupo


reduzido de amigos começámos a pensar no nosso problema, isto é, no
problema de Cabo Verde. Preocupava-nos sobretudo o processo de formação
social destas ilhas, o estudo das raízes de Cabo Verde. 160

158
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 86.
159
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da fraternidade: Brasil-Portugal - Do Tratado de
Amizade Ao Caso Delgado. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/Universidade de Lisboa, 2003, p. 91.
160
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 80.

67
Nas ilhas crioulas, Casa Grande & Senzala inspirou um novo padrão literário e
de representação do universo de Cabo-Verde. O grupo Claridade aderiu e disseminou
aquelas teorias, aludindo ao modelo verificado no Brasil,

(...) criou-se “um tipo de civilização semelhante às zonas brasileiras de


economia escravocrata à sombra das casas-grandes com engenhos” (...) “a
evolução tem de fazer-se, como diz Gilberto Freyre para o Brasil, no sentido
de todas as forças de cultura terem inteira oportunidade de expansão
criadora”. 161

As idéias de Freyre tiveram grande aceitação em Cabo Verde nas décadas de


1960 e 70, mesmo nos aspectos de comparação entre a colonização lusitana e a dos
demais europeus, e no apelo da união lingüística e cultural lusófonos. Em Angola, de
acordo com a literatura, não foi verificada expressiva interferência em seu processo de
formação nacional, apesar da influência espelhada nas poesias dos angolanos, Geraldo
Bessa Victor e Mário António, que ainda assinalavam Casa Grande & Senzala como
uma obra de grande referencia para as literaturas africanas. 162 Deve ficar claro que tais
influências refletiram-se de forma diferente entre Cabo Verde e Angola.

A primeira crítica africana partiu do escritor angolano Mário Pinto de Andrade,


que através de seu o pseudônimo Buanga Fele denunciou as generalizações prematuras
do luso-tropicalismo. 163 Com a reinterpretação política do luso-tropicalismo e a
apropriação pelo regime português, como uma ideologia justificadora do colonialismo,
sucederam-se outras críticas, em especial pelos adeptos aos movimentos de libertação e
independencia, como por exemplo, Amílcar Cabral, fundador do Partido Africano da
Independência da Guiné e de Cabo Verde.

Criou-se um mito com todas as peças. E como todos os mitos, sobretudo


quando eles dizem respeito à dominação e exploração dos povos, não lhe
faltou o ‘homem de ciência’, no caso um sociólogo renomado, para dar-lhe
uma base teórica: o lusotropicalismo. Gilberto Freyre confundiu, talvez
involuntariamente, realidades (ou necessidades) biológicas e realidades
sócio-econômicas, históricas, e fez de todos nós, povos das provincias
colônias portuguesas, os bem-aventurados habitantes do paraíso tropical). 164

Mais tarde, Pinto de Andrade publicou na revista Présence Africaine um artigo


intitulado ‘Qu’est-ce que ‘le tropicalismo?’, questionando uma vocação mais

161
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 82.
162
Ibidem, p. 83.
163
MEDINA, João. Gilberto Freyre contestado: o lusotropicalismo criticado nas colónias portuguesas
como alíbi colonial do salazarismo. Revista USP. São Paulo: SIBi/USP, n. 45, março/abril/maio 2000, p.
51.
164
CABRAL, Amilcar. “Prefácio” In: DAVIDSON, Basil. Révolution en Afrique: la libération de la
Guinée portugaise. trad. Brigitte Simon; introd. Amilcar Cabral. Paris: Éditions du Seuil, 1969, p. 11 e12.

68
cristocêntrica que eurocêntrica do português que o diferenciasse como colonizador, isso
principalmente pela prática escravocrata que perdurou por mais de três séculos.
Apontando que na África a mestiçagem teve certa força no passado, mas que havia se
perdido com o colonialismo praticado, sobretudo, após 1920, o autor defendia que o
luso tropicalismo não era válido para explicar a formação do Brasil e era, na mesma
medida, falso para as circunstâncias do colonialismo português na África.

En voici le corollaire: Une partie de l'Afrique, d'Asie, d'Océanie et


d'Amérique dominées par un petit nombre de Portugais vaillants qui portaient
dans leur sang l’héritage tropical des croisements avec les Maures accusent la
marque d’une unité de sentiment et de la culture: la civilisation luso-tropical.
On ne saurait mieux justifier la colonisation portugaise! 165

Esse cenário de críticas e recepções é decorrente dessa reinterpretação que


Gilberto Freyre trouxe para a relação entre Portugal e suas colônias. Como se pode
observar no trecho seguinte:

Freyre préfère s’attarder longuement sur l’influence nègre dans la vie


sexuelle et familiale brésilienne. C’est justement le refus d’ envisager le
fonctionnement de l’appareil colonial comme étant au premier chef une
emprise d’exploitation économique dirigée par un pouvoir politique, c’est ce
refus-là, qui détermine la faiblesse de sa sociologie. Au fond, le métissage a
été largement pratiqué au Brésil non pas en vertu de considérations morales
ou d’une vision politique, mais en raison d’une simple circonstance – le
nombre très réduit de femmes blanches. 166

Gilberto Freyre e sua grande obra Casa Grande & Senzala surgiram num
período em que o mundo era impactado por grandes mudanças na dinâmica das relações
políticas e raciais entre as nações. Era um momento de redefinição de bases universais,
valores e apreciações sobre a história dos homens e das diferenças políticas e culturais.
O fim da II Guerra Mundial gerou a condenação dos nacionalismos políticos e de raça, e
de alguma forma abriu espectro a liberdade e a independência. O luso-tropicalismo
ganharia assim nova leitura, já que de maneira incontornável instigava uma realidade
lusófona.

165
ANDRADE, Mario pinto de (FELE, Buanga). Qu’est-ce que ‘le tropicalismo?. In: Revista Présence
Africaine. v. 9, n. 5, out.-nov., 1955, p. 30.
166
Ibidem, p. 27 e 28.

69
III. 3 – A década de 1950 e a Estratégica Retórica da Afetividade

O ano de 1945 inaugurava uma abertura democrática ao ocidente e um novo


sistema político e econômico internacional. De acordo com a Carta do Atlântico, onde
se definiram os princípios que orientariam o pós-guerra, como “a libertação de todas as
tiranias” e o “autogoverno para todos os povos e nações”, o processo de descolonização
tornava-se uma prerrogativa. 167

Com a criação da Organização das Nações Unidas e a consagração, nos artigos


73 e 74 da sua carta, do direito a autodeterminação dos povos colonizados, Portugal se
viu compelido pelo crescente movimento externo anticolonial a manobrar sua política
imperial. Associou-se ao luso-tropicalismo e a tradicional aliança com o Brasil.

As discussões políticas e jurisprudenciais prosseguiram na busca da conciliação


entre o ideário nacional e a doutrina política portuguesa e a nova legislação colonial
internacional. As alterações introduzidas, no âmbito colonial da revisão da Constituição
portuguesa de 1951, tiveram como principal objetivo responder às pressões externas
favoráveis à descolonização e impedir ingerências dos organismos internacionais em
assuntos de ordem interna. Abolido o Ato Colonial e sob nova terminologia, com
substituição do termo “colônias” por “províncias ultramarinas” e a suprimida a palavra
“império”, Portugal se sustentava como uma nação pluricontinental, “composta por
províncias européias e províncias ultramarinas, integradas harmonicamente no todo
nacional uno. (...) A tónica dominante da nova política passa a ser a ‘assimilação’”.

Surgem então dois sistemas novos que divergem em seus fins: a assimilação, que
visa integrar a colônia na vida da metrópole buscando uma unidade política, moral e
econômica, e a autonomia, em que a metrópole prepara a colônia para a independência.
Nesse ponto, “a solidariedade não nos parece que possa servir de fundamento para o
exercício da actividade colonizadora”. 168

A política externa portuguesa encontrava cada vez mais dificuldades em


sustentar seus argumentos colonialistas contraditórios. Nestes, a pátria lusitana era
constituída por províncias metropolitanas e ultramarinas, todas profundamente

167
RAMPINELLI, Waldir José. As Duas Faces da Moeda. As Contribuições de JK e Gilberto Freyre ao
Colonialismo Português. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004, p. 21.
168
Ibidem, p. 56.

70
integradas num complexo único de história, sentimento e cultura, perfeitamente
qualificado cientificamente pelo luso-tropicalismo e exemplificado na existência do
Brasil. Não obstante, o contexto de guerra fria e de rivalidade ideológica entre dois
grandes blocos econômicos permitiu que as atenções se desviassem e que Portugal
mantivesse, por mais algum tempo, suas concepções políticas.

Em 1947, Portugal defrontou-se com a indesejada questão da descolonização por


causa da independência da União Indiana. A estratégia atlântica de defesa dos territórios
portugueses perdeu o apoio da estimada Inglaterra, que reconheceu o direito da Índia a
autodeterminação, suscitando as reivindicações das possessões lusitanas de Goa, Damão
e Diu. Salazar, irredutível no seu posicionamento em relação à perda dos territórios
indianos e perante uma situação irreversível, explorou numa tática protelatória, com
recursos diplomáticos e jurídicos, a filosofia de Neru, afim de:

(...) afirmar o caráter específico do colonialismo português, diferente do


colonialismo europeu em geral por não ser cingir a finalidades econômicas,
mas sim a finalidades mais amplas e duradouras de fecundação de valores
culturais e cristãos, e ergue-se como um legítimo defensor da ‘civilização
européia’ contra o materialismo capitalista norte-americano e o materialismo
comunista soviético, com vistas a forjar um leque de alianças que viesse a
bloquear a abertura do processo de descolonização da África. 169

O anticomunismo do governo de Salazar e a posição geo-estratégica dos Açores


permitiram a conservação do colonialismo português nos anos 50. O convite para a
participação portuguesa na Organização do Trabalho no Atlântico Norte (NATO) e o
aceite da ajuda econômica fornecida pelo Plano Marshall, ambos em 1949, também
foram fatores contribuintes. Portanto, a reciclagem da estratégia portuguesa para a
manutenção do ultramar e as mudanças gerais em torno do confronto capitalismo versus
comunismo atenuaram as divergências internacionais em relação a Portugal, onde a
prática colonial era considerada um mal menor sob o pretexto da defesa maior dos
valores ocidentais. “(...) o sistema político autoritário português, que tanto mal-estar
causava aos aliados, cada vez mais passou a ser visto como uma particularidade de um
Estado perfeitamente afinado com o objetivo ocidental de eliminar o comunismo
soviético onde quer que ele se manifestasse”. 170 Deste modo, Salazar adequava o
colonialismo português aos interesses ocidentais:

Enraizados aqui e em África, em largas costas do Atlântico, para onde, por


fatalidade das circunstâncias, se vai mudar o centro de gravidade política do

169
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 79.
170
GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da fraternidade: Brasil-Portugal - Do Tratado de
Amizade Ao Caso Delgado. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais / Universidade de Lisboa, 2003, p. 81.

71
Ocidente, temos bem garantido o nosso lugar, e o único problema que nos
põe é saber se nos manteremos à altura das nossas responsabilidades. 171

Diante das mudanças que se estruturavam, Portugal buscou se aproximar de


países de influência regional que poderiam corroborar a defesa do colonialismo
português na África como essencialmente cristão e civilizador, junto aos organismos
internacionais. Essa ideologia colonialista, dita humanitária e sem preconceitos, foi
maciçamente usada e difundida pelo Estado Novo, que obtendo amplo apoio do Brasil
de Kubitschek, refugiava-se no argumento da defesa do Ocidente através da missão
histórica da presença portuguesa. 172

A África, e não a Ásia, era o que, portanto, estava em jogo para Salazar. A
aliança com os nacionalistas conservadores europeus e com o Brasil se lhe
afiguravam como as peças fundamentais para sua estratégia colonialista. Ao
Brasil, como se verá mais adiante, estava reservado um papel fundamental
nessa estratégia. Em virtude de sua condição de grande ex-colônia, situada do
Atlântico Sul, com fortes ligações com a África, o apoio brasileiro as teses
salazaristas era considerado absolutamente indispensável. Um apoio que até
1961 não será negado e que se inicia com o contencioso indiano. 173

Com Juscelino Kubitschek à frente da república brasileira em 1956, o Brasil se


voltou ao desenvolvimento, sobretudo, na industrialização, que através do Plano de
Metas, 174 ficou eternizada no bordão “cinqüenta anos de progresso em cinco anos de
governo”. No Ministério das Relações Exteriores, opunham-se dois grupos no que diz
respeito à política externa brasileira: os ocidentalistas e os nacionalistas, 175 que
divergiam sobre a abertura da economia brasileira aos capitais estrangeiros e a
influencia dos EUA. No entanto, Kubitschek aceitou a colaboração de ambos os grupos,
pois, diferentemente do alinhamento automático de Dutra e do nacionalismo de Vargas,
JK seguiu um estilo pessoal que tinha como propósito a realização do Plano de Metas,
ou seja, o crescimento econômico, a modernização e a superação da imagem do Brasil
como país agro-exportador.

171
GONÇALVES, Williams da Silva. Op. Cit., p. 78.
172
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 40.
173
GONÇALVES, Williams da Silva. Op. Cit., p. 80.
174
“No que diz respeito à realização do Plano de Metas, as prioridades eram os setores de energia e
transportes. Nesse sentido, sua política econômica representou uma mudança face à política
industrialista iniciada por Getúlio Vargas. Para este, a arrancada de industrialização brasileira deveria
iniciar-se com uma sólida base de industrias de bens de equipamento. Kubitschek deslocou a ênfase para
a industria de bens de consumo duráveis, particulamente os automóveis, que, ao lado da nova capital
[Brasília], se tornavam o símbolo dessa política industrialista”. Ibidem p. 58
175
Sobre os ocidentalistas e os nacionalistas: “O primeiro, de ideologia liberal conservadora, lutava
para manter o Brasil adstrito ao bloco ocidental e era favorável a uma aliança duradoura com Portugal.
O segundo, de ideologia desenvolvimentista, percebia as mudanças do sistema internacional como um
fenômeno benéfico para o Brasil, que assim teria ampliadas as oportunidades de efetivar sua condição
de Estado independente, sem, no entanto, definir uma política especifica para Portugal”. Ibidem, p. 19.

72
Antes mesmo de tomar posse do governo, Juscelino Kubitscheck visitou
Portugal e firmou sua posição política de incondicional adesão ao país. Ao ser indagado
sobre o litígio entre Portugal e a União Indiana, deixou claro o apoio ao colonialismo
português: “o meu governo vai aumentar a solidariedade com Portugal no caso de Goa
e em todos os terrenos”. 176 E deu fim aos temores dos resquícios da política
anticolonialistas de Getúlio Vargas, 177 apesar dos prejuízos que a concorrência dos
produtos primários africanos poderia causar ao Brasil.

É importante compreender o que levou um governo democraticamente eleito sob


uma campanha progressista e modernizante, a se alinhar a um programa de política
externa conjunto a Portugal, numa ditadura corporativista e colonialista intransigente e
em franco declínio. 178 As tendências que se configuraram no pós-guerra inscreveram o
Brasil e Portugal em frentes que poderiam afetar crucialmente os velhos laços
diplomáticos luso-brasileiros. As forças e antigas idéias de uma ligação natural junto
com a cultura política luso-brasileira remanescente dos tempos coloniais, contudo,
amadurecidas pelo ensejo do luso-tropicalismo, propiciaram a continuidade do singular
relacionamento político e cultural luso-brasileiro. No sistema internacional, tal ligação
possibilitou que os dois países atravessassem o contexto com base na habitual retórica
da fraternidade e afetividade.

(...) a conciliação do projeto político de Oliveira Salazar com a teoria


desenvolvida por Gilberto Freyre constitui a raiz da ideia de afetividade. Isto
é, a identificação da mestiçagem como o traço mais característico da
personalidade brasileira recupera a imagem de Portugal como uma nação
formadora de uma cultura democrática nos trópicos, injetando orgulho e
otimismo na nação brasileira e, simultaneamente, legitimando a ação
colonizadora de Portugal. 179

O Tratado de Amizade e Consulta foi assinado em 1953, ratificado em 1954 e


regulamentado na presidência de Kubitschek, em 1960. As relações luso-brasileiras da
década de 1950 estavam juridicamente corporificadas e foi endossado o apoio do Brasil
na defesa do ultramar português, inclusive nas Nações Unidas.

176
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 42.
177
A política externa do segundo governo Vargas combinou nacionalismo e condenação as
desigualdades estruturais do sistema econômico internacional, tendo inclusive confrontos com os
interesses americanos. Em relação aos movimentos da Tunísia, do Marrocos e da Guiana Inglesa, Getúlio
Vargas, coerentemente com a sua política ideológica nacionalista, condenava a política colonialista
européia: “Vemos com simaptia os movimentos nacionalistas de povos que anseiam pela sua completa
emancipação política e econômica, continuando em nossa orientação adversa ao imperialismo
escravizador e ao colonialismo tentacular, que visam apenas locupletar-se com a miséria das nações
subdesenvolvidas”. Ibidem, p. 27.
178
GONÇALVES, Williams da Silva. Op. Cit., p. 17.
179
Ibidem, p. 18

73
O Brasil apoiou a posição portuguesa dentro da ONU, principalmente na
Quarta Comissão, onde se tratava o debate referente à colonização, chegando
o nosso representante – Donatello Grieco – afirmar taxativamente que “tocar
em Portugal era tocar no Brasil”. E endossava a tese de Salazar de que o país
não possuía colônias, mas províncias ultramarinas, recorrendo inclusive à
história dos dois países ao lembrar que quando D. João VI se estabelecera no
Rio de Janeiro, em 1808, nenhum decreto fora expedido para que se fizesse
tal transferência, já que “na lei portuguesa o Brasil era Portugal”, assim como
hoje é hoje Portugal qualquer território português na África ou na Ásia. 180

A posição do Brasil em defesa das orientações lusitanas foi muito criticada


devido à “convergência de percepções das elites dirigentes acerca do funcionamento e
da inserção dos dois Estados no sistema internacional do após-guerra e que,
finalmente, forma um dos aspectos mais marcantes das relações luso-brasileiras na
década de 50.” 181

As metrópoles européias redefiniam suas estratégias políticas e a disputa leste-


oeste favorecia os movimentos coloniais nacionalistas. Impulsionados por tais
estímulos, Brasil e Portugal fortaleceram sua aliança com base nos interesses
partilhados. Portugal procurava apoio à constância do seu status quo e do seu lugar
“(...) como um Estado respeitável e interlocutor válido no sistema internacional”. 182 E
o Brasil beneficiava-se do seu alinhamento ocidental para a promoção da
industrialização no país, para a defesa do Atlântico Sul em relação ao avanço soviético e
para as pretensões, na especial relação com Portugal, de abastecer o país com produtos
industrializados brasileiros, já que a nação lusitana era predominantemente agrária.

