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Revista de Geografia (UFPE) V. 29, No.

3, 2012

REVISTA DE GEOGRAFIA
(UFPE)
www.ufpe.br/revistageografia

CLAVAL, P. EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA.


TRADUÇÃO MARGARETH DE CASTRO AFECHE PIMENTA
E JOANA AFECHE PIMENTA. FLORIANÓPOLIS: ED.
UFSC1, 2011
David Tavares Barbosa 1
1
Mestrando em Geografia Universidade Federal de Pernambuco – Recife, Pernambuco, Brasil. Email:
davidtbarbosa@hotmail.com

Resenha recebida em 26/02/2012 e aceito em 22/03/2012

existência de dois níveis de conhecimentos


RESENHA
geográficos: a geografia científica e as
Nos últimos anos, tem sido práticas e os saberes-fazeres empíricos da
observado na geografia brasileira uma vida cotidiana. Para Claval, o trabalho do
crescente procura pela releitura e tradução geógrafo nasce de uma permanente
de obras clássicas de geógrafos de outras confrontação de duas exigências, sendo a
escolas nacionais. Convém destacar neste primeira centrada nas relações espaciais da
cenário, a recente edição em português do vida coletiva, e a segunda, a análise da
livro “Epistemologia da Geografia”, do influência dos instrumentos e categorias
geógrafo francês Paul Claval que, contribui das outras disciplinas nos contextos
numa análise da evolução do pensamento espaciais, e consequentemente, nas
geográfico, a partir da contextualização e formulações da disciplina.
do debate crítico dos contextos históricos e Segundo Paul Claval, os saberes-
culturais observados nas diferentes etapas fazeres da vida cotidiana corresponderiam
da evolução da Geografia. ao que ele determina como “geografias
Como o próprio Paul Claval vernaculares”, que são as práticas
descreve na introdução deste importante desenvolvidas sem pensar, de caráter não
livro, o autor adota uma perspectiva científico e relacionadas com a vida diária.
epistemológica de análise das práticas Estas práticas são desenvolvidas pelos
científicas dos geógrafos ao longo da indivíduos para se localizar e tirar proveito
evolução da ciência, buscando apontar a dos lugares, sendo a base da Geografia

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científica, que parte destes procedimentos No capítulo seguinte As grades de


simples da vida diária – orientar-se, base da Geografia Científica, Paul Claval
localizar os fenômenos, representá-los, admite que a diferença entre ambas
regionalizá-los – para construir sua base (geografias vernacular e científica) consiste
teórica. no fato da científica se caracterizar pela
Estas relações entre a Geografia utilização de um sistema de coordenadas
científica e as Geografias Vernaculares é universalmente válido, que remonta sua
bastante explorada por Paul Claval nos dois origem no pensamento grego, a partir de
primeiros capítulos do livro. No capítulo um procedimento de orientação e
inicial do livro, intitulado Geografias localização baseado em referências
Vernaculares e Recensiamentos astronômicas. Através da inlfuência grega,
Administrativos o autor desenvolve uma a geografia científica se desenvolve se
análise mais detalhada destas “geografias relacionado com a astronomia e a
pré-científicas” ou simplesmente cosmografia, desenvolvendo uma reflexão
“etnogeografias”, interpretando-as como sobre o Cosmo, hábito que permanecerá na
saberes geográficos tradicionais, baseadas disciplina até os estudos de Humboldt e de
mais especificamente nas experiências seus discipulos. A partir de então, a
partilhadas pelas sociedades do que nos geografia foi capaz de formular as
discursos. Estas Geografias vernaculares coordenadas geográficas, segundo a
comportariam duas vertentes: dominar a consideração da esfericidade da terra, se
orientação e as grades de localização desvinculando dos gêneros de vida ligados
relacionadas aos habitats vivenciados e, às geografias vernaculares, abandonando os
aprofundar o conhecimento do meio, dos saberes-fazeres cotidianos e ligando-se,
recursos naturais e sociais encontrados. cada vez mais, aos métodos empíricos de
Serviriam assim, para conceber estratégias observação e de formulação de dados. O
espaciais de delimitação e de controle dos avanço alcançado pela aproximação da
espaços. Eis então, o que aproxima estas geografia aos pensamentos gregos,
duas categorias geográficas: ambas possibilitou a geografia se desenvolver
apresentam como necessidades primordiais como uma ciência da observação, de
a busca pelo desenvolvimento de análise da paisagem, das formas visíveis
orientações, da confecção de grades de que a compõem.
localização para suas observações, Para Claval, em suas análises da
possibilitando o maior acúmulo possível de paisagem, os geógrafos devem considerar
informações sobre os lugares. todos os fenômenos que condicionam a

