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IBEROGRAFIAS

34
ANDANÇAS E REFLEXÕES TRANSFRONTEIRIÇAS:
ROTEIRO MIGUEL DE UNAMUNO –
EDUARDO LOURENÇO

Coordenação de
Rui Jacinto
Valentín Cabero

IBEROGRAFIAS

34
Colecção Iberografias
Volume 34

Título: Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

Coordenação: Rui Jacinto; Valentín Cabero


Fotografias: Rui Jacinto (RJ); Santiago Santos (SS); Victorino García Calderón (VG)
Cartografia: Ignácio Izquierdo

Pré-impressão: Âncora Editora

Capa: João Guerreiro | Âncora Editora

Impressão e acabamento: LOCAPE – ARTES GRÁFICAS, LDA.

1.ª edição: Julho 2018


Depósito legal n.º 443102/18

ISBN: 978 972 780 655 3


ISBN: 978-989-8676-16-0

Edição n.º 41034

Centro de Estudos Ibéricos


Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
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www.cei.pt

Âncora Editora
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O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e
opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos Coordenadores.

Apoios:
POR TERRITÓRIOS DE MIGUEL DE UNAMUNO E DE EDUARDO LOURENÇO 7

Andanças e Reflexões Transfronteiriças – Valentín Cabero; Rui Jacinto 9

NÓS E A EUROPA: DIÁLOGOS ENTRE MIGUEL DE UNAMUNO E EDUARDO LOURENÇO 41

Sobre la Europeización (Arbitrariedades) – Miguel de Unamuno 43

Nós, a Espanha, a Europa – Eduardo Lourenço 57


A Espanha e nós 57
Fantasmagoria Europeia: Nós e a Nova Espanha 63
A Península como problema europeu 66

ROTEIRO MIGUEL DE UNAMUNO – EDUARDO LOURENÇO: 71


COIMBRA–GUARDA–SALAMANCA, UM EIXO CIENTÍFICO E CULTURAL

Coimbra 73
Coimbra – Miguel de Unamuno 74
Tempos de Coimbra – Eduardo Lourenço 79

Guarda 93
Guarda – Miguel de Unamuno 94
Oito séculos de altiva solidão – Eduardo Lourenço 99

Fronteira, traço de união: espaços e aldeias Raianas 111


Los Arribes del Duero – Miguel de Unamuno 112
Regresso sem fim: S. Pedro do Rio Seco e a fronteira – Eduardo Lourenço 125
O duplo rosto da fronteira 125
As fronteiras que não têm fronteiras 127
Jogos de fronteira, jogos de memória 129
Quem vê o seu povo vê o mundo todo 131

Salamanca 149
Salamanca – Miguel de Unamuno 150
Atardecer de estio en Salamanca 155
Oda a Salamanca 157
O Novo destino da Península – Eduardo Lourenço 162
POR TERRITÓRIOS DE
MIGUEL DE UNAMUNO E DE
EDUARDO LOURENÇO
Andanças e reflexões transfronteiriças

Valentín Cabero
Rui Jacinto

Por ocasião da celebração do VIII Centenário da Fundação da Universidade de Salamanca


(1218 – 2018), o Centro de Estudos Ibéricos (CEI) junta-se com espírito fraterno e com olhar
posto na “comum alma ibérica” à comemoração de tão longa vida académica e da sua frutífera e
precoce presença no mundo peninsular, na Europa, no Mediterrâneo e no Novo Mundo. A sua
dimensão verdadeiramente universal e aberta à defesa dos direitos humanos compromete-nos,
novamente, com o futuro e com a responsabilidade do Centro de Estudos Ibéricos continuar a
ser um lugar de encontro ativo, encruzilhada de saberes, de diálogo interdisciplinar e de partilha
de conhecimentos, solidário com os territórios mais desfavorecidos do interior raiano e com as

9 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


terras mais longínquas dos espaços Ibero-Americanos e da Lusofonia. Os Cursos de Verão têm
sido orientados, por todas estas razões, para constituírem um encontro de culturas, de reflexão
sobre a coesão do território e os processos de desenvolvimento. A edição de 2018 associa a estes
objetivos um itinerário transfronteiriço que tem como fio condutor dois grandes pensadores
iberistas com indubitável capacidade reflexiva e critica: Miguel de Unamuno, que foi Reitor
da Universidade de Salamanca, e Eduardo Lourenço que, além de ser um grande pensador de
Portugal e da sua cultura, foi quem inspirou a criação do Centro de Estudos Ibéricos.
Tomam-se como referências as cidades de Coimbra e de Salamanca e as suas Universidades,
unidas há seculos por fraternos laços históricos e pessoais, académicos e culturais, bem como
a cidade da Guarda, convertida em marco de confluência que, através do CEI, renova os seus
vínculos com o iberismo e a cooperação transfronteiriça. O itinerário que vamos efetuar irá
percorrer territórios com os quais Miguel de Unamuno e Eduardo Lourenço estabeleceram
uma íntima relação, visitar lugares representativos, que lhes são queridos, sem esquecer o
mundo rural e a própria raia, tantas vezes olvidados, que deixou de representar a antiga
fronteira soberana, fechada e impermeável a uma salutar circulação de pessoas, bens e ideias.
1. Relações ibéricas e pensamento crítico no contexto do VIII Centenário
da Universidade de Salamanca

Sabemos bem que as relações entre Espanha e Portugal atravessam um bom momento. Em
maio de 2017, Portugal foi o país convidado da Feira do Livro de Madrid, na qual o pensador
e intelectual Eduardo Lourenço proferiu a conferência inaugural, recém cumpridos os 94 anos.
Perante o Rei de Espanha e o Presidente da República de Portugal, com uma lucidez única expôs
o significado de livro na cultura ocidental, a perda de fé no laicismo e os seus temores ante o
futuro da Europa. Uns anos antes, por ocasião da atribuição do Prémio Extremadura (2006),
Eduardo Lourenço tinha refletido sobre as relações entre Espanha e Portugal: “O iberismo deve-
ria ser o nosso estado natural, é a nossa realidade histórica de muitos séculos. A Península sempre
foi uma confrontação de diversidades que se levaram bastante bem muitas vezes. As dificuldades
de convivência costumavam vir do exterior. Agora vivemos um iberismo prático, sem conotações
centralistas ou imperialistas. Ninguém quer unificar-nos pela força. É admirável como Espanha
maneija dialogando as tentações de fugas separatistas, que por outro lado são irreais. Os portu-
gueses, à nossa maneira suave, arranjamo-nos para impor de forma natural a nossa autonomia,
relativa como todas, àquele velho centralismo intolerável. A Europa e o mundo têm hoje tal am-
bição de uniformidade, que a tentativa de edificar castelos individuais já não coalha facilmente”1.
Neste contexto, devemos recordar alguns feitos recentes e vinculados ao VIII Centenário
da Universidade de Salamanca como a visita de Estado do Presidente da República de Portugal
a Espanha que culminou no Paraninfo da própria Universidade, um lugar sagrado para os de-
fensores do pensamento ilustrado, a sabedoria, a tolerância e a liberdade. No dia 18 de abril de
10 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

2018, o Rei Felipe VI e o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, acompanhados de


autoridades portuguesas e espanholas, ladeados pelos Reitores das Universidades de Salamanca e
de Coimbra, Ricardo Rivero e João Gabriel Silva, presidiram a uma ceremónia solene e eminen-
temente académica. O CEI esteve também representado neste acto comemorativo. Os discursos
insistiram nos “laços centenários entre as veneráveis universidades” e nos resultados fructíferos
de ambos os Estudos ao longo dos séculos. Por seu lado, os Reitores de ambas universidades
públicas, além de renovarem os vínculos fraternais e iberistas, incidiram na função de transmis-
são de conhecimento e investigação científica, no compromisso cívico, ético e na reflexão crítica
como nos ensinaram os grandes mestres. No âmbito do VIII Centenário, como feito relevante
e simbólico, o Presidente da República de Portugal condecorou a Universidade de Salamanca
com a Ordem de Santiago da Espada, altíssima condecoração lusa que reconhece e premeia os
méritos literários, científicos e artísticos da universidade mais antiga da Península Ibérica.
No dia 21 de maio, ainda por ocasião do VIII Centenário, o Rei Felipe VI e o Presidente
da República de Portugal presidiram ao IV Encontro Internacional de Reitores Universia
1
Citamos o artigo e entrevista de Miguel Mora a Eduardo Lourenço, El País, 6-09-2006: ¿Qué es Europa?, Nada.
realizado em Salamanca. Mais de 600 reitores ou seus representantes, sob o lema “Universidade,
Sociedade e Futuro”, centraram os seus debates em grandes problemas ou eixos de reflexão:
“Formar e aprender num mundo digital”, “Investigar na Universidade, um paradigma em
revisão?”, temas de indubitável relevância para construir inteligentemente o futuro. Este IV
Encontro Internacional de Universia 2018 também pretende reforçar os laços com os terri-
tórios longínquos com raízes culturais ibéricas, assim colocado no manifesto da sua sessão
inaugural: “Dizíamos ontem, diremos amanhã. O Espaço Euro-ibero-americano do conhe-
cimento e da educação superior” tem pontes entre a Europa e a América. A Declaração de
Salamanca, aprovada e proclamada neste Encontro, aposta numa Universidade para o século
XXI, aberta e solidária, particularmente com os países de língua espanhola e portuguesa.
O Centro de Estudos Ibéricos tem vindo a trabalhar com empenho e entusiasmo,
desde há dezoito anos, nestes compromissos, juntando-se a estes desafios com a sua expe-
riência na cooperação transfronteiriça, apostando e impulsionando ações culturais integra-
doras em territórios de baixa densidade. O CEI tem assumido nas suas atividades aqueles
desafios com energia e responsabilidade, abrindo de maneira específica os seus Cursos de
Verão aos professores e alunos ibero-americanos e lusófonos, nos que participam ativa-
mente, enriquecendo os nossos conhecimentos e atitudes perante o mundo. Recordemos,
por outro lado, que alguns dos galardoados com o Prémio Eduardo Lourenço (Mia Couto,
Jerónimo Pizarro ou Luis Sepúveda) têm esta condição, enlaçando bela e sabiamente nos
seus escritos e trabalhos as raízes ibéricas e as ricas culturas transoceânicas.
Importa sublinhar que os princípios fundacionais do CEI e a definição dos seus objeti-
vos tem claramente fixados os seus compromissos com os territórios e com as pessoas, trasla-

11 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


dando a competência universitária e as suas propostas ou reflexões ao meio rural e urbano do
entorno fronteiriço e interior repartido por Espanha e Portugal. De alguma maneira, estes
pressupostos e estes pensamentos ficaram escritos na Declaração da Guarda2 assinada pelos
2
Foram seus subscritores os Reitores das Universidades de Coimbra (Fernando Manuel da Silva Rebelo), Aveiro (Maria
Helena Vaz de Carvalho Nazaré), Beira Interior (Manuel José dos Santos Silva), Salamanca (Ignacio Berdugo Gómez
de la Torre), Valladolid (Jesús María Sanz Serna), León (Ángel Penas Merino), Burgos (José María Leal Villalba).
Declararam: “(1) As universidades acima referidas mantêm um compromisso histórico, assumindo o seu papel
na construção das ideias e dos valores universais, cuja defesa proclamam uma vez mais, ao confrontarem-
se, hoje, com uma globalização carregada de incertezas e, ao mesmo tempo, de capacidades inovadoras e
surpreendentes. (2) As universidades mais antigas (Salamanca, Coimbra e Valladolid), pioneiras no
intercâmbio científico e cultural dentro da Península Ibérica, da Europa e de além-mar, unem-se aos novos
laços e às energias que incorporam as universidades de León, Aveiro, Beira Interior ou Burgos, na tarefa de um
ensino universitário mais acessível aos cidadãos e aos territórios, conjugando deste modo a própria autonomia
universitária e, ao mesmo tempo, a complementaridade e a colaboração entre povos e regiões. (3) A construção
da União Europeia, alicerçada nos princípios da solidariedade e da subsidiariedade e no exercício dos valores
democráticos, requer o envolvimento das universidades em prol do fortalecimento da cidadania, da difusão do
saber e da melhoria na qualidade de vida. Nesta perspectiva, a procura da coesão social e da equidade territorial
encontra obstáculos particularmente graves nas periferias ou nas regiões desfavorecidas, como naquela em que
nos encontramos, no extremo sudoeste da Europa e no espaço de uma fronteira histórica”.
reitores das Universidades de Castela e Leão e do Norte de Portugal, em momentos chave
para o avanço da cooperação e dos intercâmbios científicos e culturais entre os centros uni-
versitários nos territórios onde se localizam. Aquela Declaração, elaborada por ocasião desta
reunião de carácter interuniversitário, realizada na Guarda, a 12 de abril de 2002, no âmbito
do Centro de Estudos Ibéricos, expresso: (4) “As universidades subscritoras estão conscientes
da contribuição necessária de esforços renovados na resolução dos problemas de formação e
investigação, objetivos primeiros da sua ação, assim como da integração das suas potencia-
lidades e dos seus recursos humanos no âmbito geográfico mais próximo, sem perder a sua
vocação universal e sem diminuir a qualidade do ensino superior. A constituição de redes de
trabalho em comum e de intercâmbio vem demonstrando, nos últimos tempos, as múltiplas
vantagens culturais e científicas que acompanham estes processos. Por isso, apoiam e saúdam
com esperança as iniciativas vinculadas à colaboração interuniversitária e todas as ações coe-
rentes com a aplicação do espírito europeu e das novas modalidades de cooperação”.
Não correm bons tempos para o pensamento crítico. Nos discursos que ouvimos pre-
domina o banal, o cinismo e o conjuntural. E quando as esperanças colocadas ao serviço do
progresso comum e da construção duma convivência e democracia mais equitativa se rom-
pem, o diálogo que se tem vindo a propor com o território e com a própria leitura dos escri-
tos de Miguel de Unamuno e de Eduardo Lourenço coloca-nos, de alguma forma, perante
um conhecimento sem fronteiras, capaz de transformar as nossas atitudes e de reivindicar
uma cultura mais inteligente e políticas mais ativas e solidárias com o meio rural, urbano
e transfronteiriço. Não obstante, sentem-se alguns sinais de otimismo; no IV Encontro
Internacional de Universia em Salamanca ouviram-se vozes dos máximos responsáveis aca-
12 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

démicos, políticos e economistas favoráveis à “excelência académica inclusiva”, à mobilida-


de frente à endogamia, à educação integral e humanista, à universidade aberta ao mundo,
comprometidos com o pensamento crítico, indispensável para avançar na construção dum
futuro mais justo, socialmente mais equitativo e territorial mais coeso a distintas escalas
espaciais. É com estas tarefas que nos sentimos identificados e o CEI plenamente implicado.

2. A procura da comum alma ibérica: Miguel de Unamuno e suas


andanças e reflexões transfronteiriças

Miguel de Unamuno (Bilbao, 1864; Salamanca, 1936) pode considerar-se um dos


grandes pensadores e intelectuais de finais do século XIX e da primeira metade do sé-
culo XX. O seu pensamento continua muito presente entre nós. Apesar de ser catedrá-
tico de Grego, é bem conhecido o seu trabalho como novelista, poeta ou dramaturgo,
importando sublinhar o seu papel como filósofo e ensaísta com uma presença habitual
Miguel de Unamuno em La Flecha (Foto de José Suárez)

na imprensa nacional e internacional. Os escritos de Unamuno enquadram-se, funda-


mentalmente, na crise finissecular de 1898 e bebem em parte na tradição romântica

13 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


que olha a “serenidade do campo” e valoriza a “vida retirada”, sem evitar o debate social
e político. A sua atitude cívica converter-se-á, precisamente, num símbolo da oposição
à monarquia e à ditadura do General Primo de Rivera; por isso, sofrerá vários desterros.
Morre no final de 1936, quando a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) rompe violen-
tamente a vida e a paz na Península, depois de ter mantido um debate e enfrentamento
no Paraninfo da Universidade com militares e representantes do levantamento fran-
quista contra a República, pronunciando aquelas palavras emblemáticas: “Vencereis,
mas não convencereis”.
Unamuno abordou géneros diferentes e problemáticas interpretativas complexa (narrati-
va, poesia, filosofia, religião, política, viagens…) com um estilo próprio e grande transcendên-
cia cívica e política. Não desenvolveremos nesta apresentação uma exposição pormenorizada
das suas obras, da sua poética, ensaios e escritos filosóficos que se aproximam das posições do
existencialismo. Detemo-nos, sobretudo, da sua vertente iberista e das suas relações fraternais
com Portugal, buscando “a comum alma ibérica” que ajustaremos ao itinerário defenido entre
Coimbra e Salamanca, medeado pela Guarda e o entorno raiano e transfronteiro.
Mais que olhar a Europa, “ser europeus e ser modernos”, no sentido mais vago e
impreciso, ou na sua aproximação mais racional e científica ao conhecimento, Unamuno
procura no Sul e na Península a sabedoria e a espiritualidade, propondo – pensamos que
provocadoramente – “espanholizar a Europa”3. E encontrará algumas das respostas em
Portugal, onde viajará com frequência desde Salamanca e entabulará amizade e corres-
pondência com escritores e pensadores vinculados à renascença lusitana e ao iberismo.
A capacidade de reflexão crítica de Unamuno encontrará nas obras e ideias do grande
historiador e iberista português Oliveira Martins (História da civilização ibérica e História
de Portugal) uma âncora de sabedoria e pensamento em defesa da unidade dos povos
ibéricos. A relação de Unamuno com Portugal pode classificar-se de apaixonada. As suas
palavras assim no-lo revelam: “O que terá este Portugal-penso- para assim me atrair? O
que terá esta terra, por fora rente e branda, por dentro atormentada e trágica? Eu não sei;
mas quanto mais lá vou, mais desejo voltar”4.
Na apresentação da sua obra Por terras de Portugal e de Espanha (1911) recorda-nos
como figura magistral Eugénio de Castro e a sua obra lírica Constança, em memória da
que foi esposa do Infante D. Pedro, cuja amada Inês de Castro deixou páginas imortais na
literatura ibérica e lusitana, a começar pelas do próprio Luís de Camões. Não pode sur-
preender-nos, pois, que a partir da imagem de Constança e da triste lembrança de Alcácer
Quibir, Miguel de Unamuno veja Portugal “como uma bela rapariga campesina de costas
voltadas para a Europa, sentada à beira-mar, com os pés descalços na borda mesmo onde a
espuma das ondas cintilantes lhos molha, os cotovelos fincados nos joelhos e a cara entre
as mãos olha como o sol se põe nas águas infinitas. Porque para Portugal o sol não nasce
14 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

nunca: morre sempre no mar que foi teatro das suas façanhas e berço e sepultura de suas
glórias“5. Incorporamos o texto desta obra (pp. 107-115), correspondente à Guarda, es-
crito em Salamanca, em dezembro de 1908.
É talvez no seu livro Andanças e visões espanholas6 no que se recolhem com maior refle-
xão crítica seus pensamentos e ideias sobre a complexidade e rica diversidade da Península
3
Ver amplamente em Miguel de Unamuno: “Sobre la europeización (Arbitrariedades)”, La España Moderna,
1906, nº 216, pp. 64-83. Recordemos que esta posição de Unamuno traria uma polémica intelectual com
o outro grande pensador José Ortega y Gasset que verá na Europa a solução de todas as dores de Espanha.
4
As relações de Unamuno com Portugal foram objeto de investigação precoce entre os estudiosos da obra de
Unamuno. Devemos citar Miguel de Ferdinandy: Unamuno y Portugal, Cuadernos de la Cátedra Miguel
de Unamuno, 1951, nº 2, pp.111-131; também John E. Englekirk: En torno a Unamuno y Portugal,
Hispania, vol 42, nº 1 (Mar.,1959), pp.32-39; uma menção mais próxima e atualizada é a do Professor
Ángel Marcos de Dios: Unamuno, paradigma de las relaciones de España con Portugal, en Aula Ibérica
(Ángel Marcos de Dios, Editor), Aquilafuente, 123, Ediciones Universidad de Salamaca, 2007; mais
recentemente, o jornalista zamorano Agustín Remesal recriou as andanças unamunianas no seu livro, uma
novela de viagens, Por Tierras de Portugal, edición del autor, 2013.
5
Miguel de Unamuno: Por Tierras de Portugal y de España, Biblioteca Renacimiento, Madrid, 1911, pp.6 y 7.
6
Miguel de Unamuno: Andanzas y visiones españolas, Renacimiento, Madrid, 1922.
e suas ilhas. O seu olhar sobre a natureza e as paisagens de terras e vilas, de montanhas,
vales e povoações, alcançam uma grande profundidade e suas descrições merecem uma
leitura pausada e serena. Diz-nos Unamuno: ”a genuina paisagem é de pequenos recan-
tos. Ali é onde se colhe a alma do campo”7. Nas viagens, particularmente as que realiza
a lugares solitários e afastados, como os do Sistema Central (Sierra de Gredos, Sierra de
Francia…), Unamuno procurará a partir da visão do topo e dos cumes “o silêncio re-
criador”, “a majestade da montanha”, “a paz perpétua” ou “acalma absoluta”. Desta obra
propomos a leitura das páginas destinadas a Salamanca (pp. 127-133) e a Coimbra (pp.
134-141), escritas na Figueira da Foz, em agosto de 1914. E com um sentido poético e
também metafórico incluímos os belos versos de “Atardecer de estío en Salamanca” (pp.
278-279), que figuram no final do livro supra citado.
Ao falar aqui das paisagens e das viagens8 de Unamuno não nos podemos esquecer das
suas visitas à raia e aos povos agrícolas e ganadeiros do Oeste salmantino, que ficam resu-
midas no seu texto sobre os Arribes del Duero. Como nos explica nestas páginas recolheu
as notas e experiências de uma viagem realizada em 1898 e de outra em 1902; na primeira
entra por Masueco, na segunda por Fermoselle, atravessando a comarca de Zamora de
Sayago. Deste texto deveríamos sublinhar as manifestações relacionadas com os “senti-
mentos da natureza” que na realidade atravessa toda a obra unamuniana, que em algumas
descrições deste artigo alcança uma alta intensidade e profundidade, dividindo e contras-
tando tais sentimentos com uma aproximação inteligente aos saberes e expressões popula-
res dos lugares da raia9. E não podemos esquecer os contatos e o esboço que nos deixa do
seu amigo, o escritor e poeta português, Guerra Junqueiro, autor de “Os Simples”.

