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O TEMPO E O OUTRO

«Tenho o costume (diz Freud na "Interpretação dos sonhos") de me servir dessa anedota
para ilustrar o fator de só-depois1 no mecanismo das psiconeuroses ». «Um jovem rapaz,
assim conta a anedota, que era um grande admirador da beleza feminina, falava um dia
sobre a bela ama de leite que o havia amamentado quando ele era bebe: lamento não ter
aproveitado melhor aquela oportunidade! (boa ocasião)2 ».

Trata-se de uma associação do «sonho das Parcas», ou das 'Knödel'3, introduzido pela
seguinte observação: «no seio da mulher se reúnem fome e amor»; nesse sonho, com
efeito, Freud se interessa explicitamente pelas significações sexuais; mas, apesar disso,
há um momento em que ele se detém no caminho, por razões de discrição e de pudor.
Não entrarei nas complexidades desse sonho, contentando-me em tomar a anedota da
maneira como ela se dá, fora desse contexto: uma ilustração do conceito de só-depois.
Essa ilustração, ocorre pensar que data de 18984, como o sonho, quer dizer, em meio a
história desse conceito que se estende de 1895 à 1917. História complexa que não
detalharei aqui, mas que percorri de maneira precisa neste ano em meu curso na
universidade. Para situar duas posições: Lacan recupera o conceito em 'O homem dos
lobos', ou seja, em 1917, mas ignora a teoria da sedução. Simetricamente, Georges-Arthur
Goldschmidt acredita que Freud «abandonou esse termo» depois de 1898! Evidentemente
um simples 'passar de olhos' no 'Laplanche e Pontalis' o teria desenganado. Ele acredita
também que essa palavra vem de forma totalmente natural no movimento da língua de
Freud; ao passo que só-depois é um termo levantado da língua corrente, transformado em

1
Nota de tradução. [Nachträglichkeit] traduzido por Strachey , na edição inglesa, por 'deferred action',
ou ainda, 'subsequently', 'later' ou 'belatedly'. Lacan, por sua vez, traduz por "l'après-coup'. Luiz Alberto
Hanns em seu Dicionário comentado do alemão de Freud propõe a forma latina 'a posteriori'; com ênfase
no sentido estritamente temporal; Já Magno (2003 apud Maia e Andrade, 2010), propõe como tradução
'só-depois', inspirando-se na expressão francesa, o hífen marcando a transposição para um termo de uso
corrente na língua; Além do que, lemos em Maia e Andrade (2010), 'só-depois', ainda que perca em
alguma medida a conotação que l'après-coup [voire, 'le coup'/'golpe'] sugere o caráter traumático que a
temporalidade psíquica implica, parece carregar melhor a descontinuidade que o termo carrega (Cf. Maia,
Luís; Andrade, Fernando. C. B. de; [2010], 'Nachträglichkeit: leituras sobre o tempo na metapsicologia e
na clínica', Revista 'Estudos de Psicanálise, n33, Aracaju, Julho, pp. 75-90 [cit. pp. 75-76]; Cf. ainda, Jacques
André [2008], 'O acontecimento e a temporalidade o après-coup no tratamento', trad. de Vanise Dresh,
Revista Psicanálise e cultura, n.v. 31(47), São Paulo, pp. 139-167.)
2
GW, II-III, p. 211.
3
Sonho longamente comentado por Didieu Anzieu, em L’auto-analyse de Freud et la découverte de la
psychanalyse, Paris, PUF, nouv. éd. 1975, t. II, p. 473 e sg.
4
G-.A. Goldschmidt, Quand Freud voit la mer, Paris, Buchet-Chastel, 1988, p. 87.
substantivo (Nachträglichkeit) em um momento preciso das cartas à Fliess e valorizado
como termo técnico pelo próprio Freud. Tudo o atesta. A apoteose do conceito para Freud
é a quantificação e que frase poderia ser mais provocadora, em sua ambição científica,
que essa: o intervalo5 do só-depois é bastante reduzido6.

Entretanto, que a conceitualidade do só-depois em Freud não esteja sempre à nível da


profundidade que nele encontramos... só-depois, a simplicidade do exemplo proposto na
Traumdeutung facilmente o mostra. Localizemos, de forma cômoda, graças a 'seta do
tempo': passado, presente, futuro [avenir]. A anedota nos propõe duas cenas sucessivas,
religadas por esta seta: o lactente7, seguido do adulto amante de mulheres que pensa no
seio de sua bela ama de leite. Uma teoria que inverte a seta do tempo seria a da
interpretação retroativa, ou da imaginação retroativa, qualificada por Freud de 'fantasia
retrógrada' (Zurückphantasieren) [Vr. 'rétrofantasier'; org. Laplanche]. Essa posição, no
fim das contas, é a deste jovem rapaz que não é freudiano e despreza8 a sexualidade
infantil. Ele se recoloca apenas retroativamente9 (ou ‘em atraso’): «Ah, se eu soubesse!
Ah, se tivesse sabido apenas desejar, se tivesse podido desejar! ». No limite é um chiste,
que aliás faz vocês rirem. Um chiste se faz frequentemente às custas daquele que não
sabe; aqui, o bebê que «ignora» a boa ocasião: a sexualidade é isso que escondemos das
crianças, isso que elas não podem sequer pressentir. Mas a interpretação de Freud
(praticamente todos os textos dão testemunho disso) vai em sentido inverso, quer dizer
que ela não inverte a seta do tempo, ela é determinista. A tradução inglesa de
Nachträglichkeit por deferred action, «ação diferida», endurece10 certamente essa
escolha, mas ela se encaixa suficientemente bem com a doutrina explícita de Freud. Essa
doutrina, nós sabemos, é a do efeito «em dois tempos» de excitação: a representação pode
ter um efeito bem mais excitante, logo, bem mais traumatizante que a irritação somática
do início, mas porque no intervalo se produz uma maturação orgânica.

[...]

5
Nota de tradução. [Nome. le montant: (lit. ‘a subida'), pode indicar o intervalo ascendente de um
movimento ou compasso musical.]
6
GW, XII, p. 88.
7
Nota de tradução. [Expressão. l’enfant au sein : (lit. ‘a criança junto ao/de seio), o lactente.]
8
Nota de tradução. [Expressão. n'avoir que faire de: indica o ato de tratar com desprezo; desinteressar-
se por algo ou alguém; ou ainda, 'ignorar’.]
9
Nota de tradução. [Expressão. être en arrière: pode indicar uma posição contrária, ou ainda, como
arriéré, atrasado em relação a um evento marcado temporalmente, a uma época; ]
10
Nota de tradução. [Verbo. Durcir: endurecer; ou ainda, pode ser empregada no sentido de enrijecer,
fixar fortemente uma condição, como no sinônimo, affermir]
Notas para leitura (continuação do texto)

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