Ante a evolução global adversa ao colonialismo – pela Conferência Afro-


Asiática de Bandung, o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética
(PCUS) e a desestalinização –, junto com o fracasso militar anglo-francês no Canal de
Suez e o exponencial Movimento não Alinhado, Portugal, ao contrário das outras
metrópoles européias, não negociou a independência das suas colônias. Manteve-se com
uma economia incipiente e dependente e em sua posição jurídico defensiva, visto que a
ditadura política e as bases do país como Estado-Nação se assentavam magistralmente
na ação colonialista portuguesa. 183 Assim, o prolongamento do colonialismo português
até a década de 1970 deu-se em razão das circunstâncias da guerra fria e do comunismo
internacional, bem como a participação do país como membro fundador da Organização
do Trabalho no Atlântico Norte (NATO), pela relação prestigiosa com o Brasil.
180
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 83.
181
GONÇALVES, Williams da Silva. Op. Cit., p. 89.
182
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 146.
183
Ibidem, p. 82.

74
O Tratado de Aliança e Consulta beneficiou, maiormente, a pátria lusitana. A
justificativa política do governo brasileiro era de que a permanente consulta entre os
dois países diante dos problemas internacionais de interesse comum equivalia à inclusão
do Brasil na participação das relações européias.

A política externa de Kubitscheck pode ser vista como incongruente, visto que o
presidente lançou a Operação Pan-Americana (OPA), 184 rompeu com o Fundo
Monetário Internacional (FMI), e simultaneamente, apoiou o colonialismo português na
ONU e ratificou o Tratado de Amizade e Consulta. O governo JK, apesar das críticas,
permaneceu em sua posição a favor de Portugal, alimentando o fortalecimento das
relações luso-brasileiras por diversas razões de tendência ideológica e histórico-afetivas.
Seu desejo de industrialização e modernização buscava enquadrar o Brasil aos países
desenvolvidos e aos valores ocidentais, sendo a aliança com Portugal satisfatória para
esses propósitos.

A independência de Quadros e Goulart e a disputa nacionalista dos governos


Vargas e Kubitscheck assinalaram uma política exterior brasileira voltada
particularmente para os EUA e a inserção no hemisfério para uma nova fase das
relações internacionais brasileiras. As ambigüidades e contradições particulares de cada
governo configuraram uma fase de continuidade política até dois momentos de ruptura
da história da política externa brasileira: em 1960, com a proposta de uma política
externa voltada para os interesses nacionais e desvinculada do passado; em 1974, com o
pragmatismo responsável que assumiu uma postura externa afastada da doutrina do
golpe militar de 1964. Mais tarde, diplomaticamente reconhecidos, os governos de
Angola e Moçambique, frutos de movimentos nacionais marxistas apoiados por Cuba e
pala ex-URSS, situaram o Brasil numa posição ousada e de proa no antigo Terceiro
Mundo. 185

A essa altura, já são visíveis os sinais de que as relações luso-brasileiras e a


velha tradição retórica da afetividade se desestabilizariam. O caso resolvido
diplomaticamente, porém amplamente debatido, sobre o asilo político concedido pelo
Brasil ao general português Humberto Delgado, a percepção contrastada de Jânio
Quadros em relação aos interesses dos plantadores de café e ao apoio a Portugal, e as

184
Operação lançada em 1958, no contexto da defesa do Ocidente, na qual o Brasil apoiou para a maior
projeção do país e integração da América Latina. RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 69 e 74.
185
Ibidem, p. 146 e 147.

75
fortes mudanças políticas que convulsionavam o mundo eram anúncio do que estava por
vir.

III. 4 – As Viagens de Freyre no Além-Mar

Devido às controvérsias sobre o comprometimento político de Gilberto Freyre


com a ideologia colonialista do Estado Novo, torna-se necessário, por causa de suas
viagens no ultramar português, discutir teoricamente a articulação entre o campo
intelectual e o político. O papel dos intelectuais durante o último século deve ser
avaliado à luz de um tempo de fortes instabilidades políticas, em que as ideologias
inspiravam os homens de letras e a política e as utopias ainda existiam como força
eminente de movimentos. Os intelectuais possuíam uma função orgânica importante no
processo da reprodução social política, em que se tornava quase impossível, na
dinâmica das alterações políticas, a separação “da pena e da espada”. Norberto Bobbio,
acerca do papel e o debate do envolvimento dos intelectuais na dimensão política
durante o século XX, ou seja, entre a teoria academicamente produzida e a práxis, 186
sugere que:

se o homem de cultura participa da luta política com tanta intensidade que


acaba por se colocar a serviço desta ou daquela ideologia, diz-se que ele trai
sua missão de clérigo [...] Mas se, de outra parte, o homem de cultura põe-se
acima do combate [al di sopra della mischia] para não trair e se ‘desinteressar
das paixões da cidade’, diz-se que faz obra estéril, inútil, professoral. 187

Para Bobbio, os condicionantes que propiciaram a centralidade do intelectual


como interlocutor social da política estavam nas relações entre cultura e política, e que
definiram a própria função do intelectual como agente pensante da sociedade. 188
Repetindo as palavras o autor:

Nosso problema não é o de saber se os intelectuais são rebeldes ou


conformistas, livres ou servis, independentes ou dependentes, mas de

186
Para Norberto Bobbio, a prática intelectual centra-se justamente o exercício do que chama de “poder
ideológico” nas sociedades que caracteriza os intelectuais. Existe nas sociedades, argumenta, “ao lado do
poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o
poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se
necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e
transmissão de idéias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da
palavra”. BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na
sociedade contemporânea. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. da UNESP, 1997, p. 11.
187
Ibidem, p. 21-22
188
Ibidem, p. 18.

76
trocarmos algumas idéias sobre o que os intelectuais que se reconhecem em
uma determinada parte política fariam ou deveriam fazer. 189

Foi ressaltado o fato de que cultura e política correspondem a esferas de


pensamento e de ação interdependentes, mas autônomas, que coexistem de formas
variadas em todas as sociedades, e nesse sentido correlaciona a proposição de uma
autonomia relativa da cultura com respeito à política:

Falando de autonomia relativa da cultura, pretendo dizer que a cultura (no


sentido mais amplo, isto é, no sentido da esfera em que se formam as
ideologias e se produzem os conhecimentos) não pode nem deve ser reduzida
integralmente à esfera do político. A redução de todas as esferas em que se
desenrola a vida do homem em sociedade à política, ou seja, a politicização
integral do homem, o desaparecimento de qualquer diferença entre o político
e – como se diz hoje – o pessoal, é a quintessência do totalitarismo. Não se
trata de rejeitar a política (é aquilo que chamei de não-indiferença), mas se
trata de não exaltá-la a ponto de cantar: “Certa ou errada é sempre a minha
pátria” ou, o que dá no mesmo, “Certo ou errado é sempre o meu partido”
(ou, pior ainda, a minha seita). Não vejo nenhuma diferença entre dizer
“Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado” e dizer “Tudo
no partido, nada fora do partido, nada contra o partido”. 190

A expressão “política e cultura” estava plenamente integrada à área “da política


dos intelectuais, ou a dos intelectuais na política”. Assumindo tal perspectiva, ao invés
da convencional, 191 Bobbio enfatizou que, no âmbito da teoria dos intelectuais, a
relação entre cultura e política representa senão uma parte, um tema específico que
reflete um todo histórico. Por essa razão, as interpretações em relação a prática
intelectual, sobretudo durante os regimes do século XX, são consideradas confusas.

No campo da cultura e da política, as relações configuram-se historicamente


cambiantes. Isso quer dizer que o poder ideológico e os demais poderes – econômico e
político, por exemplo –, são mutáveis de sociedade a sociedade, de época a época, de
conjuntura a conjuntura e de intelectual a intelectual. A própria natureza dessas relações
é variável: “ora de contraposição, ora de aliança”. 192 O imprescindível, segundo
Bobbio, é reconhecer que assim

(...) como o meio do poder político é sempre em última instância a posse de


armas e o meio de poder econômico é a acumulação de bens materiais, o
principal meio do poder ideológico é a palavra, ou melhor, a expressão de
idéias por meio da palavra, e com a palavra, agora e sempre mais, a
imagem. 193

189
BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 69-70.
190
Ibidem, p. 80.
191
Ibidem, p. 70.
192
Ibidem, p. 11.
193
Ibidem, p. 12.

77
O objetivo aqui não é discutir as ligações entre o trabalho intelectual e a política.
Uma breve sondagem sobre tal relação, contudo, parece adequar-se para a análise do
contexto das viagens de Freyre no além-mar lusitano.

Pouco antes da revogação do Acto Colonial na Constituição e da afirmação


política de uma unidade nacional pluricontinental, Gilberto Freyre, em agosto de 1951,
iniciou uma viagem de estudos sobre as províncias ultramarinas portuguesas. O convite
194
partiu de Lisboa, a fim de, “com olhos de homem de estudo”, 195 comprovar a
existência de uma unidade de sentimento e cultura que caracterizava o “mundo que o
português criou”. Nas palavras de Cláudia Castelo, “O Governo de Salazar espera,
sobretudo, que a iniciativa colha dividendos políticos nos meios internacionais, onde o
sociólogo brasileiro goza de prestígio e credibilidade”. 196

Apesar de a viagem ter sido oficialmente de caráter científico, logo após a


partida transparecia ser uma tática política de legitimação para a manutenção colonial
dos territórios portugueses, o que gerou o indubitável comprometimento de Gilberto
Freyre com o regime português. De fato, o intelectual de Apipucos mostrou-se aberto a
cooperar com os propósitos ideológicos luso-brasileiro, mas não de forma ingênua ou
manipulável. Em seu encontro com Salazar, descrito em Aventura e Rotina, o sociólogo
deixou claro que suas concepções políticas divergiam e que seu interesse era
fundamentar e propagar cientificamente a teoria que esboçava e em que acreditava: a
luso-tropicologia. Freyre fez questão de ressaltar sua recusa a convites anteriores do
governo de Lisboa para viagens de estudo na África e na Ásia: “Recusei o convite e
receei que fosse um tanto comprometedor no sentido em que são, de ordinário,
comprometedores os convites dos Secretariados Nacionais de Informação, mesmo
quando deixam de se intitular de propaganda”. 197 Sobre a motivação que teria alterado
sua postura em relação ao terceiro convite, Gilberto Freyre explicou:

O terceiro era difícil de recusá-lo sem ir ao extremo oposto: o de pretender


colocar-me na situação de um purista em matéria de gramática política:
purismo que nunca pretendi cultivar. (...) O convite recebido por mim do
Ministro de Ultramar não poderia ser mais nitidamente apolítico. Nem mais

194
“Antes de formalizar o convite, Sarmento Rodrigues fala com Salazar e procura informar-se sobre a
posição do Governo brasileiro relativamente a Gilberto Freyre. (...) Falei com o Presidente do Conselho
que acha bem. No entanto, precisava assegurar-me que o homem não seja mal visto ou hostil ao governo
do seu país, porque nesse caso não o poderíamos ostensivamente tratar bem”. O projeto da viagem de
Freyre prosseguiu com o aval mais do que positivo por parte do governo brasileiro. CASTELO, Cláudia.
Op. Cit., p. 88 e 89.
195
Ibidem, p. 87.
196
Ibidem, p. 89.
197
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 11.

78
nitidamente apolítica poderia ter sido minha resposta a esse convite
excepcional que de início me colocou na situação de homem de estudo a
quem se pediu que viesse no Ultramar Português com o inteira independência
e até com olhos sociológica mente clínicos. 198

A viagem de Freyre foi divulgada em diversos editorais e jornais, tanto da


199
metrópole quanto das províncias e também no Brasil. A cada passo, com a
publicação de entrevistas sobre as apreciações do sociólogo, as etapas do trajeto eram
anunciadas. Assim que chegou a Portugal, Gilberto Freyre foi honrosamente recebido
pelos altos representantes do Estado, como Salazar e Craveiro Lopes, então presidente
da República. Suas impressões nesses encontros foram as melhores possíveis. Segundo
Freyre, Salazar era um homem digno de respeito e admiração. O brasileiro ilustre
também marcou presença em universidades, associações e órgãos de natureza
acadêmica de um modo geral que lhe renderam grandes homenagens. Encontrou-se com
políticos e intelectuais de diversas filiações políticas, 200 como António Sérgio, Aquilino
Ribeiro, João de Barros, Ferreira de Castro e Casais Monteiro.

Em 1953, foram lançados dois livros: Aventura e Rotina, 201 um diário científico
das suas anotações etnográficas durante a viagem, e Um brasileiro em terras
portuguesas, 202 coletânea das conferências e discursos proferidos durante as visitas. As
obras produzidas serviram para corroborar as premissas teóricas da existência de um
mundo de características lusófonas. As idéias centrais do luso-tropicalismo, explicitadas
de forma teórico-formal, acabavam muitas vezes sendo recriações da versão original
pela política colonial portuguesa, em prol do nacionalismo salazarista e da defesa do
dissimulado império, sobretudo, calcadas nos valores culturais, civilizacionais e cristãos
lusitanos. As críticas à realidade colonial, como os fatos de censura e racismo, ficaram à
margem nos trabalhos de campo de Freyre. 203 Contudo, pode-se perceber o que parecia

198
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 11.
199
Destacam-se o Diário de Notícias, Diário de Lisboa, Século, A Voz de São Tomé e A Voz de Angola.
CASTELO, Cláudia. OP. Cit., p. 90 e 91.
200
Freyre contatou os mais variados círculos políticos e intelectuais portugueses, no entanto: “Só os
velhos camaradas de portugueses de Esquerda não o procuram”. . FREYRE, Gilberto. Aventura e
Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 90.
201
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
202
FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1953.
203
As críticas à visita oficialmente político-científica de Freyre não tardaram. Tomaz Ribeiro Colaço,
intelectual português exilado no Brasil, denunciou dizendo: “Porque o seu nome por tantos títulos
respeitado e respeitável, acaba de ser fraudulentamente usado ao serviço daquele totalitarismo [que
domina Portugal], e assim apresentado sob uma luz falsa à intelectualidade e ao povo da minha terra”.
CASTELO, Cláudia Op. Cit., p. 92. Por parte do Brasil, a escritora Raquel de Queiroz, na revista O
Cruzeiro, acusou Gilberto Freyre de ter alienado a sua independência ao ter aceitado o convite do regime

79
ser o propósito de Gilberto Freyre e a sua articulação no jogo político de Brasil e
Portugal. Adiante, seguem algumas considerações sobre o conteúdo de Aventura e
Rotina, apresentadas num esforço de apreensão das intenções e da atmosfera que
cercava o autor.

A trajetória de Freyre foi sempre guiada pelo roteiro bem traçado do comando de
Lisboa. Os Ministérios do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros encarregaram-se, logo,
do itinerário do viajante, juntamente com o apoio da Polícia Internacional e de Defesa
do Estado (PIDE), que cuidava da locomoção e dos cenários apropriados a análise
conveniente de estudo. Desde a escolha das pessoas para o acompanhamento de Freyre
até as orientações, a agenda, a seleção dos lugares propícios, a observância “do modo
português de estar no mundo”; tudo passava pelo crivo das autoridades portuguesas.
Gilberto Freyre percorreu todas as províncias portuguesas, à exceção de Macau e Timor,
pois, por razões políticas, não interessava apresentar áreas onde a língua portuguesa não
fosse predominante e a mestiçagem fosse pouco expressiva. 204

Entre agosto de 1951 e fevereiro de 1952, Freyre foi recebido por comitês que o
aguardavam em diversas regiões do país (pela primeira vez no Algarve, em Trás-os-
Montes; revendo o Alentejo, o Ribatejo, o Minho, o Douro, Lisboa, Porto, Coimbrada e
Alcobaça). Na África, visitou a Guiné portuguesa – hoje Bissau –, Angola, Senegal e
Moçambique. Na Ásia, esteve em Goa, Diu, Damão, Bombaim, Nanica e Sofala. Das
ilhas atlânticas, visitou Cabo Verde e São Tomé. Os locais que freqüentou eram sempre
bem apresentados e as visitações, limitadas. Gilberto Freyre deixou subentendidas em
suas anotações essas condições, pois reconhecia a precariedade das colônias e a
repressão do regime salazarista. 205

O sociólogo confirmava que seu esforço intelectual por toda a viagem era o de
comprovar a suposição da unidade de um universo particular, além da validade de uma
nova ciência que ele começava a formular: a luso-tropicologia. Em sua excursão,
buscava provar que a intensa troca de valores, já desvendada ao “penetrar” no interior
das Casas Grandes e Senzalas, provocada pelo contato nem sempre igualitário, mas
quase sempre íntimo entre o colonizador português, negros escravos e os nativos no

português: “(...) ao passar por Angola, pouco ou nada viu da realidade dessa terra africana”. A autora,
ao se referir às práticas evidentes de racismo na Cia. de Diamantes de Angola.
204
CASTELO, Cláudia Op. Cit., p. 61.
205
Ver MIRANDA, Rachel de. Além-Mar Aventura e Rotina: o Lugar do Brasil no Mundo Luso-Tropical
de Gilberto Freyre, 2002, 80f. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002, p. 52.

80
Brasil, teria sido a mesma para todo “O Mundo que o Português Criou”. Depois de
visitar a Guiné e Cabo Verde, o autor se mostrou convencido de que o português era um
povo com rara capacidade para realizar novas combinações de raças e de culturas, que
em essência tendem a se conservar lusitanas. Antes de voltar ao Brasil, num discurso
proferido no Ministério do Ultramar, afirma ter confirmado na África e no Ocidente
suas antecipações sobre a fecunda obra colonizadora do português. 206

Ao verificar em cada vilarejo, restaurante ou vendedores de rua que vai


encontrando, que Portugal seria menos europeu que árabe (ou mouro), tropical, africano
ou asiático, ou ainda, uma combinação de tudo isso, Freyre reforçava a tese de Sobrados
e Mucambos. A europeização, ou civilização artificial, que teria atingido o Brasil no
século XIX, teria interrompido um processo natural de acomodação que estava em curso
nos três séculos da colônia. Freyre ratificava o seu repúdio à imposição de uma
realidade, política ou social, que desprezasse as continuidades dos valores simbólicos
mais profundos de cada povo. 207

Não obstante, Gilberto Freyre não buscava no além-mar a comprovação de uma


identidade que uniria a todos numa classificação ou grande bloco homogêneo, mas
desejava encontrar as raízes da plasticidade que impulsionaria uma “eterna incorporação
de influências”. 208 Centrava-se no conceito de indefinição, pois essa característica foi
responsável não só pelas trocas e a assimilação das mais diversas culturas, mas também
pela transmissão dessa capacidade a todas as colônias, sem prejuízo das particularidades
destas e do próprio espírito português. A continuidade da tradição e da herança
portuguesa, mesmo com a descolonização, estaria diretamente ligada à manutenção de
um complexo psico-social ibero-tropical, muito próximo do lusitano e, portanto,
incompatível com a lógica anglo-saxã. Tal semelhança era justificada como necessária à
comprovação da hipótese de que a relação com o tempo e o trabalho era praticamente a
mesma dos países ibéricos, mesmo em localidades tão diversas como Goa, Macau,
Moçambique, Angola e Guiné-Bissau.

Segundo o próprio Gilberto Freyre, o caráter oficial da viagem não chegou a


atrapalhar sua análise cientifica. De fato, as suposições que fundamentariam sua luso-
tropicologia estavam em todos os detalhes. Sua procura era por “explicações para

206
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 89.
207
Ver MIRANDA, Rachel de. Op. Cit., p.56.
208
Ver Ibidem.