15 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Como escrevemos10, a natureza, além de suporte vital e marco filosófico, constituí para
Unamuno algo mais; através dos seus desenhos mostra-nos um homem profundamente
observador e dotado de certas habilidades técnicas para captar e expressar com sensibilida-
de pormenores do seu entorno próximo. Suas estâncias em Traguntia, em pleno Campo
Charro e muito próximo da zona fronteiriça, permitiram-lhe entender e interpretar a vida
no meio rural e as circunstâncias socioeconómicas de uma parte fundamental da província
7
Ibídem, p. 249
8
Sobre a paisagem e a Geração de 98 apresenta-nos uma valiosa e sólida reflexão Eduardo Marínez de Pisón; ver
Imagen del Paisaje. La Generación del 98, Fórcola Ediciones, Barcelona, 2012; temos também uma recompilação
dos artigos de Miguel de Unamuno em Viajes y Paisajes, La línea del Horizonte Ediciones, Madrid, 2014.
9
Existe uma edição recente deste texto, com estudo e apresentação de Laureano Robles e com fotografias
de Juan Francisco Blanco y Francisco Rodríguez; veja-se, Miguel de Unamuno: Los Arribes del Duero,
Iberdrola, 2ª Edición, Salamanca, 2004.
10
De 22 de junho a 12 de julho de 1998, expuseram-se no Salón Rectoral Casa Museo Unamuno alguns desenhos de
Unamuno, por ocasião do Congresso Internacional Miguel de Unamuno; o texto do folheto (“Dibujos de Miguel
de Unamuno”) de 14 páginas que acompanhou a exposição foi elaborado por: Valentín Cabero Diéguez, Cirilo
Flórez Miguel, Pablo García Castillo e Laureano Robles Carcedo. Em 2011 ampliou-se o conteúdo na exposição
“Miguel de Unamuno, Dibujos” que se converteria em itinerante; o catálogo é de Fernando Rodríguez de la Flor.
de Salamanca nas primeiras décadas do século XX: o mundo das “dehesas” e das “alquerias.
Os desenhos de Unamuno recolhem múltiplas facetas do meio rural e, ao lado dos valores
plásticos, mostra-nos mensagens cheias de sugestões e com grande sentido didático.
A “Oda a Salamanca” que incorporamos neste itinerário foi escrita em 1904, mostrando-
-nos Unamuno nas suas trinta e uma estrofes a sua visão da cidade de Salamanca e da sua envol-
vência. Segundo o amplo e profundo estudo de Luciano González Egido, a Ode a Salamanca “es
la gran metáfora unamuniana y el testimonio más evidente de su identificación con la ciudad”;
além disso, é um bom resumo da sua poética cheia de simbolismos11. Cabe recordar os versos
dedicados a Frei Luis de León, pelo que significam na própria história da Universidade e pela
mensagem que transmitem de sossego e de meditação, longe do “mundano ruido” e do tráfego
urbano, convertendo a Ode numa verdadeira homenagem à cidade de Salamanca e ao campo
que a rodeia, a Frei Luis e ao Renascimento, à vida sossegada que exigem os ensinamentos na
sua Universidade. Quando se cumprem 800 anos da Fundação dos Estudos recreamos com esta
Ode o espírito e as paisagens de Frei Luis de León (1527-1591), fruto da sua vida de retiro e
recolhidos no início da sua obra-mestra De los nombres de Cristo. Aproxima-nos, assim, às para-
gens da envolvente salmantina como “La Flecha”, nas margens do rio Tormes, transladando-nos
desde a beleza do “alto soto de torres” à aprazibilidade da paisagem campesina e natural.

3. Olhar ibérico e universal: a reflexão humanista e crítica de Eduardo


Lourenço
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O ensaísta e pensador Eduardo Lourenço (de Faria) nasceu em 1923 numa aldeia
adjacente à fronteira, S. Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida, filho mais velho de sete
irmãos de Abílio de Faria, oficial do Exército, e de Maria de Jesus Lourenço. Reconhecido
pela sua capacidade de interpretar a nossa realidade, enquadra o ambiente filosófico do
existencialismo a partir dum pensamento crítico, recebeu as mais altas honras em Portugal
e França, embora a riqueza de estudos humanísticos e literários se situem para além de
compartimentos estanques e de classificações académicas.
Frequentou a Escola Primária em S. Pedro do Rio Seco, antes de entrar no Liceu da
Guarda e de terminar os estudos secundários no Colégio Militar em Lisboa. Em 1940
entrou para o Curso de Histórico-Filosóficas, da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra onde concluiu a sua Licenciatura, em 23 de julho de 1946, com uma Dissertação
intitulada “O Sentido da Dialética no Idealismo Absoluto”. Assumiu, então, as funções de
Professor Assistente na Universidade de Coimbra que desempenhou até 1953.
11
Ver el estudio de Luciano González Egido: Salamanca, la gran metáfora de Unamuno, Ediciones Universidad
de Salamanca, 1983.
A longa itinerância que iniciou acabaria por o levar como Leitor de Língua e Cultura
Portuguesa, entre 1953 e 1958, às Universidades de Hamburgo, Heidelberg e Montpellier.
Em 1954 casou com Annie Salomon. Foi Professor Convidado na Universidade Federal
da Baía (Brasil), em 1958 e 1959, onde ministrou a disciplina de Filosofia. Regressou a
França para ocupar o lugar de Leitor, a cargo do Governo francês, nas Universidades de
Grenoble e de Nice, desempenhando posteriormente as funções de Maître-Assistant, nesta
última Universidade, até à sua jubilação no ano letivo de 1988-1989. Em 1975, ano em que
fixou residência em Vence (Nice), recusa o convite feito por Vítor Alves para ser Ministro da
Cultura. Foi nomeado Adido Cultural junto da Embaixada de Portugal em Roma e, a partir
de 1988, Diretor da Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica; desde 2002 é administrador
não executivo da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 7 de Abril de 2016, tomou posse como
Conselheiro de Estado por designação do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
Eduardo Lourenço aborda nos seus ensaios temas complexos que nos interpelam e
desassossegam os nossos dias, problemas bem diversificados de indubitável atualidade, en-
trelaçados pela reflexão filosófica, ensaio social e político, análise literária comparada, reve-
lando sempre uma enorme curiosidade intelectual e um grande compromisso cívico. A sua
vastíssima obra inicia-se, em novembro de 1949, com a publicação dum primeiro livro,
Heterodoxia I, em edição de autor, desencadeando uma torrente produtiva incessante,
amplamente reconhecida como atestam os inúmeros e prestigiados prémios que lhe foram
concedidos, onde relevam o Premio Camões (1996) e o Prémio Fernando Pessoa (2011)12.
A persistente participação em inúmeros eventos académicos e outras iniciativas cultu-
rais, cívicas e políticas granjearam a Eduardo Lourenço enorme prestígio e muitas distin-

17 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


ções académicas, onde se incluem diversos Doutoramentos Honoris Causa, concedidos pelas
Universidades do Rio de Janeiro (1995), de Coimbra (1996), Nova de Lisboa (1998) e de
Bolonha (2007), instituindo a Universidade de Bolonha a Cátedra Eduardo Lourenço de
História da Cultura Portuguesa (2007). É ainda de referir a Medalha de Mérito Cultural
12
Merecem ainda referência: Prémio Casa da Imprensa (1974, pela obra Pessoa Revisitado – Leitura
Estruturante do Drama em Gente); Prémio P.E.N. Clube Português de Ensaio (1982, 2009); Prémio Jacinto
do Prado Coelho (1986, pela obra Poesia e Metafísica; 2013, graças a Tempo da Música. Música do Tempo);
Prémio Nacional da Crítica (1986, devido a Fernando, Rei da nossa Baviera); Prémio Europeu de Ensaio
Charles Veillon (1988, distingue o conjunto da sua obra no ano em que lançou Nós e a Europa – ou as
duas razões); Prémio António Sérgio (1992); Prémio D. Dinis (1995, pelo livro O Canto do Signo); Prémio
Vergílio Ferreira (2001); Prémio da Latinidade (2003); Prémio Autores (2011); Prémio Extremadura a la
Creación (2006); Prémio Vasco Graça Moura-Cidadania Cultural (2016).
Foi ainda distinguido com várias homenagens e condecorações nacionais e internacionais: (i) Portugal:
Grande-Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada (10 de Junho de 1981); Grã-Cruz da Ordem
do Infante D. Henrique (10 de Junho de 1992); Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada
(21 de Maio de 2003); Grã-Cruz da Ordem da Liberdade (9 de Junho de 2014); (ii) França: Oficial da
Ordem Nacional do Mérito de França (1996); Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras de França (2000);
Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra de França (2002); (iii) Espanha: Encomienda de Numero
de la Orden del Mérito Civil pelo Rei de Espanha (2009).
do Ministério da Cultura (2008) bem como a Medalha de Ouro da Cidade de Coimbra
(2001) e a Medalha de Ouro da Cidade da Guarda (2008).
Estas duas cidades, umbilicalmente ligadas ao itinerário pessoal de Eduardo Lourenço,
destacam-se como suas pátrias adotivas, a que ficará premente ligado por indizíveis laços afe-
tivos. Este facto levou-o a legar parte do seu espólio a instituições da Guarda e de Coimbra:
(i) à Câmara Municipal da Guarda, em 2008, ofereceu um acervo de perto de 3.000 títulos
que fazem parte dos fundos da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (BMEL)13; (ii) à
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC) entregou o seu fundo bibliográfico
relacionado com Filosofia e História das Ideias e da Cultura, em 2011, ano do Centenário
da instituição onde foi aluno e Assistente; (iii) à Câmara Municipal de Coimbra doou cerca
de 3000 livros, em 28 de novembro de 2015, que se encontram depositados na Casa da
Escrita, na Sala Eduardo Lourenço, criada pelo município para os albergar 14.
Estas razões fazem da Guarda e de Coimbra lugares incontornáveis da geografia real e
imaginária de Eduardo Lourenço, pontos a incluir em qualquer roteiro que vise percorrer os
labirintos da sua obra ou as memórias do seu percurso mais íntimo. Deparamos nestes lugares
com sinais dum passado irrepetível, testemunhos físicos e intangíveis que apontam caminhos
de futuro, onde se destaca a Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, inaugurada em 2008, e
o Centro de Estudos Ibéricos, inaugurado em 2005. O CEI é uma instituição peculiar, criada
em 2000 após um desafio feito por Eduardo Lourenço à Guarda, em 1999, no ano em que
a cidade celebrou o seu VIII Centenário. Apostado em promover a cooperação científica e
cultural, a parceria que esteve na génese do CEI, formada pelas Universidades de Coimbra e
de Salamanca, a Câmara Municipal da Guarda e o Instituto Politécnico da Guarda, interpreta
18 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

o eixo estruturante formado por Coimbra-Guarda-Salamanca como uma geografia estratégica


e inteligente. Assume, por outro lado, o legado de Eduardo Lourenço como um património a
preservar e uma memória que importa divulgar, cuja materialização passa por iniciativas que
se complementam, tais como: (i) promoção o legado do seu mentor, patrocinando estudos
e divulgando a sua obra, onde se inclui o Prémio Eduardo Lourenço, criado em 2005 para
agraciar, anualmente, personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da
cultura, da cidadania e da cooperação ibéricas; (ii) promover a cooperação cultural e a inves-
tigação visando a sua afirmação como plataforma de divulgação científica.
Além de múltiplos ensaios e trabalhos académicos, a vida e a obra de Eduardo Lourenço
tem atraído outros olhares, incluindo diversos documentários, como os que foram recente-
mente exibidos: (i) “Regresso Sem Fim” (2011), documentário autobiográfico, realizado por
Anabela Saint-Maurice a partir duma ideia original de Rui Jacinto, coprodução da RTP e do
13
Cf. CEI (2008): Leituras de Eduardo Lourenço. Um labirinto de saudades, um legado com futuro, livro que
elenca todos os títulos doados e faz uma detalhada apresentação da sua obra.
14
A parte restante do espólio de Eduardo Lourenço, sobretudo manuscritos, estão depositados na Biblioteca Nacional.
Centro de Estudos Ibéricos, estreada em S. Pedro do Rio Seco numa homenagem a Eduardo
Lourenço, quando fez 88 anos. Trata-se dum pretexto para uma visita guiada aos locais da
infância, conta com a participação de vários interlocutores, referindo a sinopse que “inclui
uma incursão à vizinha cidade de Salamanca, onde Eduardo Lourenço fará a evocação de
um intelectual que marcou a sua geração: Miguel Unamuno”; (ii) “Eduardo Lourenço – O
Labirinto da Saudade” (2018), adaptação ao cinema por Miguel Gonçalves Mendes duma
das obras emblemáticas do autor, “O Labirinto da Saudade – Psicanálise mítica do destino
português”, estreada na RTP, em 23 de maio de 2018, dia em que completou 95 anos.
Como alguém referiu, “a obra de Eduardo Lourenço é extensa a perder de vista, “tão
grande como uma paisagem ao longe”, na fantástica expressão de Clarice Lispector”15.
A reconstrução da sua longa e rica trajetória intelectual leva-nos a remeter para a obra
“Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia” (2003)16, obrigando o conhecimento
da transcendência da sua obra a consulta de algumas publicações do CEI sobre diferentes
perspetivas dos seus trabalhos e ensaios17. Eduardo Lourenço é considerado, por isso, “o
grand témoin do Portugal Contemporâneo, das suas raízes republicanas, do Estado Novo,
do Portugal do 25 de Abril ao Portugal com a Europa “como destino”, ao Portugal no
limiar do Futuro. Por isso é também historiador e arqueólogo, além de psicanalista do seu
destino. Mas é sobretudo o cronista, o novo Fernão Lopes” (Jorge Gaspar, 2017).
Pelo que mencionamos vale a pena uma breve digressão por alguns dos seus livros e ensaios
de referência, reveladores da sua capacidade de diálogo com os próprios textos que analisa e
pela reflexão crítica sobre os grandes temas que o preocupam. Estamos ante uma obra donde
emanam dois grandes substratos de conhecimento e reflexão; um, entrecruza propostas e leitu-

19 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


ras filosóficas, sobretudo existencialistas (Hegel, Husserl, Nietzsche, Heidegger, Kierkegaard,
Sartre…); outro, integra criatividade literária, de ontem e de hoje, dos clássicos ibéricos e

15
Jorge Gaspar (2017), Saudação a Eduardo Lourenço, Iberografias 13, pp.: 333-336. Intervenção na sessão solene,
em 28 de setembro 2017, que acolheu Eduardo Lourenço como membro da Academia das Ciências de Lisboa.
16
Manuela Cruzeiro e María Manuel Baptista, “Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia”, Campo das
Letras, Coimbra Capital Nacional da Cultura e Centro de Estudios Ibéricos, 2003.
17
O Centro de Estudos Ibéricos, na sua Coleção Iberografias, assegurou várias edição sobre Eduardo Lourenço:
(1) O outro lado da lua – Inéditos de Eduardo Lourenço, 2004 (Seleção de textos e entrevistas de Maria Manuela
Batista; Coleção Iberografias, nº 3); (2) Existencia e Filosofia – O ensaísmo de Eduardo Lourenço, 2008 (João
Tiago Lima; Coleção Iberografias, nº 12); (3) Vida Partilhada – Eduardo Lourenço, o CEI e a Cooperação
Cultural, 2013 (Edição comemorativa do 90º aniversario do autor. Compilação de textos de Eduardo Lourenço
entretanto publicados; Coleção Iberografias, nº 21); (4) Falar Sempre de Outra Coisa – Ensaios sobre Eduardo
Lourenço, 2013 (João Tiago Pedroso de Lima; Coleção Iberografias, nº 22); (5) Metafísica da Revolução –
Poética e Política no ensaísmo de Eduardo Lourenço, 2013 (Teresa Filipe; Coleção Iberografias, nº 23).
Por ocasião da inauguração da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (BMEL), em 27 de Novembro de 2008,
o CEI editou duas publicações com outro registo: (1) Leituras de Eduardo Lourenço. Um labirinto de saudades,
um legado com futuro, 2008. Contem uma extensa bibliográfia do autor, publicada até à data, bem como a lista,
com perto de 3.000 títulos, doados ao Município da Guarda e que fazem parte dos fundos da BMEL; (2) Um
(e)terno olhar. Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda, 2008, catálogo de uma exposição homónima.
europeus à modernidade contemporânea e atual (Dostoiesvski, Kafka, Camus…). Não faltam
nesse universo intelectual os seus magistrais estudos e aproximações ao genial Fernando Pessoa,
cuja difusão e conhecimento nos sublinha o próprio Eduardo Lourenço na tradução para
espanhol de Ángel Crespo, reconhecendo e recordando neste preâmbulo a sua honestidade
intelectual e iberismo. Assinalemos, pois, entre estas obras: “Heterodoxia” (1949).
Para um conhecimento mais amplo deve consultar-se a sua obra completa, que começou
a ser publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian18, instituição cultural de referência em
Portugal a que Eduardo Lourenço se encontra estreitamente vinculado. Pelo que acabamos
de ver a obra de Eduardo Lourenço “tem muitas entradas sendo uma possível a do L de local:
um itinerário continuadamente feito e acrescentado, do local para o global – um global feito
de múltiplas visitações locais. Um global sobre o qual Eduardo Lourenço tem muitas dú-
vidas, mormente no plano cultural, pois “uma World culture não é a cultura de ninguém”,
apenas permitiu que se chegasse à Disneylândia planetária” (Jorge Gaspar, 2017).
20 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço. Vence, 2008 (RJ)

18
A obra completa de Eduardo Lourenço, que a Fundação Calouste Gulbenkian está a editar, proporcionou,
até ao momento, os seguintes títulos: (1) Heterodoxias (I Volume), Coordenação: João Tiago Pedroso de
Lima; Carlos Mendes de Sousa (1ª ed., 2011; 2ª ed. 2012); (2) Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e
Outros Ensaios (II Volume), Coordenação de António Pedro Pita; ed. lit.: João Tiago Pedroso de Lima;
Carlos Mendes de Sousa (1ª ed., 2014); (3) Tempo e poesía (III Volume), Coordenação de João Tiago
Pedroso de Lima; Carlos Mendes de Sousa (1ª ed., 2016).
Em distintas entrevistas recentes, Eduardo Lourenço fala-nos do seu itinerário vital
e recorda-nos que “nessa terra de fronteira – onde nasce – vivi como se estivesse num
pequeno paraíso. Era uma terra naquele tempo muito distante da capital. O País em que
estamos agora é um país que tem muito pouco que ver com aquele. Nesse país estão todas
as minhas raízes, todos os meus passados”. E em relação a este sentimento de “saudade”
que nos permite entender melhor Portugal diz-nos que “é expressão destilada na educação
de Portugal, e não só na sua identidade interna, mas também entre os portugueses que a
levaram consigo ao emigrar. Primeiro a todo o mundo, mas ultimamente para a Europa.
Assim surgiu uma “saudade” que tem menos razão de ser que no passado, porque a dis-
tância é muito menor. Ir para a Europa não é o mesmo que ir para a Índia no século XVI.
Mas é como se os portugueses não se pudessem desprender do signo que os representa no
mundo: o país da “saudade”.19

4. Territórios de Eduardo Lourenço: demanda duma geografia simbólica


e da história das suas ideias

A obra de Eduardo Lourenço, ampla e complexa, por paradoxal que pareça não deixa
de ser “referenciada no tempo e no espaço, desenhando um atlas com aberturas para múltiplos
territórios, que acabam por desenhar as geografias do espírito. Mas prevalecem as geografias
de viagens, da viagem, que são como que o destino de quem nasce na raia: de São Pedro
de Rio Seco à procura do Mundo, ou o Mundo à procura de São Pedro de Rio Seco, de

21 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Eduardo Lourenço. Eduardo Lourenço viaja através do Portugal Contemporâneo e a sua
obra define as grandes etapas dessa viagem” (Jorge Gaspar, 2017).
O itinerário de Eduardo Lourenço segue uma espiral que começa em S. Pedro do
Rio Seco, toca a Guarda e, após uma episódica passagem por Lisboa e antes de se abrir
ao Mundo, acaba por repousar, transitoriamente, em Coimbra. O percurso exterior
que encetou levou-o a França, Brasil e, mais episodicamente, a outros países que farão
dele um verdadeiro cidadão do mundo que nunca rompeu nem abdicou das suas
telúricas raízes raianas e ibéricas. A geografía vivida dum percurso longo em termos
temporais e amplo do ponto de vista espacial, tem como lugares marcantes Coimbra,
Guarda e S. Pedro do Rio Seco.
Depois de 1954 viveu mais tempo fora que dentro de Portugal; se as passagens por
Hamburgo, Heildelberg, Montpellier, Salvador de Bahía, Grenoble, Nice e Vence dão aos
seus ensaios uma perspectiva aberta e tolerante e são referências constantes nas suas

19
Entrevista a Eduardo Lourenço de Alfonso Armada en ABC Cultural, 29-05-2017.
Biblioteca Joanina (Universidade de Coimbra) (RJ)
22 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (Guarda) (RJ)

Biblioteca da Universidade de Salamanca (SS)


reflexões os lugares de Portugal e da Península Ibérica por onde deambulou nunca saíram
das suas preocupações. De algum modo segue, nos seus ensaios, a estrela Unamuniana
ou as ideias do seu admirado Montaigne. Os fundamentos do seu pensamento nascem,
é verdade, em Coimbra, no ambiente e no contexto da sua Universidade; primeiro como
estudante nos anos quarenta, depois como professor de filosofia, movendo-se até 1953
num ambiente intelectual aberto e criativo que foi tecendo com companheiros de jornada.
As raízes intelectuais e os laços criados em Coimbra não o levou a esquecer os anos de
juventude passados em S. Pedro do Rio Seco, Guarda e Lisboa.
A viagem a estes territórios mátrios, feita na companhia de Miguel de Unamuno,
representa um certo retorno simbólico de Eduardo Lourenço, qual “regresso sem fim”,
encetado no sentido inverso ao que fez vai para nove décadas, trajeto semelhante ao que foi
trilhado por inúmeros dos seus conterrâneos. Contudo, temos de levar em consideração
que as viagens de Lourenço e Unamuno, além de distintas no tempo e nas motivações,
foram realizadas por personalidades distintas, proporcionando também, necessariamente,
resultados diferentes tanto na forma como nos conteúdos.

