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Mas é preciso voltar um pouco no tempo para compreender melhor a relação entre as
tecnologias e o trabalho, principalmente com o advento da Modernidade e da
racionalidade científica, pautada no desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Os
movimentos das “grandes invenções” e das “grandes navegações” desde o fim do
período medieval colocavam novos ingredientes na relação da humanidade com a
natureza. Francis Bacon, por exemplo, na virada do século XVI para o século XVII,
colocava no desenvolvimento da ciência e da tecnologia as condições para um futuro
melhor, em que a racionalidade seria utilizada para a liberação das pessoas dos trabalhos
pesados e proporcionaria aos seres humanos uma vida melhor.
Em sua obra de ficção inacabada, a New Atlantis, Bacon vislumbrava uma sociedade
utópica, perfeita, em que os produtos da racionalidade científica eram compartilhados
com toda a sociedade. A tecnologia serviria, portanto, para o desenvolvimento de
sociedades mais avançadas, e não como mecanismo de exploração de homens por
outros homens. É bem verdade que não foi isso o que se viu com o advento da
Revolução Industrial e com a inserção de maquinarias pesadas nos processos
produtivos, com o incremento da produção e da produtividade em menor tempo: embora
o emprego de toda a maquinaria sinalizasse para a liberação do trabalho degradante,
esse movimento foi acompanhado por uma condição miserável dos trabalhadores da
época, com jornadas exaustivas e prolongadas de trabalho, controle de tempos, espaços
e ritmos de produção.
Começava a ficar claro que, diferente do que Bacon e outros pensadores do início da
Modernidade previam, não bastava o desenvolvimento da ciência e da tecnologia para
liberar a humanidade das condições extenuantes de trabalho: o fator econômico era
determinante. Parte dessa crítica é encontrada na tradição marxista na análise sobre o
trabalho e sobre o desenvolvimento das forças produtivas: com novas tecnologias, o
“trabalho vivo” (aquele realizado diretamente por pessoas) tenderia a diminuir se
comparado com o “trabalho morto” (o trabalho realizado por máquinas). O utópico
“reino da liberdade”, oriundo dessa tradição, grosseiramente falando coincidia com a
liberação dos trabalhadores de jornadas exaustivas e prolongadas e, portanto, com mais
tempo para o seu desenvolvimento omnilateral, com mais tempo para o
desenvolvimento de todas as dimensões do espírito humano, sem ter seu tempo
absorvido inteiramente pelo trabalho explorado para a geração de valor para apenas uma
pequena parcela da população.
Entre os pesquisados, fica evidente que ‘estar sempre presente e ao alcance’, em função
do fenômeno da ubiquidade e das condições de trabalho na pós-graduação, significa
estar sempre disponível também para o trabalho. Nesta ambiência, para a maioria dos
pesquisados, uma das repercussões do caráter ubíquo do trabalho docente na pós-
graduação é a de que todos os tempos e espaços convertem-se em espaços e tempos de
trabalho, seja em função do atropelamento informacional, seja pelas facilidades dos
gestores ou órgãos reguladores demandarem tarefas: basta uma mensagem via
dispositivos digitais e móveis para acionar os professores, a qualquer momento. Em
sentido semelhante, de acordo com os relatos dos pesquisados, as facilidades
comunicacionais instauradas pela cultura digital proporcionam a instauração de uma
cultura de total disponibilidade do orientador aos alunos e/ou orientandos. Nesse
sentido, a ubiquidade do trabalho faz com que alguns professores considerem que não
há mais fronteiras entre tempos de lazer e de trabalho: o professor de pós-graduação
tornou-se “atemporal” (sic).
Han [7], referindo-se à falta de atenção profunda que o modo de vida contemporâneo
fomenta, enfatiza que os desempenhos culturais da humanidade pressupõem uma
ambiência em que seja possível uma atenção profunda. No entanto, a ubiquidade
desloca a atenção profunda para uma atenção dispersa, caracterizada pela rápida
mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos – algo que
William Powers, sem a pretensão de ser científico, já havia anunciado em seu livro O
BlackBerry de Hamlet: ultraconectadas, as pessoas estão fazendo várias coisas ao
mesmo tempo, mas sem profundidade; sem tempo para a contemplação e reflexão que
só o afastamento da ágora permite [8]. Nesse sentido, em conjunto com as condições de
trabalho na pós-graduação, a ubiquidade instaura um obstáculo ao próprio trabalho
intelectual dos professores, de modo paradoxal: ao mesmo tempo em que expande as
possibilidades de trânsito em espaços distintos e simultaneamente – o que contribui, em
termos de tempo, para o aumento da produtividade – desencadeia os controversos
processos multitarefa e de atenção parcial contínua. Estes processos minam o estado de
atenção profunda e contemplativa e de ócio, condição para os processos criativos que
fazem parte da atividade intelectual e que repercutem na própria questão da
produtividade.
A despeito das inúmeras potencialidades e indagações que a vida ubíqua suscita, não
podemos perder de vista que esse modo de vida on-line também é alcançado pelas
relações de produção do modo capitalista, que coloniza o tempo livre com obrigações
em rede e que amplia os espaços de produção, ao passo que estende os tempos de
produção.
A expressão “trabalho full time” com o uso de tecnologias digitais, que encontramos na
pesquisa, pode não ser (ainda) uma generalidade, mas não podemos negar que as
tecnologias mais importantes criadas nos últimos dois séculos foram aquelas para
administração e controle dos trabalhadores 24 horas por dia, sete dias por semana,
conforme Jonh Crary situa: a tessitura 24/7 “anuncia um tempo sem tempo, […] sem
demarcação material ou identificável […]”. Implacavelmente redutor, celebra a
alucinação da presença, de uma permanência inalterável, composta de alterações
incessantes e automáticas. “[…] o caráter inexorável do 24/7 repousa em sua
temporalidade impossível”. O trabalho ubíquo é apenas uma dimensão desse processo.
E pode significar o futuro do trabalho.
Notas
[1] Ver, em especial, os trabalhos de Leplat e Cuny. LEPLAT, Jacques; CUNY, Xavier. Introdução à Psicologia do Trabalho. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
[2] ENGUITA, M. F. Tecnologia e sociedade: a ideologia da racionalidade técnica, a organização do trabalho e a educação. In:
SILVA, T. T. (Org.). Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. p.
230-253.
[3] SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.
[4] O estudo foi concluído em 2016 como parte de minha pesquisa de doutorado sobre uso de tecnologias no trabalho em educação.
[5] SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
[6] Esse tema é recorrente nas obras de Mark Prensky, que formulou os conceitos de “nativos digitais” e “imigrantes digitais”, e que
também ‘desenhou’ as características comuns dos nativos digitais, dentre as quais, as vantagens de ser multitarefa e executar mais
rapidamente algumas tarefas. Essas temáticas aparecem nas seguintes obras de Prensky: Digital natives, digital immigrants. MCB
University Press. Vol. 9, n. 5, 2001. “Não me atrapalhe, mãe! – eu estou aprendendo”. São Paulo: Phorte Editora, 2010.
[7] HAN, B. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
[8] POWERS, W. O BlackBerry de Hamlet. São Paulo: Alaúde, 2012.
[9] CRARY, J. 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
*Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador na área de educação, cultura digital, trabalho e
tecnologias.