81
costumes ou tendências que parecem às vezes peculiares ao Brasil tem origens
lusitanas”. 209

Motivado por esse desejo, Freyre percebeu, por exemplo, que a fala cabo-
verdiana soava mais como o português “brasileiro” do que com a língua do colonizador.
Já o futebol angolano, surpreendentemente, desenvolvia-se usando a ginga dos negros
sul-americanos como espelho. A compleição física e a fala dos goenses, por sua vez,
lembravam tanto a dos mestiços brasileiros, que não haveria como se argumentar contra
a constância, apesar das diferenças, das misturas étnicas e culturais entre o luso e o
trópico.

Em Aventura e Rotina, Lisboa serve como principal ponto de referência para a


análise dos aspectos sócio-culturais de Portugal. A hipótese de Freyre era de que na
cidade havia uma concentração de sobreposição dos valores que equilibravam a
mentalidade portuguesa. No meio urbano, mostrava-se visível a sobreposição entre o
passado e o presente, em princípio antagônicos. A modernização “à portuguesa” não
eliminava totalmente a presença da tradição e seria uma combinação entre a cultura
popular de forte ascendência oriental (ritos, danças, roupas e culinária), e as mudanças
na Europa (higienização, moda sofisticada, a estética sóbria, em suma). 210 Freyre
considerava que Lisboa era a cidade “mãe” das cidades brasileiras, 211 pois de forma
sólida e resistente mantinha seu conteúdo plástico e adaptável sobre o processo de
modernização. Além disso, Lisboa era uma referência arquitetônica e espiritual das
origens lusitanas para todos os lugares com a herança da presença portuguesa. Nos
termos de Freyre:

Salvador da Bahia, São Luís do Maranhão, Recife de Pernambuco, Belém do


Pará, Pelotas do Rio Grande do Sul, Penedo de Alagoas, o Rio de Janeiro, são
todas filhas de Lisboa que o brasileiro, vindo de qualquer uma delas, ao ver
pela primeira vez a capital portuguesa tem aquela impressão ou ilusão que em
ciência se chama dejavú. Parece que já viu. Que estas formas e cores são já
suas conhecidas velhas. Que são formas e cores que docemente se deixam
rever e não simplesmente ver pelo brasileiro vindo do Brasil. 212

A cidade de Lisboa era, portanto, o símbolo mais perfeito da identificação


lusíada. Quase contraditoriamente, a ausência de uma essência definida não se chocava
com as influências externas, permitindo que o suposto “espírito português”

209
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p.141.
210
Ver Ibidem.
211
Ver Ibidem.
212
Ibidem, p.17

82
permanecesse, mesmo com as modernizações. A cidade se renovaria sem apagar seu
passado nem modificar sua paisagem de maneira deformadora. Para Freyre, mesmo em
declínio, a possibilidade de estabilidade ou de equilíbrio dos antagonismos que iam se
acentuando em Lisboa era um fator fundamental da capacidade de permanência da
intercomunicação cultural, não apenas em Portugal, mas também na dispersão da
mistura pelas varias colônias. 213

O desenvolvimento das questões levantadas no livro tendia a demonstrar que a


idéia de antagonismo – contida no próprio título Aventura e Rotina – não representava,
para Freyre, o confronto de opostos se não chegava a inverter os seus significados. Para
a mentalidade portuguesa, “aventura” e “rotina” nunca chegavam a se anular, sendo
inclusive conjugações necessárias para a sobrevivência uma da outra. O sentimento de
aventura acabava sendo incorporado por Lisboa, e até pela as aldeias portuguesas, junto
às experiências culturais dos vários povos conquistados. Como conseqüência, acabaria
criando um sentimento ancestral de liberdade e conquista que teria na história sua
principal tradução. Em tal concepção, a história e as tradições seriam um sinônimo para
“o espírito português”, mas com um significado que iria muito além da nostalgia.

As idéias de retorno e de acomodação tornavam-se coincidentes na forma como


Freyre interpretava a conquista portuguesa. Ao se estabelecer em outros países e
continentes, o português se misturava ao “outro”, como se sempre tivesse sido africano,
brasileiro ou indiano. Na volta dos conquistadores,ou dos novos tempos depois do auge
das conquistas, a estabilidade representada por um povo maduro, cercado de plantas
exóticas, costumes de diversas origens já adaptados, riqueza de alimentação, de
paisagem, de arquitetura, enriquecimento cultural e econômico, remetia, quase que
inevitavelmente, à sabedoria. Sem dúvida, para Gilberto Freyre, nenhum conquistador
teria transformado o estrangeiro em familiar de maneira tão profunda como fizeram os
portugueses.

No curso da viagem, seguindo planos bem definidos, tomavam forma suas


conclusões já previsíveis. Em visita à Guiné portuguesa, Freyre encontrou sinais do
africano que viria a se tornar o negro brasileiro. No guineense, enxergava intactas todas
as características do escravo colonial brasileiro, “museu vivo das múltiplas influências
de nossa origem”. 214 No caso de Goa, as semelhanças provocadas pelo contato com o

213
Ver FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 17.
214
Ibidem, p. 260.

83
português, tão íntimo quanto o travado no Brasil, foram acentuados pelo tipo de clima,
de vegetação e pelo homem tropical, mais próximo do Brasil do que da África. Até
mesmo na fala e nos gestos, Freyre identificava esta proximidade:

(...) o mesmo, o seu sorriso que não têm a exuberância do africano nem as
reservas do europeu. Também a fala: (...) a ação tropical sobre a língua
européia parece vir sendo a mesma nas duas áreas; a mesma, também, a
simplificação, na língua do invasor português, das duras complexidades se
sons, para que os povos tropicais mais facilmente os vinham adquirindo e
conservando. 215

A realidade que se desenhava comprovava a sobrevivência dos rastros de cultura


e até do catolicismo, que em Goa transpassariam castas e hierarquias e conviveriam com
a multiplicidade religiosa e étnica. Deslumbrado com o grau tão elevado de
correspondência humana e cultural, o sociólogo afirmava ter entrado em um estado
paralelo de observação. As imagens falavam por si. Assim como vieram para o Brasil a
canja, os traços da arquitetura, o coqueiro e a mangueira, foram para a Índia o cajueiro,
o tabaco, a mandioca e o mamoeiro.

Gilberto Freyre se via diante do caráter português, pois em qualquer espaço e


tempo o contato do português havia se mostrado o mesmo. Concluiu que haveria então
“constantes portuguesas de caráter e ação”. 216 Por outro lado, lamentava os sinais de
desigualdade social e a persistência do sistema de castas. Afirmou, em Aventura e
Rotina, que as possessões africanas por muito tempo não receberam o mesmo
tratamento que o Brasil, mas deixou claro também que a partir da década de 1950 esse
quadro mudaria pela necessidade da compreensão de um sentido português que unisse a
todos. Assim, a comunicação cultural entre políticas, crenças e costumes diferentes se
fazia importante para a constituição de uma base lusitana comum. Ademais, para
Freyre, as relações luso-brasileiras e entre os luso-descendentes eram fundamentais para
que se entendesse a história do desenvolvimento sócio-cultural brasileiro e lusófono; “O
Brasil tem ainda Guinés verdíssimas dentro de si”. 217

É principalmente com os olhos de brasileiros que não sabe separar o destino


do Brasil do de Portugal que vejo que a Guiné portuguesa. Sinto -me aqui
numa espécie de Alto Amazonas ou de Alto Mato Grosso Português, que
sendo já antigo território lusitano, só agora começasse a realmente
aportuguesar-se. 218

215
FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 320.
216
Ver Ibidem.
217
Ibidem, p.266.
218
Ibidem, p. 281.

84
As reações à Aventura e Rotina foram bastante duras, 219 primeiro, pelo contágio
político da obra. Segundo, pelas comparações prematuras e demasiado forçadas. E
terceiro, pela obra não ter se revelado tão original e inspiradora quanto Casa grande &
Senzala. Logicamente, as críticas que se direcionam a Aventura e Rotina também
estavam fundamentadas nas implicações políticas do uso do luso-tropicalismo, em
especial aos interesses legitimadores de Salazar no âmbito internacional. Sabia-se da
necessidade da continuidade do contato entre Portugal e as províncias ultramarinas, em
nome da língua e da história comum, e de certa sintonia cultural e afetiva. Deste modo,
o apego à teoria luso-tropical como interpretação totalizante e funcional da presença
portuguesa em territórios tropicais tornou-se moeda corrente entre os que legitimavam a
manutenção do poder colonial português.

Em relação ao Brasil, de certa maneira, Freyre contribuiu para a criação de uma


imagem. A ampliação da noção de mestiçagem, então alicerce da singularidade
brasileira, era usada para a formulação de uma teoria de cultura transnacional: a luso-
tropicalista. O Brasil era visto como exemplo de democracia racial, de cultura criativa e
herdeira lusitana. Em suas visitas, o sociólogo sempre estabeleceu comparações em
relação ao Brasil e identificou, em especial nas colônias africanas, brasis em gestação.
Por exemplo: quando em Goa, Gilberto Freyre enxergou uma sociedade simbiótica que,
como o Brasil, teria promovido o encontro entre raças, religiões e culturas. Em todo
“mundo português” se repetiria a realidade do Brasil.

No “mundo criado pelo português”, as distâncias não seriam intransponíveis.


Sobre a égide de um cristianismo lírico se expressando em língua portuguesa,
enriquecida com sotaques e vocábulos nativos, surgiriam sociedades miscigenadas
portadoras de uma identidade comum. No entanto, torna-se fundamental perceber que o
aproveitamento de certos aspectos do luso-tropicalismo pelo regime português não
significou sua adoção literal na prática administrativa, nem mesmo como doutrina
oficial. Apesar de alguns pressupostos luso-tropicais serem usados nas grelhas
discursivas, os conceitos de mestiçagem biológica e reciprocidade cultural
incomodavam bastante as bases tradicionais da política portuguesa. Segundo Cláudia
Castelo, Ernesto de Vilhena e Marcelo Caetano opunham-se à mestiçagem e à
reciprocidade cultural, concordando unicamente com a idéia vaga de uma especificidade

219
Podem-se destacar manifestações contrárias a Aventura e Rotina do escritor cabo-verdiano, Baltasar
Lopes e do diretor da Cia de Diamantes de Angola, Ernesto Vilhena.

85
portuguesa para a colonização nos trópicos. 220 Temia-se que as premissas do luso-
tropicalismo se confundissem com “estímulos à desnacionalização”, resultando na
diluição da cultura portuguesa e na perda da identidade nacional.

De acordo com a mesma autora, Norton de Matos também não era totalmente
favorável ao luso-tropicalismo. Embora reconhecesse a importância da leitura das obras
de Gilberto Freyre e da língua como fator de identidade nacional, era contrário à
reprodução da experiência brasileira em Angola, em Moçambique e na Guiné.
Considerava que na formação do Brasil “houve um esforço comum de gente branca da
Metrópole, de índios brasileiros e dos escravos pretos da África”, que resultou numa
fusão étnica e cultural equilibrada. Na África, não haveria a possibilidade de simbiose
luso-tropical; devia-se moldar o outro à imagem e semelhança do “eu” português.221

Apesar do mal estar em torno dos aspectos culturais da mestiçagem, a tese de


Gilberto Freyre seria representativa para o regime português. Um distinto intelectual, de
amplo reconhecimento internacional, brasileiro; um ex-colonizado, que atestava a
benignidade da colonização portuguesa, ou seja, a dimensão fundamental do
nacionalismo português enquanto povo, antes mesmo do salazarismo.

O governo português procurou desfrutar do prestigio de Freyre no exterior, já


que a posição colonial portuguesa, cada vez mais confrontada, apesar dos vários
contornos discursivos, não se circunscrevia junto aos organismos internacionais. No
início da década de 1960, Salazar esforçou-se para propagar em entrevistas à imprensa
estrangeira um discurso sobre a presença portuguesa na África, inteiramente sancionado
numa doutrina inspirada no luso-tropicalismo. Acentuou a inclinação do português para
o contato com outros povos e recorreu à Freyre para justificar o comportamento do
português afirmando que estes não saberiam estar no mundo de outra maneira. Segundo
Castelo, “porque foi num tipo social de multirracialidade que, há oito séculos, nos
formamos como nação, no termo de diversas invasões, oriundas do Norte e do Sul, isto
é, da própria África”. 222

As campanhas de propaganda nacional de alcance externo concentravam-se em


sublinhar a contribuição lusitana para a fraternidade entre os povos e para a integração
das raças e culturas diferentes numa mesma nação. A participação do país na Exposição

220
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 95.
221
Ibidem, p. 95.
222
Ibidem, p. 98.

86
Universal e Internacional de Bruxelas em 1958 é um exemplo. Na obra, sugestivamente
intitulada Portugal. Oito séculos de história ao serviço da valorização do homem e da
aproximação aos povos, publicada por iniciativa do Comissariado Português da
Exposição, encontramos com facilidade referências a doutrina luso-tropical. Orlando
Ribeiro, no artigo Um povo na terra, explica que “Português não é (...) um conceito de
raça, mas antes uma ‘unidade de sentimento e de cultura que aproximou homens de
várias origens”. Adriano Moreira procura demonstrar que se deve a Portugal:

a formulação do único humanismo que até hoje se mostrou capaz de


implantar a democracia humana no mundo para onde se expandiu o Ocidente.
O mesmo autor acentua o caráter cristão das relações humanas no interior da
nação portuguesa, pautadas pela interpenetração cultural e pela ausência de
‘preconceitos contra a miscigenação. 223

O Ministério dos Negócios Estrangeiros, por meio das suas embaixadas e


legações, difundia os trabalhos de Freyre com o objetivo de justificar cientificamente
perante as Nações Unidas e aos demais órgãos, respaldados pelo alto crédito do
sociólogo brasileiro. Em 1959, o livro Integração portuguesa nos trópicos foi
extensamente distribuído nos consulados e delegações de Portugal pelo mundo. Ainda
em 1960, por conta do Congresso Internacional dos Descobrimentos, Gilberto Freyre
escreveu sua obra mais completa em termos da formulação do luso-tropicalismo, O
Luso e o Trópico, publicado pela Comissão Executiva das Comemorações do V
Centenário da Morte do Infante D. Henrique. 224

Em contrapartida, mesmo com dispendiosos esforços por parte da diplomacia


portuguesa, o discurso político de vertente luso-tropical, nos moldes aqui discutidos,
não suportaria os indomáveis ventos de mudança que abalariam em pouco tempo o
Governo de Lisboa. A articulação político-científica em torno das teorias luso-tropicais
deixou reflexos marcantes no campo acadêmico português, 225 em especial no âmbito
das ciências humanas e nos estudos de antropologia, em que as teses de Freyre serviam
de modelo para as pesquisas de campo no ultramar e inspiravam numerosos trabalhos
teóricos. No plano das mentalidades, o luso-tropicalismo enraizou-se como uma
imagem ainda remetida sobre o caráter do povo lusitano proveniente da história política
indissociável do Brasil e dessa cultura política luso-brasileira que se demonstrou tão

223
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 97.
224
RAMPINELLI, Waldir José. Op. Cit., p. 61.
225
Adriano Moreira, na qualidade de professor e diretor do ISEU, depois ISCSPU, e como também
diretor do CEPS da JIU, adjunto ao referido instituto, em 1955-56, introduz o estudo do luso-tropicalismo
na cadeira de Política Ultramarina no curso de Altos Estudos Ultramarinos. CASTELO, Cláudia. Op. Cit.,
p. 101 e 102.

87
sólida, sobretudo, com os posicionamentos políticos das duas nações nos Estados Novos
e durante a década de 1950.

88
Capítulo IV

As Reconfigurações do Último Século e a Sobrevivência das Idéias


Luso-Tropicais

IV. 1 – A Descolonização Africana e o Pragmatismo Responsável

Até a década de 1950, o Brasil reportava-se a Portugal em seu relacionamento


com o continente africano. Manteve-se, dessa forma, o aliado internacional mais
empenhado na defesa do colonialismo português; envolto das idéias de uma
especificidade da colonização lusitana, da nação como espelho para a África em termos
de democracia racial e da Comunidade Luso-Brasileira que apoiava a missão
civilizacional portuguesa diferenciadora.
A instrumentalização do luso-tropicalismo em torno do Tratado de Amizade e
Consulta, que juridicamente criou a noção de uma comunidade que definitivamente
beneficiava a política ultramarina portuguesa, deu-se em grande parte pelo
conservadorismo das elites políticas brasileiras, incapazes de perceberem as mudanças
no cenário do palco externo. Os velhos problemas de contradição identitária e de
formação política social-nacional amarraram o Brasil a Portugal numa fase do século
XX em que grandes mudanças políticas irrompiam no mundo. Cobrava-se do Brasil
uma postura autêntica e independente, que o país demonstrava-se inábil em assumir. 226
“Esta percepção geoestratégica anacrónica conferia a Portugal uma importância que o
país não tinha, posicionando a diplomacia brasileira na contracorrente das mudanças
que estruturavam a nova ordem do pós-guerra”. 227
O fim do governo de Juscelino Kubitscheck e o exílio do general Humberto
Delgado na embaixada do Brasil em Lisboa despontaram críticas junto à opinião
pública com relação à política brasileira de alinhamento automático a Portugal. O
governo de Jânio Quadros em 1961, por sua vez, inaugurou uma maior diversificação e
flexibilização na política externa. “Ao mesmo tempo em que o Brasil abria-se para o

226
SARAIVA, José Flávio Sombra. “A África e o Brasil: Encontros e Encruzilhadas”. Ciências e Letras,
n.º 21/22, Porto-Alegre, Faculdade Porto-Alegrense de Educação, 2001, p. 139.
227
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Do lirismo ao pragmatismo: a dimensão
multilateral das relações luso-brasileiras (1974-1976). Lisboa: ISCTE, 2008 (Proveniente do Prémio
CES/09), p. 23.

89
mundo, o regime português fechava-se sobre si”. 228 No plano internacional, Quadros e
João Goulart assumiram uma política externa mais autônoma em relação ao Ocidente, a
fim de propiciarem novas alianças econômicas e políticas. 229 A relativa inflexão da
ordem bipolar permitiu rearranjos no sistema internacional menos dependentes das duas
superpotências e nesse sentido, a aproximação com o bloco socialista, o
aprofundamento dos laços com o Terceiro Mundo e o crescente apoio ao direito à
autodeterminação dos povos despertaram a atenção da diplomacia brasileira quanto à
África promissora do futuro.
Apesar da inércia do governo brasileiro frente ao início da guerra colonial em
Angola, as divergências ao apoio incondicional ao colonialismo português não tardaram
a se tornar notáveis nas relações luso-brasileiras. O confronto de interesses e a
fragilidade identitária colocavam em questão o papel do Brasil em relação à África e o
real significado da amizade com Portugal. “Entre 1961 e 1964 a posição brasileira na
ONU em relação às colónias portuguesas oscilou entre a abstenção e o apoio à
independência de Angola. Esta ambiguidade traduz o desequilíbrio entre os grupos
conservadores e os progressistas presentes na Administração brasileira”. 230
Sob ditadura militar a partir de 1964, o Brasil se afinou novamente com a
estratégia ocidental de contenção do comunismo. O Atlântico Sul tornou-se um espaço
de atuação direta do Brasil em termos de segurança, 231 pois era vulnerável à influencia
soviética. Dessa forma, o apoio a Portugal mais uma vez estava assegurado. Apesar do
recuo nas relações com os países africanos, que se inspiravam em movimentos de
libertação de esquerda, o Brasil assumiu nova tendência perante a África sem, contudo,
perpassar por Portugal.