23 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Tempos de Coimbra: “nós somos a nova geração de setenta”. Os tem-
pos de Coimbra foram férteis nas coisas do espírito e na história das ideias e, natu-
ralmente, mais parcos em evidências materiais das passagens de ambos pela cidade.
O profundo reconhecimento que Miguel de Unamuno nutria por Coimbra, ex-
presso nos seus textos, coloca a sua relação com a cidade no plano espiritual e
na esfera dos afetos, valoriza o espirito que emanava do lugar e o enorme capital
cultural, académico e científico da sua Universidade. A relação mais imediata que
estabeleceu com a cidade, a par daquele intangível sentimento, passou pela cum-
plicidade pessoal que estabeleceu com Eugénio de Castro20, que havia de tornar
Doutor Honoris Causa pela Universidade de Salamanca, e pelo vínculo com o
Instituto de Coimbra21, prestigiada instituição de que foi um dos mais ilustres sócios
correspondentes estrangeiros.
O imaginário e a praxis de Eduardo Lourenço segue outras coordenadas, assume
azimutes que desenham uma geografia urbana de Coimbra diferente, mais intima, cúm-
plice e intensa. Foi com deslumbramento e desassossego que chegou em 1940 à pacata
cidade, sentimento comum ao de sucessivas gerações de estudantes que nela passaram a
flor das suas mocidades: “Coimbra foi para mim a descoberta de um outro mundo, um
mundo novo de novas amizades e sobretudo de entrar num percurso estranho, primeiro
nas ciências, depois nas letras, e ficar para sempre no círculo encantado desta cidade
universitária, na altura única”. A sua famosa heterodoxia, que se enraizou durante esses
tempos de Coimbra, progrediu paralelamente a uma intrinseca rebeldia que o levou a
contestar, como tantos outros, a visão tradicional de Coimbra, cantada à exaustão em
24 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

languidas canções. Contestavam a cidade comprimida do Choupal até à Lapa, trans-


formada na capital do amor em Portugal desde que o apologético filme Capas Negras,
estreado em Maio de 1947, assumiu a lenda como hino e eternizou Coimbra como lição
20
Eugénio de Castro e Almeida (Coimbra, 4 de março de 1869 – 17 de agosto de 1944), ensinou na
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, depois de se ter formado Curso Superior de Letras em
Lisboa (1889); fundou revistas, colaborou com vários publicações e deixou uma obra poética marcada pelo
Simbolismo.
21
“O Instituto de Coimbra foi uma academia científica, literária e artística, fundada em Coimbra em
1852, no contexto da Regeneração e do Fontismo, e que se manteve em actividade até 1982. A sua
última revisão estatutária (1967) definia o objecto e acção do Instituto como a promoção e o desen-
volvimento das ciências, das letras e das artes e a valorização da cultura portuguesa. Resultou da fusão,
em 1849, dos institutos da Academia Dramática de Coimbra, funcionando inicialmente como um
clube dos docentes da Universidade de Coimbra, mais concretamente como um Clube dos Lentes,
voltado para o academicismo da então única universidade portuguesa. (…) A Associação Académica
de Coimbra, a mais antiga associação de estudantes portuguesa, nascida em 1887, também se encontra
associada ao nascimento do Instituto de Coimbra, com quem partilhou instalações, numa convivên-
cia nem sempre pacífica. Entre as publicações do Instituto de Coimbra conta-se O Instituto: Revista
Científica e Literária, publicado de 1852 a 1981, o qual foi, até cessar a publicação, a mais antiga revista
científico-literária publicada em Portugal”.
de amor. O olhar que concebiam de Coimbra era distinto da visão romântica domi-
nante: “Eu nunca fui muito folclorizante e na minha geração éramos muito reticentes
em relação ao culto da tradição e das praxes. O grupinho em que eu me vim depois a
reconhecer era muito anti praxista, que naquela altura não significava apenas uma coisa
de ordem de ritos académicos com uma certa tradição, era também uma maneira de não
querer comungar da atmosfera “luso oficial” do país; ser anti-praxista era um sentimento
de oposição de algum modo latente”22.
O olhar que lançavam sobre a cidade também correspondia à maneira diferente
e alternativa como liam, interpretavam e pretendiam estar no mundo: “A mitologia
coimbrã existe e eu naturalmente ignorava, quando cheguei aqui, em 1940, que ia
entrar num mundo com outras regras e outros ritos, sobretudo naquela época em que
Coimbra ainda tinha essa espécie de monopólio muito simbólico, porque, na verda-
de, naquela altura só havia mais duas ou três universidades e todas elas muito mais
recentes do que a famosa Universidade de Coimbra” (EL). Vivida com intensidade, a
geografia urbana desta Coimbra corresponde a um mapa cuja legenda inclui, além da
Universidade e dos quartos e casas que habitavam, as tertúlias sediadas em alguns cafés
da baixa ou em espaços mais privados, propícias ao desenvolvimento universo literário
onde se movimentavam.

22
Era um sentimento comungado por muitos colegas seus contemporâneos:
– Alfredo Fernandes Martins (Coimbra, 1919-1982), escreveu o seguinte sobre a sua cidade: “Amo as
gentes e as terras à minha maneira: de coração aberto, olhos nos olhos, retinas presas na paisagem, e
bem atento o juízo valorativo, não vá a correcta atitude psicológica descair em sentimentalismos piegas

25 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


ou descambar em ridículos surtos românticos – que uns e outros são agentes corrosivos do prestígio
emocional dos seres ou do torrão amado. Deste jeito – e se amar é conhecer –, amo a esta Coimbra,
berço meu, de um amor reflectido e sereno, amor que me vem da meditada interpretação plástico-geo-
gráfica da paisagem, do que sei do evoluir do aglomerado urbano no curso das idades, da admiração
pela actividade fecunda dos seus filhos, da inteligência do que tem sido o contributo da cidade para a
vida colectiva da Grei.
Tenho bem presente que se forjou de Coimbra uma visão convencional que implica sempre não sei que
cenário falseado, que rouxinóis; não sei que vulto esguio de tricana, que outros motivos de igual dolên-
cia – voluptuosa caricatura traçada pela sensualidade de observadores apressados e superficiais… Cada
um vê com seus olhos, cada qual sente conforme a sua vida psíquica, cada homem cria as suas paisagens
interiores – e eu, nesta minha condição humana, também trago comigo uma visão de Coimbra, imagem
que bem difere daquela outra cantada por lânguidos trovadores, mas que me parece ser a da Coimbra
que importa amar, seja conhecer. Essa Coimbra…” ( In: Esta Coimbra ..., 1951).
– Eugénio de Andrade (Póvoa da Atalaia, Fundão, 1923-2005) escreveu um poema Ao Eduardo
Lourenço, na Flor da sua Idade, com a cidade sempre em pano de fundo, embora sem nunca referir
Coimbra: “Era bonita mas tão provinciana/ a cidade. Dos seus muros pasmados/ a luz fina caía preguiçosa/
nas areias do rio. Mas o resto/ era vulgaridade e sonolência./ Só as árvores não eram vulgares:/ de tão formo-
sas, tornavam o céu/ de cristal, como se o verão fora/ imortal entre plátanos e choupos./ Ali nos encontrámos
certo dia, / éramos jovens e mais jovem que nós/ era a poesia que nos acompanhava. / Holderlin, Keats,
Pessanha e o Pessoa/ eram então – e não o serão ainda? –/ os nossos amigos. O mais, gente ideias/ costumes,
tudo tinha o mesmo cheiro/ de caserna/ aliada a sacristia./ Dessa cidade em nós nada ficou./ De nós, que
ficará nessa cidade?” (21.10.83).
Coimbra. Vista Geral (RJ)

O quotidiano do estudante de Coimbra girava em torno da universidade; no caso de


Eduardo Lourenço o centro era a velha Faculdade de Letras, onde foi aluno (1940-1946),
depois Assistente (1947- 1953), demolida nos anos 40 quando o Estado Novo decidiu
criar a nova Cidade Universitária. Havia de voltar aos mesmos lugares, como bom filho
26 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

pródigo, meio século depois, em dois momentos capitais: para receber a maior distinção,
quando foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa (1996); para legar à sua
Faculdade de Letras, no ano do Centenário da sua fundação (2011), a parte da sua biblio-
teca relacionada com Filosofia, História das Ideias e da Cultura.
A passagem de Eduardo Lourenço pela Universidade de Coimbra (1940-1953) ocor-
reu quando “era uma universidade ainda muito familiar, e daí cheia de ritos, de gente que
tinha tradições académicas que passavam de pais para filhos. Coimbra era realmente um
núcleo um pouco à parte, mas quando me refiro à mitologia coimbrã penso fundamental-
mente que esta cidade, além de ser o Studium Universalis foi também a cidade da juven-
tude portuguesa que aqui estudava e onde há uma espécie de continuidade não de tipo
ficcional, mas de tipo poético. A poesia em Portugal fazia-se na Universitária”.
Aqui começou o seu envolvimento com a literatura ao comprometer-se com um pu-
nhado de companheiros empenhados na demanda de novos horizontes estéticos, culturais
e políticos, numa altura em que ainda se houviam os ecos da chamada “Questão Coimbrã”:
“a gente sabe que a mitologia coimbrã tem o seu ponto mais alto, sobretudo pelo estatuto
literário, no famoso texto de Eça de Queirós dedicado a memória de Antero de Quental,
onde toda a mitologia moderna do lugar cultural e também de vocação ideológica da aca-
demia de Coimbra é invocada como qualquer coisa de representativa de uma nova leitura
do passado cultural deste país. As conferências tiveram lugar em Lisboa mas foram reali-
zadas por antigos estudantes, quase todos estudantes de Coimbra, entre os quais Antero
e Eça de Queirós. E Eça, nostalgicamente, escreve esse famoso texto em que se identifica
com Antero e instala na nossa mitologia moderna um discurso sobre Coimbra”.
A “Questão Coimbrã” havia sido desencadeada em 1865 quando velhos poetas român-
ticos, onde pontificavam António Feliciano de Castilho e Pinheiro Chagas, censuraram
jovens contestatários, da Escola de Coimbra, acusando-os, entre outras coisas, de falta de
“bom senso e bom gosto”. Antero de Quental, um dos diretamente visados, instituciona-
liza a contenda, que a história fixou como “Questão Coimbrã”, replicando com um texto
que intitulou, precisamente, de “Bom Senso e Bom Gosto”23. A polémica desencadeou um
forte movimento que apostava na modernização e inovação da literatura portuguesa, con-
trapunha o realismo e o positivismo e considerava inevitável a intervenção na sociedade a
partir duma arte independente que rompesse com convenções e comodismos instalados 24.
A geração de Eduardo Lourenço, que se revia nesta herança, também irá lançar um
movimento contestatário, nos anos 40, centrado na literatura e nas artes, embora de al-
cance mais vasto, assim recordado: “na nossa Queima das Fitas, um bocadinho tocados,
íamos no desfile pela Sá da Bandeira abaixo a dizer “nós somos a nova geração de setenta”.
Felizmente não ficou registo daquelas loucuras que, naquela altura, eram compreensíveis.
Mas esta assemelhação era muito interessante porque era para nós estarmos a reivindicar,

27 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


a manifestar contra o que não se podia nomear, embora a não nomeação fosse superior à
nomeação, e até mais interessante do ponto de vista de imaginação”. Talvez fosse este o
verdadeiro espirito coimbrão que o tempo se encarregou de degenerar.
23
Antero de Quental, poeta, filósofo e líder estudantil, foi figura cimeira da Geração de 70; suicidou-se num jardim
de Ponta Delgada a 11 de Setembro de 1891, terra onde nasceu a 18 de abril de 1842. O fim trágico de Antero,
como de outros escritores portugueses, onde se inclui o grande amigo de Unamuno, Manuel Laranjeira, levá-lo-
-ia à seguinte reflexão: «O pessimismo suicida de Antero de Quental, de Soares dos Reis, de Camilo, mesmo do
próprio Alexandre Herculano (que se suicidou pelo isolamento como os monges) não são flores negras e artificiais
do decadentismo literário. Essas estranhas figuras de trágica desesperação, irrompem espontaneamente, como
árvores envenenadas do seio da terra portuguesa. São nossas: são portuguesas: pagaram por todos: expiaram a
desgraça de todos nós. Dir-se-ia que foi uma raça que se suicidou. Em Portugal chegou-se a este princípio de
filosofia desesperada – o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país,
tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa» (Por terras de Portugal e de Espanha).
24
Juntam-se a Antero de Quental, Teófilo de Braga e Eça de Queirós, estudantes em Coimbra, Ramalho Ortigão,
Oliveira Martins e Guerra Junqueiro, grupo que ficará conhecido como a Geração de 70, organizadores das
Conferências Democráticas do Casino Lisboense (1871), proibidas pelo Governo por defenderem ideais repu-
blicanos e liberais. Agitaram ideias e colocaram na agenda várias questões civicamente relevantes, fossem temas
políticos, sociais, literários ou religiosos. Vendo que não vingaram em Portugal os avanços sonhados, sem terem
alcançado o sucesso esperado, ironicamente, acabaram por se auto-proclamarem “Os Vencidos da Vida”.
A plataforma de intervenção cultural e cívica, que se reuniria em torno da revista Vértice25,
de reação à geração da Presença, acabou por estruturar o movimento neorrealista que também
foi, à sua maneira, uma questão coimbrã. Eduardo Lourenço envolveu-se nos primórdios da-
quela revista, quando estava prestes a formar-se, estreando-se com um poema para, posterior-
mente, publicar algumas recenções e ensaios que havia de reunir em Heterodoxia I (primeira
edição de autor, 1949). Embora se tenha emancipado cedo deste movimento não ficou inibido
de elaborar o estudo, profundo e esclarecido, “Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista” (1968).
As duas ruturas atrás referidas referidas, 1865 e anos 40 do século xx, ocorridas à som-
bra da velha torre da Universidade de Coimbra, só tiveram paralelo, já nos anos 60, quando
a inauguração do Edifício das Matemáticas, em 17 de Abril de 1969, desencadeou uma
Crise Académica cujas repercursões socio-politicas superaram as iniciais reinvindações es-
tudantis. Todos estes confrontos de ideias acabaram por deixar marcas na geografia urbana:
as intangíveis, embora subtis e quase imperceptiveis, foram profundas e persistentes, conti-
nuam a ser memória viva impregnando o espirito do lugar; os sinais materiais mais signifi-
cativos podem-se encontrar ao percorrer parte do centro histórico de Coimbra.
A Universidade e a Faculdade de Letras, importantes tanto para Unamuno como para
Eduardo Lourenço, pelos motivos evocados, são pontos incontornáveis dum roteiro que
percorre muitos outros locais que passamos a destacar:
(i) Universidade e o Largo da Feira são envolvidos por um conjunto monumental que se inicia
no Paço das Escolas e na Biblioteca Joanina, passa pelo Largo D. Dinis, onde se ergue o Edifício
das Matemáticas, terminando junto às escadas da Sé Nova, onde Eça de Queiroz teve um primei-
ro e impactante encontro com Antero de Quental, onde este poeta declamava ao luar26.
28 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

25
A revista Vértice, fundada em Coimbra em 1942, centrou o seu foco na cultura e arte. A nova direcção, que assumiu
funções em 1945, fez da revista coimbrã a “principal tribuna do movimento neorealista português e um instrumento
de resistência à ditadura do Estado Novo”. Apareceram nas suas páginas alguns dos mais importantes escritores e
artistas da época, onde se destacaram Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Fernando Namora
(Coimbra), bem como Mário Dionísio, Alves Redol, Manuel da Fonseca e Fernando Lopes Graça (Lisboa).
26
O célebre texto de Eça de Queiroz – Um génio que era um santo -, publicado originalmente em 1896, no In Memoriam
de Antero de Quental (ver Notas Contemporâneas), começa assim: “Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou
Maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova,
romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda à maneira siríaca,
reluziam, aureoladas. O braço inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa por uma ponta,
rojava por trás, largamente, negra nas lajes brancas, em pregas de imagem. E, sentados nos degraus da igreja, outros homens,
embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias claras, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos.
Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssi­mo século
XVIII – mas um bardo, um bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem com efeito cantava o
céu, o infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura e
…os transcendentes recantos
Aonde o bom Deus se mete,
Sem fazer caso dos Santos
A conversar com Garrett!
Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:
– É o Antero!…”
(ii) Rua do Loureiro, eixo estruturante de qualquer geografia literária de Coimbra,
tem por extremos os Largos (da Feira e do Salvador) e a Torre do Anto e, a meio, a
Casa da Escrita. É uma rua onde viveram Eça de Queiroz e Virgilio Ferreira; a partir
dela podemos aceder a ruas adjacentes onde é possivel encontrar outras referências do
imaginário literário coimbrão, tais como: (a) Rua das Flores, onde viveu José Régio e
nasceu a Revista Presença; (b) Rua das Matemáticas, onde nasceu Alfredo Fernandes
Martins e se encontra, hoje, a Real República Rás-Te-Parta27, fundada em 27 de Março
1943, na Rua dos Estudos, nº17-2º, donde transitou, em 1949, por altura da demoli-
ção da Alta; (c) Couraça dos Apostolos onde viveram Carlos Oliveira, Fernando Namora
e Afonso Duarte.

(iii) Casa da Escrita, antiga casa de João José Cochofel, situada no encontro da Rua do
Loureiro com a Rua João Jacinto, ponto de encontro e lugar de tertúlia do grupo neor-
realista; numa das salas do edifício foi instalado o espólio doado por Eduardo Lourenço à
Câmara Municipal de Coimbra.

(iv) Sé Velha, centro cívico da Coimbra antiga, tem nas suas imediações o local onde
funcionou o Instituto (Rua da Ilha), a revista Vértice (na antiga Livraria Portugália, que
funcionou ao cimo do Quebra Costas), além doutras referências do imaginário coimbrão,
ligadas às letras e à canção: têm os seus nomes perpetuados em memoriais que assina-
lam as casas onde viveram Artur Paredes (guitarrista), pai de Carlos Paredes, Edmundo
Bettencourt e José Afonso, figuras incontornáveis do Fado de Coimbra, como outros

29 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


poetas e cantores.

(v) Baixa, sobretudo o canal entre a Portagem e Santa Cruz, onde a cidade pulsava,
até aos anos 70, espaço indissociável até esta época da vida académica e literária de
Coimbra. Aqui se localizavam livrarias e cafés, lugares de tertúlia, partilha de cumpli-
cidades e troca de ideias, onde fervilhava um certo modo de vida coimbrão. A Baixa,
entretanto, desertificou-se, ficou despida destas funções e vivências, sem livrarias nem
cafés onde as pessoas possam repousar ou atormentar ideias. A livraria França Amado,
a Atlântida ou a Coimbra Editora tiveram o mesmo destino que o Café Montanha, o
Arcádia, a Brasileira, o Nicola e a Central; os cafés que se tentaram reinventar com o

O filme Capas Negras, estreado em 1947, foi rodado nesta República, com realização de Armando de Miranda.
27

A película ficaria famosa por ter sido o primeiro grande êxito de Amália Rodrigues e por lançar a canção
Coimbra é uma lição de amor. Esta composição de Raul Ferrão com letra de José Galhardo, mais conhecida
como Coimbra, foi eternizada por Amália; em 2004 foi editado um disco com 24 versões desta mesma canção.
Entre muitos estudantes residentes, a República contou entre os seus membros uma das grandes vozes do
Fado de Coimbra: Adriano Correia de Oliveira. Foi ainda nesta “República” que, em 23 de Fevereiro de
1959, foi recebido Erico Veríssimo, de visita à cidade, na companhia de Miguel Torga.
mesmo nome são uma pálida imagem dos seus antepassados. Acrescenta-se a este rotei-
ro, a Portagem, pela memória do consultório médico de Adolfo Rocha, perpetuado no
memorial a Miguel Torga, colocado no edifício e com prolongamento num varandim
sobre o Mondego.

(vi) Locais de residência. No que diz respeito a Eduardo Lourenço assinale-se ainda os
lugares onde morou, a começar pela Rua João de Deus, junto ao Campo de Santa Cruz, Rua
António José de Almeida, Quinta da Ribeira (Casa do Sal) e Bairro S. José. É uma outra
geografia urbana de Coimbra que se começou a consolidar a partir de meados do século XX.

Guarda: altiva solidão. A Guarda descrita por Miguel de Unamuno não coin-
cide com o eloquente retrato de Eduardo Lourenço, feito em 27 de Novembro de 1999,
nas comemorações de Oito séculos de altiva solidão. A impressão que cada cidade nos
deixa difere consoante a maneira como é vivida, se resulta dum encontro passageiro
ou, pelo contrário, a demora foi suficiente para sedimentar fundas memórias que ali-
mentam uma lembrança espetral. As razões que ditaram a nossa relação com os lugares
fazem a diferença na maneira como lhe captamos o espirito. Umas vezes, o que nos
leva ao seu encontro, o que “Siempre me han atraido esos lugares y villas que desfilan
a nuestros ojos segun va el tren ganando tierra, campos adelante. Son los mas de ellos
pueblos sin historia, donde a nadie conocemos. Yo no se si sera que en mi, como en
casi todos los hombres, duerme el nomada, el peregrino andariego y errante, y despierta
30 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

de cuando en cuando. !Ver pueblos! !ver nuevos pueblos, ver los mas posibles! !Poder
decir: tambien ahi he estado! Porque, en resumidas cuentas, el fruto mayor que de mi
visita a Guarda he sacado, es el poder decir alguna vez, cuando de Guarda se hable o se
la mente: tambien la he visto”
O tempo e a geografia, grandes escultores da fisionomia dos lugares e da identida-
de das pessoas, também moldaram a Guarda e o “destino desta velha terra, consagrada
à defesa e vigilância de um pequeno reino, que não sabia ainda que seria grande e dis-
perso como um arquipélago, não era o da viagem mas o da vigília, do ensimesmamen-
to e, em todos os sentidos do termo, da solidão”. Estamos em terra de interior, duma
“efectiva interioridade, mais filha da história do que da geografia, não para assinalar
uma condição de isolamento, difícil de viver e aceitar, mais a mais num espaço tão
pequeno como o nosso, em que tudo está próximo de tudo, mas para a pensar. Só em
termos modernos, o ser interior é vivido e percebido como uma espécie de maldição
ou fatalidade. (…) Estas terras, esta cidade e a muralha intermitente de castelos com
que o céu se emparceirou, não eram ainda a ex-fronteira sem emprego de um país
com os olhos no vasto mundo, mas os guardiães da casa comum que confiava na sua
vigilância”28.
A cidade e as suas funções mudaram; embora pouco reste da sua ascendência militar, o
tempo nunca apagará tão indeléveis marcas: a torre de menagem, as portas de entrada no burgo
medieval, a morfologia da antiga urbe continuarão a denunciar o traçado das muralhas entre-
tanto desaparecidas. Se a posição próxima da extrema com a Espanha determinou a localização
da Guarda, o acidentado do sítio ditou a organização do espaço urbano e a implantação das
principais referências patrimoniais: “Salí á ver la Catedral, por fuera más de ver que por dentro.
Tiene, sin embargo, su adusto carácter de fortaleza, y desde la terraza un hermoso panorama.
Todo el anfiteatro de montañas de la sierra de la Estrella, y al outro lado tierras de España.”