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estruturação do visível, sendo necessário preocupações acabam por caracterizar a


para isto, buscar compreender as geografia como uma epopéia da descoberta
populações que habitam o espaço, as da terra, para uns, ou como uma conquista
formas como estes se inserem no espaço, da natureza, para outros. Esta metodologia
como o exploram e como modelam suas descritiva da geografia alcançou, na
feições. Daí a importância das entrevistas, segunda metade do século XIX, grande
dos questionários e dos levantamentos destaque nos trabalhos geográficos, onde
estatísticos, que apresentam a capacidade “esta forma de expressão é, com efeito,
de localizar as observações coletadas no incapaz de dar conta da diversidade das
trabalho geográfico. paisagens, dos lugar[es] e das populações
Neste sentido, longe da Geografia que ali se encontram” (CLAVAL, 2011, p.
científica se afastar em suas práticas dos 92-93).
saberes-fazeres cotidianos, Paul Claval Para Claval, somente o gênero
acredita que a Geografia enquanto literário conhecido como “quadro
disciplina científica deve ser desenvolvida geográfico” foi capaz de começar a dar
como uma reinterpretação das geografias conta da diversidade das paisagens, mesmo
vernaculares e como um estudo da que apresentando algumas falhas, como a
geograficidade dos grupos sociais, baseada tendência a ser repetitivo em suas
numa observação participante e em descrições. Este gênero se esforça em
descrições espessas, pois a geografia delimitar as divisões reconhecíveis de cada
apresenta o poder de transformar as localidade, destacando suas características
relações dos grupos com o espaço, específicas, supondo para isso a escolha de
tornando o real conforme os planos grandes conjuntos e a leitura dos
imaginados de antemão, fornecendo fenômenos à escala do cotidiano,
métodos para dominar o território. referenciando suas análise na paisagem.
No capítulo 3 A geografia como Utilizando como metodologia um
narrativa, Paul Claval prossegue este tratamento prévio dos dados, somado a uma
debate afirmando que, os geógrafos tidos reflexão teórica, os geógrafos defensores
como clássicos, procuram em seus estudos deste quadro buscavam compreender como
descrever o mundo a partir de duas os fatos locais se articulam ao global,
preocupações: restituir as informações com desenvolvendo uma abordagem
o máximo de exatidão e torná-las vivas em funcionalista de análise das
suas apresentações. Característica particularidades paisagísticas.
fundamental da geografia ocidental, estas

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Cabe destacar neste gênero literário este debate que a partir das questões
o “quadro geográfico francês”, baseado levantadas pela ecologia, a Geografia
frequentemente em narrativas de viagens, passou a desenvolver trabalhos focados na
em fragmentos de itinerários, evidenciando análise da forma como os homens se
conjuntos de ações que estruturam o espaço aproveitam do meio onde estão instalados
e se apoiando em densas descrições que para realizar suas atividades, surgindo uma
objetivavam destacar as características das análises mais influentes no meio
pertinentes de cada contexto espacial, científico: a análise dos gêneros de vida.
descrevendo suas particularidades (naturais Compreendida como uma técnica
e dos estilos de vida). Papel de grande empregada pelos indivíduos para explorar o
destaque na produção do quadro geográfico ambiente, a análise dos gêneros de vida
pode ser atribuído à Vidal de la Blache e destaca de que forma os condicionantes e o
seus estudos sobre a interpretação das papel das adaptações influenciam no
ligações entre o ambiente e a vida social, estabelecimento dos grupos.
partindo do meio natural para explicar No capítulo 5, A Geografia como
como este condiciona a existência humana. análise de situação, ampliando o debate
No Capítulo seguinte A Geografia sobre a relação entre os homens e os
como estudo das relações do homem com o ambientes, são resgatados os debates
ambiente: um esquema recorrente de geográficos focados na utilização dos
explicação Paul Claval reforça o esboçado conceitos de sítio, situação e posição por
nos capítulos anteriores afirmando que a geógrafos diversos interessados na
geografia só se tornou científica quando descrição do funcionamento dos espaços.
passou a se preocupar com a forma como as Paul Claval retorna este debate pois lembra
condições do ambiente contribuem para que a análise da situação baseia-se na
justificar a diversidade dos homens. O análise sobre de que forma as influências
estudo das relações “grupos humanos- exercidas em uma localidade podem ser
ambiente natural” foi inicialmente sentidas em outros lugares, interpretando
analisada pelas influências da noção de assim o peso das determinações físicas
meio difundida por Hipócrates, de um viés sobre a dinâmica e o funcionamento dos
determinista, sofrendo ainda outras lugares.
influências, como o ambientalismo Bastante desenvolvida na geografia
sensualista, o ambientalismo hederiano, o alemã, a análise da situação na geografia
ambientalismo evolucionista e também o esteve inclinada a interpretar as atividades
lamarckismo. Paul Claval, defende com humanas como dependentes da influência