228
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 23.
229
A Política Externa Independente empreendida pelo Governo de Jânio Quadros (1961) e pelo de João
Goulart (1961-1964) consistia numa nova estratégia de inserção internacional. Foi posta em prática pelos
chanceleres Afonso Arinos de Melo e San Tiago Dantas, que propunham o distanciamento do conflito
Leste-Oeste e maior posicionamento a nível Norte-Sul. Dessa forma, sob menos influência americana, o
Brasil assume uma postura mais terceiro-mundista. Sobre a Política Externa Independente e
internacionalização da economia brasileira ver: LAFER, Celso, Paradoxos e Possibilidades: Estudos
Sobre a Ordem Mundial e Sobre a Política Exterior do Brasil num Sistema Internacional em
Transformação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982; AMADO, Luiz & BUENO, Clodoaldo. História
da Política Exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.
230
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 24. “Em Janeiro de 1962 o Brasil
votou favoravelmente à Resolução 1742 da ONU que apelava à criação de instituições políticas livres e à
transferência de poderes em Angola”.
231
A defesa do Atlântico Sul caberia a três capitais livres e ocidentais presentes no hemisfério sul:
Brasília, Lisboa e Pretória. SARAIVA, José Flávio Sombra. O Lugar da África. A Dimensão Atlântica da
Política Externa Brasileira (de 1947 a nossos dias). Brasília: Universidade de Brasília, 1996, p. 118.

90
O governo de Castelo Branco (1964-67) optou pela vertente da política externa
voltada para o alinhamento com o Ocidente no confronto geopolítico. Contudo, o
contexto político de repressão militar no Governo de Costa e Silva recorreu a certas
diretrizes de política exterior adotadas anteriormente ao golpe, priorizando os ideais
nacional-desenvolvimentistas e deixando de fundo na agenda diplomática o conflito
leste-oeste. Carvalho afirma que tais alterações teriam permitido o reaparecimento da
política africana do Itamaraty lentamente, o que implicaria na revisão das relações com
Portugal. Se Brasília ainda votava favoravelmente a Lisboa na ONU, gradualmente o
continente africano ganharia importância nas estruturas do ministério das Relações
Exteriores, constituindo uma de suas principais linhas de ação nos anos seguintes. 232

O projeto de crescimento econômico chamado ‘milagre econômico’ e a


estratégia de internacionalização da economia brasileira para a conquista de novos
mercados e parceiros comerciais tornaram-se requisito primordial da Diplomacia do
Interesse Nacional 233 realizada pelo presidente Médici (1969-74). Com a eminência do
fim da guerra fria, as orientações ideológicas cederam lugar ao pragmatismo
econômico. Cedo ou tarde a diplomacia brasileira teria de atribuir real valor ao
Atlântico Sul e a África na nova reordenação que se desenhava. Era o fim da ordem
bipolar e oa países africanos poderiam se tornar importantes aliados no diálogo Norte-
Sul e nos foros multilaterais. A cooperação com a África negra implicava na revisão da
ligação com Pretória e no fim do alinhamento automático com Lisboa. A política
africana do Itamaraty deveria superar a contradição das suas relações com colonialismo
português. 234

Em 1969, Marcelo Caetano visitou oficialmente o Brasil, na tentativa de


revitalizar os vínculos com a pátria irmã e garantir apoio à política ultramarina
portuguesa, marginal nos foros internacionais. No intuito de aliciar economicamente o
Brasil em troca do apoio ao colonialismo português, o Presidente do Conselho
apresentou um conjunto propostas ao Palácio do Planalto – a saber: a possibilidade de a
PETROBRAS (Petróleo Brasileiro S.A.) explorar petróleo em Cabinda; negociações
relativas ao comércio do café; a abertura de uma linha aérea regular entre o Rio de

232
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 26.
233
Idem.
234
Ibidem, p. 27.

91
Janeiro e Luanda. No entanto, a investida foi infeliz, uma vez que o governo Médici
pretendia esgueirar-se da adesão e mediar uma solução negociada.235
As relações luso-brasileiras encontravam-se em descompasso, já que o
alargamento da política externa brasileira era incompatível com os interesses
portugueses. O governo de Lisboa se isolava em seus objetivos de defesa nacional, sem
levar em conta o desgaste do posicionamento internacional do Brasil em seu benefício.
A ambigüidade em relação ao regime português não poderia continuar por muito tempo.
Um impasse político interno do regime português impedia o governo de pôr termo à
guerra colonial e empreender uma efetiva liberalização política e econômica, o que
impossibilitava o início de um novo padrão de relacionamento bilateral.
Por sua vez, o presidente Garrastazu Médici preferiu estabelecer acordos e
relações com o Oriente Médio e com a África Negra. Em 1972, a PETROBRAS foi
pioneira em quebrar o bloqueio internacional à recém-nacionalizada Iraq Petroleum
Company (IPC), celebrando com ela um contrato. Além disso, o Brasil demonstrava
interesse em constituir ligações entre a PETROBRAS e a Nigerian National Oil
Corporation (NNOC), mas a ambigüidade de Brasília em relação à questão colonial
figurava-se como um empecilho. 236
No mesmo ano, o chanceler Mário Gibson Barboza empreendeu viagens por
diversos territórios africanos, consolidando seu posicionamento de que o Brasil deveria
tender mais para a África do que para Portugal. Convencido e determinado a disseminar
tal estratégia, o ministro brasileiro declarou o ano de 1972 como o Ano da África – o
que despertou resposta imediata de descontentamento por parte de seu homólogo
português Rui Patrício.

Ao mesmo tempo, o lobby português no Brasil procurou reagir ao que


entendia ser um golpe às relações bilaterais e declarou 1972 o Ano da
Comunidade Luso-Brasileira. Porém, os protestos e os apelos à fraternidade
entre os dois povos já pouco valiam face ao pragmatismo económico do
Itamaraty. 237

235
Ver CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 28. “Durante o encontro
bilateral de 1970, o chanceler Mário Gibson Barboza sondou o seu homólogo português acerca dessa
possibilidade. A resposta de Rui Patrício foi a de que o Ultramar era uma questão de ‘soberania
interna’, ‘insusceptível de ser discutida mesmo com um país irmão’”.
236
SANTANA, Carlos Ribeiro. “O Aprofundamento das Relações do Brasil Com os Países do Oriente
Médio Durante os Dois Choques do Petróleo da Década de 1970: Um Exemplo de Ação Pragmática”.
Revista Brasileira de Relações Internacionais, v.40, n.º 2, Brasília, s. e., 2006 (consulta eletrônica:
http://www.scielo.br/scielo.php?lng=es).
237
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 31.

92
A partir de 1973, a tradicional solidariedade internacional brasileira a Portugal
começou a ruir vertiginosamente diante dos estreitamentos com o mundo árabe e com o
continente africano. Os países da África Oriental acertaram com seus parceiros árabes
sanções econômicas e embargos petrolíferos ao Brasil por conta da posição do país em
relação a Angola e Moçambique. Além disso, na XXVIII Assembléia Geral das Nações
Unidas, os países africanos votaram contra o Brasil, e a favor da Argentina, sobre a
utilização de recursos naturais comuns às duas nações. 238 Dessa maneira, o Brasil
começou a sofrer retaliações frontais por sua disposição imprecisa com relação à
descolonização africana.
A visita do presidente Médici a Portugal poria fim às expectativas de apoio
incondicional do Brasil frente à descolonização, pois o posicionamento do governo em
relação à África configurava como essencial para uma estratégia mais autônoma do
Brasil em termos de política externa. O continente africano despertava, além de
correspondência regional, atração histórica ao Brasil e nessa altura, convinha ao país
exercer presença no eixo sul, tanto por conveniências econômicas como por sua
inserção internacional no concerto das nações.
Os rearranjos políticos da década de 1970 denotaram o luso-tropicalismo como
uma teoria insensata e incoerente em termos práticos, como em torno de uma
Comunidade Luso-Afro-Brasileira. Contudo, os desdobramentos da descolonização
permitiram que o Brasil firmasse novos modelos de relacionamento com a África,
redimensionasse sua habitual relação com Portugal e atualizasse a retórica luso-tropical
através da Lusofonia e da criação de uma comunidade de países de língua ou expressão
portuguesa.
A política pró-america dos dois primeiros governos militares deu lugar a uma
nova política externa, denominada pragmatismo responsável. O nome se devia à
relativa polarização ideológica que possibilitou, durante o governo de Ernesto Geisel
(1974-79), o aprofundamento da política de “não alinhamento automático” com os
Estados Unidos. As relações exteriores do Brasil, nesse momento, pautavam-se na
mundialização e na diversificação de parcerias e acordos bilaterais, que pretendiam dar
ao país um novo lugar no sistema internacional. Essa estratégia de internacionalização
política e econômica se adequava ao projeto nacional-desenvolvimentista, que buscava

238
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit, p. 34. “O delegado da Etiópia declarou
à delegação brasileira que a OUA ‘decidira demonstrar ao Brasil que teria de começar a pagar um alto
preço por não se dissociar, de vez e claramente, das posições portuguesas’”.

93
um novo padrão das relações entre o eixo norte e sul. Nessa perspectiva, o Brasil foi
primeiro país a reconhecer a independência de Angola, mesmo esta tendo sido feita pelo
MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), de orientação socialista. 239 Além disso,
o acordo nuclear entre Brasil e Bona, em 1975, abriu caminho, como modelo, para um
novo tipo de cooperação. 240
O pragmatismo responsável foi uma redefinição estratégica de política
internacional que pretendia creditar um novo padrão de dependência externa ao Brasil,
aprofundando as relações com alguns países da Europa Ocidental e da África. Nessa
altura, a vertente africana adotada pelo governo brasileiro procurava estreitar laços
econômicos e políticos com outros países em via de desenvolvimento, o que resultaria
em nova configuração das relações no hemisfério sul. Dessa forma, o Brasil projetava-
se como interlocutor entre o “primeiro” e o “terceiro mundo”, rejeitando a mediação
portuguesa. O Brasil pretendia inserir os mercados africanos em seu horizonte de
expansão econômica a fim de suprir a dependência energética do país. O passado de
cumplicidade com o colonialismo português traria para o país a imagem de multirracial
e defensor da autodeterminação e, por isso, aliado natural do continente africano. 241
Entre 1975 e 1976, uma série de oportunidades se ofereciam no espaço
Atlântico. Nesse sentido, a revitalização do Atlântico Sul e a aproximação com a África
Lusófona eram imperativas. Em janeiro de 1975, a imprensa já demonstrava consenso
sobre a emergência do continente africano no sistema internacional e sobre a atuação do
Brasil perante as mudanças que se afiguravam:

(...) o que fica claro (...) é a evolução da situação da África de fala


portuguesa, isto é, em nossa fronteira Leste. Impõe-se cada dia mais a
participação do Brasil no estabelecimento desta nova África, parte integrante
do universo tricontinental de cultura portuguesa...a passiva perplexidade com
que assistimos aos eventos de 1974 precisa, em 1975, transformar-se em
concreta decisão de ajudar aos novos países e deles colher os frutos
provenientes do nosso desejo ativo de colaboração. 242

Em Março de 1975, o Jornal do Brasil noticiava em seu editorial o quão


auspicioso e correto era o acompanhamento do Brasil em relação à emancipação de
Angola, apesar do período transitório que Portugal vivia. O ministro Ovídio de Andrade
Melo, cônsul-geral do Brasil em Londres, passava a ser o representante oficial do

239
FREIXO, Adriano de. Minha Pátria é a Língua Portuguesa: a construção da idéia da lusofonia em
Portugal. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, p. 38.
240
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 51.
241
Ibidem, p. 51.
242
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 325. 03/03/75, p. 6.

94
governo brasileiro junto aos membros dos três movimentos de independência de
Angola. 243 Segundo os analistas do Jornal do Brasil, a opinião pública apoiava a
legitimidade das ações políticas do Brasil em África.

“A própria originalidade, de fundo e forma, de representação diplomática do


Brasil em Luanda, sublinha, por um lado, o interesse do Brasília em unir-se
oficialmente, desde já, ao novo país de Língua Portuguesa, e por outro lado, a
receptividade do novo país e de Lisboa à presença do Brasil. A representação
especial é de fato nossa embaixada, que lá se encontra, para cultivar, sem
perda de tempo, o melhor relacionamento possível entre brasileiros e
angolanos”. 244

Ainda em Março de 1975, o caderno sobre política e governo daquele periódico


trouxe a matéria com o título Brasil vai dinamizar o combate contra a segregação em
África, que expressava claramente as diretrizes do presidente Geisel em termos de
política externa. O Brasil daria ênfase ao combate aos regimes segregacionistas da
África do Sul e da Rodésia, como forma de complementar os esforços de aproximação
com as novas nações de Língua Portuguesa no continente africano, particularmente
Angola e Moçambique. 245
Apesar da desconfiança de alguns movimentos de libertação com relação às
intenções do Brasil para com a África, o panorama “permitia perscrutar os limites e
potencialidades do Pragmatismo Responsável”. 246 O Brasil era convocado a mediar
junto a Portugal a concessão das independências dos territórios africanos de pertença
lusitana. O embaixador da Costa do Marfim, Seydou Diarra, julgava ser esta a grande
oportunidade do Brasil: “O governo brasileiro foi oficialmente solicitado para exercer
a sua influencia, condição sine qua non colocada pelo Itamaraty para agir como
mediador de Portugal”. 247
A independência da Guiné-Bissau revelou-se, num ensaio prático, como a nova
política pretendida pelo governo brasileiro para a África. O momento histórico era
oportuno e um marco para o futuro das relações entre Brasil e África, pois a nação sul-
americana, com tantas afinidades culturais, apresentava-se autônoma e disposta a
dialogar e a desenvolver relações equitativas e dinâmicas com o continente. Dessa
maneira, em 18 de Julho de 1974, o Brasil reconheceu a independência política da

243
Os três movimentos eram: A Frente Nacional, O Movimento Popular e a União Nacional pela
Independência do país.
244
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 325. 03/03/75, p. 6.
245
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 325. 03/03/75. p 4.
246
CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 82. A desconfiança ocorria pela
memória do apoio tácito brasileiro para com o colonialismo português e pela suspeita da tentativa de um
novo imperialismo vindo do Brasil.
247
Ibidem, p. 78.

95
Guiné e apoiou o seu ingresso na ONU. As declarações do Ministério das Relações
Exteriores demonstravam a grande satisfação do Brasil em apoiar a recente nação de
língua portuguesa. O reconhecimento da independência da Guiné foi uma prova da
liberdade diplomática que o Brasil vinha conquistando, pois a conjuntura era delicada
devido à crescente influencia soviética nos movimentos de emancipação política. 248
As relações luso-brasileiras chegaram ao ápice da contrariedade. Portugal
acreditava que o Brasil estava implantando uma política africana às suas custas. “No
Palácio das Necessidades, um diplomata disse a um correspondente do Estado de São
Paulo: Pode haver tratado de amizade, mas não há tratado de consulta”. 249 Tal crítica
reflete o mal-estar criado entre os governos devido ao fato de o Brasil ter comunicado
sua decisão de reconhecimento à Guiné-Bissau com apenas vinte e quatro horas de
antecedência – ou seja, sem dar qualquer abertura a uma negociação com Portugal.
Tanto o Brasil quanto os Estados Unidos tentavam recolocar suas atuações em
África. A política externa brasileira, mais autônoma, era relevada pelos EUA, já que o
país se apresentava como um aliado ocidental a exercer influencia conveniente sobre o
continente africano. Nesse sentido, o embaraço das decisões brasileiras em relação aos
territórios africanos de colonização portuguesa era negativo aos interesses e receios
americanos. No caderno Internacional, do Jornal do Brasil de Janeiro de 1975, o
secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, falou sobre a força do Brasil
para o futuro por conta da sua visita à América Latina:

O Brasil é uma potência mundial emergente e o acordo que assinei com o


Ministro das Relações Exteriores, Antônio Azeredo da Silveira, é
simplesmente o reconhecimento deste fato. Não somos nós que conferimos
essa qualidade ao Brasil e sim sua própria realidade. 250

Alguns dias antes da declaração de independência de Angola, o secretário das


relações exteriores do MPLA, e mais tarde chanceler do novo governo angolano, o
Senhor Garcia Neto, em uma entrevista ao Jornal do Brasil sobre o futuro
relacionamento entre Brasil e Angola afirmou:

O Brasil é, sobretudo, uma realidade atlântica. Somos países vizinhos, porque


estamos um em frente ao outro. Além disso, o Brasil é uma realidade viva na
América Latina que nenhum país pode ignorar. Em relação ao Brasil nós

248
A independência guineense foi proclamada unilateralmente pelo Partido Africano da Guiné e Cabo
Verde, de filiações esquerdistas. CARVALHO, Thiago Severiano Paiva de Almeida. Op. Cit., p. 82.
249
Ibidem, p. 85. O presidente da república portuguesa, António Spínola, sentiu-se chocado com a
decisão do governo brasileiro, especialmente após o envio da missão chefiada por Galvão de Melo ao
Brasil.
250
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXVI. nº 58. 05/06/76. p. 9.