Guarda. Vista Geral (RJ) 31 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

28
O texto de Eduardo Lourenço tão assertivo desculpa uma transcrição mais longa: “Esta Beira foi o Portugal profundo,
o Portugal do arado, da cruz e da espada, confundidas como era lei do tempo, terra e gente em luta com uma natureza
avara, ganhando, com suor e sangue, o que ninguém lhe dava de graça e sempre pronta para ir, não para o mar, mas
além dos mares, para sítios que nem os sonhos avistam, fosse o Brasil, fosse o Oriente, fosse a Austrália, fosse o Canadá.
Nesse mundo e nessa época, ninguém sofria de interioridade. Simbolicamente sede de um dos mais prestigiados bis-
pados do reino, a Guarda não sabia – ninguém se preocupava muito com essas fantasmagorias – que um dia seria por
dentro menos do que era então, uma cidade coroada por uma Sé fortaleza, navio de pedra ao alto de uma montanha.
E esse navio às avessas é ainda hoje o brasão de uma história que só espera de nós que descubra outra vocação, outro
rumo, para ter tanto sentido como o tinha nesse tempo em que a sombra de Castela não nos deixava dormir.
A evocação ou a referência ao passado só é interessante por pôr em causa o presente e explicar as suas nos-
talgias ou o seu mal-estar. Ser interior hoje, ser capital ou cidade de interior é vivido como punição, como
empobrecimento efectivo e simbólico, como fatalidade”.
Miguel de Unamuno visitou a Guarda (1908) poucos anos depois do comboio ter
chegado à cidade, começando a quebrar o secular isolamento, quando a estação ainda era
longe do centro: a Linha da Beira Alta abre ao público e o comboio chega à Guarda em
1882, sendo inaugurado o troço entre Vilar Formoso e Salamanca a 23 de maio de 1886;
a ligação Lisboa a Paris, pelo traçado da Linha da Beira Alta, só permitirá a circulação do
famoso Sud Express, a partir de 1 de julho de 1895.
Depois da partida e várias décadas de itinerância exterior Eduardo Lourenço apro-
xima-se das origens; porque não situar o regresso simbólico aos territórios de infância
e juventude no dia do oitavo centenário (27 de novembro de 1999), quando o milénio
se finava. Este reencontro acontece num tempo novo em que a Guarda vive uma enor-
me ânsia de futuro. O autor ficará irremediavelmente ligado, tanto do ponto de vista
espiritual como materialmente, a este novo ciclo da cidade: espiritualmente pela aposta
estratégica que foi feita na cultura, assumindo Eduardo Lourenço como referência e
como mentor; materialmente porque dois modernos equipamentos, marcantes desta
“nova Guarda”, têm o filósofo como figura tutelar: a Biblioteca Municipal que recebeu
o nome de Eduardo Lourenço (BMEL) e o Centro de Estudos Ibéricos que o assumiu
como Diretor Honorífico.
Além desta marcas impressivas inscritas na cidade, são de incluir em qualquer
roteiro que assinale as passagens de Miguel de Unamuno e de Eduardo Lourenço pela
Guarda29:
(i) Estação da Guarda e Pensão Santos. A estação de caminho de ferro é a porta de
entrada, onde se toma o pulso a cidade e recolhem as primeiras impressões. Passando
32 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

“com frequência pela linha da Beira, Unamuno ficou sempre com a curiosidade de, a
partir da Estação de Caminho de Ferro (Guarda-Gare) subir lá ao alto da cidade que,
“sobre a montanha levanta as suas torres contra o céu.” Assim aconteceu. Num dia
de Outono (em Novembro) subiu até à cidade. “Ali passei um dia, todo um mortal
dia, nessa Guarda fria, ventosa, húmida, feia, denegrida e forte, que vigia a Espanha.“
”Naquela destemperada tarde outoniça”, vagueou pelas ruas da Guarda e deparou-
-se com padres embuçados nos seus mantos negros e também estudantes do Liceu
com as suas capas remendadas, imitando os de Coimbra. Unamuno pernoitou na
Pensão Santos”, edifício encravada na muralha que lhe confere uma identidade pecu-
liar. “Antes de se deitar, aliás bem cedo, provavelmente num quarto da Pensão Santos,
bem perto da Torre dos Ferreiros, onde lhe deu nas vistas a imagem do Senhor dos
Aflitos, no recanto entre os dois arcos, diante da qual, reflexivamente, se quedou uns
instantes. Adormeceu lendo algumas páginas de Camilo, autor que deveras admirava.
29
Um agradecimento especial ao António José Dias de Almeida pelas informações e precioso contributo; o
texto deste apartado entre comas é da sua autoria.
Curiosamente, a rua que, junto à Torre dos Ferreiros desce em direcção ao Jardim,
chama-se Rua Camilo Castelo Branco...”.

(ii) Memoriais a Miguel de Unamuno e Eduardo Lourenço. Da autoria de Florencio


Maíllo, o Memorial a Miguel de Unamuno “A Guarda a Miguel de Unamuno” (2006)
encontra-se na Torre dos Ferreiros enquanto o Memorial a Eduardo Lourenço (2017)
está implantado nos Jardins da Quinta do Alarcão entre a Biblioteca Municipal Eduardo
Lourenço (BMEL) e o Centro de Estudos Ibéricos (CEI).

(iii) Centro histórico e património local. A cidade recorda a visita de Unamuno


com um “memorial colocado na Torre dos Ferreiros. Esta Torre é referida por Tomás
Ribeiro no seu D. Jaime, poema que Unamuno cita logo no início do texto que dedica
à cidade. De manhã saiu “para ver a Catedral e subiu até ao terraço de onde desfrutou
“um formoso panorama. Todo o anfiteatro de montanhas da Serra da Estrela e do
outro lado terras de Espanha.” As Farmácias, onde, pelos vistos entrou, desencanta-
ram-no pois “são novas, modernas, elegantes” e Unamuno sonhava “ver a velha botica
do pai de Tomásia, a heroína de O Filho Natural de Camilo que acabo de ler.” Foi, em
seguida, ao Liceu Nacional que achou uma “coisa deplorável, pobríssima de que o me-
lhor é não falar” e achou detestável o material de Física e de História Natural. Leu O
Combate, um diário republicano dirigido por José Augusto de Castro, também poeta
e que, também curiosamente, residia bem perto da já referenciada Torre dos Ferreiros.
Pensando no que viu e no que leu no referido periódico, apanhou finalmente o auto-

33 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


móvel que o levaria à estação. Já acomodado na sua carruagem e enquanto o comboio
se preparava para sair, voltou a olhar para a Guarda, alcandorada na sua montanha, e
que agora já sabia como era por dentro. Lendo Camilo (sempre Camilo) atravessou
a fronteira e já de noite passou junto a Ciudad Rodrigo que é, no dizer de Miguel de
Unamuno, a Guarda espanhola da fronteira que ainda conserva as muralhas – “umas
ridículas e inofensivas muralhas” – de que na Guarda portuguesa “no quedan sino
menguadíssimos restos.”

(iv) Eduardo Lourenço e a “nova Guarda”. Dois equipamentos culturais ocupam lugar
de destaque na paisagem urbana mais recente :
(a) “Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (inaugurada em 27/11/2008). As principais
salas da BMEL são designadas por títulos significativos da obra do Autor. Assim acontece
com a sala Tempo e Poesia; com A Nau de Ícaro, sala onde, num espaço qualificado, está
organicamente depositado o espólio de cerca de 3000 livros doados à Câmara Municipal
da Guarda. Aí podemos encontrar um magnífico acervo de obras muito representatrivas
de autores da Literatura Portuguesa Contemporânea com dedicatórias muito sugestivas e
que vale a pena consultar; finalmente, a sala dedicada aos mais novos que ostenta o título
Nós Como Futuro” 30.
(b) “Centro de Estudos Ibéricos (CEI) resultou de uma luminosa ideia de Eduardo
Lourenço manifestada no discurso proferido na sessão solene das comemorações do 8º
Centenário do foral dado à cidade da Guarda, cuja sede se situa no Parque Alarcão e tem
Eduardo Lourenço como Director Honorífico”.

(v) Eduardo Lourenço e a cidade vivida. “Eduardo Lourenço frequentou o ensino primário
na escola da sua aldeia (São Pedro de Rio Seco) à excepção da 3ª classe que frequentou numa
escola primária da Guarda (?), mas regressou à aldeia onde frequentou a 4ªclasse e fez o respec-
tivo exame final. Voltou posteriormente à Guarda e aí realizou o exame de Admissão ao Liceu
(então Liceu Afonso Albuquerque – actual Escola de Santa Clara). No Boletim de Matrícula
(1933–34) o pai indica como residência a Rua do Encontro. Terá aí residido quando frequentou
com aproveitamento o 1º ano no Liceu Afonso de Albuquerque. Sendo o pai militar de carreira,
matriculou-se posteriormente no Colégio Militar, em Lisboa, onde completou o ensino liceal.
As férias eram passadas na Guarda, onde residiam os irmãos e a mãe – primeiramente, na Rua
Batalha Reis e posteriormente numa casa no Bairro do Bonfim. Próximo da sua residência na
Batalha Reis, o “célebre Sanatório de onde se escoavam às vezes para as ruas da cidade criaturas
pálidas que atravessavam, desviando-se das pessoas sãs, como fantasmas”. Perto vivia o autor
de Maria Mim. “Dos vivos, vi passar na rua, envolto em soturnidade, Nuno de Montemor,
a caminho do Lactário desta cidade”. Também na Guarda, num edifício já inexistente,
34 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

viu o primeiro filme de cowboys”.


Uns bons anos mais tarde, perto da Batalha Reis, no antigo Convento de S. Francisco,
onde estava instalado o Batalhão de Caçadores 7, em 1947, prestou serviço militar como ofi-
cial miliciano. Recentemente, tem sido bem mais assídua a passagem de E.L. pela Guarda:
em Setembro de 1995 foi-lhe prestada uma homenagem na Câmara Municipal durante
a qual proferiu o célebre discurso “Lembrança espectral da Guarda”. Em Novembro de
1999, na sessão solene das Comemorações dos oiotocentos anos da Guarda, na actual sala
Almeida Santos, proferiu a brilhante Oração de Sapiência “Oito séculos de altiva solidão”
durante a qual lançou a semente do que viria a ser o CEI”.

30
“Na Biblioteca que leva o seu nome, tem participado em diversas iniciativas, v.g. na entrega do Prémio
Eduardo Lourenço a várias personalidades que o obtiveram, nomeadamente, Agustina Bessa-Luís (represen-
tada pela sua filha Mónica Baldaque), Mia Couto, Luís Sepúlveda, Fernando Paulouro Neves, entre outros.
A primeira grande figura da Cultura Portuguesa agraciada com o prémio foi a Professora da Universidade
de Coimbra, Maria Helena Rocha Pereira numa cerimónia que teve lugar na sala da Câmara Municipal da
Guarda, actualmente designada Almeida Santos.”
Regresso sem fim: S. Pedro do Rio Seco, a fronteira e as aldeias
raianas. Terra de fronteira, “São Pedro é uma velha aldeia, anterior mesmo à na-
cionalidade, com séculos sem memória celebrada”. Quem sempre teve as fronteiras
por companhia, fossem as politica, as disciplinares e as do espirito, está habituado a
conviver com a radicalidade de tal presença, contornando-as ou superando-as. Em dife-
rentes momentos que pontuaram a sua (re)aproximação às origens Eduardo Lourenço
recorreu à palavra fronteira até à exaustão, utiliza-a como inspiração para multiplas
metafóricas reflexões: O duplo rosto da frontera; As fronteiras que não têm fronteiras; Jogos
de fronteira, jogos de memoria.
“Na verdade, esta aldeia, como muitas das aldeias de Portugal, não pertence ao que se
chama a grande história, com as suas crónicas memoráveis. Com actores e gente célebre,
celebrizada. Pertence mais aquilo que Unamuno, o nosso famoso vizinho, o autor do
“Sentimento trágico da vida”, o nosso vizinho de Salamanca, chamava a intra-história.
Quer dizer, a não história do comum de todos nós e que é aquela que nós, os meus ante-
passados, viveram durante séculos, sem que isso tivesse constituído para eles uma tragédia
particular”. Estamos na meseta, esse imenso chapadão que Unamuno fixou em inolvidá-
veis páginas (p. ex.: Los Arribes del Duero), essas “terras novas de Ribacoa, que o bom rei
Dinis soube trazer para Portugal, terras de falas diferentes, terras de pontes, no espaço e
no tempo, onde os nomes dos lugares ajudam a escavar muita da História e da Cultura
embebidas no território: Calçada, Castelo Mendo, Cinco Vilas, São Pedro de Rio Seco.
Embebido, um conceito caro a Eduardo Lourenço, um termo que também é relevado
pelos geógrafos. Ora a Geografia, os geógrafos, percorrem, embebidos, a obra de Eduardo

35 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Lourenço, que a descobre noutras paragens, como em Fernando Pessoa “perito em geo-
grafia simbólica” (Mitologia da Saudade). Das geografias da Terra, por onde começou, nos
seus poemas de juventude, às geografias do Corpo que ocorrem dispersas e fragmentadas
nalguns dos seus ensaios” (Jorge Gaspar, 2017).
Estas paisagens foram igualmente percorridas por Miguel de Unamuno num
dos seus regressos a Salamanca: “Leyendo a Camilo atravese la frontera, que por esa
parte no se senala ni por rio ni por montana, ni por demarcacion alguna natural.
Atravese la frontera; a los dengosos acentos de la triste habla portuguesa sucedieron
los recortados de la recia habla castellana. Ya de noche, pase junto a Ciudad-Rodrigo,
que es la guarda espanola de la frontera, y que aun conserva las murallas – unas
ridiculas e inofensivas murallas – de que en la Guarda portuguesa no quedan sino
menguadisimos restos”.
Num dos reencontros de Eduardo Lourenço as suas gentes, em S. Pedro, nesse regresso
sem fim do viagente à materna casa comum, referiu a possibilidade de podermos
S. Pedro do Rio Seco. A aldeia vista do Calvário (RJ)

observar o mundo todo sem sairmos da nossa aldeia (Quem vê o seu povo vê o mundo todo).
Continuemos a visita a S. Pedro do Rio Seco a partir de alguns apontamentos Eduardo
Lourenço: “Os tempos mudaram. Esta aldeia, que parecia tão isolada do mundo, naquela
36 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

época, também o estava: podia passar-se o ano inteiro que mesmo relações de vizinhança,
a cinco quilómetros, não se frequentavam umas às outras. Só por ocasião de uma festa. Os
únicos sítios de relacionamento, já de tipo social, eram Vilar Formoso e Almeida. (…) Em
matéria de invisibilidade, esta nossa aldeia, irmã gémea de tantas da nossa província, ela
própria tão isolada. Naquele tempo a nossa aldeia não estava ainda, digamos, dissolvida
como todas, num mundo real a que pertencia e hoje está talvez dissolvida, como todos
nós, numa espécie de esfera virtual, que de facto é de toda a gente e de ninguém”.
A aldeia é um universo complexo e mutante, vivida e imaginada de modo distinto
pelos que ficam e pelos que partem: se na aldeia paira sempre a presença dos ausentes, a
relação dos que partiram com o lugar donde saíram nunca mais é a mesma, fica irreme-
diavelmente comprometido no instante em que a ausência quebra o vínculo umbilical ao
torrão natal. Em pequenos fragmentos diarísticos escritos durante a breve permanência no
Brasil, Eduardo Lourenço simula através dum dialogo com o vento, num tom melancóli-
co, a tentativa de reatar tais vínculos perdidos pela ausência, fios duma teia que talvez aju-
dassem a (re)encontrar um mitifico caminho de regresso ao paraiso perdido: “num segundo
volto com ele à aldeia parada de granito solto e pobreza unida onde pela primeira vez eu me
encontrei comigo ao encontrar-me com ele” 31.
O diálogo prossegue essa contínua “viagem imaginária” dum regresso sem fim e sempre
adiado: “Tudo o vento deu ao garoto ávido, ardente e pobre de há trinta anos. Exactamente
o que os trinta anos seguintes, mais terrível vento, foram deixando de menos. Neste interva-
lo, os livros, as amizades, as mortes, os pecados inumeráveis, as falências, os deslumbramen-
tos, os falsos paraísos outrora reclamados pela voz do meu futuro, muitas vezes relegaram
o meu companheiro de infância para o rol das coisas abandonadas nos cantos da casa. Mas
eis que súbito o amado imortal, passando por cima dos mares e das montanhas, abre à minha
volta as suas asas de silêncio e num segundo volto com ele à aldeia parada de granito solto e
pobreza unida onde pela primeira vez eu me encontrei comigo ao encontrar-me com ele.
Há trinta anos. A sua voz tem ainda as dimensões do mundo. As crestas dos horizontes
por onde passou ferem de expectativa o impaciente coração. (…) Nos últimos tempos en-
tregara-se aos sonhos que as palavras libertas da nossa cegueira podem conceder-nos. Sua
estranha arquitectura respondia à viagem imaginária interrompida pela fatigante chuva da
cultura. Estava de novo próximo do mundo incorrupto do cardo, do ribeiro, do lilás, da nuvem,
do gaio, do fogo onde jovem habitara cheio de espanto e deslumbramento. O universo conver-
tera-se em palavra sacra. Com silencioso gesto iniciara-se nele a viagem de regresso. Lenta,
circular como os dias antigos e duros da sua raça camponesa. Cada dia o círculo se tornava
mais pequeno e denso. Conheceu que o seu fim estava próximo. As palavras começaram a
ter a dimensão exacta da sua necessária morada. Ficou a pão e água. Estes únicos alimentos
reconstruíam a sua habitação de sempre. O mármore, a seda, o ouro, o livro foram disper-

37 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


sos pelo vento. Iniciou então a construção meticulosa e deslumbrada”.
Em S. Pedro do Rio Seco, como em Vilar Formoso, Almeida e noutros povos da raia
deparamos com o mesmo silêncio parado de terras marcadas pela ausência e pela memória.
Percorrer a aldeia é andarmos por ruas desertas, ouvir o vai e vem de carros fazendo o apoio
domiciliar aos idosos com dificuldade de sair até à soleira da porta apanhar os ultimos
raios de sol. Paradoxalmente, sentimos estar em lugares reabilitados, com as antigas casas
renovadas, embora fechadas, anunciando-nos como é subtil a presença dos ausentes. O
mais são as mesmas ruas, sem o pó da terra batida, os largos, as ruas direitas, as lages de
granitos das antigas eiras e outros pontos fulcrais do mapa mental de cada lugar. Pressente-
se o mesmo sentimento de ausência na antiga escola sem alunos, na igreja fechada por falta
de fiéis, na junta de freguesias transformada em centros de múltiplos serviços; as cruzes
do Calvário continuam a destacar-se como referência intemporal que sinaliza uma viagem
de sacrifícios que muitos fizeram, a apontar um caminho que poucos querem percorrer.

31
Eduardo Lourenço (2015), Do Brasil. Fascinio e Miragem, Lisboa, Gradiva.
A caminho dos Arribes del Duero: encinas no Campo Charro (SS)

Salamanca pela mão de Miguel de Unamuno: um itinerário urbano de


profundo significado cívico e cultural. Salamanca atravessa em pleno a vida e os
escritos de Unamuno; da sua intra-história. Nesta cidade do interior, da meseta, viveu,
38 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

escreveu e trabalhou, segundo as suas palavras. Aqui chegou desde Bilbao em 1891.
Os nomes das suas ruas e praças são verdadeiramente evocadores e baixo os seus “celagens
e céus platónicos” guardam-se a memória do passo dos séculos e dos homens. Também
suas pedras de arenisca, “doces e suaves, douradas pelo sol”, e talhadas com habilidade por
pedreiros e artesãos recordam-nos e ensinam o devir da cidade românica, gótica e plateres-
ca, renascentista, barroca e neoclássica, nas que descobrimos marcas arquitetónicas e sím-
bolos ornamentais capazes de nos fazer sonhar e de acalmar o nosso espírito. Da mão dos
textos de Unamuno, tanto dos seus ensaios como da sua poética, podemos afundar na casa
e no lugar, no seu “genius loci”, a partir de um itinerário e alguns marcos urbanos bem
assinalados na vida e imagem desta cidade Património da Humanidade.
(i) Na histórica Calle Libreros e na envolvente do edifício histórico da Universidade
ou de Escuelas Mayores e seu claustro central, com o Patio de Escuelas Menores, a Reitoria,
a Casa- Museu Miguel Unamuno, configura-se um espaço monumental e académico ple-
namente vinculado à vida de Unamuno como professor e Reitor durante quarenta e cinco
anos. Os sentimentos e pensamentos da sua escrita estão marcados pelo espírito do lugar.
Assim o manifesta ao falar-nos
Salamanca. Vista Geral (VG)

desse pátio frente à fachada plateresca do século XVI: “Não dou por nada do mundo esse
pátio – com seu brônzeo Fray Luis no centro -, preenchido no seu silêncio de rumores
seculares, esse pátio sem ruído de tranvias nem de comboios nem de vã agitação humana”.