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geral das latitudes, altitudes e dos tipos de de conhecimentos das geografias


morfologia física dos espaços, numa vernaculares, os geógrafos deste período
perspectiva natural de análise da situação, passam a estudar e classificar as
fortemente difundidas por Humboldt, mas denominadas “regiões funcionais”,
também nos estudos de Ritter e na interpretadas como regiões naturais
antropogeografia de Ratzel. Também transformadas pela ação dos homens,
influente na geografia francesa, em especial responsáveis pela organização do espaço a
nos estudos de Vidal de la Blache sobre os partir da interação entre os elementos
gêneros de vida, estes estudos também físicos e as realidades sociais.
podem ser compreendidos como uma Esta concepção regional
investigação da totalidade e conexidade dos corresponde à dermaché regional clássica,
fatos sociais no ordenamento e caracterizada por apreender
transformação das paisagens da Terra. simultaneamente o suporte natural, as
Apesar das diferentes ideologias a que estes formas de ocupação dos solos, as atividades
estudos foram submetidos, a análise da desenvolvidas pela sociedade num
situação, no geral, objetiva mostrar a conjunto territorial dado, buscando com
influência da materialidade sobre as isso determinar os traços específicos de
atividades dos homens, influenciada por uma dada região. Caracterizam-se por
uma abordagem naturalista e que atribuir grande ênfase às paisagens rurais e
desenvolveu uma concepção de espaço a historicidade de seus sistemas agrários e
influênciado pela astronomia, buscando regiões rurais, sendo bastante conhecida
explicar a diversidade da Terra a partir da nesta análise a interpretação vidalina das
influência exercida pela latitude. organizações regionais, que ao insitir no
No capítulo seguinte, nomeado A papel das combinações sobre a organização
Geografia como estudo das combinações: do espaço e das grandes paisagens,
regiões, meios humanizados e paisagens promove um debate profundo acerca da
agrárias, observamos uma análise de uma conexidade dos fenômenos locais
das concepções mais populares na vinculados, que encontram-se sempre
Geografia, entre as décadas 1920-1960, interligados à escalas maiores.
correspondente a interpretação da geografia Os capítulos que se seguem estão
como uma ciência das configurações relacionados com os debates que surgem na
espaciais e das formas de organização Geografia a partir de bases renovadas a
regional. A partir do conceito de região partir da metade do século XX.
natural dos geólogos, somado a uma série Primeiramente, Paul Claval analisa no

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capítulo 7, denominado Uma física do Através destas recentes influências


social, o espaço na vida dos grupos observadas na Geografia novos olhares e
humanos as influências exercidas pela interpretações ganharam força na análise
economia espacial sobre a geografia, sobre a paisagem. Esta, passa a ser pensada
destacando que a intitulada “Nova como parte daquele que o habita,
Geografia” começa a abandonar a avançando além das abordagens anteriores,
preocupação com as relações homem- que a interpretavam como uma realidade
abiente, característica principal dos estudos física, para ser lida agora como um texto,
geográficos do século XIX, para como uma realidade objetiva fruto da
aprofundar as reflexões acerca dos sistemas relação dos homens com o meio.
econômicos, acerca da aplicabilidade dos Os capítulos seguintes são todos
apontamentos da economia nos estudos dedicados aos grandes debates
geográficos. epistemológicos observados na Geografia e
As análises mais profundas sobre a nas ciências afins. Estes capítulos são: o
renovação do pensamento geográfico capítulo 9 intitulado Os Grandes debates
desenvolvidas no livro encontram-se no epistemológicos de 1890 a 1970; o capítulo
Capítulo 8, intitulado A experiência 10 sobre Os Grandes debates
humana da Terra: a abordagem cultural epistemológicos: Os anos 1970 e o início
em Geografia. Neste capítulo, Claval faz dos anos 1980; o capítulo 11 chamado A
uma análise acerca da valorização ampliação dos debates epistemológicos na
observada na Geografia do diálogo entre era do pós modernismo e do pós-
sensibilidade humana e ambiente, a partir colonialismo; o capítulo 12 intitulado
da influência da fenomenologia. Segundo Como pano de fundo: A epistemologia dos
Claval, a consideração da experiência filósofos e dos cientistas; e o capítulo 13
humana na Geografia promove uma Epistemologia e Imaginação Geográfica.
valorização da análise dos lugares e das Nestes últimos capítulos, podemos
populações que o habitam, assim como de observar de forma sucinta e extremamente
variáveis antes negligenciadas nas didática as principais mudanças
interpretações geográficas, como idade e processadas na Geografia ao longo dos dos
sexo. O pensamento geográfico se renova séculos XIX e XX. Iniciando as análises do
pela inclusão da experiência vivida, da capítulo 9 nos fins do século XIX e
intersubjetividade inerente aos grupos prolongando-se até a metade do século XX,
sociais e pela análise das representações e Paul Claval expõe como os primeiros
dos discursos esquemáticos do real. debates epistemológicos da disciplina não