96
particularmente gostaríamos de manter boas relações nos domínios que
acharmos mutuamente vantajosos. É certo que subsistem algumas
desconfianças, pois esperávamos que em nossa luta de libertação o Brasil
tomasse uma posição frontal contra o colonialismo. Mas, hoje entendemos
que nossas responsabilidades são diferentes e achamos que deveremos pelo
menos tentar ultrapassar certas barreiras para nos aproximarmos. 251

Acerca das relações entre Angola e Portugal e da idéia de uma “Comunidade


Luso-Afro-Brasileira”, Garcia Neto manifestou: “Em relação à chamada Comunidade
Luso-Afro-Brasileira, temos uma péssima recordação desse tipo de proposta, mas não
quer dizer que não se possa vir a estudar em tipo de cooperação específica entre países
que tenham língua e costumes afins”. 252
O Brasil assumia, assim, liderança na descolonização dos territórios lusófonos e
reconheceu o governo instalado em Luanda – em observância às regras internacionais,
obviamente. Nesse momento, o país se punha à frente de Portugal pela presença de
cerca de duzentos e cinqüenta mil cidadãos portugueses no território angolano em zonas
dominadas por outros movimentos rebeldes, o que bloqueava qualquer tipo de definição
do governo português em favor do MPLA. No Brasil, a independência de Angola foi
encarada da seguinte forma:

Qualquer que seja o grau de sutileza a que foi obrigado a usar para fazer face
a chegada da hora da independência angolana, o governo brasileiro parece ter
satisfeito sua maior preocupação, a de estar presente, ombro a ombro com
outros quatro Estados independentes de língua portuguesa (Moçambique,
Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) no momento exato do
nascimento do outro membro da comunidade afro-luso-brasileira rebatizada e
despojada de suas conotações colonialistas. 253

O Brasil despontava como protagonista político a gerenciar diplomaticamente a


descolonização dos territórios africanos de língua portuguesa, buscando conciliar o
triângulo geográfico do idioma. Em declarações oficiais, Luís Cabral, presidente da
Guiné-Bissau, acusou os portugueses, “fascistas colonialistas”, de terem escondido de
seu povo a literatura brasileira, para neutralizarem a atração que os africanos tinham
pelo Brasil. Saudando o embaixador brasileiro, que visitava a Guiné, Luís Cabral
afirmou que entre os dois governos deveria haver igualdade, proveitos mútuos, e não
ingerência em assuntos internos como fundamento para a criação de uma grande
comunidade de países de língua portuguesa. 254

251
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXV. nº 215. 09/11/75. Caderno Especial. p. 1.
252
Idem.
253
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXV. nº 217. 11/11/75. p. 6.
254
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 323. 01/03/75. p. 3. Desejo de Almícar. “Luís
Cabral observou que a cultura brasileira, objeto de admiração de seu povo, teve suas raízes arrancadas
do solo africano, transportadas nos navios negreiros, com sangue e a dor dos escravos levados para as

97
As animosidades e os ressentimentos em nível político e cultural eram latentes,
por parte dos representantes africanos que conduziam as transformações políticas em
seus países. Nesse período de transição política, o luso-tropicalismo era visto como uma
ideologia colonialista romântica e ilusória. A língua se mostrava o único instrumento
capaz de recuperar a cooperação atlântica e de alterar os velhos padrões de
relacionamento entre os três continentes. O trecho abaixo, retirado de uma entrevista
com um dos membros do MPLA, é demonstrativo de como a questão lingüística era
encarada pela elite política:

(...) O português não deverá ser substituído como língua franca. Não seria
presumivelmente, do interesse angolano de todas as raças a perda da
identidade do idioma, ainda mais porque este aspecto transcende qualquer
filiação ideológica. (...) De nossa parte, como integrantes do mundo de
expressão portuguesa, é fundamental que se instale em Luanda um governo
amigo, disposto ao diálogo e a cooperação com o Brasil. 255

Durante o Governo de Marcelo Caetano, as modificações ocorridas no


continente africano fizeram sobressair as primeiras tensões nas relações luso-brasileiras.
As mudanças políticas ocorridas a partir de 25 de Abril de 1974 em Portugal criaram no
Brasil a expectativa de uma melhor condução portuguesa nos processos de
descolonização da África. Contudo, a questão africana era a “pedra de toque” nas
estimadas relações entre Brasil e Portugal. O governo brasileiro mantinha sua estratégia
de política externa e acreditava que o Partido Socialista em Portugal, sob a figura de
Mário Soares, solucionaria o contencioso africano. A administração em Brasília se
justificava em relação à descolonização da seguinte maneira:

As relações entre Brasil e Portugal desenvolveram-se num clima de amizade,


respeito mútuo e objetividade. Os vínculos históricos que unem os dois países
permitiram, nesse período, a manutenção de um diálogo proveitoso e franco
sobre a ampla gama de interesses comuns. Coerente com as tradições
amistosas desse relacionamento, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o
governo resultante das transformações por que passou Portugal em 25 de
abril. A diplomacia brasileira buscou conservar as relações entre os dois
países num plano realista e benéfico para ambas as partes e, com a aceleração
da descolonização dos territórios africanos, teve cuidado de manter as novas
autoridades de Lisboa cientes da posição anticolonialista do Brasil. 256

As transformações conjunturais que surgiram com a transição para a democracia


em Portugal e com o início de liberalização do regime autoritário no Brasil

Américas. Além da acusação aos colonizadores portugueses de esconder do povo da Guiné-Bissau


informações preciosas sobre o Brasil, o presidente Luís Cabral mais uma vez citou seu irmão Almícar
Cabral – a principal figura do movimento de libertação nacional, morto há dois anos – como um dos
mais certos incentivadores da aproximação que ocorre agora entre a Guiné e o Brasil”.
255
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 273. 08/01/75. p. 6.
256
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXIV. nº 324. 02/03/75. p. 20.

98
possibilitaram, com o passar do tempo, uma revisão das relações bilaterais e do
relacionamento com a África.

IV. 2 – As Transições Democráticas e a Ressonância do Luso-Tropicalismo

Diante das transformações políticas que atravessaram os países ocidentais, entre


eles Brasil e Portugal, na segunda metade do século passado, torna-se necessário um
breve dimensionamento teórico sobre a última vaga das implantações democráticas. A
democracia moderna ocidental teve seu surgimento associado ao desenvolvimento
histórico do conceito de Estado-Nação. Ao longo da história do século XX, os ajustes
entre a relação do Estado e a abertura à participação política resultaram de um processo
conflituoso no âmbito das lutas por igualdade social, política e liberdades individuais.
Charles Tilly defendeu que o processo de democratização levou a uma interação
com o Estado de “protected consultation”, 257 pois o povo e o Estado passaram por um
processo pró-ativo de confiança – ou seja, de reconhecimento da autoridade do Estado e
de legitimidade do sistema político. Os canais de comunicação ganharam espaço e
foram alargados, por exemplo, através do sufrágio e das eleições, no qual grupos de
interesse da sociedade se conectaram e a elite e as camadas populares “negociaram”
com o Estado uma espécie de consulta aos interesses organizados da população. Ainda
segundo o politólogo Tilly, um regime torna-se democrático na medida em que o grau
de relações políticas entre o Estado e seus cidadãos envolve quatro elementos
fundamentais: abrangência, igualdade, proteção e consulta obrigatória.
O cientista político norte-americano, Samuel Huntington analisou três ondas de
258
democratização ocorridas ao longo do último século e centrou seu estudo na terceira
delas. O autor caracterizou ondas de democratização como um grupo de transições de
regimes não-democráticos para democráticos que incidiram em períodos específicos e
que, significativamente, foram mais numerosas do que as transições na direção oposta.
As ondas envolveram, também, liberalização ou democratização parcial nos sistemas
257
Ver TILLY, Charles. Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
258
HUNTINGTON, Samuel P. The third wave: democratization in the late twentieth century. London:
University of Oklahoma Press, 1993.

99
políticos que não se tornaram completamente democráticos. Cada onda de
democratização afetou certo número de países, num movimento de contágio político que
seguia os padrões de modernização política. No entanto, as aberturas democráticas
também impulsionaram algumas transições na direção não-democrática, como numa
onda reversa, pois nem todas as transições para a democracia ocorreram durante ondas
democráticas. Assim, a história não se desencadeou de forma unidirecional e as
mudanças políticas não se encaixaram em classificações temporais e contextuais
fechadas ou únicas.
A terceira onda teve início com o golpe de 25 de Abril de 1974 em Portugal e
possibilitou um implausível movimento a caminho da democracia no final do século
XX. Nos anos que se seguiram ao fim da ditadura portuguesa, regimes democráticos
substituíram regimes autoritários em aproximadamente cinqüenta países das diferentes
regiões geográficas. Em alguns deles, ocorreu considerável liberalização dos regimes
autoritários. Em outros, movimentos de democracia ganharam força e legitimidade.
O Brasil já havia tido uma experiência democrática na década de 1940, mas o
quadro limitado e instável levou o regime ao fracasso. Somente a partir da Revolução
dos Cravos pode-se considerar que o Brasil esteve inserido nessa onda democrática
encetada por Portugal. A transição brasileira, contudo, procedeu-se de forma contrária à
portuguesa. No Brasil, apenas na década de 1980 a sociedade civil se tornou
politicamente ativa, criticando a ditadura militar, reavaliando os preceitos democráticos
e seus objetivos e encontrando formas de confiança mínima nos velhos representantes
políticos do governo para a construção da democracia no país.
A conjuntura internacional foi fundamental para o desenvolvimento democrático
tanto no caso português quanto no caso brasileiro, porém, a dinâmica interna foi
essencial para a concretização das transições. A característica marcante do caso
português foi a vitória dos moderados 259 . O desenrolar dos fatos em Portugal após a
Revolução superou as expectativas, pois um país atrasado social e economicamente,

259
Ver MAXWELL, Kenneth. The making of Portuguese democracy. Cambridge, New York,
Melbourne: Cambridge, 1995.

100
vivendo um período único de instabilidade política, foi precursor da democratização nas
ditaduras da América Latina.
Portugal pode ser visto como o caso clássico de um país que sobreviveu ao cerco
dominante que o rodeava. Partilhando, desde longa data, a Península Ibérica com a
Espanha – tradicional rival da independência portuguesa – e o oceano com os britânicos,
o país tornou seu serviço diplomático mestre em postergar, confundir e encontrar modos
de proteger os interesses nacionais. 260 Por vezes, a situação interna de Portugal,
autoritário e salazarista, impediu a mudança política ao longo das décadas do XX. Em
outros momentos, o empecilho veio de fatores externos. Curiosamente, os motivos
internos e externos não chegaram a coincidir em um grau que ocasionasse uma
transformação significativa, o que permitiu que Portugal se mantivesse, até antes da
década de 1970, isolado e intransigente em sua posição colonialista.
Por volta de 1973, a classe militar já apresentava sinais de descontentamento, o
que gerou mobilizações com o chamado “Movimento dos Capitães” dos oficiais do
Exército. Em Dezembro do referido ano, tal movimento se tornou irreversível,
transformando-se em “Movimento de Oficiais das Forças Armadas” (MFA). Com uma
rapidez extraordinária e sem oferecer resistência, o regime que governava Portugal
desde os fins da década de 1920 foi derrubado. Em 26 de Abril de 1974, uma multidão
eufórica saiu às ruas, o programa do MFA foi afixado e suas promessas foram lidas com
avidez.
Embora a revolta de 25 de Abril possuísse poucas conotações revolucionárias na
época, também não foi um golpe de Estado comum. Derrubou a ditadura mais antiga da
Europa, prenunciou o fim do mais antigo império europeu na África e empurrou para o
primeiro plano um híbrido inquietante: um grupo de oficiais militares europeus,
profundamente influenciados pela teoria e pela prática das lutas de libertação fora da
Europa e que, no decorrer do tempo, passaram a se ver cada vez mais como uma
vanguarda revolucionária. Em 25 de Novembro de 1975, fez-se necessário um último
acerto, de modo a por fim aos sonhos comunistas da Revolução Portuguesa. O

260
Ver MAXWELL, Kenneth - The making of portuguese democracy. Cambridge, New York,
Melbourne: Cambridge, 1995.

101
Ocidente, atento, interveio no processo democrático português através do “Plano
Callaghan”. 261 Desse modo, com a assinatura do II Pacto MFA-Partidos e com o
sufrágio livre e universal dos centros de poder, deu-se fim à Revolução Portuguesa e
início à implantação da estrutura político- institucional do sistema democrático.
As guerras coloniais e as adaptações democráticas pelas quais passaram Brasil
e Portugal fizeram com que a política atlântica estagnasse por um período. O “retorno
ao atlântico” reapareceu como demanda política luso-brasileira no final da década de
1980 – apesar de Portugal estar interessado na sua integração à Europa, através da
Comunidade Econômica Européia (CEE). O Brasil, por sua vez, preocupava-se com a
estabilidade política, com as relações com os países do chamado “Primeiro Mundo” e
com a aproximação com a América do Sul para a criação de um mercado comum,
dentro das perspectivas de globalização e do neoliberalismo. 262
As profundas dificuldades políticas e econômicas de Portugal pós-25 de Abril e
a má impressão das guerras em solo africano e do passado de isolamento internacional
pela posição colonialista da nação fizeram com que Portugal virasse às costas para o
Atlântico como forma de superação política. Somente em 1990, com a “hora de
regressar à África”, 263 declarada pelo presidente português Mário Soares, Portugal,
integrado à União Européia, percebeu que as opções poderiam ser complementares e
estratégicas em termos de reinserção do país no cenário internacional. 264
Em A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 265 Adriano Moreira, autor
de vários trabalhos sobre o luso-tropicalismo e Portugal, faz uma reflexão pertinente a
respeito dos acontecimentos que sucederam à Revolução dos Cravos de 1974. A
261
Os países europeus demonstraram maior visão política e realismo na análise do problema português:
durante o período 1974-1975, pressionaram as autoridades revolucionárias a concretizarem a promessa de
realizar eleições livres, alertando-as acerca das conseqüências negativas que resultariam da sua não
concretização. Contudo, notou-se alguma divisão nos países europeus: o presidente francês Giscard
d’Estaing partilhava do pessimismo americano sobre o triunfo das forças moderadas; o chanceler alemão
Helmut Schmidt financiava Portugal, através do seu apoio ao Partido Socialista; os britânicos, liderados
por Harold Wilson e James Callaghan, apostavam em ajudar os oponentes do Partido Comunista
Português, nomeadamente o Partido Socialista, com o qual o Labour Party mantinha relações
privilegiadas, ao mesmo tempo em que mantinham abertos os contatos com algumas personalidades de
poder em Portugal.
262
FREIXO, Adriano de. Minha Pátria é a Língua Portuguesa: a construção da idéia da lusofonia em
Portugal. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, p. 50.
263
Ibidem, p. 42.
264
Ibidem. Capítulo 1: A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP: História e Perspectivas.
265
MOREIRA, Adriano (Coord.). Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – Cooperação. Lisboa:
Edições Almedina, 2001.

102
descolonização relativamente caótica, o envolvimento entusiasmado de Portugal no
projeto da integração européia, o trauma das guerras coloniais, as prolongadas e
desastrosas guerras civis que eclodiram em Angola e Moçambique, a situação difícil na
Guiné, em São Tomé e Príncipe e a relação indiferente com o Brasil, sobretudo na
década de 1980, mostraram que o luso-tropicalismo passou por um período de
descrédito. Somente em 1996, com o propósito de estimular a Lusofonia, que deriva
fundamentalmente do luso-tropicalismo de Freyre, foi criada a Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa (CPLP), por liderança do Brasil e de Portugal, mais uma vez
unidos em torno de interesses comuns.
Ainda que o contexto fosse adverso, em 1889, ocorreu a primeira reunião dos
Chefes de Estado e de Governo dos Países de Língua Portuguesa, no Maranhão, que
concebeu concretamente a futura comunidade através do Instituto Internacional de
Língua Portuguesa (IILP). O embaixador José Aparecido de Oliveira, político renomado
no Brasil durante o governo de Itamar Franco (1992-94), foi o principal articulador do
projeto de unificação ortográfica e de uma comunidade da língua portuguesa em Lisboa.
A partir dos esforços do diplomata, ocorreu, em 1994, a Primeira Reunião dos Ministros
das Relações Exteriores e dos Negócios Estrangeiros dos Países de Língua Portuguesa,
na qual foi sugerida a realização de uma Cimeira dos Chefes de Estado e de Governos,
propondo a constituição da Comunidade.
Após sucessivos impasses e negociações, a Cimeira aconteceu em Lisboa, em
Julho de 1996. Nela, os Chefes de Estado e de Governo dos sete países (Portugal,
Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe) que
adotavam o português como idioma oficial, criaram institucionalmente a Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como organização internacional que detinha a
Declaração Constitutiva e Estatutos próprios. Segundo Adriano de Freixo em Minha
Pátria é a Língua Portuguesa: a construção da idéia da lusofonia em Portugal, 266 o
intuito era a emergência de um foro multilateral que proporcionasse uma relação de
cooperação entre os países membros diante das relações internacionais, além de
difundirem projetos de promoção e difusão da língua portuguesa no mundo.

266
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 35. Ver também CPLP. Estatutos da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa. Disponível em: www.cplp.org.

103
O projeto de uma Comunidade Lusófona ou Luso-Afro-Brasileira retomou as
idéias dos intelectuais brasileiros e portugueses de diversos matizes ideológicos e
campos acadêmicos – como Gilberto Freyre, Joaquim Barradas de Carvalho, Adriano
Moreira, Agostinho da Silva e Darcy Ribeiro. Pelo menos desde a década de 1950, tais
idéias ressurgiram constantemente nos discursos luso-brasileiros de integração atlântica.
Cabe ressaltar, contudo, que mesmo constituída a CPLP, observam-se fragilidades em
termos de consolidação entre seus membros. 267 A onipresença da idéia de uma
especificidade lusófona, que rescalda nitidamente do luso-tropicalismo, mantém
paradigmas retóricos de relacionamento entre os três continentes, tornando fraca a
performance política e econômica da Comunidade.
Para Portugal, a CPLP recuperou a língua portuguesa como uma ponte que
resgatou a velha noção de grandeza territorial e de epopéia colonial. O vazio em relação
ao passado e à identidade tornava indispensável recobrar o discurso lusófono. Portugal
readquiria alguma especificidade frente às nações européias, em especial, à Espanha,
com a afirmação da língua portuguesa como a quinta ou sexta língua de expressão
mundial. Dessa maneira, ideologicamente, “a constituição da CPLP passa pelo
discurso calcado na idéia de uma herança cultural comum, enfatizando os laços
históricos que unem os países que a compõem, destacando a questão identitária, na
qual a Língua Portuguesa adquire um papel fundamental”. 268 O reconhecimento da
língua portuguesa a partir de uma comunidade com projeção externa restaurou os laços
modernos de Portugal com o Atlântico e restabeleceu a “consangüinidade” luso-afro-
barsileira tão bem estruturada no luso-tropicalismo.
A CPLP também ofereceu boas oportunidades econômicas a Portugal, já que o
país se apresentava como dependente dentro das trocas estabelecidas com comunidade
européia. O governo português poderia ser intermediário entre a União Européia (UE) e
os blocos regionais dos países lusófonos, como o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e
a Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral (SADCC).

267
Atualmente, a organização conta com o Timor Leste, como oitavo Estado-membro.
268
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 45.

104
Nessa perspectiva, as relações econômicas entre Portugal e os outros Estados-membros
da CPLP se intensificaram.
Contudo, as pretensões portuguesas em relação à CPLP permaneceram na
apelação histórico-retórica, e ultrapassaram as reais capacidades de ação. Afinal, em
relação aos anseios como intermediário atlântico, Portugal esbarrava em suas limitações
no sistema internacional e na UE. Ademais, as potências européias, que também eram
antigas metrópoles, mantinham ligações com o continente africano, exercendo,
inclusive, atração sobre ex-colônias portuguesas. Em outras palavras, a oferta
portuguesa de mediação política em termos práticos tornou-se dispensável dentro das
relações internacionais estabelecidas pelo continente europeu.
Além disso, os demais membros demonstravam desinteresse em relação ao
esforço da concretização efetiva e ao alargamento das propostas para a relevância da
CPLP. A adesão à Comunidade ocorreu mais pela retórica afetiva e histórico-cultural do
que por interesses políticos objetivos. Portugal se projetou para o centro da Comunidade
como “pátria-mãe”, haja vista a utilização do prefixo “luso”, que lhe investe conotação
e caracteriza culturalmente todos os outros membros. No entanto, o Brasil acabaria
exercendo demasiado peso na compleição da CPLP. Além de sintetizar em seu território
a junção dos três povos principais que a compõem, o país possui 80% dos falantes de
língua portuguesa presentes na Comunidade. O Brasil nunca buscou a liderança da
Comunidade, já que a CPLP encontra-se num plano secundário a seus anseios políticos.
Apesar do protagonismo brasileiro na concepção da CPLP, desde o início da
década de 1990 o Brasil abdicou de sua posição mais independente e adotou uma
política externa tendente às relações com o chamado “Primeiro Mundo” e empenhada
na integração latino-americana com o incentivo a criação do Mercosul. Durante a
administração de Fernando Henrique Cardoso, com o alinhamento a uma política
neoliberal, a estratégia de política externa não se alterou, sendo o mundo lusófono
relegado ao plano dos discursos e projetos. Até o governo de Luís Inácio Lula da Silva,
o Brasil manteve-se tímido em termos políticos e econômicos no espaço atlântico com a
África. A ausência de uma política nacional autônoma e mais desvinculada dos
interesses do capital externo fez com que o Estado brasileiro não priorizasse seu papel
no Atlântico sul dentro sistema internacional.