39 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


(ii) Muito próximo, envolve-nos o conjunto monumental da Plaza de Anaya, onde o Palacio
de Anaya contrapõe a sua imponente fachada neoclássica à impressionante e grandiosa obra gó-
tica e plateresca da Catedral Nova; a seu lado, outros nobres edifícios vinculados à Universidade
também nos fascinam e nos interrogam. Penetremos no Palacio de Anaya, atual Faculdade de
Filologia, por onde passaram centenas de gerações de estudantes de todo o mundo, y subindo as
suas escadas imperiais, contemplamos o busto de Unamuno do grande escultor da Geração de
98 Victorio Macho, realizado quando estava no exílio, em Hendaya, em 1930; uma escultura
profundamente humana que “pretende chegar ao fundo dos seres para dar com essa famosa
substância que procura – Unamuno – e nem sempre encontra”, em palavras do próprio escultor32.

(iii) A suave descida pela Calle Compañía transporta-nos a momentos intemporais.


O próprio Unamuno expressa-o, respondendo a seu amigo Guerra Junqueiro: “Há velhas
ruas, como a da Compañía, ao pé de palácios e templos dourados pelos sóis dos séculos, em
que se pode ir sonhando numa Espanha celestial, pendurada para sempre das estrelas”. E
chegamos à Plaza de las Agustinas, à Calle Bordadores, e à casa renascentista (casa do Regidor
32
Victorio Macho: Memorias, Madrid, G. del Toro, 1972, p. 309
Ovalle Prieto) onde Unamuno viveu seus últimos anos. Uma placa e uns versos recordam-
-no-lo. E ali, em frente, detemo-nos no recanto único e mágico das Úrsulas e no monu-
mento a Miguel de Unamuno com a magnífica escultura de Pablo Serrano. Recordemos
as palavras de Unamuno sobre o lugar: “E há um recanto, junto ao convento e igreja das
Úrsulas, entre álamos que lá para a primavera, quando brota neles a terna plumagem das fo-
lhas novas, nos dá a sensação de que o tempo se detém e estagna na eternidade, de um passa-
do que é ao mesmo tempo porvir, de uma posta de sol que se confunde com o amanhecer”.

(iv) Chegamos depois à Plaza Mayor de Salamanca, um espaço de encontro e de re-


ferência cívica para a cidade. Para Unamuno, uma “das praças mais harmoniosas”. “Uma
Praça quadrada, – isto é um quadrilátero, não um quadrado,- toda cheia de portais e de ar
e de luz”, onde se entrecruzam a vida e o movimento humano de aqui e de além, conver-
tendo-a numa praça ibérica, europeia e universal. Ali estão os testemunhos da presença de
Unamuno; o café Novelty e a memória das suas tertúlias, o medalhão que representa o seu
rosto, no Pabellón de Petrineros, e a varanda do Ayuntamiento donde Unamuno proclamou,
a 14 de abril de 1931, a Segunda República (1931 – 1936)

(v) Mais abaixo, e do outro lado do arroio de Santo Domingo, no grandioso convento
de San Esteban dos dominicanos, com quase oitocentos anos de vida na cidade, encontrará
abrigo Unamuno nos momentos de crise existencial do “homem de carne e osso” e de de-
sassossego religioso” (1897). Um bom asilo para o diálogo teológico, filosófico, científico
e humano na Academia de Santo Tomás. Boa parte da sua obra Do Sentimento Trágico da
Vida (1912) inspira-se no debate e discussão com os frades, particularmente com o Padre
40 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

González-Arintero, um científico e naturalista com o que troca livros e conversas de alto


conteúdo vital e religioso. Nalguns momentos estes diálogos mudam-se para La Peña de
Francia, ao Santuário e Convento dos Padres Dominicanos, onde Unamuno encontrará
também refúgio espiritual e conhecerá desde ali as paisagens serranas. E atualmente, aí contí-
nua a Academia de Santo Tomás como ponto de diálogo e razoamento com a universidade e
a cidade, abordando periodicamente os problemas contemporâneos que nos desassossegam.
Ao lado da cidade e do seu sossego, devemos contemplar o “campo que a rodeia” e que a
abraça, as terras agrícolas e férteis das campinas ou do vale do rio Tormes e as terras ganadeiras e
pastos das planícies. E aqui, nas margens do rio, há um lugar simbólico e íntimo para Unamuno,
“a deleitosa paragem da Flecha, cujo sossego cantou o mestre Frei Luis de León”. O extraordi-
nário fotógrafo José Suárez imortalizou esta relação de Unamuno com a paisagem e o lugar da
Flecha na sua reconhecida imagem e retrato de 1934. Em recordação dos seus vínculos com a
criação literária, este soto e enclave de Cabrerizos, foi cenário em 1953 de um grande encontro
de poesia. E em junho deste ano, por ocasião do VIII Centenário da Universidade de Salamanca,
celebrou-se o Segundo Congresso Internacional de Poesia Frei Luis de León. Lástima que nas
últimas décadas o entorno ficasse sem efeito e sem a atenção cívica e cultural merecida.
NÓS E A EUROPA:
DIÁLOGOS ENTRE MIGUEL DE UNAMUNO
E EDUARDO LOURENÇO
Sobre la Europeización
(Arbitrariedades)33

Miguel de Unamuno

Conviene hacer uno en sí mismo examen de conciencia nacional, y preguntarse como


español qué valor íntimo y duradero tienen la mayor parte de los tópicos regenerativos que
venimos repitiendo casi todos, unos más y otros menos.
En dos términos se cifra todo lo que se viene pidiendo para nuestro pueblo, todo lo
que para él hemos pedido casi todos, con más o menos conciencia de lo que pedíamos.
Esos dos términos son: europeo y moderno. «Tenemos que ser modernos», «tenemos que
ser europeos», «hay que modernizarse», «hay que ir con el siglo», «hay que europeizarse»;

43 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


tales los tópicos.
El término europeo expresa una idea vaga, muy vaga, excesivamente vaga; pero es
mucho más vaga la idea que se expresa con el término moderno. Y si las juntamos, parece
como que dos vaguedades deben concretarse y limitarse mutuamente, y que la expresión
«europeo moderno» ha de ser más clara que cualquiera de los dos términos que la compo-
nen; pero acaso sea en el fondo más vaga que ellas.
Como se ve, voy procediendo por lo que alguien llamaría afirmaciones arbitrarias, sin
documentación, sin comprobación, fuera de la lógica europea moderna, con desdén de
sus métodos.
Puede ser. No quiero más método que el de la pasión; y cuando el pecho se me hinche
de disgusto, de repugnancia, de lástima o desprecio, dejo que del cogüelmo del corazón
hable la boca y salgan las palabras como salieren.
Los españoles somos, dicen, unos charlatanes arbitrarios, que rellenamos con retórica
los vacíos de la lógica, que sutilizamos con más o menos ingenio, pero sin utilidad alguna;
33
Miguel de Unamuno: "Sobre europeización (Arbitrariedades)", La España Moderna, nº 216, 1906.
que carecemos del sentido de la consecución y la ilación, con alma escolástica, casuistas…,
etc., etc.
Cosas parecidas he oído decir de Agustín, el gran africano, alma de fuego que se
derramaba en oleadas de retórica, de retorcimientos de frase, de antítesis, de paradojas e
ingeniosidades. San Agustín fue un gongorino y un conceptista a la vez. Lo cual me hace
creer que conceptismo y gongorismo son las formas más naturales de la pasión y de la
vehemencia.
El gran africano, ¡el gran africano antiguo! He aquí una expresión «africano antiguo»
que puede contraponerse a la de «europeo moderno», y que vale tanto, por lo menos,
como ella. Africano y antiguo es San Agustín; lo es Tertuliano. Y ¿por qué no hemos de
decir: «hay que africanizarse a la antigua» o «hay que anticuarse a la africana»?
Vuelvo a mí mismo al cabo de los años, después de haber peregrinado por diversos
campos de la moderna cultura europea, y me pregunto a solas con mi conciencia: ¿soy eu-
ropeo? ¿soy moderno? Y mi conciencia me responde: no, no eres europeo, eso que se llama
ser europeo; no, no eres moderno, eso que se llama ser moderno. Y vuelvo a preguntarme:
y eso de no sentirte ni europeo ni moderno, ¿arranca acaso de ser tú español? ¿Somos los
españoles, en el fondo, irreductibles a la europeización y a la modernización? Y en caso de
serlo, ¿no tenemos salvación? ¿No hay otra vida que la vida moderna y europea? ¿No hay
otra cultura, o como quiera llamársela?
Ante todo, y por lo que a mí hace, debo confesar que cuanto más en ello medito más
descubro la íntima repugnancia que mi espíritu siente hacia todo lo que pasa por princi-
pios directores del espíritu europeo moderno, hacia la ortodoxia científica de hoy, hacia
44 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

sus métodos, hacia sus tendencias.


Hay dos cosas de que se habla muy a menudo, y son la ciencia y la vida. Y una y otra,
debo confesarlo, me son antipáticas.
No es menester definir la ciencia, o si se quiere la Ciencia, con letra mayúscula, eso
que tanto se está vulgarizando y que sirve para darnos una idea más lógica y más cabal del
Universo. Cuando yo era algo así como spenceriano me creía enamorado de la ciencia;
pero después he descubierto que aquello fue un error. Fue un error como el de aquellos que
creen ser felices sin serlo. (Claro está que rechazo, arbitrariamente por supuesto, la idea de
que el ser feliz consista en creer serlo). No, nunca estuve enamorado de la ciencia, siempre
busqué algo detrás de ella. Y cuando, tratando de romper su fatídico relativismo, llegué al
ignorabimus, comprendí que siempre me había disgustado la ciencia.
Y ¿qué contrapones a ella?, se me dirá. Podría decir que la ignorancia, pero esto no es
cierto. Podría decir con el predicador, hijo de David, Rey de Jerusalem, que quien añade
ciencia añade dolor, y que el mismo fin aguarda al sabio que al necio; pero no, no es eso.
Ni necesito inventar una palabra para decir lo que contrapongo a la ciencia, porque esa
palabra existe y es sabiduría: la sagesse de los franceses, la wisdom de los ingleses, la Weisheit
o Klugheit alemana. Pero ¿es que se opone a la ciencia?, se me dirá. Y yo, siguiendo mi
método de arbitrariedad, guiado por mi pasión de ánimo, por mis íntimas repugnancias y
mis íntimas atracciones, respondo: sí, se oponen; la ciencia quita sabiduría a los hombres
y les suele convertir en unos fantasmas cargados de conocimientos.
La otra cosa de que se habla a cada paso hoy es la vida, y a ésta sí que es fácil hallarle
contraposición. A la vida se contrapone la muerte.
Y esta nueva contraposición me sirve para aclarar la primera. La sabiduría es a la cien-
cia lo que la muerte a la vida, o, si se quiere, la sabiduría es a la muerte lo que la ciencia
es a la vida.
El objeto de la ciencia es la vida, y el objeto de la sabiduría es la muerte. La ciencia
dice «hay que vivir», y busca los medios de prolongar, acrecentar, facilitar, ensanchar y
hacer llevadera y grata la vida; la sabiduría dice «hay que morir», y busca los medios de
prepararnos a bien hacerlo.
Homo liber de nulla re minus quam de morte cogitat, et eius sapientia non mortis, sed
vitae meditatio est. Así reza la proposición LXVII de la parte cuarta de la Ética de Spinoza.
O sea en romance: el hombre libre en todo piensa menos en la muerte, y su sabiduría es
meditación, no de la vida, sino de la muerte.
En este caso, esa sabiduría, esa sapientia, no es ya tal sabiduría, sino ciencia. Verdad
es también que habría que ver qué es eso del hombre libre. El hombre libre de la suprema
congoja, libre de la angustia eterna, libre de la mirada de la Esfinge, es decir, el hombre que
no es hombre, el ideal del europeo moderno.

45 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Y estamos en otro concepto que me es tan poco simpático como los de vida y ciencia,
y es el de libertad. No hay más libertad verdadera que la de la muerte.
¿Y cuál es el fondo de todo esto? ¿Qué buscan y persiguen los que se agarran a la
ciencia, a la vida y a la libertad, volviendo las espaldas, sépanlo o no, a la sabiduría y a la
muerte? Lo que buscan es la felicidad.
Y creo – tal vez también esta mi creencia sea arbitraria – , creo que estamos en el fondo
de esta indagación. El llamado europeo moderno llega al mundo a buscar felicidad para
sí y para los demás, y cree que el hombre debe procurar ser feliz. Y he aquí un supuesto a
que no puedo hacerme.
Y ahora voy a daros, en estas confesiones, un dilema arbitrario; arbitrario porque no
puedo probároslo lógicamente, porque me lo impone el sentimiento de mi corazón y no el
raciocinio de mi cabeza, y el dilema es éste: o la felicidad o el amor. Si quieres uno, has de
renunciar a la otra. El amor mata la felicidad, la felicidad mata al amor.
Y aquí vendría bien todo cuanto nuestros admirables místicos, nuestros únicos filóso-
fos castizos, los que hicieron sabiduría y no ciencia española – acaso los términos ciencia y
española sean, afortunadamente, dos cosas que se repelen – sintieron, más bien que pen-
saron, sobre el amor y la dicha, y todo el «muero porque no muero» y el «dolor sabroso» y
lo demás en la misma profundidad de sentir.

Y esto, ¿qué relación tiene con el problema espiritual de España? ¿Es algo más que una
posición pura y exclusivamente individual, es decir, arbitraria? Todo eso, ¿lo siento como
español? ¿Es el alma española la que me lo sugiere?
Se ha dicho que con los Reyes Católicos y la unidad nacional se torció acaso el curso
de nuestra historia. Lo cierto es que, desde ellos, y, mejor aún, después de ellos, con el des-
cubrimiento de América y nuestro entrometimiento en los negocios europeos, nos vimos
arrastrados en la corriente de los demás pueblos. Y entró en España la poderosa corriente
del Renacimiento, y nos fue borrando el alma medieval. Y el Renacimiento era en el fondo
todo eso: ciencia, en forma sobre todo de Humanidades, y vida. Y se pensó menos en la
muerte, y se fue disipando la sabiduría mística.
Se ha dicho muchas veces que el español se preocupa demasiado de la muerte; y en
todos los tonos y de todas las maneras, en especial de las más ramplonas, se nos ha dicho
que la preocupación de la muerte no nos deja vivir a la europea y a la moderna. Hasta de
la mortalidad y de la suciedad y de la falta de salud se le echa la culpa al llamado culto a la
muerte. Y a mí, en cambio, me parece que se piensa demasiado poco en ella; mejor dicho,
que se piensa a medias.
Y se piensa y se medita en ella a medias, porque pretendemos ser europeos y modernos
sin dejar de ser españoles, y eso no puede ser. Y hemos hecho una infame mezcla de sabidu-
46 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

ría castiza y de ciencia exótica, de íntimo y sentido sentimiento de la muerte y de pegadizo


cuidado por la vida. Y nos hemos creído cuidarnos del progreso, cuando en realidad se nos
da muy poco de él.
«Desengáñese usted – me decía en cierta ocasión un extranjero amigo mío, creyéndo-
me, aunque español, europeo y moderno – , desengáñese usted: los españoles en general
son incapaces para la civilización moderna y refractarios a ella».
Y yo le dejé frío de estupor cuando le repliqué: ¿Y es eso un mal? El hombre me miró
como quien mira a uno que de repente se pone loco; debió de parecerle como si yo negara
un postulado geométrico, y trató de razonar conmigo, y le dije: No; no se esfuerce usted
en darme razones: creo poder decirle, sin jactancia, pero sin hipocresía de modestia, que
conozco cuantas razones pueda usted aducirme al respecto; esto no es cuestión de razones,
sino de sentimientos.
Insistió, pretendiendo hablarme al sentimiento, y añadí: No, amigo mío, no; usted
tiene lógica, y no es la lógica, sino la pasión, lo que rige los sentimientos. Y me separé de
él y me fui a leer las Confesiones del gran africano a la antigua.
¿No será cierto que, en efecto, somos los españoles, en lo espiritual, refractarios a eso
que se llama la cultura europea moderna? Y si así fuera, ¿habríamos de acongojarnos por
ello? ¿Es que no se puede vivir y morir, sobre todo morir, morir bien, fuera de esa dichosa
cultura?
Y no quiero decir con esto que nos sumamos a la inacción, la ignorancia y la barbarie;
no. Hay modos de acrecentar el espí- ritu, de elevarlo, de ensancharlo, de ennoblecerlo, de
divinizarlo sin acudir a los medios de esa cultura. Podemos, creo, cultivar nuestra sabiduría
sin tomar la ciencia más que como un medio para ello, y con las debidas precauciones para
que no nos corrompa el espíritu.
Así como el amor a la muerte y el sentimiento de que es ella el principio de nuestra
verdadera vida, no debe llevarnos a renunciar violentamente a la vida, al suicidio, puesto
que la vida es una preparación para la muerte, y cuanto mejor la preparación, mejor lo
preparado, así tampoco el amor a la sabiduría debe llevarnos a renunciar a la ciencia, pues
esto equivaldría a tanto como un suicidio mental, sino a tomar la ciencia como una prepa-
ración, y no más que como una preparación a la sabiduría.
Por mi parte puedo decir que si no hubiese excursionado por los campos de algunas
ciencias europeas modernas, no habría tomado el gusto que he tomado a nuestra vieja
sabiduría africana, a nuestra sabiduría popular, a lo que escandaliza a todos los fariseos
y saduceos del intelectualismo, de ese hórrido intelectualismo que envenena el alma. A
fuerza de oír himnos a la ciencia y a la vida, me han hecho cobrarles desconfianza y tal vez
horror, y amar la sabiduría de la muerte, la meditación que, según Spinoza, no medita el
hombre libre, esto es, el hombre feliz.

47 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Hace pocos días he leído un artículo de mi paisano y amigo Pío Baroja, titulado
«¡Triste país!», en que dice que España es un país triste, así como Francia es un país her-
moso. Contrapone la Francia riente, de terreno fértil y llano, de clima dulce, de ríos que se
deslizan claros y trasparentes a flor de tierra, con esta península, llena de piedras, quemada
por el sol y helada en invierno. Hace notar que en Francia los productos espirituales no
pueden compararse con los agrícolas e industriales; que los dramas de Racine no están tan
bien elaborados como el vino de Burdeos; ni los cuadros de Delacroix valen tanto como las
ostras de Arcachón; y que, en cambio, nuestros grandes hombres, Cervantes, Velázquez,
el Greco, Goya, valen tanto o más que los grandes hombres de cualquier parte; mientras
nuestra vida actual vale menos, no que la vida de Marruecos, sino que la vida de Portugal.
Y yo digo: ¿no vale la pena de renunciar a esa agradable vida de Francia a cambio de
respirar el espíritu que puede producir un Cervantes, un Velázquez, un Greco, un Goya? ¿No
son acaso éstos incompatibles con el vino de Burdeos y las ostras de Arcachón? Yo – arbitra-
riamente, por supuesto – creo que sí, que son incompatibles, y me quedo con el Quijote,
con Velázquez, con el Greco, con Goya, y sin el vino de Burdeos, ni las ostras de Arcachón,
ni Racine, ni Delacroix. La pasión y la sensualidad son incompatibles: la pasión es arbitraria,
la sensualidad es lógica. Como que la lógica no es sino una forma de sensualidad.
«Todos nuestros productos materiales e intelectuales son duros, ásperos, desagradables
– sigue diciendo Baroja – . El vino es gordo, la carne es mala, los periódicos aburridos y la
literatura triste. Yo no sé qué tiene nuestra literatura para ser tan desagradable».
Aquí tengo que detenerme. No siento bien lo de identificar lo triste con lo desagradable;
y aunque haya inocente que me lo tome a paradoja, diré que, para mí, lo desagradable es
lo que se llama alegre. Nunca olvidaré el desagradabilísimo efecto, el hondo disgusto que
me produjo la algazara y el regocijo de un bulevar de París, de esto hace ya diez y seis años,
y cómo me sentía allí desasosegado e inquieto. Toda aquella juventud que reía, bromeaba,
jugaba y bebía y hacía el amor, me producía el efecto de muñecos a quienes hubieran dado
cuerda; me parecían faltos de conciencia, puramente aparenciales. Sentíame solo, entera-
mente solo entre ellos, y este sentimiento de soledad me apenaba mucho. No podía ha-
cerme a la idea de que aquellos bulliciosos entregados a la joie de vivre fueran semejantes
míos, mis prójimos, ni siquiera a la idea de que fuesen vivientes dotados de conciencia.
He aquí cómo lo alegre me desagradaba, me era desagradable. Y, en cambio, en medio
de muchedumbres acongojadas que clamen al cielo pidiendo clemencia, que entonen un
de profundis o un miserere, me habré de encontrar siempre como entre hermanos, unido
a ellos por el amor.
Dice luego Baroja: «Para mí una de las cosas más tristes de España es que los españoles
no podemos ser frívolos ni joviales».
48 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

Y para mí una de las cosas más tristes para España sería que los españoles pudiésemos
volvernos frívolos y joviales. Entonces dejaríamos de ser españoles para no ser ni europeos
siquiera. Entonces tendríamos que renunciar a nuestro verdadero consuelo y a nuestra
verdadera gloria, que es eso de no poder ser ni frívolos ni joviales. Entonces podríamos re-
petir de coro todas las insustancialidades de todos los manuales de vulgarización científica,
pero nos incapacitaríamos para poder entrar en la sabiduría. Entonces tendríamos acaso
mejores vinos, vinos más refinados, aceite menos áspero, mejores ostras; pero habríamos
de renunciar a la posibilidad de un nuevo Quijote, o de un Velázquez y, sobre todo y ante
todo, a la posibilidad de un nuevo San Juan de la Cruz, de un nuevo Fray Diego de Estella,
de una nueva Santa Teresa de Jesús, de un nuevo Íñigo de Loyola, ortodoxos o hetero-
doxos, que para el caso es igual.
Y acaba diciendo Baroja: «Triste país en donde por todas partes y en todos los pueblos
se vive pensando en todo menos en la vida».
Y esta arbitrariedad provoca la mía, y exclamo: ¡Desgraciados países esos países eu-
ropeos modernos en que no se vive pensando más que en la vida! ¡Desgraciados países los
países en que no se piensa de continuo en la muerte, y no es la norma directora de la vida
el pensamiento de que todos tenemos un día que perderla!