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se vinculavam à preocupações sobre os sociais e científicas na década de 1970,


procedimentos utilizados pela disciplina, estimula um combate aos discursos
mas priorizavam debates sobre de que baseados na racionalidade, a partir da
forma o meio exerce influência sobre as crítica à modernidade fundada nas
ações dos homens – debates centrados, metanarrativas e nos grandes discursos.
principalmente, na oposição possibilismo Na geografia, o debate acerca do
versus determinismo. pós-modernismo sofreu grande influência
Já no capítulo 10 o autor mostra que de Fredric Jameson, que interpreta-o como
os debates observados na disciplina entre as reflexo e complemento de uma
décadas de 1970 e 1980, agora modificação ainda recente no capitalismo,
desenvolvidos em escolas nacionais e destacando, por influência de Lefebvre, a
contextos diferentes, passam cada vez mais predominância do espaço na pós-
a se voltar aos problemas específicos da modernidade, conduzindo com sua reflexão
disciplina, quando novos movimentos a um spatial turn que afetou todas as
inspirados pela fenomenologia e pelo ciências sociais nos anos 1990. Junto a
marxismo, assim como através da entrada crítica pós-moderna, a virada linguística na
dos debates sobre o pós-modernismo e pós- geografia, que dentre outras proposições,
colonialismo, evidenciam que a geografia defendia que a Geografia deveria se afastar
encontra-se cercadas de grandes problemas da visão kantiana de ciência, da ontologia
nos mais diferentes países. cartesiana da “ciência do espaço”, para se
Uma verdadeira explosão de aproximar das ciências humanas,
curiosidades e debates se intensificam na conduziria a grandes mudanças na
Geografia no fim do século XX, que metodologia da disciplina.
conforme demonstra Paul Claval no Os dois últimos capítulos
capítulo 11, corresponde a um período de funcionam como uma recuperação daquilo
introdução de novas feições aos debates que foi comentado por Paul Claval ao longo
epistemológicos, principalmente no mundo do livro, aprofundadas pelas conclusões
anglófono. Grandes debates conduzem uma que o autor busca apontar no fim do livro.
série de viradas nas ciências – virada Para Claval, a Geografia deveria
linguística das ciências do homem; espacial aprofundar os seus estudos a partir de um
das ciências sociais; cultural da geografia. maior conhecimento das orientações e
A irrupção da pós-modernidade, contribuições externas, devendo-se
inicialmente na arquitetura, a partir de preocupar cada vez mais em assumir em
1950, e firmando-se nas outras esferas suas atividades uma finalidade social, de

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desenvolver uma posição política mais temas, as representações do mundo político


atuante, seja esta radical ou a e as geo-histórias da cultura. Para isto, o
transformação de suas ideias e autor acredita eu a geografia científica não
posicionamentos. É neste sentido, que deveria abandonar os saberes vernaculares,
pontua que “passar pela via da reflexão e da as narrativas de viagens e os
reforma interior pode ser tão satisfatório recesseamentos administrativos que a
quanto o engajamento militante” precederam, mas sim se desenvolver como
(CLAVAL, 2011, p. 366). uma reinterpretação destas.
A mensagem que Paul Claval deixa Notas
ao finalizar seu livro pode corresponde à 1. Editora UFSC: Campus Universitário
sua interpretação sobre o papel da Trindade, caixa postal 476, CEP 88040-
Geografia no universo dos conhecimentos. 900,
Para o autor, o sucesso da disciplina não Florianópolis/SC. http://www.editora.ufsc.
depende apenas da cientificidade ou br/
qualidade dos resultados propostos, mas
também da forma como ela ilustra seus
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