105
Do ponto de vista geopolítico, o Brasil pode vir a estabelecer um desenho
privilegiado com a África do Sul e com Angola, com trocas econômicas e atuação
política privilegiada, sobretudo em aspectos de segurança global. A nova versão da
política externa brasileira vem buscando um assento permanente no Conselho de
Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e para isso formulou uma política
de projeção do Brasil no eixo sul e junto ao G-20, defendendo condições de comércio e
de relações internacionais mais igualitárias entre os hemisférios. Nessa direção, o
desempenho político brasileiro no espaço comunitário da CPLP poderia otimizar as
pretensões da nação. O Itamaraty, contudo, continuou investindo e procurando apoio
junto às relações bilaterais e parcerias pontuais. A política externa brasileira em relação
à África se manteve com a mesma postura anterior:

(...) a política africana no Brasil foi perdendo importância, tendo sido adotada
uma prática de opções seletivas de parceiros naquele continente em que se
destacam a Nigéria, a África do Sul, e secundariamente, Angola. Com isso,
países como Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo
Verde, não representam áreas do Brasil na África, o que esvaziava o papel
que a CPLP poderia representar no âmbito da política externa brasileira. 269

Em relação aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), a


CPLP se revelou inadequada, por diversos fatores: ressentimentos em relação ao
passado colonialista, no qual a Comunidade se transfigura numa tentativa simbólica e
cultural de uma recomposição do “Império Colonial Português”, o que leva a
Comunidade a ser encarada como uma tentativa; realidades políticas instáveis, com
estruturas que se sustentam em democráticas recentes e ainda frágeis; quadros sociais
bastante desiguais, com rendas per capita baixas e índices de desenvolvimento humano
(IDH) muito inferiores, frutos do passado exploratório e das guerras civis. Além disso,
há que se ter em conta a alta dependência do capital externo, a fraca predominância da
língua portuguesa frente à existência de línguas maternas e crioulas e os altos índices de
analfabetismo – além da aliança econômica com países de outras esferas lingüísticas,
como com a anglófona e francófona.
Diante desse panorama, os PALOP se interessam por convênios e
relacionamentos externos que lhes proporcionem, além dos investimentos econômicos
necessários, o possível modelo de resolução dos seus problemas político-sociais. Nesse
aspecto, a CPLP não apresenta nenhuma capacidade influente ou especial, em vista das
relações bilaterais que os PALOP desenvolvem com os países centrais da União

269
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 52.

106
Européia e os Estados Unidos. Provas reais dessa lógica política foram os movimentos
de ingresso de Moçambique e da Guiné, respectivamente, À British Commonweath e à
África Francófona. 270

No sul de Moçambique, por exemplo, o inglês exerce uma forte atração. Na


Guiné-Bissau, o francês ganha terreno graças à televisão. Na terceira cimeira
da francofonia em Dacar (1989) a Guiné-Bissau decidiu fazer do francês a
sua segunda língua oficial, enquanto Angola, de que uma parte do escol
exilado no Zaire fez os seus estudos nessa língua, seguia os debates. 271

A redescoberta do luso-tropicalismo por via de uma comunidade lingüística,


como a CPLP, transmite a impressão de a língua funcionar como instrumento de
expressão e legitimação político-cultural de um Estado. 272 Nesse âmbito, as
contradições existentes nos processos de construção das identidades nacionais,
especialmente, em sociedades pós-coloniais de características multi-étnicas, revelam
que os fundamentos em torno dos argumentos histórico-culturais se fazem
indispensáveis na edificação do consenso social de um país em termos de unidade
política.
Apesar das críticas em relação à lusofonia – considerada um resgate do luso-
tropicalismo que oprimia a África desde os tempos coloniais –, a teoria, no discurso
oficial, funciona como cimento político-cultural inteligível às novas sociedades. Em
outras palavras: a lusofonia funciona como argumentação político-pedagógica, em
termos de reprodução simbólica, que fornece explicações para o entendimento histórico
e identitário entre o Estado e a sociedade.
Os PALOP, contudo, são percebidos como um todo, não sendo levadas suas
especificidades culturais. Muitas vezes, são igualmente classificados e suas
peculiaridades são vistas sob o ângulo do velho antropocentrismo. Exemplo disso é a
questão dos diversos idiomas: em países da Europa como Itália, Espanha e até mesmo
Portugal, existem mais de uma língua ou dialeto, e estes são respeitadas como tal, ao
contrário de quando o caso ocorre na África. O próprio termo “luso-afro-brasileiro”
generaliza as diferenças existentes entre os países africanos de herança portuguesa
Assim, no entender de Adriano Freixo: “Dessa forma, a Comunidade já nasce com um
‘vício de origem’, o do desconhecimento mútuo entre seus membros, o que leva a ser

270
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 57.
271
Ibidem, p. 58.
272
Como foi o caso de Timor Leste, que adotou oficialmente o português e a religião católica, heranças
da colonização portuguesa, como forma de resistência política à assimilação à Indonésia, apesar de tais
opções político-culturais terem se restringido a uma elite política.

107
erigida sobre alicerces pouco sólidos, baseados em discursos por vezes míticos, que
não encontram muita fundamentação na realidade concreta”. 273
Esse “vício” derivaria fundamentalmente da teoria luso-tropicalista, que
distinguia Brasil e Portugal em suas configurações históricas e homogeneizava os
territórios africanos em muitas dimensões. Por tal razão, o luso-tropicalismo teria
servido de forma tão satisfatória à lógica política do colonialismo português. De certa
maneira, a CPLP reproduz a mentalidade do “modo português de estar no mundo” de
inspiração freyriana, que propõe esforços em torno de uma mitologia cultural comum.
Esse imaginário compartilhado de mais de quinhentos anos de história vivida e baseada
numa convivência multirracial e multicultural gerou uma matriz lusitana/lusófona de
ser, na qual o Brasil transfigura-se em expressão central, interligando a geografia do
idioma.
A idéia de lusofonia presente na CPLP é o resgate moderno dos pressupostos
político-culturais do luso-tropicalismo. A CPLP, pó meio da língua, deu corpo
institucional a essa identidade partilhada no triangulo lusófono, buscando alinhar União
Européia (EU), Mercosul e a União Africana (UA) num denominador comum:

A Lusofonia é uma forma de ser e estar peculiar presente em todos os


Continentes – na velha Europa, em África, na Ásia, na Oceania, na América.
Essa Comunidade, tendo uma língua em comum, tem também uma história e
uma cultura comuns resultantes da miscigenação cultural que os portugueses
desenvolveram nos oito países. 274

Gilberto Freyre propunha através da luso-tropicologia, ou mesmo no fomento de


uma comunidade, a integração e o intercambio entre os três continentes articulando
aspectos, políticos, econômicos e culturais:

Político na acepção de uma política de cultura e de uma política de migração


dentro do mundo luso-tropical. No sentido, também, de uma política
econômica. No sentido, ainda, de afirmação ou reafirmação de uma política
de democracia étnica que avigore em todos os membros da comunidade luso-
tropical a resistência aos etnocentrismos vindos de povos vizinhos ou de
minorias étnico culturais que se concentrem dentro da própria comunidade
luso-tropical, em desarmonia com as tradições e sentimentos castiçamente
lusitanos. 275

Embora o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre tenha sido apropriado pela


ideologia colonialista Estado Novo, já discutidas anteriormente, sua essência era
eminentemente cultural. Freyre conseguiu se esquivar de um real comprometimento

273
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 61.
274
MACHADO, Maria Valentina da Silveira “A Hora da Lusofonia e os dez anos da CPLP”. In:
Reflexões Lusófonas. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2008, p. 39.
275
Ibidem, p.37

108
político, pois a propósito das independências africanas buscou apenas instrumentalizar
politicamente o conceito de comunidade luso-tropical. Em um conferencia no Real
Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, em 1962, o sociólogo mostrou-se
sensível às aspirações de independência dos povos de soberania portuguesa,
incentivando:

(...) o contacto mais estreito não com os comunistas soviéticos nem com os
liberais norte-americanos, mas com os brasileiros; só assim poderiam
preparar Angola e Moçambique para se converterem em membros duma
federação de países de língua portuguesa, já que estes povos se sentem mais
inclinados que outros para a democracia racial e social. 276

Demarcando-se dos interesses do colonialismo português, Freyre defendia que


as “constantes lusitanas” criaram afinidades afetivas e culturais que ultrapassavam as
fronteiras simplesmente políticas – ou seja, o intelectual afirmou a vitalidade das suas
idéias para um plano extra-colonial. Por isso, a configuração de comunidade luso-
tropical não excluía a emancipação dos povos das colônias portuguesas; muito pelo
contrário.
As redefinições identitárias pelas quais passaram Brasil, Portugal e os países da
África portuguesa na última década do século XX exigiram renovação da narrativa
histórica que os interligavam inegavelmente. O campo político teve de reinterpretar, de
acordo com o contexto, a mitologia presente na cultura dos povos que se utilizam de um
universo simbólico para dar sentido e legitimar os costumes e as instituições político-
sociais. A nova conjuntura afigurou-se “Exatamente ao mesmo tempo em que os antigos
limites e fronteiras parecem dissolver-se perante o rápido fluxo de idéias, mercadorias
e pessoas, instalou-se uma nova política de identidade que reinscreve, limita e
essencializa os elos entre terras e povos”. 277
Neste sentido, a recuperação das idéias de Gilberto Freyre e o afastamento do
luso-tropicalismo das cargas negativas do salazarismo cederam lugar ao desdobramento
fácil do discurso lusófono e à consolidação de um espaço político da língua portuguesa,
pela constituição da CPLP.

276
CASTELO, Cláudia. “O modo português de estar no mundo”. In: O luso-tropicalismo e a ideologia
colonial portuguesa. (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998, p. 26. Gilberto Freyre ainda
afirmou, em relação às emancipações africanas: “Comunidade luso-brasileira, dizem uns, parecendo não
admitir nessa comunidade senão duas presenças nacionais: a de Portugal e a do Brasil. Comunidade
lusotropical, venho há anos sugerindo que se diga, admitindo que as presenças nacionais passem das
duas que são hoje às três ou às quatro que possam vir a ser brasileiramente, fraternalmente,
josebonifaciamente, amanhã”.
277
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 147.

109
O primeiro instrumento institucional concebido dentro do que seria o espírito da
CPLP – o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) – já estava imbuído dos
ideais luso-tropicais que tentavam enquadrar um grupo identitário comum. O IILP tinha
por objetivos: defender e difundir a língua portuguesa; enriquecer a língua como veículo
de cultura, educação, informação e de acesso ao conhecimento científico e tecnológico;
desenvolver as relações culturais entre os lusófonos; incentivar a cooperação, a pesquisa
e o intercâmbio nos domínios da língua e da cultura; difundir o Acordo Ortográfico.
Nessa senda, as diretrizes, os Estatuto, a Declaração Constitutiva, os Órgãos, os
Interlocutores e as Cimeiras da CPLP ainda refletem as tônicas centrais da teoria luso-
tropicalista, que são utilizadas formalmente e retoricamente nas declarações e nos
documentos oficiais da Comunidade. 278 Os conceitos luso-tropicais de valorização da
especificidade lusófona em integrar raças e culturas como traço comum ainda são
recorrentes e advém nitidamente da teoria freyriana. A partir de um simples quadro,
podem-se visualizar as principais idéias ainda propagadas e compartilhadas pela CPLP e
nos discursos de lusofonia:

Conceito Significado
Iberismo Lusitanopossibilitou estímulo à miscigenação e a especificidade do caráter
português.
Cristianismo Mais cristocêntrico que etnocêntrico, conferiu fraternidade,
Fraternal solidariedade e tolerância.
Modo ou Espírito permitiu capacidade de adaptação, mobilidade, plasticidade e o
Português sucesso nos trópicos. Processos de assimilação e acomodação
ocorreram, permitindo a presença simultânea de traços psico-
sociais e culturais das diferentes raças formadoras.

Democracia Racial a tradição lusa consentiu o encontro e a conciliação dos


antagonismos, construindo civilizações tropicais híbridas e
sociedades etnicamente democráticas.
Luso-descendência reconhecimento de uma unidade psicológica, cultural e de afetos
que proporciona aos portugueses e aos luso-descendentes
expressão e correspondência comum.
Lusitanidade Matriz cultural, complexo identitário que interliga todos os luso-
descendentes acima dos regionalismos.

278
Além das idéias e do próprio nome de Gilberto Freyre, Agostinho da Silva também é freqüentemente
citado nos documentos oficiais como um dos inspiradores da CPLP. “Agostinho da Silva – misto de
educador, filosofo e pensador, considerado como uma espécie de guia espiritual de parte da
intelectualidade brasileira e portuguesa deste século – formulou a concepção de uma ‘Comunidade
Luso-Afro-Brasileira’ bastante original e pessoal refletindo uma visão de caráter universalista, místico,
visionário, espiritualista, mítico e messiânico que remonta aos escritos de Joaquim de Fiore – na Idade
Média – sobre o ‘Reino do Espírito’ e os do Padre Antônio Vieira sobre o ‘Quinto Império’”. FREIXO,
Adriano de. Op. Cit., p. 139.

110
Conforme os novos tempos, os pilares da Comunidade em torno das idéias de
globalização, e de interdependência das relações exteriores reinterpretam a vertente
multiculturalista e multirracialista defendida e divulgada pelo luso-tropicalismo. Assim,
a CPLP defende oficialmente:
» Um consenso político-diplomático no que diz respeito à coordenação de
posições com vistas à promoção de interesses comuns em instituições
internacionais como a ONU ou em foros especializados. A adoção de estratégias
voltadas para o alcance dos objetivos da Comunidade, como a promoção da paz,
a consolidação da democracia, a segurança regional, inclusive a solução
negociada de conflitos internos em países membros;
» A cooperação para o desenvolvimento que inclui iniciativas nas áreas
econômica, comercial, empresarial, da ciência e da tecnologia, da administração
pública, do aperfeiçoamento institucional, da valorização de recursos humanos e
da promoção social. A união propicia para a criação de escalas e facilidades na
mobilização de financiamentos e esquemas de cooperação triangular e
multilateral;
» A defesa e a promoção da língua portuguesa em âmbito universal. Falada por
duzentos milhões de pessoas espalhadas pelo mundo, o idioma constitui a base
sólida para a projeção internacional. Em um mundo globalizado, em processo de
crescente homogeneidade, é igualmente importante a defesa da língua para a
preservação das diferenças culturais e de costumes, diminuindo a ameaça de
empobrecimento cultural da humanidade.

Os dez anos de Comunidade ficaram abaixo das expectativas, no sentido de uma


cooperação cultural e econômica, dinâmica e prática no espaço lusófono. Contudo, a
CPLP desempenhou um papel importante na mediação política e diplomática entre os
seus membros, tendo destaque nas crises políticas da Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe, negociando a paz em Angola e dando visibilidade internacional ao caso em
Timor-Leste. Parece que a retórica luso-tropical, por meio da lusofonia, na
Comunidade, perpetuou a tradição luso-brasileira e até certo ponto luso-tropical, de
insuficiência política em contraposição à habilidade histórico-argumentativa.

111
IV. 3 – Os Discursos Lusófonos e as Políticas Atlânticas

De forma sucinta tentar-se-á enquadrar a análise dos discursos e falas políticas


nas teorias e abordagens teóricas próprias. Com o advento do estudo da lingüística na
identificação dos “jogos de linguagem” dentro da intertextualidade e contextualização,
as maneira de enfocar a problemática das idéias galgaram patamares novos e mais
complexos. 279 Foram também determinantes os avanços realizados em campos como o
da sociolingüística, da semântica, da pragmática discursiva, enunciativa e da teoria da
recepção.
Apurar a vitalidade das idéias políticas e seus significados passa a ser uma tarefa
árdua que requer investigação em profundidade e enquadramento teórico. Quentin
Skinner, Anthony Pagden e John Pocock são as maiores referências nas últimas
décadas, sobre os métodos e conceitos da história das idéias, sobretudo no destaque dos
contextos semânticos. Ressaltaram a importância da linguagem dos discursos e dos seus
mecanismos considerados historicamente para se entender os sentidos da articulação
política.

Neste sentido podemos admitir, como afirma Palmer, que a experiência


hermenêutica deve ser conduzida pelo texto, porque o texto não se identifica
totalmente com um parceiro em dialogo, porque temos que o ajudar a falar,
necessidade que acarreta a dificuldade peculiar: a necessidade de sentir a
exigência objetiva do texto naquilo que ele tem de plenamente outro, sem
fazer dele um mero objeto para a nossa subjetividade. Temos que perceber a
tarefa da interpretação, não essencialmente como análise – pois transformaria
o texto em objeto – mas como ‘compreensão’. É o processo de decifração,
esta compreensão do significado de uma obra, o ponto central da
hermenêutica. 280
281
O trabalho de Jonh Pocock sobre a história da fala e do discurso oferece bons
instrumentos de análise. A partir das interações entre langue e parole, o autor indica que
o estudo do discurso político implica no exame dos fatos históricos que o sustentam,
pois este é o substrato fundamental para percebermos os discursos como ações e reações
de um tempo político. A língua centra-se no contexto lingüístico e a fala no modo pelo
qual um sujeito se apropria da langue – seja para reafirmá-la ou para inová-la. Portanto,
a interpretação de um texto político não pode resignar-se numa leitura

279
FALCON, F. R. “História das Idéias” In: CARDOSO, C. F. & VAINFAS, R. Domínios da história:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 95.
280
SARMENTO, Cristina Montalvão. Os Guardiões dos Sonhos: Teorias e Práticas Políticas dos Anos
60. Lisboa: Colibri, 2008. p. 64.
281
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003.