Aquí debo detenerme un momento – si es que puede hablarse de detenciones en una


marcha tal como la que aquí lleva mi pensamiento – y explicar, si es que explicación cabe,
esto de la arbitrariedad.
Los extranjeros, sobre todo los franceses, no toman de nosotros sino lo menos nuestro,
lo que menos choca a su espíritu – y ello es natural – , lo que se acomoda a la idea que de
nosotros tienen, idea que es siempre y forzosamente superficial. Y nosotros ¡pobrecitos!
cedemos a este engañoso halago, y esperamos el aplauso de fuera, de los que en realidad no
nos entienden, y aunque nos entiendan no nos comprenden.
Y yo no sé bien para qué quieren ellos eso que de nosotros toman y que corrobora la
vulgar idea que de nosotros tienen. Yo, en su caso, tomaría de aquí y daría a conocer a mis
compatriotas lo que más hiriera las convicciones de éstos, lo que más les chocara, lo que
más repugnase con su espíritu, lo que más distinto les fuese.
Mas es natural lo que hacen, porque las gentes quieren que se les diga lo mismo que
ellas piensan, que se les corrobore en sus prejuicios, prevenciones y supersticiones: los
hombres quieren que se les engañe. Y así va ello.
Frente a esa actitud de los demás, ¿qué hemos de hacer nosotros? Frente a esa acción
que tiende, conciente o inconcientemente, a descaracterizarnos, a arrebatarnos lo que nos
hace ser lo que somos, ¿qué acción nos conviene emprender? Frente a esas voces que nos
dicen: «si queréis ser como nosotros y salvaros, tomad esto», ¿qué hemos de hacer?

49 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Pero esto del intento de españolizar a Europa, único medio para que nos europeice-
mos en la medida que nos conviene, mejor dicho, para que digiramos lo que del espíritu
europeo puede hacerse nuestro espíritu, es cosa que hay que tratarla aparte.

Todo esto parecerá arbitrario, y para los demás casos lo sea; lo es ciertamente. ¿Qué le
he de hacer?
«Basta – dirá algún lector lógico y europeo moderno – ; ya te tengo cojido: tú mismo
confiesas que tus afirmaciones carecen de base, que son arbitrarias, que no pueden pro-
barse, y a tales afirmaciones no se les debe hacer caso». Y yo le diré a ese pobre lector
lógico, europeo y moderno, enamorado, de seguro, de la ciencia y de la vida, que el que
una afirmación sea arbitraria y no pueda probarse con razones lógicas, ni quiere decir que
carezca de fundamento, ni menos que sea falsa. Y, sobre todo, eso no quiere decir que la
tal afirmación no sea excitadora y animadora del espíritu, corroboradora de su vida íntima,
de esa vida íntima que es muy otra cosa que la vida de que está enamorado el lector lógico
y cientificista.
Aquí dejé este ensayo hace dos días, para continuarlo, reanudando su hilo, así que se
me ofreciera ocasión, cuando he aquí que acabo de leer hoy, 13 de mayo, una frase que
tuerce el curso de mi discurso. Así les pasa a los ríos, que un peñasco que se les presente
les desvía el cauce y puede hacer que vayan a desembocar a muchas leguas de distancia de
donde hubieran desembocado en otro caso, a otro mar tal vez.
Es curioso lo que pasa con las ideas. Tenemos en el espíritu muchas veces una tropa de
ellas que se arrastran vegetativamente en la oscuridad, mustias, incompletas, sin conocerse
unas a otras y huyéndose mutuamente. Porque en la oscuridad las ideas, lo mismo que los
hombres, se tienen miedo. Y están acurrucadas, evitando todo contacto, disociadas. Pero
he aquí que de pronto entra una idea nueva y luminosa, arrojando lumbre, e ilumina aquel
rincón, y al verle las otras, y al verse unas a otras las caras, se reconocen, se levantan, se
agrupan en torno a la recién llegada, se abrazan y forman hermandad y recobran plena vida.
Con una porción de ideas mustias y penumbrosas que tenía yo desperdigadas en un
rincón de mi espíritu, me ha sucedido así al entrar hoy en éste una idea que acabo de leer
en el número de La Correspondencia de España, diario de Madrid, correspondiente al día
de ayer, 12 de mayo.
Es el caso que en un artículo que en él publica Fabián Vidal, titulado «La actualidad –
Cánovas», dice el autor: «Sagasta comprendió a los españoles, pero no a España. Cánovas
no supo jamás de qué madera estaban formados sus compatriotas».
Leí esto, y al punto me di cuenta, por iluminación súbita, de la diferencia que va del
alma de España al conjunto de las almas de los españoles todos que hoy vivimos, a la sínte-
sis misma de estas mismas almas. Y recordé lo que a raíz de la última guerra civil carlista,
50 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

siendo yo un mozo, oí en mi pueblo a un sujeto que decía: aunque todos los bilbaínos
nos hiciéramos carlistas, Bilbao seguiría siendo liberal. Paradoja, es decir, profunda verdad
arbitraria, verdad de pasión, verdad cordial, que no olvidé después nunca.
«Sagasta comprendió a los españoles, pero no a España». Y todos los gobernantes
vulgares, los que se dejan llevar de la corriente y disfrutan de largos años de poder, y todos
los escritores vulgares, los que hacen copiosas tiradas de sus libros y los venden, y todos los
artistas vulgares, y todos los pensadores vulgares, comprenden a sus compatriotas, pero no
a su patria. Así es.
En el alma de España viven y obran, además de nuestras almas, las de los que hoy
vivimos, y, aún más que éstas, las almas de nuestros antepasados. Nuestras propias almas,
las de los hoy vivos, son los que menos viven en ella, porque nuestra alma no entra en la de
nuestra patria hasta que nosotros no la hayamos soltado, hasta después de nuestra muerte
temporal.
¿De qué sirve que queramos hacer pensamiento europeo moderno con una lengua que
ni es europea ni es moderna? Mientras nos empeñamos en hacerle decir una cosa, ella se
empeña en hacernos decir otra, y así no decimos el pensamiento que pretendemos decir,
sino el pensamiento que no queremos decir, ése decimos.
Nos empeñamos – es decir, se empeñan muchos – en deformar su espíritu conforme a
un patrón de fuera, y no conseguimos ni hacernos como aquellos a quienes pretendemos
remedar ni ser nosotros mismos. De donde un hórrido mestizaje espiritual, casi un hibri-
dismo infecundo.
Y aquí viene lo más curioso y más sorprendente del caso, algo que se comprenderá
algún día, si es que llega aquel en que alguien se ocupe en investigar el estado espiritual
de nuestra España en el tránsito del siglo XIX al XX; y es lo más curioso y lo más sorpren-
dente que los que pasan por más españoles, por más castizos, por más a la antigua, por
más genuinos españoles, son los más europeizantes, los más descastados en el fondo de su
alma, los más exóticos; y, por el contrario, hay quienes pasando para muchos inocentes
por espíritus exóticos, anglicanizados, germanizados, afrancesados o anoruegados, son los
que tienen sus raíces más en contacto con las raíces de los que hicieron el alma española.
He observado con cuánta frecuencia una casticidad cortical, de formas exteriores grama-
ticales y retóricas, se acompaña del más profundo desarraigo en el alma patria, y todo lo
contrario. He conocido un solemne majadero, literato en un tiempo reputado, que leía
a nuestros místicos para aprender en ellos castellano y a bien escribir, y a quien no se le
pegó nada del alma ardiente de aquellos casticísimos espíritus, y conozco, por otra parte,
quien no habiéndolos leído, y no cuidándose ni poco ni mucho de seguir ni su tradición
literaria ni su ortodoxia religiosa, ha respirado en el ambiente espiritual de la patria el aire
de aquella mística que en ese ambiente se cierne.

51 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Y esa confusión, ¿en qué estriba? No lo sé, pero presumo que ha de estribar en la
misma causa que hace que las gentes se empeñen aquí en hacer un sabio de quien menos
tenga de ello y pidan lógica a un apasionado y arbitrario.
«Las gentes – me dice un amigo cuando de estas cosas le hablo – , las gentes quieren
y piden cosas, es decir, ideas concretas, conocimientos utilizables, nociones científicas,
noticias, explicaciones racionales, y no puede írseles con sentimientos y con ensueños». Y
al oír esto suelo pensar a primeras: ¡pobres gentes!; mas al punto me rehago y digo: tienen
razón en parte; está bien que pidan eso; pero ¿por qué tantos de ellos han de rechazar lo
otro?; y, sobre todo, ¿por qué no han de pedirle a cada uno lo que tiene y lo que puede dar?
Y aplicando esto a nuestro pueblo, ¿por qué nos hemos de empeñar en torcer nuestro
natural íntimo, y rechazar lo que él nos da para pretender forzarle a que nos dé otra cosa?
Nuestros defectos, los que llaman los demás nuestros defectos, suelen ser la raíz de
nuestras preeminencias; los que se nos moteja como nuestros vicios, el fundamento de
nuestras virtudes. Si el que, sintiéndose avaro, podría convertir esta su avaricia en espíritu
de ahorro y previsión, se deja llevar de la ética del pródigo, como no sabrá ser pródigo, se
arruinará malamente y sin provecho alguno; y, por igual modo, el que, sintiéndose pródi-
go, podría hacer de su vicio fuente de noble liberalidad, si se deja engañar de la ética del
avaro, se arruinará lo mismo y sin provecho. Y como en la ética, sucede, verbigracia, en la
estética, y como en los individuos, en los pueblos.
No es una estética universal, aplicable a los pueblos todos, una estética pura – pues que
tal estética no sé que exista, y acaso ni pueda existir – la que nos ha condenado, pongo por
caso, el conceptismo y el gongorismo, y la que ha declarado de mal gusto nuestro genuino
y natural énfasis. No es una estética universal, valedera para todos los pueblos, sino que
es la estética de otros pueblos, de otro más bien, del pueblo francés, la que ha impuesto a
muchos de nosotros ese canon. Los vicios literarios y artísticos de ese pueblo terriblemente
lógico, desesperadamente geométrico, cartesiano, no son, ciertamente, ni conceptismo ni
gongorismo, y ha logrado en gran parte, al tratar de enseñarnos sus virtudes, enseñarnos
sus vicios. Nada más insoportable que la literatura española afrancesada; nada más falso y
más vano y más desagradable que los escritores españoles formados en la imitación de la
literatura francesa.
¡Énfasis! ¿Y si el énfasis no es natural? ¿Si la expresión enfática es la expresión es-
pontánea de nuestro natural? ¿Si el énfasis es la forma de la pasión, así como eso que se
llama naturalidad es la expresión de la sensualidad y del buen juicio? Lo que yo sé es que
cuando un hombre se irrita de veras, o se entusiasma, no se expresa en frases bien ceñi-
das, claras, lógicas, trasparentes, sino que rompe en estrumpidos enfáticos, en ditirambos
hojarascosos. Lo que sé, y sabe todo el mundo, es que en las cartas de amor, de verdadero
amor, de amor trágico, del amor que no puede ser feliz, todo es un flujo de encendidos
52 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

lugares comunes.
He pensado muchas veces que el gongorismo y el conceptismo son, en cierto modo,
expresiones de pasión. Del conceptismo lo afirmo, desde luego arbitrariamente, por su-
puesto. Casi todos los grandes apasionados que conozco en la historia del pensamiento
humano, contando al gran africano de que hablé antes, han sido conceptistas, han vertido
sus ansias, sus anhelos, en antítesis, en paradojas, en frases que, a primera vista, parecen
no más que ingeniosas. Y acaso ello dependa de que la pasión es enemiga de la lógica, en
la que ve una tirana, pues la pasión quiere que sea lo que ella quiere, y no querer lo que
tiene que ser, y el conceptismo es, en el fondo, una violación de la ló- gica por la lógica
misma. Juega con los conceptos y violenta las ideas aquel a quien los conceptos y las ideas
le estorban, porque no puede hacer con ellos lo que su pasión le pide.
Yo necesito la inmortalidad de mi alma; la persistencia indefinida de mi conciencia
individual, la necesito; sin ella, sin la fe en ella, no puedo vivir, y la duda, la incredulidad
de haber de lograrla, me atormenta. Y como la necesito, mi pasión me lleva a afirmarla,
y a afirmarla arbitrariamente, y cuando intenta hacer creer a los demás en ella, hacerme
creer a mí mismo, violento la lógica y me sirvo de argumentos que llaman ingeniosos y
paradójicos los pobres hombres sin pasión que se resignan a disolverse un día del todo.
El apasionado, el arbitrario, es el único verdadero rebelde, y nada me hace mayor efecto
de grotesquez que el encontrarme con esos sujetos, afrancesados por lo común, que se dicen
emancipados de todas las tiranías, amantes de la libertad, espíritus fuertes, anarquistas a las
veces, ateos con frecuencia; pero fieles devotos de la lógica y del código del buen gusto. Leen
a Moratín y se jactan de ser hombres de sentido común. ¡Buena pro les haga!
Sí; el énfasis, la hinchazón, el conceptismo, el paradojismo, son el lenguaje de la pa-
sión, y, en cambio, nada menos natural, para nosotros los españoles por lo menos, que
eso que llaman naturel los franceses, y que suele ser producto refinado de una exquisita y
artificiosa elaboración.
No sé qué francés ha dicho que la literatura francesa es la que expresa elocuentemente
los grandes lugares comunes humanos; pero lo que yo diría es que en esa literatura, que tan-
tos estragos ha hecho y sigue haciendo en España, se expresan y hallan su forma adecuada
todos los sentimientos medios y todas las ideas medias, y no caben bien en ella ni las ideas
ni los sentimientos extremos. Es una literatura sensual y lógica, y, por lo tanto, luminosa
y alegre. Y nosotros los españoles somos, en general, más apasionados que sensuales y más
arbitrarios que lógicos. Lo somos, y debemos seguir siéndolo. Es decir, debemos volver a
serlo, porque acaso no lo somos tanto, ni mucho menos, como en otros tiempos lo fuimos.
Observad que el espíritu francés no ha dado ningún gran místico, ningún verdadero
gran místico puro. En Pascal, aunque un poco arbitrario y apasionado, la geometría había
dejado profunda huella. Y cuenta que es Pascal uno de los espíritus franceses que mejor po-

53 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


demos apropiarnos, ese profundísimo espíritu atormentado que nos enseñó, entre otras, dos
grandes, dos profundas, dos atormentadoras arbitrariedades: la del pari o apuesta, y aquella
otra de il faut s’abêtir, «hay que embrutecerse», empezando, para creer, por obrar como si se
creyese. Pero un gran místico, un verdadero místico puro, no lo conozco francés. Y aquí de
buena gana diría algo del dulce, reposado, sensual y ló- gico San Francisco de Sales, tan lleno
de sentido común y de medianía espiritual; pero vale más dejarlo para otra ocasión.
Y es la estética de este pueblo, tan opuesto al nuestro, pese a todas esas monsergas de la
hermandad latina – no sé que ellos sean latinos, no sé que nosotros lo seamos, y en cuanto
a mí, personalmente, creo no tener nada de latino – ; es la estética de ese pueblo la que
están deformando nuestra producción en no pocos de nuestros productores espirituales.
¡Latinos! ¿Latinos? ¿Y por qué, si somos berberiscos, no hemos de sentirnos y procla-
marnos tales, y cuando de cantar nuestras penas y nuestros consuelos se trate, cantarlos
conforme a la estética berberisca?
El único modo de relacionarse en vivo con otro es el modo agresivo; sólo llegan a una
verdadera compenetración mutua, a una hermandad espiritual, aquellos que tratan de
subyugarse espiritualmente unos a otros, sean individuos, sean pueblos. Sólo cuando trato
de meter mi espíritu en el espíritu de un prójimo mío es cuando recibo en el mío el espíritu
de este mi prójimo. La bendición del apóstol es que recibe en sí las almas de todos aquellos
a quien apostoliza; esto es lo noble del proselitismo.
No; nada, nada de dejar hacer y dejar pasar; nada de encojerse de hombros ante las
ideas de los demás, y menos ante sus sentimientos, sino tratar de herirlos. Así, y sólo así,
nos herirán ellos en los nuestros y nos los mantendrán despiertos. De mí sé decir que a
quienes debo más es a los que han hecho como que rechazaban, a los que han querido re-
chazar lo que yo les ofrecía. La honda vida moral es una vida de agresión y de penetración
mutua. Cada cual debe procurar hacer a los demás a su imagen y semejanza, como dicen
que a su imagen y semejanza nos hizo Dios.
La condenación del que trata de moldearse por otro es que dejará de ser él mismo para
no llegar a ser el otro a quien toma por modelo, y así no será nadie.
Algo, algos, mucho hay, sin duda, en la cultura europea moderna y en el espíritu
moderno europeo que nos conviene recibir en nosotros para convertirlo en nuestra carne,
como recibimos en el cuerpo la carne de diversos animales y la convertimos en nuestra
carne. Con sesos de buey enciendo mi seso, con lomos de cerdo hago latir mi corazón, con
peces y con aves mantengo a mi carne para que mi espíritu pueda bajar a los profundos
y nadar en ellos, y remontarse a las alturas y en ellas volar. ¿Y no hemos de comernos el
espíritu europeo moderno? Sí; pero a esos bueyes, cerdos, peces y aves de que nos alimen-
tamos los matamos antes, imponiéndoles nuestro dominio, y a ese espíritu hemos de tratar
de matarlo antes de comérnoslo.
54 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

Tengo la profunda convicción, por arbitraria que sea – tanto más profunda cuanto
más arbitraria, pues así pasa con las verdades de fe – , tengo la profunda convicción de que
la verdadera y honda europeización de España, es decir, nuestra digestión de aquella parte
de espíritu europeo que pueda hacerse espíritu nuestro, no empezará hasta que no trate-
mos de imponernos en el orden espiritual a Europa, de hacerles tragar lo nuestro, lo ge-
nuinamente nuestro, a cambio de lo suyo, hasta que no tratemos de españolizar a Europa.
Y hoy, vergüenza y desmayo causa el decirlo, cuando a un español le pasa por las
mientes entrar en Europa, es decir, tratándose de literatos ser traducido, de lo que se cuida
es de deformarse, de desespañolizarse, de no dejar a quien haya de traducirle más trabajo
que el de traducir la letra, el lenguaje externo. Y así se oyen cosas como aquello que un
francés me dijo, hablándome de una traducción de una novela española contemporánea,
y afirmándome que estaba en francés mejor que en español, y es que me dijo esto: la han
devuelto a su lengua original.
Cada poder humano tiene su método; es decir, su procedimiento, su modo de condu-
cirse. Lo que llamamos lógica es el método de la razón, el modo de buscar conclusiones
que a la razón satisfagan. Así se hace la ciencia. Pero, cuando ni se trata de hablar a la razón
ni de satisfacerla, no hace falta la lógica. Y, por mi parte, raras veces, muy raras veces, me
dirijo a la razón de los que me oyen o me leen, y esas veces no soy yo propiamente quien les
hablo o les escribo, sino es un sujeto postizo, y por postizo, quitadizo, que me han echado
encima los que me oyen o me leen.
Se ha dicho que el corazón tiene su lógica; pero es peligroso llamarle lógica al método
del corazón; sería mejor llamarle cardíaca.
Y hay también el método de la pasión, que es la arbitrariedad, a la cual no hay que
confundirla con el capricho, como con frecuencia ocurre. Una cosa es ser caprichoso, y
otra, muy distinta, ser arbitrario.
La arbitrariedad, la afirmación cortante porque sí, porque lo quiero, porque lo nece-
sito, la creación de nuestra verdad vital – verdad es lo que nos hace vivir – , es el método
de la pasión. La pasión afirma, y la prueba de su afirmación estriba en la fuerza con que es
afirmada. No necesita otras pruebas. Cuando algún pobre intelectual, algún europeo mo-
derno, me viene con raciocinios y argumentos en oposición a alguna de mis afirmaciones,
me digo: ¡razones, razones y nada más que razones!
«Aquí – diréis – nada se prueba».
No fue español, aunque por ello merecía haberlo sido, sino inglés, el que escribió estos
perdurables versos:
For nothing worthy proving can be proven
Nor yet disproven: wherefore thou be wise,
Cleave ever to the sunnier side of doubt,

55 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


And cling to Faith beyond the forms of Faith!
Fue Lord Tennyson, en El antiguo sabio (The Ancient Sage), el que dijo eso que, puesto
en castellano – lengua en que debió haberse dicho primero tal cosa – dice: «Nada digno de
ser probado puede aprobarse ni desaprobarse, y, por lo tanto, sé prudente y, ateniéndote
siempre a la parte más soleada de la duda, agárrate a la fe más allá de las formas de la fe!».
Estos preñados versos nos dio Lord Tennyson en aquella misma poesía en que nos
dijo que el conocimiento knowledge, es decir, la ciencia, es un sauce a la orilla de un lago,
que ve y agita la sombra superficial en él, pero nunca se ha sumergido en el abismo. Sean,
pues, aquí mis últimas palabras, mientras me preparo a pensar cómo pueda españolizarse a
Europa, que nada digno de ser probado puede ni probarse ni desaprobarse.

Diciembre de 1906
Nós, a Espanha, a Europa

Eduardo Lourenço

A Espanha e nós34

O estrangeiro pode amar-nos ou odiar-nos: não pode ser-nos indiferente. A Espanha


provocou entusiasmos ou rancores: jamais foi encarada com desprezo ou ironia.
Oliveira Martins, História da Civilização Ibérica

É provável que os futuros cronistas do nosso século de desastres, utopias e metamor-

57 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


foses, retenham a ascensão da Espanha ao primeiro plano das nações europeias, como um
dos grandes milagres deste fim de século. Em 1992 o que é hoje uma hipótese quase con-
firmada adquirirá então plena ressonância universal. Com a próxima festa de Colombo,
três séculos de marginalização (e auto-marginalização) histórica, política e até cultural de
Espanha deixarão de vez de ser aquele espinho da consciência espanhola que ainda no
tempo da Geração de 98 so lhe deixava como saída a oscilação agónica entre o orgulho
e o ressentimento. As famosas «duas Espanhas» de Machado diluir-se-ão numa só, capaz
de conviver pacificamente com as suas próprias diferenças e com essa Europa para quem
sempre olhou com uma mistura estranha de desdém e fascínio. Em menos de cem anos as
visões, na aparência inconciliáveis, de Unamuno e Ortega, hiperespanholista e antieuro-
peia a do primeiro, espanhola e europeísta a do segundo, deixaram de ser irmãs-inimigas
para serem apenas expressão histórica de uma Espanha que, praticamente, já não existe.
Todavia, na óptica desse antagonismo arcaico, em última análise, é a visão não ressentida

Eduardo Lourenço, 1988, “A Espanha e Nós”, Nós e A Europa ou As Duas Razões, Lisboa, Imprensa
34

Nacional-Casa da Moeda, pp.: 79-85.


do “grande europeu”, que foi o autor da Rebelião das Massas que acabou por triunfar.
A nova Espanha é, finalmente, democrática, sobre o plano formal, mas capital, da políti-
ca, e optimista, no plano mais decisivo do seu confronto com todos os desafios culturais,
técnicos e científicos do nosso fim de século.
Seria ingénuo supor que os antigos “demónios” da sociedade espanhola desapareceram
como por magia. O que é novo é que todos os “desejos” desse povo, de uma violência e
de uma vitalidade míticas, estão hoje na praça pública, coabitam, confrontam-se, alimen-
tam-se das suas próprias contradições, sem que o resultado seja o do “sangue e sol” do seu
espectáculo favorito. Por esta nova “pax hispânica” poucos povos terão pago um preço tão
alto. O drama basco não é senão o último sobressalto de uma história convulsiva que pa-
rece ter encontrado o seu ritmo de cruzeiro. A maneira como a Espanha democrática tem
vivido esse drama, a dominar tentações para não as deixar degenerar em tragédia, é apenas
um dos índices da metamorfose profunda da sociedade espanhola e a expressão de uma
nova consciência reconciliada consigo mesma.
Margem da Europa depois de ter sido senhora e responsável pelo seu centro convulso
e caótico, espaço de uma verdade” que Pascal suspeitava ser apenas a da ilusão ou do erro,
Espanha, mesmo na sua fantasmal e realíssima decadência dourada, teve sempre o condão
de fascinar o restante mundo. Um pouco como a Rússia, de Pedro e de Catarina, até aos
dias de hoje. Mas esse fascínio era um pouco mórbido, quase sempre o fascínio do diferen-
te, quando não do exótico, em que se talham os ícones, aliás admiráveis, das “Carmen” e
das “Maria”, de Merimée a Hemingway. É certo que a Espanha nunca deixou de exprimir
essa “diferença” em termos ostentatórios. A esse título se unem umas às outras figuras
58 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

tão distintas como Rodrigo Calderon, Inácio de Loyola, Teresa de Jesus, El Greco, Goya,
Buñuel ou Picasso, incorporações sucessivas do seu evidente agonismo, do seu gosto e
da sua paixão pelo que é extremo. Nos seus grandes indivíduos, que o são não o sendo à
maneira europeia, o povo espanhol é um dos raros povos da terra, se não o único – que é
sujeito da sua própria História. Este traço cultural, que ninguém exemplificou e “teorizou”
melhor do que Unamuno, não desapareceu da cena espanhola. Seria uma tristeza sem
nome que essa vocação para o “incomparável”, única na Europa, essa nota individualista,
mesmo no domínio que menos a consente, como o religioso, soçobrasse no caos resplande-
cente de uma “novidade” suscitada por atrasado mimetismo de culturas que não possuem
a espessura da que criou D. Quixote. Porventura custa sempre caro, para uma sociedade
no seu conjunto, estar como que condenada a suscitar “génios” que, além da excepção que
constituem, exprimem mais a sua “doença” colectiva do que uma certa mediania existen-
cial. Tudo se passou sempre com a cultura espanhola como se ela estivesse disposta a pagar
esse preço. E, quando o não está, desaparece do horizonte, ou conhece misteriosos eclipses.
De qualquer modo, foi sempre o que nela houve – ou há – de excessivo que a instituiu,
mesmo aos olhos de outras culturas dispostas a escandalizar-se ou a ironizar acerca desse
excesso, como uma das poucas culturas míticas do Ocidente.
Cultura agonicamente diferente – mais do que cultura da diferença, como outras –,
a cultura espanhola foi sempre vivida pelo resto da Europa como um fenómeno incon-
tornável, de permanente ambiguidade. Por sua vez, a Espanha especializou-se – ao menos
em certas épocas – em viver a sua relação com o “outro” como uma espécie de “mal neces-
sário”, ou de remédio, não menos necessário, para se salvar dos seus próprios fantasmas.
É por isso que o diálogo dessa Europa com a nova Espanha importa tanto à definição
cultural da sociedade espanhola, como ao destino da cultura europeia no seu conjunto.
Pela primeira vez, desde o século XVI (e ainda parte do XVII) existem as condições de
um diálogo intenso intra-europeu e como componente capital dele, a novidade de um
convívio partilhado e partilhável entre a pátria de Cervantes e de Goya e a outra Europa.
Estranhamente, o pequeno país seu vizinho, o nosso, de portugueses, pensa-se ou
vive-se por dentro, como fazendo mais parte dessa “outra” Europa do que do todo penin-
sular, marginalmente europeu, que a Península tem sido. Seria excessivo dizer que somos
“Europa outra” mas na nossa relação com a Espanha algo disso aflora. Mas chegou o
tempo de repensar a mitologia e o discurso onírico das nossas relações de estranheza, pois
talvez os actores dela estejam sofrendo neste momento uma metamorfose radical. Talvez
ninguém possa medir melhor do que nós, portugueses, o que representa, na labiríntica
história cultural da Europa, esta emergência espectacular da Espanha como nação de refe-
rência em todos os planos e, em particular, no da Cultura, onde, até há pouco, a víamos,
também, como subcultura” em relação ao espaço hegemónico europeu.

59 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Pressentindo, ou tendo uma ideia exacta dessa “promoção”, o reflexo clássico de pâni-
co ou de ressentimento, quer nos planos económico e político, quer no cultural, encon-
trou já, entre nós, algumas expressões. Por mais compreensível que possa parecer, quase
mero reflexo condicionado que se tornou ao longo dos séculos no puro plano político,
esse reflexo seria sempre lamentável. Lamentável, grotesco e vão. Seria a confissão pública
da nossa insignificância histórica e cultural se nos ofuscássemos com uma irradiação da
Espanha em novos moldes, tocando, como é natural que toque, a sua partitura no grande
concerto europeu. Os nossos destinos foram sempre, ou paralelos ou cruzados, nunca
opostos enquanto culturas, pois, como o viu com nitidez Oliveira Martins, fazemos parte
de uma única estrutura, criada séculos antes que os povos que constituem a Península se
definissem como nação. E nunca a nossa cultura foi mais criativa e mais “nossa” do que
na época em que ela era diálogo interno dos centros e das impulsões culturais diversas da
Península, por sua vez imersa na mais vasta trama de uma cristandade orgânica.
Nos termos em que se tem expressado, o antiespanholismo é a doença infantil do
nosso nacionalismo que está já longe de ser o radical amor sem complexos de nós mesmos.
Nada há que justifique a evocação do fantasma “iberista” do século XIX, fantasma con-
sistente que existia até em gente lúcida, que nos conhecia e nos “amava de mais”. Como
solução de desespero, à Antero, fuga à nossa então exacerbada consciência de subalterni-
dade cultural, o fantasma é ainda menos consistente. A nova Espanha é uma Espanha das
“diferenças”, possível apenas porque, do exterior, uma nova forma de auto-identificação
consente que a sua estrutural “invertebralidade” possa ser assumida. Portugal é um espaço
histórico cultural sem “diferenças”, por oposição a um fantasmático “todo” ibérico cons-
tituído por diferenças” de signo diverso da nossa por não serem nações como nós somos.
No espaço europeu onde sempre estivemos, como a Espanha, que em tempos nos tutelou,
tocaremos também a nossa partitura, mas é puro delírio imaginar que contará com a
mesma audiência, a mesma presença ofuscante que a cultura espanhola, até em épocas de
decadência política, teve sempre aos olhos e ouvidos da Europa.
A nossa reacção ao “espectáculo” que a Espanha, de maneira hábil, concertada, “oficial”
está disposta e é capaz de fornecer à Europa – ou que ela é já para a outra Europa – não
pode, nem deve ter o perfil negativo, histerizante, do habitual reflexo ultranacionalista,
reaccionário no plano político e ideológico e caricato no plano cultural. A única resposta
sensata e criativa ao desafio que o dinamismo cultural espanhol (no sentido mais lato) pode
representar para nós é a de o tomar como ocasião para um diálogo mais sério e mais pro-
fundo com a cultura vizinha, como foi o caso outrora. O melhor que nos pode acontecer
é ver nela um estímulo para elevar esse diálogo a uma espécie de “habitus” interpeninsular,
como se fossemos tábuas de um imenso painel, transposição apenas metafórica da primeira
imagem universal que em conjunto, outrora, elaborámos. Em vez de espaço de repulsa, a
60 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

Espanha, esta nova e dinâmica Espanha, deve ser para nós um espaço privilegiado, natural-
mente apto e aberto não só para ler hoje Pessoa como nós líamos ontem Lorca ou Machado, a
título de excepção, mas para compreender os nossos jovens criadores em todos os domínios
como nós devemos compreender os jovens ou menos jovens autores espanhóis. Brandir
Gamas contra Colombos, solidificar um presente vivo em torno de polarizações míticas
sem sentido, é uma provinciana e absurda perspectiva. Até porque é fácil manipular o nosso
óbvio benfiquismo patriótico para iludir o sempre carenciado seio lusíada.
A grande questão cultural que temos hoje – embora em termos diversos e até, na apa-
rência, opostos aos de outros – não é com o outro em geral, e o espanhol, o francês ou o
americano em particular. A grande questão, para lembrar um dos poetas mais lúcidos do
seu tempo, é connosco mesmos enquanto sujeitos e actores de uma Cultura que no seu
espaço natural de irradiação – o que fala efectiva ou possível em língua portuguesa – não
alcançou nunca aquela visibilidade e presença que a cultura espanhola ostenta. São essa
visibilidade e presença de Espanha que permite ainda hoje ao seu Rei passear como em
casa, não apenas na “sua” (dele) América Latina, mas no hispânico espaço linguístico do
próprio Tio Sam. Justa reparação do destino para quem tão humilhada foi há um século
por um imperialismo mais jovem do que o seu. Mas mais natural reconhecimento de um
povo por conta de quem Colombo descobrindo-a inventou a América.
Natural e gloriosamente imersos na recordação dos nossos altos feitos, a aventura de
Colombo ocupa um lugar secundário na nossa memória cultural. Num dos seus poemas
menos felizes, Pessoa faz-se eco desse curioso recalcamento. Os “Colombos” são para ele
aqueles que acharam o que nos desdenhámos. Pouco importa aqui a “verdade-Colombo”.
Como mito não apenas espanhol, mas universal, tal como Claudel o celebrou, Colombo
adequa-se mais à figura daqueles a quem toca
a Magia que evoca
O Longe e faz d’elle história
“Emprestada” ou não, é a sua glória que a Espanha, a América e o mundo celebrarão
daqui a seis anos, convictos como os cronistas do século XVI que a sua aventura “é o mais
importante acontecimento da História desde a Encarnação de Jesus Cristo”. Nas celebrações,
o celebrado é um pretexto para o celebrante. É bom que nós, portugueses compreendamos
de uma vez para sempre que não é apenas nem essencialmente Colombo, o mais ditoso dos
homens do Destino, que servirá de pretexto à Espanha para orquestrar a sua fabulosa festa.
O que a Espanha vai celebrar tem menos a ver com o passado do que com o presente.
A Espanha vai comemorar, festejar o seu aggiornamento, recuperar em termos do século XXI a
sua imagem perdida ou diminuída. Esse acontecimento não é apenas espanhol. Todo o mundo
hispânico, a outra América estão envoltos nas consequências do achado de Colombo, em si,
uma peripécia de perfil anómalo no interior da empresa dos Descobrimentos. No fundo, por

61 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


ser de tanta gente, a glória de Colombo não é de ninguém, como a verdadeira glória. O que é
estranho é que nós – e só nós – a vivamos como amuados dela, à maneira de Pessoa, como se
nele o Destino nos tivesse traído. Quando seremos historiograficamente adultos?
Ao contrário de Bolívar – que por amargura o pensou – a Espanha não lavrou o mar.
Nenhuma das nações saídas das suas mãos ou por ela modeladas com feroz energia é maior
do que ela, sobretudo, culturalmente. Espanha não é um povo que se possa esquecer ou se
deixar esquecer. O nosso caso foi – é – um pouco diferente. Por natural fragilidade nossa,
em parte, por uma boa dose de incúria, também. Mas, no fundo, por nos termos literal-
mente fundido, em espaços, sonhos maiores do que nós, espaços ou sonhos descentrados
do seu sujeito criador. Dos dois países, outrora rivais, o mais quixotesco não é aquele que é
o berço do Herói, mas o nosso. É por isso que é tão difícil aceitar o nosso tamanho natural,
ter o sentido das proporções e cumprir dentro da nossa esfera possível o paradoxal destino
de nos ajustar a tão desmedida imagem de nós mesmos.
Nos próximos anos, confessando-o ou não, vamos polarizar-nos, culturalmente, numa
espécie de competição imaginária com Espanha, comemorando os nossos altos feitos
marítimos, mas como certos índices o deixam já prever, na perspectiva de quem só tivesse
emprego no passado. Lá para o fim do século “obrigaremos” o Brasil a associar-se a um
desafio mítico que não tem para ele nenhum dos sentidos que estamos habituados a dar-
-lhe. O “discurso comemorante” já em marcha é de um anacronismo vertiginoso. Não sei
se será possível recuperá-lo, convertê-lo em festa do presente e, sobretudo, do futuro. Se o
não for será uma grande ocasião perdida. Toda a óptica desse discurso, todo o seu enqua-
dramento institucional deviam ser revistos, subtraídos de raiz ao neochauvinismo que está
invadindo – em plumas imprevistas – a atmosfera mental do País, como nos mais oníricos
momentos do Antigo Regime. Como é possível evocar a mais ecuménica gesta em função
de um historicismo fascinado pelo particularismo consciente ou inconscientemente res-
sentido? Aquilo que portugueses e espanhóis (e catalães e italianos e alemães...) fizeram,
modificou a face do mundo. O lógico seria imaginar uma festa comum, não apenas nem
principalmente por conta dessa hora solar, mas do nosso presente de todos na medida em
que tem a ver ainda e sempre com essa hora.
Colombo? Dias? Gama? Cabral? Óptimo. Se calhar, acaso o maior de todos, o mais
solitário, aquele que não pôde realizar o seu sonho dentro de casa, por tão desmedido, não
será celebrado, nem cá, nem lá. Camões já lhe compôs o epitáfio. Chamou-lhe até desleal,
embora português no feito. Não sei quem foi o astrónomo que baptizou uma constelação
com o nome de Magalhães – convertido assim em emigrante astral – e assim reparou com
acréscimos o erro e a fortuna adversa. Que se saiba é o único português cujo nome está
inscrito na esfera celeste. Bem o merece. Sonhou o mais louco e o mais realista dos sonhos.
Foi o primeiro homem a saber com a sola dos pés que a Terra era redonda. Que o começo
62 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

e o fim da nossa viagem peninsular coincidiam e o mundo era um só. Já é tempo de o


reconhecer e proceder em tudo como se o soubéssemos. Que mais ecuménica e fraterna
revelação?
Fantasmagoria Europeia: Nós e a nova Espanha35

De repente, Portugal descobriu Espanha. Podia ser uma excelente ocasião para se desco-
brir a si mesmo como naturalmente “hispânico”, mas os sinais apontam para outra tentação.
Ou antes, para o secular hábito que a nossa classe dirigente sempre teve de poder em paz
consumir sem sobressaltos a magra herança do nosso exíguo jardim. Chama-se a isto patrio-
tismo, nacionalismo, amor natural de preferência pelo que é nosso ou nós somos. Mas as
proporções que o fenómeno está tomando, o pânico real, imaginário e, sobretudo, cultivado,
que a nova Espanha começa a inspirar entre os guardiães desse nacionalismo, merece mais do
que esta simples alusão irónica. Protegido pela Europa de uma eventual absorção – fantas-
ma que, a sério, só durante os anos após a Restauração leva alguma consistência – Portugal
acordou de súbito com o sentimento kafkiano de ter dormido, sem dar-se conta, durante
três séculos, lado a lado, com a avó do Capuchinho Vermelho. Este pânico é uma aberração
e não é por acaso que está sendo encenado neste momento pelos herdeiros de tudo quanto
há de mais reaccionário no plano político e ignaro no plano da cultura. E como se isso não
bastasse, esses cavaleiros andantes da lusitanidade em transe patriótico ignoram que um tal
reflexo é a expressão crua da falta de confiança nas capacidades históricas do país real que jul-
gam promover mobilizando o que há sempre de infantil no chamado sentimento nacional.
Este surto do ultranacionalismo, de puro recorte ideológico e demagógico, surge pre-
cisamente no momento em que a Espanha também nos descobre, não apenas como espaço
(pequeno) de investimento económico, mas como espaço cultural digno de atenção e até

63 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


fascínio. É caso para lembrar o nosso saboroso provérbio: “preso por ter cão e preso por
não o ter”. Durante anos foi uma lamúria permanente, um queixume pelo desconheci-
mento mais ou menos voluntário a que a nobre Espanha nos votava. Agora que os nossos
autores começam a circular na casa vizinha como se fosse própria e às vezes até com mais
sucesso (Pessoa tem hoje mais leitura em Espanha do que em Portugal), surge o temor
diante de tão ecuménica capacidade de nos amar em excesso para nos devorar. Na verdade,
o que devíamos lamentar é o facto de que o conhecimento de Portugal por Espanha, hoje
em fase realmente nova e não apenas retórica, deixe ainda a desejar. Mas como queixarmo-
-nos, sabendo, como sabemos, que o nosso desconhecimento de Espanha é abissal?
As expressões folclóricas que neste momento, da maneira mais artificial, ressuscitam
o anticastelhanismo da época em que Portugal e Castela efectivamente buscaram mutua-
mente hegemonizar-se, é uma aberração, mas é também um sintoma. Dilucidar o sintoma
é mais interessante e mais urgente que tomar a sério o reflexo do pânico absurdo diante de
35
LOURENÇO, Eduardo, “Fantasmagoria Europeia: Nós e a Nova Espanha” (1990/12/4), A Europa
Desencantada – Para uma Mitologia Europeia, Lisboa, Visão, 1994: 83-86.
Espanha. Como se explica que na “hora da Europa” uma certa fracção da classe dirigente –
a mais ligada por atavismo e interesses ao antigo modelo nacional-conservador – descubra
na “cruzada” antiespanhola uma mina de diversão e de potenciais votos? O que seria de
esperar era uma vaga, mais ou menos intensa, de antieuropeísmo como resposta impoten-
te, mas também potencialmente mobilizadora face a uma “nova ordem europeia”, na qual
temos dificuldade em nos ver como protagonistas. Sem falar da distância secular e do não
menos intenso ressentimento (e ufania) de peninsulares diante da outra Europa, mais rica,
mais poderosa e mais tecnicamente evoluída. Na verdade, a amplitude que tomou este fan-
tasmático antiespanholismo é realmente um subproduto de um mais sentido e profundo
reflexo antieuropeu. A Espanha é só “a Europa” que temos – que têm os manipuladores do
sentido nacional – mais perto, uma Espanha mais “europeizada” do que nós alguma vez
podíamos supor, nós portugueses que contraditoriamente sempre gostamos de nos imagi-
nar, em oposição aos espanhóis e, em geral, ao mesmo tempo “marginais” e “cosmopoli-
tas”. De repente descobrimos que o nosso eterno Paris ou a lendária Londres dos séculos
XIX e metade do XX, podiam ser Madrid ou Barcelona... A indolente, a mágica Lisboa
que Pessoa adorava por acordar mais tarde que as outras capitais (tão espanhola nisso
afinal) estremeceu. Estremeceram nela os nossos protegidos yuppies habituados a reger as
suas sinecuras depois das onze horas quando a noctívaga Espanha há muito acertou os seus
relógios pela hora tirânica, mas por enquanto fatal, da fatal Europa. Como reagir diante
de tão inabitual ofensa aos nossos deliciosos, ronceiros modos de gerir a nossa vida caseira,
como diria Eça de Queirós? Vir para a praça pública, alertar as boas almas, gritar que nos
roubaram, que nos roubam aquela mágica substância do nosso ser nacional, essa cultura
64 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

que nunca interessou minimamente os novos histriões do ultranacionalismo? E para maior


êxito, imaginam ou inventam uma ameaça irreal – precisamente no plano da Cultura, onde
só as nossas carências ou impotências nos são inimigas – da parte de uma Espanha que tem
mais em que empregar a sua energia. Em operações financeiras, industriais, económicas
com sentido largo, por exemplo, em suma, acções de lógica imparável dentro de um con-
senso liberal europeu, que é a bíblia desses mesmos arautos do ultranacionalismo cultural.
Negócios, negócios, cultura à parte, pensam esses sublimes defensores da cultura nacional,
mais fácil de defender em palavras que os interesses e o património económico-nacionais
de que conhecem a expressão reduzida e a vulnerabilidade. Na impossibilidade de reforçar
o tecido económico-nacional, e ainda menos de designar “o inimigo” nessa ordem de rea-
lidades ou, na sua ausência, “o amigo” que ajude a consolidar, numa perspectiva nacional,
as nossas estruturas produtivas, proclama-se a cultura amcaçada, a identidade nacional em
vias de dissolução. E ressuscita-se um “antiespanholismo” de pura ficção.
Nestes termos anacrónicos que nem o antigo regime cultivou, este surto “chauvinista”
é burlesco e sem objecto. Este fenómeno tem lugar no mesmo país onde nunca as criações
culturais, precisamente, haviam conhecido tanta visibilidade, tanto reconhecimento e
sucesso na Europa, como hoje. A começar pela Espanha, onde nomes como Saramago,
Vergílio Ferreira, Eugénio de Andrade, Lídia Jorge, Lobo Antunes, Cardoso Pires são co-
nhecidos do grande público cultivado. Pela primeira vez, desde os tempos abençoados de
Garcilaso e Camões, Luís de León e Cervantes, há entre as nossas duas culturas qualquer
coisa que se assemelha a um diálogo inter pares. Desta presença no “mundo” os mesmos
chauvinistas são os primeiros a ressentir a patriótica ressonância e, sempre que calha, a
dourar com ela a lapela estéril do Poder que é só poder.
A cultura de um país vive da permanente revisitação do seu fundo imemorial, dos
seus arquivos imaginários, sem precisar de inventar guerras de ficção para se mobilizar.
A folclorização oficial ou oficiosa dos actores sem palco do ultranacionalismo nada tem
que ver com esse diálogo com o imemorial de nós mesmos. É a sua macaqueação inócua.
Esperemos que passe.
Roma, 4 de Dezembro de 1990