112
hermeneuticamente vertical ou literal, mas em uma leitura dos contextos pelos quais os
discursos foram motivados e realizados, buscando a percepção densa das circunstâncias
que geraram seus modos de argumentação.
Para o historiador britânico, o investigador que recorre aos discursos políticos
deve esforçar-se para analisar a retórica, seu conteúdo afetivo e efetivo, e para decifrar a
gramática profunda disposta – ou seja, os termos básicos e recorrentes, as ocasiões
típicas em que foram empregados, e o modo pelo qual se complementaram e
conjugaram para formar as idéias a serem propagadas, reconhecidas e acolhidas. Em sua
palavras:

Pode-se aprender muito sobre a cultura política de uma determinada


sociedade nos diversos momentos de sua história, observando-se que
linguagens assim originadas foram sancionadas como legítimas integrantes
do universo do discurso público, e que tipos de intelligentsia ou profissões
adquiriram autoridade no controle desse discurso. Mas serão encontradas
outras linguagens, cujo caráter é mais retórico do que institucional. Será
possível perceber que elas se originaram como modos de argumentação no
interior do próprio processo evolutivo do discurso político, como novos
modos inventados, ou como velhos modos transformados pela constante ação
da fala sobre a língua, da parole sobre a langue. 282

Em paralelo, Skinner sublinha o caráter performático da linguagem. Julga


necessário defrontar os vocabulários políticos e sociais de determinado período
histórico para tornar possível situar os textos nos seus campos específicos de ação e de
atividade intelectual. A exigência de uma contextualização rigorosa, dentro das
fronteiras temporais e locais, reside no fato dos usuários da linguagem não se limitarem
a explanar verbalmente ou por escrito, mas, na prática, discutirem, interpelarem e
replicarem sua biografia coletiva através dos “speech acts”. 283 Os atos de fala precedem
respostas, com elocuções que são modificadas à medida que se tornam perlocuções, que
geram novos atos de fala e de textos em resposta que formalizam uma cultura política.
Por outro lado, questionar somente as intenções do autor de um discurso ou texto
é tornar-se prisioneiro de um círculo hermenêutico, 284 pois o autor habita num mundo
historicamente determinado, apreensível pelas verbalizações historicamente construídas,
onde as idéias existem na iminência da linguagem independentemente dos intentos e
oportunidades políticas. Isso, de alguma forma, sugere reduzir o autor a um mero porta-

282
POCOCK, John. Op. Cit., p. 31.
283
FALCON, F. R. Op. Cit., p. 97.
284
POCOCK, John. Op. Cit., p. 27.

113
voz de sua própria linguagem. “A performance do texto é a sua performance como
parole em um contexto de langue”. 285
Esta “fala” singular é proferida numa “língua” comum, que define os limites dos
enunciados possíveis, num dado momento e para certo grupo de receptores. A
linguagem, no sentido aqui usado, não é apenas uma maneira de falar prescrita, mas
também um tema de debate circunscrito para o discurso político. Neste ponto, podemos
ver que cada contexto lingüístico indica um contexto político, social ou histórico no
interior do qual a própria linguagem se estabelece e interage com a experiência
fornecendo as categorias, a gramática e a mentalidade por meio das quais a vivência tem
que ser percebida e dialogada. A linguagem política não é inocente, na medida em que
se estrutura nas representações do público a que se dirige e pertence, ao mesmo tempo
que, por um processo circular, dele resulta.
Na arena política desenvolvem-se pressões e encorajamentos que condicionam
os lances discursivos do interlocutor. A expressão “lance” sugere manobra tática, 286
pois, na prática, o autor percebe a atmosfera e encontra os argumentos lingüísticos
satisfatórios para a defesa, legitimação ou invalidação das idéias políticas. O discurso
político certamente se mostra objetivo e animado pelas necessidades do presente,
impelindo à procura pelos os indícios de que as palavras estariam sendo usadas de
outras formas como resultado das novas experiências.
As investigações sobre idéias em forma de discursos e textos devem se calcar
em dois segmentos: nos contextos em que a linguagem foi articulada e nos dos atos de
fala e de enunciação efetuados sobre o contexto oferecido pela própria linguagem. Por
isso, quanto mais provas puderem-se mobilizar para testar e confrontar as hipóteses aqui
levantadas, maios segurança há da engenhosidade interpretativa. A presente análise está
alicerçada num tipo de paralinguagem, ou metalinguagem, 287 como numa espécie de
diálogo que visará captar o implícito, as insinuações e potencialidades políticas do
discurso, numa metodologia indutiva e semiótica.

A análise do discurso assim concebido pode efetuar-se pela semântica, teoria


do conteúdo das significações ou, como agora passou a preferir-se, estudo
das mencionadas significações que seja ao mesmo tempo gerativo
(investimentos sucessivos de sentido em patamares diferentes), sintagmático
(e não unicamente classificatório) e geral (não atado com exclusividade a um
único sistema significante); ou pela semiótica, que se ocupa da expressão das

285
POCOCK, John. Op. Cit., p. 38.
286
Ibidem, p. 39.
287
Ibidem, p. 35.

114
significações e de sua produção, em outras palavras, em especificar como se
chega a significar alguma coisa. 288

Podem-se enfocar quatro governos centrais, já nos contextos democráticos de


Brasil e Portugal, para averiguar, por meio dos discursos, o modo como a língua
portuguesa e a cultura lusófona servem como bandeira política dentro dos conceitos
luso-tropicais de unidade e diversidade no Atlântico Sul. As chefias escolhidas foram as
de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva, Mário Soares e Jorge
Sampaio – governantes que, imbuídos do designo da lusofonia, reconduziram suas
políticas externas depois de findos os tempos do colonialismo e da abertura à pertinente
“crítica da razão lusófona ou luso-tropical”.
As unificações dos países e as construções dos Estados nacionais na África
perpassaram pela afirmação e tutela deste espaço lusófono peculiar e diferenciado. A
defesa política deu-se no sentido de que, por meio do português como idioma, motor da
comunidade ou civilização atlântica, os países de presença e herança lusitana puderam
veicular, na posição geolinguística que ocupam, a sua própria cultura como legítima
afirmação internacional.
Na época das eleições do Primeiro Governo Constitucional em Portugal, do qual
Mário Soares foi Primeiro Ministro, o embaixador português no Brasil, Vasco Futsher
Pereira, em entrevista ao Jornal do Brasil, condenou a antiga postura do Governo
Português em exigir fidelidade do Brasil na persistência colonialista e exaltou o papel
do Brasil no desenvolvimento das relações com os novos países independentes na
África. O embaixador ainda deu ênfase ao caráter único e especifico das relações luso-
brasileiras, capazes de superar os contenciosos superficiais e reativar os laços históricos
profundos existentes entre as duas nações. Questionado sobre o futuro das relações entre
Brasil e Portugal numa nova fase, o diplomata respondeu o seguinte:

Só poderei responder – responder o óbvio: Portugal e o Brasil têm no seu


comum patrimônio histórico, cultural e humano, uma sólida base de
convergência e interesses que sempre tenderá a aproximar os dois povos, a
despeito de qualquer dificuldade de ordem conjuntural. 289

Interrogado sobre como a descolonização afastou a presença portuguesa na


África e circunscreveu Portugal à sua dimensão européia, o embaixador manifestou que
a política externa portuguesa deveria manter sua vertente Atlântica apoiada na relação
privilegiada com o Brasil:
288
CARDOSO, C. F. e VAINFAS, R. “História e Análise de Textos”. In: Domínios da história: ensaios
de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 377.
289
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXVI. nº 17. 25/04/76. p. 14 e 15.

115
Fomos sempre principalmente pela geografia, pela cultura e pela história, um
país europeu. Mas também somos um país Atlântico, e teremos de continuar
a sê-lo: a isso nos obriga a circunstancia de no Atlântico estarem situados
territórios portugueses como a Madeira e os Açores, partes integrantes da
nação; a isto nos obriga a necessidade imperiosa de mantermos as melhores
possíveis relações com os novos Estados de língua portuguesa virados para
esse oceano. Ora, neste contexto, e para lá de outras razões, a determiná-lo, o
Brasil – a grande nação do Atlântico Sul – não pode deixar de desempenhar
no quadro da política externa portuguesa um papel de importância
fundamental. 290

As palavras do diplomata português transmitem a nítida impressão de como a


conjuntura de transição impunha aos dois países uma nova política de cooperação
atlântica e de relacionamento triangular que revitalizasse os vínculos culturais, em
especial, a língua e história comuns. Sobre a descolonização, a situação interna e
externa de Portugal e a nova atuação na África – a exemplo de outros países de passado
colonizador, como França e Inglaterra – o, embaixador proferiu a seguinte opinião:

A descolonização portuguesa deu-se num quadro internacional e nacional


extremamente desfavorável. Enquanto outros países, bem mais poderosos que
nós, souberam a tempo, e inegável sentido do curso da história, proceder nas
suas colônias a uma gradual transferência de poderes que lhes permitiu
acautelar importantes e legítimos interesses nacionais e assegurar a
permanência de largos contingentes de nacionais nos novos Estados que iam
se criando, Portugal manteve-se ligado, mais uma vez na sua história, à
defesa de um mito: o da possibilidade de conservar um império colonial que
– a despeito das nossas declaradas intenções de o integrarmos na nação
portuguesa sem qualquer discriminação regional, política ou étnica, nunca
afinal deixara de ser um conjunto de possessões ultramarinas com todos os
estigmas do colonialismo. Tal atitude foi conduzindo o país a um crescente
isolamento internacional, criando-lhe problemas de caráter social e humano
muito graves, e ocultando – através de um crescimento econômico que em
certa medida as próprias guerras coloniais facilitaram – as graves
contradições e o arcaísmo de uma estrutura social e política incapaz de fazer
frente ao desafio da história. 291

Durante a presidência de Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1986-96), político


de imagem equilibrada e apaziguadora, houve a necessidade de se conciliar o projeto de
integração portuguesa à Europa a ligação histórica atlântica. Os laços com o Brasil
foram reavivados e a estratégia lusófona, trilhada. O então presidente defendia que
Portugal poderia oferecer, à comunidade européia, o seu conhecimento, há muitos
séculos desenvolvidos, nas questões relativas à África e à América Latina. E ao Brasil,
pela parceria atlântica, a possibilidade de participar no Mercado Comum Europeu,
através de Portugal. Tudo isso, é claro, em troca de um projeto de estabilidade política e
econômica. Mário Soares, em sua chegada ao Brasil a propósito de uma visita

290
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano LXXXVI. nº 17. 25/04/76. p. 14 e 15.
291
Idem.

116
presidencial em 1987, demonstra que esta retórica histórica permaneceu nos discursos
políticos entre Brasil e Portugal, como prova dessa cultura política luso-brasileira que se
traduz luso-tropical.

Não foi por acaso que Camões escreveu Lusíadas. A epopéia portuguesa não
é um fato apenas literário – e o Brasil é um dos resultados do seu impetuoso
desenrolar. O mesmo Brasil é testemunha de que a expansão de Portugal não
foi uma arrancada cega, visando exclusivamente o lucro. A América
portuguesa manteve uma integridade física e geográfica que foi negada à
América espanhola. Também agora não devemos olhar apenas o lucro –
medido pela balança comercial. A relação Brasil-Portugal há muito que saiu
do estágio de conflitante (que, aliás, não durou). O que resta a fazer é tirar
partido de uma comunidade de língua e cultura que está representada até
mesmo na longínqua Ásia – e mesmo nos locais, como Goa, onde se
procurou extingui-la pela força. 292

As palavras de Mário Soares denotam “o modo português de ser”, em que o


Brasil, mais uma vez, constitui a grande prova desta “capacidade histórica de ser” que
possibilitou características constantes em ação nos quatro cantos do mundo. Ademais,
como tão bem ensinava Gilberto Freyre em suas obras, o presidente português fez
questão de salientar a unidade territorial e cultural do Brasil como resultado da
colonização lusa, ao contrario da espanhola. O trecho que segue demonstra a
ressonância das idéias luso-tropicais que são legitimadoras do relacionamento estreito
que une o Brasil a Portugal:

O Brasil nasce de Portugal na mais importante transição da História do


mundo moderno, a Era dos Descobrimentos. Camões traduziu n’Os Lusíadas
a gênese puramente lusitana dessa transição. O Brasil e Os Lusíadas são a
criação de um mesmo espírito nacional. Pela ação de Portugal, rapidamente
formamos um mundo criado a sua imagem e semelhança, mas marcado por
traços de personalidade próprios. Fomos co-participantes de uma História
comum construída ao longo de trezentos anos de regime colonial. Nossa
independência for particular, em contraste com a porção hispânica da
América, que rompeu abruptamente os laços com a antiga metrópole e
dividiu-se por força dos localismos, em diversos países. De Portugal
herdamos também, além da língua, História e cultura comuns, três
patrimônios fundamentais: a mestiçagem, que no Brasil gerou uma sociedade
aberta e universal, em que convivem em harmonia, junto à base luso-afro-
brasileira, culturas vindas de todo o mundo: a unidade territorial, produto, em
grande medida, da capacidade aglutinadora da administração colonial
portuguesa: e o patrimônio diplomático de fronteiras praticamente definidas,
ainda durante a colônia, pela habilidade, sensibilidade e sabedoria da
diplomacia portuguesa. 293

A recuperação do luso-tropicalismo não tardaria de acontecer, por intermédio de


uma instituição que ligasse política e culturalmente Brasil, Portugal e África, frente às
redefinições estratégicas em escala global que se articulavam. Assim, Mário Soares

292
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano XCVI. nº 346. 24/03/87. p. 10.
293
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano CVI. nº 101. 24/03/87. p. 6.

117
manifestou-se sobre o luso-tropicalismo, no Recife, em 1987, dizendo numa mensagem
pessoal que: “(...) a teoria foi mal aproveitada no tempo do antigo regime, mas
justamente eu quis demonstrar que a obra de Gilberto Freyre era admirada em
Portugal, não só por aqueles que eram partidários do colonialismo, como pelo
Portugal livre, democrático e moderno que eu represento”. 294 Em entrevista ao Jornal
de Brasília, em 30 de janeiro de 2000, o presidente português declarou

(...) ter encontrado casualmente Gilberto Freyre em Lisboa e haver-lhe


pessoalmente declarado: ‘Li seus livros. Agora, não lhe perdôo. Desculpe que
lhe diga, o senhor ter apoiado Salazar. Um homem da sua categoria!’ Em
seguida Mário Soares reconhece: “Agora, passados os anos e lendo
novamente Gilberto Freyre, abstraindo Salazar e as guerras coloniais, aquilo
que ele disse é verdadeiro. Aquilo que ele disse sobre o luso-tropicalismo é
verdadeiro, é uma cultura própria e temos que desenvolve-la no futuro”. 295

No Brasil, Fernando Henrique Cardoso, presidente entre 1995 e 2002,


consolidou a democracia política, já prefigurada na década de 1990. Renovando a
imagem externa do Brasil, o presidente buscou, através do estímulo ao Mercado
Comum do Sul (Mercosul), maior projeção da nação na América do Sul, além de um
alinhamento com os países desenvolvidos com abertura ao capital estrangeiro e
privatizações de empresas estatais. Apesar da criação da CPLP ter se instituído durante
o seu governo, as iniciativas em relação ao continente africano e o Atlântico foram
somente ensaios políticos do que o Brasil poderia vir a exercer. Em outras palavras,
pairaram no plano das afirmações históricas e das ontologias culturais baseadas no luso-
tropicalismo, homologando as velhas práticas retóricas das relações luso-brasileiras.
Em 2000, Brasil e Portugal comemoram quinhentos anos de história em comum,
pelo quinto centenário do descobrimento do Brasil (1500-2000). Ao longo das várias
iniciativas para as comemorações, os discursos e as justificativas simbólicas recobraram
o luso-tropicalismo com transposições evidentes dos conceitos freyrianos. É
interessante, nesse sentido, observar o diálogo entre os presidentes português, Jorge
Fernando Branco de Sampaio (1996-2006), e brasileiro, Fernando Henrique Cardoso,
nos discursos proferidos pela partida do Cruzeiro Oceânico Comemorativo de Pedro
Álvares Cabral, em oito de Março de 2000, em Lisboa. Jorge Sampaio afirmou:

A nossa aposta no Brasil significa, para o Estado Português, mas também


para nossa sociedade civil e para os nossos investigadores, a profunda
confiança que temos no Brasil. Nós acreditamos no Brasil: não é já a

294
CASTELO, Cláudia. Op. Cit., p. 14.
295
FREIXO, Adriano de. Op. Cit., p. 180. Grifos meus.

118
costumada retórica dos afetos que o diz, mas a fria expressão numérica das
realidades econômicas. 296

Dirigindo-se a Sampaio, Cardoso respondeu:

Sua presença entre nós, nesta hora tão marcante de nossa vida nacional,
simboliza tudo aquilo que Portugal representa para o Brasil para os
brasileiros, na origem histórica, na cultura, na língua e, mais do que isso, nos
laços indissolúveis de uma amizade que é única. 297

O presidente brasileiro salientou, também, que o Brasil, apesar das outras


influencias, tinha essencialmente sua “matriz cultural portuguesa” e que, por essa via,
herdou “a plasticidade”; a mobilidade dos portugueses que, apoiados numa Europa de
valores democráticos e humanistas, compartilhavam uma nova era. Fernando Cardoso
considerava ainda que a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) era “um
instrumento essencial de cooperação para garantir a igualdade entre os povos e a
soberania, num compromisso de fraternidade e solidariedade”. 298 Nessa senda, Brasil e
Portugal, em conjunções democráticas e inseridos em suas frentes regionais, serviam de
espelho político e cultural para a África, em especial a portuguesa, onde
compartilhavam mesma história, mesma origem e um passado comum.
A ressonancia das idéias luso-tropicais no relacionamento político-cultural entre
Brasil e Portugal projetaram-se para o espaço atlântico através da criação da lusofonia e
da CPLP. Os países lusófonos aderiram essa concepção política e cultural em torno da
língua pelos interesses nacionais que lhes convinham. Nessa direção, as palavras do
presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, ao receber o ex-presidente do Brasil,
Fernando Henrique Cardoso, por ocasião de uma de suas visitas a Luanda, merecem
atenção:

Angola e Brasil são parte integrante de uma Comunidade de Países de Língua


Portuguesa, espalhados por quatro continentes (...). Nunca é demais valorizar
estes laços orgânicos, que nos permitem enfrentar com renovado vigor o
potencial de agressão industrial, financeiro ou cultural fomentada por grupos
econômicos, políticos ou militares ligados a interesses nacionais ou
multinacionais. É nesse processo de defesa, afirmação e reconhecimento de
nós próprios que encontramos aquilo que nos une e distingue dos outros
povos e países. Muitas vezes não damos valor a riqueza que temos ao pé da
porta, preferindo alimentar ilusões e angústias sobre o presente e o futuro, em
lugar de explorarmos as virtualidades do que já possuímos e enriquecermos
os legados históricos e culturais que temos para administrar. 299

296
CASTRO, Zília Osório de; SILVA, Júlio Rodrigues da & SARMENTO, Cristina Montalvão (ed.).
Tratados do Atlântico Sul (Portugal-Brasil, 1825-2000). Lisboa: Instituto Diplomático, 2006, p. 309.
297
Idem.
298
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Ano CXII. nº 220. 14/11/02. p. 5.
299
MALHEIRO, Afonso. “Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: formação e objectivos”. In: A
CPLP: DOSSIER ESPECIAL, Revista Politica Internacional, nº 13, Out/Inverno 1996. p. 32.