65 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


A Península como problema Europeu36

No livro Nós e a Europa já tive ocasião de abordar tangencialmente a questão da


“Península como problema europeu”, mas aqui desejaria enfocá-la de outra maneira, em
função da totalidade peninsular. Quer dizer, não como o historial da nossa relação comple-
xa com a Europa – a título de portugueses, a título de espanhóis, na sua diversidade de cas-
telhanos, catalães, bascos, etc. – mas como a península no seu relacionamento global com
essa Europa. É uma hipótese de trabalho que pode ser discutida mesmo como hipótese.
É sabido que Michelet resumiu a Inglaterra com um pleonasmo provocante: “a Inglaterra
é uma ilha”. Queria ele dizer que, tendo-se isso em consideração, tudo o mais era mera conse-
quência. A nossa península não é obviamente uma ilha, todavia uma certa perfeição das suas
formas, as que condicionam a nossa imagem dela, faz com que esta imensa península europeia
– o seu ponto extremo da Europa – sugiram uma configuração de ilha sobretudo quando ela
está completa. Quer dizer, quando não é aquela representação que vem nos mapas meteoro-
lógicos da nossa península em que Portugal ou é um espaço, quase virtual, onde não chove,
não correm rios para o Atlântico, ou então aquela outra imagem pura e simplesmente onde a
Espanha se representa a si mesma como aquela famosa pele de touro célebre. Aí, sem o nosso
rectângulo nessa altura temos a impressão de ter caído no Atlântico. Mas quando olhamos o
mapa da Europa e verificamos o que é essa Península, o que nos fascina, o que nos impressiona,
é a sua totalidade, a sua imagem perfeita que se podia imaginar que fosse realmente uma ilha.
Talvez por isso, o mais célebre dos nossos romancistas não fez mais do que ceder à
66 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

inspiração da geografia imaginando a nossa península como uma ilha e pondo-a a derivar
no Atlântico em direcção ao Sul. Com isso, José Saramago sugeria que a península não era
europeia ou que ele talvez não desejava que o fosse. Essa extravagante e original ficção é um
discurso acerca da península (não apenas nem sobretudo de ordem geográfica) suspenso pelo
fio de um certo complexo de ressentimento do que somos ou nos sentimos como peninsu-
lares em relação à Europa mas é igualmente uma reivindicação da nossa autonomia ibérica.
É o que eu nesse livro Nós e a Europa designei como dupla postulação em relação à
Europa: ressentimento e fascínio. No tempo em que nós, peninsulares, tínhamos o senti-
mento de não sermos vistos ou aceites como europeus de primeira, esse reflexo ou sentimen-
to de diferença e de uma certa excentricidade em relação à Europa tinha a sua explicação,
embora não a sua justificação. Isso sucedeu quando a Península entrou no que chamamos
a idade barroca separando-se histórica, e sobretudo simbolicamente, de uma Europa que
36
Intervenção no Colóquio “A Ibéria no Contexto Europeu”, Guarda, 26/11/2001, in Revista Iberografias,
nº 1 (2005). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. Republicado em: Vida Partilhada. Eduardo Lourenço, o
CEI e a Cooperação Cultural. CEI-Ancora, Coleção Iberografias Nº 21, pp. 61-67.
entrava plenamente na era burguesa, que tinha no protestantismo a sua tradução ideoló-
gica e, mais do que tudo, por complexas razões, começava a criar entre a prática científica
além-Pirinéus e aquém-Pirinéus uma distância que tanto nos faria sofrer e tão graves conse-
quências geraria, e que ainda hoje, pelo menos no que diz respeito a Portugal, são visíveis.
Começava então a problematizar-se a nossa relação com a Europa e essa Europa a pro-
blematizar a Península. Na verdade, quando tomámos maior consciência dessa Europa, já
então a duas velocidades, não era tanto a Europa que se constituía num problema para a
península, mas a península que era problematizada por essa Europa.
Hoje percebemos melhor que aquilo que mais tarde se transformou num tópico de que
a península era uma civilização, uma cultura em processo de decadência, quer dizer, em vias
de se afastar do paradigma clássico da modernidade, tinha pouco a ver com o olhar que a
Europa da revolução científica, económica e depois política e ideológica era ou considerava
a península. Era sobretudo o nosso próprio olhar de antigos e naturais actores de história da
Europa do séc. xv e do séc. xvi, conscientes de ter saído dos seus respectivos esplendores. Foi
só bem tarde que um certo discurso das luzes, já nos finais do séc. xviii nos começou a habi-
tuar à ideia e a insistir no nosso famoso atraso e a dar-nos conselhos para que o resolvêssemos.
No séc. xvii – no famoso século do Génio, o de Decartes, Pascal, Leibniz e Newton
– mas, sobretudo, no das sociedades científicas que começavam a marcar a paisagem cul-
tural europeia através das quais a ideia e o sentido de progresso entrava na história, – nin-
guém considerava as pátrias de Cervantes, de Lope, de Calderón, de Gracian, de Francisco
Manuel de Melo como uma ilha em vias de se separar culturalmente da Europa. O século
de Luís XIV não tem leitura sem a osmose profunda entre a cultura peninsular – então no

67 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


seu esplendor – e os seus Corneille, os seus Racine, os seus Mollière; e bastava Cervantes
para que não estivéssemos separados, como depois nos julgámos, da Europa mais vanguar-
dista. A Cultura Europeia caminha, como caminhou sempre, a ritmos diferentes e o que
era novo era essa tendência a afastar-se da aventura moderna por excelência, aquela que
obras como Daniel Deföe ilustraram, mas que vendo bem, provavelmente não existiriam
se antes dele um homem, o autor de D. Quixote não tivesse existido e lançado a Europa
no caminho das suas próprias aventuras ao mesmo tempo reais e oníricas.
Na verdade, mesmo nas épocas de maior distanciação entre as diversas culturas eu-
ropeias, a trama da sua cultura foi sempre mais unida do que podemos imaginar. Hoje e
aqueles que têm uma visão comparatista em geral das culturas e das civilizações – e tenho
aqui ao lado um eminente representante desse tipo de olhar, Claudio Guillén – sabem até
que ponto de facto essas famosos abismos e separações, são muitas vezes mais fantasmáticos
do que verdadeiramente reais.
Esta ideia de que à medida que se constituía, a nova Europa era para a península um
problema, não apenas na ordem política, mas civilizacional e cultural, tem alguma razão
de ser. Se não seria inexplicável que tivéssemos interiorizado tanto a famosa expressão
que havia alguma coisa que separava a Europa de Além-Pirinéus da Europa de Aquém-
Pirinéus. Talvez devêssemos convir que, antes de mais, a Península onde um dos seus
povos ou cada um por sua conta se tinha efectivamente retirado, em parte, da cena euro-
peia, confinando-se ao áquem dos Pirinéus antecipar a fabulosa deriva que, mais tarde, a
Jangada de Pedra de José Saramago vai alegorizar. Essa Península “aquém” dos Pirinéus não
derivou, não fugiu para os seus domínios da América pois que o já tinha feito de algum
modo no século xvi, mas a partir dessa época refugiou-se neles.
Nós, portugueses, usamos muito a expressão definidora da nossa atitude intra-penin-
sular: dizemos que vivemos ou temos vivido de costas voltadas para a Espanha. Bem mais
importante e decisivo foi que cada um de nós mesmos começasse a estar voltados de costas
para a Europa, para essa Europa além Pirinéus. A certa altura tinha que chegar o momento
em que pensávamos que a Europa nos tinha também voltado as costas – relativamente,
entenda-se, pois o fim da colonização espanhola da América – como da colonização menos
acentuada de Portugal no Brasil – foi o de encontrar lá as razões de estar presente na Europa.
O destino decidirá também outra coisa, mas os galeões que a Europa de Morgan
e Surcuf aprisionavam, traziam também prata para investir e nos integrar, da maneira
mais activa possível, justamente nessa mesma Europa. Só nesse sentido, e em termos de
política e de guerra a Europa era problema para nós e nós um verdadeiro problema para a
Europa em ascensão, península na sua face ibérica, transatlântica e asiática era um objecto
de presa ou de contenção. A Península que constituiu questão para a Europa, se isso tem
verdadeiro sentido, foi aquela que desde a chegada à Índia até aos reinos de Filipe II e III
68 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

tentou impor ou jogar um jogo igual com as potências europeias mais representativas: a
Inglaterra ou a França. Portugal, nessa época integrado no projecto político da Casa de
Áustria, é então mais europeu do que nunca mais o será. Sê-lo-á ainda na Guerra dos Sete
anos, onde a Europa, independentemente do seu espaço de colonização se bate entre ela
ou em família. Nessa altura estávamos a ser Europa como um todo à força circunstancial.
Foi a Revolução e as guerras napoleónicas que puseram fim a esse artificial mas simpá-
tico equilíbrio. Com a chegada dessa era numa Europa que era ainda a da guerra de rendas
e com a Revolução, entrámos na época de ferro europeia, a que está terminando sob os
nossos olhos e somos excentrados da história da Europa. É a partir de então que as nossas
relações com a Europa, em todo o caso na vertente guerreira, económica, política e até
cultural, se problematizam. É então que a Europa se torna um problema para a Península.
Nós, portugueses, temos muita dificuldade em conceber como um todo o corpo pe-
ninsular. Como história, como política, mesmo como cultura, em sentido profundo, a
Península foram sempre “penínsulas” que se expressaram quer nos seus conflitos internos,
quer nas suas relações diferentes com a Europa e com o mundo. Portugal e a Espanha
viveram, durante séculos, destinos extremamente análogos, por vezes paralelos, mas sempre
como dois actores. Vivemos juntos, por exemplo, o período do fim da colonização espanho-
la na América? Vivemos juntos, – ou a Espanha viveu a nossa perda do Brasil como qualquer
coisa que a afectasse a ela directamente? Vivemos nós a perda, inclusivé, do fim do grande
império espanhol que tem lugar no fim do século xix em Cuba como se fosse qualquer coisa
que nos atingisse profundamente – e atingia – mas para o vizinho que suportava a dor e o
peso e a reflexão dessa perda? Tomaram os espanhóis as nossas dores quando a Inglaterra nos
enviou um ultimato colocando-nos naquele lugar que em termos de força e de potência e
de poderio ela considerava que era o nosso, quer dizer o mais subalterno realmente possível
e pouco europeu no sentido imperialista em que a Inglaterra se afirmava? – Não.
Como peninsulares, compartilhando a dupla face do conflito, portugueses e espanhóis
só realmente viveram e ressentiram em comum a tragédia espanhola, refiro-me natural-
mente à Guerra Civil. Mas essa tragédia não foi apenas peninsular nem única e verda-
deiramente espanhola. Foi um conflito específico onde a Europa e o mundo já estavam
implicados e que teria as suas consequências. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e
sobretudo o fim do confronto entre leste e oeste, o nosso relacionamento peninsular com
a Europa sofreu uma alteração radical. Não tivemos nisso, nós portugueses nem espanhóis,
nenhum papel de actores, porque o sujeito dela foi a própria Europa.
Embora os traços das antigas querelas, ambições, medos e prevenções permaneçam, o
actual relacionamento do povo europeu, dos povos europeus uns com os outros e neles, os
nossos – de portugueses e espanhóis – essa problematização tradicional da nossa relação
com a Europa, mesmo no que nela havia de onírico ou de absurdo recolheu ao museu da

69 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


história. É aquilo que eu penso. Que mais não fosse porque a Europa, no seu conjunto,
esta nova Europa próspera, continental, empenhada em inventar-se como uma espécie
de Nação-Europa, – quando essa utopia perdeu o seu fascínio – recolheu ela própria ao
museu da história ou antes mais, talvez, real e simbolicamente ela tornou-se no mais mag-
nificente museu da história e é como museu da história que os outros, sobretudo os novos
senhores da política mundial, nos visitam e nos utilizam. Enquanto Península e em termos
políticos, nunca tivemos verdadeiramente grandes contenciosos com a Europa, a não ser
dessa Europa instalada em si mesma como um mito, até pela simples razão que um tal con-
flito, em última análise, era absurdo porque não há, se nós pensamos na história da Europa
no seu conjunto, desde os tempos romanos até hoje, poucos espaços mais europeus, que os
da Península, sendo mesmo uma espécie de Europa antes da própria Europa. Foi aqui que
os conflitos da antiguidade se terminaram ou se jogaram. Foi aqui que César e Pompeu di-
rimiram as suas questões para o domínio do mundo antigo. Fomos integrados cedo nessa
Europa, provavelmente um dos mistérios desse famoso afastamento é que nós fomos um
pouco Europa, antes do que uma grande parte dessa Europa fosse Europa.
Nós podemos imaginar que uma parte dessa Europa, vista do nosso ponto de vista, em
todo o caso, aqui no extremo ocidente, era uma espécie de barbárie definida com vários
graus até chegar ao reino de Moscóvia. Como nós já tínhamos tido os Cartagineses, os
Fenícios, os Gregos e depois os Romanos em nossa casa, nós fazemos parte dessa história.
Não é a história da Europa como modernidade, da sua invenção com a modernidade, é uma
outra história que está firme por trás, no horizonte, no passado dessa mesma história. Mas
mesmo esse contencioso ficcional, com alguns motivos sérios subjacentes já não tem agora
razão de ser, não porque a península se tenha diluído na Europa, mas com mais verdade
porque a Europa, essa tal da modernidade, nos entrou em casa e se diluiu ela mesma na
Península como Europa, a Europa que se propôs homogeneizar o resto da outra Europa.
Esse contencioso e essa problematização não têm hoje razão de ser, em todo o caso não se
podem pôr as relações com a Europa nos mesmos termos em que se punham há apenas 50
anos. Nós entrámos efectivamente para a casa comum, se é que alguma vez estivemos efecti-
vamente longe dela como o supusemos, sobretudo a Espanha, foi sempre tão intensamente
interligada ao destino da Europa e ao destino mais central da própria Europa.
O nosso caso é um pouco diferente porque nós, efectivamente, por vontade dos nossos
dirigentes de outrora, por condições do destino, afastámo-nos dos primeiros dessa Europa.
Simbolicamente isto permite uma outra possibilidade de reler tudo nos aconteceu desde
então e sobretudo esse curioso processo de fascínio e de ressentimento em relação à famosa
Europa, quando ela se constitui como Modernidade. Nós fugimos para outro sítio, ou por
outra, nós derivámos, efectivamente, passámos a inventar uma outra Europa, uma outra
maneira de ser Europa e essa outra maneira de ser Europa está viva. É a América, a América
70 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

no seu conjunto, desde o norte até ao sul da Patagónia. Essa América não é o nosso pas-
sado, é, eu penso, neste momento, de uma maneira muito forte, o nosso futuro, no sen-
tido mais empírico do termo. Agora estamos já normalizados e felizes, de algum modo,
em termos europeus daqui. Mas a Europa não está normalizada nem feliz em termos de
Europa aquela que não tem mais horizonte do que essa própria Europa. Mas nós inventá-
mos, construímos – ou através de nós constituiu-se e inventou-se – uma outra Europa, e
em última análise uma Europa outra, a de um “novo mundo” que não está só no passado.
A famosa problematização do nosso destino que nos causava tantos problemas enquanto pe-
ninsulares que se viam como actores políticos de segunda grandeza, de segunda instância. Se nós
pensamos que, particularmente a América Latina, é filha directa da Península nós não podemos
ser problematizados a esse título. A esse título, já sem o sabermos, essa existência transatlântica
fazia que não sentíssemos tanto as humilhações que tínhamos em relação à “outra” Europa.
Estávamos construindo algo que nós nem sabíamos o que era, maior do que nós e isso não é o
nosso passado, isso é o nosso presente e penso que será realmente o nosso futuro. O nosso futuro
está naquilo que realmente inventámos, trazendo à Europa uma Europa que ela não conhecia.
ROTEIRO MIGUEL DE UNAMUNO –
EDUARDO LOURENÇO:
COIMBRA–GUARDA–SALAMANCA,
UM EIXO CIENTIFICO E CULTURAL
COIMBRA

Coimbra. Vista Geral (RJ)


73 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
Coimbra
Miguel de Unamuno37

Mientras arde e incendia la guerra por esa Europa dentro, ¡qué encanto el de vivir en el
remanso de paz de este rincón del pequeñito Portugal, lejos de horrores y junto al mar sus-
pirante! Y desde aquí, desde esta playa de Figueira da Foz, esto es, de la hoz del Mondego,
a ver una vez más la ciudad de encanto, cuyos pies bañan las lágrimas del Mondego,
henchidas de recuerdos de la tragedia de Inés de Castro.
Cuando al acercarme en tren se me apareció la visión panorámica de Coimbra, tre-
pando sus casas por la colina en que se asienta y dominada por la Universidad a que hace
cabeza su torre, la saludé como a una vieja conocida. Es una torre académica, no una torre
eclesiástica, la que corona a la ciudad, académica también, de Coimbra. Ninguna de sus
dos catedrales, ni la vieja ni la nueva, se destaca para lo lejos.
La catedral nueva de Coimbra, iglesia del antiguo colegio de jesuítas, debido a la
munificencia de D. Juan III, es un templo... jesuítico. Nada tiene que admirar. Mas en
cambio la antigua – a Sé Velha – , que recuerda nuestra catedral vieja de Salamanca, es una
especie de fortaleza románica del siglo XII, que produce en el inteligente que se alberga en
la robusta solemnidad de sus naves un sentimiento como de rejuvenecer nuestra vieja alma
cristiana colectiva. Una dulce penumbra de edad media invade al espiritu, que se siente
asentado sobre si mismo al ver la poderosa fábrica asentarse como si arraigara en tierra. Es
una fuerza que desciende y posa, y no una que se levanta como en las catedrales góticas.
74 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço

Y en el altar mayor un espléndido retablo de madera tallada, obra de flamencos y de prin-


cipios del siglo XVI; una verdadera maravilla. Ya en otro viaje me pasé ante él, dibujando
algunos de sus detalles, buena parte de una mañana.
Y de la catedral, al ver una vez mas la iglesia de Santa Cruz, típico ejemplo de lo que se
llama aquí el estilo manuelino. Como que fue el propio rey D. Manuel, el que dio nombre
al estilo, quien la hizo reconstruir. Era de un monasterio de canónigos regulares de San
Agustín, donde lo fué algún tiempo el gran Taumaturgo San Antonio, de Lisboa, conocido
por San Antonio de Padua. (En cambio la Santa Isabel de Portugal era aragonesa.)
Este manuelino portugués – de que acaso el más genuino ejemplar es el templo de
los Jerónimos, en Belem, cerca de Lisboa – es un estilo... ≪tirabuzonesco≫. Todo está en
rizos. Diríase a las veces que son piezas de ropa blanca cuando después de lavadas se las
retuerce para enjugarles o calabrotes y cordajes de barcos. ¿Tomaron de la jarcia acaso la
inspiración de esos trenzados de piedra?

37
Miguel de Unamuno (1922), Andanzas y visiones españolas. Renascimiento, Madrid, pp.: 134-141.
Allí, en Santa Cruz, y en un magnífico túmulo, duerme, sin oir ahora el fragor de la
conflagración europea, don Alfonso Enríquez, el fundador de la monarquia lusitana.
En este viaje no cruce el río para ir a ver la sepultura de la reina santa, Isabel de
Portugal, la aragonesa. Y lo sentí.
Deseaba volver a ver la hermosísima imagen en talla de madera y policromada de la
santa reina, obra de este maravilloso escultor, Teixeira Lopes, que aún puede producir
nuevas obras maestras. Recuerdo que esa imagen, cuando la vi por primera vez, hace unos
años, me hizo la impresión de algo aéreo, de algo sólo línea y color, sin tangibilidad, de
algo que se elevaba como una llama dulce.
Y como no pasé el puente, tampoco volví a ver la Quinta de las Lágrimas, la de la
leyenda de Inés de Castro, la que inmortalizó con una estrofa eterna Camoens, la que
Mauricio Barrés no quiere morirse sin baber visitado.
Visité, en cambio, el monasterio de Celias, cuya última monja, benedictina, murió
en 1883. En aquel recojido claustro, hoy desierto, todo luz y reposo, entre aquellos his-
toriados capiteles del siglo XIV, !cuán lejos nos encontrabamos de la brutal tragedia que
está asolando a Europal Pero en medio de una silenciosa tragedia también, de una tragedia
mansa e idílica, a la portuguesa. Acompañábanme mis tres hijos mayores y el gran poeta
portugués Eugenio de Castro, con el mayor de los suyos. Y yo espero algo de la pluma de
Castro sobre ese humilde claustro benedictino de pobres monjas.
Mas en Coimbra lo que hay que ver, ante todo y sobre todo, es su Universidad, aunque
no sea, como monumento arquitectónico, lo mejor, ni mucho menos, que la ciudad tiene.
Pero es la verdadera razón de ser de ésta, su hogar.

75 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço


Lo mejor del edificio de la Universidad es su emplazamiento, en lo alto de la ciudad,
dominando os saudosos campos do Mondego, que dijo Camoens. El paisaje que de allí se
abarca es de lo más hermoso que en paisaje he visto en parte alguna. Al fondo el Mondego,
el río portugués, la gran cuerda de la inmensa lira que es este pequeño pueblo que suspira y
canta a la vera del mar tenebroso. (Así le llamaron ellos a este tan luminoso mar.) Ahora, en
pleno estío, medio seco, parecía, como dijo de él Eugenio de Castro, un camino de gigan-
tes. Y Allende el río saadoso, allende el río de lágrimas suspirantes, mansas colinas vestidas
de olivos y de pinos, rebaños de colinas ondulantes, un mar de verdura. Y a lo lejos el cabo
Mondego, perdido entre la bruma.
No hay modo de penetrar en el alma elegíaca de la poesia portuguesa – y en Portugal
toda la literatura es poesia – , no habiéndose dejado gan