119
A adoção do português como idioma pelos outros seis países da CPLP
justificou-se por razões históricas, para as quais existiu sensibilidade e identificação, e
também por pretextos sócio-culturais, buscando, por meio do idioma, a união de etnias.
Foi assim nos casos africanos e no episódio em Timor: uma individualidade político-
patriótica a nível externo. A língua portuguesa investiu de identidade política e cultural
os países que dela partilham, consolidando imagem e representatividade condigna nos
organismos internacionais.
Nessa geopolítica da lusofonia, o Brasil tem papel central, não somente no setor
econômico, mas também nos setores político e cultural. O país, por seu peso especifico
no eixo sul e pelo pendor universalista de suas história e cultura, vem despertando, no
palco internacional, grandes expectativas e confiança. As mudanças mais significativas
na postura externa do Brasil em relação à África vieram, sobretudo, durante o governo
Lula, com a implantação prática da diplomacia regional (Unasul) e da orientação Sul-
Sul (África, em especial Austral, e o G3 – Brasil, África do Sul e Índia).
Luís Inácio Lula da Silva, como figura política do Brasil na década de 1980,
disputou algumas eleições presidências sempre com uma linha muito segura e
demarcada pelo seu passado humilde, que se fundiu com sua trajetória política de
fundação do PT (Partido dos Trabalhadores). Eleito em 2002 e com mandato renovado
até 2010, o presidente buscou freqüentemente em seus discursos se identificar com as
classes sociais baixas recorrendo a sua própria história e fazendo apelo aos
trabalhadores. Segundo Lula, em sua pagina oficial na internet, a vitória eleitoral de
2002 representou uma evolução política do Brasil, pois a esquerda brasileira formulou
alternativas políticas que o povo brasileiro amadurecido soube captar. Para o governo,
as eleições de Lula representaram desenvolvimento democrático para o Brasil, pois a
nação se reconheceu através do seu povo e da mobilização eleitoral, e traduziu isso
politicamente nas urnas. 300
Em relação à política externa, o governo Lula conduziu projetou no estrangeiro a
mesma imagem política veiculada internamente, ou seja, uma imagem carismática e
popularizada. Do ponto de vista da legitimação política da ação diplomática, grande
parte do discurso governamental, não apenas nessa área, mas principalmente nessa
vertente, tem se dedicado a enfatizar as diferenças em relação às posições e políticas do
governo anterior, geralmente para ressaltar rupturas e evidenciar a nova postura

300
MALHEIRO, Afonso. Op. Cit., p. 15.

120
governamental. A diplomacia do governo Lula já foi chamada de “ativa e altiva” por
seu próprio chanceler, o embaixador Celso Amorim. Certamente, tal política externa
trouxe a marca de um ativismo exemplar, evidenciado em dezenas de viagens e visitas
bilaterais do chefe de governo e seu chanceler, além da intensa participação, executiva e
técnica, em quase todos os foros relevantes abertos ao engenho e arte da diplomacia
brasileira, conhecida por ser extremamente profissional e bem preparada
substantivamente. 301
A maior parte das novas iniciativas se situou na vertente das negociações
comerciais internacionais e na busca de uma ativa coordenação política com atores
relevantes da política mundial, geralmente parceiros independentes no mundo em
desenvolvimento, com destaque para a Índia, a África do Sul e a China, ademais dos
países vizinhos da América do Sul. Do ponto de vista do conteúdo, a diplomacia do
governo Lula apresenta uma postura mais assertiva, mais enfática em torno da chamada
defesa da soberania da pátria e dos interesses nacionais, assim como de busca de
alianças privilegiadas no eixo Sul. 302
Porém, em seus discursos em relação à África e ao espaço lusófono, Lula
conserva a retórica luso-tropical, mantendo a cultura política luso-brasileira de
recorrência à história comum que interliga o triangulo Atlântico. Na celebração do
centenário da morte do escritor Machado de Assis, e na cerimônia da assinatura do
decreto que aprovara as mudanças ortográficas, o presidente exaltou a figura de
Machado: um escritor “mulato” representante dessa união indissolúvel entre Brasil,
Portugal e África. Nesse sentido, o escritor seria considerado um patrimônio da língua
portuguesa, compartilhado por oito países, por meio da CPLP. Na Academia Brasileira
de Letras (ABL), Lula defendeu que as mudanças ortográficas aproximam o mundo
lusófono e recordam suas raízes históricas. Ele mesmo sustentou a tese de que as
mudanças aproximam e recordam: “Quero destacar o imprescindível resgate dos
nossos laços substantivos com a África, em particular com a África de língua
portuguesa, que para nós representa mais, muito mais do que uma prioridade
geopolítica. Diz respeito à nossa alma, à nossa identidade como nação multiétnica e
multicultural, ao próprio destino da civilização brasileira”.

301
MALHEIRO, Afonso. Op. Cit., p. 15.
302
SARAIVA, José Flávio Sombra.2008, “A África na ordem internacional do século XXI: mudanças
epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?” Rev. bras. polít. int., v. 51, n. 1, pp. 87-104. p. 90.

121
No novo contexto de atuação do Estado brasileiro, Lula tomou a iniciativa de
criar uma universidade da língua portuguesa, que funcionaria com a Universidade da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ou ainda Universidade Federal de
Integração Luso-Afrobrasileira, a fim de agregar o espaço lusófono. Segundo o
Secretário de Ensino Superior do Ministério da Educação do Brasil, Ronaldo Mota, a
língua portuguesa será o estandarte da nova universidade que visará integrar os oito
membros da CPLP – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,
Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
O Brasil pretende aproveitar seus recursos e sua dimensão como maior país de
língua portuguesa, para a formação de professores e nas áreas das Ciências da Saúde,
Física, Biologia, Engenharia, Tecnologia, Administração e Agronomia, em que os
países africanos têm mais interesse. Para Ronaldo Mota, o projeto da universidade da
língua portuguesa está inteiramente voltado para África e o Governo previu o início de
seu funcionamento em 2010, com capacidade para 10 mil estudantes. A cidade de
Fortaleza, capital do Estado do Ceará, foi escolhida para sediar universidade-sede, em
virtude da sua localização geográfica privilegiada – o lugar mais próximo entre Brasil,
Portugal e África – e do seu valor simbólico: a primeira região brasileira a ter abolido a
escravatura.
É importante ressaltar que a recente política externa brasileira tem buscado
destacar o país em suas duas principais frentes: América do Sul e África. E nesse
sentido, a nova universidade será a segunda criada pelo atual Governo brasileiro com o
objetivo de integrar o Brasil a outras nações. A primeira, anunciada em 2007, começou
a funcionar em 2008: chama-se Universidade Latino-Americana, construída em Foz do
Iguaçu, na Tríplice Fronteira; ponto de encontro entre Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai. O fato de essa política ter sido somente aprovada, e não ainda aplicada
dificulta a aplicação estrita de algum modelo de estudo das políticas públicas.
A partir dos pressupostos apresentados, que procuram descortinar o ideário, as
narrativas que dão forma ao discurso legitimador e às motivações dos atores nas suas
dimensões política, simbólica, ideológica, considera-se que a criação da universidade da
língua portuguesa culminou num processo socialmente mobilizado pelos atos públicos
do governo Lula. Tal processo envolve uma multiplicidade de atores e perspectivas
futuras que projetam o Brasil para a persecução de políticas públicas em setores
estrategicamente identificados e salvaguardados por sua política externa.

122
A Língua – como expressão político-cultural de um grupo – capacita a
unificação, em sentimentos, de um povo, do território de um país, a construção de um
Estado e a afirmação de um espaço. Gilberto Freyre já explicava e anunciava a
peculiaridade desse grupo lusófono, que pela língua e pela cultura de herança
portuguesa se particularizava, com características políticas, sociais e culturais
especificas. Nesse sentido, os pressupostos luso-tropicais se corporificaram através da
criação institucional da CPLP.
Mais do que uma tradição retórica e histórica, a lusofonia é uma questão de
estratégia geopolítica para Brasil e Portugal. A reativação do triângulo atlântico Brasil-
África-Portugal só foi possível porque, de alguma forma, no campo da tradição, das
mentalidades e da cultura política, todos os vértices comungam das idéias luso-tropicais
como a melhor forma de se identificarem nacionalmente e dentro de uma comunidade
que partilha a língua portuguesa. Por isso, as transformações que ocorreram permitiam
atualizar historicamente os valores do luso-tropicalismo, numa nova relação dotada de
significados condizentes com a cultura política luso-brasileira ou luso-tropical e com as
novas demandas políticas do quadro internacional renovado.

123
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O luso-tropicalismo acomodou-se no imaginário e na linguagem próprios da


cultura política luso-brasileira como reflexo de uma mentalidade secularmente
construída em torno da defesa de uma identidade e de uma comunidade comuns. O
Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, assinado por Brasil e Portugal em 1953, e
a criação institucional da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em
1996 – como organismo internacional que congrega os povos e culturas de herança
lusitana –, são demonstrações políticas claras dessa cultura política luso-brasileira. E
esta pode ser lida e entendida como luso-tropical, de alguma forma tributária dos
estudos de Gilberto Freyre.
É consenso entre os estudiosos de Gilberto Freyre que Casa-Grande & Senzala
seria a “raiz” de seu pensamento sociológico, e seus demais trabalhos, “galhos
frondosos” que constituiriam o seu prolongamento. No entanto, a leitura de Freyre
presta-se a uma nova interpretação. Por isso, ainda que o autor retome as mesmas
questões, não se pode classificar sua obra como cíclica. Trabalhando com a noção de
tempo “tríbio” – ou seja, colocando no mesmo plano de ação passado, presente e futuro
–, Gilberto Freyre provocou um instigante jogo de interseção entre os conteúdos de seus
textos, o que gerou uma auto-atualização e evolução dos seus escritos. De forma
inesperada, Casa-Grande & Senzala atrelou o Brasil a Portugal por meio de uma
apresentação e de uma amarração histórico-sociológica que explicavam as inegáveis
raízes existentes entre os dois países desde os tempos coloniais. O conteúdo da obra
viabilizou e sedimentou, mesmo nas reviravoltas conjunturais, o desenvolvimento do
relacionamento político e cultural das duas nações.
A crítica de que a teoria luso-tropical criou condições para a instrumentalização
do espírito português enquanto ideologia política é viável. Para a historiadora
portuguesa Claudia Castelo, o luso-tropicalismo seria uma teoria calcada em uma
imagem essencialista do povo lusíada que serviu para os interesses políticos-ideológicos
do Estado Novo, contribuindo, por exemplo, para perpetuar uma imagem mítica da
identidade portuguesa. Por outro lado, segundo Rachel de Rezende Miranda, Freyre
avalia a mestiçagem luso-tropical numa perspectiva diferente da “cromática”. Assim, as
influências culturais e étnicas do mestiço, incluindo as do próprio português nascido na
península Ibérica, não se fundem ao ponto de ganharem uma forma definida. A

124
diferenciação do português está, ao contrário, justamente na falta de essência. Por essa
razão, seria um grande equívoco classificar a imagem que Freyre traça do povo
português como essencialista.
A hipótese do historiador brasileiro Adriano Freixo se coaduna com a de
Castelo. O luso-tropicalismo teria criado toda uma estrutura simbólica, tanto de
projeção para o passado quanto para o futuro, necessária às recriações e ressignificações
míticas imperiais portuguesas. Assim, nos momentos de redefinição identitária pelos
quais passou Portugal, em especial no século XX, a pátria camoniana, amparada pelos
intelectuais, recorreu à tônica luso-tropical de valorização da história.
Ainda persistem as críticas sobre o ofuscamento das idéias luso-tropicais em
relação aos mecanismos de dominação e os preconceitos raciais até hoje vivenciados. O
luso-tropicalismo é acusado de ter criado o mito da “democracia racial” para as
sociedades atlânticas e miscigenadas. Seria o fortalecimento de um sistema ideológico
no qual o sentido lusitano é respaldado, e onde se veicula a noção de cultura brasileira
como a mais condizente com os trópicos e com as sociedades de passado colonial.
Nesse sentido, as argumentações de Eduardo Lourenço – identificando a
lusofonia como uma tentativa do “Império Revisitado” que através do espaço lingüístico
e do lusocentrismo tentam recobrar o domínio imperial – aliadas às de Alfredo
Margarido – evidenciando as contradições e limites deste projeto político-cultural em
torno da língua como um resgate de uma portugalidade saudosista e acrítica – revelam
as vozes dissonantes da lusofonia. A transposição do luso-tropicalismo para a lusofonia
fundamentou-se na idéia de “projeto Atlântico” como espaço da língua portuguesa, com
inspiração em Agostinho da Silva. Mas na reconfiguração de uma Comunidade Luso-
Afro-Brasileira, a arquitetura de Freyre foi remontada, pois o Brasil representa o futuro
e o passado de Portugal e o reflexo permanente para a África neste triangulo histórico
luso-tropical incontornável.
Desde a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, abriu-se a
possibilidade de o Brasil assumir a liderança do eixo triangular atlântico de expressão
portuguesa. Contudo, o país não tem demonstrado interesse e empenho em consolidar o
comando da Comunidade, investindo esforços em outras alianças internacionais e em
cooperações bilaterais. Espera-se que o Brasil, com sua atual postura externa mais
autônoma, associada ao seu peso demográfico – o maior Estado territorial dentre os
membros – e no contexto de estabilidade política e social vivido, assuma o

125
protagonismo e invista presença política e econômica, buscando maior destaque para
CPLP no âmbito internacional.
Por outro lado, Portugal sente-se como a “pátria mãe”; dono da língua e da
cultura que dão expressão à Comunidade, já que a CPLP advém da continuidade de “um
modo português de estar no mundo”. Sendo assim, admitiria uma liderança
compartilhada com o Brasil, baseada na relação político-afetiva única cultivada nas
relações luso-brasileiras.
Entre Brasil e Portugal, solidifica-se certa indiferença e desconhecimento mútuo
que impedem a complementaridade das ações políticas e econômicas em relação ao
espaço lusófono. A língua e história partilhadas dão a falsa sensação de identidade entre
os dois países, perdurando os velhos estereótipos e preconceitos sócio-culturais. E nessa
senda, faz-se necessário, na atual conjuntura, aprofundar-se o conhecimento das novas
realidades para a mudança dos paradigmas políticos e culturais entre os dois países para
a validade dos preceitos da lusofonia.
Os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), por razões ligadas
às feridas do passado colonial, depositam confiança e simpatia no Brasil para a
liderança da CPLP, em virtude da identificação étnico-histórica. De fato, a mestiçagem
como característica marcante e particular da sociedade brasileira passou a ser a
verdadeira imagem do que é ser brasileiro. A valorização do seu aspecto cultural,
contudo, não veio acompanhada da valorização do seu aspecto físico, uma vez que o
preconceito contra o negro e o mestiço, principalmente os menos favorecidos
economicamente, continua a existir no Brasil. Os negros ficaram, desde a abolição, à
margem – nas cidades, indústrias, educação, participação política, melhores empregos
etc. Os complexos e a falta de familiaridade em relação à África permanecem no pouco
prestígio das raízes africanas e no pouco conhecimento do continente, apesar dos
esforços de diversos movimentos sociais que buscam cultivar a negritude e valorizar a
herança africana no Brasil.
Após anos de afastamento das tradições africanas, o Brasil tenta reafirmar sua
construção como nação junto aos negros enquanto formadores da sociedade. Assim,
ações afirmativas – como cotas de vagas nas universidades reservadas a negros e
obrigatoriedade por lei da História da África nas escolas – denotam a tentativa de
resgate desse passado negligenciado. Demonstram, também, o alcance dos movimentos
sociais no país.

126
Na África, o Brasil exerce influência e serve de exemplo, enquanto país
industrializado, com inserção internacional, que abriga culturas variadas e uma
sociedade plural. Devido à proximidade e à correspondência histórica, o Brasil é tido
como um expressivo pólo cultural. Nota-se a grande influência da mídia e dos modelos
culturais brasileiros, sobretudo, em Angola. O governo brasileiro sempre manteve um
programa educacional eficaz com relação à África e atualmente direciona esforços, a
partir de suas empresas, para parcerias e cooperações sólidas em relação ao petróleo. No
entanto, o país tem demonstrado capacidade reduzida em afunilar o eixo Brasil-África
pelo Atlântico Sul.
A sociedade brasileira persiste num preconceito identitário que impede o país de
refletir sobre os debates africanos contemporâneos, perpetuando a ausência de esforços
significativos voltados para o acompanhamento da nova corrida para a África, na qual a
China se apressa como forte concorrente. Os meios de comunicação insistem em
apresentar uma África estereotipada (indolente e ditatorial) e por essa razão, empresas
nacionais ainda duvidam das possibilidades de agir em terreno africano de forma mais
duradoura, negando impulso à logística que a África requer e que o Brasil pode bem
oferecer. No entanto, a baixa apreciação da África por parte da mídia e de agentes
sociais e econômicos brasileiros não corresponde às recentes ações do governo
brasileiro.
A insensibilidade e adesão limitada à CPLP se circunscrevem nesses aspectos.
As idéias de encontro de culturas, de reciprocidade, integração e interpenetração
cultural esbarram justamente nessa falta de correspondência real entre as três principais
culturas que compõem a Comunidade. O luso-tropicalismo reaparece como a moderna
expressão da política tradicional portuguesa em busca do processo político de unidade e
entendimento entre povos e culturas diferentes. Todavia, somente para efeitos
simbólicos e retórico-discursivos. De costas voltadas para a realidade prática, a
comunidade luso-tropical de que falava Freyre nunca deixou de ser um mito e uma
aspiração, sendo o projeto de lusofonia e a criação da CPLP uma evidencia da tradição
político-cultural e intelectual luso-brasileira que confia e defende uma comunidade
especifica.
Os discursos lusófonos têm como marca indelével a origem e a significação no
imaginário político lusitano. Remontam às idéias da relação particular dos portugueses
com os outros povos e culturas, na velha vocação ecumênica e mítica dos navegadores e
descobridores. E nessa perspectiva, a lusofonia cai num vazio simbólico imensurável,

127
pois não parte das aspirações coletivas nem de um imaginário preexistente entre todos
os membros da Comunidade.
Brasil e Portugal, por razões de ordem histórica, que transcendem esse pequeno
apanhado de reflexões sobre os dois países no século XX, comungam dessa cultura
política e dos interesses que justificam a criação formal de uma comunidade lusófona. O
Brasil é o filho dileto da diáspora portuguesa. E para os dois países, faz-se importante a
valorização das suas imagens identitárias baseadas na convivência multirracial e
multicultural. No alvorecer do novo século, a mestiçagem, antes considerada um erro a
ser eliminado, torna-se cada vez mais reconhecida e corrente. Mesmo em países de
supremacia branca, como a França e Inglaterra, nota-se o crescente o número de
mestiços, na medida em que as populações de suas ex-colônias imigram para esses
países, sendo Portugal e, principalmente, o Brasil exemplos nesse sentido.
Contudo, a onipresença da especificidade lusófona, tão bem sustentada pelos
pressupostos científicos do luso-tropicalismo, ao contrário da francofonia, por exemplo,
manifesta o baixo desempenho de Brasil e Portugal frente à CPLP. A Comunidade
carece de uma política de intercambio cultural entre os países membros, o que a
secundariza. Por conta de um conjunto de tratados e acordos bilaterais das agendas
políticas nacionais, que se sobrepõem à Comunidade, nota-se uma incapacidade em
consubstanciar as iniciativas tomadas evidenciando numa dissociação entre a retórica
diplomática e a política externa. Para se ter uma idéia, não existe nem mesmo uma
política de imigração, vistos ou cidadania que privilegie os membros da CPLP entre os
países participantes, o que gera empobrecimento e inoperância da Comunidade.

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Lista de Figuras

Figura I
Revista Ilustração Portuguesa. Lisboa: 1922. N.º 872, p. 1.
Disponível em:
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/IlustracaoPort/1922/N872/N872_item1/index.html
[Hemeroteca Digital - ContentE v.1.6 - 2009-05-19 T15:42:40]

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